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3 - Artigo - Caio Candido Ferraro - HQ e Educacao
3 - Artigo - Caio Candido Ferraro - HQ e Educacao
2013
RESUMO
O decênio da lei nº 10.639/03, que trata da obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira, representa significativa vitória para o movimento negro, talvez maior do que poderia se
imaginar quando de sua validação. No entanto, diversos estabelecimentos de ensino não aplicam a
lei ou não o fazem da maneira correta, sobretudo por falta de profissionais com formação
relacionada à temática. As histórias em quadrinhos reproduzem diversos estereótipos construídos no
decorrer dos séculos de dominação da cultura ocidental-europeia, o que representa uma rica fonte de
análise ao educador, como meio de apresentar aos educandos as origens dos nossos preconceitos e
introduzir a necessidade desta lei para a valorização do negro em nossa sociedade. Por outro lado,
observamos neste mesmo período a publicação de histórias em quadrinhos que abordam a cultura
negra como eixo central, desmistificando estereótipos e quebrando paradigmas, apontadas como
importante reflexo das políticas públicas afirmativas e, sobretudo, da luta incessante dos
movimentos sociais. Selecionamos diversas histórias em quadrinhos para exemplificar as
possibilidades de utilização em sala de aula, analisando trechos que apresentam aspectos
estereotipados no ensino básico e obras que representam a desconstrução destes mesmos aspectos
nocivos à identidade étnico-cultural de toda a população negra. A concepção de uma África única,
inteiramente selvagem, dependente e primitiva já não pode ser tolerada, especialmente nas
instituições de ensino do país.
1
Maurício de Sousa. Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição dos Escravos. São Paulo: Ed. Globo, 2003, n°
2.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
Fonte: SOUZA, M. Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição dos Escravos. São Paulo: Ed. Globo,
2003, nº2.
Entre as principais críticas à abordagem em relação aos negros e à África nos livros
didáticos nacionais está o fato de principiarem pela questão escravagista, levando o
educando a um primeiro contato pejorativo e submisso da história africana. A figura 1
retrata outra perspectiva elaborada no decorrer do século XX: “Pior ainda é o fato que
negros vendem negros!”. Fundamentalmente, o termo “negro” é uma criação externa à
África, pois não existia na região subsaariana (região africana em que os empreendimentos
escravocratas ocorreram em maior escala), sendo intrínseco à relação com os povos
europeus, asiáticos e ameríndios. O africano só se reconhece como negro nas relações
constituídas com o que lhe é distinto. Considerar que toda a população negra se vê como
uma única nação é ignorar toda a diversidade étnico-cultural do continente africano.
Outra falha é entender a escravidão como um processo exclusivo, não ressaltando as
inúmeras diferenças entre o que ocorreu na Grécia antiga, no Império Romano, na África,
na América colonizada ou até mesmo no Brasil contemporâneo. O processo de dominação
servil que existia na África, em que o cativo mantinha sua identidade e em que sua condição
não era definida pela hereditariedade, não pode ser equiparado ao modelo escravista
europeu, onde o negro era desprovido de direitos e identidade e seus descendentes nasciam
sob as mesmas condições.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
Fonte: SOUZA, M. Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição dos Escravos. São Paulo: Ed. Globo,
2003, nº2.
Fonte: SOUZA, M. Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição dos Escravos. São Paulo: Ed. Globo,
2003, nº2.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
A Lei do Sexagenário, que libertava os escravos com mais de 65 anos, foi alvo de
escárnio na imprensa brasileira, pois a expectativa de vida dos escravizados era muito
inferior a essa idade. Apenas um número reduzido foi libertado por meio desta lei, mas
raramente um escravo dessa idade estava em condições de trabalhar, configurando um gasto
ao proprietário. Os que ainda eram ativos tinham de trabalhar por mais dois anos para
indenizar o proprietário por sua perda. “A legislação abolicionista criada pelo governo
imperial, portanto, era estéril na prática, representando apenas uma tentativa de aplacar o
movimento abolicionista, particularmente forte na imprensa.” (VICENTINO e DORIGO,
1997, p. 255).
O maior equívoco construído por este padrão histórico, representado pela história
em quadrinhos em questão, é identificar a abolição como uma conquista externa às muitas
formas de resistência empreendidas por mais de três séculos pelos escravos, configurando
um presente da elite governante. Esse aspecto se torna evidente quando o dia 13 de maio é
celebrado em todo o país como a data em que a Princesa Isabel libertou os escravos.
Fonte: SOUZA, M. Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição dos Escravos. São Paulo:
Ed. Globo, 2003, nº2.
retrógada que o movimento republicano atribuía à monarquia, do que um ato de “pena dos
escravos”, como conclama a personagem Mônica.
Fonte: STRACZYNSHI, J. M. Superman: Terra um. Com ilustrações de: DAVIS, S. Barueri: Panini
Books, 2012.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
2
J. M. Straczynshi. Superman: Terra um. Com ilustrações de S. Davis. Barueri: Panini Books, 2012, p. 97.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
Fonte: DINIZ, A. O Quilombo Orum Aiê. São Paulo: Galera Record, 2010.
3
André Diniz. O Quilombo Orum Aiê. São Paulo: Galera Record, 2010.
4
Alex Mir. Orixás – Do Orum ao Ayê. Com ilustrações de Caio Majado e Omar Viñole. São Paulo: Ed.
Marco Zero, 2011.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
Figura 7 – O que unia os Malês não era a condição de escravidão, era a fé islâmica.
Fonte: Fonte: DINIZ, A. O Quilombo Orum Aiê. São Paulo: Galera Record, 2010.
Fonte: MIR, A. Orixás – Do Orum ao Ayê. Com ilustrações de MAJADO, C. e VIÑOLE, O. São
Paulo: Ed. Marco Zero, 2011.
Há uma imensa dificuldade para resgatar a história dessas religiões (daí o fato de
existirem diversas versões), por não possuírem livros sagrados (como a Bíblia ou o Corão) e
por suas práticas doutrinárias e princípios serem transmitidos de forma oral. A mesma
dificuldade imposta é também uma oportunidade de expor a ausência de uma história única,
como o padrão eurocêntrico nos faz crer.
Os terreiros de Candomblé e os centros de Umbanda são o símbolo maior de
resistência da cultura afro-brasileira, perpassando os séculos de proibição ao culto dos
Orixás, sobrevivendo e se reconstruindo no sincretismo face ao catolicismo e às crenças
indígenas. Ainda hoje, perseguidos e segregados, seus praticantes resistem.
As questões abordadas nas histórias em quadrinhos analisadas podem ser
encontradas em muitas outras edições disponíveis no mercado nacional. Entre os esforços
para efetivação da Lei 10.639/03 podemos citar a inclusão de histórias em quadrinhos como
“O Quilombo Orum Aiê” nas listas anuais do PNBE (Programa Nacional da Biblioteca na
Escola), indicando uma intencionalidade que vai além da simples aprovação da lei. Como
apontada anteriormente, a distância entre a promulgação de uma lei e sua efetivação é
enorme, não dependendo apenas de políticas públicas, pressões sociais ou manifestações
isoladas, mas sim de um esforço conjunto que se faz necessário para reparar cinco séculos
de opressão à população afro-brasileira.
REFERÊNCIAS
MAGNOLI, D. Uma gota de sangue – História do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009.
MIR, A. Orixás – Do Orum ao Ayê. Com ilustrações de MAJADO, C. e VIÑOLE, O. São Paulo:
Ed. Marco Zero, 2011.
SILVA, V. G. Candomblé e umbanda: caminhos da devoção brasileira. 2ª Ed. São Paulo: Selo
Negro, 2005.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
SOUZA, M. Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição dos Escravos. São Paulo: Ed. Globo,
2003.
STRACZYNSHI, J. M. Superman: Terra um. Com ilustrações de: DAVIS, S. Barueri: Panini
Books, 2012.