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ABRAÃO: O PEREGRINO DA FÉ

Prof. Fernando Paixão

(do livro: Deus onde estás? Uma Introdução Prática à Bíblia – Carlos Mesters.)
Algumas dificuldades que se levantam em torno de Abraão

De Abraão se fala em Genesis 12-25. A sua vida não era fácil. Mas ele
gozava da vantagem de ter a Deus perto de si. Deus intervém, fala com
ele e orienta a sua vida.

E hoje? Onde está este


mesmo Deus? Deus mudou
ou nós somos piores?

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Se a história de Abraão serve apenas como exemplo sobre o qual eu reflita para tirar
algumas conclusões sobre minha vida, hoje, prefiro lembrar-me de João XXIII, de
Luther King ou de Gandhi.

São homens que viveram


mais de perto a nossa vida de
hoje. Abraão viveu numa
situação totalmente
diferente.

Afinal, Cristo já veio. Abraão preparou a sua vinda. Para que ficar
analisando o velho quando o novo já está aí? O andaime é tirado quando
a casa está pronta. 3
Esses e outros problemas são sérios e colocam em questão a utilidade da
figura de Abraão para nós, hoje.

Sendo assim, como podem os textos antigos ajudar-nos na solução dos


nossos problemas e na descoberta de Deus em nossa realidade?
Também aqui vale o que dissemos à respeito do Paraíso: nossa maneira de encarar a
figura de Abraão não corresponde ao objetivo que o autor tinha em vista. 4
Abraão viveu em torno dos anos 1800-1700 a.C. lá começou uma coisa,
pequena em si, mas que o povo estimava demais.
Os descendentes de Abraão recordavam e celebravam o fato em si, mas
segundo o significado que tinha para a sua vida.
Em épocas sucessivas, século X, século IX, século VII, século VI, elaboram-se
descrições que correspondiam a mentalidade do povo daquele tempo.

No século V, finalmente, alguém elaborou uma redação definitiva, que


agora encontramos na Bíblia. Ela é feita com elementos das quatro
descrições precedentes.

É isso que o estudo científico descobriu nos últimos 50 anos. A narração


sobre Abraão é como um monumento desconexo e heterogêneo.
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Por isso, é difícil saber o que aconteceu exatamente, pois nisto a Bíblia
não está interessada.

O interesse está em poder apresentar ao povo do seu tempo a figura de


Abraão, de tal maneira, que os seus contemporâneos possam nela
encontrar o modo como devem descobrir a Deus e como devem
encaminhar sua vida com Deus. É preciso caminhar. 6
Mas isso não é falsificação da história? Posso tirar uma fotografia de
alguém e um raio X. nos dois casos a chapa revela coisas completamente
diferentes.

Livros de história tiram fotografias dos fatos. A Bíblia tira raio X dos
mesmos. Nos dois casos, os resultados, embora diferentes, são
verdadeiros.

Além disso, um fato quando acontece, dele não se percebem toda a


importância e alcance. Só a longa distância se tornam estes
perceptíveis. 7
Quem entra numa curva muito larga, no momento em que o faz quase
não o percebe. Mas vendo a estrada de longe, pode-se indicar
nitidamente o início da curva.

Quando Abraão entrou na “curva” que modificou a sua vida, ele mesmo,
provavelmente, pouco percebia. Mas vendo o fato a longa distância, o povo diz: “A
nossa vida com Deus começou lá, com Abraão”.

A Bíblia descreve o fato, não como Abraão o viveu, mas como o povo o
via à distância de anos, através do prisma dos problemas das diversas
épocas de sua história. 8
Como foi a vida de Abraão

Diante do que foi dito, desperta-


se a curiosidade:
Então como foi a vida de
Abraão?

Como foi aquela entrada histórica


de Deus na vida dos homens?

Qual foi o fato concreto no qual


eles viram o começo da ação de
Deus?

Conhecer isto poderá ajudar-nos a colocar um raio X sobre a nossa


vida e descobrir, lá dentro, os sinais da entrada e da presença de
Deus. 9
Abraão viveu nos séculos XIX-XVIII antes de Cristo. Saiu, por ordem
de Deus, de Ur dos Caldeus (no atual Iraque, perto do Golfo Pérsico),
subiu para a Assíria (atual Síria) até a cidade de Haran.

De lá desceu até a Palestina, entrou no Egito e voltou para a Palestina, onde


morreu na cidade de Hebron. Tudo é feito por ordem de Deus, em contínuo
contato com ele basta ler os capítulos da Bíblia (Gn 12-25). 10
Aqui devem ser anotados dois elementos, que esclarecem o fato do ponto
de vista histórico:
1) Existia, naquele tempo, um movimento migratório que, da Região do
Golfo Pérsico, passava pela Síria e descia, pela Palestina, para o Egito.
Abraão era um dos muitos. Não se distinguia dos outros.

2) Todas as tribos que iam


saindo de suas terras em
busca de terras melhores
tinham deuses próprios.

Eram os “deuses da família”.


Tudo o que faziam era por
ordem desses deuses.

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Conclusão que se tira:

Então Abraão não era nada


diferente dos outros?

Nada o distinguia, nem


mesmo a sua fé?

Era um dos muitos que se


perdiam na massa anônima?

Assim parece a quem


olha os fatos de fora. 12
Como Deus entrou na vida de Abraão, e como entra na nossa?

Ora, a Bíblia, narrando como Deus entrou na vida de Abraão, coloca um raio X bem
forte sobre a nossa existência e nos revela qual a brecha por onde Deus entra na vida
dos homens.

Faz saber que Deus entra na vida e se deixa encontrar pelo homem exatamente onde e
quando o homem procura ser HOMEM, isto é, realizar o ideal que se propôs. Por essa
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brecha Deus entrou na vida de Abraão.
É uma entrada quase imperceptível no início. Incógnito, Deus entra no
ônibus da humanidade, paga passagem, passa pela borboleta, entra na
conversa do homem, senta-se ao lado de Abraão e quando este dá pela
presença de Deus, Deus já está na direção.

Deus não entra, apresentando um cartão: “Eu sou o Criador, o dono de tudo! Quero que
me obedeçam!” Mas entra disfarçado, como amigo, pela porta dos fundos, que sempre
está aberta, conquistando pela sua bondade um lugar na vida do homem e deixando ao
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homem a tarefa de descobrir quem Ele é de fato.
Concretamente, aquelas divindades eram projeções do homem, expressão do
seu mais profundo anseio. E, nessas formas concretas de viver a vida humana,
se vai delineando, lentamente, o rosto de ALGUÉM.

Abraão e os seus percebem uma presença ativa que fica além das
formas, sem se identificar com elas, e que acabou por impor-se com a
sua própria evidência. 15
Já não é mais uma divindade que fundamentalmente dependia do
homem, mas é alguém do qual o homem depende e que vai corrigindo,
pouco a pouco, as formas de viver.
Começa a curva larga e definitiva, cujo alcance o povo vai
perceber plenamente muito tempo depois.

Naquela maneira de cultuar as forças impessoais das divindades,


delineiam-se, lentamente, os traços do rosto de Deus verdadeiro. É como
a flor que sai do botão, fazendo cair as folhas do botão. 16
A grande mensagem que se tira de tudo isso é uma resposta segura à
pergunta: “Onde está Deus? Onde posso encontra-lo?” Deus se deixa
encontrar e entra na vida, lá onde o homem procura ser fiel consigo
mesmo e com os outros, onde percebe e vive o valor absoluto.

É lá que devemos procurar, também hoje, os contornos do rosto deste


ALGUÉM no qual acreditamos. Não é em primeiro lugar no culto. O
nosso culto só tem valor enquanto é expressão daquilo que vivemos na
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vida.
Abraão aceitou essa presença e deixou que influísse em sua vida.
Olhando de fora, aparentemente nada mudou, mas, por dentro, uma luz
começou a brilhar que, pouco a pouco, foi lançando os seus raios em
redor, até as extremidades do universo, ...

... e levou os homens à descoberta de que este ALGUÉM é o Deus,


criador do céu e da terra. Por isso, a figura de Abraão era tão importante
e tinha tanto sentido para os que vieram depois dele. 18
Mas, se tudo foi tão despercebido, como então se explica aquele diálogo
constante entre Deus e Abraão, relatado na Bíblia? Um diálogo é a
comunicação que se estabelece entre duas pessoas.

Pode dar-se de mil maneiras. Quando o


marido viaja, mil e uma coisa que ele traz
consigo fazem lembrar a esposa. É um
diálogo, uma presença da esposa na vida
dele.

Presença que só ele entende, aprecia e descobre, porque ele vive a


amizade e o amor com a sua esposa. A quem gosta de uma pessoa, tudo
lembra e evoca a pessoa da qual gosta. 19
Os diálogos formulados em termos de linguagem
humana são a concretização daquilo que o povo,
vivendo a sua amizade com Deus, foi percebendo a
respeito dele.

Uma vez que a pessoa aceita a presença de Deus na sua vida e nele crê,
estabelece-se um diálogo que tem as suas leis próprias, estranhas talvez a
quem vive de fora, mas perfeitamente compreensíveis para quem vive tal
presença. 20
Lendo a história de Abraão, vemos um homem como nós, que procura
acertar na vida e que nesse seu esforço chegou a encontrar Deus
verdadeiro.

Deus não estava nem mais perto nem mais longe de Abraão do que de
nós, hoje. Por que então hoje não encontramos a Deus? Talvez porque o
nosso olhar não seja bom.
Estamos tão preocupados com uma determinada imagem de Deus, que
somos de opinião que “aquilo” não é Deus. Nosso aparelho receptor não
está em sintonia com a frequência em que Deus nos lança os seus apelos.
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O Deus que se revelou a Abraão e que é o nosso Deus, é um Deus dos
homens, que não tem medo de esconder-se. Não vê a borboleta quem
anda caçando águias. Não vê a flor quem procura árvores.

Deus está e se revelar, por exemplo, na dedicação de uma mãe pela


família, no trabalho de um operário para sustentar os filhos, na luta dos
jovens por um mundo mais humano, na alegria sincera provocada pela
presença de um amigo, na compreensão recebida que nos consola. Lá
está e pode ser descoberto, pouco a pouco, traço a traço, o rosto de Deus.
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Algumas conclusões importantes

A entrada de Deus na vida dos homens é silenciosa. Não é no barulho,


mas no silêncio e na calma, através das coisas mais comuns da vida
humana, que Ele se vai revelando e se impondo a quem tem olhos para
ver.

Quando o homem dá pela sua presença, Deus já está aí há muito tempo. Mas
então como a Bíblia apresenta a entrada de Deus na vida de Abraão de uma
maneira brusca e quase violenta? (Gn 12,1-4).
É que a longa distância se percebe melhor o início da curva, da reviravolta.
Mesmo entrando imperceptivelmente, Deus quer uma conversão total, uma
verdadeira ruptura e transformação da vida. 23
Deus se apresenta como sendo o futuro de Abraão: “Eu serei Deus
para você!” (Gn 17,7). Com outras palavras: “Aquilo que você
procura, indo atrás dessas divindades ou deuses, deixe lá comigo.

Eu quero ser Deus para você. Eu o garanto!” Dessa maneira, a entrada de


Deus coloca o homem diante de uma opção radical: optar por este Deus
ou ficar com as divindades do passado. 24
O Deus que entra é exigente: “ EU quero ser Deus para você!” Com isto
não permite que Abraão siga ainda outros deuses (Monoteísmo).

Se Abraão aceitar seguir este Deus, então ele deve caminhar como este Deus quer
(Aspecto ético da religião revelada), e terá o futuro garantido pela fidelidade e pelo
poder deste Deus (Esperança do futuro – Messianismo). 25
O difícil é aceitar as condições de Deus e caminhar na fé: Abraão é
apresentado como o homem que caminha na fé, isto é, que aceita as
exigências de Deus na vida.

Deve sair da terra, para obter uma terra, mas, quando morre, tem apenas
um lote para enterrar os seus ossos. Deve abandonar a família e o povo
para ser pai de um povo, mas, quando morre, tem apenas um filho.
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No momento em que Deus lhe falou e lhe
prometeu posteridade numerosa, Abraão não
tinha filhos nem podia tê-los. Era duro crer na
palavra, pois não tinha comprovante.

Nasce Isaque, e Deus manda que o sacrifique. Seria matar a única


esperança que ele tinha de ser pai de um povo. No entanto, Abraão
estava disposto a destruir este comprovante e a apoiar-se unicamente na
Palavra de Deus. (Gn 22,1-18; Hb 11m19). 27
A atitude de Deus, por vezes é contraditória. Promete posteridade
numerosa e manda matar o filho. Promete uma terra e manda abandonar
a terra, e, em vida, Abraão não obtém terra alguma.

No entanto, pela sua fé, isto é, pela sua atitude de confiança absoluta em
Deus, Abraão se tornou tão amigo de Deus ao ponto de tornar-se o seu
confidente (Gn 18,17-19).
Essa maneira de descrever a figura de Abraão não corresponde ao modo
de vida concreta de Abraão, mas ao ideal de fé do tempo do autor que
escreve.
Assim deveriam viver os seus contemporâneos para serem dignos
membros do povo que começou com Abraão. 28
Respostas às dificuldades colocadas no início

A primeira pergunta ou dificuldade já teve a sua resposta através de toda


a nossa exposição. A história de Abraão vem exatamente responder à
pergunta: “Onde está Deus?”

A história não serve apenas para tirar daí algumas conclusões para a nossa vida hoje
(isto também). Sua finalidade é convidar o leitor a ser ele mesmo um Abraão na sua
vida:

alguém que procura acertar na vida, que seja sincero consigo, com os outros, a fim de
assim poder descobrir a presença ativa de Deus na sua vida. 29
Cristo já veio. É verdade. Mas para muitos ele ainda não veio. Nem
mesmo para nós. Ninguém vive perfeitamente integrado em Cristo. O
importante é que também hoje o homem descubra como se deve
caminhar para encontrar em Cristo a sua plena realização.

Ora, é exatamente isto que nos revela a história de Abraão: o início da


caminhada para Cristo é a sinceridade de vida, o amor pela verdade, a
busca sincera do absoluto:
“Quem é pela verdade, escuta a minha voz” (João 18,37; cf João 3,17-
21; 8,44-45). Quem caminha por essa estrada descobrirá o rosto de Deus
na vida. 30
Analisar a vida de Abraão só para saber como ele viveu e
contentar-se com isso não está de acordo com a intenção da
Bíblia.

A resposta às dificuldades de ordem histórica levantou outras perguntas e


dificuldades bem mais importantes e envolventes do que as primeiras:
“Procuro Deus onde ele se deixa encontrar, ou prefiro ficar a sua procura
onde dificilmente o encontro?
Procuro Deus na vida ou fora da vida? Se outros nada sabem a respeito
de Deus, será que nós, cristãos, não temos culpa nisso por não
revelarmos, na vida, a verdadeira face de Deus?”. 31
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