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A versão abaixo foi publicada na revista Impulso, n.

26, da Universidade Metodista de


Piracicaba, disponível em:
http://www.unimep.br/phpg/editora/revistaspdf/impulso26.pdf
Originalmente, contudo, o texto em português foi publicado na Revista
Tempo Brasileiro. N. 30/31, jul./dez. Rio de Janeiro: 1972 com o título ‘O que é a
Psicologia?’.

Que é a Psicologia?*1
What is Psychology?
RESUMO – Neste texto, originado de uma conferência apresentada em 18 de
dezembro
de 1956 no Collège Philosophique (Paris) e publicado dois anos mais tarde,
Georges Canguilhem propõem-se a discutir a psicologia, investigando a existência
(ou não) de uma unidade de projeto que pudesse conferir sua unidade eventual
aos diferentes tipos de disciplinas tidas então como psicológicas. Para responder
à questão “Que é a psicologia?”, considera necessário esboçar uma história da
psicologia. Mas enfatiza: “uma história considerada apenas nas suas orientações e
relacionada com a história da filosofia e das ciências, uma história necessariamente
teleológica, uma vez que destinada a transferir, para a interrogação proposta, o
sentido originário suposto nas diversas disciplinas, métodos ou empreendimentos,
cuja disparidade atual legitima essa pergunta”.
Palavras-chave: psicologia – epistemologia da psicologia – história da psicologia.
ABSTRACT – In this article, originally presented at a conference on December 18,
1956 at the Collège Philosophique (Paris) and published two years later, Georges
Canguilhem discusses psychology by investigating the existence (or not) of a project
unity that could confer its eventual unity to the different types of disciplines
considered
as psychological. In responding to the question “What is psychology?”, it
is necessary to make a sketch of the history of psychology. But he emphasizes: “a
history considered only in its orientations and relations with the history of philosophy
and of sciences, a history which is necessarily teleological, since once destined
to transfer, for the proposed question, the supposed original meaning of the diverse
disciplines, methods or attempts, whose current disparity legitimates this question.”
Keywords: psychology – epistemology of psychology – history of psychology.
GEORGES CANGUILHEM**
Trad. Osmyr Faria Gabbi Jr.
*

A questão “Que é a psicologia?” aparenta ser mais incômoda


para o psicólogo do que a questão “Que é a filosofia?” para
o filósofo. Porque para a filosofia a interrogação sobre o seu
sentido e a sua essência serve mais para constituí-la do que a define
uma resposta a esta pergunta. O fato de a questão renascer incessantemente,
por falta de uma resposta satisfatória, é, para aquele que gostaria
de poder se dizer filósofo, uma situação de humildade e não de
humilhação. Mas, para a psicologia, a questão sobre sua essência, ou,
mais modestamente, sobre seu conceito, questiona ao mesmo tempo
a existência do psicólogo, na medida em que sua incapacidade de responder
exatamente sobre o que ela é torna-lhe bem mais difícil responder
sobre o que ele faz. Só lhe resta, então, procurar em uma eficácia
sempre discutível a justificativa de sua importância enquanto especialista,
importância que ele não deploraria de nenhuma maneira
com este ou aquele se ela engendrasse no filósofo um complexo de inferioridade.
Quando se diz que a eficácia do psicólogo é discutível não se pretende
dizer que ela seja ilusória; mas simplesmente assinalar que essa
eficácia está sem dúvida mal fundamentada enquanto não se provar
que ela resulta realmente da aplicação de uma ciência, ou seja, enquanto
o estatuto da psicologia for fixado de maneira tal que se deve avaliá-lo
mais como um empirismo heterogêneo que está codificado literariamente
com vistas a ser transmitido. De fato, muitos dos trabalhos de
psicologia dão a impressão de misturar uma filosofia sem rigor – porque
eclética sob o pretexto de objetiva –, uma ética sem exigências –
porque associa experiências etológicas sem criticá-las, a do confessor,
a do educador, a do chefe, a do juiz etc. –, e uma medicina sem controle
– porque dos três tipos de doenças menos inteligíveis e menos
curáveis, doenças da pele, doenças nervosas e doenças mentais, o estudo
e o tratamento das duas últimas sempre forneceram hipóteses e
observações à psicologia.
Portanto, parece que ao perguntar “Que é a psicologia?” coloca-se
uma questão que não é nem impertinente nem fútil.
Durante muito tempo procurou-se a unidade característica do
conceito de ciência na direção de seu objeto. Este ditaria o método a
ser utilizado no estudo de suas propriedades. Mas, no fundo, isso era
limitar a ciência à investigação de um dado, à exploração de um domínio.
Quando se tornou patente que toda ciência dá mais ou menos
a si mesma seu dado e por essa razão apropria-se do que se chama seu
domínio, o conceito de ciência progressivamente se deslocou de seu
Aobjeto para seu método. Ou mais exatamente, a expressão “objeto de
uma ciência” recebeu um sentido novo. O objeto da ciência não é mais
somente o domínio específico de problemas, de obstáculos a resolver,
é também a intenção e a visada do sujeito da ciência, é um projeto
específico que constitui uma consciência teórica como tal.
Pode-se responder à questão “Que é a psicologia?” ao ressaltar a
unidade de seu domínio, apesar da multiplicidade de projetos metodológicos.
É desse tipo a resposta brilhante dada pelo professor Daniel
Lagache, em 1947, à questão formulada, em 1936, por Edouard Claparède2.
A unidade da psicologia é procurada aqui em sua possível definição
enquanto teoria geral da conduta: síntese da psicologia experimental,
da psicologia clínica, da psicanálise, da psicologia social e da
etnologia.
Entretanto, quando se olha de perto, talvez se diga que essa unidade
se assemelha mais a um pacto de coexistência pacífica acordado
entre profissionais do que a uma essência lógica, obtida pela descoberta
de uma constante numa variedade de casos. Das duas tendências entre
as quais o professor Lagache procura um acordo sólido – a naturalista
(psicologia experimental) e a humanista (psicologia clínica) –,
tem-se a impressão que a segunda parece ter preponderância para ele.
O que explica sem dúvida a ausência da psicologia animal nesse inventário
das partes em litígio. Sem dúvida, vê-se claramente que ela
está incluída na psicologia experimental – em grande parte uma psicologia
de animais –, mas aquela a contém como material ao qual aplica
seu método. Com efeito, uma psicologia só pode ser dita experimental
em razão de seu método e não de seu objeto. Enquanto, a despeito
das aparências, é mais pelo objeto do que por seu método que
uma psicologia é dita clínica, psicanalítica, social, etnológica. Todos esses
adjetivos são indicativos de um único e mesmo objeto: o homem,
ser loquaz ou taciturno, ser social ou insocial. Assim sendo, pode-se rigorosamente
falar de uma teoria geral da conduta enquanto não se resolver
a questão de saber se há continuidade ou ruptura entre linguagem
humana e linguagem animal, sociedade humana e sociedade animal?
É possível que sobre esse ponto não caiba à filosofia decidir, mas
à ciência, de fato, a numerosas ciências, incluindo a psicologia. Porém,
nesse caso, a psicologia não pode, para definir-se, prejulgar o que ela
é chamada a julgar. Sem o que, é inevitável que a psicologia, ao propor
a si mesma como teoria geral da conduta, tome como sua alguma idéia
sobre o homem. Então é preciso permitir à filosofia interrogar a psicologia
de que lugar ela retira essa idéia e se não seria, no fundo, de
alguma filosofia.
Desejamos abordar a questão fundamental apresentada por uma
via oposta – uma vez que não somos psicólogo –, ou seja, investigar se
há ou não uma unidade de projeto que poderia conferir sua unidade
eventual aos diferentes tipos de disciplinas ditas psicológicas. Mas nosso
procedimento de investigação exige um retorno temporal. Para investigar
em relação ao que se sobrepõem os domínios, pode-se fazer
sua exploração separada e sua comparação na atualidade (uma dezena
de anos no caso do professor Lagache). Investigar se os projetos se interceptam
exige que se explicite o sentido de cada um deles, não quando
ele se perdeu no automatismo de sua execução, mas quando surge
a partir da situação que o suscitou. Procurar responder à questão “Que
é a psicologia?” torna-se para nós a obrigação de esboçar uma história
da psicologia, mas, é preciso enfatizar, uma história considerada apenas
nas suas orientações e relacionada com a história da filosofia e das
ciências, uma história necessariamente teleológica, uma vez que destinada
a transferir, para a interrogação proposta, o sentido originário suposto
nas diversas disciplinas, métodos ou empreendimentos, cuja disparidade
atual legitima essa pergunta.
I – A PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA NATURAL
Embora psicologia signifique do ponto de vista etimológico ciência
da alma, é notável que uma psicologia independente esteja ausente, tanto
como idéia quanto de fato, dos sistemas filosóficos da Antiguidade;
nos quais, entretanto, a psique, a alma, é considerada um ser natural. Os
estudos relativos à alma encontram-se divididos entre a metafísica, a lógica
e a física. O tratado aristotélico Da Alma é na realidade um tratado
de biologia geral, um dos escritos consagrados à física. Segundo Aristóteles,
e de acordo com a tradição da escolástica, os cursos de filosofia do
início do século XVII ainda tratam da alma num capítulo da física.3 O objeto
desta é o corpo natural e organizado que contém a vida como potencialidade;
logo, a física trata da alma como forma do corpo vivo, e
não como substância separada da matéria. Desse ponto de vista, um estudo
dos órgãos do conhecimento, ou seja, dos sentidos exteriores (os
cinco usuais) e dos sentidos interiores (senso comum, fantasia, memória),
não difere em nada do estudo dos órgãos da respiração ou da digestão.
A alma é um objeto natural de estudo, uma forma na hierarquia
das formas, ainda que sua função essencial seja o conhecimento das for-
mas. A ciência da alma é um domínio da fisiologia no seu sentido original
e universal de teoria da natureza.
É dessa concepção antiga que se origina sem ruptura um aspecto
da psicologia moderna: a psicofisiologia – considerada durante muito
tempo exclusivamente psiconeurologia (mas atualmente também
como psico-endocrinologia) – e a psicopatologia como disciplina médica.
Dada essa relação, não parece ser supérfluo recordar que antes
das duas revoluções que permitiram o aparecimento da fisiologia moderna,
a de Harvey e a da Lavoisier, é devida a Galeno uma revolução
de não menos importância que a teoria da circulação ou da respiração,
quando ele estabelece, clínica e experimentalmente de acordo com os
médicos da Escola de Alexandria, Herôfilos e Erasístratos, e contra a
doutrina aristotélica, mas conforme as antecipações de Alcmêon, Hipócrates
e Platão, que o cérebro, e não o coração, é o órgão das sensações
e do movimento, o lugar da alma. Galeno funda verdadeiramente,
durante séculos, uma filiação ininterrupta de pesquisas de pneumatologia
empírica, cujo elemento fundamental é a teoria dos espíritos
animais, destronada e substituída no fim do século XVIII pela eletroneurologia.
Ainda que decididamente pluralista em sua concepção das
relações entre funções psíquicas e órgãos encefálicos, Gall procede diretamente
de Galeno e domina, apesar de suas extravagâncias, todas
as pesquisas sobre localizações cerebrais durante os sessenta primeiros
anos do século XIX, até o próprio Broca.
Em suma, enquanto psicofisiologia e psicopatologia, a psicologia
atual sempre recua até o século II.
II – A PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA DA SUBJETIVIDADE
O declínio da física aristotélica, no século XVII, assinala o fim da
psicologia como parafísica, como ciência de um objeto natural, e correlativamente
o nascimento da psicologia como ciência da subjetividade.
Os físicos mecanicistas do século XVII são os verdadeiros responsáveis
pelo aparecimento da psicologia moderna como ciência do sujeito
pensante.4
Se a realidade do mundo não é mais confundida com o conteúdo
da percepção, se a realidade é obtida e exposta pela redução das ilusões
da experiência sensível usual, o resto qualitativo desta experiência,
dado que é possível enquanto falsificação do real, envolve a responsabilidade
própria do espírito, ou seja, do sujeito da experiência,
tendo em vista que ele não se identifica com a razão matemática e mecanicista,
instrumento da verdade e medida da realidade.
Mas essa responsabilidade é censurável aos olhos do físico. Portanto,
a psicologia é constituída como um empreendimento de remissão
do espírito. Seu projeto é de uma ciência que, face à física, explique
o motivo do espírito, à primeira vista, ser coagido, devido a sua natureza,
a enganar a razão em relação à realidade. A psicologia faz-se física
do sentido externo para dar conta dos contra-sensos que a física mecanicista
imputa ao exercício dos sentidos na função cognitiva.
A. A física do sentido externo
Portanto a psicologia, ciência da subjetividade, começa como psicofísica
por duas razões. Em primeiro lugar porque não pode ser menos
do que uma física para ser levada a sério pelos físicos. Em segundo, porque
deve procurar em uma natureza, ou seja, na estrutura do corpo humano,
a razão da existência de resíduos irreais na experiência humana.
Mas, entretanto, essas razões não implicam um retorno à concepção
antiga de uma ciência da alma, ramo da física. A nova física é
um cálculo. A psicologia tende a imitá-la. Ela procurará determinar as
constantes qualitativas da sensação e as relações entre essas constantes.
Aqui Descartes e Malebranche são os corifeus. Nas Regras para
Direção do Espírito (XII), Descartes propõe a redução das diferenças
qualitativas entre dados sensórios a uma diferença de figuras geométricas.
Trata-se aqui de dados sensórios na medida em que são, no sentido
próprio do termo, as informações de um corpo por um outro corpo;
os sentidos externos informam um sentido interno, “a fantasia,
que nada mais é que um corpo real e figurado”. Na Regra XIV, Descartes
trata expressamente do que Kant chamará da grandeza intensiva
das sensações (Crítica da Razão Pura, analítica transcendental, antecipação
da percepção): as comparações entre luzes, entre sons etc., só
podem ser convertidas em relações exatas por analogia com a extensão
do corpo figurado. Se se acrescenta que Descartes, que não é exatamente
nem o inventor do termo nem do conceito de reflexo, afirmou,
no entanto, a constância de ligação entre a excitação e a reação,
vê-se que uma psicologia, entendida enquanto física matemática do
sentido externo, começa com ele para chegar em Fechner, graças ao
apoio de fisiólogos como Hermann Helmholtz, apesar e contra as reservas
kantianas, criticadas por sua vez por Herbart.
Essa variedade de psicologia é ampliada por Wundt às dimensões
de uma psicologia experimental, apoiada em seus trabalhos pela esperança
de fazer aparecer, nas leis dos “fatos de consciência”, um deter-
minismo analítico do mesmo tipo daquele que a mecânica e a física
permitem esperar de toda ciência de validade universal.
Fechner morreu em 1887, dois anos da tese de Bergson, Ensaios
sobre os Dados Imediatos da Consciência (1889). Wundt faleceu em
1920, tendo formado muitos discípulos, dos quais alguns ainda estão
vivos, e não sem ter assistido aos primeiros ataques dos psicólogos da
Forma contra a física analítica do sentido externo, simultaneamente
experimental e matemática, conforme as observações de Ehrenfels sobre
as qualidades da forma (Über Gestaltqualitäten, 1890), observações
aparentadas às análises de Bergson sobre as totalidades percebidas
enquanto formas orgânicas que prevalecem sobre as partes supostas
(Ensaio, cap. II).
B. A ciência do sentido interno
Mas a ciência da subjetividade não se reduz à elaboração de uma
física do sentido externo; ela se propõe e se apresenta como a ciência
da consciência de si ou a ciência do sentido interno. Data do século
XVIII o termo psicologia no sentido de ciência do eu (Wolff). Toda a história
dessa psicologia pode ser escrita como aquela dos contra-sensos,
na qual as Meditações de Descartes, sem serem responsáveis, deram o
motivo.
Quando Descartes, no início da Terceira Meditação, considera
seu “interior” para procurar torná-lo o mais conhecido e o mais familiar
para si mesmo, essa consideração visa o pensamento. O interior
cartesiano, consciência do Ego cogito, é o conhecimento direto que a
alma tem de si mesma enquanto entendimento puro. As Meditações
são chamadas por Descartes de metafísicas porque elas pretendem
atingir diretamente a natureza e a essência do Eu penso na apreensão
imediata de sua existência. A meditação cartesiana não é uma confidência
pessoal. A reflexão que dá ao conhecimento do Eu o rigor e a
impessoalidade das matemáticas não é aquela observação de si que os
espiritualistas, no início do século XIX, tiveram a ousadia de tomar Sócrates
como patrono, a fim de que o sr. Pierre-Paul Royer-Collard pudesse
dar a Napoleão I a garantia de que o Conhece a ti mesmo, o cogito
e a introspeção forneciam seu fundamento inexpugnável ao trono
e ao altar.
O interior cartesiano não tem nada em comum com o sentido interno
dos aristotélicos “que concebem seus objetos interiormente e
dentro da cabeça”5 e que, como se viu, Descartes considera como um
aspecto do corpo (Regra XIII). Por essa razão Descartes diz que se co-
nhece a alma direta e mais facilmente que o corpo. É uma afirmação
acerca da qual se ignora muito freqüentemente a intenção explicitamente
polêmica, uma vez que para os aristotélicos não se conhece a
alma diretamente: “O conhecimento da alma não é de nenhuma maneira
direto, mas apenas por reflexão; dado que a alma é semelhante
a um olho que tudo vê e que só pode ver a si mesmo por reflexão
como em um espelho (…) e a alma de modo semelhante não se vê e
só se conhece por reflexão e pelo reconhecimento de seus efeitos”.6
Tese que suscita a indignação de Descartes quando Gassendi a retoma
nas suas objeções contra a Terceira Meditação, e contra as quais ele
responde: “Não é de nenhuma maneira nem o olho que vê a si próprio
nem o espelho, mas o espírito, o único que conhece o espelho, o
olho e a si próprio”.
Ora, essa réplica decisiva não derrota esse argumento escolástico.
Maine de Biran, mais de uma vez, utiliza-o contra Descartes em Memorial
sobre a Decomposição do Pensamento. A. Comte invoca-o contra
a possibilidade de introspeção, ou seja, contra esse método de conhecimento
de si mesmo que Pierre-Paul Royer-Collard emprestou de
Reid para fazer da psicologia a propedêutica científica da metafísica,
ao justificar pela via experimental suas teses tradicionais, próprias do
substancialismo espiritualista7. Mesmo Cournot, na sua sagacidade,
não desdenha o argumento quando o retoma para apoiar a idéia de
que a observação psicológica se refere mais à conduta do outro que à
do eu do observador, de que a psicologia se aparenta mais à sabedoria
do que à ciência e de que “é da natureza dos fatos psicológicos serem
melhor traduzidos em aforismos que em teoremas”.8
Conheceu-se de forma equívoca o argumento de Descartes
quando simultaneamente se constitui contra ele uma psicologia empírica
como história natural do eu – de Locke a Ribot, passando por
Condillac, os ideólogos franceses e os utilitaristas ingleses – e, segundo
se acreditou, de acordo com ele, uma psicologia racional fundada sobre
a intuição do Eu substancial.
Kant tem ainda hoje a glória de ter estabelecido que, se Wolff pôde
batizar esses recém-nascidos pós-cartesianos (Psicologia Empírica, 1732;
Psicologia Racional, 1734), no entanto não conseguiu fundamentar suas
pretensões de legitimidade. Kant mostra, de um lado, que o sentido interno
fenomenal é apenas uma forma da intuição empírica, que tende a
confundir-se com o tempo, e, de outro, que o eu, sujeito de todo juízo
de apercepção, é uma função de organização da experiência, mas do
qual não se poderia fazer ciência, dado que é a condição transcendental
de toda ciência. Os Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza
(1786) contestam que a psicologia possa ser uma ciência, seja à
imagem das matemáticas, seja à imagem da física. Não há psicologia
matemática possível no sentido em que há uma física matemática. Mesmo
que se aplique às modificações do sentido interno, em virtude da
antecipação da percepção relativa às grandezas intensivas, as matemáticas
do contínuo, não se obterá nada de mais importante do que seria
uma geometria limitada ao estudo das propriedades da linha reta. Também
não há psicologia experimental no sentido em que a química se
constitui através do uso da análise e da síntese. Não podemos realizar
experiências nem sobre nós mesmos nem sobre o outro. Além do que,
a observação interna altera seu objeto. Querer surpreender a si mesmo
ao se observar conduziria à alienação. A psicologia só pode ser descritiva.
Seu lugar verdadeiro é em uma Antropologia, como propedêutica
a uma teoria da aptidão e da prudência, coroada por uma teoria da sabedoria.
C. A ciência do sentido íntimo
Se se chama psicologia clássica aquela que se pretende refutar, é
preciso dizer que em psicologia há sempre clássicos disponíveis para
qualquer um. Os ideólogos, herdeiros dos sensualistas, tomaram como
clássica a psicologia escocesa que pregava, como eles, um método indutivo
para poder melhor afirmar, contra eles, a substancialidade do
espírito. Mas a psicologia atomista e analítica dos sensualistas e dos
ideólogos, antes de ser rejeitada como psicologia clássica pelos teóricos
da psicologia da Gestalt, já era tida como tal por um psicólogo romântico
como Maine de Biran. Para ele, a psicologia torna-se a técnica
do diário íntimo e a ciência do sentido íntimo. A solidão de Descartes
é a ascese de um matemático; a de Maine de Biran, a ociosidade de um
delegado. O Eu penso cartesiano fundamenta o pensamento em si; o
Eu quero de Biran, a consciência para si contra a exterioridade. Em seu
escritório calafetado, Maine de Biran descobre que a análise psicológica
não consiste em simplificar, mas em complicar; que o fato psicológico
primitivo não é elementar, porém uma relação, relação vivida em um
esforço. Ele chega a duas conclusões, inesperadas em um homem cujas
funções são de autoridade, ou seja, de comando: a consciência requer
o conflito entre um poder e uma resistência; o homem não é, como
pensou Bonald, uma inteligência servida por órgãos, mas uma organização
viva servida por uma inteligência. É necessário que a alma es-
teja encarnada, portanto, não há psicologia sem biologia. A observação
de si mesmo não dispensa nem o recurso à fisiologia do movimento
voluntário nem à patologia da afetividade. A situação de Maine de Biran
é única entre os dois Royer-Collard: dialogou com o doutrinário
e foi julgado pelo psiquiatra. Temos de Maine de Biran um Passeio
com o sr. Royer-Collard nos Jardins de Luxemburgo e de Antoine-Athanase
Royer-Collard, irmão caçula do primeiro, um Exame da Doutrina
de Maine de Biran.9 Se Maine de Biran não tivesse lido e discutido
Cabanis (Relações entre o Físico e o Moral no Homem, 1798) e Bichat
(Pesquisas sobre a Vida e a Morte, 1800), a história da psicologia
patológica tê-lo-ia ignorado, o que ela não pode. O segundo Royer-
Collard é, depois de Pinel e junto com Esquirol, um dos fundadores
da escola francesa de psiquiatria.
Pinel havia defendido a idéia de que os alienados são simultaneamente
doentes como os outros – nem possuídos nem criminosos – e
diferentes dos outros, devendo, portanto, ser tratados separadamente
dos outros e, de acordo com os casos, em serviços hospitalares especializados.
Pinel fundou a medicina mental como disciplina autônoma
a partir do isolamento terapêutico de alienados em Bicêtre e em Salpêtrière.
Royer-Collard imita Pinel na Maison Nationale de Charenton,
onde se tornou chefe dos médicos em 1805, o mesmo ano em
que Esquirol defendeu sua tese de medicina sobre as “Paixões consideradas
como causas, sintomas e meios de cura da alienação mental”.
Em 1816, Royer-Collard torna-se professor de medicina legal na Faculdade
de Medicina de Paris, depois, em 1821, primeiro titular da cadeira
de medicina mental. Royer-Collard e Esquirol tiveram como aluno
Calmeil, que estudou a paralisia entre os alienados, Bayle, que reconheceu
e isolou a paralisia geral, e Félix Voisin, que iniciou o estudo do
retardo mental em crianças. É em Salpêtrière que, depois de Pinel, Esquirol,
Lelut, Baillarger e Falret, entre outros, Charcot torna-se em 1862
chefe de um serviço, cujos trabalhos serão continuados por Théodule
Ribot, Pierre Janet, o cardeal Mercier e Sigmund Freud.
Vimos que a psicopatologia começou de forma positiva com Galeno,
vemos que ela conduz até Freud, criador em 1896 do termo psicanálise.
A psicopatologia não se desenvolveu isolada de outras disciplinas
psicológicas. Com base nas pesquisas de Biran, ela coage a filosofia
a interrogar-se, há mais de um século, em qual dos dois Royer-
Collard ela deve procurar a idéia que é preciso ter da psicologia. Assim,
a psicopatologia é ao mesmo tempo juiz e parte do debate inin-
terrupto que a metafísica legou à direção da psicologia, sem ter, aliás,
renunciado a dizer sua palavra sobre as relações entre o físico e o psíquico.
Essa relação foi formulada durante muito tempo como somatopsíquica
antes de tornar-se psicossomática. Aliás, essa inversão é a mesma
que operou na significação dada ao inconsciente. Se se identifica
psiquismo e consciência – recorrendo de forma errada ou acertada à autoridade
de Descartes –, o inconsciente é de ordem física. Se se pensa que
o psiquismo possa ser inconsciente, a psicologia não se reduz à ciência da
consciência. O psíquico não é tão-somente o que está escondido, mas
o que se esconde, o que escondemos, o que não é mais apenas o íntimo,
mas também – de acordo com um termo retirado por Bossuet
dos místicos – o abissal. A psicologia não é apenas a ciência da intimidade,
mas a ciência das profundezas da alma.
III – A PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA DAS
REAÇÕES E DO COMPORTAMENTO
Maine de Biran, ao propor que se defina o homem como organização
viva servida por uma inteligência, demarca de antemão – melhor,
aparentemente, do que Gall, segundo o qual, de acordo com Lelut,
“o homem não é mais uma inteligência, porém uma vontade servida
por órgãos”10 – o terreno sobre o qual se constituirá no século
XIX uma nova psicologia. Mas, ao mesmo tempo, ele assinala seus limites,
visto que, na sua Antropologia, ele situa a vida humana entre a
vida animal e a vida espiritual.
O século XIX assiste à constituição – ao lado da psicologia como
patologia nervosa e mental, como física do sentido externo, como ciência
do sentido interno e do sentido íntimo – de uma biologia do comportamento
humano. As razões desse evento nos parecem ser as seguintes.
Inicialmente, razões científicas, a saber, a constituição de uma
biologia como teoria geral das relações entre os organismos e os meios,
o que marca o fim da crença na existência de um reino humano separado;
em seguida, razões técnicas e econômicas, ou seja, o desenvolvimento
de um regime industrial que dirige a atenção para o caráter
industrioso da espécie humana, o que marca o fim da crença na dignidade
do pensamento especulativo; por fim, razões políticas que se
resumem no fim da crença em valores de privilégio social e na difusão
do igualitarismo: o alistamento e a instrução pública tornam-se questão
de Estado, a reivindicação de igualdade em relação às tarefas mi-
litares e às funções civis (a cada um de acordo com seu trabalho, suas
obras ou seus méritos) é o fundamento real, ainda que freqüentemente
despercebido, de um fenômeno próprio das sociedades modernas: a
prática generalizada da especialização, entendida em sentido amplo
enquanto determinação da competência e revelação da simulação.
Ora, o que caracteriza, para nós, essa psicologia dos comportamentos
em relação aos outros tipos de estudos psicológicos é sua incapacidade
constitutiva de apreender e exibir com clareza seu projeto instaurador.
Se, entre os projetos instauradores de alguns tipos anteriores
de psicologia, uns podem passar por contra-sensos filosóficos, aqui, ao
contrário, uma vez que se recusa toda relação com uma teoria filosófica,
coloca-se a questão de saber de onde essa pesquisa psicológica
pode retirar seu sentido. Ao aceitar-se que ela se torne, de acordo com
o padrão da biologia, uma ciência objetiva das aptidões, das reações e
do comportamento, essa psicologia e seus psicólogos esquecem totalmente
de situar seu comportamento específico em relação às circunstâncias
históricas e aos meios sociais nos quais foram levados a propor
seus métodos ou técnicas e a tornar aceitáveis seus serviços.
Nietzsche, ao esboçar a psicologia do psicólogo do século XIX,
escreve: “Nós, psicólogos do futuro (…) consideramos quase como
um signo de degeneração o instrumento que procura conhecer a si
mesmo: somos os instrumentos do conhecimento e precisamos ter
toda ingenuidade e precisão de um instrumento; conseqüentemente
não temos o direito de analisar a nós mesmos, de nos conhecer”.11 Um
mal-entendido espantoso, mas como é revelador! O psicólogo quer ser
apenas um instrumento, sem procurar saber de quem ou do que é instrumento.
Nietzsche parecia melhor inspirado quando se inclina, no
início da Genealogia da Moral, sobre o enigma que os psicólogos ingleses
representam, ou seja, os utilitaristas, preocupados com a gênese
dos sentimentos morais. Ele se interrogou na ocasião sobre o que teria
levado os psicólogos na direção do cinismo, isto é, na explicação das
condutas humanas pelo interesse, utilidade e esquecimento dessas motivações
morais. E eis que, diante da conduta dos psicólogos do século
XIX, Nietzsche renuncia provisoriamente a todo cinismo, ou seja, a
toda lucidez!
A idéia de utilidade, como princípio de uma psicologia, resultava
da tomada de consciência filosófica da natureza humana enquanto potência
de artifício (Hume, Burke), mais prosaicamente, enquanto fabricante
de ferramentas (os enciclopedistas, Adam Smith, Franklin).
Mas o princípio da psicologia biológica do comportamento não parece
ter sido desprendido, da mesma maneira, de uma tomada de consciência
filosófica explícita; sem dúvida, porque só pôde ser posto em
prática sob a condição de permanecer sem ser formulado. Esse princípio
é a definição do próprio homem enquanto ferramenta. O utilitarismo,
que implica a idéia de utilidade para o homem, a idéia do homem
enquanto juiz da utilidade, foi sucedido pelo instrumentalismo,
que implica a idéia da utilidade do homem, a idéia do homem como
meio da utilidade. A inteligência não é mais aquilo que fez os órgãos
e serve-se deles, porém o que serve aos órgãos. Não é impunemente
que as origens históricas da psicologia das reações devem ser procuradas
nos trabalhos suscitados pela descoberta da equação pessoal própria
aos astrônomos que utilizam o telescópio (Maskelyne, 1796). O
homem foi inicialmente estudado enquanto instrumento do instrumento
científico antes de o ser enquanto instrumento de todo instrumento.
As pesquisas sobre as leis de adaptação e da aprendizagem, sobre
a relação entre aprendizagem e as aptidões, sobre a detecção e a mensuração
de aptidões, sobre as condições de rendimento e de produtividade
(quer se trate de indivíduos, quer de grupos) – pesquisas inseparáveis
de suas aplicações em seleção ou orientação – admitem todas
um postulado comum e implícito: a natureza do homem é ser um instrumento,
sua vocação é ser colocado em seu lugar, em sua tarefa.
Nietzsche, sem dúvida, tem razão quando diz que os psicólogos
querem ser os “instrumentos ingênuos e precisos” desse estudo do homem.
Eles se esforçaram para chegar a um conhecimento objetivo,
mesmo se o determinismo que procuram nos comportamentos não
seja mais hoje em dia o determinismo de tipo newtoniano, familiar aos
primeiros físicos do século XIX, mas um determinismo estatístico, progressivamente
baseado nos resultados da biometria. Mas qual é, enfim,
o sentido desse instrumentalismo de segunda potência? O que leva ou
inclina os psicólogos a tornar-se, entre os homens, os instrumentos da
ambição de tratar o homem como instrumento?
Nos outros tipos de psicologia, a alma ou o sujeito, forma natural
ou consciência de interioridade, é o princípio que se dá para justificar
enquanto valor uma certa idéia de homem em relação à verdade das
coisas. Todavia para uma psicologia na qual a palavra ‘alma’ faz fugir
e a palavra ‘consciência’ faz rir, a verdade do homem está dada pelo
fato de que não há mais nenhuma idéia de homem enquanto valor diferente
daquela de um instrumento. Ora, deve-se reconhecer que é
preciso, para que se possa questionar a idéia de um instrumento, que
nem todas as idéias sejam da ordem de um instrumento, e que é preciso
exatamente, para que se possa atribuir algum valor a um instrumento,
que nem todos os valores sejam o de um instrumento, cujo valor
subordinado consiste em encontrar um outro. Por conseguinte, se
o psicólogo não esgota o seu projeto de psicologia em uma idéia de
homem, acredita ele que possa legitimá-lo através de seu comportamento
de utilização do homem? Nós dizemos claramente: através de
seu comportamento de utilização, apesar de duas objeções possíveis.
Com efeito, podemos ser advertidos, de um lado, que esse tipo de psicologia
não ignora a distinção entre teoria e aplicação; de outro, que
a utilização não é feita pelo psicólogo, mas por aquele ou aqueles que
lhe pedem relatórios ou diagnósticos. Responderemos que, a não ser
que se confunda o teórico da psicologia com o professor de psicologia,
é preciso reconhecer que o psicólogo contemporâneo é, na maior parte
das vezes, um praticante profissional cuja “ciência” é na sua inteireza
inspirada pela pesquisa de “leis” de adaptação a um meio sócio-técnico
– e não a um meio natural –, o que sempre confere a suas operações
de “medida” um significado de avaliação e uma importância de especialista.
De modo que o comportamento do psicólogo do comportamento
humano encerra, de forma quase obrigatória, uma convicção
de superioridade, uma boa consciência diretora, uma mentalidade de
dirigente das relações entre os homens. Por essa razão, é preciso colocar
a questão cínica: quem designa os psicólogos como instrumentos
do instrumentalismo? Como se reconhecem os homens dignos de atribuir
ao homem instrumental seu papel e sua função? Quem orienta os
orientadores?
Evidentemente não nos colocaremos no terreno das capacidades e
da técnica. A questão não é saber se há bons ou maus psicólogos, ou seja,
técnicos hábeis que aprenderam ou incapazes que fazem tolices não previstas
pela lei. A questão é que uma ciência ou uma técnica científica não
contém por si só qualquer idéia que lhe confira seu sentido. Na sua Introdução
à Psicologia, Paul Guillaume fez a psicologia do homem submetido
a um teste. O testado defende-se contra essa investigação, teme
que se exerça sobre ele uma ação. Guillaume vê nesse estado de espírito
um reconhecimento explícito de um reconhecimento implícito da eficácia
do teste. Mas também se poderia ver aí um embrião da psicologia
do testador. A defesa do testado é a repugnância em se ver tratado como
um inseto por um homem a quem ele não reconhece nenhuma autori-
dade para lhe dizer o que é e o que deve fazer. “Tratar como um inseto”,
a palavra é de Stendhal, que a tomou emprestada de Cuvier.12 E se nós
tratarmos o psicólogo como um inseto; se nós aplicarmos, por exemplo,
a recomendação de Stendhal ao morno e insípido relatório Kinsey?
Dito de outra maneira, a psicologia da reação e do comportamento,
nos séculos XIX e XX, acreditou que se tornaria independente
ao separar-se de toda filosofia, ou seja, da especulação que pesquisa
uma idéia de homem para além do horizonte dos dados biológicos e
sociológicos. Mas essa psicologia não pode evitar a recorrência de seus
resultados sobre o comportamento daqueles que os obtêm. A questão
“Que é a psicologia?”, na medida em que se interdita a psicologia de
procurar sua resposta, torna-se “Onde querem chegar os psicólogos
fazendo o que fazem? Em nome de quem se declaram psicólogos?”.
Quando Gedeão recrutou o comando dos israelitas e chefiando-os repele
os madianitas para além do Jordão, ele utiliza um teste em duas
etapas que lhe permite, inicialmente, escolher dez mil homens entre
trinta e dois mil, e depois trezentos entre os dez mil. Mas este teste é
devedor do Eterno, tanto em relação ao objetivo de sua utilização
quanto ao procedimento de seleção usado. Para selecionar um selecionador,
é preciso normalmente transcender o plano dos procedimentos
técnicos de seleção. Dada a imanência da psicologia científica, permanece
a questão: quem tem, não a competência, mas a missão de ser
psicólogo? A psicologia repousa realmente sobre um desdobramento
– que não é mais aquele da consciência de acordo com os fatos e as
normas que a idéia de homem comporta –, uma massa de “sujeitos”
e uma elite corporativa de especialistas que investem a si mesmos de
sua própria missão.
Em Kant e em Maine de Biran, a psicologia está situada em uma
antropologia, ou seja, apesar da ambigüidade, atualmente muito em
voga desse termo, em uma filosofia. Em Kant, a teoria geral da habilidade
humana permanece relacionada a uma teoria da sabedoria. A
psicologia instrumentalista apresenta-se como uma teoria geral da habilidade,
fora de qualquer referência à sabedoria. Se não podemos definir
essa psicologia por uma idéia de homem, ou seja, situá-la dentro
da filosofia, certamente não temos o poder de interditar a quem quer
que seja de se dizer psicólogo e de chamar psicologia ao que faz. Mas
ninguém pode mais interditar a filosofia de continuar a interrogar-se
sobre o estatuto mal definido da psicologia, tanto do lado das ciências
como do lado das técnicas. A filosofia, quando procede assim, conduz-se
de acordo com sua ingenuidade constitutiva, tão pouco assemelhada
ao simplismo que não exclui um cinismo provisório, o que a leva a
voltar-se mais uma vez para o lado popular, ou seja, para o lado
natural dos não-especialistas.
Por conseguinte, é de forma muito vulgar que a filosofia interroga
a psicologia e diz: para aonde ides, para que eu saiba quem sois?
Mas o filósofo também pode dirigir-se ao psicólogo sob a forma de um
conselho – uma única vez não cria o hábito – e dizer: quando se sai
da Sorbonne pela rua Saint-Jacques pode-se subi-la ou descê-la; quando
se sobe, chega-se ao Panteão, o Conservatoire de alguns grandes homens,
mas quando se desce, certamente se chega à delegacia de polícia.

1 Nota do Editor (N.E.): texto publicado originalmente na Revue de Métaphysique et de


Morale (Paris, 1:
12-25, 1958), a partir de palestra proferida em 18 de dezembro de 1956, no Collège
Philosophique de
Paris.
2 L’Unité de la Psychologie. Paris: PUF, 1949.
3 Cf. Scipion Du Pleix. Corps de Philosophie contenant la Logique, la Physique, la
Métaphysique el l’Ethique.
Genève, 1636 (1éd, Paris, 1607).
4 Cf. Aron Gurwitsch. Développement Historique de la Gestalt-Psychologie, in Thalès,
IIe année, 1935, pp.
167-175.
5 Scipion Du Pleix, op. cit., Physique, p. 439.
6 Ibid., p. 353.
7 Cours de Philosophie positive. 1ère Leçon.
8 Essai sur les Fondements d enos Connaissances, 1851, §§ 371-376.
9 Publicado pelo seu filho Hyacinthe Royer-Collard (em Annales Médico-
Psychologiques, 1843, tomo II, p.1).
10 Qu’est-ce que la Phrénologie? ou Essai sur la signification et la valeur des systèmes
de psychologie en général
et de celui de Gall en particulier. Paris, 1836, p. 401.
11 La Volonté de Puissance. Trad. Blanquis, livro III, § 355.
12 “Ao invés de odiar o pequeno livreiro da cidade vizinha que vende o Almanaque
Popular, dizia eu ao meu amigo Senhor de Ranvelle, aplique-lhe o velho remédio
indicado pelo célebre Cuvier; trate-o como inseto. Investigue seus meios de
subsistência, procure adivinhar suas formas de acasalamento” (Mémorires d’un
Touriste, ed. Calmann-Lévy, tomo II, p. 23).

**N.E.: formado em medicina, o francês Georges Canguilhem (1904-1995) tornou-se


um incomparável
professor de filosofia; dedicado à instituição acadêmica, foi professor da Universidade
de Strasbourg e da
Sorbonne, na qual dirigiu o Instituto de História das Ciências. Deixou trabalhos
profundamente originais
em filosofia das ciências da vida.

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