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Tipicidade material e a tipicidade

conglobante de Zaffaroni

Luiz Flávio gomes

A tipicidade penal (sendo um conceito muito mais amplo e abrangente que o de


tipicidade legal, como vimos), de acordo com a teoria constitucionalista do delito que
estamos adotando, compreende três dimensões:

(a) a formal-objetiva (ou fática/legal ou lingüística), que envolve a conduta (mais o sujeito
ativo dela, o sujeito passivo, o objeto material, seus pressupostos), o resultado
naturalístico (nos crimes materiais), o nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado
naturalístico), as exigências temporais, espaciais, modo de execução da conduta etc.,
assim como a adequação do fato à letra da lei;

(b) a material (ou normativa), que exige três juízos valorativos distintos: 1º) juízo de
desaprovação da conduta (criação ou incremento de riscos proibidos relevantes); 2º) juízo
de desaprovação do resultado jurídico (ofensa desvaliosa ao bem jurídico ou desvalor do
resultado, que significa lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico) e 3º) juízo de
imputação objetiva do resultado (o resultado deve ter conexão direta com o risco criado ou
incrementado – "nexo de imputação");

(c) a subjetiva (constatação do dolo e outros eventuais requisitos subjetivos especiais).

As duas primeiras dimensões da tipicidade penal (formal-objetiva e material) espelham a


distinção (hoje absolutamente indiscutível no Direito penal) entre causação, desvaloração
e imputação do fato (aliás, a distinção entre causação e imputação aparece de modo
inequívoco no art. 13 do CP).

A dimensão formal-objetiva ou fática/legal (do fato materialmente típico) cuida da


causação (da relação de causa e efeito e do princípio da legalidade). A doutrina penal
clássica voltava-se somente para essa dimensão. Esqueceu (quase que) por completo do
aspecto da desvaloração da conduta ou mesmo da atribuição (imputação) do fato ao
agente. Na dimensão material, ao contrário, temos que examinar as questões
relacionadas com a desvaloração da conduta e do resultado jurídico assim como com a
imputação (atribuição) do fato ao seu agente (para se descobrir se o fato foi obra dele).
Todo delito, destarte, possui duas dimensões. Nos crimes dolosos ainda se requer uma
terceira, que é a subjetiva (que compreende o dolo e outros eventuais requisitos
subjetivos).

O conceito de tipicidade penal (sob o enfoque material e constitucional) que estamos


defendendo (e que compreende a tipicidade formal ou objetiva + tipicidade material ou
normativa + tipicidade subjetiva) aproxima-se muito do conceito de tipicidade conglobante
de Zaffaroni [01], cujo enunciado mais elementar poderia ser descrito da seguinte maneira:
o que está permitido ou fomentado ou determinado por uma norma não pode estar
proibido por outra. O juízo de tipicidade deve ser concretizado de acordo com o sistema
normativo considerado em sua globalidade. Se uma norma permite, fomenta ou determina
uma conduta, o que está permitido, fomentado ou determinado por uma norma não pode
estar proibido por outra.

Para o autor mencionado a tipicidade nos crimes dolosos é complexa e divide-se em


objetiva e subjetiva. A tipicidade objetiva é composta de uma parte sistemática e outra
conglobante. Da primeira fazem parte a conduta, o resultado naturalístico (em alguns
crimes), o nexo de causalidade e a adequação típica do fato à letra da lei. Integram a
segunda (a) a lesividade e (b) a imputação objetiva.

Zaffaroni sublinha que o tipo penal (que é uma construção dogmática) tem a missão de
limitar o exercício do poder punitivo, que não pode se transformar numa irracionalidade. A
tipicidade objetiva tem a função de retratar um fato criminoso, isto é, um conflito penal (a
conflitividade), que é uma das barreiras insuperáveis da racionalidade do poder punitivo.
Do tipo objetivo, então, fazem parte o tipo sistemático (conduta, resultado, etc.) assim
como o tipo conglobante. A tipicidade conglobante é a sede da conflitividade. Logo, cuida
ela da lesividade assim como da imputação objetiva.

Para o autor citado, como se nota, os critérios de imputação objetiva (criação ou


incremento de riscos proibidos) fazem parte do que ele chama de tipicidade conglobante.
O crime doloso seria então composto de tipicidade objetiva + tipicidade subjetiva. Leia-se:
de tipicidade sistemática + tipicidade conglobante + dimensão subjetiva (dolo e outros
eventuais requisitos subjetivos).

Em nossa configuração, todos os delitos (dolosos ou culposos) contam com uma


dimensão formal-objetiva (fática/legal) e outra material-normativa. Nos crimes dolosos
ainda há a dimensão subjetiva.

Esquematicamente, no crime doloso, a tipicidade para Zaffaroni seria: tipicidade objetiva +


tipicidade subjetiva. Aquela compreenderia a tipicidade sistemática + tipicidade
conglobante.

Para nós, a tipicidade penal é composta da tipicidade formal ou objetiva + tipicidade


material ou normativa + tipicidade subjetiva.

O que Zaffaroni chama de tipicidade conglobante (ofensividade + imputação objetiva) nós


denominamos de tipicidade material, que requer (de acordo com nossa concepção) três
juízos valorativos distintos: 1º) juízo de desaprovação da conduta (criação ou incremento
de riscos proibidos relevantes); 2º) juízo de desaprovação do resultado jurídico (ofensa
desvaliosa ao bem jurídico, que significa lesão ou perigo concreto de lesão ao bem
jurídico) e 3º) juízo de imputação objetiva do resultado (o resultado deve ter conexão
direta com o risco criado ou incrementado – "nexo de imputação").

O resultado jurídico será desvalioso quando a ofensa for (a) concreta ou real (perigo
abstrato ou presunção de perigo não encontra espaço no Direito penal da ofensividade),
(b) transcendental, ou seja, dirigida a bens jurídicos de terceiros (nunca o sacrifício de
bens jurídicos próprios pode justificar a imposição de um castigo penal), (c) grave ou
significativa (relevante) e (d) intolerável.

A distinção entre nossa construção (teoria constitucionalista do delito) e a de Zaffaroni


(teoria da tipicidade conglobante) reside na agregação de alguns detalhamentos na
tipicidade material.

Da obra de Zaffaroni podemos inferir mas não resultam claros os três juízos distintos que
compõem o lado material da tipicidade (desvalor da conduta + desvalor do resultado
jurídico + imputação objetiva do resultado).

De qualquer maneira, louve-se a virtude de Zaffaroni de insistir que a ofensividade (que


ele chama de lesividade) faz parte do tipo penal. A doutrina de Zaffaroni nesse sentido
constitui a base da nossa teoria constitucionalista do delito. A exigência imperiosa da
ofensividade (não há crime sem ofensa ao bem jurídico) não era retratada com clareza
nas anteriores construções da teoria do delito (causalista, neokantista, finalista ou mesmo
funcionalista).

De outro lado, tudo que Zaffaroni insere na chamada tipicidade conglobante (o que está
permitido ou fomentado ou determinado por uma norma não pode estar proibido por outra)
faz parte do primeiro juízo valorativo da tipicidade material, ou seja, do juízo de
desaprovação da conduta (criadora ou incrementadora de riscos proibidos). Se existe uma
norma que permite, fomenta ou determina a conduta, não se pode dizer que essa conduta
tenha criado risco proibido. O que está permitido, fomentado ou determinado por uma
norma gera risco permitido, logo, não há que se falar em desaprovação da conduta (ou em
tipicidade penal).

Os critérios determinantes da tipicidade conglobante de Zaffaroni, em suma, são


relevantes para o juízo de aprovação (ou desaprovação) da conduta. O que está permitido
ou fomentado ou determinado por uma norma não pode ser proibido por outra, portanto,
não constitui fato típico (ou um fato materialmente típico).

Análise crítica sobre a tipicidade conglobante à luz da teoria de Eugenio Raul Zafaroni e
José Henrique Pierangeli

» Juliana Nogueira Galvão Martins

1. Tipicidade conglobante.

Zafaroni e Pierangeli, em seu livro manual de direito penal, trabalharam uma nova
forma de tipicidade. É a chamada tipicidade conglobante. Essa tipicidade, em verdade
ao invés de conglobante deveria ser chamada de englobante, pois engloba outros
conceitos que não apenas os típicos.
A teoria da tipicidade conglobante considera que para que o fato seja típico, deve-se
analisar outros elementos, portanto a tipicidade passará a analisar outros aspectos além
daqueles previstos no tipo penal.

Esta teoria se fundamenta no modelo clássico do finalismo, que separa tipicidade e


ilicitude (teoria indiciária), não adotando o modelo da teoria dos elementos negativos do
tipo.

O fato ser típico para o direito penal resulta na clássica tipicidade formal, mas precisa de
algo mais, chamado de tipicidade conglobante.

TIPICIDADE PENAL = TIPICIDADE FORMAL + TIPICIDADE CONGLOBANTE

TIPICIDADE CONGLOBANTE = ANTINORMATIVIDADE + TIPICIDADE


MATERIAL.

Tipicidade formal é a descrição na lei da conduta formalmente proibida. É o tipo penal


clássico – verbo, elementos objetivos (descritivos e normativos – jurídicos e
extrajurídicos), elemento subjetivo (dolo e elementos especiais (fim específico de agir,
nem todo tipo penal tem)).

Antinormatividade seria toda conduta contrária às normas e as suas determinações.


Condutas que sejam determinadas, fomentadas pela norma não são consideradas
antinormativas. Antinormatividade (contrário a norma) é o fomento, desestímulo, se a
norma manda fazer, e se faz, não é contrário a norma. Se se atua em estrito
cumprimento do seu dever legal, isso é um dever imposto pela lei, se a lei impôs um
dever ela fomentou, determinou que se agisse de acordo com a norma, não é
antinormativo. Aquilo que a doutrina clássica tratou como o art. 23 – estado de
necessidade, legitima defesa, estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de
direito.

Para Zafaroni, a antinormatividade não é comprovada somente com a adequação da


conduta ao tipo legal, posto que requer uma investigação do alcance da norma que está
anteposta, e que deu origem ao tipo legal, e uma investigação sobre a afetação do bem
jurídico. Essa investigação é uma etapa posterior do juízo de tipicidade que, uma vez
comprovada a tipicidade legal, obriga a indagar sobre a antinormatividade, e apenas
quanto esta se comprova é que se pode concluir pela tipicidade penal da conduta.

A tipicidade legal e tipicidade penal são a mesma coisa: a tipicidade pressupõe a legal,
mas não a esgota; a tipicidade penal requer, além da tipicidade legal, a
antinormatividade.

A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal, posto que pode excluir do


âmbito do típico aquelas condutas que apenas aparentemente estão proibidas, como
acontece no caso do oficial de justiça, em que sua conduta se adequa ao “ subtrair para
si ou para outrem, coisa alheia móvel”, mas que não é alcançada pela proibição “não
furtarás”.
Quando se age por dever legal, a norma manda se agir dessa forma, por isso é
normativo. Desse modo, o estrito cumprimento de dever legal não deve estar nas
excludentes de ilicitude.

Portanto, diante do referido acima, as hipóteses previstas como estrito cumprimento de


dever legal e alguns casos de exercício regular do direito deixam de ser consideradas
como causas de exclusão de ilicitude, passando a integrar o conceito de fato típico,
possuindo a natureza jurídica de causa de exclusão de tipicidade.

Zafaroni também traz algumas hipóteses de exercício regular de direito como causas de
exclusão da tipicidade como o exercício do poder familiar, pois se colocar alguém de
castigo é cárcere privado, mas a conduta não é antinormativa, pois permitida pelo
ordenamento jurídico.

Para o mesmo autor, a antijuridicidade é diferente de antinormatividade. Para ele,


antinormativo tem a ver com a lei fomentar, tem a ver com que a lei quer que você faça,
por isso dever legal. Enquanto que o conceito de antijuridicidade tem a ver com a idéia
de autorização, permissão e não fomentação. Por isso quando se fala de antijuridicidade
se fala de estado de necessidade, legitima defesa, lhe permite atuar em situação de
perigo para preservar o seu bem em detrimento de outrem. Dessa maneira, o modelo
clássico de antijuridicidade ser indício de tipo permanece.

Ao diferenciar antijuridicidade (permissão) e antinormatividade (fomento) Zafaroni


mantém o modelo clássico, separando tipicidade de ilicitude e mantendo legitima defesa
e estado de necessidade como excludentes de ilicitude, tratando apenas do estrito
cumprimento do dever legal e do exercício regular do direito como elementos
excludentes do fato típico.

Já a tipicidade material serve para materializar o tipo penal, ou seja, só ocorre quando
lesionar o bem jurídico, o famoso princípio da lesividade, mas para que ocorra deve
violar bem jurídico alheio. Essa lesão deve ser significante, conduzindo o princípio da
insignificância ou bagatela, princípio decorrente da lesividade, que precisa ser relevante,
significante.

Para materializar o tipo precisa-se de uma lesão, mas se ela for muito pequena, não é
suficiente para lesionar o bem jurídico, não materializa, sendo a conseqüência do
principio da insignificância é retirar a tipicidade material, que retira a tipicidade
conglobante, que por sua vez retira a tipicidade penal, o fato é atípico para o direito
penal.

A tipicidade material vincula-se ao conceito de lesão a um bem jurídico tutelado,


portanto, liga-se ao princípio da lesividade, conseqüentemente também vincula-se ao
princípio da insignificância, pois lesões ínfimas, insignificantes não serão capazes de
materializar o tipo penal. Diante disso, a conseqüência do princípio da insignificância
será ausência de tipicidade material que gera ausência da tipicidade conglobante que faz
com que o fato seja atípico para o direito penal.

Porque a lesão insignificante não materializa o tipo? A resposta a essa questão passa
pelo princípio da intervenção mínima. Vejamos.
Uma lesão materializa o tipo, mas não permite que o direito penal puna, pois ele serve
apenas para os bem jurídicos mais importantes.

Sendo assim, para se considerar que uma lesão insignificante não materializa o tipo
penal, a teoria da tipicidade conglobante traz o princípio da intervenção mínima para o
plano concreto, para as mãos do aplicador da lei (promotor e juiz), possibilitando que se
considere a conduta atípica para o direito penal.

Quem tem legitimidade para aplicar o principio da insignificância? Promotor e juiz.


Quanto ao delegado, apesar da divergência, tem pravalecido que não pode aplicar o
princípio da insignificância.

2. Antinormatividade e antijuridicidade

O preceito permissivo dá lugar a uma causa de justificação, isto é, a um tipo permissivo.


É uma permissão que a ordem jurídica outorga a certas situações conflitivas. O que se
quer destacar é que a antijuridicidade surge da antinormatividade (tipicidade penal) e da
falta de adequação a um tipo permissivo, ou seja, da circunstância de que a conduta
antinormativa não esteja amparada por uma causa de justificação.

No que se refere a tipicidade penal ela implica a contrariedade com a ordem normativa,
mas não implica a antijuridicidade (a contrariedade com a ordem jurídica), porque pode
haver uma causa de justificação (um preceito permissivo) que ampare a conduta.

3. Atipicidade conglobante e justificação

A legítima defesa é uma causa de justificação, isto é, uma permissão outorgada pela
ordem jurídica para a realização da conduta antinormativa. O direito nos outorga uma
permissão para repelir a agressão, sem dar relevância à nossa possibilidade de fuga. Dá-
nos permissão até mesmo para matar o agressor, se isto é racionalmente possível. Não
nos obriga a fugir, dá-nos permissão para repelir.

Mas, esta permissão para repelir a agressão, ilegítima e não provocada, não implica que
fomente e muito menos que nos ordene semelhante conduta. Simplesmente, nestas
hipóteses conflitivas, a ordem jurídica limita-se a permitir a conduta, porque não se
pode afirmar que incentive que um homem que pode fugir prefira matar.

É precisamente esta a mais importante diferença entre a tipicidade conglobante e a


justificação: a atipicidade conglobante não surge em função de permissões que a ordem
jurídica resignadamente concede, e sim em razão de mandatos ou fomentos normativos
ou de indiferença (por insignificância) da lei penal. A ordem jurídica resigna-se a que
um sujeito se apodere de uma jóia valiosa pertencente a seu vizinho, e que a venda para
custear o tratamento de um filho gravemente enfermo, que não tem condições de pagar
licitamente, mas ordena ao oficial de justiça que apreenda o quadro e lhe impõe uma
pena se não o faz, fomenta as artes plásticas, enquanto que se mantém indiferente à
subtração de uma folha de papel rabiscada.

4 – Conclusões
A tipicidade conglobante, diante de todo o exposto, veio a corrigir as distorções
ocasionadas na análise do tipo.

O ordenamento constitui um sistema, ou seja, uma totalidade ordenada, conjunto de


elementos entre os quais existe uma ordem. Essa só existirá “se os entes que a
constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num
relacionamento de coerência entre si”. A coerência que as normas guardam entre si
impede que uma proíba o que outras ordenam ou fomentam. Assim sendo, não pode o
tipo proibir o que o direito fomenta ou ordena, sob pena de se transformar o sistema
jurídico num caos.

Diante desse quadro, Zaffaroni conclui que “o juízo de tipicidade não é mero juízo de
tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade
conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance
proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem
normativa. A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal, posto que pode
excluir no âmbito do típico aquelas condutas que aparentemente estão proibidas.”.
Tipicidade penal haverá quando presentes a tipicidade legal e a tipicidade conglobante.
Assim, a conduta do oficial de justiça que seqüestrar uma obra não pode ser considerada
típica, mas coberta por excludente de antijuridicidade, como afirma grande parte dos
doutrinadores. Nesse caso, considerando-se que há norma determinando o cumprimento
de um dever, sequer haverá tipicidade.

Por fim, a teoria da tipicidade conglobante, embora tenha boa aceitação doutrinária,
mistura os conceitos de tipicidade e antijuridicidade, indo de encontro à estrutura do
nosso Código Penal, claro em estabelecer dois momentos distintos: o do tipicidade e o
das causas de justificação.

Ula Senra
Tipicidade Conglobante
31/05/2004

O direito é um universo harmônico de normas que guardam, entre si, uma certa ordem e
coerência. Caso contrário, haveria a guerra civil - uma guerra de todos contra todos -, e
é exatamente isso que a ordem jurídica pretende e deve impedir.
É com base nesse entendimento que Eugenio Raúl Zaffaroni constrói a teoria da
tipicidade conglobante.
A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal, uma vez que pretende
excluir do âmbito da tipicidade certas condutas que, pela doutrina tradicional, são
tratadas como excludentes da ilicitude.
No caso de condutas em que a ordem normativa ordena ou fomenta, segundo Zaffaroni,
não se fala em exclusão da ilicitude, mas de ausência de tipicidade conglobante. Por
uma questão lógica, o tipo não pode proibir o que o direito ordena ou fomenta.
Dessa forma, nos casos de estrito cumprimento do dever legal que, tradicionalmente,
excluem a ilicitude da conduta, estar-se-ia diante de atipicidade conglobante. Caso
contrário, teríamos que considerar que o oficial de justiça que seqüestra uma coisa
móvel comete furto justificado, que o médico que cumpre com o dever de denunciar
uma doença contagiosa comete uma violação de segredo profissional justificada ou o
policial que detém um sujeito por prisão em flagrante comete uma privação ilegal de
liberdade justificada.
Nos casos de intervenção cirúrgica com fins terapêuticos, a conduta do médico é atípíca,
por serem fomentadas pelo direito. Por intervenções com fim terapêutico devem ser
entendidas aquelas que perseguem a conservação ou o restabelecimento da saúde, a
prevenção de um dano maior ou a atenuação da dor. Certas intervenções cirúrgicas,
como no caso mutilação, o médico é obrigado a pedir a autorização do paciente.
Entretanto, sua falta acarreta apenas a responsabilidade administrativa, podendo-se
atribuir a responsabilidade penal se configurar algum delito contra a liberdade
individual. Porém, nunca pode ser responsabilizado por lesões corporais, porque o fim
terapêutico exclui essas intervenções do âmbito de proibição do tipo de lesões.
Já nas intervenções cirúrgicas sem fins terapêuticos o tratamento é diverso. Essas
ocorrem nos casos de cirurgia plástica ou extração de órgãos ou tecidos para serem
transplantados em outra pessoa (o fim terapêutico diz respeito ao outro, mas não ao
doador). Nesse caso, a conduta do médico é típica, mas justificada diante do
consentimento e da adequação às normas regulamentares. Caso não haja consentimento
do paciente, configura-se a conduta típica de lesões corporais dolosas.
Em relação às lesões desportivas, Zaffaroni considera que são conglobalmente atípicas,
sempre que a conduta tenha ocorrido dentro da prática regulamentar do esporte,
perdendo a atipicidade conglobante e adquirindo tipicidade penal no caso de violação
dos regulamentos.
Data venia, "ouso" discordar do tratamento dado às lesões desportivas por Zaffaroni.
Não me parece, ao contrário do que ele afirma, que a ordem jurídica ordene ou fomente
esportes como o boxe, por exemplo. Entendo que tais esportes são tolerados pela ordem
jurídica e devem, portanto, ser tratados como usualmente o fazem a doutrina e
jurisprudência.
Em suma, as atividades em que a ordem jurídica ordena ou fomenta são resolvidas no
âmbito da atipicidade conglobante. Já as condutas permitidas ou simplesmente toleradas
são causas de exclusão da ilicitude. Nos casos de atividades perigosas, por exemplo,
devem ser distinguidas as atividades fomentadas e as permitidas. A circulação de
veículos automotores, que é fomentada pela ordem normativa e regulamentada, não
pode ser considerada da mesma forma que outras atividades, como a instalação de uma
fábrica de explosivos, que o direito apenas permite.
Por fim, a tipicidade penal é a conjugação da tipicidade legal e da tipicidade
conglobante.
A tipicidade legal é a subsunção (adequação) da conduta ao tipo penal previsto em lei.
A tipicidade conglobante é a antinormatividade aliada à tipicidade material.
A tipicidade material significa que não basta que a conduta do agente se amolde ao tipo
legal. É preciso que lesione ou coloque em risco bens jurídicos penalmente relevantes.
Aliás, é sempre importante lembrar que uma das funções precípuas do direito penal é a
proteção de bens jurídicos tutelados pela norma criminal.
Em termos jurisprudenciais, ainda é tímido o reconhecimento da tipicidade conglobante.
Como se pode observar nos acórdãos citados, somente se reconhece a atipicidade
conglobante nos casos de falta de tipicidade material, mais precisamente em face do
Princípio da Insignificância.
REsp 457679 / RS; 2002/0091098-7
Relator : Min. Felix Fischer
Penal. Recurso Especial. Apropriação Indébita de Contribuição Previdenciária.
Princípio da Insignificância. Prescrição Retroativa.
I- O princípio da insignificância como causa de atipicidade
conglobante, afetando a tipicidade penal, diz com o ínfimo, o
manifestamente irrelevante em sede de ofensa ao bem jurídico
protegido. O referencial deve ser calcado em norma que não seja
meramente administrativa - ou ainda, interna corporis - e
provisória.
II - Julgada procedente a ação penal, é de se reconhecer a extinção
da punibilidade quando decorrido o prazo prescricional entre a data
do julgamento do recurso e o recebimento da exordial, visto que, na
instância comum, as decisões foram absolutórias.
Recurso provido e julgada extinta a punibilidade pela ocorrência da
prescrição retroativa.
REsp 470978 / MG; 2002/0127163-8
Relator : Min. Felix Fischer
Penal e Processual Penal. Recurso Especial. Furto. Princípio da
Insignificância. Dissídio.
I - No caso de furto, para efeito da aplicação do princípio da
insignificância, é imprescindível a distinção entre ínfimo
(ninharia) e pequeno valor. Este, ex vi legis, implica
eventualmente, em furto privilegiado; aquele, na atipia conglobante
(dada a mínima gravidade).
II - A interpretação deve considerar o bem jurídico tutelado e o
tipo de injusto.
III - O dissídio pretoriano tem que observar o disposto nos arts.
255 do RISTJ e 541 do CPC (c/c o art. 3º do CPP).
Recurso não conhecido.
HC 11542 / DF; 1999/0116943-7
Relator : Min. Felix Fischer
Penal e Processual Penal. Habeas Corpus. Homicídio Qualificado.
Desclassificação do Latrocínio. Pronúncia. Roubo Descaracterizado.
I - Se, em razão de recurso, é afastada a figura de latrocínio,
determinando-se a pronúncia por homicídio qualificado, a residual
figura da subtração patrimonial, já agora sem violência ou grave
ameaça e sem vínculo causal com o primeiro delito, não pode ser
admitida, dada a insignificância da res furtiva (R$ 1,00). Princípio
da bagatela que, pela atipicidade conglobante, afasta a tipicidade
penal.
II - A quaestio acerca do excesso de prazo está, agora, superada
conforme o teor da Súmula n. 21-STJ.
Habeas corpus parcialmente concedido.

Tipicidade Conglobante

Tipicidade ConglobanteCumpre estudarmos no presente momento um tema


sobre o qual muito se tem falado e pouco se tem compreendido, qual seja: a
“tipicidade conglobante”, que nada mais é do que um juízo de tipicidade que
leva em consideração, além da descrição típica da conduta, sua
antinormatividade, sua contrariedade ao ordenamento jurídico como um todo.

Perceba, portanto, que: tal como leciona o Profº. Fernando Capez, o nome
“conglobante” decorre da necessidade de que a conduta seja contrária ao
ordenamento jurídico em geral (conglobado) e não apenas ao ordenamento
penal.

A propósito: antes de continuarmos estudando a tipicidade conglobante


propriamente dita, imaginemos a seguinte situação: um policial, de nome
Pontcherello, munido de mandado de prisão expedido pelo juiz competente,
se dirige até a residência do Sr. Vhouffu Jir , lhe dá voz de prisão e o
transporta até a cadeia local, onde ele deverá permanecer, pelo menos, até o
julgamento do processo por roubo ( art. 157 do CP) no qual figura como réu.

Pois bem: é certo que não se poderia responsabilizar penalmente o policial


pela conduta de colocar o criminoso numa cela, mas, igualmente, não
podermos negar que tal conduta se enquadra na descrição contida no artigo
148 do Código Penal, que assim preceitua: privar alguém de sua liberdade,
mediante seqüestro ou cárcere privado.

Sendo que: é pacífico que o policial não será passível de nenhuma


reprimenda penal pois agiu no estrito cumprimento do dever legal.

No entanto: discute-se nos dias de hoje se o estrito cumprimento do dever


legal exclui a tipicidade ou a antijuridicidade. O estrito cumprimento do
dever figura no rol do artigo 23 do Estatuto Repressor como sendo uma causa
de exclusão da antijuridicidade, no entanto, para os autores que trabalham
com o conceito conglobante de tipicidade, é esta ( tipicidade) que desaparece
quando o sujeito age no estrito cumprimento do dever legal .

Isto porque: tal como lecionam os Mestres Eugenio Raul Zaffaroni e José
Henrique Pierangelli, o juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade
legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade
conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do
alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada
na ordem normativa. A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade
legal, posto que pode excluir do âmbito típico aquelas condutas que apenas
aparentemente estão proibidas[1].

Perceba que: o conceito de tipicidade conglobante destaca a importância de


existir uma harmonia entre os dispositivos integrantes do ordenamento
jurídico, posto que busca impedir que uma norma ordene o que outra proíbe,
e esta finalidade é louvável pois como bem asseveram os penalistas
supracitados, as normas jurídicas não vivem isoladas, mas num
entrelaçamento em que umas limitam as outras, e não podem ignorar-se
mutuamente.

Você pode estar se perguntando: qual a função deste juízo de tipicidade


diferenciado ? Em verdade, este juízo conglobante de tipicidade permite que
o Direito Penal apenas se ocupe de condutas que efetivamente contrariam a
ordem jurídica, e não de condutas que apenas num primeiro momento podem
ser consideradas antinormativas. Sobre este particular aspecto, temos por

[
oportuno, mais uma vez, nos socorrermos das elucidativas lições dos Mestres
Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangelli, que assim podem ser
transcritas:

“A função deste segundo passo do juízo de tipicidade penal será, pois, reduzi-
la à verdadeira dimensão daquilo que a norma proíbe, deixando fora da
tipicidade penal aquelas condutas que somente são alcançadas pela tipicidade
legal, mas que a ordem normativa não quer proibir, precisamente porque as
ordena ou as fomenta.”

A propósito: na citação supra, os penalistas em comento citam a tipicidade


legal. Vejamos então qual a diferença, segundo eles, entre esta espécie de
tipicidade e a tipicidade conglobante:

Tipicidade legal: individualização que a lei faz da conduta, mediante o


conjunto de elementos descritivos e valorativos ( normativos) de que se vale o
tipo penal.

Tipicidade Conglobante: é a comprovação de que a conduta legalmente típica


está também proibida pela norma, o que se obtém desentranhando o alcance
da norma proibitiva conglobada com as restantes normas da ordem normativa.

Saiba ainda que: segundo os autores em comento, tipicidade legal +


tipicidade conglobada = tipicidade penal.

Preste muita atenção: poder-se-ia dizer que no exemplo supra formulado há


ausência de antijuridicidade e não atipicidade conglobante. No entanto, a
essência das causas de justificação é totalmente diferente da atipicidade
conglobante. Com relação à legítima defesa, por exemplo, esta se traduz em
sendo uma permissão concedida ao cidadão para que, em situações
específicas, ele repila, por seus próprios meios, uma agressão injusta. Em se
tratando de “legítima defesa”, o direito permite a agressão, mas não a
incentiva e nem a ordena.

Sendo que: segundo os penalistas supracitados, é precisamente esta a mais


importante diferença entre a atipicidade conglobante e a justificação: a
atipicidade conglobante não surge em função de permissões que a ordem
jurídica resignadamente concede, e sim em razão de mandatos ou fomentos
normativos ou de indiferença (por insignificância) da lei penal. Vejamos um
exemplo prático desta diferença que nos é fornecido pelos penalistas em
questão para que assim se possa melhor compreender o que estamos a expor:

“A ordem jurídica resigna-se a que um sujeito se apodere de uma jóia valiosa


pertencente ao seu vizinho, e que a venda possa custear o tratamento de um
filho gravemente enfermo, que não tem condições de pagar licitamente, mas
ordena ao oficial de justiça que apreenda o quadro e lhe impõe uma pena se
não o faz, fomenta as artes plásticas, enquanto que se mantém indiferente à
subtração de uma folha de papel rabiscada.”

Pois bem: esperamos que esta sucinta exposição sobre a tal da “tipicidade
conglobante” tenha possibilitado uma compreensão eficaz do tema, sendo
que, por fim, temos por oportuno trazer à tona o posicionamento do Profº.
Fernando Capez, questionando a utilidade da teoria da tipicidade
conglobante:

“Embora concordando que a tipicidade formal (ou legal) não é suficiente,


podemos substituir com vantagem a tipicidade conglobante pela exigência de
que o fato típico, além da correspondência à descrição legal, tenha conteúdo
do crime, fazendo-se incidir os já estudados princípios constitucionais do
Direito Penal, a fim de dar conteúdo material ontológico ao tipo penal. Deste
modo, se a lesão for insignificante, se não houver lesão ao bem jurídico, se
não existir alteridade na ofensa, se não for traída a confiança social
depositada no agente, se a atuação punitiva do Estado não for
desproporcional ou excessivamente interventiva, dentre outros, o fato será
materialmente atípico, sem precisar recorrer à atipicidade conglobante.”

Saber Digital: Revista Eletrônica do CESVA, Valença, v. 1, n. 1, p. 248, mar./ago. 2008


248
A MODERNA TIPICIDADE PENAL
BARROS, D. C.
A moderna tipicidade penal é um tema recente no mundo das ciências
criminais, pois trata-se de uma verdadeira “colcha de retalhos”. Não há
consenso entre os doutrinadores à cerca de qual é a teoria ideal a ser
adotada, havendo inclusive aqueles que nada mencionam sobre o tema.
Porém, ignorá-lo, por mais tortuoso que ele possa ser, não é a melhor
solução visto que o mesmo já vem sendo ventilado em diversas
sentenças e acórdãos pelo Brasil. A nova concepção de tipicidade parte
de um paradigma comum que é a existência de uma tipicidade formal e
uma material, elevando o conceito de tipicidade a uma dimensão maior
do que a dada pela tradicional doutrina. Para esta corrente clássica a
tipicidade pode ser definida como a conformidade do faro social
praticado pelo ser humano com a previsão abstrata legal.Como afirma
Damásio E. de Jesus: “A tipicidade é a correspondência entre o fato
praticado pelo agente e a descrição de cada espécie de infração contida
na lei penal incriminadora.”Essa tendência da valorização da tipicidade
pode ser entendida como um conjunto de teorias e de princípios que tem
como escopo a celeridade processual bem como a supressão de lacunas
existentes no sistema finalista, sistema este que é adotado no
ordenamento jurídico pátrio e na maioria dos países que tem o
positivismo como berço. Integram esta concepção moderna a teoria da
tipicidade conglobante, a teoria da imputação objetiva e a teoria da
afetação do bem jurídico que tem como principal fonte o Princípio da
Lesividade. As diversas teorias que constituem esse novo entendimento
da tipicidade tem origem temporal e espacial diversas umas das outras.
A teoria da tipicidade conglobante teve origem na Argentina tendo como
expoente o Professor Eugênio Raúl Zaffaroni trazendo elementos da
antijuricidade para serem analisados na tipicidade conglobante que
muito se assemelha ao conceito de tipicidade material, por isso tratada
por muitos autores como sinônimos, o que metodologicamente é bem
adequado. Trata-se de uma teoria que tem por fundamento uma
hermenêutica sistemática do ordenamento jurídico penal. Também irá
refletir na tipicidade material a teoria da afetação do bem jurídico que se
baseia na idéia de só haver tipicidade se houver uma ofensa ou um
perigo tal a um bem jurídico tutelado. São arcabouços desta Teoria os
Princípios da Insignificância ou da Bagatela, o Princípio da Ofensividade
e, para alguns autores, o Princípio da Adequação Social. Por fim, a teoria
da imputação objetiva cuida de
tipicidade em uma visão ampliada que valoriza o contexto social, o risco
inerente de se viver em sociedade, aspectos de política criminal e de
sociologia que envolvem o direito penal. Seu surgimento ocorre na
Alemanha e tem como principais expoentes Claus Roxin e Günther
Jakobs.

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