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NAÇÃO E HISTÓRIA: Â FUNDAÇÃO

DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

A pesquisa acerca do Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro

A historiografia brasileira dedicou-se muito pouco, até o momento,


à reflexão sobre o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
No entanto, curiosamente é constante a referência ao papel e ao sig-
nificado que o instituto exerceu na vida cultural do Brasil do século
XIX em trabalhos no âmbito das ciências sociais. As pesquisas, con-
tudo, ainda não construíram qualquer análise científica abrangente
sobre o tema.
Parece, assim, uma obviedade que a instituição, fundada em
1838, tenha desempenhado papel relevante no processo de forma-
ção nacional. Mas que tipo de papel social assumiu e em que sentido
a escrita da história pode contribuir - e contribuiu de fato - para o
processo de construção da identidade nacional? Essas são questões
que ainda não conseguiram receber um tratamento sistemático das
pesquisas acerca do instituto. Como se pode explicar que esse tema
ainda não tenha recebido a devida atenção, uma vez que, ao longo
de todo o século XX, a historiografia brasileira foi marcada pela obra
do instituto?
Dois tipos de abordagem acerca do instituto podem ser deli-
neados: de um lado, os trabalhos que resultaram da pena dos sócios
60 Historiografia c Nação no Brasil 1838-1857 Nação c história: a fundação do Instituto Histórico c... 61

do instituto. 1 Especialmente por ocasião do centenário de fundação Sua concepção da história do instituto, ao qual pertenciam na condi-
do instituto, ern 1938 - com a marca de um clima de forte sentimento ção de sócios, era formulada preferencialmente a partir de determi-
nacionalista, multiplicaram-se, na revista do IHGB, artigos sobre o nadas datas comemorativas do instituto, ou em função de referências
tema, que chegaram até mesmo a difundir fontes para o estudo da oficiais. Produzidos sob tais condições e sem tomar qualquer referên-
biografia de seus fundadores. cia de uma história-problema, os textos distinguem-se muito pouco
A organização do III Congresso de História do Brasil, então, entre si e só com muitas reservas podem ser considerados propria-
dedicou à interrogação seis sessões de um total de 55 com os seguin- mente científicos.
tes temas: O valor desses trabalhos consiste principalmente na sistemati-
zação das fontes. Principalmente as biografias publicadas oferecem
- IHGB: sua fundação um grande manancial de informações sobre os fundadores do IHGB.
- IHGB: patrocínio e atividade do imperador d. Pedro II É preciso não esquecer que uma formação científica no cam-
- IHGB: sua influência cultural po da história, decorrente da profissionalização da historiografia de
- IHGB: sua obra científica e a Revista do IHGB acordo com os padrões universitários, só se tornou possível no Brasil,
— IHGB: sua obra científica e os congressos promovidos pela primeira vez, a partir de 1934, na cidade de São Paulo, com a
- IHGB: suas grandes personalidades fundação da universidade. Novos métodos e teorias, então, foram in-
troduzidos no campo das ciências sociais brasileiras, com a vinda de
A consciência do papel desempenhado pelo instituto como cientistas franceses convocados.
guardião da história nacional encontrou expressão no discurso do Há, assirn, ainda um segundo grupo de trabalhos que foram
orador oficial do jubileu de fundação: Guarda de nossa História, da preparados por autores que não são ou que não foram sócios do ins-
opulência do nosso património moral, jamais poderá desaparecer.2 tituto, e que se valem de um tipo de abordagem analítica.3 Em vez da
Os trabalhos apresentados tinham como marca o caráter des- mera descrição, procuram partir de um questionamento para abor-
critivo e a representação panegírica do instituto e de sua atividade. dar o tema do IHGB. A fundação e a função social do IHGB são
Seus autores não eram historiadores de formação, mas, ao contrário, abordadas a partir de determinadas relações e, pela primeira vez, o
eram, em sua maioria, como os fundadores do instituto, juristas, objeto se submete aos critérios de uma historiografia produzida e
militares e médicos. Esses homens se definiam como "literatos", desenvolvida a partir da universidade.
o que poderia ter como correspondente europeu o homme de leltres.
Maria Alice de Oliveira Faria, com seu ensaio, lançado em
1965, sobre os brasileiros no Instituto Histórico de Paris, forneceu
BITTENCOURT, Fcijó. Instituto Histórico. Os Fundadores. Rio de Janeiro: Im-
prensa Nacional, 1938, 518p.; CASTRO, Olegário Herculano cTAquino. "O
COELHO, Geraldo M. História e ideologia: o ItíGB e. a República (1889-1891).
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro", Revista do IHGB. Rio de Janeiro,
Belém: Universidade Federal do Pará, 1981, 94p.; FARIA, Maria Alice de Oli-
60, 1887, pp. 171-201; CORREIA FILHO, Virgílio. "Como se fundou o Institu-
veira. "Os brasileiros no Instituto Histórico de Paris", Revista do IHGB. Rio de
to Histórico", Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 297, 1927, pp. 3-50; FAZENDA,
Janeiro, 266, 1965, pp. 68-148; POPINO, Rollie E. "A century of lhe Revista do
José Vieira. "Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Subsídios para sua his-
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro", The Hispamc American Historical
tória. 1838-1911", Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 74, 1911, pp. 277-439.
Review. Durham, 33 (2), mai/1953, pp. 307-323; WEHLING, Arno. "As origens
"Discurso de Alfredo Valladão", Boletim da Revista do Instituto. Rio de Janeiro: do Instituto Llistórico e Geográfico Brasileiro", Revista do IHGB. Rio de Janei-
Imprensa Nacional, 1939, p. 77. ro, 339, abril-junho/1983, pp. 7-16.
Historiografia e Nação no Brasil 1838-1857
Nação c história: a fundação do Instituto Histórico c...

valiosas considerações para a pesquisa sobre as relações entre a insti- Acredito poder situar, dentro dessa perspectiva, o Instituto
tuição francesa c o IHGB.4 O ponto de partida de sua investigação foi
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). A instituição e o pa-
originalmente a análise da influência francesa na cultura brasileira
pel que ocupou na sociedade brasileira do século XIX, assim
do século XIX, especialmente sobre o Romantismo brasileiro.
como o tipo de história que elaborou, operaram no sentido de
A medida dessa influência pode ser demonstrada, entre outras produzir c reproduzir uma fração da ideologia da classe domi-
evidências, pela elaboração na língua falada no Brasil do conceito nante brasileira, e a partir do conceito de ideologia, a história
de afrancesamento. Não é por acaso que a autora, no decorrer de seu integraria uma forma mais ampla de como a classe dominante
trabalho, deparou com esses dois institutos históricos. Personagens
explicava sua posição no sistema de classes. Assim, os intelectu-
essenciais do movimento romântico no Brasil foram sócios tanto do
ais que se organizaram em torno dó IHGB, atuarido em nível
Institui Historique de Paris como do IHGB - temas históricos foram
de superestrutura, produziram um modelo de historiografia
frequentemente motivo de sua construção literária. O objetivo dessa
- a história oficial - que consagrava o sistema de dominação
dedicação à matéria da história foi destacar o que distinguia o Brasil
existente no Brasil, fazendo com que essa produção intelec-
de todas as outras nações.
tual exercesse uma ação de retorno sobre a estrutura. 7
Outro trabalho publicado que se ocupa cientificamente do
tema é o artigo de Geraldo M. Coelho.5 Ao recorrer ao universo de
conceitos marxistas, o autor procura analisar o debate acerca da Pro- Geraldo M. Coelho pressupõe, em sua análise, que a sociedade
clamação da República no interior do IHGB - afinal, um produto da brasileira do século XIX era uma sociedade de classes, sem, contudo,
monarquia. problematizar a utilização do conceito de "classe" para o tratamento
Dois conceitos desempenham papel relevante em sua aborda- da realidade social brasileira da época.8
gem do instituto: em primeiro lugar, o conceito de aparelho ideoló- Assim como Coelho, o cientista político José Murilo de Car-
gico de Estado elaborado por Althusser.6 Em sua concepção, o IHGB valho, em um de seus livros, interroga a hegemonia no aparelho
refletia a visão de mundo da classe dominante do Brasil a partir de de Estado dos grandes senhores de terra, com base em rico mate-
seu trabalho de construção de uma história oficial, efetuando, as- rial empírico.9 O autor introduz o conceito de ''elite política" e de-
sim, uma generalização das "visões de mundo privadas" do latifún- monstra como a origem socioeconômica desse grupo era hetero-
dio baseado na escravidão. Na medida em que o instituto reproduzia génea. Além disso, no seio dessa elite, é possível reconhecer certa
essa ideologia, exercia a função de aparelho ideológico de Estado e homogeneidade.
contribuía, desse modo, para garantir a reprodução permanente das Enunciada já na introdução deste livro, essa homogeneidade
relações sociais constituídas. intelectual da elite dirigente dos negócios de Estado resulta de algo

7 Conforme nota 3. COELHO, Geraldo M., 5v.


Conforme nota 3. FARIA, Maria Alice de Oliveira.
8 Veja-se, em especial, o trabalho de: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Ho-
Conforme nota 3. COELHO, Geraldo M. Originalmente dissertação de mes-
mens livrei na ordem escravocrata. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros,
trado apresentada à Universidade Federal Fluminense, publicada em 1981,
1969, 249p. A autora afirma explicitamente que, no Brasil do século XIX, ain-
pelo historiador e professor da Universidade Federal do Pará.
da não se havia estabelecido uma sociedade de classes.
ALTHUSSER, Louis. "Idéologie et appareils ideologiques d'Etat (Notes pour
5 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ardem: a elite política imperial. Rio
une recherche)", LaPensée. Paris, 1951, junho/1970, pp. 3-38.
de Janeiro: Campus, 1980, 202p.
Nação c hi.stória: a fundação do Instituto Histórico e.. 65
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comum em sua formação e carreira: a Universidade de Coimbra e a siadamente mecânica. Mais adiante, no desenvolvimento da análise
magistratura eram etapas típicas da carreira de um membro da elite sobre o IHGB, vou retomar ainda a questão das relações sociais dos
sócios do instituto.
política.
Não estou convencido de que a definição do IHGB como O segundo conceito ao qual Geraldo M. Coelho recorre em
"aparelho ideológico de Estado", pressuposto básico do argumen- sua análise é o de inlelletuali organid (intelectuais orgânicos) .10 A par-
to de Coelho, represente efetivamente uma compreensão renovada tir desse conceito elaborado por António Gramsci, o autor interpreta
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Dito de outro modo, a ação c a função dos intelectuais reunidos em torno do instituto: "Os
acredito que o tratamento aprofundado cia especificidade do IHGB intelectuais (historiadores) reunidos no IHGB, seriam, assim, inte-
fica comprometido na medida em que a definição do instituto como grantes daquelas 'categorias especializadas' ligadas à classe dominan-
"aparelho ideológico de Estado" é tomada como dado, antes mesmo te da sociedade brasileira."11
de o resultado do trabalho se afirmar. Ou seja, o que deveria ser Essa camada social representava, segundo a abordagem de
o resultado do processo de investigação já estava estabelecido antes Coelho, uma historiografia que identificava a história do Brasil com
mesmo cia realização da pesquisa. a ascensão da classe dominante: a assim chamada história oficial.
Em urna perspectiva histórico-teleológica, o autor caracteriza Conforme seu ponto de vista, trata-se da história do Estado e da anti-
os sócios do instituto, no que se refere à escrita da história, por sua história da nação.12
ação em defesa de um único objetivo, qual seja, a conquista da estabi- Por trás dessa afirmação, fica anunciada uma conclusão pro-
lidade cia ordem vigente. Desse modo, a historiografia é relacionada blemática: a de que a história oficial é uma história falsa, portanto
com esse objetivo, sem que seja colocado em questão o motivo pelo o oposto de uma história verídica. A História, ou seja, a verdadeira
qual a historiografia se integraria nesse processo. história, c, então, a história da nação, uma história que se desenrola
Segundo minha opinião, ainda que haja sentido em se busca- noutro plano e que se contrapõe ao Estado.
rem eventuais relações entre a historiografia do instituto e os interes- Em conexão com esse pensamento, é possível postular a ques-
ses sociais de seus membros, parece-me que a conclusão de Coelho é tão nacional tomando como referência os próprios componentes
simplificadora e carece de problemati/ação. Um passo adiante seria da nação e compreender a história verdadeiramente a partir de sua
dado, na verdade, pelo questionamento das razões que fizeram com perspectiva particular. A história da nação seria então a história das
que a sociedade brasileira do século XIX sentisse necessidade da his- classes não representadas pelo Estado, deixando certa indefinição
toriografia, tendo optado por uma organização na forma similar das em torno do conceito de nação. Coelho supõe, com isso, que os ha-
academias, o IHGB. bitantes do Brasil tinham uma consciência nacional, o que, na minha
No Anexo l de seu trabalho, Coelho apresenta uma lista dos perspectiva, parece algo bastante problemático.
membros da primeira direção do IHGB, acompanhado de seu res- Consequentemente, a tarefa do historiador consiste, segundo
pectivo status social. O fato de a maioria dos membros dessa direção Coelho, em procurar por trás de toda interpretação histórica seu
deter alguma alta posição no serviço de Estado é interpretado pelo
autor como mais uma comprovação de sua hipótese de que o insti- 10 Veja-sc: GRAMSCI, António. Gli intellectuali e 1'organizzazione delia cultura. Tori-
no: Giulio Einaudi Edilore, 1974, 203p.
tuto se constituía como instância da classe dominante da sociedade
imperial brasileira do século XIX. Essa dedução direta da ação políti- 11 Conforme nota 3. COELHO, Geraldo M., p. 8.
ca e intelectual a partir da origem e do status social me parece dema- 12 ldem, p. lOv.
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Nação c hislória: a fundação do Instituto Histórico

"sentido oculto", o "não dito". O historiador pode descobrir a verda-


dos textos produzidos pelo instituto são um pressuposto incondicio-
deira história na medida em que se posiciona frente a uma "falsa his-
nal. Esses textos serão tratados como discursos, no sentido definido
tória". Coelho supõe que os atores envolvidos com a fundação de um por Foucault,13 e não no sentido de falsificação do real, como no caso
instituto histórico escondem a verdade para preservar a dominação do trabalho de Geraldo M. Coelho.
de sua classe. O procedimento de Coelho conduz a uma "des-histori-
Interrogo o que e quando é enunciado no instituto, na expec-
cização" cio objeto que pretende investigar. Essa "des-historicização" tativa de que tanto a especificidade da instituição quanto seu ambien-
ocorre a partir do momento ern que Coelho opera generalizações te social possam ser compreendidos. O objetivo desta investigação,
que contêm em si elementos a-históricos. Esse alto grau de generali-
portanto, não é encontrar uma razão genérica admitida para justifi-
zação dificulta a compreensão e a explicação do quadro da história.
car a preocupação com a hislória pelas sociedades, mas, sim, descre-
Os discursos produzidos pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasi- ver o significado da historiografia brasileira do século XIX diante do
leiro praticamente não são tratados em sua pesquisa, uma vez que, de processo concomitante de construção da nação.
acordo com sua abordagem teórica, escondem a realidade de fato.
Outro trabalho que se debruçou sobre o Instituto Histórico e
A análise empreendida por Coelho referente ao instituto atende a Geográfico Brasileiro é o artigo de Arno Wehling publicado na Re-
um único objetivo, ou seja, trata de uni objeto que se situa fora do vista do IHGB, resultado da transcrição de uma conferência realizada
instituto. no instituto. 14 O autor conclui que a fundação do IHGB foi resultado
O procedimento metodológico do qual Coelho se vale para a
da repercussão de uma política de determinada elite de orientação
abordagem do instituto conduz a resultados duvidosos. Em vez de moderada e que também teve participação na afirmação do Estado
enfrentar o assunto propriamente dito de sua investigação, ele aceita
nacional. Wehling indica, assim, que as concepções políticas e histó-
a singularidade como mera consequência de um processo histórico. ricas desse círculo de pessoas estavam profundamente enraizadas no
Os fatos relativos ao instituto e à sua história interessam ao autor .historicismo.
somente quando confirmam sua hipótese de que se trata do fato de
Em seu trabalho, José Honório Rodrigues, o único historiador
o instituto ser um aparelho ideológico de Estado e de que as pessoas brasileiro que até o momento se dedicou com afinco à história da
envolvidas se caracterizam como "intelectuais orgânicos" da classe historiografia brasileira, sublinha o caráter revolucionário da obra
dominante brasileira do século XIX. Nesses termos, qualquer análise do IHGB.1' No entanto, considerando que seu livro tem como objeto
de instituições similares - como, por exemplo, a escola e diversos uma apresentação geral da pesquisa histórica no Brasil, ele não leva
outras associações - chegaria ao mesmo resultado e, assim, pouca muito adiante a avaliação da obra do instituto.
contribuição traz para elucidar a especificidade histórica cie tais ins-
tituições.
Aqui, desenvolvo uma investigação acerca do instituto a partir
de outra orientação metodológica. A mim, interessa reconstruir um
quadro histórico no qual o instituto encontra sua inserção. Como '"' Especialmente importante nesse sentido é FOUCAULT, Michel. "Réponse à
une question", Espril, Paris, 36 (371), mar/1968, pp. 850-74; do mesmo autor
num quebra-cabeça, obrigatoriamente as várias partes desse quadro
ainda, L'ordre du discours. Leçon inaugurale au Collége de France prononcée
têm relação entre si, sem que qualquer uma delas tenha preeminên- lê 2 décembre 1970. Paris: Gallimard, 1971.
cia sobre o conjunto. Na análise do instituto, parece-rne importante l> Conforme nota 3. WEHLING, Arno.
atentar para a teia social que lhe deu origem. Para tanto, o estudo
15 Conforme nota 3. RODRIGUES, José Honório.
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A historiografia brasileira esteve tão entretida em trabalhar os sua opinião, no caso da fundação da instituição tratava-se sobretudo
temas da história do Brasil que a reflexão acerca da história da histo- do brilho da nação.'8
riografia ainda não recebeu a devida atenção. No pano de fundo, como Leitmotiv da fundação do instituto,
estava a veneração da nação, sendo a história vista como instrumento
para elevar seu brilho e sua honra. Além desse laço entre a fundação
A história de sua fundação: como, para que do instituto e um sentimento nacional ainda difuso, outro vínculo
e por quem o instituto foi criado era estabelecido. O instituto foi criado no momento em que o país
buscava proteçao contra a "revolução". Fica claro, portanto, o marco
"Procura o comércio dos sábios cultores da História Nacional, da tradição em que o instituto é fundado: os "princípios republica-
bate à porta desse Areópago ilustre, que se chama nos anárquicos" são rejeitados e combatidos. A manutenção da mo-
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro."16 narquia é tomada como garantia e pressuposto para a integração do
país.19
A ideia da fundação de um instituto histórico e geográfico e
Com estas palavras, Ramiz Galvão - sócio desde 1872 e por
a disposição para dar os passos necessários para sua materialização
longa data orador oficial e diretor da revista do 1HGB - manifestou
surgiram de duas personalidades do movimento de Independência e
as razões que o levaram a se aproximar do instituto. Nessa agre-
do consequente processo de fundação do Estado.
miação de iniciados, seguindo seu discurso, parecia-lhe possível
Raimundo José da Cunha Matos, militar formado em Portugal,
desenvolver em bases razoáveis certo sentimento patriótico. O es-
foi decisivamente marcado pela experiência de luta contra a ocupa-
tabelecimento de um laço entre o trabalho do instituto e a afirma-
ção da Península Ibérica pelo exército napoleônico e as "ideias fran-
ção de um patriotismo, ou seja, de uma identidade nacional, não
cesas". No ano de 1815, encontrando-se no Rio de Janeiro na Corte
parecia algo excepcional. No ano de 1919, Solidônio Leite, em seu
de d. João VI - pai do primeiro imperador brasileiro -, o militar pros-
discurso de ingresso como sócio do IHGB, tornou a levantar esse
seguiu, nesse lado do Atlântico, sua carreira como fiel servidor do
mesmo vínculo:
Estado, previamente iniciada em Portugal. Depois da proclamação
da Independência, ele se colocou ao lado do novo imperador e foi
E vem de longe, Senhores o vosso trabalho. Começou, pode
enviado a Goiás como comandante-mór, a fim de garantir a consoli-
dizer-se com a própria nacionalidade, com a história da qual
dação do novo Estado naquela província do interior. Como parte de
vem, assim, a identificar-se a deste Instituto... 17
suas obrigações, dedicou-se à pesquisa das condições geográficas e da
situação de vida da população indígena naquela parcela do império,
Imediatamente após a fundação do instituto, Januário da
Cunha Barbosa, primeiro-secrctário do IHGB, afirmou que, segundo
18 Veja-se, nesse sentido, o discurso programático de [anuário da Cunha Barbosa,
de 25 de novembro de 1838, por ocasião da sessão fundadora do IHGB. Revista
dolUGK. Rio de Janeiro, l ( I ) , jan-mar/1839, pp. 10-21.

"' Boletim da Revista do IHGB. Rio de janeiro: Imprensa Nacional, 1939, p. 63. i l!) Essa conexão surgiu claramente no discurso de Max Fleiuss, por ocasião do
Centésimo Jubileu do Instituto. Veja-se: FLEIUSS, Max. "Instituto Histórico y
!/ Solidônio Leite. Fala de ingresso do ano de 1919. Arquivo do IHGB. Rio de i Geográfico Brasileíio. Cien anos híen vividos", Boletin de Ia Academia Nacional
Janeiro - Lata 570. Pasta 8, p. l. dela Historia. Buenos Aires, 15 (I I), 1938, pp. 281-94.
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e, mais adiante, ao combate da imprensa de inspiração republicana, Como secretário da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacio-
que, em sua perspectiva, contagiava com "teorias políticas absurdas" nal, fundada em 1837, Cunha Matos propôs, em 18 de agosto de
o norte da província.20 Talvez seja possível atribuir a essa experiência ] 838, à sociedade a fundação cie um instituto histórico e geográfico.23
sua posterior dedicação científica e publicista à questão indígena - um Januário da Cunha Barbosa foi seu parceiro nessa empreitada e co-
tema importante para o instituto, que se espelha de igual modo em autor do memorial que definiu as bases para um instituto histórico
sua revista - e à problemática da estagnação da economia brasileira. e geográfico. No tempo em que o Estado exercia o direito de patro-
Com seu retorno de Goiás, então como representante parla- nato sobre a Igreja, Cunha Barbosa recebeu o cargo de capelão da
mentar da província, entre outras coisas, engajou-se na defesa de capela real, em 1808, por ocasião da chegada da família real ao Brasil
uma política económica nacionalista, tornando-se crítico ferrenho provocada pela fuga das tropas napoleônicas. Reconhecido pela sua
da política desenvolvida pelo Estado, no sentido de favorecer o do- oratória, qualidade cujo significado no Brasil do século XIX não era
mínio dos interesses ingleses no Brasil. Sua posição torna-se ainda digna de menosprezo, ele deu início a uma atividade incessante no
mais clara após um acordo firmado entre os governos do Brasil e da domínio público, tornando-se maçom, além de coeditor do jornal O
Inglaterra relativo ao tráfico negreiro.21 Revérbero Constitucional Fluminense, de papel destacado no processo de
Segundo a opinião de Cunha Matos, o tratado atingia a sobera- Independência.
nia brasileira em favor da Inglaterra e condenava à ruína a economia Cunha Barbosa, como figura da linha de frente na luta por
agroexportadora baseada no trabalho escravo, o que, obrigatoriamente, um regime constitucional, usou seu jornal para fazer propaganda em
levaria a um decréscimo das receitas estatais. Na seguinte fala parlamen- favor da opção pela monarquia constitucional com o filho do rei por-
tar, ele denuncia que, segundo sua ótica, sob a máscara da humanidade tuguês como imperador.
dos negros, escondiam-se verdadeiros interesses ingleses: Devido a seu posicionamento político, que defendia a submis-
são do poder imperial ao controle de uma assembleia constitucional,
Senhores, não acreditem nas pinturas que nos apresentam ele se colocou em oposição ao mais importante dos ministros de d.
os ingleses, nos seus estudos escritos da Associação Africana, Pedro í, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), representan-
nem os eloquentes discursos dos parlamentares; a política tem te do fortalecimento do imperador.
maior para nesses pomposos discursos do que a verdadeira fi- Foi assim que, depois de 1822, ele conheceu o exílio com dois
lantropia e benefício dos pretos! outros companheiros políticos: José Clemente Pereira (1787-1854) e
Quem quer exercitar obras de caridade, não tem precisão de Gonçalves í^edo (l 781-1847), que, assim como Cunha Barbosa, também era
sair fora da sua pátria; os ingleses querem fazer-se senhores da
África, assim como já estão da Ásia; Deus os ajude, mas falem- Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro: Pongetti, 193J, p. 99.
nos a verdade e não nos venham iludir com filantropias ima- 23 A utili/ação do termo "indústria" pode dar ao leitor atual uma falsa ideia. No
ginárias.22 uso brasileiro do vocabulário do século XIX, "indústria" significava o conjunto
do setor produtivo da economia, o que incluía a agricultura. Na medida em
que o Brasil do século XIX era primordialmente um país agrário, a Socieda-
20 Citado por BITTENCOURT, Feijó. Conforme nota l, p. 151. de Auxiliadora da Indústria Nacional empenhou-se principalmente na pro-
21 Nesse acordo de 1827, o Brasil se comprometia a acabar com o tráfico negreiro moção desse setor económico. Veja-se: CARONE, Edgar. O Centro Industrial do
Rio de Janeiro e sua importante participação na Economia Nacional (1827-1977). Rio
em três anos.
deJaneiro: Cátedra, 1978, 196p.; Protocolo da sessão 195, de 18 de agosto de
**• «íittdw por«SOAKES, Gerusa. Cunha Matos (1776-1839). Fundador do Instituto 1838, da SAIN. Arquivo do IHGB, Rio de Janeiro - Lata 443, pasta 30.
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Nação e história: a fundação do Instituto Histórico e... 73

coeditor do jornal O Revérbero Ganstilucumalfíurnmense. Após seu retorno do dores, dar sua contribuição para o desenvolvimento em outro plano.
período de banimento vivido na França e na Inglaterra, inconformado corn Conforme sua concepção, a história tinha uma função esclarecedora
a acusação de ser muito radical e a fim de rebatê-la, ele fortaleceu ainda mais e deveria apontar caminhos para os que se ocupam da política: no
suas convicções monarquistas, intensificando sua atividade de publicista na fundo, ela continuava sendo a magistrae vitae.
imprensa, como diretor da imprensa oficial, deputado e cónego da capela Em outro momento, vamos nos ocupar mais detidamente da
real. concepção de história representada pelo instituto, quando da abor-
A carreira de senador do Estado era uma das características dagem do projeto para se escrever uma história nacional.
dos dois mais importantes fundadores do IHGB, o que, aliás, era Importante é entender que tanto a Sociedade para o Apoio
compartilhado com vários outros intelectuais reunidos no instituto. da Indústria Nacional (SAIN) como o Instituto Histórico e Geográ-
Essa perspectiva é detalhadamente desenvolvida mais adiante. fico Brasileiro (IHGB) foram fortemente influenciados pela crença
Importa destacar que a iniciativa de fundação do IHGB teve no progresso difundido no século XIX. A SAIN deveria promover o
origem em uma sociedade dedicada à promoção do desenvolvi- progresso compreendido como crescimento económico, enquanto
mento económico do Brasil. Assim como posteriormente ocorreu o IHGB exercia a tarefa de representar esse progresso linear e conti-
com o IHGB, também essa sociedade esteve sob a proteção impe- nuado em sua historiografia. O dever do IHGB era apresentar o pro-
rial - sempre elegendo uma pessoa de confiança do imperador cesso civili/ador que o país atravessou e durante o qual se aproximou
como presidente -, e sua revista tornou-se plataforma da difusão do padrão europeu.
de estudos e de descobertas para o benefício económico do país.
Além disso, a publicação tentou, ainda, através da tradução de A nossa história, dividindo-se em antiga e moderna, deve ainda
artigos que surgiam nas revistas estrangeiras, tornar público, no ser subdividida em vários ramos e épocas, cujo conhecimento
Brasil, o estado atual do desenvolvimento tecnológico na Europa. se torne de maior interesse aos sábios investigadores da marca
A respeito da relevância dessa sociedade, que seguia o exemplo cia nossa civilização.2:l
europeu, Ignácio Alvares Pinto de Almeida, em seu discurso de
posse no cargo de primeiro secretário da SAIN, manifestou-se nos No domingo de 21 de outubro de 1838, reuniram-se os 27 fun-
seguintes termos: dadores do instituto nas dependências da SAIN e instalaram defi-
nitivamente o instituto. Em 25 de novembro, foram apresentados e
[...] nenhum País floresce, e se felicita sem Indústria; por ser aprovados os estatutos da recém-fundada instituição. Esses primeiros
ela o móvel principal da prosperidade e da riqueza, tanto pú- estatutos estabeleciam dois objetivos principais para o instituto, quais
blica, como particular de uma Nação culta e realmente inde- sejam, a reunião e a publicação das fontes importantes para a história
pendente. 21 do Brasil e o apoio a estudos históricos através do ensino público.26
Além disso, na ocasião, fixou-se que o instituto manteria contato com
Enquanto a Sociedade para o Apoio da Indústria Nacional foi
concebida como uma contribuição ao desenvolvimento do Brasil no 25 Discurso do então primciro-secretário do [HGB, Januário ria Cunha Barbosa,
plano económico, o IHGB deveria, segundo os planos de seus funda- por ocasião da sessão de fundação do IHGB. Revista do IHGB. Rio de Janeiro l
(l),jan-mar/1839, p. 12.
* Estatutos do IHGB. Revista do IHGB. Rio de Janeiro l (1), jan-mar/]839, pp.
Contbrme nota 23. CARONE, Edgard, op. cit., p. 16. 2J-4.
Xação e história: a fundação do Instituto Histórico c... 75
74 Historiografia e Nação no Brasil 1838-1857

Essa proteção trouxe um apoio financeiro que, no orçamento


instituições similares, bem como incentivaria a fundação de institutos
anual do instituto, só fez. ganhar importância. Em junho de 1838, o
históricos nas províncias do Império. comité diretor convocou uma sessão especial para preparar um re-
Ojornal Correio Oficial, cm 25 de outubro de 1838, cumprimen-
querimento de auxílio financeiro ao Estado. Com a necessária apro-
tava a fundação do instituto como "necessidade fundamental para
vação do parlamento, o auxílio foi anualmente renovado. Enquanto
um país civilizado".27 Nas páginas do jornal, foram ressaltadas a histó-
a primeira subvenção oficial (1839-40) representava 44% da receita,
ria e a função que lhe era atribuída de reunir o conjunto dos eventos
total do instituto, essa participação subiu para 75% no ano de 1843."M
auspiciosos de um Estado para as gerações vindouras, assim como
Na previsão do conjunto de fontes de renda do IHGB, os es-
o valor de uma instituição dedicada a essa causa. No dia seguinte, o
tatutos aprovados em 1851 já contavam antecipadamente com a sub-
mesmo jornal manifestou a esperança de que a fundação do Instituto
venção oficial, ao lado das contribuições dos sócios e da renda oriun-
Histórico e Geográfico Brasileiro significava um primeiro passo para
da da venda da revista. Se levarmos em conta que, além disso, o IHGB
a formação da Academia Brasileira, segundo o modelo francês.28
recorria ao Estado também no caso dos prqjetos especiais, como a
O relatório de 1838 do ministro do Império, Francisco de Pau-
realização de viagens de pesquisa, é possível afirmar com segurança
la de Almeida e Albuquerque (1792-1868), apontava como valor, da
que o Estado teve importância decisiva na existência económica da
história seu significado pragmático para a vida política do país, o que
instituição. Na mesma sessãojá referida, em junho de 1839, o comité
estava presente tanto na concepção de história do instituto como na
diretor tomou ainda a decisão de encaminhar a proposta da criação
de Varnhagen. Concretamente, o ministro estabelecia uma relação
de um cargo oficial com competência específica, enviando um adido
entre a pesquisa da história e a solução para as questões do governo
para a Europa, cuja tarefa deveria ser a realização de pesquisas nos
e da diplomacia do país.29 arquivos de Espanha e Portugal.
Mesmo que a iniciativa da fundação do IHGB se tenha origina-
Francisco Adolfo Varnhagen (1816-1878), ao escrever sobre a
do na SAIN e que, em seus primórdios, sua existência se deva ao fato
relevância desses arquivos a Januário da Cunha Barbosa, o primeiro-
de que a SAIN havia disponibilizado suas instalações, o instituto organi-
secretário do instituto, incitava a ideia de que o Estado também deve-
zou a própria direção de modo independente. A nova comunidade da ria participar de tal iniciativa:31
agremiação era formada por 50 sócios - 25 que compunham o setor de
história e outros 25, o setor de geografia-, além dos sócios honorários e
Sobre este assunto devia talvez intervir o governo, que deven-
de um número infinito de sócios correspondentes do interior e do exte-
do alimentar o espírito de nacionalidade deve ter presente
rior. Assinale-se que, já na sessão inaugural de l" de dezembro de 1838,
que são a primeira base talvez desta, a história e conhecimento
esses sócios evocaram e colocaram-se sob a proteção do imperador. do país natal.32

30 Essa porcentagem parece ter-se mantido constante. O balanço do tesoureiro,


ern consequência, indicava, no ano de 1888, igualmente que 75% da parcela
^Zb de outubro de 1838. Arquivo Nacional. Rio de
dos créditos do Instituto vinham do Estado. Revista do IHGB. Rio de Janeiro,
Janeiro - IE 76. 51, 1888, pp. 1-4.
'» Veja-se: Correio Oficial, de 26 de outubro de 1838. Arquivo Nacional. Rio de 31 Para informações relevantes sobre a biografia de Varnhagen, veja-se o Capí-
Janeiro - IE 78. tulo 4.
29 Relatório do ministro do Império Francisco de Paula Almeida e Albuquerque 32 Carta de Francisco Adolfo Varnhagen a Januário da Cunha Barbosa, datada de
para o ano de 1848. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
76 Nação c história: a fundação do Instituto Histórico f 77

Com o passar do tempo, foram-se acumulando os exemplos de lado rios Estados Unidos, por conta de sua participação ria revolta de
dependência material do instituto em relação ao Estado. O entrela- ;1817, que também havia acontecido ern Pernambuco (Revolução
çamento entre os intelectuais e o Estado imprimiu marcas na tarefa Pernambucana) -, o movimento almejava a fundação de uma con-
de elaboração de uma história do Brasil, deixando vestígios nas ativi- federação de províncias corn uma forma republicana de Estado. O
dades desenvolvidas pelo instituto. ideólogo do movimento foi o frei Joaquim do Amor Divino Caneca
Os estatutos anteriores à reforma de 1851 determinavam corno (1779-1825), editor do jornal Tifo de Pernambuco e que, assim corno
condição para ingresso no IHGB apenas a indicação de urn sócio e Manuel de Carvalho Pais de Andrade, integrara o levante de 1817 na
a aprovação da comissão na qual o pretendente propunha a se inte- mesma província.
grar. Não se impunha, portanto, a exigência de uma contribuição Os componentes do movimento eram recrutados principal-
científica no campo da história ou da geografia. mente em setores do Estado, c seu projeto político de constituir unia
As duas posições mais importantes na direção do instituto eram ordem social republicana provocara intensa reação por parte do go-
preenchidas por antiguidade: o posto de presidente era responsável verno central do Rio de Janeiro. Além disso, a referência dos revol-
por conduzir as sessões de reunião e pela tomada de todas as decisões tosos ao exemplo haitiano deixou em estado de alerta os grandes
necessárias; e o primciro-secrclário tinha como tarefa dirigir a revis- proprietários de terra da província, que tinha como base a escravi-
ta, a biblioteca, o museu, o arquivo e substituir o presidente. Ao lado dão. Em 17 de setembro de 1824, as forças armadas imperiais con-
das comissões de história e de geografia, os primeiros estatutos de seguiram impor a derrota do movimento de apenas dois meses. A
1 838 previam ainda duas outras comissões: uma para a administração resposta do governo central ao anseio de autonomia de Pernambuco
da finanças e outra cuja obrigação consistia em editar a revista. foi o exílio ou a execução de seus líderes.
O ano de 1849 representa urn marco de virada no desenvol- Vinte e quatro anos mais tarde, a província de Pernambuco
vimento do instituto. No campo político, tudo indicava que a cen- foi novamente palco de uma revolta contra o poder central. A opo-
tralização e a consolidação do Estado nacional estavam traçadas. sição encontrou base teórica nos escritos dos autores do socialismo
A real ameaça à unidade nacional representada pelas sublevações utópico e dos teóricos da Revolução de 1848 na Europa. A partir do
regionais, que duraram até a década de 1 840, foi eliminada pela ação levante, surgiram várias divisões de relevo entre os publicistas: os jor-
militar massiva, ou pelas negociações políticas do podei" central. nais de oposição denunciavam o poder dos latifundiários e dos por-
Em 1824, dois anos depois da proclamação da Independên- tugueses que controlavam o comércio nas cidades, atribuindo-lhes
cia, as províncias do norte se levantaram contra o poder sediado no responsabilidade pelas dificuldades económicas da província.
Rio de Janeiro. A partir da província de Pernambuco, formou-se um Os eventos de Pernambuco não são o único exemplo da re-
movimento contra a Constituição outorgada por d. Peclro I, cm l de sistência das províncias contra a centralização comandada a par-
março de 1824, que previa rigorosa centralização do poder em favor tir do Rio de Janeiro. No norte do Brasil, outras disputas militares
da cidade do Rio de Janeiro. ocorreram no Pará (l835-1840), na Bahia (1837) e no Maranhão
Fortemente tomado por princípios federativos - o líder da re- (1838-1841). No sul do Brasil, os rebeldes da Guerra dos Farrapos
belião, Manuel de Carvalho Paes de Andrade (1780-1855), vivia cxi- (1835-1845) conseguiram proclamar a República do Piratini (1838)
e, assim, colocaram em risco o Império, por conta das fronteiras com
a Argentina e o Uruguai e importantes regiões de ligação com a pro-
5 clc outubro de 1839. Revista do IHGB. Rio de faneiro, l (4), out-dcv./1839p.,
?.76p.
víncia do Mato Grosso.
"78 Historiografia e Nação no Brasil 1838-1857 Nação e história: a fundação do Instituto Histórico e... 7'J

O ano ãe 1850 vale para a historiografia tradicional como o para a história do Brasil deveria passar por uma reorientação. Em
início da era de ouro do Império. Ao lado da constituição do Es- relação a essas mudanças, colocou-se, igualmente, o aprimoramento
tado centralizado, ocorreu crescimento económico condicionado dos critérios de ingresso de novos sócios, impondo-se como requisito
à expansão das plantações de café, pois havia um mercado sempre a apresentação de um trabalho científico para sua aceitação.
crescente para esse produto na Europa. A instalação nas novas dependências serviu como pretexto a
É preciso observar que, nesse cenário, houve transformação e vários discursos que, em certa medida, foram marcados por um ca-
ampliação das atividades do instituto, o que tem como consequência ráter programático. D. Pedro II, ern sua fala, abordou a questão das
a profissionalização de seu trabalho, aprofundando o entrelaçamen- expectativas em torno da mudança de trabalho do instituto e do en-
to entre o Estado e o IHGB a partir da historiografia. No processo de trelaçamento cada vez maior entre o Estado c o IHGB:
consolidação do regime, tanto em seus aspectos políticos quanto eco-
nómicos, a historiografia ganhou um peso cada vez maior em relação Sem dúvida, Senhores, que a vossa publicação trimensal tem
à história do Estado. Tratava-se, fundamentalmente, de ressaltar o prestado valiosos serviços, mostrando ao velho mundo o
perfil desse Estado "ilustrado" como portador da civilização e motor apreço, que também no novo merecem as aplicações da in-
do progresso. Nesse quadro, a estabilidade do Império contribuía teligência; mas par que esse alvo se atinja perfeitamente, é de
para conferir novo impulso à historiografia. mister que não só reunais os trabalhos das gerações passadas,
A instalação do IHGB nas novas dependências do "Paço da ao que vos tendes dedicado quase que unicamente, corno
Cidade" - a sede de trabalho do Imperador no Rio de Janeiro - na também, pelos vossos próprios, torneis aquela a que pertenço
data de 15 de dezembro de 1849 é extremamente simbólica para digna realmente dos elogios da posteridade: não dividi pois
a transformação que se realizava: a partir de então, o imperador as vossas forças, o amor da ciência é exclusivo, e concorrendo
passou a participar da maior parte das sessões, contribuindo para todos unidos para tão nobre, útil, e já difícil empresa, erijarnos
a construção historiográfica de seu perfil como monarca culto e assim um padrão de glória à civilização da nossa pátria.
ilustrado. Congratulando-me desde já convosco pelas felizes consequên-
Até então, sua presença no instituto se limitara à participação cias do empenho, que encontrais, reunindo-vos em meu palá-
ritual na sessão anual de jubileu da fundação do instituto. Daí em cio, recomendo ao vosso presidente que me informe sempre
diante, ele passou a ter um poder direto de influência ao propor te- da marcha das comissões, assim como me apresente, quando
mas, estabelecer prémios e apoio financeiro para garantir a expansão lhe ordenar, uma lista, que espero será a geral, dos sócios que
das atividades empreendidas. O significado dessa mudança torna-se bem cumprem com os seus deveres; comprazendo-me aliás em
ainda mais evidente quando se observa que, a partir de 1849, as ses- verificar por mini próprio os vossos esforços todas as vezes que
sões de jubileu subsequentes abandonaram a data original de funda- tiver a satisfação de tomar parte em vossas lucubrações.33
ção, para serem previstas para o dia 15 de dezembro como marco do
novo início da obra do instituto. Na mesma sessão, o imperador distribuiu a quatro sócios do
Marco desse recomeço é também a intenção declarada de prio- instituto a tarefa de abordar os seguintes temas para que seus resulta-
rizar a reordenação da futura produção dos trabalhos específicos das dos fossem apresentados ao instituto:
áreas de história, geografia e etnologia. Em consequência, o peso do
trabalho até então desenvolvido de coleta de fontes fundamentais
' Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 12 (16), out-de/, 1849, p. 55]v.
Historiografia <• Nação no Brasil 1838-1857 Nação c história: a fundação do Instituto Histórico c... 81

- Existe a possibilidade de civilizar os índios do Brasil? tada por ele e dois dos mais importantes escritores do Romantismo,
- Qual a influência que as línguas indígenas têm sobre o por- encarregou-se de esboçar o significado das realizações do instituto:
tuguês falado no Brasil?
- A imitação das formas da literatura romântica atrapalha ou Ao literato já não pertence essa existência secundária na or-
promove o desenvolvimento de uma literatura genuinamente dem social, essa vicia de um crepúsculo que só depois da morte
brasileira? se devia engrandecer: os seniços intelectuais do ministério das
- O Descobrimento do Brasil foi resultado do acaso ou será ideias foram nivelados com os outros elementos civilisadores,
que Pedro Álvares Cabral seguia instruções recebidas?34 e a sua glória igualada a do general, do magistrado e do es-
tadista; os elos de cadeia civilisadora se acham entrelaçados
Especialmente os dois primeiros temas receberam atenção sig- fraternalmente, e caminhando para a mesma direção. Este
nificativa por parte do instituto no período abarcado por este livro. triunfo tão solene, e que tanta l u/ vai derramar sobre a histó-
Em relação a isso, um aprofundamento mais preciso é apresentado ria da América, é equivalente àquela lei providencial, àquela
no tratamento dispensado à revista, desenvolvido na Seção 3.2 deste reivindicação que pelos atos de posteridade o tempo concede
livro. O interesse que esses temas despertaram será levado em conta ao génio.
a partir de sua conexão com a realidade social. Amanhã quando a nova Fama das cem bocas, a imprensa ti-
A primeira vista, os resultados formais da instalação em novas ver espalhado do Prata ao Amazonas as vozes do Soberano do
dependências de uma agremiação de intelectuais foram plenamente Brasil, o literato, até agora colocado na esteira secundária da
realizados em seu sentido simbólico: fica claro que o Estado confere ordem social, se erguerá da mesa, tendo na mão as suas obras,
certo destaque aos intelectuais e à historiografia. Desse modo, a tra- olhará em torno de si, e dirá... também eu sou homern; tam-
dição cultivada em Portugal entre o Estado e os intelectuais é levada bém eu me posso sentar diante do Soberano! As minhas obras
adiante, e o serviço público era praticamente a única trajetória que são os meus títulos de nobreza.35
possibilitava esse tipo de atividade.
Numa sociedade de estruturas sociais impermeáveis, o serviço Ainda que se sentissem lisonjeados com a afirmação de que,
público representava para as camadas sociais inferiores, ria maior par- através da participação pessoal do imperador, sua sociedade especi-
te dos casos, a única possibilidade de ascensão social. Na medida cm ficamente literária se tornara uma "instituição do país", os sócios do
que o Estado brasileiro não recrutava seus servidores exclusivamente instituto se colocaram contra essa posição de caracterizá-los como
dos setorcs sociais tradicionais ou mais favorecidos, amenizavam-se "instituição oficial". O epíteto de "oficial" era compreendido por eles
as consequências dessa estrutura social, proporcionando o encontro como uma contradição em relação às suas motivações de erguer um
de grupos sociais distintos, o que seria impossível em outros planos órgão neutro política e exclusivamente dedicado a seu caráter cien-
da vida social. tífico.
Enfaticamente, Manoel de Araújo Porto Alegre, ativo militante No contexto das discussões travadas em torno de um texto es-
do instituto, em 15 de de/.embro de 1849, na revista Guanabara, edi- crito em 1852 por José Joaquim Machado de Oliveira (1790-1867),
sobre a questão dos limites de fronteira entre Brasil e Uruguai, co-

34 Esse tema faz parte até hoje do programa de ensino de história nas escolas
brasileiras. 35 Revista doIHGB. Rio deJaneiro, 12 (16), out-de//1849, pp. 555-7.
82 Historiografia e Nação no Brasil 1838-1857 Nação e história: a fundação do Instituto Histórico <•

locou-se o problema de saber a partir de qual ponto se ultrapassava tara Bellegarde apontavam para o fato de que os trabalhos do institu-
a tarefa do instituto no tratamento de temas políticos contemporâ- to deveriam ser julgados por critérios "objetivos", e não por critérios
neos.36 Apesar dessa consideração, curiosamente, o instituto não se políticos. Reconhecendo o valor da parte histórica do trabalho de
intimidava em publicar na revista trabalhos acerca de questões da Machado de Oliveira, julgaram útil seu ensaio, sem se posicionar erri
atualidade política. relação às conclusões decorrentes de sua posição política. No decor-
O mencionado texto de Machado de Oliveira abordava a ques- rer do debate, é possível sentir certo esprit de corps, avaliando positi-
tão das fronteiras do sul do Brasil, um antigo problema que ocupara vamente o trabalho de um dos sócios da casa. Exceção foi Duarte da
o governo português no período colonial. Em seu trabalho apresen- Ponte Ribeiro, o mais ferrenho dos críticos do ensaio polémico, por-
tado em 1851, o autor criticava a solução firmada por tratado entre que, de acordo com sua perspectiva, essa tomada de posição "contra-
Brasil e Uruguai. A partir de uma argumentação histórica, Machado riava a tarefa do instituto em ser objetivo".38 A disputa teve fim com a
de Oliveira tentou comprovar que o tratado ia contra os interesses publicação de um texto elaborado por todos os envolvidos na quere-
nacionais, já que, através dele, abria-se mão de áreas ocupadas pelos la, sem que, contudo, o instituto tenha tomado uma posição oficial.39
criadores de gado brasileiros. A mudança no instituto, que se tornava visível a partir de 1849,
Pelos limites de fronteira traçados, o autor argumentava que encontrou expressão em junho de 1851, na aprovação dos novos
alguns brasileiros foram submetidos ao um Estado nacional que não estatutos, espelhando o alargamento das atividades do IHGB. Nas
correspondia à sua nacionalidade. Ademais, a província do Rio Gran- linhas condutoras aí contidas, a arqueologia, a etnografia e a língua
de do Sul veria suas fontes de receitas reduzidas e, para o conjunto dos indígenas do Brasil foram descritas como novos campos de pes-
do Império, essa fronteira representava risco político-estratégico em quisa do instituto. Essa ampliação caminhava junto com a concepção
seus limites meridionais. O risco do Império, segundo a perspectiva da história como processo progressivo e com um sentido final que só
de Machado de Oliveira, consistia na diversidade dos processos de seria possível descrever na medida em que a cadeia da civilização fos-
construção do Estado no país, o que ficava evidente numa região em se traçada, motivo pelo qual essas disciplinas eram tidas como funda-
que a afirmação da centralização política foi extremamente difícil, mentais. Enquanto o instituto, em seus primeiros estatutos de 1838,
como a Guerra dos Farrapos (1835-1845) exemplificava. apoiava-se na proteção da SAI N, a partir de 1851 essa função passou
Duarte da Ponte Ribeiro (1794-1878), em parecer preparado a ser exercida pessoalmente pelo imperador. No total, o número das
em 1853, criticou severamente a perspectiva de Machado de Oliveira, comissões foi ampliado para 10, com as seguintes novidades:
na medida em que acusava de errónea sua interpretação dos fatos
históricos, bem como de injusta sua avaliação da política imperial.37 - Comissão de revisão de manuscritos
Ele propunha ao instituto, então, uma tomada de posição oficial, que - Comissão de apoio aos trabalhos da comissão de estudos
históricos
deveria distanciar-se da posição de Machado de Oliveira.
Outros sócios do instituto, intencionalmente, participaram da - Comissão de arqueologia, etnografia e línguas indígenas
discussão, para que não fosse enfatizada a dimensão política da dis- - Comissão de admissão de sócios
puta. Cândido Batista de Oliveira, Gonçalves Dias e Pedro de Alcân-
38 Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 16(12), dez/ 1 853, p. 507.
:ífi Veja-se: Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 16 (12), out-dez/1853, pp. 385-423. 39 O número inteiro da revista foi dedicado ao debate em torno desse tema. Con-
forme nota 36, pp. 385-560.
3' Conforme nota 36, pp. 426-51.
8-1 Historiografia e Nação no Brasil 1838-1857 Nação e história: a fundação do Instituto Histórico c... 85

- Comissão de o levantamento de manuscritos e documentos José Feliciano Fernandes Pinheiro, primeiro presidente do
- Comissão de apoio aos trabalhos da comissão de geografia IHGB, provinha de uma família da província de São Paulo, uma das
menos importantes das províncias do Brasil daquele tempo.42 Sua
A partir de então, a fim de fortalecer as atividades intelec- biografia é, em certo sentido, típica dos intelectuais daquela época,
tuais, a admissão no IHGB passou a ficar condicionada pela exigên- que se esforçaram para superar o empobrecimento da família ou a
cia de comprovar urna contribuição científica em um dos campos ti- simplicidade de sua origem através de uma trajetória de servidor do
dos como relevantes no instituto. Ein 1839, o ano em que mais houve Estado e por uma formação intelectual. Marca característica dessa
ingressos no instituto, houve a admissão de 213 pessoas; em 1852, o elite intelectual e política era a carreira no serviço público, com o
ano subsequente ao anúncio dos novos estatutos, apenas urna pessoa objetivo maior de obter reconhecimento como fiel servidor do Esta-
conseguiu atender às novas exigências, sendo que, até 1889, foram, do, que se expressava através da concessão de um título de nobreza.
em média, menos de 10 novos sócios admitidos por ano no instituto. Esses títulos não hereditários davam ao Estado condições para mani-
Ainda que o primeiro-secretário, em seu relatório anual, apontasse festar seu reconhecimento público, o qual não era determinado pela
as condições rigorosas de admissão como razão principal para o nú- riqueza pessoal.
mero reduzido de novas admissões, é preciso registrar, ainda, o fato Esse ideal "de servir ao Estado" fica explícito quando José Fe-
de que o setor intelectual no Brasil do século XIX, do qual poderiam liciano Fernandes Pinheiro enfatizou cjue, para ele, era mais impor-
sair os novos sócios, era numericamente muito restrito. tante "ter um nome honrado, através do qual todos os meus antepas-
Para se ter uma representação mais exata, é possível indicar al- sados sejam colocados a serviço do Estado",43 do que ser nobre por
guns dados do censo demográfico realizado pela primeira vez somen- nascimento. Trata-se de um ethos acima de tudo tradicional, presente,
te em 1872, segundo o qual apenas 0,08% da população brasileira ti- inclusive, no seio da nobreza portuguesa.
nha curso superior completo.40 O número da população alfabetizada Em suas memórias, José Trazimundo Mascarenhas Barreto
não era mais auspicioso: apenas 23,43% da população masculina e (1802-1881, Marquês de Fronteira e d'Al orna),'14 representante desse
13,43% das mulheres dominavam a leitura e a escrita.41 Diante disso, grupo social, ressaltava a importância do serviço de Estado: de sua
afirma-se, com certeza, que todos aqueles que poderiam ser integra- parte, qualquer aristocrata que não se destacasse em algum serviço
dos como sócios já se encontravam nas comissões do 1HGB. dedicado ao Estado não seria digno de alta consideração. O mero
No questionamento dos cargos de presidente e de primeiro- atestado de origem, segundo sua opinião, não era suficiente para va-
secretário, os novos estatutos cancelavam o princípio de antiguidade. lorizar o reconhecimento dessa camada social.
De fato, os ocupantes desses cargos eram sempre reconduzidos às Esse ethos, muito presente na sociedade portuguesa, pode ser
suas funções, de modo que, no período estudado, o IHGB só contou historicamente relacionado com o momento de fundação da nação
com dois presidentes:José Feliciano Fernandes Pinheiro (J 774-1847,
Visconde de São Leopoldo), presidente do instituto de 1838 a 1847, 42 A descrição biográfica de José Feliciano Fernandes Pinheiro tem como base
duas fontes principais: BITTENCOURT, Feijó. Conforme nota 1; PINHEIRO,
c Cândido José de Araújo Viana (1793-1875, Marquês de Sapucaí), José Feliciano Fernandes. "Autobiografia", Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 37,
presidente do instituto entre 1847 e 1875. '] 874, pp. 5-69; 38, 1875, pp. 5-38.
43 Citado por BITTENCOURT, Feijó. Conforme nota l, p. 28.
10 Conforme nota 9, p. 65. 44 Veja-se: BARRETO, José Trazimundo Masrarenhas. Memórias do Marquei de.
" Conforme nota 9. Fronteira e d'Alorri(i. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1928, v. l, 493p,
86 Historiografia e Nação no Brasil 1838-1857
Nação c história: a fundação do Instituiu Histórico e... 87

portuguesa rio combate contra os mouros. O surgimento desse ethos


Piora fluminense (Flora da província do Rio de janeiro), resultado de
pode ser atribuído a um processo precoce de centralização da ordem
uma expedição científica de oito anos pela província, foi publicada
estatal, condicionado pelas exigências impostas pela luta de expulsão
sob a proteção de d. Pedro 1. No âmbito da política iluminista portu-
dos mouros. O serviço de Estado se confunde, assim, com a dedica-
iniesa, a Casa Literária do Arco do Cego deveria servir como contri-
ção patriótica, que pode ser remetida ao momento de formação da
buição para o progresso de Portugal. No catálogo da casa editorial,47
nação portuguesa.
constavam, lado a lado, livros de Conceição Veloso, como, por exem-
José Feliciano Fernandes Pinheiro iniciou seus estudos em São
plo, Fazendeiro do Brasil — um tratamento sobre diversos produtos da
Paulo, como era comum entre os religiosos, mas, ao lado do estu-
agricultura do Brasil; traduções de obras sobre o clima e a produção
dos dos clássicos, ele se voltou também para o estudo da língua fran-
agrária na América do Norte e um manual de mineralogia.
cesa, o que era absolutamente incomum e despertou a ira de urn
O programa da editora se coadunava com a missão que o llu-
tio, que via o aprendizado da língua de Voltaire como um perigo,
minismo assumira em Portugal, qual seja: ampliar o conhecimento
colocando-o em contato com as obras de "hereges, desalmados, liber-
científico da natureza e do domínio técnico. Em 1801, essa casa edi-
tinos e ateus".45 Porém, o "perigo" podia ser afastado se o jovem de
torial foi anexada à imprensa régia.
19 anos, apesar da difícil situação das finanças da família (depois de
O primeiro presidente do IHGB, na qualidade de represen-
concluir os estudos, ele se via obrigado a pagar as dívidas assumidas
tante típico da elite envolvida no processo de construção da nação,
para custear sua formação), fosse estudar em Coimbra, onde a tradi-
inseria-se nessa tradição de combate às ideias da Revolução Francesa.
ção do Iluminismo francês não havia encontrado recepção.
O trabalho na gráfica permitira a Pinheiro constituir as relações que
Após o término de seus estudos e "sem influências decisivas",
lhe faltavam, de modo que ele pôde colocar-se sob a proteção do
tendo por base suas próprias palavras, ele assumiu um posto em Lis-
príncípe-real para escrever sua Nova e completa história da América.
boa (em troca apenas de casa e comida), em uma gráfica que esta-
Por força desse relacionamento, José Feliciano Fernandes Pi-
va sob a influência do ministro para os Negócios do Ultramar, d.
nheiro também obteve seu primeiro posto no serviço público, que
Rodrigo de Souza Coutiriho (1745-1812). O objetivo do apoio esta-
o conduziu ao Rio Grande do Sul, na região meridional do Brasil,
tal a essa empresa literária era, entre outros, a tradução de autores
onde assumiu a missão de erguer um posto alfandegário. Essa tarefa
estrangeiros - como, por exemplo, Edmond Burke (1729-1797) -46
precisa ser entendida no contexto da política portuguesa, diante da
que haviam desenvolvido alguma reflexão acerca dos princípios da
questão das áreas de fronteira com os domínios coloniais hispânicos.
Revolução Francesa. Com isso, o governo português almejava conter
Tratava-se de uma política que visava conter a afirmação da autono-
o arsenal das ideias revolucionárias francesas.
mia regional e o fortalecimento da ligação com o governo central
Em 1799, foi fundada a Casa Literária do Arco do Cego, assu-
do Rio de Janeiro. O estabelecimento dessa condição foi dificultado
mindo a direção o padre brasileiro José Mariano da Conceição Ve-
pelas grandes distâncias e pela quase inexistência de infraestrutura.
loso (1742-1811), especialista em botânica. Sua obra em 11 volumes,
Desse modo, uma viagem de barco entre o Rio de Janeiro e o Rio
45 Citado por BITTENCOURT, Feijó. Conforme nota l, p. 24. Grande do Sul podia levar até um mês.
46 A obra principal de crítica aos princípios da Revolução Francesa foi publicada
por Burke em 1790 e estabelecia, segundo Jacques Godechot, "lê bréviaire de Ia
contre-révoluíion ocádentale . Veja-se: GODECHOT, Jacques. La contre-révolution.
4/ Veja-se: Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 2 (Suplemento), oui-de7./4840, pp.
17894804. 2 ed. Paris: PUF, 1984, p. 65.
609-14.
88 Historiografia c Nação no Brasil 1838-1857 89

As posturas políticas de Pinheiro foram reforçadas pela experi- do Império, depois senador da Província de São Paulo e, como ponto
ência acumulada no cargo que ocupara. A partir de então, conduziu alto de sua carreira, foi nomeado secretário do Conselho de Estado.
suas atividades para o âmbito dos interesses luso-brasileiros na região O que os diferentes cargos assumidos têm em comum é que, para
do Prata. No contexto das guerras de Independência das colónias seu exercício, era preciso haver uma decisão pessoal do Imperador.
espanholas, Fernandes Pinheiro procurou, com todas as suas forças, Em 1828, José Feliciano Fernandes Pinheiro transferiu-se para
impedir a propagação das ideias republicanas na província. Nessa o Rio Grande do Sul, recolhendo-se à vida privada, depois de haver
época, surgiu seu livro sobre a história do Rio Grande do Sul, com o discordado da decisão governamental de devolver a Cisplantina (ter-
qual ele procurava esclarecer o problema das fronteiras meridionais, ritório do atual Uruguai) à Argentina, o que considerou uma derrota
que, como já apresentado, era uma das questões que mobilizavam os política pessoal. Depois de três anos de ausência do cenário político,
ânimos da política ao menos até os anos 1850. terminou retornando ao Rio de Janeiro para reassumir uma cadeira
José Feliciano Fernandes Pinheiro não vivenciou, no palco dos no Senado, a fim de contornar dificuldades financeiras que emergiam
acontecimentos, a notícia da declaração de Independência do Brasil, do fato de que não mais contar com renda ligada a qualquer cargo.
em 7 de setembro de 1822, pois viajara para Lisboa no início de 1822, A abdicação de d. Pedro I (1831) e a guerra dos Farrapos
como deputado para a assembleia geral que deveria elaborar uma (1835), no sul do Brasil, fizeram ressurgir em Pinheiro o temor de
Constituição para Portugal e Brasil. Como representante da provín- uma divisão do Império. Durante a guerra, mas por pouco tempo, o
cia de São Paulo, defendeu a unidade de Estado de Brasil e Portu- governo imperial chegou a pensar em delegar a Fernandes Pinheiro
gal - que, segundo sua perspectiva, também acompanhava a vontade a condução das medidas de Estado contra o levante. Esse pensamen-
do príricipe-regente - como única possibilidade de impedir que o to, no entanto, não se materializou, decidindo-se convocá-lo para in-
exemplo hispânico da divisão em várias repúblicas fosse seguido. Sua tegrar uma comissão cuja tarefa consistia em pesquisar as fronteiras
assinatura constou inclusive da Constituição aprovada em Lisboa. do Brasil, a fim de disponibilizar material fundamentado cientifica-
Em 1823, retornou ao Brasil e, no dia seguinte à sua chegada, mente para servir às negociações sobre as questões de fronteira com
dirigiu-se ao Paço para "beijar a mão do Imperador" e para explicar os Estados vizinhos.
seu comportamento na Assembleia Constituinte. Como defensor da O tratamento das fronteiras do Brasil, como veremos adiante,
estruturação de um Estado centralizado, ele construiu carreira no viria a ocupar bastante espaço tia revista do instituto. Corno especia-
serviço de Estado. Na Assembleia Constituinte do Brasil, convocada lista na matéria, sua posição foi afirmada em "Quais os limites natu-
em 1823, participou como deputado da província do Rio Grande do rais, pactuados e necessários ao Império do Brasil", de sua autoria e
Sul e defendeu, em um de seus discursos, o ponto de vista de que o publicado com destaque pelo IHGB. Pinheiro dedicou especial aten-
governo era "coisa como de um único". ção a Alexandre de Gusmão, que teria assumido, no século XVIII,
A questão das fronteiras do Brasil e a fundação das faculdades posição decisiva nas negociações entre Portugal e Espanha sobre as
de Direito de São Paulo e Recife - ambas surgidas em 1827, no perío- fronteiras dos antigos territórios coloniais e a quem, segundo a pers-
do em que foi ministro - foram pontos de sua plataforma de ação po- pectiva de Pinheiro, se devia o tamanho do Brasil.
lítica na Assembleia Constituinte. As etapas de sua carreira 110 serviço Os melhores pré-requisitos para que Fernandes Pinheiro deti-
público servem para caracterizar a trajetória da elite dedicada à cons- vesse o cargo de presidente, desde a fundação do IHGB, em 1838, até
tituição do Estado nacional brasileiro: foi presidente da província do o ano de sua morte, em 1847, foram sua ocupação intensiva com as
Rio Cirande do Sul, indicado como ministro dos Negócios Interiores bases do Estado brasileiro e sua estreita relação com a Corte.
90 Historiogiafia e Nação 110 Brasil 1838-1857
Nação c história: a fundação do Insiituio Histórico e...

Na coletânea de dados dos 27 fundadores cio instituto - os de Recife e São Paulo, durante o século XIX, tiveram uma importân-
quais, por sua vez, podem ser reconhecidos como típicos represen- cia que não deve ser desvalorizada no processo-de homogeneização
tantes da elite político-intelectual -, percebe-se com clareza que, se- da visão de mundo da elite política e intelectual brasileira.49
gundo descrição biográfica de Fernandes Pinheiro, entrelaçam-se os É preciso ainda destacar que o então presidente do instituto,
ideais e as condições cie vida, que são representativos para a maioria José Feliciano Fernandes Pinheiro, desempenhou papel decisivo no
dessa camada social.48
estabelecimento das faculdades jurídicas no Brasil. Prontamente em
Diante dos dados que se apresentam, é possível inferir que 1823, ele apresentou à Assembleia Constituinte um projeto nessa
uma parte considerável dos fundadores do IHGB nasceu ainda em direção. No período de seu mandato como ministro da Justiça, em
Portugal. Esses sócios do instituto haviam acompanhado, em 1808, 1827, o projeto foi definitivamente realizado.'
a família real portuguesa em sua fuga para o Brasil, escapando das Na análise da tabela, chama a atenção o fato de que a maioria
tropas napoleônicas. Trata-se, com certeza, de um sinal de fidelidade dos fundadores exercia sua atividade profissional no serviço públi-
à Casa de Bragança. A experiência e a divergência em relação a Na- co: seja ria magistratura, na carreira pública de nível superior, no
poleão e os princípios da Revolução Francesa foram comuns a todos. caso dos portadores de diploma de formação em faculdades jurídi-
Dos 23 fundadores - de acordo com as informações disponí- cas, ou ainda como militares ou funcionários públicos, que, mesmo
veis -,18 tinham formação superior e, no caso dos clérigos e mili- sem a conclusão de um curso superior, conseguiam qualificação no
tares, deve-se ainda admitir uma qualificação equivalente. O grupo exercício profissional. Além disso, uma vez que o Estado no Brasil
profissional dos militares sempre esteve representado entre os sócios do século XIX detinha o poder do padroado sobre a Igreja e, além
do IHGB e, com base em sua formação, dedicou-se preferencial- disso, a Constituição declarava o catolicismo como a religião oficial
mente aos trabalhos geográficos. Desse modo, por exemplo, é que o do Império, é possível ainda incluir os religiosos no conjunto dos
cofundador do IHGB, coronel Conrado Jacob Niemeyer, publicou, servidores públicos.
em 1846, a Carta Creral do Império, que, por sua excelência, mereceu É preciso considerar que, numa sociedade agrária, com de-
destaque do instituto. O trabalho prático-administrativo no instituto senvolvimento técnico restrito, quase exclusivamente sustentada no
se tornou, principalmente, campo de atuação dos sócios sem forma- trabalho escravo, além do serviço público não havia muitas alterna-
ção superior concluída, como, por exemplo, no caso da função cie tivas profissionais para pessoas com formação no campo das ciên-
tesoureiro. cias naturais e técnicas. Por sua vez, observando-se a origem social, é
Observando-se os dados biográficos disponíveis, chama a aten- possível dizer que os funcionários públicos brasileiros do século XIX
ção o grande número de juristas. O estudo da jurisprudência parecia não constituíam uma camada social homogénea, uma vez que o Es-
ser a formação mais promissora para as camadas mais cultivadas da tado não recrutava seus servidores exclusivamente em determinadas
sociedade. As faculdades jurídicas de Coimbra e, depois de 1827, as camadas sociais superiores. Ao assegurar rendimento e prestígio so-
cial, o serviço público possibilitava, de um lado, ascensão social e, de
18 As informações dessa tabela foram extraídas das seguintes obras: SACRAMEN- outro, dificultava o empobrecimento de antigas famílias abastadas.
TO BLAKE, Augusto, Dicionário bio-bibliográfico brasileiro. Rio de Janeiro: Tipo-
grafia Nacional, 1883, 7v.; DUTRA, José Soares. Cairu: precursor da economia mo-
49 JoséMurilo de Carvalho constatou que a elite política do Império, ao menos
derna. Rio de Janeiro: Vecehi, 1943, 169p.; SISSON, Sébastian Auguste. Galeria
até a metade do século XIX, obtinha sua formação em Coimbra. Somente na
dos Brasileiros ilustres. (Os Contemporâneos.) São Paulo: Martins, 1948; 2v - v.
segunda metade do século XIX é que as duas faculdades brasileiras passaram
l, 332p., v. 2, 352p.; BITTENCOURT, Feijó. Conforme nota 1.
a desempenhar papel claro nesse sentido.
Historiografia c Nação no Brasil 1838-1857 Nação c história: a fundação do Instituto Histórico t... 93

Especificamente da biografia dos clérigos, é possível deduzir que a construção romantizada, tornando algo problemático toma-las como
formação religiosa se oferecia frequentemente como a única possi- fonte de fatos precisos.
bilidade de uma existência segura para crianças órfãs ou de famílias Das informações passíveis de interpretação, cristalizam-se três
pobres. grupos de fundadores do IHGB. No que se refere à origem das famí-
Dos 27 fundadores do instituto, 17 (o que corresponde a 62%) lias, um terço já contava com servidores públicos na geração familiar
exerciam mandatos políticos. Como deputados ou senadores, eles anterior; 27,8% tinham famílias cuja riqueza se devia ao latifúndio
eram eleitos, mesmo levando-se em conta que a escolha de urn se- ou ao comércio. O grupo relativamente maior, com 38,9%, foi carac-
nador seria validada apenas com o consentimento do imperador. Os terizado na tabela pelas "relações simples". Sob essa rubrica, enten-
ministros, diplomatas, presidentes de província e secretários do Con- demos famílias sem posses significativas, que'poderiam ser também
selho de Estado - o mais alto grémio do Império - eram indicações denominadas de "setor pequeno burguês".51
pessoais do imperador. Essas indicações expõem a forte representa- O perfil cios fundadores do IHGB revela, assim, diferenças de
ção da elite política do Império no IHGB. origem social, mas uma grande homogeneidade no que diz respeito
Com efeito, 72% dos fundadores com estudos superiores con- à formação e à carreira: é comum que tenham formação universitária
cluídos exerciam um mandato político, o que aponta para o mesmo e carreira 110 serviço público.
fenómeno que foi analisado por José Murilo de Carvalho.50 Impres- Aqui já houve várias menções à Universidade de Coimbra e a
siona o grande número de diplomados entre os detentores de man- seu papel na homogeneização dos setores intelectuais do Brasil em
datos políticos do século XIX. Essa situação contribuía ainda mais geral e, especialmente, para os intelectuais que se ocupavam do ato
para acentuar o abismo existente entre a elite e as outras camadas de escrever e se dedicavam à história. Assim, parece ter sentido apre-
da sociedade, fato condicionado ainda por outros elementos (como, sentar alguns elementos que caracterizam a formação em Coimbra,
por exemplo, os de natureza económica). para um melhor entendimento das bases espirituais dos intelectuais
Quando se leva em conta, ainda, que, nas outras camadas da do Brasil.5-
sociedade brasileira do século XIX, a taxa de analfabetismo era bas- A referida universidade, fundada em 1290, em Lisboa, e trans-
tante elevada, constata-se que as possibilidades de interação, que re- ferida para Coimbra em 1308, manteve-se a partir de meados do sécu-
lativizariam esse abismo social em alguma medida, eram ainda mais lo XVI sob o controle direto dos jesuítas, até sua expulsão em meados
restritas. No entanto, o número de fundadores do IHGB sem título do século XVIII. Os estudos realizados nas quatro faculdades - teo-
superior que exerciam algum mandato político era surpreendente- logia, direito canónico, jurisprudência c medicina - baseavam-se nos
mente elevado (60%).
Os dados sobre a origem social dos fundadores do IHGB não
permitem uma reflexão muito objetiva, uma vez que, para um terço '' Aqui, mais uma vez, remetemos à obra de José Murilo de Carvalho, na qual ele
dos 27 fundadores, não foi possível obter informações para a análise traz quantitativamente a não muito significativa representação de latifundiá-
do conjunto. Por sua vez, é preciso observar que os dados disponí- rios e grandes comerciantes na elite política.
veis se baseiam em biografias frequentemente produzidas por uma "'-' O trabalho mais abrangente sobre a Universidade de Coimbra é a obra em
quatro volumes de Theóphilo Braga, à qual nos reportamos neste trabalho.
BRAGA, Theóphilo Braga. História da Universidade de Coimbra nas suas relações
com. a Instrução Pública Portuguesa. Lisboa: Tipografia da Academia Real de
7'" Conforme nota 49, p. 63v. Ciências, 1892, v. l, GOOp.; v. 2, 84fip.; v. 3, 771p.; v. 4, 656p.
94 Historiografia e Nação no Brasil ] 838-1857 Nação e história: a fundação do ínstuuto Histórico c... 95

princípios da Ratio Studiorum, renegando a filosofia cartesiana, assim mas igualmente do conjunto do sistema de educação, das formas de
como a ciência de base experimental. difusão de informação (como, por exemplo, a imprensa) e da vida
A maioria dos estudantes em Coimbra se submeteu a uma for- cultural, pode-se afirmar que eles exerciam monopólio ideológico.
mação jurídica com o objetivo de seguir carreira no serviço público. Além disso, a Companhia de Jesus construiu um património consi-
A observação de José Murilo de Carvalho parece sintetizar as conse- derável, com inúmeras iniciativas, especialmente o comércio. Ela de-
quências de uma formação jurídica sustentada no direito romano: senvolvia uma política independente, que escapava ao controle fiscal
e financeiro do Estado. As acusações levantadas contra ela por for-
Os juristas estavam para os Estados absolutos, assim como os mar um Estado dentro do Estado ocuparam o centro das discussões.
advogados estavam para os Estados liberais... Os advogados Considerando que Pombal, por meio de sua política, se esfor-
eram fruto da sociedade aquisitiva e, quanto mais forte esta, çava para reforçar o poder do Estado nacional, naquele momento
tanto maior sua influência e mais generalizada sua presença. um poder rival só podia ser encarado por ele como uma ameaça.
Os juristas, por outro lado, principalmente os de tradição ro- Além disso, não se pode esquecer que a Companhia de Jesus estava
mana, preocupavam-se antes com a justificação do poder real sob o controle de um poder supranacional - a Igreja em Roma -, o
e com a montagem do arcabouço legal dos novos Estados.53 que, por sua vez, colocava em questão os princípios da política em-
preendida por Pombal. Na luta contra os jesuítas, sua força e amea-
As primeiras duas faculdades de direito no Brasil, fundadas ça foram se acentuando desmedidamente, pois seu poder se enraíza
por egressos da Universidade de Coimbra, com poucas adaptações, igualmente em elementos concretos.
deram continuidade a essa tradição. Ao mesmo tempo que promoveram a expulsão dos jesuítas,
O período de governo do rei português d. José I (1750-1777) ocorrida em 1759, d. José l e o ministro Pombal se empenharam
ficou marcado na historiografia como tempo de despotismo esclare- em difundir os princípios do Iluminismo em Portugal. Todavia, é
cido, devido à política conduzida por seu Ministro Pombal (Sebastião necessário distinguir o Iluminismo defendido por esse governo do
José de Carvalho c Melo, 1699-1782). Essa política tinha por objetivo Iluminismo francês. O fato é que a interdição da Companhia de Jesus
o fortalecimento do poder central de Estado e a superação do atraso não significou que o governo português incorporasse a seu programa
de Portugal, que se agravou com as oscilações do preço do açúcar ideias anticlericais iluministas. A leitura dos teóricos do Iluminismo
no mercado internacional e com a retração da produção aurífera do francês permaneceu proibida, na mesma medida em que se manteve
Brasil.54 o caráter "católico e politicamente conservador" do Estado lusitano.
O estabelecimento da política de Pombal instalou um verda- O processo de secularização do sistema educacional e sua defi-
deiro combate à Igreja, especificamente contra os jesuítas, tendo em nição como tarefa de Estado tiveram início logo após a expulsão dos
vista o poder evidente que detinham tanto em Portugal como nas co- jesuítas, com a criação de uma Diretoria Cera! dos Estudos. O dever
lónias. Uma vez que tinham o controle não apenas da universidade, dessa instituição, renomeada em 1768 como Tribunal da Real Mesa
Censória, consistia na reforma do ensino médio e no controle do
conjunto da impressão de livros.
53 Conforme nota 49, p. 33v. Nos anos 1771 e 1772, foram reformados os estatutos da Uni-
54 Sobre as relações entre as sociedades ibéricas e as sociedades nórdicas, veja-se versidade de Coimbra, e todo o sistema educacional ficou submetido
o importante trabalho de: FALCON, Francisco José Calazans. A época pombali- a duas instituições: 1) o Tribunal da Real Mesa Censória para os n í-
na (política económica e monarquia ilustrada). São Paulo: Ática, 1982, 532p.
Historiografia e Nação no Brasil 1838-1857 97

veis do estudo fundamental e médio; e 2) a Mesa de Consciência e leccu em Portugal, distirigninclo-sc da França, país clássico, por ex-
Ordens para os estudos superiores. celência, do Iluminismo, ansiava pelo desenvolvimento do homem,
O movimento de reformas dirigido por Pombal, no que se re- para que pudesse servir sempre melhor ao Estado.
fere à renovação do sistema educacional, baseava-se em duas obras: A reforma da Universidade de Coimbra deve ser vista no con-
em primeiro lugar, 110 trabalho de Luís António Verney, O verdadeiro texto dessas transformações que Pombal conduzia pessoalmente. Os
método de estudar, que rejeitava os princípios estabelecidos pela Ratio novos estatutos, que ganharam força em 1772, previam a introdução
Studiorum dos jesuítas e defendia uma formação apoiada na expe- de novas disciplinas científicas: ao lado da física experimental, tam-
rimentação, que tivesse relação e utilidade para a vida prática; em bém se incorporou ao currículo, por exemplo, o direito nacional,
segundo lugar, ria publicação das Cartas sobre a educação da mocidade, com o propósito de diminuir o predomínio dó direito romano. Nos
de António Nunes Ribeiro Sanches, que assumia o pensamento ilu- anos que se seguiram à reforma, formou-se em Coimbra um grande
minista e acreditava na possibilidade de o espírito humano se desen- número de cientistas no campo da mineralogia, botânica e matemá-
volver por meio da educação, posicionando-se a favor de uma edu- tica, dos quais o Estado esperava um conhecimento abrangente que
cação dirigida à nobreza, para que esta pudesse atingir as condições se constituísse nos fundamentos da superação do estado de atraso de
necessárias para enfrentar as demandas dos novos tempos.M Seus pla- Portugal e suas colónias.
nos continham também uma reforma da educação das camadas mais Do mesmo modo, no norte do Brasil, onde especialistas inves-
alargadas da população e tinham como alvo a formação orientada tigavam as possibilidades de exploração económica da flora nativa,
para a prática dos trabalhos de ofício. assim como na região das minas de ouro do Brasil Central, onde
Essas ideias encontraram materialização na criação de duas novos métodos da extração de metal nobre eram testados, era possí-
instâncias de educação: a Aula de Comércio e o Colégio dos Nobres, vel perceber a repercussão da nova política científica/' 8 Entretanto,
cujas bases de financiamento foram viabilizadas pelo confisco dos em 1777 morreu d. José 1. Os grupos da aristocracia e da burocracia
bens dos jesuítas. A função dessas instituições consistia na forma- que se colocavam na oposição à política representada por Pombal
ção do "homem de negócio perfeito" e, respectivamente, do "nobre encontraram em sua sucessora, d. Maria l (avó do primeiro impe-
perfeito".5b O ideal de Ribeiro Sanches era a formação do "homem rador brasileiro), uma defensora de seu ponto de vista. O período
perfeito", mesmo que um critério decisivo dessa perfeição fosse a fi- do governo de d. Maria l, que se caracteriza pelo fim da política
delidade ao Estado.1'7 A interpretação do Iluminismo que se estabe- iluminista de Pombal, ficou conhecido na historiografia como A
Viradeira.
53 Além do trabalho já mencionado de Theóphilo Braga sobre a Universidade de O reitor nomeado no curso cias reformas da Universidade de
Coimbra, veja-se também: CARRATO, José Ferreira. Igreja, humanismo e escolas Coimbra, Francisco de Lemos, logo após as festividades da aclamação
mineiras coloniais. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968, 311 p. de d. Maria I, traçou uma caracterização das mudanças empreendi-
56 Citado a partir de CARRATO, José Ferreira. Conforme nota 55, p. 136.
:" Na justificativa para a introdução de uma educação para a nobreza atualizada dissolução, montar a cavalo, jogar a espada preta, e ir à caça: é necessária já ou-
com seu tempo, Ribeiro Sanches argumentava que a nobreza estaria em con- tra educação, porque o Eslado já tem maior necessidade de súditos instruídos
dições de continuar dirigindo o Estado apenas quando estivesse preparada em outros conhecimenlos.". Citado em CARRATO, José Ferreira. Conforme
nota 55.
como "súdito instruído em outros conhecimentos" que,não sejam apenas "sa-
ber ler e escrever, as quatros regras da aritmética, latim e a língua pátria", e 58 DIAS,Maria Odila da Silva. "Aspectos da Ilustração no Brasil", Revista do IHGfí.
"toda a ciência do catecismo da doutrina cristã", e muito menos com o "ócio, Rio de Janeiro, 278, jan-mar 1968, pp. 105-170.
98 Historiografia c Nação no Brasil 1838-1857 Nação e história: a fundação do Instituto Histórico e... 99

das. Em seu ensaio dirigido aos ministros do reino, defendeu a nova o empenho do reitor Francisco Rafael de Castro se fazia sentir, rein-
ordem dos estudos, que se contrapunha aos riscos das rivalidades troduzindo alguns elementos das reformas iluministas.
religiosas. Contra as trevas da escolástica, que condenou Portugal ao Nessa atmosfera espiritual de contradições é que se deu a forma-
atraso, Lemos propagava as luzes do novo tempo, "que se irradiavam ção da maior parte da elite política e intelectual do Brasil, dos homens
por tocla a monarquia"/' 9 Em seguida, enumerou os novos princípios: que se engajaram na formação do Estado nacional, entre os quais al-
na reorientação da teologia, em direção às escrituras sagradas; no guns se dedicaram a escrever a história nacional no âmbito do IHGB.
direito, rumo à razão; e, na história e nas ciências naturais, a obser-
vação e a experimentação. Em sua justificativa, ele tinha como alvo o
centro da discórdia em torno das pretensões iluministas de Pombal: L'Institut Historique de Paris: um modelo para os fundadores
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
Descubramos finalmente a máscara aos declarnadores contra
os novos Estatutos. Este é o ponto que mais os toca. Não que- "Numa época de inteligência e de ação, a história tornou-se uma
rem que a Igreja se encerre rios limites que prescrevem o seu necessidade imposta a todos nós; ela é, de fato, o complemento de todo
divino legislador: querem que estes se estendam sobre o tem- estudo, a condição de todo progresso. "
poral das monarquias... querem que a cabeça visível dela seja
também a fonte visível de todo o poder, e que dela dimane "A carência da história nos acompanha por toda parle e
tudo quanto há de jurisdição e autoridade no mundo. Eis aqui em todos os momentos. "
a doutrina dos declamadores.''0
"Desejamos fazer as leis? É preciso antes sabermos quais são as que
O novo reitor nomeado, João Francisco Mendonça Furtado, faltam e. perguntarmos à história qual é o caráter, o atribulo das leis
reintroduziu em 1779 o antigo estatuto, fundando, assim, nas pala- que serviram à causa da humanidade, que é
vras da sátira da época, o "Reino da Estupidez".(l1 a peculiaridade dessas que combateram o progresso. ''ô2
No âmbito da universidade, a perspectiva reacionária não con-
seguiu se impor plenamente, nem por muito tempo. Depois de 1785, Com essa reflexão orientadora, Casimir Broussais, ao sinte-
tizar o trabalho de fundação em 1834 do Institui Historique de
Paris, formulava claramente o conceito de história representado
por essa instituição: história como necessidade dos tempos, como
59 BRAGA, Theóphilo Braga. História da Universidade de Coimbra nas suas relações
com a Instrução Pública Portuguesa. Tomo III. 1700-1800. Lisboa: Tipografia da condição de todo o progresso e como possibilidade para o apren-
Academia Real de Ciências, 1892, 771p. dizado do presente e do futuro. Essas ideias precisam ser vistas em
sua relação com os princípios do Iluminismo: da história, ganha-se
60 Conforme nota 59, p. 583.
conhecimento para estimular continuamente o desenvolvimento
61 O médico brasileiro Francisco de Mello Franco redigiu um poema em que
satiri/ava as mudanças na Universidade de Coimbra. A "burrice" surge, em seu da humanidade. Os fundadores do IHGB atribuíam à história ta-
poema, no norte, de onde teria sido expulsa pela civilização, acompanhada refa semelhante.
do "fanatismo, superstição e hipocrisia", para encontrar em Portugal seu do-
mínio. In RIBEIRO, João (org.). Satíricos portugueses. Rio de Janeiro: Garnier,
6'Journal de 1'Institut fiislorigue, Paris, l (1), ago 1834, p. 1.
1910, pp. 109-50. [Coleção de poemas herói-cômicos-sauricos.]
l 00 Historiografia c Nação no Brasil 1838-1857
101

Esses princípios representam, certamente, o paradigma gene- O francês era a língua dos salões, de modo que a revista Min<r-
ralizado do pensamento do século XIX, tendo, como pano de fun- va Brasiliense publicava com naturalidade artigos nessa língua.61
do, a crença inabalável no progresso humano. Nesse sentido, ambos A orientação do Brasil cm dircção à cultura francesa existia an-
os institutos estavam em sintonia com a corrente espiritual de sua tes mesmo da fundação do Estado Nacional. Em 1816, d. João VI con-
época. O Brasil encontrava-se, contudo, na periferia do desenvolvi- vocou para a Corte no Rio de Janeiro um grupo de artistas franceses,
mento, cujo centro estava naturalmente na Europa. Visto de modo que constituíram a chamada Missão Artística Francesa e receberam
abrangente, o "sistema colonial" tinha não apenas consequências a tarefa de estabelecer uma Escola Real cias Ciências, Artes e Ofícios.
económicas que se expressavam na forma da dependência das coló- Com a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro,
nias, rnas que também repercutiam no âmbito cultural, impondo a desenvolveu-se uma demanda por produtos de alta qualidade. Para
orientação dos modelos europeus. a satisfação dessa demanda, fez-se necessária a contribuição da mão
A Europa sempre foi uma instância de legitimação da produ- de obra local, a ser formada pelos especialistas franceses. Os artistas
ção cultural e, ainda hoje, podemos nos perguntar se o Brasil con- convocados por d. João VI introduziram no Brasil o neoclassicismo,
seguiu emancipar-se dessa dependência cultural. Por longo tempo, um estilo que viveu o apogeu no período do governo de Pedro II.
como já registrado, apenas na Europa um brasileiro encontrava pos- Jean Baptiste Debret integrou a Missão Artística Francesa,
sibilidades de estudo. Nesse quadro, resultava inexoravelmente que como pintor de quadros históricos, tendo ingressado no Instituí His-
a reflexão sobre a história desenvolvida no Brasil acompanhava os torique de Paris depois de seu retorno à França em J 831, com o regis-
modelos e princípios que eram estabelecidos em outro lugar. Seria tro de sua experiência no livro Voyage Pitloresque et historique au lirésit.
elucidativo investigar como foram operados esses modelos e princí- Seu aluno, Manuel Araújo Porto Alegre (1806-1879), agracia-
pios, tornando-os passíveis de serem empregados em outra realidade. do com uma bolsa de estudos imperial, seguiu o mestre na Europa
Enquanto a Inglaterra conseguia garantir preponderância eco- e foi igualmente aceito no Institui Historique de Paris. Alguns anos
nómica no Brasil, a França fornecia, com sua cultura e civilização, os depois, Porto Alegre regressou ao Brasil c assumiu papel decisivo no
critérios de gosto. No Brasil, a ideia da função civilizaclora da França 1HGB. Em Paris, manteve contalo próximo com dois outros brasilei-
foi muito difundida. Emile Adet, escritor francês que vivia no Brasil, ros que, assim como ele, também eram sócios do IFIP e, mais tarde,
escreveu, em 1843, na revista Minerva Brasiliense, que se dirigia a um se engajaram no IHGB: Domingos José Gonçalves de Magalhães, cuja
público cultivado: obra é reconhecida como inauguradora do Romantismo na literatu-
ra brasileira, e o político e jornalista Francisco Sallcs Torres Homem.
Percorrendo-se o círculo cios conhecimentos humanos no Em conjunto, os três lançaram cm Paris uma revista literário-
Brasil vê-se que a França é a Nação que mais tem contribuído científica de vida curta: a Revista Nitheroy, que tinha uma pauta diver-
neste século para o rápido progresso civilizador deste Império. sificada, abarcando de astronomia a economia política, passando por
Descobre-se no seu desenvolvimento intelectual, debaixo de literatura e física.
todas as modificações que são inerentes ao caráter nacional, a
ideia francesa dominadora.63
64 A título de ilustração, cabe fazer referência ao exemplo em que a revista, ao
discutir a programação de teatro da cidade do Rio de Janeiro, reclamava da
1)3 "Minerva Brasiliense", Jornal de. Ciências, Letras e Artes. Rio de Janeiro, l, nov má pronúncia das companhias de teatro francesas que passavam pela cidade.
1843, p. 37. Veja-se Minerva Brasiliense. Rio de Janeiro, 2, 15 nov. 1843, p. 57.
102 Historiografia e Nação no Brasil 1838-1857 Nação c história: a fundação do Instituto Histórico c... l (Í3

Os três nomes mencionados, contudo, não foram os únicos A fundação do IHP deve ser vista a partir de suas conexões com
brasileiros entre os sócios do Institui Historique de Paris. Para o pe- o movimento do Romantismo e o interesse que essa corrente de pen-
ríodo de 1834 a 1850, Maria Alice de Oliveira Faria65 aponta 46 bra- samento tinha pela história. O passado não forneceu aos românticos
sileiros como membros do Instituto Histórico de Paris. Entre eles, 26 apenas material lilerário, mas se configurou igualmente como objeto
pertenciam também ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. de um trabalho sistemático. No contexto desse interesse crescente
Esses contatos indicam uma relação estreita entre as duas insti- acerca da história, deve levar-se em conta também a "questão na-
tuições, especialmente nos primeiros anos após a fundação do IHGB. cional", ou, l ai como Michelet formulava, "Ia personalité nalionale" .(*
Não se deve despre/ar o fato de que, para os fundadores do IHGB, a De início, tratava-se da busca das raízes nacionais e da construção
repercussão de seu trabalho por meio de uma instituição com sede e difusão de uma imagem da nação que dela resultava. Na França,
em Paris significava legitimá-lo. Por sua vez, o IHP, enraizado na voltava-se a atenção especialmente para duas épocas: a Idade Média
crença da função civilizadora da cultura francesa, surgia como mo- tornou-sc um dos temas preferidos da pesquisa histórica, enquanto
delo para a fundação do IHGB. A viagem pitoresca e histórica ao Brasil, a arqueologia se empenhava em obter maior conhecimento acerca
de Jean Baptiste Debret, recebeu uma resenha positiva no Journal de dos gauleses.
1'Inslitut Historique de Paris. Logo no primeiro número da revista do IHP, em um de seus
artigos, colocava-se a questão de como os gauleses influenciaram a
Se é glorioso para a França ver seus filhos propagarem a civili- cultura clássica greco-romana. A intenção dos autores era expor a
zação além-mar, que louvores não cabem àqueles que, depois continuidade da "missão civilizadora" da França desde tempos anti-
de terem reali/.ado essa missão arriscada, ainda vêm nos contar gos e, assim, construir uma fundamentação histórica para o papel da
a natureza e os costumes das nações que visitaram!06 França no século XIX.

Quis provar que, nos tempos antigos de nossa história, os gau-


O dever da França c definido como uma missão perigosa, po- leses não haviam sido nem tão ignorantes que se tornaram
rém, quando essa cruzada civilizadora se dirige contra a barbárie. O depois da invasão dos bárbaros, nem tão bárbaros eles pró-
par conceituai de civilização e barbárie estava igualmente no pano de prios, como disseram com frequência os gregos e os romanos.
fundo de todas as avaliações que o IHGB colocava acerca da socie- Felizmente, os depoimentos que não puderam conservar con-
dade brasileira. Desse modo, parece pertinente observar mais deta- tradizem as injúrias que dissiparam. Esses depoimentos, e não
Ihadamente as ideias dos membros do Institui Historique de Paris.67 evoquei outros, são suficientes para restituir a glória de nossos
antepassados nas ciências e nas letras; para mostrar como for-
65 Conforme nota 3. FARIA, Maria Alice de Oliveira. neceram pelos discípulos de Pitágoras o modelo das primeiras
66 Journal de 1'Institut Historique. Paris, 1(1) ago 1834, p. 53v. academias filosóficas da Grécia, como eles próprios abriram
67 Para traçar um panorama do trabalho do instituto, investiguei a revista que
está disponível na Biblioteca Nacional de Paris. Além disso, FARIA, Maria Ali-
ce de Oliveira. "Os brasileiros no Instituto Histórico de Paris", Revista do IHGB. toriques au cours d'un ciècle (1833-1933)". Revue dês Eludes Histmiques. Paris,
100, 1933, pp. 283-96.
Rio de Janeiro, 266, 1965, pp. 68-148; DESLANDES, Paulo. "Lês débuts de
l'Institui Historique (1834-1846)", Revue dês Eludes Hi.stm.ques. Paris, 88, 1922, 8 Veja-se: BARRIERE, Pierre. La vie intellectueUe en France du I6e. sie.de à l'époque
pp. 299-324; COMBES DE PATRIE, B. "La société et Ia Revue dês Eludes His- contemporairif. Paris: Albin Michel, 1974, p. 482.
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as primeiras escolas entre os romanos e prepararam o grande des, senão penetrar o mistério das sociedades em si, explicar
século de Cícero, de Horácio e de Virgílio.69 sua origem, o fim, a organização, o mecanismo; n tuna palavra,
queremos constituir a ciência social o mais completa possível,
restabelecendo a uma unidade harmónica c fecunda seus frag-
Essas concepções encontravam também repercussão no cam- mentos dispersos e desconhecidos."
po literário, na medida em que a epopeia se tornou um dos géneros
literários preferidos daquele tempo. Na vida literária do Brasil, o gé-
nero foi igualmente valorizado. Esse género literário, além de atrair Essa afirmação abrangente encontrou sua expressão nos esta-
Varnhagen, foi alvo da dedicação dos românticos, que o afirmaram tutos publicados do IHP de 1836, que descreviam detalhadamente
em sua poesia. seu campo de atuação.
No quadro desse ambiente literário traçado, o jornalista Eugè-
ne Garay de Monglave (1796-1873) e o historiador Joseph Michaud Ele (o Instituto Histórico) se ocupa de pesquisas sobre a ge-
(1767-1349) se empenharam em estabelecer um instituto histórico ografia antiga, a cronologia, as línguas, as literaturas, as ciên-
em Paris. Michaud era reconhecido como especialista da história cias, as artes, as antiguidades, os monumentos, as moedas, os
das cruzadas, editor da Biographie Universelle e opositor das ideias de manuscritos, os impressos curiosos de todos os países, de todos
1789. Na primeira edição dojounal de l'Instilut Historique de Paris, os os tempos, e, geralmente, de tudo o que constitui a ciência
editores formularam a tarefa do IHP: "cncourager, diriger et propa- histórica.' 2
ger lês études historiques en France et à 1'étranger".70 O pressuposto
da necessidade da história diante dos tempos decorria da concepção Uma vez que a reflexão teórica e metodológica tinha lugar
dos intelectuais reunidos em torno do IHP, no sentido de que a his- seguro e reservado na revista cio instituto, é possível reconstruir a
tória como ciência era capaz de abarcar e explicar o conjunto da vida concepção de história que era representada. Ao lado da compreen-
social. são da história como ciência social abrangente, atribuiu-se à mesma
disciplina ainda uma função pragmática: a história como mestra da
Qual é, portanto, nossa missão, senhores? O que queremos? vida.73 Em sua atividade, o instituto deu-se o direito de reunir e pro-
Entendamo-nos. Nós queremos o grande todo que se chama mover trabalhos de diferentes perspectivas acerca da história, não se
mundo, conhecer a parte principal e soberana, a humanida- definindo como uma escola específica. Casimir Broussais expressou
de; queremos saber se seu desenvolvimento foi progressivo,
se o progresso continua e em que direção avança. E, como
a humanidade se traduz, se manifesta, em meio a essas agre- 71 Journal de. 1'Institut Jlistarique, Paris, l ( 1 ) , ago 1834, p. 30.
' O

gações de homem que formam a sociedade, não queremos n Journal de. 1'Institut Historique. Paris, 4 (19), fcv-jtil 1836, pp. 38-40.
nada como resultado ao estudar a humanidade nas socieda- 13 Interrogações teórico-metodológicas também faziam parte dos temas do I Con-
gresso Histórico Europeu. O primeiro tema da primeira seção foi o seguinte:
"Quel est lê bout de l'histoire?" Um resumo dos resultados da discussão for-
ftl Veja-se: VLLENAVE, Mathieu. Journal de 1'Institul Historique. Paris, l (1), ago mulou a seguinte resposta: "... Ia právoyance de 1'avenir dans 1'cidre de Ia libre
1834, p. 20. . activité humaine." Consulte-se: Journal de Vlmtitut Historique. Paris, 2 (12), jul
70 Journal de 1'Institul Historique, Paris, l, ago 1834, p. 1. 1835, p. 273; c Journal de 1'Institut Historique. Paris, 3 (18),jan 1836, p. 287.
106 Historiografia c Nação no Brasil 1838-1857 Nação c história: a fundação do Instituto Histórico e... 107

claramente essa posição no primeiro número Ao Journal de Vlnstitul Sem dúvida, a história deve reproduzir com cuidado as modifi-
Hislonque de Paris. cações que os tempos e as regiões apresentam à humanidade,
deve acompanhar com atenção as transformações da socieda-
Mas os membros do Instituto Histórico, por se terem associado de; mas essa não é sua única tarefa, pois ela deve acompanhar
ao interesse da ciência que cultivam, não se ligaram de forma sob diversas formas o elemento constante da humanidade, c
alguma a essa ou aquela escola. Aqui não é de maneira algu- assinalar, assim, a harmonia das diferentes épocas que a desen-
ma uma questão de clã ou de facção; não se trata de forma cadeiam, ou seja, as leis que a dominam. 75
alguma de fazer predominar um sistema; trala-se de constatar
e de fazer progredir a ciência da história, de aproximar para O vocabulário utilizado (anatomia, leis) já indica que as ciên-
fecundá-la pelo contato, tanto de trabalhos isolados, relativos cias naturais se constituíam como modelo de cientificidade.
a inúmeros assuntos diversos, quanto de fatos ern vários senti- O alcance da meta que, por meio de seu trabalho, era almejada
dos diferentes. 74 pelo IHP deve levar em conta a pretensão da francesa cie se afirmar
como guia e líder da civilização. Tratava-se, portanto, da autoimagem
Esse ecletismo teórico conduziu para o fato de que, entre os da nação que tanto deveria repercutir para fora como para dentro do
sócios do instituto, encontravam-se tanto defensores de perspecti- país. A França - ou mais precisamente, Paris, como lugar do saber do
vas historiogrãficas baseados em modelos e princípios das ciências conjunto da humanidade, o que deveria ser alcançado com a escrita
naturais como aqueles que pretendiam apresentar os eventos como da história da humanidade - era a esperança não manifestada da
de fato ocorreram. O objetivo — apresentar acontecimentos históri- maior parte das pessoas do IHP. O nome das seis seções do instituto
cos "nas cores de seu tempo" - corresponde às concepções do his- ilustra esse empreendimento pretensioso.'6 Paris como "Ia capitale
toricismo. Os adeptos da orientação de uma '"anatomia histórica" du monde intellectuel"77 e a língua francesa como "Ia vraie langue
científico-natural partiam do pressuposto de que a história como de Ia civilisation moderne"78 - dois elementos determinantes da au-
um todo era passível de ser elucidada pela reconstrução da história
de suas parcelas. Ern decorrência desse princípio, propunham, por
73 Journal de ('Institui Histonque. Paris, J (4), nov 1835, p. 211.
exemplo, a realização da história de cada uma das províncias france-
sas para obter um quadro geral da história da França. Outros sócios
76 1a. Seção: História Geral
do IHP, igualmente orientados pelos métodos das ciências naturais,
2a. Seção: História das Ciências Sociais e Filosóficas
esforçavam-se por investigar aquilo que era perene e imutável na his- 3a. Seção: História das Línguas e das Literaturas
tória e descobrir as leis dos fenómenos históricos. 4". Seção: História das Ciências Físicas e Matemáticas
Numa resenha da Histoire dês ducs de. Burgogne, de M. de Ba- 5a. Seção: História das Belas-Artes
6a. Seção: História da França
rante, Frédéric Boissière, sócio do IHP, formulou a seguinte posição
Journal de 1'Institut Histarique. Paris, 2 (12),jul 1835, p. 273.
metodológica:
77 Discurso realizado em 31 de julho de 1834, diante do Instituto, pelo relator da
comissão formada para a preparação do Congresso Journal de 1'Institut Histori-
que. Paris, l (1), ago 1834, p. 39.
78 Discurso do vice-presidente do IHP sobre a avaliação do I Congresso Histórico
74 Journal de 1'Institut Histonque. Paris, l (1), ago 1834, p. 2. Europeu. Injournalde 1'lniti.tutHistorique. Paris, 3 (16), nov. 1835. p. 187.
108 Historiografia e Naçãu no KraíH 18S8-1857
109

tocompreensão cia nação francesa - eram convicções que estavam no filosóficas, que o orador Victor Cousin (1792-1867) se encarregava
pano de fundo do trabalho historiográfico cio IHP. de anunciar. 81
A pretensão do IHP de não se atrelar a nenhum princípio es- Enquanto o IFIGB, praticamente desde o início, colocou-se
pecífico da ciência histórica se manifestou também no campo políti- sob a influência do Estado brasileiro, o Institut Historique de Paris
co. Uma vez que questões intelectuais e científicas se colocavam no refletia outro quadro de relações sociais, eis que o Estado não se imis-
centro das discussões, era possível, sob a representação do presiden- cuía necessariamente no campo da produção cultural da sociedade.
te, trabalharem juntos membros de diferentes orientações políticas O exercício de uma função no IHGB não estava condicionado pela
no IHP. E, de falo, encontravam-se na instituição representantes de remuneração, mas pela aquisição de prestígio.
perspectivas políticas diversificadas: o espectro político do instituto Na França, a historiografia era exercida como profissão e,
abarcava desde o presidentejoseph Michaud, que se colocava ria tra- desse modo, o primciro-sccretário do iHP era agraciado com sa-
dição dos que renegavam a Revolução Francesa, até os republicanos lário fixo e residência funcional. Elucidativo é que as duas insti-
e representantes do saint-simonismo. Não se pode esquecer, inclu- tuições deparavam com constantes dificuldades financeiras. No
sive, que o Institnt Historique de Paris, na ocasião de sua fundação, caso do IHGB, o aumento das contribuições de Estado surgia como
contava com a simpatia do ministro da educação Francois Guizot única e óbvia solução monetária para os problemas. Por sua vê/, o
(1787-1874). instituto de Paris, que se mantinha graças ao apoio Financeiro pri-
vado, reagia às mesmas dificuldades, com a adoção de medidas de
Não pertencemos todos à mesma opinião política, mas que o restrição de gastos: instalação em sede menos onerosa, assim como
mais perfeito consenso reine em nossas assembleias...79 diminuição dos rendimentos do primeiro-secretário e da edição da
revista.
Discussões políticas no interior do instituto estavam submeti- O número de duzentas ações de participação obtidas após os
das por estatuto a determinadas cláusulas. três primeiros anos após a fundação não foi superado para garantir o
saneamento financeiro da instituição. Um discreto auxílio financeiro
Toda discussão estranha à ciência puramente histórica é proi- estatal só foi obtido em 1844, em troca de vinte assinaturas por parte
bida nas assembleias gerais, o conselho, as categorias, os comi- do Ministério da Educação Pública. 8a
tés, as comissões, c em geral em toda c qualquer reunião do A leitura do ]ournal de 1'Jnstitut Historique de Pari1?* permite uma
Instituto Histórico. s" descrição das atividades da instituição. A divisão em determinadas

De acordo com esse quadro, é possível perceber uma conexão H1 No Brasil, a obra de Victor Cousin também teve certa recepção. Domingos |osé
entre o "ecletismo" do Institut Historique e a recepção de tendências Gonçalves de Magalhães, primeiro Ordinário pura Filosofia do Colégio Pedro
II, expôs, cm sua aula inaugural, as linhas gerais dessa filosofia. Gonçalves de
Magalhães estudara em Paris com Théodor (ouffroy, aluno de Victor Cousin.
7" Discurso do presidente do IIIP Joseph Michaud (J 767-1839), na abertura do I Veja-se: BARROS, Roque Spcucer Maciel de. A significação educativa (to roman-
Congresso Histórico Europeu, que também presidia. No decurso de sua fala, tismo brasileiro: Gonçalves de, Magalhães. São Paulo: Grijalbo, 1973, 266p.
ele destacou o caráter do Instituto Histórico como uma "assemblée de famil- s- Veja-se: DESLANDES, Paulo. "Lês dcbuts de rinstitm Historique (1834-1846)",
\c". Joumal de. 1'lnstitut Historique. Paris, 3 (16), iiov. 1835; p. 187. Rmue. dês Eludes Jlistoriques. Paris, 88, 1922, pp. 299-324.
80 Journal de 1'lnstitul. Historique. Paris, 4 (19), fev-jul. 1834, pp. 38-40. 83 A revista do instituto teve, ao longo de sua existência, diversos títulos: 1834-
110 Historiografia e Nação no Brasil 1838-1857 Nação e história: a fundação do Instituto Histórico c... 111

rubricas evidencia com clareza a intenção do instituto de manter seus Depois de definir o instituto como uma instituição "animada pelo
sócios atualizados com as discussões correntes do campo da ciência espírito da civilização europeia", ele destacou o interesse da França
histórica. Publicavam-se os debates em torno de questões de histo- nessa construção:
riografia, resenhas de livros, informações bibliográficas e artigos de
trabalho do instituto. O IHP promovia anualmente, em Paris, um AFrança, cujas Artes já têm estendido, sobre solo ainda virgem,
congresso sobre os temas da história, assumia o controle geral sobre tão profundas raí/.es, e produzido frutos que prometem para o
os cursos públicos e, após 1835, concedia um prémio anual para o futuro tão abundantes colheitas, acha-se mais interessada que
melhor trabalho histórico. qualquer outra nação da Europa nos progressos da civilização
Os contatos privados com o ambiente cultural e os interesses brasileira; e a mini, via qualidade de francês e membro
lusitanos do primeiro secretário do IHP, Eugène de Moiiglavc,84 e o correspondente do instituto, também me é permitido associai-
papel de modelo que a França desempenhava sobre a vida cultural me por este duplo título.86
no Brasil levaram ao relacionamento estreito entre o IHP e o IHGB.
No primeiro ano de sua existência, 11 brasileiros integraram-se ao Francisco de Monte Alverne, padre, estimado como orador
IHP, sendo que 10 deles, mais tarde, se tornaram sócios do IHGB.85 e intelectual de sua época, em ensaio escrito por ocasião de sua
Círculos sociais cultivados da França mantinham, ao menos desde admissão no IHP, afirmava com destaque o papel civilizador da
a Missão Artística Francesa, algum conhecimento e conta to com o França.
Brasil. Considerando que ria Revue de Deux Mondes não era raro se
encontrarem artigos sobre o país, é possível supor que a fundação Essa filiação literária continua a grande obra da civilização do
de um império no continente sul-americano ia ao encontro de certos género humano, confiada à França; ela revela ao Brasil que
circuitos sociais franceses. ele não tardará em figurar entre os povos que se distinguiram
Tanto no Brasil quanto na Franca, cristalizou-se lentamente a por seu Iluminismo. A França se confraterniza com todas as
imagem que se formou de nosso país como guardião da civilização nações civilizadas; ela as reúne em torno de si, ela se faz o
europeia no Novo Mundo. Raoul Rochette, secretário da Académie centro das relações sociais e morais...87
Royale dês Beaux Arts, formulou essa ideia numa carta de
agradecimento redigida após a sua admissão nos quadros do IHGB. Em 1843, os naturalistas conde de Castelnau e visconde de
Osery receberam do governo francês a incumbência de pesquisar
o continente sul-americano do Rio de Janeiro até Lima, tendo sido
184.Q: Journal de rinstitut Historique; 1840-1883: L'investigateur, 1883-1899: Reiiue
de Ia Société dês Etudes Historiques; 1899-1930: Revue dês Etudes Hutoriques. bem recebidos pelo IHGB. Contudo, após a publicação de suas
observações sobre o estado bárbaro do país, ganharam a antipatia
4 Eugène Garay Monglave (1796-1873) encontrava-se no meio de uma estada de
dois anos no norte do país, na allura da fundação do Império. Como outros
viajantes dessa época, participou de diversas expedições ao interior do país, 86 Raoul Rochette, secretário vitalício da Académie Royale dês Beaux-Arts, em
em busca de riquezas naturais. Em 1827, publicou em Paris uma biografia de carta enviada a Januário da Cunha Barbosa, primeiro-secretário do IHGB, da-
d. Pedro I, que continha também a correspondência entre o primeiro impe- tada de 26 de janeiro de 1843. In Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 5 (18), abr-
rador do Brasil e seu pai, d. João VI. Além disso, afirmou-se como tradutor de jun 1843, p. 244v.
escritores brasileiros. K' Francisco de Monte Alverne, em 5 de novembro de 1834. In Journal de 1'Instilut
85 Conforme nota 3. FARIA, Maria Alice de Oliveira, p. 147. Hislorique. Paris, 2 (8), mar. 1835, p. 117.
11 2 Historiografia c Nação no Brasil 1838-1857

do i n s t i t u t o . Dois anos antes, o IHGB estabelecera cont.ato com o como o americano do norte lhe oferece isso nesse momento
cientista francês dr. Martin de Moussy, membro da Sociedade de a si próprio.ss
Geografia de Paris. Seu interesse recaía sobre a transformação que
os europeus sofriam ao serem submetidos ao clima dos trópicos, Em nome do instituto, o Journal de 1'lnstitut Historique saudava
bem como sobre as doenças endémicas e as pesquisas no campo da a revista em língua portuguesa que surgira em Paris, Nitheroy: "Eles
geografia e da etnografia. expandirão além-rnar a influência de lima ideia que deve dar a volta
O Journal de 1'lnstitut Historique servia como fórum de discussão ao mundo", opinava a revista.89
dos problemas das ciências humanas brasileiras. Logo no primeiro O embaixador brasileiro em Paris, Lu is Moutinho de Lima
número, escreviam três brasileiros: Domingos José Gonçalves de Alvares e Silva, mantinha assinatura do Journal de 1'Jnslitul Historique
Magalhães problematizava a questão do início de uma literatura para as bibliotecas públicas do Rio de Janeiro, São Paulo e Recife.
nacional no Brasil, enquanto Francisco Salles Torres Homem (1812- Em 1839, o primeiro-secretário do 1HP, Eugène Garay de Monglave,
1876) apresentava o desenvolvimento das ciências no Brasil - para ofereceu um curso sobre literaturas portuguesa e brasileira.
tanto, ele ressaltava especialmente os entraves resultantes da herança Como vimos, mesmo antes da fundação do Império do Brasil,
de Portugal como metrópole. Manoel de Araújo Porto Alegre havia uma grande influência da França sobre a vida cultural do
descrevia o estado das artes no Brasil, estabelecendo a distinção entre país. A orientação do IHGB em direção ao l H P se constitui nos
arte e arte indígena, além de caracterizar a repercussão da Missão limites dessa tradição. Os atores envolvidos no trabalho das duas
Artística Francesa como ponto de mutação da história da arte no instituições assumiram, de modo direto, a influência do IHP sobre
Brasil. o IHGB.
Na sequência, o Journal de 1'lnstitut Historique publicou Num artigo da época da fundação do IHGB, o primeiro-
informações bibliográficas sobre o Brasil. Jean Baptiste Dcbret secretário do IHP, Monglave, destacava o papel de liderança que
relatou algumas de suas observações feitas no Brasil aos sócios do o instituto francês desempenhava na fundação daquela instituição
instituto, reafirmando a imagem da função civilizadora da França do similar e correlata.90 Numa carta a Eugène Garay de Monglave,
outro lado do Atlântico.
88 Manuscrito inédito do segundo volume da Voyage Pittoresque et Historique <m
A moda, essa mágica francesa, irrompeu no Brasil bem cedo. tírésil, de Jcan Baptiste Debret, apresentado em 23 de outubro de 1834 diante
O império de D. Pedro tornou-se um de seus mais brilhantes da 5a. Seção do IHP. In Journal de 1,'htstitut Historique. Paris, l (3), out. l834, p.
171v.
domínios: ali ela reina como déspota, seus caprichos são leis;
nas cidades, vestuários, refeições, dança, música, espetáculos, 89 Relatório de Eugène Garay de Mongalve sobre o lançamento da revista Nithe-
roy. In Journal de 1'lnstitut Hislmiquc. Paris, 4 (231),jun. 1836, p. 209.
tudo é imitado, calcado no exemplo de Paris, e, sob esse
aspecto, como sob alguns outros, algumas províncias da 90 O artigo lançado na revista do IHP sobre a fundação do IHGB é, ao mesmo
tempo, um balanço do trabalho de cinco anos do IHP. Monglave dirigiu a
França ainda são bem mais atrasadas que as províncias do
formação da Comissão Real de História em Londres, Bruxelas e Turim e a
Brasil. fundação da Sociedade de História em Boston, Washington e no México, se-
Em resumo, é isso, o povo que percorreu três séculos todas as guindo o exemplo francês. Como consequência das atividades do instituto, ele
fases da civilização europeia e que instruiu, através de nossas via ainda a organização das "Comissões Históricas", criadas pelo ministro da
Educação Pública, Guizot. Veja-se: fonrnalde 1'Instilut Historique. Paris, 10 (57),
lições, nos oferecerá cm breve, talvez, os rivais dignos de nós, abr. 1839, pp. 101-15.
11 -i HiMoriogiafia c Na^ão no !>rasil ISiiS 1

Januário da Cunha Barbosa, pi imeiro-seci etário do IHGB, abordou a


mesma questão do ponto de visla brasileiro.

Ao vos fazer esse toinunicado por ordem do novo Instituto


e em virtude de seus estatutos, devo lembrar-vos de que seus
dois principais fundadores, como verão pela nota sucinta que
3
precede meu discurso, são os membros do Instituto Histórico
da França, e, que, por consequência, a glória dessa fundação
deve naturalmen te pertencer à honrosa Sociedade da qual eles
O INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
fazem parte; essa glória será tanto maior quanto mais rápida E A HISTORIOGRAFIA
e efica/. for vossa cooperação com as pesquisas que interessam
à ciência. 91

A partir dos fatos, especialmente 110 caso dos Estados nacionais O projeto de uma história do Brasil
em processo de construção, depreende-se que a ocupação com a
própria história correspondia a uma exigência muito mais ampla. No texto em que apresentam suas ideias acerca da fundação
Assim, é preciso levar em conta o fato de que o Instittit Historique de do IHGB, Raimundo José da Cunha Matos e Januário da Cunha. Bar-
Paris representava um modelo para a instituição brasileira correlata bosa caracterizam o trabalho da nova instituição a partir da formula-
e, acima de tudo, constituiu-se em instância de sua legitimação social. ção de dois objetivos: "coligir e metodizar os documentos históricos
e geográficos interessantes à história do Brasil". 1
Os primeiros estatutos acrescentaram a função de sensibilizar
a esfera pública por meio de cursos, palestras e urna revista de publi-
cação regular dedicada às questões históricas e geográficas.2 O pro-
pósito de escrevei' uma história do Brasil, embora não enunciado ex-
plicitamente, no entanto, constituía o pano de fundo de um trabalho
que, à primeira vista, poderia parecer apenas motivado pelo interesse
documental. A recolha de dados tinha como sentido possibilitar uma
"História Geral do Brasil", sendo o instituto, nas palavras do primeiro
secretário, "a luz que tiraria nossa história do caos obscuro"/1

' As motivações apresentadas pela SAIN para a fundação de um Instituto His-


tórico e Geográfico. Raiista do 1HGB. Rio de Janeiro, l ( l ) , jau-mar/1839, pp.
5-9.

2 Primeiros estatutos do IHG15. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, ! ( 1 ) , jan-


1 Carta de Januário da Cunha Barbosa a Eugène de Monglave, de ]0 de janeiro mar/1839, pp. 22-24.
de 1839, Journal de rinstitut Historique. Paris, 10 (57), abr. 1839. '' Relatório do primeiro-secrctário do IHGB, Januário fia Cunha Barbosa, por

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