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Poesia Contemporânea

Portuguesa
Sophia de Mello
Bryner
Andressen
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
• Ganhadora do Prêmio Camões de Literatura (1999)
• Ligada a poesia brasileira de Manuel Bandeira, Jorge de Lima e João
Cabral de Melo Neto
“Essencial, clara, cristalina, tudo o que escreveu confirma uma
mundivisão ao mesmo tempo uma estética e uma ética, um desejo
quase romântico de fusão de vida e obra, que exemplarmente
cumpriu.” (BUENO, Alexei)
Características temáticas
O jogo do quatro elementos primordiais (água, terra, ar fogo)

Como o rumor

Como o rumor do mar dentro de um búzio


O divino sussurra no universo
Algo emerge: primordial projecto
CIDADE

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,


Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.
Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes
• A natureza (“espantoso esplendor do Mundo”) é uma das suas
principais fontes de inspiração, conotada de diversos significados; ora
ligada à ideia de beleza estética e poética, pela sua perfeição e
variedade de cores e formas, ora associada ao mistério, ora
traduzindo o reencontro individual com a solidão ou ainda o lugar de
união com aquilo que há de mais verdadeiro e puro.
• imagísticas do mar, das praias, do sol, do vento, das árvores
• simbologia do mar: totalidade, infinito, vida, eterno movimento.
• Simbologia da praia: espaço de transformação do ser, de integração
na natureza e de transição para uma nova identidade
• simbologia da luz: transparência, pureza e harmonia
• gosto pelo exótico, pelos espaços abertos da Natureza
Os três tipos de poesia para Sophia
“a Poesia é a própria existência das coisas em si, como realidade
inteira, independente daquele que a conhece”.

• Poesia (com P maiúsculo) é necessidade, essencial para vida.


• Poesia como a própria existência das coisas.. (p minúsculo)
• Poesia é poema, linguagem da poesia.
• Para Sophia a poesia é a busca da verdade e da inteireza. Ao procurar a
inteireza, a justiça, a liberdade, “o dia inteiro e limpo”, a poetisa tenta a aliança
com esse espaço primordial que é a Natureza e que a arte grega celebrizou;
• b) A physis (Natureza), ocupa um lugar muito importante na sua obra. A
Natureza, particularmente a natureza marinha, surge assim como espaço
primordial, lugar de reencontro do eu na solidão, longe do bulício da cidade, e de
comunhão com o que há de mais puro e autêntico: “a verdade antiga da
natureza” é também a verdade dos deuses.
• c) “A soma total do universo de Sophia obtém-se pela concentração dos
quatro elementos primordiais” – terra, água, ar e fogo. No jogo destes quatro
elementos primordiais Sophia busca: a beleza poética e o fascínio de celebrar a
vida e tudo o que existe como manifestação do absoluto; o reencontro e a
comunhão com o primitivo e a verdade das origens; a relação pura e justa do ser
humano com a vida, consigo mesmo, com os outros e com o próprio mundo.
• d) Conserva e reforça uma relação privilegiada com o mar (praia, espuma,
água, areia – abundância de palavras relacionadas com o mar), com o vento
(mutabilidade), com o sol e a luz (símbolos de pureza e iluminação) e com a terra
(Natureza, fauna & flora).
• e) Marcadamente mediterrânica é no mar que encontra os seus símbolos
mais autênticos e a sua respiração vital. O mar é o símbolo da vida e da morte. As
águas em movimento mostram a dinâmica da vida e no mar escondem-se os
segredos mais profundos do ser e do mundo. A água é a alegoria da nossa
existência. É o princípio de todas as coisas. Tudo vem da água e a ela regressa.
Reflexões sobre a criação poética
No Poema

No poema ficou o fogo mais secreto


O intenso fogo devorador das coisas
Que esteve sempre muito longe e muito perto
Reflexões sobre a criação poética
• Para Sophia, a poesia é “arte mágica do ser” e o poeta, o “pastor do
Absoluto”, “o sacerdote”, o mediador, que recusa o isolamento de
qualquer “torre de marfim” e se compromete com o “sofrimento do
Mundo”
• - “perseguição do real” e sua transfiguração
• - busca do divino no real
• - valor educativo da poesia, força transformadora do Mundo
Abordagem dos mitos gregos
Ressurgiremos

Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos


E em Delphos centro do mundo
Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta
Ressurgiremos ali onde as palavras
São o nome das coisas
E onde são claros e vivos os contornos
Na aguda luz de Creta
Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo
São o reino do homem
Ressurgiremos para olhar para a terra de frente
Na luz limpa de Creta
Pois convém tornar claro o coração do homem
E erguer a negra exactidão da cruz
Na luz branca de Creta
Abordagem dos mitos gregos
O Rei da Ítaca

A civilização em que estamos é tão errada que


Nela o pensamento se desligou da mão

Ulisses rei da Ítaca carpinteirou seu barco


E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado
Abordagem dos mitos gregos
• - fala-nos da arte grega, dos deuses mitológicos e da harmonia e
equilíbrio alcançados
• - evocação nostálgica e memória da Grécia e do mundo clássico com
a sua estética
• - lugar da poesia, a representação do mundo original, com valores
como a justiça e a verdade; valores esses que foram perdidos hoje e
que é necessário reaver
• - aliança entre a harmonia, o equilíbrio, a beleza e a perfeição em
que não é possível encontrar o caos e a confusão da cidade, onde se
sente encarcerada
• - mundo povoado por deuses e não por homens
A denúncia de uma realidade adversa
(injustiças e opressão)
Data

Tempo de solidão e de incerteza


Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação
Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão
Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça
Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não


Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados


Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem


E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos


E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA

Para que ela tivesse um pescoço tão fino


Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos
Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino
• - o otimismo e a luta apesar das frustrações e do desamparo num
“tempo dividido” a nível social e político (Data)
• - a defesa da justiça e da verdade
• - poesia como com “perseguição do real” – tendência para o real,
para o concreto
• - preocupação com a degradação do Mundo
• - empenhamento social e político, na construção de um futuro
melhor (Ressurgiremos)
• - degradação do tempo vivido
• - cidade como lugar onde se sente encarcerada
A fuga a uma realidade adversa
Para atravessar contigo o deserto do Mundo”
Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei
Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento.
A fuga a uma realidade adversa
• - evocação nostálgica de imagens da infância e da juventude (casa,
jardim, mar), transfigurados frequentemente pelo sonho e pela
fantasia. São as vivências inesquecíveis do ser
• - o amor
• - o problema do tempo: a passagem do tempo não é geradora de
angústia – a vida é uma caminhada em que nada se perde, pelo
contrário, acumula–se experiências rumo à “única unidade”
A PROCURA DA JUSTIÇA
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas
O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra
“Ganharás o pão com o suor do teu rosto” Assim nos foi imposto
E não:
“Com o suor dos outros ganharás o pão”
Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoais–lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem
Síntese
• - Ideologia humanista e consciência política
• - preocupações sociais  sensibilidade e revolta perante o
sofrimento do mundo
• - luta e denúncia - solidão e incerteza
• (tempo dividido) - medo e traição
• - injustiça e mentira
• - corrupção e escravidão
• - busca da justiça e da verdade contra as forças do mal que se
instalaram no seio da sociedade e do home
Síntese
Símbolos:
• Templos Clássicos – equilíbrio e perfeição
• Luz – harmonia
• Água – pureza, símbolo da vida e a sua dinâmica
• Água da fonte – princípio de todas as coisas; alegoria da existência
• Nudez do corpo – beleza artística
Herberto
Helder
Herberto Helder
é um representante - talvez, hoje, o maior deles - da linhagem de
poetas visionários, sistematicamente desregrados, inaugurada pelo
Rimbaud de Iluminações e Uma Temporada no Inferno
Comparado hoje a Fernando Pessoa
Herberto Helder
O que ele diz de sua poesia:
“Os cinco livros que até hoje publiquei pouco significam agora para
mim. O pouco significarem garante-me completa liberdade e isenção,
em ordem a uma nova linguagem (…) Interessa-me, portanto, chegado
que sou à convicção de me haver limitado, nos livros anteriores, a
mover-me em círculo sobre uma linguagem esgotada – interessa-me,
digo, muito menos executar uma gramática literária, destinada ao
diálogo, do que perfazer um organismo internamente coerente e
bastante. A comunicação será consequente, se for. De qualquer modo,
bani a ideia do diálogo no meu estilo. Mas sinto-me ligado aos escritos
antigos como alguém se pode sentir ligado a um paciente e doloroso
erro…”
Herberto Helder
• Hoje tem mais de 30 livros publicados
• Mostra o homem de uma perspectiva cósmica
• Resgata um passado primitivo
• História
• Cultura
• Mitologia
• Religião
Herberto Helder
Maria Estela Guedes sobre A Faca não corta fogo, Servidões e A Morte
sem Mestre:
“Nestas últimas obras a morte é uma presença que se torna igual
à vida. Já não há separação entre o belo e o terrível, o alto e o baixo,
ele é um homem magoado, sem horizonte, como qualquer pessoa fica a
partir de uma certa idade. Quem criticou estes livros e os considerou
menores não compreendeu que eles são apenas a outra face da mesma
moeda, de quando o arrebatamento já não segura a esperança”,
Herberto Helder
“A Morte Sem Mestre é um livro de dilacerante poesia e de
extraordinária coragem. É o testemunho de uma alma que se recusa
ser roubada, mesmo pela morte que não pode estar longe, escrito
quando a morte já não pode ser oculta na linguagem em que se
manifesta por ser uma realidade cronologicamente próxima que é o fim
de toda a linguagem e de toda a poesia. Mais ainda, é o livro de um
poeta que recusa imitar-se a si próprio. Que desnuda a sordidamente
gloriosa matéria humana que sustenta o mito em que o pretenderam
neutralizar. É carne viva arremessada a canibais desdentados.”
Herberto Helder - Um poeta que não tinha onde
caber
Nascido no Funchal a 23 de Novembro de 1930, com ascendência
judaica, Herberto Helder de Oliveira viu morrer-lhe a mãe aos oito anos
de idade — e talvez por isso, a figura materna associada à beleza, à
loucura e à morte é uma das imagens recorrentes da sua lírica.
Herberto Helder - Um poeta que não tinha onde
caber
Aos 17 anos muda-se para o continente, ingressa na faculdade de
Direito em Coimbra, que abandona, viaja pela Europa. Essa viagem é
ficcionada em Os Passos Em Volta, essa obra ímpar da literatura
portuguesa, onde diz: se eu quisesse enlouquecia.
Herberto Helder - Um poeta que não tinha onde
caber
Reconhecido como um dos maiores poetas portugueses
contemporâneos, Herberto é um artista muito amado, um poeta de
culto e um homem enigmático. Recusou em 1994 o prémio Pessoa, no
valor de 35 mil euros, apesar de viver com uma reforma de apenas 600.
Em 2007, foi proposto pelo PEN Club português para ser candidato ao
Nobel da Literatura. Mas ninguém duvida que, caso tivesse ganho, teria
recusado.
Herberto Helder - Um poeta que não tinha onde
caber
Depois de publicar na Contraponto e na &etc, o poeta passou a
publicar na Assírio & Alvim, mantendo uma fidelidade absoluta ao seu
editor Manuel Rosa. Em 2014, Herberto surpreende tudo e todos ao
aceitar mudar-se para a Porto Editora, publicar um livro envolto em
estratégias de marketing e — pasme-se — deixar-se fotografar para a
objectiva do fotógrafo Alfredo Cunha.
Herberto Helder - Um poeta que não tinha onde
caber
Maria Bocchicchio: “A beleza extraordinária dos seus textos é, em si
mesma, um acto poético de transfiguração do mundo. Como na Bíblia,
eles abrem a pista para que o homem em toda a sua solidão existencial
e anímica possa contactar e dialogar com o transcendente.”
Alguns Poemas
Aos Amigos
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

(retirado da obra Lugar)


Biclicleta
Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais —
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e des
aparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.Se a noite cai agora sobre a
rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.Se o sul é para trás e o norte
é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.

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