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Boaventura de Sousa Santos
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INTRODUÇAO
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AUMA CIENCIA POS-MODERNA
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Biblioteca d3§ Ciênci~~ J:; .j~..;:.: I ·


."~ Biblioteca das Ciências do Homem
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Edições Afrontamento
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a todo aquele que tem, será dado e dado em abundância; ao passo modo cumulativo e contínuo. Ao contrário, esse creSCImento é
que ao que não tem, ainda o que tem lhe será tirado», Mt. XXV)9). descontínuo e opera por saltos qualitativos, que, por sua vez, não
A situaç\o dos cientistas nos laboratórios das indústrias tomou-se se podem justificar em função de critérios internos de validação
pafticularr~nte penosa, dadas as pressões no sentido d~!entabili­ do conhecimento científico. A sua justificação reside em factores
dade industn~ da investigação. Em vez do «comunismo;> de Merton, psicológicos e sociológicos e sobretudo na comunidade científica
a norma passOl>\ a ser o segredo (seguido da patente) e em geral a enquanto sistema de organização do trabalho científico. Os saltos
comunicação enlr,\ os cientistas tomou-se cada ;/á: mais difícil em qualitativos têm lugar nos períodos de desenvolvimento da ciência
consequência da e~plosão da produção. Da/ G6municação formal em que são postos em causa e substituídos os princípios, teorias e
passou-se à comuni6~ção informal no seip' dos pequenos grupos conceitos básicos em que se funda a ciência até então produzida e
de cientistas funcionanqo como invisib{e/ colleges. A investigação que constituem
.
o que.
Kuhn chama «paradigma».
capital-intensiva tornoul~ossível ;y!Ívre acesso ao equipamento O desenvolvimento da ciência madura processa-se assim em
- a caricatura da igualdade'qe oP9rtunidades. duas fases, a fase da ciência normal e a fase da ciência revolucio­
Apesar de tudo, a crise dà~'fadição mertoniana não teria eclo­ nária. A ciência normal é a ciência dos períodos em que o para­
lI, dido com tanta veemência Ji, erttretanto, a sociologia da ciência digma é unanimemente aceite pela comunidade científica. O para­
não se tivesse equipado ~ novas ~ndições teóricas que lhe per­ digma estabelece simultaneame.nte o sentido do limite e o limite
.. mitissem pensar o feYÓmeno científic~e modo mais adequado
do sentido e, consequentemente, o trabalho dos cientistas dirige­
. às práticas científisás dominantes, um mO~'IDenos apologético e
-se à resolução dos problemas e à eliminação de incongruências­
. mais crítico. En;t/~eu entender, tais condiçõe?'fQram fornecidas
segundo os esquemas conceptuais, teóricos e metodológicos uni­
pela obra de :t<:tíhn, a qual, para além do impacto nas'a:r~s tradicio­
versalmente aceites. Estes, aliás, presidem tanto à definição dos pro­
nais da renéxão epistemológica já anteriormente assinal~as, criou
blemas como à organização das estratégias de resolução. Os pro­
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as bases para uma sociologia crítica da ciência capaz, ela'pr-ó.pria,
blemas científicos transformam-se em puzzles, enigmas com um
de subverter a divisão positivista entre epistemologia e sociologia i

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número limitado de peças que o cientista - qual jogador de xadrez
1!:],. da ciência. -,_.- . --­ - vai pacientemente movendo até encontrar a solução final. Aliás, a
......... _.. ~ ~ teofia central de Kuhn::- exposta em especial na obra inti tillada

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'1" solução final" tal como no enigma, é conhecida antecipadamente,
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I' . / The'!:;tructure-o.f Scientific Revolutions publicada pela primeira vez apenas se desconhecendo os pormenores do seu conteúdo e do pro­
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em 1962 (1970) (12) - é que o conhecimento científico não cresce de cesso para a atingir. Deste modo, o paradigma que o cientista adqui­

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riu durante a sua formação prQfissionaI fornece-lhe as regras do
jogo, descreve-lhe as peças com que deve jogar e indica-lhe a .
1, I (12) A importância de Kuhn assenta menos na sua originalidade do que no seu

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esforço de síntese e na sua capacidade para dar fôlego polémico a ideias já presen­

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tes nas obras de outros autores. No prefácio a The Slruclure ... , Kuhn não deixa de sempre no melhor sentido (por exemplo, as sucessivas reformulações do conceito de
reconhecer agrande influência que sobre ele exerceu A. Koyré, sobretudo em Les paradigma). Por isso me reporto ao seu pensamento original e, nos parágrafos que se
ElUdes Galiléennes, 3 vols., Paris, 1939. seguem, cito livremente da sua obra_ Para uma discussão das alterações propostas po~ '
No seguimento da discussão com os seus críticos, Kuhn alterou sucessiva­ Kuhn (ouporeleaceites), vide W. Oiederich (1974); uma visão da discussão de Kuhn
mente a sua teoria em aspectos mais ou menos marginais e, em meu entender, nem com os seus críticos encontra-se em J. Lakatos e A. Musgrave (1970).

ISO 151
natureza do resultado a atingir. Se o cientista falha, como é natural , O novo paradigma redefine os problemas e as incongruências
que aconteça nas primeiras tentativas, tal facto é atribuído à sua até então insolúveis e dá-lhes uma solução convincente; é nessa base
impreparação ou inépcia. As regras fornecidas pelo paradigma não que se vai impondo à comunidade científica. Mas a substituição do
podem ser postas em causa, pois que sem elas não existiria sequer o paradigma não é rápida. O período de crise revolucionária em que o
enigma. Assim, o trabalho do cientista exprime uma adesão muito velho e o novo paradigma se defrontam e entram em concorrência
profunda ao paradigma. A crença é que os problemas fundamentais pode ser bastante longo. Uma vez que cada um dos paradigmas
" foram todos resolvidos pelo paradigma e de uma vez para sempre. estabelece as condições de cientificidade do conhecimento produ­
Uma adesão deste tipo não pode ser abalada levianamente. De resto, zido no seu âmbito, as 'provas cruciais aduzidas em favor do novo
a prática quotidiana da comunidade científica reforça essa adesão a paradigma podem facilmente ser consideradas ridículas, triviais ou I
todo o momento. A experiência mostra que, em quase todos os casos,
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insuficientes pelos defensores do velho paradigma. O diálogo entre os
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os esforços reiterados do cientista, individualmente ou em grupo, cientistas tende para o monólogo na proporção da incomensurabili­
conduzem à solução, dentro do paradigma, dos problemas mais dade dos paradigmas em confronto. Mais ou menos tempo será
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difíceis. Por isso também não admira que os cientistas resistam à necessário para o novo paradjgma se impor, mas, uma vez imposto, ~~
" mudança do paradigma. O que eles defendem nessa resistência é H
ele passa a ser aceite sem discussão e as gerações futuras de cientis­ t
afinal o seu way of life profissional. tas são treinadas para acreditar que o novo paradigma resolveu defi­ 'I!
Mas o decurso da ciência normal não é feito só de êxitos, pois, nitivamente os problemas fundamentais. Da fase da ciência revolu­ :i~I
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se tal fosse o caso, não eram possíveis as inovações profundas que cionária passa-se de novo à fase da ciência normal e, portanto, ao
têm tido lugar ao longo do desenvolvimento científico. Ao cientista trabalho científico sub-paradigmático. De início existem vastas áreas
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«normal» pode suceder que o problema de que se ocupa não só não em que a aplicabilidade do novo paradigma é apenas assumida sem
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tenha solução no âmbito das regras em vigor como tal facto não possa ainda se ter feito qualquer prova nesse sentido. É para essas áreas que
ser imputado à impreparação ou inépcia do investigador. Esta expe­ se orienta a ciência normal. Posteriormente, os objectos de estudo, e !i ~
riência pode em certo momento ser partilhada por outros cientistas e " "I
por conseguinte os problemas a resolver, vão-se tomando cada vez i!
pode suceder, além disso, que por cada problema resolvido ou por mais específicos e complexos. ~ii ~
cada incongruência eliminada outros surjam em maior número e de "f
Este processo de desenvolvimento é específico da ciência madura, !1 1
maior complexidade ou de impossível solução. O efeito cumulativo ou paradigmática. Kuhn distingue desta ciência a ciência pré-para­
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deste processo pode ser tal que a certa altura se entre numa fase de digmática, como, por exemplo, o conjunto das ciências sociais. Mas ~~
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crise. Incapaz de lhe dar solução, o paradigma existente começa a esta fase de pré-paradigmatismo também se verifica na génese das ' lIl

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revelar-se como a fonte última dos problemas e das incongruências, novas disciplinas científicas no domínio das ciências físicas e natu­
e o universo científico que lhe corresponde converte-se a pouco e
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rais, com excepção daquelas que se constituem a partir da combi­ 'I "
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pouco num complexo sistema de e"rros onde nada pode ser pensado nação de teorias de várias ciências paradigmáticas, como é o caso da
correctamente. Neste momento já outro paradigma se desenha muito bioquímica. Esta fase é caracterizada, como a denominação indica, ,; t

provavelmente no horizonte científico e o processo em que ele surge pela ausência de um paradigma. Isto significa que não existe um :, I
e se impõe constitui a revolução científica e a ciência que se faz ao conjunto teórico conceptual e metodológico básico universalmente ,r
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serviço deste objectivo é a ciência revolucionária. aceite. Deste modo, cada cientista, ou cada escola, tem de começar a ,,' .

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partir dos fundamentos. A escolha dos fenómenos observados e dos -paradigmático das ciências sociais e, logo, o seu atraso em relação
às ciências naturais. Pelas razões que apontei acima, a superação da
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métodos utilizados é bastante livre e é, por isso, mínima a compara­ 1i'H I I
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bilidade das investig·açoes. Esta fase é ultrapàssada no momento em crise de degenerescência do paradigma da ciência modema pressupõe
que surge uma teoria básica que resolve a maioria dos problemas uma outra conceptualização, antagónica desta, das relações entre ~'~ I
insolúveis para as diferentes correntes ou escolas, como foi, por
ex.emplo, a teoria de Franklin no domínio da electricidade. A disci­
plina entra na fase paradigmática e a partir daí o seu desenvolv imento

ciências naturais e ciências sociais. Em segundo lugar, Kuhn submete


a concepção positivista da ciência a uma crítica radical ao fazer
«descer» o estatuto da invenção, validação e refutação das teorias
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processa-se do modo acima referido.
científicas às vicissitudes da organização do conflito e do consenso no li~t
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O desafio de Kuhn à filosofia lógico-positivista da ciência reside
seio da comunidade científica, mas fá-lo de modo a não problematizar
em que, por um lado, o desenvolvimento da ciência não é cumulativo
a existência desta no seio da sociedade global. Ainda que faça refe­ ·jl :
rências dispersas à relação complexa entre a comunidade cieritífica
e, por outro lado, a escolha entre paradigmas alternativos não pode ser

fundamentada na.s condições teóricas ele cientificidade, uma vez que e a sociedade em que se insere, não lhe dá grande importância nem
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elas próprias entram em processo de ruptura na fase revolucionária.


Deixa de haver critérios universalmente aceites, quer para a suficiên­
aponta pistas para o seu tratamento sistemático.
Do meu ponto de vista, essa relação é central por muitas razões,
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cia da prova quer para a adequação das conclusões. Está também pre­ que têm a ver com as condições sociais da dupla ruptura epistemo­
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eludido o r~curso aos critérios mais gerais elaborados para a selecção lógica e também com o facto de a comunidade científica ser hoje
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da teoria «verdadeira», como sejam a ex.actidão, a simplicidade, a fer­ atravessada por uma tensão polarizada entre nacionalismo e inter­
nacionalismo, que se não pode esclarecer sem situar geopolitica­
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tilidade, a consistência lógica, etc., uma vez que cientistas diferen­ ; ', :

mente a produção e a distribuição do conhecimento científico. Para II:1; .,


tes aplicam diferentemente esses critérios em momentos e situações
isso, é necessário conhecer as relações que intercedem entre as várias
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diferentes. Para explicar as razões de opções científicas fundamentais
é preciso sair do círculo das condições teóricas e dos mecanismos sociedades nacionais e as hierarquias que entre elas se estabelecem.
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internos de validação e procurá-las num 'vasto alfobre de factores Este tema tem um interesse particular para as sociedades dependen­ ~', I ' .1
tes como Portugal. Dentre os fundadores da sociologia do conheci­ I· i
sociológicos e psicológicos. O processo de imposição de um novo '1 ' 1
mento, Marx é, sem dúvida, o que mais se preocupa com a consti­
paradigma é um processo de negociação entre os diferentes grupos de
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cientistas. É necessário estudar as relações dentro dos grupos e entre
os grupos, sobretudo as relações de autoridade (científica e outra) e
tuição social do saber, procurando explicá-la à luz das relações so­
ciais de produção dominantes numa dada formação social. Por isso Iql!'
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de dependência. É necessário também estudar a comunidade científica me parece justificar-se e ser possível uma articulação entre o pensa­ H
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em que se integram esses diferentes grupos , o processo de formação mento de Kuhn e o pensamento de Marx, com vista à constituição de
profissional dos cientistas, o treinamento, a socialização no seio da uma sociologia crítica da ciência. ,f:\: \
profissão, a organização do trabalho científico, etc.. Nisto consiste a Kuhn é, pois, um ponto de partida, mas não restam dúvidas de que
a investigação propiciada pela sua teoria já permitiu esclarecer uma
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base sociológica da teoria de Kuhn. :1
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É dela que parto para elaborar uma alternativa teórica a Merton, série de questões importarites que não tinham solução satisfatória no li
não sem antes lhe formular duas críticas, aliás evidentes em face do âmbito do paradigma lógico-empirístico-mertoniano: por que razão
que ficou dito atrás. Em primeiro lugar, Kuhn assume o carácter pré­ se comportam os cientistas muitas vezes como se estivessem mais i\:''I!
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154 155
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sodedade civil é superada e substituída por outras configurações
I. O papel l:cntral da l:omullidade científica advém··lhe de ser"
conceptuais mais complexas. Mas o problema subsiste enquanto
itwtânda ele mediuçUo cntre o conhecimento cientíl"ico e a sociedade
indagação sobre o âmbito e a eficácia da conversuo reguladora de
no sculmlo e lia sua tripla identidade socio-económica,jurídil:o-polí­
uma dada disciplina científica num dado momento histórico.
Ik:a e i<.kolõgko..cultural. I~ nesta perspectiva er-teriori z.ante que deve
~cr eSludada .1estrutura interna da comunidade científica. 6. A conversão reguladora corresponde no plano sociológico à
primeira ruptura epistemológica que, por razões paralelas, varia ele .
2. O poder que a ciência exerce na sociedade é o produto dialéc­

âmbito e de eficácia. Porque o objecto cmpírko que a primeiru


í ico da rdaçl10 entre o poder que a i;ociedade exerce sobre aconlunidade

ruptura transforma em objecto teórico é sempre um objectivo soCial


científic., c o poder que se exerce no seio desta. e político, est.a démarc/7e epistemológica é o modo (mais ou menos)
3. E,1lI ctloa r;.IS\~ do desenvolvimento da ciência, ou seja, mesmo
específico e autónomo de a ciência viver a sua dependência em rela­
foru dos períodos ue transição entre paradigmas científicos, existem
ção 11s forças sociais que determinam o .ritmo e o sentido elo seu
alwrnativa~. le(lI"ica~;, isto é, alternativas enlre teorias rivais (e não
descnvolvimento. .
apcnafi çnlre apIi4;uç(ies rivais lIa mesma teoria), algumas das quais se

7. Numa fase de crise paradigmática da ciência, a conversão


impôem sem que lal se possa atribuir a critério~; ele suficiência de .":

prova. As conlradil,fões de sobrevivência das teorias, métodos e (;on·· "~. ::


reguladora e a ruptura epistemológica que a torna teoricamente
possível assumem um carácter contraditório, tanto mais vincado
çeilos suo estabclcddos pelo eambiente social » em que a ciência se i:}':

quanto mais desenvolvida for a disciplina científica em causa. A


desenvol ve cm articulação com as condições teóricas internas.
contradição reside no facto de a sofisticação teórica e os elevados
4. Em ctlda momento histôrÍl;o a ciência tem lima estrutura pní. recursos organizativos e tccnológicos envolvidos na constituição elos
pria que lhe nüo permite integrar quaisquer objectivos sodais (k objeclos teóricos (a face de autonomia da ciência) se denunciarem
qualquçr forma. Essa estrutura é a medida da autollornia relativa da como forma de ocultação da presença determinanle, em todo o pro­
ciência, nos termos da qual a ciência regula o seu desenvol vill1 ('1I10, cesso teórico, dos objectivos soCiais supostamente apenas presentes
<linda qlll~ lião pu~, sa determiná-lo. O trabalho da estrutura interna llil no accionamento do processo (a face ele dependência da ciência). No
ciêllcia COf\ ,; j:; \C numa operação de t1ltragem -~-" conversã o /'1'.1~/t /{I ·· :, ;,\.:... , ,, ~, momento em que os instrumentos teóricos da autonomia do conheci­
dom _. opcwçiio que consiste na transformação do objectivll sndL\I . ·t.~<~,A~;;:'\ t," i- ' .. .. ~ ,r~:.: mento científico se revelam como condições ideológicas da sua
em objectivo teórico. Nas actuais condiçües de produção da ci C'lId i\ ; ,~. >:\,:''';: dependência, é possível , dadas certas condições sociais e políticas,
moderna, o ()hj~ctivo
f-ioda! tp.\z consigo uma fO\ya polflica ql H' (!.~·:~~:~tAf:~ que a comunidade científica assuma plenamente a pertença mútua
estrutura d eutífica tf.m de converter em energia produtiva da' 'i,· Ild ll. .-.t ;.i ·~i.'; ·r·~y~:}
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dos objectos teóricos e dos objectivos sociais e aja em conformidade,
Sendo enIO que a ciência (~ um dos poderes··saberes Lf l l\' d,}:';~,.~'.'i·~·>:\ik\;
trazendo os objectivos sociais, enquanto tal , para dentro da reflexão
).
lo particularmcnte importante analisar as Sl li U, 1'"I::tl:~{"i{": '::j\xf'
epistemológica e metodológica e os objectos teóricos, enquanto tal,
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,<I' '" '''"I'' 111 " k I" pri v i \t'1 ~i!ldo 1\:1 ~ ;()l" iedmlc contempor;lnc a , (t Pliltll·;': .:::// ..~~>;. :
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para dentro dos debates sociais e políticos onde se formam os objec­
,I., I ' '\1' .\ ' ' " 'I " ". l il 11, í il de j l" \lIIIplkada, sohre ti que lIiI rl(\ft(lfH~ ;:;1t')D;::'~F I ivos sociais. Agindo assim, a comunidade científica usa a conversão

II> \ 11' 11 ' I \1 ,1 'd " I" I: \I qll!' 11'11 1."110'" a ~; \ lI" i\'d:\(k ci vil.I\;\ld~~ tJí!fÚe,Yf~i/./<{·
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reguladora como forma de regular a transformação do conhecimento
"li, \lI I . ' ,\II\oI ; ' \1\1', ,) Iw d l d !I qli\' II 111 \11 11 iII di :;I il'I, únl' lllt C Hlilf,d'V;~j:·:·:;;:,f.~::;\7J .
\·ielllífico numa nova configuração de saber e, do mesmo passo, a sua
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'J,n·'W ··
I í ,I,
-se à hegemonia incondicional do saber científieo e à consequente
prôpria ll'ilIISfonnu\,ão numa cmnunidade ckolÍ!ka nã'ü neccl-\saria··
marginalização de outros saberes vigentes na sociedade, tais como
mente menos científi<:u, ma:; ccrW\Hcnte mai s comunitári a. E:,te uso
o saber religioso, artístico, literário, mítico, poélico e político, que
da convel's;\(' regllladora é possível, no plano Icôrico, rnedianlc tI.
em épocas anteriores tinham em conjunto sido responsáveis pela
~;cglll\l..\a m plura epbtemológk:a; a sociologia criliça da ciência tcrn
sabedoria prática (a ph/'Onesis), ainda que restrita ' camadas privile­
por tarefa prim:ip,1l identificar as condições sociais que a viabilizell1
giadas da sociedade. A vocação técnica e inslr mental do conheci­
socialmelll~: dentro c fora da ctlmunidadc CiCIlLílk;'l, mento científico tornou possível a sobreviv" leia do homem a um
nível nunca antes atingido (apesar de a pr messa social ter ficado
muito aquém da promessa técnica) mas, rque concretizada sem o
conLributo de outros saberes, aprendei os a sobreviver no mesJl10
5.3, CmuHçüt::'i tiochu&s d~~ du pla ruptura eq~ô§tt~moló8ica
processo e medida em que deixámo.' de saber viver, Um conheci­
mento anónimo reduziu é\ praxis ü t cnita.
í '
Nus capilulos precedente~; indiquei as condiçücs lcó/tcas de ullIa
O ser possível este diagnósti o significa, já de si, yue o para­
.. ;:: .
cOllcepção de ciência pautuda pdo princípio da episH'- dU.~~1!uPtura
. ;.;.;:.:....
digma da ciência que presidiu a este processo histórico se encontra

::}.; >~
em crise e que a crise não é,' perávcl mediante simples reforl1las
mnlógka, Aôverti, repelidas ve;.\cs, que as condir cs tcórÍ(:as seru(j
de pouca ou IIcnhuma eficácia se não estiver \l realizadas ;.:iii;·'\i
";\}i ; ,~.:~ . '.~ c~:rI:\'i : pareiais do paradigma, Estai os, pois, numa fase de transição para­

condições ;;odai::;, ('. foi com base nessa advcr ~ncia que mo,~lrci, pur r3;_~,'~\\ digm,ítica que, como qU:l"ller outra, é caracterizada pela reconcep­
m~cmplo, os !.imites do exercício da refley idade e da p;'oposla dr' ,Ú,"::Yt:~ tual~.zaçilo da (: iên~ia que xiste em função de .ul1ll:~n(lva ciência cujo

G iddens sohrc a dupla hermenêutica. C9-tle agora indicar tais C!I\H.Il :t.i: L'~T;~ perhl apenas se vlSlurn m. Tal rcconceptllUltzaçao resulta do con­

~:õesstJ,dai s, AIItes, porém, convém r~umir


o argumento . ~\I~; l\ 1 ',~II'i\ ,~~tf.~/·~.,~~: junto das eondições te ricas analisadas nos capítulos precedenles e
que agora se resume :
produ zlllo, / ;'f \ ,,'.:' ,!
A coml~ç:Jr, dev(;~ rá ter-se l're" nte em qU(~ con:~isle ti dupla ntp~) .

tu m ç I) que se pretende com · a, Disse alrás que, U1l1a Vl'1 rt\ IU(~;,; ."
I. A episten 610gia representa, em qualquer das suas correntes,
ruptura cpi~;tcmológica,
o aeL cphlemologicamcnt(', maís i11 ,t:' '1l1lnH\,W~r"
a consciência d ciência moderna, Problematiza a validade do conhe­
é a fllpl ura com a ruptura e ístmnol6gica. Isto signifiG\ qUl" (1\ Ili1. 1\·Xr ", :; ,

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cimento cien fico, mas não o sentido deste no mundo contemporâ­
ponto de vi sta, (k ixoll d · ter sc:ntido criar um conhu illH'lIltl 11'1\I.~1i.~~X
neo. Pelo c ntrário, pressupõe como dado e evidente esse sentido,
autónomo cm confront ) com o senso comum (pritll\'íl l\ rl!plllil\l,~;~ . . A......;·:~.,. '-:.." .r
quando é erto que o conhecimento científico é cada vez mais incotn­
e,ise conhecime nlo n', o se destinar a transformar () SI' I\~\ll rfln,1i" fF: ,.. 1'
preensf'L 'I e incomensurável em face dos demais conhecimentos que
a tmnSrQnn;II', st~ I~ II (se.gunda ruptura). Depoi~
<Iv I r{':' !l'til~Y,~t,\.·~I~y'
l'ircul' n na soeiedade. A pl'Oblematização do sentido da ciência
prodigio:;o !lesei olvirnento dClltífico, torna-sç illl()I, 'nl~IiHt{.1r:
l' ,~ i 1 que a epistemologia seja, ela própria, submetida à reflexão

alienante concl uir com Wittg(~nstein, citado t:lll i 'p tl', fI\fr.·.W-:~ ~(fi~
l\crllIenêutica.
:1(lIl"II1,\(;[lo de l anto conhecimento sobre () 1l1l1H(hl Ill' 1!]ntmIt~~ ,.

1.\" \" \\ Llll !l<lIWa sabedoria du Inllndo, do !lOIlH'III' fltll' ("\~,{ l~}' II
2. A reflexão hermenêutica cumpre-se desconstruindo os objec­

; p, ' I" " 1111"', .. , " )\11 :ll1atl.lre.za. Ta! faclo , vêst' ;1J'(H l\. ll;(ii!.~~~i ~ .
1(1.'; 1('lÍric os que a ciência constrói sobre si própria e, consequen­ li
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medieval, a natureza fora, em certo sentidú, lU milagre constante: mada. Isso deL . inteligências ascedentes da Inglaterra e da Amé­
cra conservada e renovada de momento a momento por uma nova ~ rica, cerca de 1760, um pendor predominantemente prático e uma \
inte rvenção divina. O espírito renascentista e moderno também l perspectiva empirista da ciência. Em consequência, as realizações '\
considera maravilhosa a natureza, mas por uma razão diferente: I técnicas de homens da envergadura de James Watt e de Benjamin j
acham maravilhoso que a natureza siga consistentemente as mesmas Franklin foram facilmente separadas do seu contexto humano e
leis. O nascimento do método científico repousa na nossa convicção II ético e puderam proliferar na altiva desumanidade da sociedade
de que ii natureza não é arbitrária, mas profundamente respeitadora ~ industrial primitiva.
de leis.
Quando os homens dizem que a natureza n1io é arbitrária mas
segu e leis consistentes, querem implicitamente significar que as 3
suas leis são inteligíveis para o espírito humano. (Se os homens não
conseguem compreender como funciona uma lei da natureza, não O movimento fundamental do espírito ocidental desde o Renas­
podem reconhecê-la como lei ; pensam-na como arbitrária) . Por cimento em direcção a uma perspectiva da natureza governada
isso a convicção de que a natureza é regida por leis solicitou os por leis consistentes também se fez sentir nas ciências humanas.
homens desde o Renascimento a fazer duas coisas para descobrir A natUreZa-humana foi creditada de leis inteligíveiS, tarComo
as suas leis; ambas essenciais pa ra o método científico. / r ­ a natureza física. Em especial, os homens acreditaram desde o I
POI' um lado, a convicção de que a natureza é regida- por leis Renascimento que a maneira como os seres humanos pensam e I
estimulou os homens a olharem atentamente os fenómenos naturais, sentem configura de algum modo a estrutura das sociedades huma- ';
para observar e para experimentar, com o fim de constatar de nas. De algum modo, as leis da sociedade não podem ser arbitrárias :
que maneiras ela se repete - para descobrir, praticamente, o mo­ devem derivar, conformar-se, e fundamentalmente satisfazer as
delo que preside à sua consistência. E por outro lado, estimulou necessidades e as aspirações dos indivíduos. O uso exactamente
os homens para pensarem para lá dos modelos práticos, para ana­ igual da mesma palavra «lei» para a governação e para a ciência
lisarem. e raciocinarem, com o fim de descobrir a sua organização implica que o governo deve ser como a ciência e deve aprender
simples e racional - para descobrirem leis inteligíveis. A combina­ a conformar-se com a natureza da sua matéria. Deste ponto de
ção do empírico e do racional perfaz o método científicó~--- vista, que penetrou o espírito ocidental desde o Renascimento, a
·Ti'àçâmós- es1ãConex.ãoentre -experimemãçãõ empmcà e inves­ legislação não é uma questão de éditos mas, no fundo , de investi­
tigação racional, que faz o progresso científico. Em nossa opiniã.o, -' gãção; e o estado, se quer sobreviver, não deve impor as suas leis
a combinação bem sucedida de ambos é primeiramente prefigurada mas sim descobri-Ias na natureza das relações humanas. I
na figura de Leonardo. No século seguinte ao da sua morte, a Há, porém, um aspecto, no qual a evolução das ciências huma­
combinação desses dois modos inspirou os pioneiros da Revolução nas diferiu da das ciências físicas desde o Renascimento. As ciências\
Científica nas ciências físicas: Copérnico, Kepler e, sobretudo, humanas não integraram a investigação empírica e a investigação
Galileu. A sua obra alcançou o seu ponto final noutra época da racional. Aqueles que praticaram, ou pelo menos advogaram, o
história, a época da Royal Society e da realização eminente de estudo empírico das sociedades humanas divorciaram-no, totalmente,
Isaac Newton. da análise racional, frequentemente com base em que esta tende
A investigação empírica e a racional continuaram a ser con­ a ser inflectida por juízos a priori e morais. E por outro lado,
juntamente necessárias para o desenvolvimento da ciência. Sempre aqueles que tentaram basear a teoria da sociedade na análise ra­
que uma foi alargada à custa da outra, o progresso tornou-se uni­ cional das motivações dos indivíduos tenderam a separar os seus
lateral. Assim, a predominância da investigação racional, dema­ trabalhos da própria sociedade como versão distorcida ou irrele­
siadamente pouco sustentada pela experimentação, em Descartes vante da sua Utopia ideal. Podemos ignorar aqui as moderações
e seus seguidores, foi uma limitação para a ciência francesa quase necessárias, que fizemos no tratamento pormenorizado dos nossos
até ao te mpo da Revolução Francesa. O método cartesiano ela \! capítulos, e adoptar a seguinte classificação lata. Assim, Maquiavel, ~
dúvida era filosoficamente eficaz para destruir os preconceitos tra- ' cuja «nova estrada}} deu início ao estudo empírico do poder político, ~\
dicionais acerca do funcionamento da natureza, mas não podia criar ' despreza aqueles que buscam motivos racionais por detrás dos polí­
um sistema positivo e prático de leis naturais. ticos. Bayle e, de alguma forma, Montesquieu deram vida à tra­
Em contrapartida , a decadência da Royal Society, em Inglaterra, dição empírica que foi então estabelecida na sua forma moderna
no séc. XVIII, levou a que a investigação racional fosse subesti­ por Adam Smith. Há também um vislumbre do desprezo de Ma­

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• _ __ . __ t'~.u "'-"1Ld<,:aU aas motlvaçõ, acionais em Burke e mais fundo p. conjugar as investigações empírica e racional nas ciên- l "
do que um vislumbre em Hegel: em ambos o trabalhar empírico eias humanas .
da história é objecto de uma admiração mística que negaria, em
última análise, o estudo científico. 4
A análise racional da sociedade como construção que serve e
satisfaz as!1eCêssiéla"dés-Ilumanas começa também no Renascimento, Na sua confiante busca pelas leis da natureza física e humana,
com Thomas More e seus colegas humanistas, entre os quais as ciências ôesenharam um outro percurso. Foi o da secularização
Erasmo . Prolongámos esta análise através de Hobbes e de Locke, do ~amento e a sua emancipação de éditos absolutos que não
cujas deduções políticas diferentes nascem igualmente da analogia estão abertos à investigação. Maquiavel e Galileu, BayJe e Locke,
com as ciências físicas da época de Newton. Daí a análise da Franklin, Adam Smith e Robert Owen provam que este impulso
sociedade era continuada por Voltaire e pelos filósofos que prepa­ permaneceu poderoso e inesgotável desde o Renascimento . Foi
raram o ambiente intelectual para a Revolução Francesa; con­ poderoso na literatura, na arte e também na filosofia.
correndo igualmente e mais directamente para o espírito de homens Há um sentido em que, por paradoxal que pareça, este movi­
como Franklin e Jefferson, que expressam o ambiente da Revo­ mento de secularização foi também poderoso nas mutações religio­
lução Americana. A sua ra~i.zaç1!.Q final é obtida por Jeremy sas do período coberto por este livro. O movimento humanista de
Erasmo e dos seus contemporâneos era certamente um movimento
Bentharn, que desprezava-de tal modo todas as formas existentes
de secularização, pois tentavam mostrar que as virtudes religiosas \
de sociedade e apesar disso era tão ávido de ser prático no seu
eram em si mesmas virtudes humanas naturais. Neste sentido, o
racionalismo. Em Bentham, o sistema é ainda dominado pela ciência humanismo era e é exactamente o que o seu nome traz implícito:
newtoniana . Só depois de Kant ter proporcionado uma dialéctica o desejo de encontrar nas qualidades humanas a font e e o critério
mais subtil da relação do observador científico àquilo que observa, do que é bom , justo e belo. Este desejo implica que , afinal, cada
daquele que conhece ao que é conhecido, é que Hegel pôde chegar homem deve julgar por si mesmo em questões de verdade e de
a uma dialéctica da história que tentava introduzir um raciona­ justiça tal como em questões de gosto.
lismo mais depurado . A convicção de que o homem não pode aceitar a autoridade
Há muitas razões pelas quais as eiências humanas não conse­ mas deve formar os seus próprios juízos mspirou-?-lt"eforma e as
guiram dar conta tão satisfatoriamente do seu domínio de investi­ suas diferentes expressões,incluindo a sua expressão extrema na
gação como as ciências fizeram para os seus. Uma razão importante Revolução Puritana em Inglaterra. Segundo esta convicção, as revo­
é a que apontámos. As ciências humanas não conseguiram encontrar ~ luções da fé e as revoluções sociais vão de mãos dadas e assim as
um método tão coerente corno o das ciências naturais porque não 1\ vimos. Mesmo a última Revolução Industrial recebeu a sua energia
reuniram os dois modos de investigação, o empírico e o racional. de uma ética própria, que desviou o carácter das virtudes cristãs
Há ainda uma falha maior nas ciências humanas: a tentativa de em direcção da economia, da frugalidade e da resignação . A este
construir uma análise racional da sociedade a partir das motivações1 respeito, John Wesley no século XVIII foi tão inovador como
dos indivíduos ficou separada do estudo prático do funcionamento t Lutero e Calvino no século XVI.
em larga escala dos estados e das comunidades. A secularização t pois, uma faceta desse humanismo militante

Esta contínua separação da investigação racional e empírica em que o Renascimento introduziu e do qual, de algum modo, todos

\ ciências humanas pode dever-se um fracasso ao estabelecer um elo os personagens deste livro são testemunhas. Não é uma afronta aos

I lógico, uma forma de passar racionalmente, do motivo para a acção, valores tradicionais, mas um desejo do espírito humano de se exa­

suficientemente subtil para convir ao material humano . O simples minar a si mesmo e encontrar uma relação necessária entre os seus

raciocínio de causa e efeito que, desde o tempo de Hobbes, deu dons e os seus valores. Quando pintavam homens e mulheres tão

coerência às ciências físicas é demasiado grosseiro para dar conta belos, os artistas do Renascimento queriam dizer que a atitude

da interrelação das motivações humanas numa sociedade alargada . secular é uma forma de orgulho nos dons que nos fazem huma­

Pode ser que o novo conceito requerido pelas ciências humanas nos. E a obra de filósofos, cientistas e historiadores diz-nos hoje que

seja estatístico e venha a implicar algo de tão radical como a apli­ a relação do homem com a natureza e consigo mesmo não está

cação de grandes máquinas computadoras aos problemas sociais e pré-determinada, mas serve para estudar o homem, o formar e,

económicos . Ou pode ser que seja preciso algum conceito mais pro­ assim, o enriquecer.

504 505

WIllIi... . _ _ _ .__ _
d
5
no desenvo~ lento de instituições SOCiaiS novas que podiam me­

lhor dar corpo às novas aspirações do homem. Com efeito, a pri­

As novas atitudes .3~ntífi~.~~~!:_J?E.E~.!2!.L.uida tiveram meira expressão das novas ideias era habitualmente a crítica, não

efeito em todos osaspectos da actividade do homem. O tema da dos valores tradicionais do cristianismo mas das instituições cristãs

filosofia , da pintura e da literatura mudaram durante o período de existentes. Erasmo e os humanistas não atacaram somente os ideais

que trata este livro. É evidente que nenhum escritor medieval teria da virtude monástica ; criticaram a forma como os mosteiros viviam
1 ;

podido escrever uma tese sobre electrónica; mas é igualmente ver­ na prática. Lutero não atacou o catolicismo romano; opôs-se ao

dade que nenhum escritor medieval poderia ter escrito um romance que considerava os seus 'abusos. Significativamente, a Reforma

moderno. Tal como as mudanças de perspectiva desde o Renasci­ começou por uma questão acerca de um abuso circunstancial do

mento afectaram o conteúdo daquilo que os homens pensam e poder papal, uma ideia de fazer dinheiro - a venda de indulgências.

escrevem, assim afectaram a maneira como pensam e escrevem . Mais directamente, o nascimento da atitude científica levou à

O estilo de um hom'em ou de uma época espelham o pensamento formação de novas instâncias para debate de ideias. Alargaram-se,

e onde melhor captamos esse pensamento, o seu colorido e a sua passo a passo, das cortes dos príncipes nas cidades-estado de Itália,

personalidade inconsciente, é quando lemos em primeira mão como às sociedades científicas reais em Inglaterra e em França, aos salões

é que o homem e a época se expressaram com as suas próprias em moda das senhoras esclarecidas da sociedade francesa e às aca­

palavras. demias dissidentes de Inglaterra e aos clubes da América no fim

A escrita esplêndida e apaixonada dos isabelinos é, em certo do século XVIII. Segundo estas etapas foi criada a tradição de

sentido, a última expressão do alto Renascimento ; o seu estilo é comunicação da informação e do debate, que se exprime hoje

mais clássico que moderno. Depois, a Revolução Puritana reflecte-se naturalmente nas instituições ocidentais: parlamentos, universidades,

~
q-"
)- - ' " . nas pessoas e maneiras da Royal Society, que consideravam uma
quest ão de principio escrever simples e praticamente acerca de fac­
clubes e jornais.

}'loram também criadas instituições que diziam mais directa­

tos simples e práticos. O estilo de Pascal bem como o estilo de mente respeito ao trabalho científico : instituições tão rigorosas que

Jefferson derivam de um modelo rigoroso, que suspeitava de qual­ se podem chamar invenções sociais e que eram destinadas a explo­

quer arranjo de palavras que pudesse sublinhar a verdade (que eles rar as invenções técnicas da ciência. Entre estas instituições, con­

olhavam como implicando a convicção pela sua simples enuncia­ tam-se os sistemas de impostos e de seguro das cidades-estado de

ção) ou que parecesse persuadir em vez de afirmar. E é notável Itália, os entrepostos da Inglaterra e da Holanda no século XVII,

que o novo estilo possa mostrar-se eficaz quer na sátira mordaz de as sociedades por quotas do século XVIII e as fábricas de grande

Voltaire quer nos gracejos familiares de Franklin. dimensão que foram a invenção mais importante da Revolução

O novo estilo, de facto, tem uma inclinação particular para a Industrial. Estas instituições económicas foram , por seu turno,

sátira e era dessa maneira usado quase no início da Revolução estabelecendo novas instituições sociais, como a Lunar Society e

Cientifica por Galileu 110S seus Diálogos. A forma dialogal também outras semelhantes, associações de trabalhadores e as escolas de

se liga particularmente, como Sócrates mostrara muitos séculos Robert Owen. Tudo isto são criações humanas, formadas com o

antes, àquele método de questiona a opinião aceite acerca da natu" fim de exprimir a personalidade em mutação do homem; apesar

reza das coisas, método que Descartes consolidou no método filo­ de inevitavelmente elas mesmas mudarem os homens que nelas se

sófico da dúvida. Na sátira e no diálogo, o método da dúvida congregavam, r-----­

exibe-se nas obras-prTiTIãSda literatrnafrancesa anterior à Revolu­


ção Francesa, pela mão de Pascal, de Voltaire, Montesquieu e
mesmo Beaumarchais. Exactamente como os filósofos puseram as 7
novas ideias da ciência e da secularização no conteúdo da Encyclo­
pedia, assim os escritores as expuseram justamente no seu estilo . Em cada transformação do período coberto por este livro, os

homens tiveram em mente uma única intenção: visar a sua 2l.Qp..[ia

humanidade. Foi sobretudo isso que fez o Renascimento~' inspirar

6 ao homem o sentimento de que há uma figura do homem, o homem

essencial, a que ele próprio deve aspirar. O Renascimento fez

As alterações na perspectiva que o homem tinha do mundo tor­ das ideias um novo primeiro motor que podia configurar os homens

naram-se concretas na acção: no derrube de velhas instituições e \


e as suas sociedades e depois os homens continuaram a reconfigurar

506 507

_. __ . _- _ .­
..____._v. Uc-o'''. UI CUlâçaO nIst6nc· lma das ideias mais importan­ object. implícito da vida dos indivíduos: realizar os dons especí­
tes foi a que o homem, em cada geração, teve de si mesmo. ficos de que um homem é dotado.
O ideal renascentista do homem tinha um elemento da brutali­ A auto-realização do indivíduo tornou-se parte de uma ideia
dade do condoltiere que persistiu no ocidente; talvez seja insepará­ mais vasta, mais integradora , a auto-realização do homem. Pensa­
vel da admiração ocidental pelo poder, sobre a natureza e sobre os mos no homem como uma espécie particularmente dotada, com
homens. Algo deste sentido do poder, do domínio das técnicas e dons humanos. Alguns desses dons, físicos e mentais, são-nos expli­
desejos da vida mundana, está presente nos homens ideais do Renas­ citamente elucidados pela ciência; alguns deles, os estéticos e os
cimento - no «homem nOVOl} de Calvino, por exemplo, e no sol­ éticos, tentamos senti-los e lutamos por expressá-los nos nossos espí­
dado puritano. Uma direcção diferente se estabeleceu com o ideal ritos; e alguns outros, os culturais, oferecem-se-nos pelo estudo da
Tudor do cavalheiro, que permaneceu vivo até hoje, bem como no história. A totalidade destes dons é o homem como tipo ou espécie
.ideal seiscéntista do habilidoso. Esta orientação conduz: do huma­ e a aspiração do homem como espécie tornou-se a realização do
nista do século XVI ao filósofo do século XVIII e onde se vê que há de mais humano nesses dons .
melhor é nos dissidentes ingleses tolerantes, racionais, livres, con­ A ideia da auto-realização humana inspirou também o progresso
victos e rectos, bem como nos homens da Revolução Americana. científico e técnico. Pensamos por vezes que o progresso é ilusório
A dissidência religiosa das igrejas e a dissenção fundamentada e que os instrumentos e engenhos que se tornaram indispensáveis
do humanismo informaram ambas este ideal, por exemplo, ao aos homens civilizados nos últimos 500 anos são apenas uma acumu­
encorajar o individualismo religioso e político . Outras instituições lação repetida de luxos inúteis. Mas não foi essa a intenção dos
ameaçaram deformar estes ideais, por exemplo, o arrebanhar ho­ espíritos de cientistas e técnicos, nem foi esse o verdadeiro efeito
mens nas fábricas que tornou tão fácil, primeiro, tratar o trabalho dessas invenções na sociedade humana. A intenção e o efeito foi
humano e, posteriormente, o próprio homem como uma merca­ libertar o homem de fatigante escravidão de ganhar o seu sustento,
doria. As distorções totalitárias das nações industriais modernas, a fim de lhe dar oportunidade de viver. Desde Leonardo a Fran­
Alemanha e Rússia, por exemplo , derivam, sem dúvida, em parte, klin, o inventor tem querido dar, e conseguiu-o, a mais e mais
desta confusão do homem com as máquinas na fábrica e da repre­ pessoas a comodidade e o lazer para encontrarem em si mesmas
sentação do estado como uma espécie de fábrica. o melhor, que outrora era monopólio dos príncipes.
Só raramente um pensador dos últimos 500 anos fugiu a este
ideal de poder e realização humanos. Calvino foi talvez o tal pen­
8 sador que lhe fugiu e acreditou, como na Idade Média, que o
homem vem a este mundo como um ser completo, incapaz de qual­
Em SOO anos, desde Leonardo , duas ideias acerca do homem quer evolução que valha a pena. E é significativo que o estado que
foram especialmente importantes. A primeira é a in~!s.!ª.!l~i.ª, no Calvino organizou tenha sido, consequentemente, um estado tota­
pleno desenvolvimento da personalidade humana . O indivíduo é esti­ litário. Pois se o homem não pode evoluir e não tem em si nada
madõpõ-r-sT-mesmêi-:-0s-seus-Pooerc§- ciíããoTes são considerados o que seja pessoal e criador não há ocasião para lhe dar liberdade .
núcleo do seu ser . O livre desenvolvimento da personalidade indi­
vidual é louvado como um ideal, desde os artistas renascentistas
até aos isabelinos e desde Locke e Voltaire até Rousseau. Esta visão 9
do homem desenvolvendo-se livremente, feliz na revelação dos seus
próprios dons, é compartilhada por homens tão díspares como A segunda das grandes ideias enformadoras que esta história
Thomas Jefferson e Edmund Burke.É a imagem que Hegel tem dos expõe é a ideia de liberdade. Vemos que, de facto, a realização
heróis da época de Napoleão e - embora isso seja uma surpresa humana 'êli1aICãnçavel sem liberdade, de tal modo que estas duas
para aqueles que não o leram - que Karl Marx tem dos operários ideias estão unidas. Não poderia haver desenvolvimen to da per~(l­
e trabalhadores que idealizou. nslidRde dos inéllvítluos, realização das características em que um
Assim, a plenitude do homem foi uma das Ideias enformadoras homem difere de um outro, sem a liberdade de cada homem cres­
mais importantes ao longo do período estudado neste livro e assim cer no seu próprio sentido.
permaneceu até hoje. Os homens viram-se ocupando o mundo com \ O que é verdade nos indivíduos é verdade nos grupos humanos.
um potencial de muitos dons e esperaram realizar a plenitude desses Um estado ou uma sociedade não pode mudar sem que se dê aos
dons no decorrer das suas próprias vidas. Este acabou por ser o I seus membros liberdade de julgar, de criticar e de buscar para si

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iI:i!.
mesmos um novo estatuto. É por io que a insistência das ideias como 1 ce. Pois descobrimos que as ideias não seguem uma pro- '\
expressas ao longo do período de que trata este livro foi na direcção gressão linear e que a sua história não é uma estrada incaracterís- \1
da liberdade como expressão da individualidade. Algumas vezes, os tica. A história faz-se de conflitos e a história das ideias é um con- 1
homens tentaram encontrar a liberdade através de caminhos calmos flito de espíritos. I

de mudança, como fizeram os humanistas no princípio da Reforma O conflito de espíritos ainda é uma frase ab~tracta - tão abs- I
e os industriais contestatários do século XVIII. Noutros momen­ tracta como a história das ideias. Por detrás dos espíritos há homens :
tos, o impulso para a liberdade foi explosivo: intelectualmente explo­ as ideias são feitas, sustentadas e defendidas por homens. Ler a I
sivo na época isabelina e da Revolução Científica, economicamente história das ideias fora do seu contexto de homens e acontecimentos \
explosivo na Revolução Industrial e politicamente expiosivo nas é violentá-Ia. As ideias são tão humanas, tão poderosas, tão con­
outras grandes revoluções do nosso período, desde o tempo dos flituais e indestrutíveis como as emoções. O objectivo deste livro foi
puritanos à época de Napoleão. apresentar as ideias no seu total enquadramento: de homens, de
Apesar disso, o nosso estudo mostra que a liberdade é uma ideia grupos de homens e de acontecimentos. Os homens que escolhemos
maleável e enganadora, cujos defensores se podem por vezes iludir não estavam isolados; o que disseram era também dito por outros.
até supor que a obediência à tirania é uma forma de liberdade. Tal No entanto, é importante que tenha sido dito por homens singulares
ilusão enleou homens tão diferentes como Lutero e Rousseau, Hegel que pusémos em evidência para O nosso estudo; deixaram a marca
e Marx. Filosoficamente, não há com efeito liberdade ilimitada. do seu estilo nas ideias que exprimiram. Por conseguinte, a nossa
Mas vimos que há uma liberdade que pode ser definida sem con­ história é, em parte, nas suas páginas, uma homenagem ao homem .
tradição e que pode, por isso, ser um fim em si mesma . Essa é a Mas é também mais e maior que isso. É uma homenagem a todos
liberdade de pensar e falar: o direito de contestar. os homens que viveram e vivem pelas ideias e que, por outro lado,
criam e dão vida a outras ideias.

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A evidência da história é forte: as sociedades que garantem a


expressão de ideias novas são mais desenvolvidas e criativas. As
sociedades parecem permanecer fortes somente enquanto se orga­
\ nizam para receber os pensamentos novos e inesperados - e por
vezes desagradáveis. Pode parecer curioso que os governos de certos
p<l.íses dêem um estatuto especial à oposição; o Canadá, como a
Grã-Bretanha , paga actualmente um salário ao chefe da. oposição.
Aliás, esta legalidade da oposição, este equilíbrio entre poder e COIl­
testação, é o núcleo da tradição ocidental.
As grandes épocas criativas tenderam a ser aquelas em que a
dissenção fundamentada foi bem-vinda. Uma das lições que a his­
tória aqui nos dá é que tal dissenção é criativa em todos os domí­
llios. A arte do Renascimento ia de mãos dadas, no tempo e no
espaço, com a sua ciência. Os poetas e aventureiros isabelinos eram
contemporâneos dos primeiros grandes cientistas que tiveram voz
em Inglaterra - Francis Bacon, William Gilbert e WiIIiam Harvey.
O movimento romântico na poesia no fim do século XVIII coinci­
diu. com a aceleração das invenções e ambos se nutriram e deram
força às revoluções da época.
Chegamos aqui a uma conclusão curiosa: que há uma tradição
do pensamento ocidental desde o Renascimento que é uma tradição
de contestação - isto é, uma tradição de pôr em causa o que é
tradicional. Apesar de tudo, esta conclusão não é tão paradoxal

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