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Karina Kuschnir
estudos buscavam entender a organização social tante contribuição para a reflexão em torno do
de grupos e etnias sem a presença de um sistema poder (Vincent, 2002).
político formal, isto é, sem Estado. É nessa No contexto brasileiro, desenvolveu-se, na
direção que surgem as reflexões sobre a im- década de 1990, um conjunto de trabalhos auto-
portância dos sistemas de parentesco para a hie- denominados antropologia da política, que tive-
rarquia e a coesão sociais. Tendo como referência ram sua institucionalização mais importante no
inicial Radcliffe-Brown, sucederam-se autores Núcleo de Antropologia da Política (NuAP), sedia-
como Evans-Pritchard, Meyer Fortes, Max do no Museu Nacional da UFRJ, mas envolvendo
Gluckman, Edmund Leach e Victor Turner, entre grupos em outras universidades federais, como as
outros. Alguns dos textos fundamentais da então de Brasília, Ceará e Rio Grande do Sul, entre out-
recém-nomeada “antropologia política” foram ras. O objetivo do NuAP, como definiu Peirano
produzidos nesse contexto, como a coletânea (1998), era partir da “suposição básica de que a
African political systems (Fortes e Evans-Pritchard, categoria política é sempre etnográfica”. Ao inves-
[1940] 1961) e a monografia Os Nuer (Evans- tigar a política legitimada pelos padrões ociden-
Pritchard, [1940] 1978). Essa abordagem, por sua tais modernos, “deslegitimando pretensões essen-
vez, também gerou críticas. A definição de poder cialistas, sociocêntricas e conformistas”, revela-se
teria se tornado tão ampla que poderia ser encon- que a própria percepção da “política” como uma
trada em qualquer situação social, englobando li- esfera social à parte de outras esferas é produto
teralmente todos os temas da disciplina (Vincent, dessa ideologia moderna. No caso brasileiro, aler-
2002). Mas é nessa fase que se consolidou insti- ta Peirano, o antropólogo enfrentaria uma “com-
tucionalmente o campo de uma antropologia binação complexa” de universalismo científico e
política (Easton, 1959). É fundamental ressalvar ideologia nacional de moldes “holistas”.
que, embora dialogando entre si com mais ou Isso tem sido observado em muitos estudos
menos freqüência, esses antropólogos não pro- empíricos, desde o clássico Coronelismo, enxada
duziram em absoluto abordagens homogêneas da e voto (Leal, 1948) até as recentes etnografias e
política. Se numa primeira etapa foi dada maior coletâneas publicadas no âmbito do NuAP
ênfase aos aspectos de coesão e equilíbrio social, (Palmeira e Goldman, 1996; Barreira e Palmeira,
à medida que avançamos no tempo, observamos 1998; Heredia, Teixeira e Barreira, 2002; Palmeira
uma maior preocupação com as transformações e Barreira, 2006). A política é entendida, aqui,
sociais, discutindo as relações de poder no tempo principalmente como um meio de acesso aos
e no espaço, a partir de temáticas relacionadas a recursos públicos, no qual o político atua como
conflitos, rituais, mitos, identidades, status, repre- mediador entre comunidades locais e diversos
sentações e práticas. níveis de poder. Esse fluxo de trocas é regulado
A partir da década de 1950, principalmente pelas obrigações de dar, receber e retribuir, o que
depois do clássico Sistemas políticos da Alta o antropólogo Marcel Mauss ([1924] 1974) cha-
Birmânia, de Edmund Leach ([1954] 1996), de- mou de “lógica da dádiva”, e cujo princípio fun-
senvolve-se uma nova fase no campo da an- damental está no comprometimento social daque-
tropologia política, com o afastamento do cânone les que trocam para além das coisas trocadas.
tradicional e a pulverização de problemas teóricos As pessoas que participam dessas redes, seja
e temas de pesquisa, cujo alcance foge ao âmbito como eleitores, seja como políticos, nunca con-
deste texto. Entretanto, há um certo consenso de cordariam com os acadêmicos que consideram
que esses novos campos são fruto sobretudo do suas ações um mero “clientelismo”. Do ponto de
enfrentamento dos desafios impostos por uma vista “nativo”, os políticos não estão “privatizando
conjuntura mundial na qual convivem forças bens públicos” (para usar uma definição clássica
políticas e culturais em diversos níveis como de clientelismo); ao contrário, os políticos estão
comunismo, capitalismo, colonialismo e movi- dando acesso a bens e serviços públicos a pessoas
mentos sociais de diversos tipos. Entre estes, a que não os teriam de outra forma. Nesse contex-
área dos estudos feministas e dos movimentos to, a palavra “público” não significa “recursos que
anticolonialistas ganhou destaque por sua impor- pertencem a todos”, mas “recursos monopoliza-
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dade devem prevalecer sobre as emoções e a sub- DA MATTA, R. (1979), Carnavais, malandros e
jetividade (como as que estão presentes nas heróis. Rio de Janeiro, Zahar.
relações baseadas na honra e na dádiva). EASTON, D. (1959), “Political anthropology”.
A abordagem antropológica privilegia técni- Biennial Review of Anthropology,
cas de pesquisa qualitativas, voltadas para a reali- Stanford University Press.
zação de trabalho de campo com observação par-
ticipante e entrevistas em profundidade, EVANS-PRITCHARD, E. ([1940] 1978), Os Nuer.
freqüentemente produzindo “estudos de casos”. São Paulo, Perspectiva.
No entanto, o antropólogo não ignora que as FORTES, M. & EVANS-PRITCHARD, E. (orgs.).
práticas e as representações observadas estão ([1940] 1961), African political systems.
inseridas numa sociedade maior, num sistema Londres, Oxford University Press.
político formal, com instituições de larga escala. GEERTZ, C. (2001), Nova luz sobre a antropolo-
Nesse esforço, a antropologia de um modo geral gia. Rio de Janeiro, Zahar.
oscila entre sua fidelidade ao particular e a neces-
sidade de produzir generalizações (Lewellen, HEREDIA, B.; TEIXEIRA, C. & BARREIRA, I.
1992). Por isso, é fundamental que se estabeleça (orgs.). (2002), Como se fazem eleições
no Brasil. Rio de Janeiro, Relume-
um diálogo com outras disciplinas, como a
Dumará.
história, a ciência política, a sociologia, a lingüís-
tica e a comunicação. É a partir de abordagens LEACH, E. ([1954] (1996), Sistemas políticos da
multi e interdisciplinares e da adoção de uma Alta Birmânia. São Paulo, Edusp.
perspectiva comparativa que se pode chegar a LEAL, V. (1948), Coronelismo, enxada e voto. Rio
compreender não só as representações e as práti- de Janeiro, Forense.
cas da política num grupo específico, mas tam-
bém as relações desse material etnográfico com a LEWELLEN, T. (1992). Political anthropology: an
sociedade mais ampla. introduction. Westport/Londres, Bergin
& Garvey.
A antropologia pode contribuir nesse
debate porque sua principal tarefa é estudar não MAUSS, M. ([1924] (1974), “Ensaio sobre a dádiva,
o que a política deve ser, mas o que ela é para um forma e razão da troca nas sociedades
determinado grupo, em um contexto histórico arcaicas”, in Mauss, M. Sociologia e
e social específico. Compreender, “do ponto de antropologia. São Paulo, EPU, vol. 2,
vista do nativo”, práticas muitas vezes diferentes pp. 37-184.
daquelas que idealizamos pode gerar incômodo, PALMEIRA, M. & BARREIRA, C. (orgs.). (2006),
intelectual ou cívico, mas um incômodo Política no Brasil: visões de antropolo-
necessário, pois, como disse Geertz, “se quisésse- gia. Rio de Janeiro, Relume Duma-
mos verdades caseiras, deveríamos ter ficado em rá/NuAP/UFRJ.
casa” (2001, p. 67).
PALMEIRA, M. & GOLDMAN, M. (orgs.). (1996),
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