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A Vontade Eterna e Imutável de Deus

por

Agostinho

É certo que muitas coisas más são pelos maus praticadas contra a
vontade de Deus. Mas tão grande é a Sua sabedoria e tamanha é a
Sua virtude que tudo, mesmo o que parece contrário à Sua vontade,
tende para os fins e resultados que Ele antecipadamente viu como
bons e justos. Por isso, quando se diz que Deus muda de vontade,
que, por exemplo, fica irado contra aqueles para quem era brando, -
não foi Ele mas foram os homens que mudaram e de certo modo o
acham mudado nas mudanças que experimentam: tal qual como o
Sol muda para os olhos enfermos - de suave torna-se de certa
maneira áspero, de deleitosos torna-se molesto, embora ele próprio
continue a ser o mesmo que era. Também se chama de Deus a
vontade que Ele suscita nos corações dos que obedecem aos seus
mandamentos e da qual diz o Apóstolo:

É Deus que opera em nós o próprio querer (Deus enim est, qui
operatur in nobis et velle - Filipenses 2:13);

como se chama de Deus não só a justiça pela qual Ele próprio é justo,
mas também a que Ele faz no homem que por Ele é justificado. Da
mesma forma se chama de Deus a lei que é antes dos homens mas
que por Ele foi dada; pois eram realmente homens aqueles a quem
Jesus dizia:

Está escrito na vossa lei (In lege vestra scriptum est -João 8:17),

embora noutra passagem leiamos:

A lei do seu Deus está no seu coração (Lex Dei ejus in corde ejus
-Salmo 37:31).

Conforme esta vontade que Deus produz nos homens, diz-se que Ele
quer o que Ele próprio não quer, mas faz com que os seus isso
queiram, como se diz que Ele conheceu o que Ele fez que fosse
conhecido por aqueles que isso ignoravam. Pois, nem quando o
Apóstolo diz:

Mas conhecendo agora a Deus, ou melhor, conhecidos de Deus (Nunc


autem cognoscentes Deum, immo cogniti a Deo -Gálatas 4:9),
é lícito que acreditemos que Deus conheceu então os que conhecia
antes da criação do mundo; mas diz-se que conheceu então o que fez
com que então fosse conhecido. Destas formas de expressão recordo-
me que já se tratou nos livros anteriores. É, pois, conforme essa
vontade (pela qual, como dizemos, Deus quer o que faz querer ao
outros, pelos quais são ignoradas as coisas futuras) que Ele quer
muitas coisas mas não é Ele que as faz.

Com efeito, os seus santos, com uma vontade santa por Ele inspirada,
querem que se façam muitas coisas que não chegam a ser feitas;
como rogam piedosa e santamente por alguns, mas Ele não faz o que
lhe pedem, sendo Ele quem, pelo Seu Espírito, causa neles essa
vontade de orar. Por isso, quando os santos querem e rogam, em
conformidade com Deus, que cada um seja salvo, podemos dizer,
segundo esse tipo de expressões: Deus quer mas não faz; dizemos
então que Ele quer no sentido de que Ele faz com que os outros
queiram. Mas, conforme essa vontade, que é sua e eterna como a sua
presciência, claro está que tudo o que quis no Céu e na Terra, tanto
passado e presente como futuro, fê-lo já. Mas antes que chegue o
tempo em que se cumprirá como Ele quis o que antes de todos os
tempos Ele previu e determinou, nós dizemos: Acontecerá quando
Deus quiser; mas se ignoramos dum acontecimento, não só o
momento (tempus) em que virá a acontecer, mas também se chegará
a acontecer, então dizemos: Acontecerá se Deus quiser: não porque
Deus venha a ter então uma vontade nova que antes não tinha, mas
porque só então acontecerá aquilo que desde toda a eternidade está
preparado na sua vontade imutável.

Extraído de: A Cidade de Deus - De Civitate Dei.

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