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Wa0020.
Wa0020.
1 INTRODUÇÃO
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WWW.bccclub.com.br.
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No BCC, todas as crossdressers associadas são tratadas no feminino.
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Alguns estudos de base psicanalista até chegam a usar o termo crossdresser como
sinônimo de travesti. Em sua tese de doutorado Kogut (2006, p. 9) considera os termos
sinônimos, mas dá preferência ao termo crossdresser porque, segundo ela, travesti estaria
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Disponível em: http://www.bccclub.com.br/teste/. Acesso em: 07de março de 2015.
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Sobre esse assunto, ver seção 4.3 Crossdressing e performatividade de gênero, nesta dissertação.
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Provavelmente este é o nome fantasia de uma crossdresser associada.
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SIMBÓLICO e não físico, fazendo com que o sexo seja apenas um aspecto
secundário dentro desse panorama 6 .
Vemos então que o crossdressing não está relacionado diretamente aos desejos
sexuais do praticante, mas antes a uma necessidade de indicar o seu pertencimento a uma
subjetividade. E quando Schneider fala em plano simbólico, ela se refere às inscrições
realizadas no corpo para denotar esse pertencimento7 .
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Disponível em: http://www.bccclub.com.br/teste/index.php?content=28. Acesso em: 07 de março de 2015.
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Sobre o corpo como materialidade discursiva, ver seções 3.5, 3.6 e 4.2, nesta dissertação.
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Vale salientar também a relevância acadêmica que tem a nossa pesquisa para a área
da linguagem, mais especificamente para os estudos em Análise do Discurso (doravante AD)
com foco para a análise das subjetividades. Após pesquisar o estado da arte, não encontramos
trabalhos em AD sobre os modos de subjetivação relacionados ao crossdressing; os poucos
trabalhos que abordam o crossdressing são de outros campos de interesse, a saber: da
Psicanálise (KOGUT, 2006), da Psicologia (CAVALCANTE, 2014) e da Antropologia
(VENCATO, 2013); o que sinaliza a existência de uma página ainda em branco nos estudos
sobre os modos de subjetivação esperando para ser escrita. É inegável que existem inúmeros
estudos em AD que se debruçam sobre a identidade homossexual, heterossexual e seus
diversos desdobramentos (DOMINGOS, 2009; CARVALHO, 2008), mas uma pesquisa sobre
o crossdressing enriqueceria as discussões tanto por sua inovação quanto pelas peculiaridades
do sujeito que a pratica. Peculiaridades estas que giram em torno da questão da sexualidade e
da própria identidade de gênero que esses sujeitos assumiriam e pela capacidade que eles
possuem de se constituir eticamente enquanto sujeito em meio às relações de poder que os
interditam. Por esses motivos, faz-se necessário investigar os modos pelos quais são
construídos os discursos sobre esses sujeitos frente aos jogos de verdade em torno dos gêneros
(masculino e feminino), em torno da sua sexualidade, enfim; em torno da constituição da sua
subjetividade.
a) Objetivo geral:
b) Objetivos específicos:
O BCC foi criado em 1997 por uma crossdresser chamada Deborah Lee8 com o
objetivo de integrar crossdressers de todo Brasil, que até então se comunicavam apenas por
meio de salas de bate-papo na internet e não costumavam se encontrar pessoalmente. O clube
não possui sede física definitiva, sendo suas principais atividades administrativas e de
relacionamento realizadas no sítio virtual. Logo em sua página inicial o clube deixa claro que
não possui caráter sexual ou de encontros amorosos, funcionando com o objetivo único de
promover um espaço de interação e acolhimento aos praticantes do crossdressing. O sítio
dispõe de uma sala de chat própria e, esporadicamente, realiza encontros reais com um seleto
grupo de associadas.
O clube conta9 com 318 associadas inscritas, sendo 104 associadas reais e 214
associadas virtuais. São denominadas associadas reais aquelas que são conhecidas
pessoalmente por um ou mais membros do BCC e que já tenha sido vista ―montada‖, isto é,
vestida com roupas do sexo oposto. Esses membros reais são convidados a contribuir com
uma parcela semestral que ajuda a manter o clube e a organizar encontros presenciais que são
chamados de ―CDsession‖. Caso aceite contribuir, a associada real ganha o direito de
participar dos eventos. Já as associadas virtuais são aquelas que não são conhecidas por
nenhuma associada real.
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Provavelmente um nome fictício.
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Disponível em: http://www.bccclub.com.br/teste/associadas.php?id=stats. Último acesso em 10 de abril de
2016. É possível que esse número esteja em constante variação uma vez que depende do processo de vinculação
e/ou desvinculação de associadas.
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Como qualquer outro clube, o BCC possui regimento próprio 10 que versa sobre as
regras de ingresso e permanência no clube, as políticas de identificação, dentre outros pontos.
É exigência do clube, por exemplo, que todos os membros usem nome e sobrenome artísticos.
Atualmente, todas as associadas têm um perfil público disponível no sítio (o que não é
obrigatório). Nesse perfil consta o nome fantasia da associada, cidade, estado, data de
associação, sítio pessoal (caso tenha) e um espaço chamado ―Biografia‖, onde a dona do perfil
pode deixar seu depoimento, seu relato biográfico sobre sua descoberta enquanto
crossdresser. É a partir desses depoimentos que pretendemos analisar a constituição ética do
sujeito crossdresser, uma vez que essa materialidade linguística se coloca como um saber
sobre si mesmo produzido pelo próprio sujeito e contém, por tanto, seu posicionamento ético.
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O regimento pode ser lido na íntegra em http://www.bccclub.com.br/teste/quemsomos.php?content=12.
Acesso em 09 de março de 2015.
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BCC, uma vez que será possível situá-los entre outros diferentes enunciados que de algum
modo contribuem para a subjetivação do sujeito crossdresser.
Vale salientar que a escolha dos depoimentos se deu com base em trajetos temáticos
que identificamos no percurso de leitura do arquivo, dentre os quais escolhemos examinar: (a)
o início da prática do crossdressing, que se dá na infância; (b) a trajetória do crossdressing na
fase adulta; (c) a importância de conhecer outra crossdresser; (d) os espaços onde é possível
praticar o crossdressing; e (e) as transformações que o sujeito realiza no corpo. A partir
desses trajetos selecionamos 10 depoimentos que reunissem informações sobre esses temas e
compusemos o nosso corpus. São 10 enunciados que podem ser interpretados e apresentam
efeitos de sentido que possibilitam discutir a subjetividade crossdresser, uma vez que
resumem bem o crossdressing realizado pelas associadas, as angústias vividas, as negociações
praticadas seja na família, no trabalho, enfim, nas relações sociais como um todo.
(FOUCAULT, 2008, p. 28), ou seja, toda manifestação discursiva, seja ela falada ou escrita,
pressupõe discursos outros já enunciados em algum momento da história. Porém, Foucault
(2008) ressalta que esses discursos precedentes não seriam simplesmente outro texto escrito
ou uma frase enunciada em um dado momento da história, mas um ―jamais-dito‖, isto é, o
discurso manifesto caracteriza-se por atualizar no fio da história aquilo que se deixou de dizer
sobre alguma coisa, aquilo que em algum momento foi silenciado, interdito. É por esse
motivo que cada ato enunciativo, embora não seja totalmente novo, é sempre único. O que o
autor propõe com a arquegenealogia é exatamente captar, no contínuo da história, esses novos
acontecimentos discursivos, os momentos em que como uma fênix o discurso renasce e inicia
um novo ciclo, atualizando, nas redes de memória, o já-dito; e, principalmente, buscar
entender porque em determinado momento surge um enunciado e não outro em seu lugar. Nas
palavras do autor:
Nascimento (2013) destaca que seguindo esse modelo metodológico estaremos nos
vinculando aos trabalhos desenvolvidos por Foucault em cada uma de suas fases: arqueologia,
genealogia e estética de si. Segundo a autora, na fase arqueológica ―Foucault visa descrever
em termos teóricos, as regras que dirigem as práticas discursivas‖ (NASCIMENTO, 2013, p.
23), ou seja, o autor estuda nessa fase as condições de aparição dos discursos na história e sua
relação com o já-dito, conforme explicado anteriormente. Já a fase genealógica tem como
objetivo
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A genealogia busca compreender que cada enunciado é singular diante de outros que
fazem parte do mesmo campo discursivo, sem, porém, investigar uma possível origem para
esse discurso. Para isso, claro, se faz necessário um retorno à história, mas sem a intenção de
buscar certezas absolutas: ―o que interessa são os detalhes, as trilhas, as redes de relações que
favorecem a interpretação‖ (NASCIMENTO, 2013, p. 24). A genealogia, então, preocupa-se
com a interpretação dos detalhes e das regras de aparição desses discursos.
Para expor de maneira mais prática possível nossa pesquisa, dividimos este trabalho
em capítulos que se subdividem em seções. No capítulo 2, discutimos acerca do surgimento
da Análise do Discurso e das contribuições de Michel Foucault para essa disciplina. São
apresentados os principais conceitos metodológicos que embasam a AD de vertente francesa,
tal como Discurso, Interdiscurso, Formação Discursiva, Memória Discursiva, entre outros;
todos imprescindíveis para o desenvolvimento desta pesquisa.
No capítulo 4, damos início à análise do nosso corpus tendo por base a discussão
realizada nos capítulos anteriores. Ele se divide em três seções nas quais os depoimentos são
examinados por trajetos temáticos. No capítulo 5, capítulo de conclusão, retomamos as nossas
perguntas norteadoras e apresentamos as respostas encontradas com base na análise realizada
no capítulo 5.