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PREFÁCIO

DA COSTA E SILVA REVISITADO

A Universidade Federal do Piauí, numa atitude bastante simpática em relação à literatura


piauiense, teve por bem incluir no programa do concurso vestibular do corrente ano alguns
autores modernos e contemporâneos, como o romancista O. G. Rego de Carvalho e Da
Costa e Silva, nosso poeta maior. A dificuldade surgida para os estudantes vestibulandos
seria a de encontrar textos do poeta que há tempos não é reeditado e cuja obra se acha
assim praticamente esgotada.
Daí a iniciativa de promover-se nova edição de Zodiaco, um dos livros definidores da obra
poética de Da Costa e Silva, projeto em que ora se associam a Livraria e Editora Corisco e
a Livros & Letras.
Zodíaco, um livro da fase marcadamente parnasiana de Da Costa e Silva, diferente de
Sangue, que se ajusta mais aos modelos simbolistas, aparece, pela primeira vez, em 1917,
no Rio de Janeiro, por ocasião de uma das deambulações do poeta.
Foi então muito bem recebido pela crítica da época. São de Pereira da Silva os seguintes
comentários: "Da Costa e Silva encontra, na sensação imediata das coisas, farta messe de
idéias e sentimentos pessoais, que exprime revestidos de uma forma tão impressiva que as
próprias palavras lhe brotam onomatopaicamente com uma opulenta maravilhosa
espontaneidade. A sua atitude é sempre a de um espectador voluptuoso das belezas do
universo".
Conhecedor profundo da nossa natureza e perfeito intérprete de aspectos significativos da
fauna e da flora piauiense, o poeta quis com este livro representar os trabalhos e os dias
dos homens de sua terra. A memória popular se fixaria sobretudo em sonetos como "A
Moenda", que talvez, pelo seu valor onomatopaico, seja o de maior presença na tradição
popular, "Amarante", "A Balsa", "O aboio", que exprimem as imagens vivas da terra natal.
Vamos assim revisitar o poeta em um dos ins tantes mais altos de sua inspiração poética,
num momento em que a poesia precisa ser reverenciada em sua dignidade essencial.

M. Paulo Nunes
A ESCALADA

Como custa subir esta montanha,


Que ascende para a luz e para a glória
E mais se eleva quanto mais se ganha
Na escalada fantástica, ilusória!...

O espírito a pairar além dos astros,


E em meio da ascensão indefinida,
Vê os aspectos múltiplos da vida
Baixos, distantes, quase que de rastros.

O aflito olhar volvendo de repente


Da eminência da escarpa inacessível,
Contempla tudo que lhe fica em frente
E o que se move abaixo do seu nível:

Céus azuis, vastos, largos e profundos,


Cheios de luz e cheios de mistério,
Na transparência ideal do azul sidéreo
Sustendo a força cósmica dos mundos;

Verdes mares revoltos e bravios,


Com os continentes porfiando em guerra,
Bebendo as veias colossais dos rios,
Na ânsia imortal de avassalar a terra;

Amplos, vagos e claros horizontes,


Onde se perde o sonho de granito
Das colinas, dos cerros e dos montes,
Num anseio infinito de infinito;

Rios caudais de cristalinas águas,


Nascidos nas adustas cordilheiras.
Rolando em catadupa as suas mágoas
No pétreo coração das cachoeiras;

Campos extensos a perder de vista,


Na doce maravilha da paisagem,
Dando a feliz e sugestiva imagem
Dos encantos da vida panteista;

Brenhas, sertões, florestas seculares,


Selvas escuras, densas, misteriosas,
Coutos de leões, de tigres e jaguares,
Protegidos das árvores umbrosas;
Verdes ilhas em flor que o mar afaga,
Contando os seus marítimos segredos
Na alva espuma que aflora nos rochedos
À cantiga nostálgica da vaga;

Terras selvagens e cidades cultas,


Criações de Deus e maravilhas do homem,
Prodígios que nem mesmo as catapultas
Ciclópicas dos séculos consomem;

Tudo contemplo, enfim, desta eminência


Que a luz do meu espírito domina,
Que eu já nem sei se é humana ou se é divina
Esta febre perpétua de ascendência.

E ainda quero galgar a eterna penha,


Nesta altura onde um Deus eu me suponho.
Que dos mundos que viu do alto desdenha
Porque o mundo é menor do que o seu sonho…

Embora o pasmo do deslumbramento,


Sempre a buscar o termo da subida,
Cismo de olhos absortos para a vida,
Vivendo apenas para o pensamento.

Cismo, admirando tudo que contemplo:


- A terra, o mar, o céu, a imensidade…
Tudo que existe neste grande templo,
Portas abertas para a eternidade...

E fico, então, num êxtase profundo


E a bendiz, atônita, surpresa,
O ventre maternal da Natureza.
Tanto mais virgem quanto mais fecundo!
ÁDITO

HINO AO SOL

HINO AO MAR
HINO À TERRA
ZODÍACO

INVERNO
Troam trovões em trons longos de guerra;
E o soturno rumor,
Ecoando
De vale em vale, serra em serra,
Todas as forças vivas acordando
Em rugidos de amor.
Parece despertar o coração da terra.

É o inverno que aí vem túrbido e frio


Com o seu manto nimboso, o plúmbeo véu
A empanar, a encobrir, torvo e sombrio,
A glória azul do céu.

A essa transformação das forças vivas,


Obrigadas a um lúbrico abandono
Para os mistérios da fecundação,
- A vida a concentrar nas seivas primitivas,
Num sono germinal, o voluptuoso sono
Em que as coisas estão,
- Em bando as andorinhas fugitivas,
O azul com os punhais das asas,
A chegada da frígida estação,
Deixam saudosas o beiral das casas
E, espaço em fora, lá se vão...

Paira em tudo uma sombra de tristeza


E viuvez,
Na angústia maternal da Natureza
Que morre e vive, sem morrer talvez...
E o espasmo genésico e materno.
O delíquio sensual
Que existe em tudo quando chega o inverno.
Tudo que val morrer na aspiração vital
De evoluir de transitório a eterno:
- Vegetal, animal, mineral...

O inverno… em grossas bátegas a chuva


Encrespa o dorso ascensional das águas;
E a Natureza-mãe parece viúva
Que vem
Com o pranto dar alívio às suas mágoas,
- Mágoas de amor que todo mundo tem.

Chora as mágoas que são próprias da vida


De quem possui a febre de viver,
- Esta febre imortal, dolorosa, Incontida,
Que é a origem fatal de cada ser.

O inverno... O frio... O vento... A chuva…


[A enchente....
A rajada... O tufão...
Ramos sem ninhos, ninhos na corrente…
E o rio, num rumor pausado e cavo,
Caudaloso a rolar, de cachão em cachão.
Passa mugindo, como um touro bravo,
Arrastando, robusto, os robles de roldão.

Enquanto volumosas e barrentas


Correm as águas para o mar.
Em pejado rebanho
Que o vento pasce, passam lentas
Nuvens de chumbo sob um céu de estanho
Até que em chuva se desfazem no ar.

O inverno... A chuva... E um gélido torpor


A encher de tédio todo o espaço ambiente!
Como é bom neste tempo ter a gente
Uma alma simples de lavrador,
Para ver o futuro através do presente,
Para sonhar, para prever, para supor
O bem que, sabe Deus! está numa semente!

Ser lavrador! Nos campos de lavoura


Que o inverno alaga o lavrador bendiz
A vida, na ilusão consoladora
De quem espera, rústico e feliz.
Frutos de ouro colher na seara loura
E a fortuna encontrar, num grão, numa raiz

O inverno... O frio... A cerração…


Dias sem sol, noites brumosas…
Ninhos sem cantos e vergéis sem rosas;
E tanto fogo no coração!

O inverno atroz, desolador,


Tão cruel para as aves erradias,
Mortas de frio, a mendigar calor,
Tem, nestas noites úmidas e frias,
Noites quentes de amor.

Parece que ele nos dá o alento,


Que em forte seiva revigora a planta,
Folhas verdes nos ramos a brotar...
Têm-se no coração, como no pensamento,
Numa estranha emoção que nos encanta,
Mais forças para amar...

Bendito o inverno! Ei-lo, a estação bem-vinda


Em que, envolta num halo de esperança,
Como que a Natureza vai morrer
Para ressuscitar depois, mais verde e linda!
Núncio do Amor e da Abastança,
Bendito o inverno que nos faz viver!

PRIMAVERA
Riso do tempo para a vida,
Riso da vida para o amor,
A primavera chega, difundida
Na alma feliz da Natureza em flor.

Então, a terra inteira,


Como se a despertasse o agreste cálamo.
A frauta mágica de Pa,
Florindo à luz, esplende e cheira;
E é toda um redolente e verde tálamo,
Para festa nupcial de uma deusa pagã.

Uma emoção sadia e virginal


Parece que a domina e transfigura,
Quando no plaustro de ouro e azul da aurora
Surge das névoas Flora,
Divina e pura,
Na sua graça ideal de noiva e de vestal.

Tudo celebra os esponsais


Da diva irmã, num casto epitalâmio:
O claro céu, o sol radioso e flâmeo,
Os pássaros, as fontes, os rosais...

Gênios do Azul, numes da selva,


Gnomos sutis, silfos inquietos
Giram velozes em redor
Dos floridos vergéis, da flórea relva;
E a alada nuvem dos insetos
Vai-se tornando cada vez maior.

O tépido casulo, a ninfa cálida,


Onde vivia o exul.
Abandona a volúvel borboleta
Que, ao deixar a crisálida.
Val beijando, em volteios, pelo Azul,
A rosa, o cravo, o lirio, a camélia, a violeta.
Áureas abelhas,
Bailando no ar, ansiosas, como loucas,
Beijam todas as flores do vergel,
Sugam sensuais as sequiosas bocas
Dos nevados jasmins e das rosas vermelhas.
Haurindo o pólen de ouro para o mel.

Aos bandos e às miríades,


Os insetos e os pássaros em festa,
Parecem despertar
As fadas vegetais, napéias e hamadríades,
Todas as divindades da floresta,
Para ver Flora que se vai casar.

É o noivado de Flora, a primavera,


A encher de luz e aroma a esfera
E sobre a terra flores a esparzir…
O azul do céu tem tanta suavidade,
Que a gente chega a ter saudade
Do mistério de luz de uma vida por vir.

Os nossos corações
Enchem-se de ilusões e desejos românticos,
Na harmonia dos sons, das cores, dos perfumes.
Que canta, que irradia e se evola dos cânticos
Das fadas e dos numes
Que vivem a sonhar nas flores e botões...

Tempo de amor para se amar,


A primavera, com as primeiras rosas,
A alma perturba em seduções infindas...
E à volúpia do olhar,
As flores são mais lindas
E as mulheres mais frescas e cheirosas.
A mocidade, a graça, a beleza, o prazer,
Acordam todos na amorosa luta,
Numa expansão harmônica,
Desde o homem que medita à natureza bruta,
Da vida espiritual à vida atônica
Porque é preciso amar para viver.

E é a primavera que nos conduz


Pelas asas do amor ao céu da vida
Que vibra transmudada, refletida
Nos aspectos que toma
A Natureza rejuvenescida,
Aos influxos do som, da cor, do aroma
E da luz!

VERÃO

O sol criador
O concavo do céu de luz inunda;
E a terra pródiga e fecunda
Sente-o numa expansão de vida e de calor.

Ao radioso esplendor da luz mirífica,


Que acorda e anima a Natureza
Para outra vida começar,
Tem-se, na comunhão voluptuosa e magnífica
Da luz, da força e da beleza,
Uma vontade louca de cantar.

Zine,
Vibrando as asas diáfanas de gaze,
A cigarra estridente uma ária de cristal,
A anunciar, alvissareira, a fase
Em que o sol a vibrar de claridade tine,
Ardente, anímico, vital...
É o verão que nos traz a vertigem da vida,
É o verão que aí vem…
Ao hálito de fogo da canicula,
Arde uma febre de labor, de lida,
Nos campos férteis de trabalho agrícola;
E abrem de par em par os celeiros do Bem.
É o verão, lavrador,
Que vem movimentar a vida satisfeita
Dos engenhos rurais e das fazendas,
Pelo trabalho glorificador,
Na faina intensa e alegre da colheita,
Ao rangido rouquenho das moendas.

Que ventura viver nestes sítios bucólicos.


Por estes tempos de lavoura, quando
Geme o carro na estrada e os tardos bois,
De largos olhos melancólicos,
Pacíficos lá vão, possantes, trabalhando,
O pescoço na canga, dois a dois...
Que bom viver na doce paz
Do campo, quando ao sol a seara de ouro
Fulge no orgulho com que traz
Ao homem, que lutara, o próvido tesouro!

Na aleluia da luz, chega o verão...

E a Natureza o inexaurível übere,


Os seios fartos e impolutos,
De mãe eterna, virginal e púbere,
Entrega às bocas que pedem pão,
Piedosa, enchendo as árvores de frutos.

A alegria do campo invade a choça,


Quando, pela manhã clara e estival,
A algazarra infantil dos periquitos
Domina a roça
E a verde nuvem garrulante, aos gritos,
De súbito se apossa
Dos cachos sussurantes do arrozal.

É o verão... É o verão! O camponês,


O homem simples e rude,
Quando o beijo do sol ardente e cálido
Lhe queima o sangue, amorenando a tez,
Na pletora pujante da saúde
Como que fica mais robusto e válido.

E apenas
A áurea estação de Ceres
Surge, surgem também pelos céus em fulgor
Louras manhãs, tardes morenas,
Com a volúpia de fogo das mulheres,
Pela sazão do amor…

Então, que ânsias de fé, quantos sonhos ciclópicos,


Quantos projetos de felicidade
Fogem com as horas de trabalho e de prazer...
Neste lindo verão, ao sol dos trópicos,
A alma tonta de luz sente-se em liberdade:
Quer sorrir e cantar, quer amar e viver.

OUTONO

O outono...
Em toda a Natureza existe
Um misto de volúpia e de abandono,
Um lascivo torpor
De quem quer descansar, de quem tem sono
E essa alegria resignada e triste
Dos que morrem de amor.

Apenas chega a tórrida estação,


Entre a névoa cinérea das queimadas,
Num anseio de morte e de devastação,
Fogem as aves assustadas
E as árvores sucumbem, desfolhadas,
Abrindo os lígneos braços na amplidão...

Um hálito de fogo as plantas cresta,


Desde os tenros arbustos
Aos robles ramalhosos e robustos
Com raízes de vida secular...
E há tantos troncos nus, tantos ramos combustos,
Que até parece que a floresta
Vai se extinguir, vai se perder, vai se acabar...

Como um tufão de cóleras celestes,


Passa o vento a zunir...
E as folhas amarelas tremem, prestes
A cair…
A terra, num deliquio sonolento,
Perde as pompas mutáveis e mortais,
Para morrer em holocausto
À vida nova, quando o sol, de um hausto,
Ao rigor do mormaço e às bafagens do vento,
Suga a seiva que nutre os vegetais.

O outono... Errantes nimbos de fumaça


Mancham o azul do céu, dispersando-se no ar...
Ouve-se um bater d'asa, após um tiro forte...
É a vida que o prazer busca na morte:
- É a caça,
Homem que te distrais no gozo de matar!

O som álacre das buzinas


Perde-se ao longo da chapada longa,
Nos sertões áridos e nus,
Enquanto ecoam nas colinas
O canto retinido da araponga
E o gemido de amor dos inhambus.
Outono... A vida é para os pescadores.
Para vocês, homens do mar,
Que, junto ao cristal murmuro das águas.
Sem ter cuidados nem temores,
Acham, talvez, consolo para as mágoas
Nos encantos da vida de pescar.

A vida é para aquele que se ufana


E o seu contentamento não abafa
Ao ver saltar, fisgado pelo anzol,
Ou preso às malhas da tarrafa,
O peixe a sacudir a barbatana,
A escama vítrea cintilando ao sol.

O outono... A vida é dos contemplativos,


É para o poeta, o músico, o pintor,
Que de alma aberta para a cisma,
Nos poentes autunais, roxos e evocativos,
Sentem, sonhando, por um novo prisma,
A luz, o som, a cor…

Outono! Como encanta essa tristeza


Em que as coisas estão!
É o êxtase da luz que abate a natureza,
Estuante de emoção e de surpresa,
Ante o incêndio do sol que devora o sertão.

Enquanto o sol de luz inunda


Vales, rechãs, florestas e montanhas,
Numa explosão fatal de beijos quentes,
Morta de amor e de prazer,
A Natureza próvida e fecunda
Abre, feliz, as maternais entranhas,
Para no ventre recolher
A vida misteriosa das sementes.
O outono aí vem... Bendito seja
O outono no seu fogo abrasador
Que traz a morte para o bem da vida;
Bem haja o deus que baixa à sua igreja,
Para erguê-la, depois de demolida,
Ante a glória da luz, para o culto do amor!

HORAS

MATINAL

Azul e ouro. Orgíaca


De luz, flava, a manhã
Surge paradisíaca
E ostenta-se pagă.

O céu límpido, imáculo,


Trêmulo de esplendor,
Torna-se o tabernáculo
Do Sol - Nosso Senhor.

A natureza, idílica,
A Flora ergue um altar
Na olímpica basílica,
Aberta à luz solar.

O éter imponderável
Um doce eflúvio tem
À vida tão saudável,
Que a alma se sente bem.

O claro Sol, magnânimo,


Fecundo, a resplender
Em tudo, dá mais ânimo
À glória de viver.

A vida é um sonho. Encanta-nos:


Há pássaros no Azul,
Insetos sobre os pântanos
E flores no paul.
Anímica e balsâmica,
A terra-mãe produz,
Na irradiação dinâmica
Que a vida traz à luz.

As árvores e o solo,
Na catedral de Pã,
Dão verde culto a Apolo,
À luz desta manhã.

MERIDIONAL

Sol no zenite.
Arde a canícula
- Fonte de luz, força e calor;
E há em cada ser uma partícula
Do seu eflúvio abrasador.

O nume astral, deus de Zodíaco,


Depõe no seio virginal
Da terra um beijo dionisíaco,
Rubro, de fogo, tropical...

Ao seu influxo atua a química


Dos elementos naturais.
Germina a vida em seiva anímica,
A circular nos vegetais.

Estâncias férteis, zonas áridas,


Tudo se excita, ama e produz;
E, invisas no ar, voam cantáridas
No pólen rútilo da luz...

Murmura, a selva, aos raios tépidos,


Sonha, a vibrar e a estremecer,
Na evocação de faunos lépidos
Atrás de oreadas, a correr...

Arma entre as árvores um tálamo


Pã que, a tocar, lúbrico e nu,
Ninfas seduz, ao som de um cálamo,
Feito de gomos de bambu.
Zine a cigarra de ouro, estrídula;
A abelha iriada do vergel
Zumbe em redor da fruta acídula,
Tornando-a uma ânfora de mel.

Filha do trópico, a alma ignícola


Quer ascender, como um vapor,
No hálito ardente da canícula
À irradiação do Sol criador.

VESPERAL

A concha cérula,
De norte a sul,
Tem tons de pérola
No lindo azul.

É um vitral gótico
O sol a arder
No íris caótico
Do entardecer.

Tomba no Atlântico
O áureo esplendor
Da tarde, ao cântico
Da vaga em flor...

Na etérea acústica,
Vibrando no ar,
Soa a voz rústica
Do velho mar.

No eco nostálgico
Perde-se após
O acento trágico
Da grande voz...

À tarde mística
A sombra traz,
Muda e eucarística,
A unção da paz.
Triste e sonâmbula
A Noite vem,
A erguer uma âmbula
De luz, além…

É Vésper... Vêmo-la,
O aéreo véu
Rompendo... trêmula
Brilhar no céu.

NOTURNAL

A noite de ébano, cálida


De volúpia tropical,
Dorme indolente, à luz pálida
De um plenilúnio autunal.

Como flores sem pedúnculos,


Abertas em luz no Azul,
Entre mágicos carbúnculos,
Vela o Cruzeiro do Sul.

- Opala de escrínio etérico,


Fulgura o disco lunar...
E a lua é um espelho esférico
Onde a alma se vai mirar...

Unge a terra o óleo lunático;


E em seu místico palor
Parece trazer o Viático
Para os que morrem de amor.

O luar, de eflúvios românticos,


enche os céus e os corações
De serenatas e cânticos:
- Flautas, violinos, violões...

Erram no ar, vibrando em ritmos


De luz, de aroma e de som,
Quem sabe, os gênios legítimos
De Ariel e de Oberon!
Extática e melancólica
A Natureza, ante a luz,
Evoca a imagem simbólica
Da Virgem mãe de Jesus.

Lívida, atônita e atônica,


Través o diáfano véu,
Fita, enlevada, a Veronica
Da Lua, exposta no céu.
SUGESTÕES DA LUZ

SOL NO MAR

Que lindo céu! Que lindo mar! Fulge o sol no zenite, aceso em lausperene
No luminoso altar do espaço amplo e solene,
Que na equórea amplidão se espelha, a cintilar...

Para os prismas do olhar, cambiantes de esplendor


Na reverberação de fluidas pedrarias,
Tremeluzem à flor das vagas erradias
De um verde estranho, furta-cor.

E a água a bater de encontro ao cais,


Aos reflexos do sol e aos rumores do vento,
Freme e flui a flutuar, como um desdobramento
De chamalotes de ouro e sedas orientais.

Fluctíssona, fulgura, à mercê da maré,


Nessa metamorfose, ora lenta, ora brusca
E, irisada de prata, arde, esplende, corusca
E tem relâmpagos até.

E tem relâmpagos, então,


Com as projeções de luz que põem nas maretas
Espelhos de esmeralda, em múltiplas facetas,
Refletindo no verde o azul da imensidão.
Aljofrada, a ostentar o rendado aranhol
Que a alva espuma lhe borda em delicada tela,
Cada vaga parece um dorso de sereia
Nua, a dançar, faiscando ao sol.

Sonho o mar ancestral das idades pagas,


Polizóico a embalar no líquido regaço
Monstros de escamas de ouro e barbatanas de aço:
Ictiossauros, leviatãs...

O glauco oceano lembra um caos


De onde, com a sugestão própria das maravilhas,
Surgisse, na Babel dos mastros e das quilhas,
Da floresta marinha a floresta das naus.
Perplexo de emoção, num sonho de faquir,
Cismo e cuido emergir, com os velames e os mastros,
A Atlântida, soberba, os claros alabastros
No mar sonoro a refletir...

As ondas vão e vêm, ao léu,


Levando para além, sobre os undosos flancos,
As velas virginais como pássaros brancos…
- Velas brancas no mar, asas níveas no céu!

Os pavilhões da Fé e as bandeiras da Paz,


Que a civilização erigiu nos seus marcos,
Vem-me à idéia, ao fitar os navios e os barcos
Que a onda mansa conduz e a onda brava nos traz.

E enquanto, ó mar, fluis e refluis,


Eu cismo na ambição que errou sobre essas ondas:
Encantadas Ofirs, misteriosas Golcondas!...
E alho as ondas fatais, ondas verdes e azuis...

Sigo as velas que vão, como lenços de adeus


No horizonte, a acenar sobre o tartáreo abismo,
- Caminho da conquista aberto ao humano egoísmo…
E o mar canta e sorri, na inconsciência de um deus!

SOL NA FLORESTA

Nesta manhã clara, estival,


A etérea vastidão azul do espaço ambiente
Torna-se ao meu olhar límpida e transparente,
Como se fosse de cristal.

Tudo palpita e esplende à áurea ascensão do sol


Que, do levante ao poente, o céu todo ilumina
Na apoteose do sol, entreabrindo as cortinas
Dos nimbos róseos do arrebol.

A luz solar, com o seu calor


Levado por um raio através de uma fresta,
Vai acordar no seio escuro da floresta
A ânsia da vida pelo amor.
E as boas árvores, então,
A esse beijo de luz que as anima e arrebata,
Estremecem de amor no coração da mata,
Como se os vegetais tivessem coração.

Tudo desperta para amar:


Árvores maternais que dão fruto e dão sombra,
Arbustos e cipós, musgo e relva da alfombra;
E a mata virgem lembra o mar...

Um mar que já se afez aos próprios temporais,


Verde, de ondas em flor, é o que nos traz a imagem
Da selva, à oscilação constante da folhagem,
Na confusão dos vegetais.

À luz do sol, a alma pagã


Da floresta ama e sente; e a esse amor impoluto,
Tremem na flórea fronde, a folha, a flor e o fruto,
Ao fresco orvalho da manhã.

Em cada umbroso gonfalão,


Onde o orvalho cintila em pérolas, em bolhas
De luz, o sol empresta ao côncavo das folhas
Áureas fulgurações de penas de pavão.

Árvores velhas, troncos nus,


Tudo novas feições e novas formas toma:
A luz tenta ser cor, a cor quer ser aroma
E o aroma anseia por ser luz.

Tudo se transfigura, ante a glória do Azul;


Em tudo há vibrações, carícias e rumores,
Desde a árvore a vergar de frutos e de flores
Aos glaucos limos do paul.

Para a floresta o sol é o amor,


Que em beijos tropicais lhe dá novos aspectos,
Enchendo-a de canções com os pássaros e insetos,
Tontos ao fúlgido esplendor...

É assim que tudo quer amar


E em anseios sensuais, desejos e carinhos
Noivam os vegetais e os pássaros nos ninhos…
E há beijos na floresta e ruflos de asas no ar…!
Na alma feliz de cada ser,
Nesta elisia manhã, luminosa e garrida,
A luz do sol desperta a alegria da vida.
- Que dia bom para eu morrer!

LUAR NAS MONTANHAS


Que sugestões, à luz do luar,
Ao espírito me vêm, diante dessas montanhas
Soberbas, colossals, majestosas, estranhas,
Num sonho ascensional que me deslumbra o olhar!

Surgem-me por encanto idéias e emoções


Ao ver, dentro da noite estática e tranquila,
A mole secular de ferro, pedra e argila,
Em meio às sombras e clarões.

Tenho a vertigem de quem vê,


Prolongando a visão, em larga perspectiva,
Serranias azuis, em linhas sucessivas,
Imóveis como estão, movendo-se, por quê?

Porque tudo que é grande a luz torna maior:


Vem da luz a ilusão de força e movimento
Desses monstros de grés, sustendo o firmamento
Vasto, suspenso em derredor...

Altos e abruptos alcantis,


Distendendo e alargando ao longe o rijo dorso,
Curvarem-se parece em coletivo esforço,
Como para amparar o céu sobre a cerviz.

Gigantes minerais, ciclópicos heróis,


Lembram o Atlante a erguer nos ombros de granito:
Não a Terra, o orbe enfim, mas o próprio infinito
Cheio de mundos e de sóis.

Na sua eterna solidez


Maciça, multiforme e onímoda, esses montes,
Dominando a planície e olhando os horizontes,
A conquista do Azul tentam fazer, talvez.
Superpostos assim, têm a audácia revel
Da terra a avassalar de assalto, em sobressalto.
O alto, em torres de pó, de sílex e basalto,
Na confusão de outra Babel.

Da luz ao múltiplo esplendor,


Dão-nos a imagem fiel de templos e de altares,
Para o culto pagão dos Deuses tutelares,
Seja o Olimpo ou o Sinai, o Parnaso ou o Tabor.

Sagradas construções, igrejas naturais,


Os píncaros alçando em agulhas, em ogiva…
Nasceu delas, quem sabe, a ideia primitiva
Para as primeiras catedrais!

Blocos brutais, brutos calhaus,


Num ângulo de escarpa, ou curva de talude,
Aumentam-lhes ainda a excelsa magnitude,
Formando capitéis, colunas e degraus.

As montanhas ao luar são perpétuos troféus


Que a Natureza erige à sua eternidade;
Nessa concentração, nessa imobilidade,
São as cariátides dos céus!

Varando o espaço, ei-las de pé,


A fronte acompanhando a eclítica dos astros,
Rolem-lhe sobre o dorso os séculos de rastros,
- Monumentos de Deus, fortalezas da fé!

LUA NO MAR

Sós - eu, a noite, a lua, o mar...


Dentro da solidão desta praia erma e calma,
Descerro para a cisma os olhos da minha alma.
- É assim que eu gosto de cismar.

Olhos perdidos na amplidão,


Cismo, espraiando o olhar ao longe, até a curva
Onde com o céu o mar se confunde e se turva
Quase o sentido da visão.
A lua cheia nos confins
Do mar, do mar subindo ao amplo céu de cobalto,
Lembra a taça do rei de Tule, erguida ao alto
Por tritões, ninfas e delfins...

Numa ascenção lenta e parcial,


Surgindo, vai deixando, em fúlgido rastilho,
Móveis cintilações de esmeralda e vidrilho
Por sobre o líquido cristal.

A leste, a oeste, ao norte, ao sul,


No mar como na praia, em todo espaço ambiente,
Ao luar toma um fulgor de luz opalescente
A concha côncava do Azul.

A Natureza toda, com


O influxo que lhe vem da luz diáfana e pura,
Sonha, enlevada ao luar, ao luar se transfigura,
E a luz é cor, perfume, som…

A areia fulva esplende à luz


Lunar; parece, então, que os cômoros se movem,
E a praia é um corpo alvo e sensual de mulher jovem,
Nua, empinando os seios nus.

Tremeluzindo, ondas em flor


Beijam a duna clara, onde se quebram, umas
Após outras, febris, peroladas de espumas,
Em beijos lúbricos de amor.

Ondas que vão e ondas que vem,


Verdes, bravas, chofrando em róridos marulhos,
Num confuso rumor de soluços e arrulhos,
Vão se espraiar ali, além...

E eu, recebendo esta emoção,


Reflito: onde haverá mais amor, mais luxúria:
- Na onda que lambe a praia, ou na praia, que em fúria,
Bebe a onda com sofreguidão?

Quedo-me absorto, ouvindo a voz


Do mar, em vibrações mais vivas, quando afaga
E vence o vento a vaga e, voluptuosa, a vaga
Vibra, volúvel e veloz...
E mais me engolfo em cisma, pois
Tento saber quem tem mais gozo e sentimento:
A volúpia da vaga? A vertigem do vento?
O vento? O mar? Qual deles dois?

Assim, cismando, eu vou com o olhar


Bebendo a luz do luar, que se infiltra em minh'alma.
É o êxtase da luz o luar na praia calma.
A luz da lua sobre o mar…

RITMOS DA VIDA

A VENTANIA

Em altos brados desvairados,


Passam os ventos nos descampados,
Às avalanches, em turbilhão,
Imprecando, clamando, depredando,
Num coro formidando,
Pela amplidão.

Passam os ventos, rugindo


Na noite longa, pelo espaço Infindo,
Como um rumor desolador
De uivos e gritos, tumultuárias vozes
De homens selvagens e animais ferozes,
Desesperados de fome e dor.

Dentro da treva,
Os ventos passam como uma leva
Raivosa, ríspida, revel,
De vagabundos, réprobos e párias,
No bárbaro furor das brutas alimárias,
Em temerário, túrbido tropel.

Em finos guinchos e longos roncos,


Retorcendo os ramos, abalando os troncos,
Frios, cortantes como punhais,
Passam os ventos, pelos caminhos,
Levando as folhas, levando os ninhos,
No dorso alado dos vendavais…
Como o concerto wagneriano
Das tempestades sobre o alto oceano.
Passam os ventos sem parar,
evocando as Valquírias invencíveis,
Nos seus claros corcéis soberbos e invisíveis,
Demandando as nuvens, galopando no ar...

A cavalgada,
Em disparada desenfreada,
Soltas as rédeas, não se detém;
Seguem os ventos nos seus cavalos,
Galgando montes, transpondo valos,
Correndo aqui, voando além....

A toda a brida, em atropelo,


Nos seus ginetes de névoa e gelo,
Passam os ventos de norte a sul,
Vertiginosos, velozes, vários,
Como os Centauros legendários,
Pela esplanada do infinito azul.

Pelos espaços brumais, nevoentos,


Nos seus murzelos, passam os ventos;
Passam sem rota, sem rumo, ao léu,
Pelos ares, com a chuva na garupa,
A despenhar-se em catadupa
Do plúmbeo céu.

Ganindo e uivando, farejando as trilhas,


Passam os ventos, como matilhas
De cães famintos e lobos vis,
Pelo silêncio das horas mortas
Assaltando os campos, abalando portas,
Forçando os ferros dos gradis.

Varando os ares, em largos rasgos,


Como demônios, duendes e trasgos,
Na turbamulta dos gênios maus,
Os ventos rugem, surgindo do ermo
Da noite lúgubre e sem termo,
Como de um caos.

Erram na sombra aparições espúrias,


Como abantesmas, avejões e fúrias,
Que a própria morte amaldiçoe;
E, à ventania, a noite me sugere,
Fantasmas infernais de Dante Alighieri,
Visões sinistras de Edgar Poe.

As árvores, aos ventos ululantes,


Lembram espectros de gigantes,
Bracejando no ar, em contorções de dor,
Troncos inclinados, galhos retorcidos,
Aos ruídos dos ventos desabridos,
No seu delírio devastador.

Na convulsão dos ramos recurvados,


As árvores, aos ventos desvairados,
Dão-me a fantástica impressão
De almas batidas ao desatino
Dos quatro ventos do Destino,
Lutando em vão, sofrendo em vão…

A NÉVOA

Por estes dias de chuva e vento,


Por estes dias de tédio e frio,
A névoa tece, fio a fio,
E vaporoso véu sombrio
A névoa lenta estende o lento
No ar sonolento...

A névoa torna todo o espaço


Lívido e baço
Como um espelho velho e poeirento,
Onde as imagens, traço a traço,
Fosse apagando, lento e lento,
O esquecimento.

Tênue vapor da água das fontes,


Difuso a errar no éter sedento,
A névoa, em seu panejamento,
Empana os largos horizontes
E embuça os píncaros dos montes
Com o seu brumoso burel cinzento.
A névoa espalha, lento e lento,
Dando a ilusão de afastamento,
Nos altos cimos das colinas,
Longe, perdidos no azul nevoento,
A gaze etérea das neblinas
Fluidas e finas...

Tornando tudo mais distante


Través o ambiente fumarento,
Vaga no vácuo vacilante,
Leve, tangida pelo vento.
Sem direção sem intento,
A névoa errante.

A névoa esparsa
Que, lento e lento,
Aqui se adensa, ali se esgarça,
Dá à paisagem sem movimento
O estranho aspecto pardacento
De indeciso bordado em talagarça.

Há um sentimento
Evocativo de vida extinta
Sob a azulada meia-tinta
Em que se vai, em dúbio delineamento,
Esboçando com a luz, o desenho alvacento
Da cidade indistinta...

Emanação que a terra exala


Do úmido solo lutulento,
A névoa, a um tempo densa e rala,
Vaporizando-se, lento e lento,
Põe tons de chumbo na linda opala
Do firmamento.

A névoa que erra,


Álgida e fluida, pelo ar friorento,
É o hálito quente da própria terra,
Que, em prol da vida, no ar e no vento,
Aspira o alento
Tonificante que o espaço encerra.

A névoa escura, que se avoluma,


Lembra uma monja em recolhimento,
Triste, silente, velada em bruma,
Que, lento e lento,
Toda vestida de cinza e espuma,
Se alasse em busca de outro convento.

A névoa densa,
Aeriforme no céu suspensa,
Velando as cousas a um só momento,
Turvando as formas no próprio acento,
Parece, às vezes, que sonha e pensa
Num instintivo pressentimento…

Fluido elemento
Eterizado, com certeza
A névoa é o sonho da Natureza
Que, entre nuvens de incenso, o pensamento
Eleva, numa prece de incerteza,
Ao firmamento.

A névoa cisma no triste advento


Do torvo inverno, ríspido e frio,
Enquanto tece, fio a fio,
Enquanto estende, lento e lento,
O vaporoso véu sombrio
No ar sonolento…

A CHUVA

Turva-se o céu, toldam-se os ares,


O tempo muda de repente,
E em longos fios perpendiculares,
Caindo a chuva copiosamente.
Tomba em torrente.
Torrencialmente.

Fluido vapor que se condensa


Em nuvem densa no Azul suspensa
E à terra torna novamente,
Eis a chuva monótona e insistente.
A chuva intensa,
A tombar sobre a terra intensamente.
Ei-la, tombando com ruidoso afinco
Dos altos tetos de telha e zinco,
A gotejar, ininterruptamente,
Em cada vão, em cada vinco,
A água cadente,
Cadenciadamente…

Em pingos fortes e pesados,


Tamborilando sobre os telhados,
Ei-la, a cair continuamente,
Lenta e paciente,
Dos plúmbeos nimbos encharcados
Que encobrem todo céu circunjacente.

Cai a chuva contínua nas colinas,


Tecendo a ténue tela transparente
De névoas e neblinas,
Que a Natureza estende, extensamente.
Com as invisíveis mãos divinas
Pelo ambiente.

Ei-la, a chuva a correr, constantemente,


Entre o torpor frio e dormente
De um dia lívido e cinzento,
Cheio de névoa, cheio de vento,
Caindo em catadupa ou lento e lento,
Impertinente, interminavelmente.

Tomando toda a perspectiva,


Cai, sem cessar, a chuva sucessiva,
Alternativamente;
E invade os campos na expansão da enchente,
A orgulhar-se da origem primitiva
Na água corrente.

Tomba, tenaz e persistente,


Sulcando o solo, transbordando o rio;
E, gota a gota, fio a fio,
Amanha a terra produtivamente,
Com as suas finas lâminas de frio
Imanente.

É a chuva flébil e fecunda,


Vinda do céu, da terra oriunda,
Que o húmus a umedecer profundamente,
Saciando a sede ao chão que aduba e inunda,
Vai despertar, genésica, a semente
Na sua vida latente.

Benção de Deus, esparsa fluidamente


Pelo infinito, a chuva desce,
Ungindo as cousas para o bem da gente;
E a própria Natureza nos parece,
Velada em bruma, recolhida em prece
Ante o céu compassivo e complacente.

E a crebra chuva que o céu derrama


Como é, às vezes, inclemente,
Para os que vão na vida contingente,
Nessa miséria que comove e infama.
Varando a névoa, batendo a lama,
Lamentavelmente.

Ah! como a chuva benfazeja e boa,


Que em barulhentas bátegas reboa
Pelos telhados, tumultuariamente,
Crava frios punhais na alma pungente
Dos que, sem teto, vagam à toa,
Desnorteadamente, desgraçadamente...

Plúmbeo pranto pluvial, prolongado e plangente,


Em longas linhas perpendiculares,
Tomba a chuva dos ares,
Longitudinalmente,
Num ritmo dolente
E indolente…

O REDEMOINHO

No espiralado movimento,
Vário, voltivolo e violento
Das correntezas do ar, ao torvelinho
De um pé-de-vento,
Em círculos contínuos no caminho.
Remoinha o redemoinho.
De repente
O redemoinho rápido, revolto
E desenvolto, volteia, envolto
No vórtice envolvente
Do pó que sobe sacudido, solto
No aéreo ambiente.

Roçando a relva, revolvendo a areia,


O redemoinho repentina
Revoluteia,
A debater-se em desatino
Nas volutas do vento que o rodeia,
Desviando-lhe o dinâmico destino.

O redemoinho rodopia
Na confusão das curvas, de carreira,
À revelia
Vertiginosa da ventania,
Túrbido e ténue todavia,
Erguendo ao espaço turbilhões de poeira.

Ondas de pó leva de rojo,


Nuvens de poeira eleva aos ares,
No arrebatado arrojo
Das e voltas circulares,
Em torno do seu bojo,
O redemoinho em todos os lugares.

O redemoinho impetuoso,
Pelos caminhos, pelas veredas,
Agita as folhas em repouso
Sonhando à sombra das alamedas,
Num voluptuoso
Rumor de abraços machucando sedas.

A um sopro súbito e fortuito,


Carrega as folhas, sem intuito
E sem motivo,
O redemoinho coletivo,
Tempestuoso e intempestivo,
Circunvagando em célere circuito...
Corre convulso
O redemoinho alvoroçado e avulso;
E as folhas secas das estradas
- Borboletas fantásticas - aladas
Voam, redemoinhando ao seu impulso,
Desordenadas...

Vento veloz e vacilante,


Na ânsia incontida
Da corrida,
O redemoinho errante
Parece dar, a cada instante,
Às cousas mortas a ilusão da vida.

Erга,
Leve e ligeiro,
O redemoinho que se desterra,
Levando, como um sonho passageiro,
Em nómade nevoeiro,
O pó que volta ao pó da terra.

Em murmurosa melopéia,
O redemoinho traz à idéia
Uma coréia
De ventos leves, rodando em rondas,
Rolando em ondas
Redondas…

E de surpresa,
Torvo em tumulto,
O redemoinho, tomando vulto,
Parece, às vezes, trazer oculto,
No fluido aéreo da correnteza
O próprio ritmo da Natureza.

É o movimento,
No torvelinho
Vário e violento,
Da força mágica do vento,
Correndo em curvas no caminho,
Em remoinho, o redemoinho…
IMAGENS DA NATUREZA

A ENCHENTE

Arrojam-se da serra
Nos despenhadeiros
Turvos aguaceiros,
Sob o céu sombrio,
Alagando a terra,
Rumo às ribanceiras, represando o rio...

As águas crescem de repente,


Avolumadas pela enchente.

Caudaloso,
Rumuroso,
Sem repouso,
Rolando as águas
Se arrasta o rio, ralando o peito
Nas areias e seixos do seu leito,
Talvez num desabafo insatisfeito
De incontidas paixões e recônditas mágoas...

Rugindo o rio repentinamente


Avulta, inchando, na expansão da enchente.

E ei-lo a correr, as margens distendendo


De quando em quando,
No seu contínuo e célere percurso,
Num conflito tremendo,
O solo a solapar, como querendo
Desviar o próprio curso,
Transbordando,
Inundando,
Avassalando…

A impetuosa corrente
Vai aumentando, evolutivamente,
Ao influxo da enchente.

O rio investe sobre os barrancos,


Atirando-se em rápidos arrancos;
Invadindo os campos, rumo da planície,
Vai de rojo, elevando o móbil dorso,
Arrancando e levando, sem esforço,
Tudo que encontra à sua superfície.

Tudo que em seu caminho se apresente


Segue, a bolar, no turbilhão da enchente.

Troncos e raízes, ramos, arvoredos,


Conduz, flutuando à flor da correnteza,
Na espumarenta esteira dos balsedos,
Quando passa, entre as verdes arcarias
Das árvores sombrias,
Rasgando o seio da Natureza.

Majestoso exulta, quando um afluente


Vem lhe dar o sangue, reforçando a enchente.

Então, o líquido colosso


Que era, a seu turno,
Forte, valoroso, corpulento e grosso,
Desaba, em desvairado paroxismo,
Rebentando em cachões de pedrouço em pedrouço,
A regougar, cavo e soturno,
Na garganta de pedra de um abismo.

E resvalando convulsamente,
Vence o tumulto da torrente,
Empinando os flancos, no vigor da enchente.

Nada o detém; é em vão que se opõem embaraços


Ao rio largo, profundo e chelo
Que, robusto, arrogante e soberano,
Aos eflúvios da enchente, alarga o seio,
Abre novos braços aos seus fluidos braços,
Antes se lançar sobre os braços do oceano.

Parece, entanto, que o rio sente


Uma oculta aflição a pungi-lo atrozmente,
Través o falso orgulho acachoado da enchente.

É por isso, talvez, que, num soluço amargo,


Num desespero trágico, procura,
Para se libertar dos seus tormentos,
Lançá-los sobre a terra em impetos violentos,
Até desafogar a sua desventura,
Afogando-a no seio do mar largo.

Que tortura inclemente


A que sofre o rio na emoção da enchente!

Troncos e raízes,
Ramos e arvoredos, Ilhas e balsedos,
A mercê da correnteza,
Vão ouvindo às águas, no tropel bravio,
Todos os mistérios, todos os segredos
Que a morte diz à vida e a vida a Natureza
Nos ritmos que há na voz profética do rio...

E o acento emocional, grandíloquo, eloquente


Da alma do rio vem ecoar na alma da gente.
Tumultuariamente, impetuosamente,
No horríssono rumor das águas pela enchente…

A QUEIMADA
Uma espira
De fumo
No ar gira
Sem rumo...

Essa mancha azulada


É sinal de queimada.

E o cinéreo troféu
Do fogo, ao sabor do vento,
Vai subindo, leve e lento.
Tisnando a seda do céu.

A fumaça, que se ergue, indolente e ondulada,


Mostra ao longe o roteiro da queimada.

Paira no ambiente morno,


Asfixiando, um letargico mormaço;
E em torno,
Curvo, lavado em luz, reverberando, o espaço
Dá-me a viva impressão de uma abobada de aço,
Sob a temperatura cálida de um forno.
A atmosfera carregada
É o prenúncio da queimada.

Esfuma-se a paisagem…
E pelos campos se manifesta
De súbito um rubor no verde da folhagem,
Que agosto amarelece e a canícula cresta,
Como se, na explosão da ignívoma voragem,
Rebentasse um vulcão no seio da floresta.

Entre densa fumarada,


Irrompe, numa insania desvairada,
A queimada.

Pulam as chamas,
Num repuxo de cores,
Como línguas, como serpes, como flamas,
Fulvas, rubras, azuis, lambendo as ramas
Das árvores que, em bruscos estertores,
Se despojam de folhas e de flores.

A floresta, alarmada,
Vai sucumbindo, torturada,
Na inquisição selvagem da queimada.

E em seu furor, a bárbara fornalha,


Incinerando plantas seculares,
Espalha
E atira pelos ares
Torvelinhos de cinza e fragmentos de palha.

Em holocausto elevada,
A alma da selva ascende aos céus, em cada
Folha que ao vento arroja a fúria da queimada.

O braseiro violento
Crepita, a arder, sem intervalos,
Como para agravar o sofrimento
Da floresta que, em intimos abalos,
Tenta em vão traduzir o seu tormento
Em estrondos, estrépitos e estralos...

Em vão! que nada


Aplaca a sanha da queimada.
Arde
A insidiosa frágua
Que sobre a terra ateou a mão do homem covarde.
Sucumbe a mata... E então, muda de espanto e mágoa,
A Natureza, a orar na unção triste da tarde,
Como que tem os olhos rasos d'água…

Desolada,
Estática e calada,
Chora sobre os escombros da queimada.

Nada a conforta,
Pois do seu verde templo nada resta!
Em místico silêncio, em vão exorta,
Que o fogo destruidor da queimada funesta!
É o Moloch da floresta!
- Como é triste, meu Deus, uma floresta morta!

Homem de alma desnaturada,


Se te é dado pensar sobre as cinzas do Nada,
Orvalha com teu pranto as cinzas da queimada!

A DERRUBADA

Reboa o machado,
No seio umbroso da floresta,
Num assíduo fragor monótono, vibrado
Pela força brutal do homem rústico e bronco;
E, pancada a pancada, a lâmina funesta
Golpeia o rijo tronco
De uma árvore copada.

É a derrubada!

A árvore, de alto a baixo, estremece e farfalha


A cimeira pletórica, por onde
Ascende a selva e a circular, de fronde em fronde,
Pela folhagem víride se espalha,
Como se a cada golpe, a cada corte,
Em contorções, em ríspido arrepio,
Sentisse o calefrio
Invencível da morte.
A árvore treme, a cada
Violenta cutilada
Que, ferindo-a, desfere a derrubada.

Abandonam-lhe os ramos seculares,


Festonados de frutos e de flores,
- Verde arcádia dos pássaros cantores,
As aves e os insetos
Que, assustados e inquietos,
Em debandada, fogem pelos ares.

E como é triste ver a árvore abandonada


Seguindo a tribo fugitiva e alada,
Espavorida pela derrubada!

Aos rudes golpes, aos fundos talhos


Que lhe abre, em lascas, no duro lenho,
Ferindo largo, cortando cerce,
Decepando as hastes, mutilando os galhos.
O aço rompendo as fibras e os tecidos
A esse herói vegetal cheio de cicatrizes,
Arranca-lhe à cortiça um rangido rouquenho
- Um gemido maior que os humanos gemidos...

E a árvore estala, verga, as ramadas derreia


E, aluída no sólido alicerce
Das profundas raízes,
Baqueia...

Tomba cortada,
Desarvorada
Aos embates da derrubada.

Morre...
E o homem que, sem piedade, a desmorona,
Certo não vê no caule o sangue que lhe escorre
Em resina aromal sobre a nodosa tona
Da planta maternal, que produzira outrora
Flores para adornar a cabeça de Flora
E frutos para encher o colo de Pomona.
O machado reboa... E pancada a pancada,
Prossegue, mata adentro, a derrubada.
Nos ímpetos selvagens
Da sua faina bárbara e nefasta,
O destruidor devasta
Os arbustos do campo, os altos arvoredos,
Extinguindo com o exício das folhagens
Os aspectos, encantos e segredos
Do doce bucolismo das paisagens.

E eis em pouco amontoada


A selva sobre o chão, na derrubada.

Rasgam-se clareiras
Na cerrada espessura
Da mata, agora exposta aos inclementes
Rigores das soalheiras,
Enquanto sob a verdura
Enganosa da alfombra
Os mananciais circunjacentes
Vão-se esgotando, à míngua da frescura
Benéfica da sombra…
E vão secando fontes e correntes…
Vão-se exaurindo os veios transparentes
Da água límpida e pura.

Quem sabe a linfa tímida; assustada,


Se esconde da derrubada!

Sucumbe a flora de desconforto


E a fauna foge espavorida,
Ante o infortúnio, ante a tristeza,
Ante a desolação da floresta abatida,
Horto
Onde ninfas em pranto, onde faunos em prece
E lastimosas dríades parece
Dizerem para os céus, num grande apelo à
Vida,
Pela unânime voz da Natureza:
- "Pã, nosso Deus, é morto!"

E a mater-Natureza, amargurada,
Dos espaços chora sobre a derrubada..
Cai a chuva fecundante...
E a terra adusta, calcinada,
Torna-se, por encanto, verdejante:
Os troncos brotam, reverdecem; tudo
Germina em festões verdes de esperança,
Como para mostrar ao homem bárbaro e rudo,
Em cada broto, em cada folha, em cada frança
Que, como Deus, ressurge a floresta sagrada!

É o protesto da Vida renovada


Contra a derrubada!
POEMAS DA FLORA

AS ÁRVORES

Contemplando essas árvores, no infindo


Sentimento de vida em que se inflamam,
Penso que também sentem, também amam,
Quando vão florescendo e produzindo.

Amam durante o inverno, apenas agem


As forças germinais da natureza,
Nessa expansão de vida e de beleza,
Que é o viço verde e fresco da folhagem.

Cai a chuva do céu, desfeita em bolhas;


Dá vida aos brotos novos, que sucedem,
Como ilusões, nas árvores que pedem
As esperanças das primeiras folhas.

Na alegria do tempo e dos amores,


A primavera chega; e, à sua bênção,
Quanta emoção nas árvores que pensam
Na graça policrômica das flores!

Aos afagos da luz, os ramos bolem;


E, em cada flóreo ramo que se agita,
Um cálice de flor treme e palpita,
Ao contacto genésico do pólen.

Chega o verão... Ao sol radiante e louro,


Com os ardentes desejos que as afligem,
Sentem no selo a maternal vertigem
De as flores transformar em frutos de ouro.

Botões virgens ou bulbos impolutos,


Flores a despontar ou que despontem,
As flores de hoje, como os botões de ontem,
Sonham, talvez, com o amanhã dos frutos.

Mas vem o outono; e o vento e o sol se incumbem


De despi-las das folhas, lentamente…
E abrindo os braços para o céu ardente,
Pedindo amor, as árvores sucumbem.
Quando elas ao infinito se socorrem,
Por que seus pobres ramos não enviúvem,
Tenho um desejo absurdo de ser nuvem,
Para dar vida às árvores que morrem!

SUB TEGMINE
I
A sombra tutelar destas árvores, nesta
Estância verde e calma, eu vim buscar mais vida
Com que rejuvenesça a vida que me resta:
- Sarar o corpo doente e a alma desiludida.

Natureza! Sê tu a minha Margarida!


Dá que eu sorva num hausto a alma virgem de Vesta,
Que se evola de ti, que vive difundida
No seio maternal e augusto da floresta.

Boas árvores, sois para o meu ser exausto


A razão de viver, a alegria, a saúde....
Braços de Margarida, abraçai vosso Fausto!

E assim, serei feliz, perto da Natureza,


Amando, em sua eterna e flórea juventude,
A vida, na expansão do amor e da beleza.
II
Árvores! junto a vós como esta vida é boa!
Como é calma e feliz no seu simples aspecto,
Para quem vai buscar num seio mais discreto
A paz que lhe faltou e os ramos vos povoa!

Se o homem vos bendiz, tudo vos abençoa,


A vós, que sois o berço, o leito, a mesa, o teto…
Desde o verme rasteiro ao volátil inseto,
Da ave implume no ninho do pássaro que voa...

Ah! soubesse quem sois e de alma enternecida


Não vos cortara,não, o homem rústico e bruto:
- Poupando-vos, poupara a alegria da vida!

Não vos magoara, enfim, nesse sonho impoluto


Em que a mãe-Natureza a viver nos convida,
- Um riso em cada flor, um beijo em cada fruto!
A PALMEIRA

Oh! o orgulho sem par da palmeira taful,


Na soberba altivez do seu talhe elegante,
A mover, como um leque, a folhagem flutuante,
As carícias do Norte e aos afagos do Sul!...

As raízes sugando a seiva do paul,


Como que traz consigo o desejo triunfante
De dominar o céu tão alto, tão distante....
E o sonho rebenta em palmas pelo Azul...

Verdes flabelos no ar, alta, esbelta e virente,


Dá a impressão de possuir o soberano ideal
De crescer e subir indefinidamente...

Entre os beijos de luz deste sol tropical,


A palmeira taful que vaidade não sente
No lígneo coração de mulher vegetal!

O IPÊ

- Ouro em flor! flores de ouro! áureas flores de mel!


Quem já viu ouro em flor? E o alegre enxame louro
De abelhas, a esvoaçar em torno às flores de ouro, l
Voa e revoa no ar, numa ronda revel...

Flores de ouro! Ouro em flor! Gênio leve de Ariel,


Aéreo no aéreo azul, vem presidir o coro
Das canções do perfume ao vegetal tesouro,
Que ostenta, à luz do sol, o áureo e flóreo dossel!

No sopé da montanha, altivo e soberano,


Ei-lo, o dourado ipê, como um rei oriental,
Abrindo o seu tesouro à luz, glorioso e ufano...

Ei-lo, orgulhoso assim, como quem, afinal,


Vem à vida mostrar, florindo de ano em ano,
A áurea riqueza em flor do reino vegetal.
A ARAUCÁRIA

Nostálgica e solene, ufana e solitária,


As raízes na terra, a verde palma no ar,
No vasto descampado, é de ver-se a araucária
A torre vegetal dos ramos a elevar...

Sonha, talvez, possuir a ventura arbitrária


De haurir no éter azul, num hausto salutar,
A emanação de luz à vida necessária,
A árvore, a prumo erguida, o espaço a dominar.

Ascende para o céu, no seu sonho de glória,


Como se a própria seiva a obrigasse a crescer
Para o anseio fatal da conquista ilusória...

E nessa aspiração é de vê-la verter,


Ao ver eternizar-se uma ânsia transitória,
Em lágrimas de mel, a angústia do seu ser.

O FLAMBOYANT

Ao sol que a doura e abrasa, ao sol que anima e inflama


Arreia-se, aureolada, a árvore senhoril
De faustosos festões e, rubra, se recama
De flores de ouro e fogo, aberta em flores mil.

Fascinante a cimeira, ostenta, rama a rama.


O encanto natural da flor rara e gentil
De pétalas de sangue e sépalas de chama;
E, em vez de folha, a flor esplende em cada hastil.

O flamboyant florindo, o florígeno estema


Flutuante a flamejar, num rubor de arrebol,
- Pompeia, iriando à luz, a floração suprema.

E a fulgurar floresce, até perder, em prol


De outra copa mais linda, o purpúreo diadema,
Morrendo vida, em holocausto ao sol.
A PARASITA

Galgando os troncos nus das árvores avós,


Ramo a ramo a abraçar, prendendo, a parasita
Sobe ao verde copal, numa luta infinita,
Mais a mais entrançando os nervosos cipós.

Sugando o vegetal, estreita os fortes nós,


Toda a seiva a beber, numa fúria maldita;
E enlaça de alto a baixo a planta que se agita
A defender-se em vão, para vencê-la após.

E a árvore secular de tradição remota,


Que afrontara tufões, vendavais e escarcéus,
Mata, para roubar-lhe a vida que se esgota...

E aos olhares do sol e aos sorrisos dos céus,


Flores originais nos festões verdes brota,
Orgulhosa, a ostentar os seus floreos troféus.
POEMAS DA FAUNA

O CARANGUEJO

Maré rasa, depois que, em ósculos de amor,


A onda se esvai na areia em doce rumorejo,
É de ver na alva praia o tardo caranguejo,
Entre os glaucos lodões, à flor da espuma em flor.

Ora adiante, ora atrás, o andar a contrapor,


Numa vida feliz de inércia e de desejo,
Vede-o, ao sol que lhe põe, em furtivo lampejo,
Ígneas cintilações na casca furta-cor.

Ao sol, vede-o a buscar o fluido e espúmeo bojo


De uma vaga que vem, as curvas pinças no ar,
Nesse anseio de luz de quem vive de rojo...

E à onda que se desfaz, volver o oblíquo olhar


Para ali, para além, num soberano arrojo,
Como para abranger de lado a lado o mar!

O CARAMUJO

Lerda e lúrida, a lesma, a rastejar, de rojo


Sobre a rocha, ressuma uma gosma glacial
E, em lascivo langor, entra e sai de entre o bojo
De uma concha univalva em forma de espiral.

O moroso molusco, a infundir asco e nojo,


Beta o búzio bizarro, onde vive e entre o qual
Oculto se resguarda, às vezes, contra o arrojo
Da cólera do mar à ira do vendaval...

Conduz, cobrindo o corpo, a curva concha, em cujo


Côncavo, em contrações, coleia o caracol,
Pegajoso, a apegar-se ao solo salso e sujo...

Nojoso e humilde embora, ostenta, iriando ao sol,


No esmalte desse estranho escudo, o caramujo,
Em fina porcelana, os prismas do arrebol.
A LAGARTIXA

A um só tempo indolente e inquieta, a lagartixa,


Uma réstia de sol buscando a que se aqueça,
À carícia da luz toda estremece e espicha
O pescoço, empinando a indecisa cabeça.

Ei-la, aquecendo ao sol; mas de repente a bicha


Desatina a correr, sem que a rumo obedeça,
Rápida, num rumor de folha que cochicha
Ao vento, pelo chão, numa floresta espessa.

Traça uma reta, e pára; e a cabeça abalando,


Olha aqui, olha ali; corre de novo em frente
E, outra vez, pára, a erguer a cabeça, espreitando...

Mal um inseto vê, detém-se de repente,


Traiçoeira e sutil, os insetos caçando,
A bater, satisfeita, a papada pendente…

O SAPO

Feio e fátuo a fingir de grande, gordo e guapo;


Hediondo e humilde a inchar de empáfia e ocioso orgulho,
Viscoso de vaidade, entronado no entulho,
Cisma na solidão, sorno e soturno, o sapo.

Os bugalhos em brasa, a palpitar o papo,


Acocorado, absorto, ao mínimo barulho
Que o sossego lhe suste, em súbito mergulho
Se atasca no atascal; e ei-lo escondido e escapo.

Patriarca do paul, pelo pântano parco


De água, a arfar e a imergir no lodo liso e imundo,
O batráquio bubuia, o corpo curvo em arco...

E sobe à superfície o rei das rãs, rotundo,


Glabro e inchado, a coaxar no lamaçal do charco,
Como o ser mais soberbo e singular do mundo.
A COBRA

Certo ninguém prevê, nem ao menos suspeita,


Mas esse tronco anoso, ulcerado de galhas,
De alguma árvore umbrosa, outrora ao bem afeita,
Hoje, abrigo do mal, uma cobra agasalha.

Ninguém supõe talvez que, além da fenda estreita


Que a cortiça apresenta, o roaz cupim trabalha,
Formando a escura toca, onde se oculta à espreita
A cauta cascavel, que os crótalos chocalha...

É um velho esconderijo, a serpe ali se acoita


E só sai quando o sol, no alto, abrasando, brilha;
E indolente, ao calor, busca a primeira moita...

Adormece... Modorra... E a um susto, entre a serrilha


Dos dentes salta a língua; acorda e, ágil e afoita,
De arremesso se enrosca em rápida rodilha.

O MORCEGO

Como uma borboleta escura e desconforme,


Suspenso pelos pés com o instintivo emprego
Das garras que o sustém, o mórbido morcego,
Tonto de sono e luz, durante o dia dorme.

Dorme durante o dia; e à noite, ei-lo, conforme


É costume, senhor do pávido sossego,
Abrindo o membranoso e elástico refego
Das asas que lhe dão um todo demiforme.

Rasgando, em largo voo, a treva ampla e uniforme,


O noturno avejão guincha em desassossego,
A pupila incendida a arder na noite enorme.

E é de ver-se, depois, em lânguido aconchego,


As asas a abanar sobre o animal que dorme,
O sanguinário egoísmo em forma de morcego.
A ARANHA

Num angulo do teto, ágil e astuta, a aranha,


Sobre invisivel tear tecendo a ténue tela,
Arma o artístico ardil em que as moscas apanha
E, Insidiosa e sutil, os insetos enleia.

Faz do fluido que flui das entranhas a estranha


E fina trama ideal de seda que a rodeia
E, alargando o aranhol, os elos emaranha
Do alvo disco nupcial, que a luz do sol prateia.

Em flóculos de espuma urde, borda e desenha


O arabesco fatal, onde os palpos apóia
E, tenaz, a caçar os insetos se empenha.

Vive, mata e produz, nessa faina enfadonha;


E, o fascinante olhar a arder como uma jóia,
Morre na própria tela, onde trabalha e sonha.

O BESOURO

Aos giros e vaivéns turbilhonando e em tudo,


Como um gênio sutil, num prenúncio de agouro,
Volúvel a tocar, sem se deter contudo,
Zumbe, zunindo no ar... É um inseto: o besouro.

Ageis asas de gaze e dorso de veludo,


Ei-lo negro a luzir, catassolado de ouro,
Sob a corcha que traz, como armadura e escudo,
E é-lhe o arnês natural, constante e duradouro.

Em ronda aos roseirais, num rumoroso ronco,


Monótono a zunir, em soturno queixume,
É um bicho bem bizarro esse besouro bronco...

Zoando aos zunzuns, zangado, o seu rumo resume


E os rígidos ferrões encravando num tronco,
Roda, zonzo de sons e tonto de perfume.
A CIGARRA

De alma boêmia, a vida efêmera e bizzara


Leva alegre a cantar o áureo inseto estival
Que, sedento de seiva, a uma árvore se agarra
Até secar, cantando, unido ao vegetal.

A harpa, a lira, o arrabil, a cítara, a guitarra


Não na igualam nos sons do canto original,
Quando estridente, ao sol, zine e chia a cigarra
Pelo atrito sutil das asas de cristal.

A alma de ouro em canções o áureo inseto descerra,


Quando o éter filtra a luz no intangível crisol
Do amplo céu tropical, que ardente cinge a terra...

Canta, ingênua e feliz, de um ao outro arrebol;


E estalando ao morrer, no último canto encerra,
Em louvor do verão, o epinício do sol.

O VAGA-LUME

Fulge, de quando em vez, azúleo e iriante lume,


Fosforescente a arder na noite erma e silente;
De súbito se apaga e acende novamente,
Entre as moitas em flor, ebriantes de perfume.

Uma estrela a piscar, luzindo entre o negrume


Da treva, que do céu baixasse de repente?!...
Não! Não é, que é menor que uma estrela cadente…
Mas um astro na terra, acaso, se presume.

Eis que um ponto de luz relampeja tremente,


Aqui, ali, além e, a quando e quando, assume
Novas irradiações no espaço e em nossa mente.

Que será, afinal, esse igneo e alado nume


Que encantado, anda a errar na noite erma e silente?!...
- Um lucífero inseto, um simples vaga-lume.
MINHA TERRA

AMARANTE

A minha terra é um céu, se há um céu sobre a terra:


É um céu sob outro céu tão límpido e tão brando,
Que eterno sonho azul parece estar sonhando
Sobre o vale natal, que o seio à luz descerra...

Que encanto natural o seu aspecto encerra!


Junto à paisagem verde, a igreja branca, o bando
Das casas, que se vão, pouco a pouco, apagando
Com o nevoento perfil nostálgico da serra...

Com o seu povo feliz, que ri das próprias mágoas,


Entre os très rios, lembra uma ilha, alegre e linda,
A cidade sorrindo aos ósculos das águas.

Terra para se amar com o grande amor que eu tenho!


Terra onde tive o berço e de onde espero ainda
Sete palmos de gleba e os dois braços de um lenho!

A BALSA

Esfolha-se a manhã em rosas de ouro,


Sobre o rio caudal de águas ligeiras,
A rolar em cachões nas cachoeiras,
Onde espuma rugindo como um touro.

Os barcos, a sonhar no ancoradouro,


Velas ao sol como asas e bandeiras,
Agitam-se às canções das lavadeiras
Que, pela riba, vão cantando em coro.

E rio abaixo, sobre as águas claras,


A superfície móvel da corrente,
Desce uma tosca embarcação de varas.

É a balsa - a leve habitação flutuante,


Simples e boa, que transporta a gente
Da minha terra, no sertão distante…
A MOENDA

Na remansosa paz da rústica fazenda,


À luz quente do sol e à fria luz do luar,
Vive, como a expiar uma culpa tremenda,
O engenho de madeira a gemer e a chorar.

Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda;


E, ringindo e rangendo, a cana a triturar,
Parece que tem alma, adivinha e desvenda
A ruína, a dor, o mal que vai, talvez, causar...

Movida pelos bois tardos e sonolentos,


Geme, como a exprimir, em doridos lamentos,
Que as desgraças por vir sabe-as todas de cor.

Ai! dos teus tristes ais! Ai! moenda arrependida


- Álcool! para esquecer os tormentos da vida
E a cavar, sabe Deus, um tormento maior!

A CANTIGA

Movendo ao rude engenho a roda grande,


Cantam na lida os homens da lavoura,
Aos crebros sons da moenda rugidora,
Enquanto a vida à luz do sol se expande.

A mole férrea, sem que o peso abrande,


Gira veloz, como se próprio fora
O humano afă da força propulsora,
Que faz com que ela, assim, ande e desande...

Cantam os homens, no auge da labuta,


E a roda, sem parar, gira e mastiga
As raízes que apura à força bruta....

Cantai, homens de Deus! que essa cantiga


Vos dá novos alentos para a luta
E quem luta a cantar não tem fadiga!
O ABOIO

O sol desfaz-se em ouro nas quebradas,


Surge a lua de prata, além da serra,
Nos saudosos sertões da minha terra,
Pelo tempo feliz das vaquejadas.

À hora azul do crepúsculo, as boiadas


Vêm chegando aos magotes para a ferra,
Em correrias, num tropel de guerra,
Nuvens de pó formando nas estradas…

Mas uma rês desgarra de repente;


No cavalo fogoso e mais ligeiro
Perseguem-na a correr, inutilmente.

Ouve-se o aboio no sertão inteiro…


Volta a rés ao curral, pausadamente,
Vencida ao som do canto do vaqueiro.
DE NATURA…

NATUREZA HARMONIOSA

Pego de um búzio, levo-o aos meus ouvidos


E ponho-me a escutar, ouvido atento,
Nele os sons que murmuram confundidos
Como idéias ainda em pensamento.

Que serão esses sons indefinidos


De um vago e misterioso sentimento:
A voz da vaga, ou os cânticos do vento
Na saudade do mar reproduzidos?

Esses confusos, múrmuros rumores


Serão os ecos das canções saudosas
Dos marinheiros e dos pescadores?

Ou são vozes das ondas marulhosas,


Segredando os marítimos amores,
Remotas, abafadas, silenciosas?...

NATUREZA EMOTIVA

Que sensação tão íntima e tão viva


De volúpia, receio, ou sofrimento,
Sentirá que, ao mais leve movimento,
De súbito estremece a sensitiva!

Contrai as folhas, num retraimento


Brusco e sensível de mulher esquiva,
Ao mesmo tempo tímida e lasciva,
À comoção de um ósculo violento.

Que sensibilidade misteriosa


A impelirá, num ímpeto de susto,
A resguardar-se, trêmula e medrosa?

Existe, acaso, no pequeno arbusto,


Alma que vibre, cândida e nervosa,
Num sentimento de pudor tão justo?...
NATUREZA SOFREDORA

Desiludido ser que em vão maldizes,


Culpando a vida, as tuas vãs torturas,
Mal sabes tu que tantas desventuras
Na tua própria origem têm raízes.

Da Natureza mãe, nas suas crises


De dor, depende a sorte das criaturas;
Vêm daí as fatais selvas escuras
Do destino dos homens infelizes...

Prevendo a condição dessas desditas,


Tão natural nos homens e nos brutos,
Há nos seres revoltas infinitas.

É assim que existem córregos enxutos,


Ventres estéreis e árvores malditas,
Que não dão flores, para não dar frutos.

NATUREZA MISTERIOSA

Essa voz interior, que sempre ouvimos,


Ainda dizer não pôde o que nós somos:
Tudo o que em vão pensamos e sentimos
É a antítese talvez do que supomos.

No seio panteista de onde vimos,


Árvores - mães de flores e de pomos,
Arbustos e ervançais, musgos e limos,
Têm o mesmo poder de que dispomos.

Não logramos saber quanto sabemos:


Névoas volúveis, ilusórios fumos
São as idéias que de tudo temos.

Vindos da mesma essência, do mesmo húmus,


Vivemos de contrastes e de extremos,
Sem ter destino, por incertos rumos...
A VERTIGEM

- Aonde me levas tu, sonho ingênuo de glória?

Já no intérmino azul do páramo sidério,


Onde, no turbilhão dos astros de ouro, rolo
Na poeirada de luz da quadriga de Apolo,
Que o mundo a iluminar, de hemisfério a hemisfério,
Traça em pleno infinito a eterna trajetória,
Na vertigem do vácuo, interrogo o Mistério...

E ouço os claros clarins do carro dionísico


Vibrando, à irradiação irial do azul etéreo:
- Ao Zodíaco! Ao Zodíaco!

E ascende ao infinito céu o meu sonho de glória!

Do alto, mirando o mar no perpétuo murmúrio


De ondas, que vão e vêm, aos ímpetos de Eolo,
E em cujas ânsias vās minhas ânsias consolo,
Sondo o tártaro abismo azotado e sulfúreo,
Oculto na amplidão glauca da massa equórea,
Que abre undoso caminho à ambição de Mercúrio...

E o búzio de Tritão, harmonioso e elegíaco,


Ressoa, num rumor profético de augúrio:
- Ao Zodíaco! Ao Zodíaco!

E sobe, sobe mais, o meu sonho de glória!

As planetas do espaço, às estrelas do Empíreo,


À terra que, a rolar, gira de pólo a pólo,
Falo, sobrepairando as montanhas do solo
Como pétreos titãs forçados ao martírio
De escalar o esplendor da abóbada ilusória,
Onde fulgem o Leão, Vênus, Taurus e Sirio…

E do seio pagão da Natureza, o orgíaco


Pã, na flauta divina, açula o meu delírio:
- Ao Zodíaco! Ao Zodíaco!

E sobe, rumo ao Sol, o meu sonho de glória!


Cego de luz, ébrio de azul, veloz e vário,
Ao quadrúpede astral, de aljava a tiracolo,
Que era o pajem de Diana e hoje é arauto de Apolo;
Ao divino Quiron, que traçou meu fadário,
O meu signo fatal na vida transitória,
Consulto, ouvindo em vão o Centauro lendário…

Zinem dardos de luz no azul paradisíaco,


Ao impulso, talvez, do arco do Sagitário:
- Ao Zodíaco! Ao Zodíaco!
Continua a ascensão do meu sonho de glória!
ZODÍACO

Abro as primeiras páginas do Zodíaco, o novo poema de Da Costa e Silva, com a


mesma ansiedade com que sempre li o artista do Sangue: estou deante de uma
figura bisarra em cuja fronte sentimos ferver uma imaginação tropical. Há neste
semblan te irregular a angustia viva do desconheci do. O olhar ancioso, erguido ao
alto deixa entrever a propria febre do ideal humano, audacioso e incontivel,
rasgando céos, creando mundos novos nos horisontes infi nitos do sonho, ardendo
na sède eterna..
Entrevejo neste poeta singular pela factura nova das estrophes e pela extranheza e
fulgor inedito das imagens, um alucinado pelos aspectos varios da Nature za. É
nelles que o seu estro vibrante vae buscar sonancias e côres com que mais vi bram
e explendem estes versos magnificos.
Dilata-lhe a visão rutila o ancelo do ig norado. Attenta o ouvido aos rumores infindos
do nosso orbe, como á harmonia morta dos grandes silencios, ao longo das noites
quedas, sob á ampla clamyde das sombras, que apaga todas as formas e abafa
todos os sons... A embriaguez voluptuosa dos perfumes aguça-lhe o olfacto. Todos
os sentidos lhe vibram: a lyra emotiva de cin co cordas, estremecendo á harmonia
univer sal dos seres e das cousas, agita lhe, num phrenesi, todo o ser
hypersensivel. E o estro do artista nos transmitte todas as sensações da Natureza.
O grande amor pantheistico da vida e da terra mater irradia lhe em cas caras,
Inebriante como os aromas violentos dos sandalos e nardos, que ador mecem a
alma…
Tudo que lhe feriu a sensibilidade nos desperta a mesma emoção. E este é, todos o
sabem, o grande segredo da arte.
Uma das maiores torturas do escriptor é a expressão. Muitas vezes a idea treme no
espirito, como um murmurio longinquo. Mas a expressão lhe foge!
Em Da Costa e Silva este poder de se exprimir é surprehendente. Ha no Zodiaco
paginas que mais parecem trechos de musica na sua missão subtilissima de
reproduzir os diversos ruidos do mundo.
Assim, a primeira impressão que me dei xou este livro excepcional foi a de Stellio,
no. Fogo, de ouvido attento ao barulho assom broso da tempestade, para precisar
esse con certo sobre-humano de ventos rugidores on das em tumultos e ribombos
de trovões.
É assim que o cosmos turbilhona nestas paginas. E o poeta, alma hellenica rediviva
até nós, no seio da flora americana tira da velha frauta de Pan os louvores á terra.
Galga o cimo da montanha, na febre de ascender e, no alto descortina em conjuncto
os resplendores da terra fecunda a abrir se em flores:
Campos extensos a perder de vista,
Na doce maravilha da paisagem,
Dando a feliz e sugestiva imagem
Dos encantos da vida pantheista;

Verdes ilhas em flor que o mar afaga,


Contando os seus marítimos segredos
Na alva espuma que aflora nos rochedos
À cantiga nostálgica da vaga;

terras selvagens e cidades cultas,


creações de Deus e maravilhas do homem,
prodígios que nem mesmo as catapultas
cyclopicas dos seculos consomem;

tudo contemplo, emfim, desta eminencia


que a luz do meu espirito domina,
que eu já não sei se é humana ou se é divina
esta febre perpétua de ascendencia.

A imaginação rutilante do poeta amplia os aspectos e movimentos que lhe ferem a


visão. As florestas ao longe parecem-lhe um mar immenso de ondas verdes que
tremem á volupia do vento.
Diante do velho oceano, o eterno doi do das praias alvas, a sua imaginação
cristaliza versos duradouros. Ao seu olhar ardente em que o amor grego faisca,
cada onda é uma sereia "nua, a dançar, faiscan do ao sol." E a lua cheia, sahindo
do mar dá-lhe a visão da taça do rei de Thule, que os tristões e os delphins e as
nymphas erguem- se ao alto...
Faz-lhe meditar um instante, o murmúrio do búzio, esse escrinio mysterioso de sons
que passavam e se perderam, ao lon ge, na superfície das águas:

NATUREZA HARMONIOSA
Pego de um búzio, levo-o aos meus ouvidos
E ponho-me a escutar, ouvido atento,
Nele os sons que murmuram confundidos
Como idéias ainda em pensamento.

Que serão esses sons indefinidos


De um vago e misterioso sentimento:
A voz da vaga, ou os cânticos do vento
Na saudade do mar reproduzidos?

Esses confusos, múrmuros rumores


Serão os ecos das canções saudosas
Dos marinheiros e dos pescadores?

Ou são vozes das ondas marulhosas,


Segredando os marítimos amores,
Remotas, abafadas, silenciosas?...
E depois a alma profunda do poeta sobe mais no seu sonho de glória! Ao Zodiaco!
O mundo é estreito para o seu anceio! Ao alto, onde a pedraria astral treme,
perpetua!
E a mesma alucinação nos estremece a alma.
Na altura inatingível abaixo do turbilhão dos astros o espirito torturado, na vertigem
do vácuo interroga o mysterio...
E sobe mais…
Em baixo aparece-lhe ao olhar em que o desvario accende faiscas, o mar ondeante
e rumoroso na eterna agitação hysterica das ondas...
E sobe mais... O seu sonho de gloria eleva-o mais alto ceos acima onde, "cego de
luz, ebrio de azul", a vertigem da altura o transfigura...
E eu tive um momento, a visão do homem, em todas as epochas, pequenino e
sonhador, creatura frágil que anceia o poder de um Deus, sempre insatisfeito,
atravez os tempos e ascendendo e querendo sempre mais ascender, e tendo a toda
a hora, a esmagal-o, a opprimil-o, a desesperal-o a idea do infinito, intangivel ao
poder do olhar prescutador, mais vasto do que todos os seus sonhos...

Osorio Borba
Jornal do Recife
1917

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