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Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.

2013

DE ONDE VEM MEU PRECONCEITO – OS QUADRINHOS COMO


INSTRUMENTO DE INTRODUÇÃO À LEI Nº 10.639/03

Caio Cândido Ferraro

Bacharel e Licenciado em História, UNESP, Franca, Brasil


Graduando em Pedagogia, FEUSP, São Paulo, Brasil

RESUMO

O decênio da lei nº 10.639/03, que trata da obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira, representa significativa vitória para o movimento negro, talvez maior do que poderia se
imaginar quando de sua validação. No entanto, diversos estabelecimentos de ensino não aplicam a
lei ou não o fazem da maneira correta, sobretudo por falta de profissionais com formação
relacionada à temática. As histórias em quadrinhos reproduzem diversos estereótipos construídos no
decorrer dos séculos de dominação da cultura ocidental-europeia, o que representa uma rica fonte de
análise ao educador, como meio de apresentar aos educandos as origens dos nossos preconceitos e
introduzir a necessidade desta lei para a valorização do negro em nossa sociedade. Por outro lado,
observamos neste mesmo período a publicação de histórias em quadrinhos que abordam a cultura
negra como eixo central, desmistificando estereótipos e quebrando paradigmas, apontadas como
importante reflexo das políticas públicas afirmativas e, sobretudo, da luta incessante dos
movimentos sociais. Selecionamos diversas histórias em quadrinhos para exemplificar as
possibilidades de utilização em sala de aula, analisando trechos que apresentam aspectos
estereotipados no ensino básico e obras que representam a desconstrução destes mesmos aspectos
nocivos à identidade étnico-cultural de toda a população negra. A concepção de uma África única,
inteiramente selvagem, dependente e primitiva já não pode ser tolerada, especialmente nas
instituições de ensino do país.

PALAVRAS-CHAVE: Lei 10.639; cultura negra; História do Brasil.

A aprovação da Lei nº 10.639/03 decorre de uma série de demandas levantadas


pelos movimentos sociais negros no Brasil e aponta para uma nova concepção de Educação
como política pública, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira no ensino fundamental e médio, sintetizando uma discussão realizada
durante mais de um século, desde a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888.
Representa ainda a ampliação do foco curricular escolar para a diversidade cultural, social e
econômica brasileira. Em suma, há a intenção de desconstruir toda uma história de
preconceitos que se enraizaram em nosso cotidiano como se fossem aspectos naturais de
nossa sociedade.
A distância entre a aprovação de uma Lei e sua aplicação é enorme, principalmente
no campo educacional, em que é necessário formar educadores em uma área do
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conhecimento até então negligenciada. No decorrer desta década, que compreende o


intervalo entre a promulgação da Lei nº 10.639/03 e este artigo, inúmeros esforços foram
realizados para auxiliar os educadores em sua formação, mas há ainda uma longa jornada
até a superação da história construída em cinco séculos de opressão.
Este trabalho tem por objetivo expor alguns desses preconceitos presentes nas
histórias em quadrinhos e apresentar propostas de desconstrução dos arquétipos raciais que
ainda oprimem a população negra no Brasil e no mundo. Selecionamos cinco histórias em
quadrinhos que abordam a cultura negra e a África de diferentes perspectivas históricas e
sociais.
A primeira a ser analisada é “Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição dos
Escravos”1, que foi publicada em maio de 2003, meses após a promulgação da Lei nº
10.639/03 e, oportunamente, no mês em que é celebrada a assinatura da Lei Áurea pela
Princesa Isabel e, com isso, a abolição oficial da escravidão no Brasil. O propósito da
publicação é claramente educativo e representa em suas páginas muitos dos preceitos
históricos presentes nos livros didáticos, caracterizando rico material introdutório aos
nossos questionamentos.
A história se passa no decorrer do dia 13 de maio de 1888, tendo a Turma da
Mônica como espectadora das narrativas de José do Patrocínio, Castro Alves e Rui Barbosa,
três dos mais célebres abolicionistas do período.

1
Maurício de Sousa. Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição dos Escravos. São Paulo: Ed. Globo, 2003, n°
2.
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Figura 1 – A justificativa que anistia os europeus da escravidão imposta.

Fonte: SOUZA, M. Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição dos Escravos. São Paulo: Ed. Globo,
2003, nº2.

Entre as principais críticas à abordagem em relação aos negros e à África nos livros
didáticos nacionais está o fato de principiarem pela questão escravagista, levando o
educando a um primeiro contato pejorativo e submisso da história africana. A figura 1
retrata outra perspectiva elaborada no decorrer do século XX: “Pior ainda é o fato que
negros vendem negros!”. Fundamentalmente, o termo “negro” é uma criação externa à
África, pois não existia na região subsaariana (região africana em que os empreendimentos
escravocratas ocorreram em maior escala), sendo intrínseco à relação com os povos
europeus, asiáticos e ameríndios. O africano só se reconhece como negro nas relações
constituídas com o que lhe é distinto. Considerar que toda a população negra se vê como
uma única nação é ignorar toda a diversidade étnico-cultural do continente africano.
Outra falha é entender a escravidão como um processo exclusivo, não ressaltando as
inúmeras diferenças entre o que ocorreu na Grécia antiga, no Império Romano, na África,
na América colonizada ou até mesmo no Brasil contemporâneo. O processo de dominação
servil que existia na África, em que o cativo mantinha sua identidade e em que sua condição
não era definida pela hereditariedade, não pode ser equiparado ao modelo escravista
europeu, onde o negro era desprovido de direitos e identidade e seus descendentes nasciam
sob as mesmas condições.
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“Portanto, quando se afirma que na África já existia a instituição da escravidão,


busca-se informar ideologicamente que o europeu não fez nada de errado, a não
ser manter o africano na sua natureza. (...) A realidade escravista, edificada nas
Américas e na Europa, transformou o cativo em escravizado. Nesta realidade, a
ordem era de compra e venda, de destituição territorial, patrimonial, religiosa, do
nome, do idioma, impondo a negação do seu ser, enquanto sujeito submetido à
ordem escravista...” (FONSECA, 2008, p. 28).

Enquanto o primeiro modelo era estruturado em função da guerra e de dívidas, o


segundo era justificado pela cor da pele, definindo todo e qualquer indivíduo de tez negra
como potencial mercadoria, desprovida de humanidade.
Na sequência da história em quadrinhos as mazelas enfrentadas pelos negros
escravizados no Brasil são narradas em tópicos como transporte, comercialização, trabalho,
punição e resistência, respectivamente.
Embora seja estruturada de maneira bastante didática para facilitar a compreensão
infantil, elucidando questões de vocabulário e apontando algumas influências da cultura
negra na sociedade brasileira, esta história em quadrinhos não almeja quebrar nenhum
estereótipo estabelecido nos livros didáticos. A resistência à escravidão se resume às
tentativas de fuga e organização de quilombos, simplificando uma luta que seguia desde a
sabotagem da produção de alguma fazenda, passando do banzo (estado de inapetência que
poderia levá-los à morte), à prática do aborto, às emboscadas e rebeliões e até ao próprio
suicídio. Esquece, ainda, as duas formas de resistência que se perpetuaram e ainda sofrem
perseguição na sociedade brasileira: a capoeira e as religiões de matrizes africanas
(umbanda e candomblé).
O penúltimo tópico a ser abordado trata das leis abolicionistas anteriores à Lei
Áurea: Lei do Ventre Livre e Lei do Sexagenário, indicadas como um avanço rumo à
abolição plena. A assinatura da Lei Eusébio de Queirós, em 1850, proibia o tráfico de
africanos para o Brasil, no entanto, não havia grande preocupação com a fiscalização. Na
realidade, esta lei foi consequência de pressões estrangeiras, sobretudo da Inglaterra, o que
levou ao surgimento da expressão “para inglês ver”.
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Figura 2 - Lei do Ventre Livre

Fonte: SOUZA, M. Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição dos Escravos. São Paulo: Ed. Globo,
2003, nº2.

Além das pressões advindas da Inglaterra, principal influência sobre a economia


brasileira, outros fatores fortaleceram as lutas abolicionistas nacionais, como a Guerra de
Secessão dos Estados Unidos (1861-1865) que, com a consequente abolição, deixou o
Brasil como último país independente das Américas a manter a escravidão.
A Lei do Ventre Livre, também chamada de Rio Branco, teve seus efeitos reduzidos,
pois a forte oposição das elites do Centro-Sul do país, levou à sua flexibilização, definindo
o recém-nascido como “ingênuo”, permanecendo sob a tutela do proprietário até os oito
anos de idade. A partir desse momento, este podia optar entre receber uma indenização ou
explorar o trabalho do escravo liberto até os 21 anos.

Figura 3 - A Lei do sexagenário foi tratada como piada

Fonte: SOUZA, M. Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição dos Escravos. São Paulo: Ed. Globo,
2003, nº2.
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A Lei do Sexagenário, que libertava os escravos com mais de 65 anos, foi alvo de
escárnio na imprensa brasileira, pois a expectativa de vida dos escravizados era muito
inferior a essa idade. Apenas um número reduzido foi libertado por meio desta lei, mas
raramente um escravo dessa idade estava em condições de trabalhar, configurando um gasto
ao proprietário. Os que ainda eram ativos tinham de trabalhar por mais dois anos para
indenizar o proprietário por sua perda. “A legislação abolicionista criada pelo governo
imperial, portanto, era estéril na prática, representando apenas uma tentativa de aplacar o
movimento abolicionista, particularmente forte na imprensa.” (VICENTINO e DORIGO,
1997, p. 255).
O maior equívoco construído por este padrão histórico, representado pela história
em quadrinhos em questão, é identificar a abolição como uma conquista externa às muitas
formas de resistência empreendidas por mais de três séculos pelos escravos, configurando
um presente da elite governante. Esse aspecto se torna evidente quando o dia 13 de maio é
celebrado em todo o país como a data em que a Princesa Isabel libertou os escravos.

Figura 4 - A imagem da Princesa Isabel como libertadora dos escravos

Fonte: SOUZA, M. Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição dos Escravos. São Paulo:
Ed. Globo, 2003, nº2.

A assunção da Princesa Isabel como responsável pela emancipação do povo negro


está diretamente relacionada ao mito do “fardo do homem branco”, teoria em voga no final
do século XIX e utilizada pelas potências europeias para justificar sua campanha
neocolonialista na África. Significava muito mais uma tentativa de se dissociar da imagem
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retrógada que o movimento republicano atribuía à monarquia, do que um ato de “pena dos
escravos”, como conclama a personagem Mônica.

Tal lei apenas completou o processo de libertação dos escravos, na


medida em que a imigração européia (ampliando a porcentagem de
trabalhadores livres no país), o fim do tráfico em 1850, as fugas de
escravos e a simples expansão demográfica, mais intensa entre
homens livres do que entre cativos, enfim, um conjunto de fatores
ajudou a diminuir radicalmente a proporção de escravos no país,
que atingia em 1888 no máximo 5% da população brasileira.
(VICENTINO e DORIGO, 1997 p. 256).

A ausência de um projeto político social de integração dos escravos libertos à


sociedade brasileira corrobora esta perspectiva, negligenciando-os à marginalidade, uma
vez que, sem nenhuma assistência, preterido nos trabalhos remunerados e relegado às
periferias, o negro findava uma batalha no campo jurídico, mas permanecia na guerra por
seus direitos que estava muito distante de um fim.

Figura 5 - O Egito dissociado do continente africano

Fonte: STRACZYNSHI, J. M. Superman: Terra um. Com ilustrações de: DAVIS, S. Barueri: Panini
Books, 2012.
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A figura 5 é um excerto da edição “Superman: Terra um”2, em que o autor


reimagina a origem do “maior super-herói de todos os tempos”. Nesta imagem encontramos
duas questões bastante reproduzidas em nossa cultura e em nosso sistema educacional: a
dissociação do Egito como um país africano e o continente africano posto como uma
unidade.
A presença estadunidense em nossa cultura é robusta, influenciando diretamente o
imaginário coletivo, sobretudo com a produção cinematográfica, em que os “filmes
catástrofe” alcançam grande bilheteria internacional. Nestes filmes, tal qual nesta página do
quadrinho, é comum que se apresentem os impactos da catástrofe ao redor do mundo,
escolhendo países específicos que simbolizam “os quatro cantos”, apresentando lugares
icônicos destas nações. No segundo quadro da figura 5 temos as pirâmides do Egito e no
quarto quadro a África, definida por dromedários, o que pode nos levar a crer que o
monumento mais importante do continente africano é o Deserto do Saara, região de maior
incidência desta espécie animal.
Historicamente o Egito é dissociado da África, pois é entendido como um dos
berços da civilização ocidental, sobretudo após 1787, ao ser decifrada a Pedra de Roseta -
um bloco com inscrições em hieróglifos egípcios e outras línguas antigas -, revelando que
o conhecimento científico, religioso e filosófico da Grécia antiga se originou na nação
africana.

Ao longo da história, as contribuições das diversas nações africanas


para o desenvolvimento cultural, econômico, político, científico e
tecnológico da humanidade são vastas e complexas, muito embora
o reconhecimento desse fato seja prejudicado pela perspectiva
preconceituosa que o Ocidente europeu norte-americano e sua área
de influência cultural e científica nutram em relação ao continente-
pai. Essa cultura do norte da África tem sido extremamente
importante para toda a humanidade até os dias de hoje,
particularmente pelos conhecimentos que ainda revela.
(FONSECA, 2008, p.43)

O “fardo do homem branco”, a visão propagada pelos Estados imperialistas de que a


África é um continente atrasado e dependente das nações evoluídas para o auxiliarem no

2
J. M. Straczynshi. Superman: Terra um. Com ilustrações de S. Davis. Barueri: Panini Books, 2012, p. 97.
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processo civilizatório, é intrínseca à perspectiva primitiva que nos habituamos a atribuir à


região Subsaariana.
Para contrastar com as obras já apresentadas selecionamos “O Quilombo Orum
Aiê”3, de André Diniz, e “Orixás – do Orum ao Ayê”4, de Alex Mir, Caio Majado e Omar
Viñole. Estas edições nacionais carregam no próprio título uma postura afirmativa no que
diz respeito à cultura afro-brasileira, pois Orum é a morada dos Orixás, as divindades das
religiões de matrizes africanas, e Aiê (ou Ayê) é o mundo terreno onde nos encontramos. A
ortografia é diversa, assim como as versões das histórias que compõem esse rico universo.

Figura 6 - a desmistificação da unidade cultural africana e do escravo passivo.

Fonte: DINIZ, A. O Quilombo Orum Aiê. São Paulo: Galera Record, 2010.

O trabalho de André Diniz vai narrar as desventuras do menino escravo Capivara em


sua busca pelo idílico quilombo chamado Orum Aiê, onde supostamente não há guerras e
todos convivem em paz com a natureza. O garoto se torna um fugitivo após o seu senhor ser
assassinado durante a Revolta dos Malês, em 1835, tido como o maior levante escravo da
história do Brasil.
A etnia Iorubá, um dos grupos de maior incidência no Nordeste, trouxe consigo
diferentes religiões, dentre elas o islamismo, com escravos provenientes da região onde
hoje se encontra o Sudão. O aspecto religioso da Revolta dos Malês (como eram chamados

3
André Diniz. O Quilombo Orum Aiê. São Paulo: Galera Record, 2010.
4
Alex Mir. Orixás – Do Orum ao Ayê. Com ilustrações de Caio Majado e Omar Viñole. São Paulo: Ed.
Marco Zero, 2011.
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os iorubás islâmicos na Bahia) é pouco enfatizado em nosso ensino, constituindo material


ímpar para desconstruir a unidade cultural africana e o aspecto de naturalidade que se
atribuía à condição de escravo do negro.
O autor percorre as ruas de Salvador com seu protagonista, o menino apelidado de
Capivara, que aos poucos vai compreendendo que a situação de escravidão não torna todos
os negros iguais. Escravos rebeldes, escravos de ganho, escravos libertos e toda uma gama
de relações sociais surgem no decorrer da história em quadrinhos, revelando que o universo
negro do século XIX não era tão simples quanto sugerem os livros didáticos.

Figura 7 – O que unia os Malês não era a condição de escravidão, era a fé islâmica.

Fonte: Fonte: DINIZ, A. O Quilombo Orum Aiê. São Paulo: Galera Record, 2010.

A visão utópica que o protagonista desenvolve sobre o quilombo que procura


também será revista pelos diálogos promovidos no decorrer da obra. Os quilombos, como
todo e qualquer agrupamento social, têm seus conflitos internos, suas questões políticas,
que não devem ser desconsiderados para que eles possam ser tratados como paraísos. A
realidade do Brasil colônia nunca se reduz a um binário absoluto, à dicotomia que pouco a
pouco as ações afirmativas e a luta do movimento negro buscam desmistificar.
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Figura 8 - A criação do mundo pelos Orixás

Fonte: MIR, A. Orixás – Do Orum ao Ayê. Com ilustrações de MAJADO, C. e VIÑOLE, O. São
Paulo: Ed. Marco Zero, 2011.

Esta história em quadrinhos remete a uma dentre inúmeras histórias da origem do


mundo, desde o surgimento das divindades africanas (o termo divindade não é aceito por
todas as vertentes da cultura afro-brasileira) até a separação entre o Ayê (o mundo físico) e
o Orum (a morada dos Orixás). A obra é útil por se contrapor à perspectiva dicotômica
cristã, que divide o mundo entre o bem e o mal, e, sobretudo, para minimizar os
preconceitos que estão enraizados na sociedade brasileira. A invisibilidade das religiões de
matrizes africanas na sala de aula apenas contribui para a propagação destas convenções
elaboradas sob uma ótica racista.

Os cultos afro-brasileiros, por serem religiões de transe, de


sacrifício animal e de culto aos espíritos (portanto, distanciados do
modelo oficial de religiosidade dominante em nossa sociedade),
têm sido associados a certos estereótipos como “magia negra” (por
apresentarem uma ética que não se baseia na visão dualista do bem
e do mal estabelecida pelas religiões cristãs), superstições de gente
ignorante, práticas diabólicas, etc. (SILVA, 2005, p. 13)
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Há uma imensa dificuldade para resgatar a história dessas religiões (daí o fato de
existirem diversas versões), por não possuírem livros sagrados (como a Bíblia ou o Corão) e
por suas práticas doutrinárias e princípios serem transmitidos de forma oral. A mesma
dificuldade imposta é também uma oportunidade de expor a ausência de uma história única,
como o padrão eurocêntrico nos faz crer.
Os terreiros de Candomblé e os centros de Umbanda são o símbolo maior de
resistência da cultura afro-brasileira, perpassando os séculos de proibição ao culto dos
Orixás, sobrevivendo e se reconstruindo no sincretismo face ao catolicismo e às crenças
indígenas. Ainda hoje, perseguidos e segregados, seus praticantes resistem.
As questões abordadas nas histórias em quadrinhos analisadas podem ser
encontradas em muitas outras edições disponíveis no mercado nacional. Entre os esforços
para efetivação da Lei 10.639/03 podemos citar a inclusão de histórias em quadrinhos como
“O Quilombo Orum Aiê” nas listas anuais do PNBE (Programa Nacional da Biblioteca na
Escola), indicando uma intencionalidade que vai além da simples aprovação da lei. Como
apontada anteriormente, a distância entre a promulgação de uma lei e sua efetivação é
enorme, não dependendo apenas de políticas públicas, pressões sociais ou manifestações
isoladas, mas sim de um esforço conjunto que se faz necessário para reparar cinco séculos
de opressão à população afro-brasileira.

REFERÊNCIAS

DINIZ, A. O Quilombo Orum Aiê. São Paulo: Galera Record, 2010.

FONSECA, D. J. História da África e Afro-Brasileira na Sala de Aula. In: Orientações


Curriculares: expectativas de aprendizagem para educação étnico-racial na educação infantil, ensino
fundamental e médio / Secretaria Municipal de Educação – São Paulo: SME / DOT, 2008.

MAGNOLI, D. Uma gota de sangue – História do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009.

MIR, A. Orixás – Do Orum ao Ayê. Com ilustrações de MAJADO, C. e VIÑOLE, O. São Paulo:
Ed. Marco Zero, 2011.

SILVA, V. G. Candomblé e umbanda: caminhos da devoção brasileira. 2ª Ed. São Paulo: Selo
Negro, 2005.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

SOUZA, M. Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição dos Escravos. São Paulo: Ed. Globo,
2003.

STRACZYNSHI, J. M. Superman: Terra um. Com ilustrações de: DAVIS, S. Barueri: Panini
Books, 2012.

VICENTINO, C. e DORIGO, G. História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1997.

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