Você está na página 1de 153

da palavra 63

Foto: Luiz Braga

64
da palavra
III. Conversas com
Benedito Nunes

da palavra 65
Foto: Elza Lima

O roteiro dos livros


de um sábio paraense*
Lúcio Flávio Pinto

66 da palavra
Os livros continuam sendo uma forma indispensável de conhecimento,
ainda a melhor. É uma fonte de prazeres insuspeitados pelos que, nariz empinado
e desdém ensaiado, desprezam-nos, em referência aos ícones do futuro, os
aparelhos eletrônicos de armazenamento de informações. Numa de suas muitas
pesquisas, Bruno Bettelheim notou crianças que reconstituíam as histórias de
livros infantis por suas belas ilustrações. O enredo estava substancialmente ali,
mas não o prazer do texto, a voragem da narrativa, o mistério da história. A
visualização, nesses casos, é um complemento - fundamental, é claro, mas
complemento. Quem lê viaja, recria, revoluciona - e quem não lê mal fala, mal
ouve, mal vê, como insiste a propaganda inconvincente dos livreiros.
Os jovens são os menos convencidos, os mais inconvencidos, para
emprestar uma expressão que Lewis Carrol assinaria, o Carrol da muito vista
Alice no país das maravilhas, em tela cinematográfica, raramente lida no texto
deslumbrante. Mais do que os jovens em geral, os que chegam agora à
Universidade, vitoriosos nesse decatalo chamado de vestibular, têm seus motivos
para desconfiar dos in folios. Foram treinados para o reflexo condicionado do xis,
das quadrículas em branco, da resposta por impulso elétrico, não por reflexão,
não pela ruminância do pensar, que faz as delícias de quem pensa. Livro, além
de dar cultura, dá prazer, um prazer tão deslocado desses fanzines modernos que
faz, de quem é capaz de apreciá-lo, membro de uma confraria secreta. Os que
gostam de livros de verdade, entretanto, não querem ser únicos. Querem é alargar
as fronteiras desse prazer pessoal, estendê-lo ao maior número possível de
pessoas.
Eis a razão deste pequeno livro que a Universidade Federal do Pará aceitou
editar. Será fácil de ler, mas quem lê-lo talvez tenha uma sensação semelhante à
que tive quando, depois de ter passado pelo “Nome da Rosa”, li o diário mínimo
que Umberto Eco, escreveu à margem do romance medieval. O menor era o
melhor, contingência compulsória para os que não querem ser apenas “mais
um”.
Benedito Nunes dá aos calouros que chegam à Universidade a
possibilidade, por essa apurada seleção de livros, de se tornarem acadêmicos
sem segundos sentidos, depreciativos. Teoricamente, ao campus protegido pelo
muro universitário chegaram os melhores. Na realidade, na relação com este
inventário de leituras é que será medida a qualidade desse título. Títulos é fácil
ganhar, ou comprar. Conquistar é outra coisa.
O que Benedito Nunes pretendeu, ao responder ao questionário que lhe
fiz, foi prevenir-nos contra o triste fim profetizado por Ray Bradbury para uma
* Entrevista concedida ao jor-
nalista Lúcio Flávio Pinto, que sociedade sem livros, inculta e feia, triste e vazia. Quem receber este livrinho
escreveu a apresentação, publi-
cada no jornal A Província do
precioso poderá, ao sair da Universidade, medir seu grau de civilidade, no melhor
Pará, Segundo Caderno, 16/ e imorredouro significado que os greco-romanos lhe deram, pelos livros desta
05/1991. Republicação: Belém:
Editora da Universidade Fede-
seleção que tiveram lido, não como se tivessem baixado um taxímetro sobre sua
ral do Pará. Incluído em NU- mente, mas como se a elevassem ao nível realmente humano da nossa vida: o
NES, Benedito. Do Marajó ao
arquivo: um breve panorama da da dúvida que questiona e da busca que responde.
cultura no Pará. Organização
Victor Sales Pinheiro. Belém:
Alguns sábios foram sábios sem terem lido muitos livros, como Kant,
EdUFPA. (no prelo) cuja biblioteca abrigava apenas uns 300 exemplares, pequena mesmo para os

da palavra 67
padrões da época. Mas leram para valer e não como atletas de orelhas de livro,
espécime de larga difusão no mercado. Benedito José Viana da Costa Nunes,
o Bené da Rua Estrela, é desses sábios que leram muito e lêem bem. Talvez
nenhum paraense tenha lido tanto quanto ele, não para guardar para si o que
aprendeu. Na acolhedora casa que abriga Bené, Maria Silvia, Angelita, um
beagle que já teve seu retrato publicado no prestigioso “Jornal do Brasil”, e
gatos variados, sempre há um lugar para um amigo não anunciado que, bem
acomodado, em algumas dezenas de minutos aprenderá mais com a prosa
endiabrada do Bené, os comentários apropriados de Maria Silvia e as
pontuações refinadas de Angelita do que em anos em bancos escolares. Bené
sabe porque sabe. Não precisa demonstrar, nem esbanjar. É um sábio de
quilometragem in folios insuperável. Cabe-lhe um título que tem se desgastado
na aplicação sem mérito: é mestre.
O depoimento que Benedito Nunes me deu, provocado por um rústico
questionário, é a melhor bibliografia que um jornal brasileiro provavelmente já
publicou. Deveria sair no “Bandeira 3”, abrindo uma série que ficou apenas na
protofonia porque o jornal morreu no número zero, antes de chegar ao número
um. Mas sai em A Província do Pará, engrandecendo o jornal e despejando
sobre cada um de nós réstias de luz geradas na central de conhecimentos que
Bené carrega na cabeça, democraticamente acessível aos que querem saber mais.
A nostalgia do mestre que ele diz ter, autodidata confesso, nós não temos. Afinal,
Benedito Nunes é nosso grande mestre.
A desenvoltura de Benedito na análise da filosofia do alemão Heidegger
transfere-se para a prosa poética de Guimarães Rosa e se estende à música,
erudita ou popular, sem perder em profundidade e graça, características que
geralmente se excluem nos intelectuais brasileiros, às vezes sérios, mas cacetes,
enfadonhos. Bené cresceu entre livros, que lhe ficaram como o diálogo que
nunca teve com o pai, falecido muito cedo. O livro é o seu paraíso e por isso
não precisa de fichas para lembrar o que o acompanha, um catálogo na memória.
É um privilégio tê-lo a mão numa cidade que cresceu fechando livrarias e abrindo
locadoras de vídeos, forma mais sofisticada e inodora de cumprir a gélida profecia
de Ray Bradbury no “Farenheit 451”. Se depender de Benedito Nunes, sábio, o
melhor de todos nós, esta será sempre apenas uma ameaça.

Qual o primeiro livro que se lembra de ter lido?


Dizem que aprendi a ler com quatro anos de idade. Mas com certeza minha
primeira leitura deu-se um pouco mais tarde. O livro foi-me presenteado por um
mendigo já idoso, barba branca, que às quartas-feiras, pela manhã, vinha buscar
sua esmola certa que lhe proporcionavam minhas tias. Achavam-no parecido com
a tradicional imagem de São José Carpinteiro, reverenciado no oratório da
catolicíssima família. Nesse dia, depois de sentar-se na escada de madeira no
vestíbulo da casa, como costumava fazer, o velho retirou de sua tosca sacola um
pequeno livro, capa dura, de cor esverdeada, visivelmente restaurado, conforme
denunciava a tira de pano grudada à lombada: A Caçada da Onça, de Monteiro
Lobato. Era para o menino da casa. Mas só pude folhear o volume após o tratamento
profilático a álcool a que o submeteram as tias prudentes, receosas dos possíveis

68 da palavra
germes escondidos entre as páginas. Lembro-me ainda da gravura central sobre
duas dessas páginas abertas: os heróicos caçadores do sítio do Pica Pau Amarelo,
Pedrinho à frente, rebocando a onça já morta.

Qual o primeiro livro que lhe causou grande impacto?


O primeiro de impacto, que me precipitou num mundo estranho de nomes
ressoando diferentemente dos comuns, de seres extraordinários, de imagens
mentais pregnantes, duradouras, foi a Odisseia de Homero, publicado pela Atena
Editora de São Paulo, em tradução de meu tio, Carlos Alberto Nunes, num
metro longo, inabitual, para imitir o ritmo do original grego.

Os primeiros livros que você leu eram de biblioteca da família? Era


boa?
Esse tio, fixado em São Paulo, que muito mais tarde traduziria Shakespeare,
Goethe, Platão e Virgílio para o português, mandava-me muitos livros, quase
todos de presente: Poesias Completas de Gonçalves Dias (2 vols., Ed. Garnier),
David Balfour, de Robert Louis Stevenson, Os Irmãos Karmazov e Os Possessos, de
Dostoievski, Teatro de Lope de Veja, Os Diálogos do Limbo, de Santayana, e tantos
outros, que vieram chegando, ano após ano, por via marítima, em pacotes do
Correio - dos pequenos volumes de nietzsche da coleção Tor, em espanhol,
como Genealogia da Moral, O Crepúsculo dos
Ídolos, O Anti-Cristo, até o encadernados de certo porte, Guide to Philosophy,
de Joad, O Retorno do Nativo, de Thomas Hardy. Mas os primeiros livros, antes
desses, e excetuando Os Argonautas, de Gustav Schwab, que me mandou um
irmão de duas amigas de minhas tias, o Prof. Francisco Paulo do Nascimento
Mendes, eram da estante de casa, alta, de madeira amarela envernizada, cinco
prateleiras, com discretos ornamentos florais gravados, e um gavetão na parte
inferior. Pertencera a meu pai, que não conheci. Estava abarrotada de Machado
de Assis, José de Alencar, Eça de Queiroz, Shakespeare em volumes portugueses
avulsos da Lelo, capa de pano com a efígie do dramaturgo, Monteiro Lobato
para adultos, Urupês inclusive, Joaquim Nabuco (Minha Formação), Oliveira Viana
(Evolução do Povo Brasileiro, Populações Meridionais do Brasil), Lima Barreto quase
integral; Taunay, Afrânio Peixoto (o romance Fruta do Mato), Dante (A Divina
Comédia, em tradução do Barão de Vila da Barca) e de outros autores prestigiosos
na década de 20, quando foram comprados, como Assis Cintra, Oliveira Lima,
Antônio Torres, Mário Pinto Serva e Alberto Torres.Criei-me à sombra dessa
estante, seção belenense da biblioteca de família; a outra, que a completava, era
de meu tio, em São Paulo.

Alguém orientou-o nas primeiras leituras? Que orientação lhe deu?


Tive e não tive um primeiro orientador. Os livros da estante amarela eram,
de qualquer modo, a materialização simbólica da voz paterna suprimida pela
morte, que não lhe suprimiu a presença. Ou, se quiserem, a autoridade, para o
filho póstumo que fui. Vista a questão desse ângulo, a primeira orientação veio
do pai, louvado seja Freud. Mas como os livros estavam ali à minha escolha,
gradualmente vencida a resistência materna (havia-os “fortes”, perigosos,

da palavra 69
anticlericais, etc.), e como jamais me veio dele, do pai, qualquer indicação
expressa em sentido contrário, a orientação se fez ao acaso, em parte devido à
minha curiosidade, talvez estimulada por aquela resistência, em parte porque,
filho único, menino solitário, descobri na leitura o meio de me divertir sozinho.
Autodidata nato, sempre fui nostálgico de um mestre. Depois da professora
primária, minha tia, tive muitos mestres, sem, até hoje, fixar-me em nenhum.
Mas isso é matéria para outra história.
Quero apenas acrescentar que na época de formação, da infância para a
juventude, os meus sucessivos mestres também foram amigos, quase sempre
muito mais velhos do que eu: Augusto Serra, fundador do Colégio Moderno
onde fiz o Ginásio, homem de superior cultura literária e matemática, que me
franqueou a Biblioteca do estabelecimento, da qual me veio a revelação dos
clássicos franceses e ingleses (Molière, Racine, Corneille, la Buryère, La
Rochefoucauld, Swift, Walter Scott); meu primo Ribamar de Moura, inteligência
pura e nobre caráter, a quem devo o empurrão definitivo para a Filosofia (ele
repartia com os dois irmãos, Silvio e Levy Hall de Moura, a propriedade da
Crítica da Razão Pura, de Kant, e de O Mundo como Vontade e Representação, de
Schopenhauer em francês, belos volumes encadernados que freqüentei
assiduamente); Cécil Meira, a quem devo o empréstimo de uma versão resumida
do Wilhelm Meister, de Goethe, e Orlando Bitar (deu-me, antes das Obras
Completas de Virgílio, uma Eneida traduzida em prosa para o português, que
ainda tenho esperança de recuperar das mãos arrependidas daquele que
indevidamente a retém). Como esquecer a gravura de Jean Valjean ajudando a
pequena Cossete a carregar um balde d’água que parecia bem maior do que ela,
na mágica edição gigante ilustrada de Les Miserables, de Victor Hugo, que Orlando
Bitar, meu professor de latim, no Moderno, não hesitou em confiar aos meus
quatorze anos de calças curtas?
Cedo entrei, assim, no circuito bibliográfico infinito, o único verdadeiro
moto perpétuo que conheço. Pela leitura de um só livro, pode-se chegar a todos
os outros, com tempo e disposição. Quase sempre, os amigos ajudando, obtive,
na hora certa, aqueles de que precisava, movido por uma espécie de “faro” ou
de “senso frontal”, até hoje em pleno funcionamento. Ainda nos tempos do
Moderno, socorreu-me Anunciada Chaves, na lista dos mestres-amigos, com o
seu suntuoso Daudet (Tartarin de Tarascon) e com alguns volumes de Molière,
capa vermelha de pano, cheirando a naftalina, letras douradas na lombada. Artur
César Ferreira Reis, meu professor de História das Américas, que deslumbrou
nossa turma falando-nos dos aztecas, emprestou-me Casa Grande & Senzala.
Aos 19 anos, recebi de Paulo Mendes, o Chico Mendes, uma avultada provisão
de Goethe, Kierkegaard, Rilke, Kafka, Sartre, Paul-Louis Landsberg, que alentou
o sopro do primeiro longo ensaio que escrevi, A Morte de Ivan Ilicht, publicado
no Suplemento Literário da Folha do Norte, fundado e dirigido por Haroldo
Maranhão. Antes, muito antes disso, já se me abrira a grande mina da biblioteca
de Haroldo, que crescia nos altos da Folha, acima do lugar onde ficava a do
velho Maranhão. Entre nós travara-se uma singular relação de amizade: éramos
dois viciados em literatura, que às vezes liam os mesmos livros, e que se
exercitavam, ele aos 14 e eu aos 13, imitando A Barca de Gleire, de Lobato e

70 da palavra
Godofredo Rangel, nos labores da epistolografia: escrevíamos cartas em que
resumíamos, um para o outro, s obras lidas durante a semana.

Com quantos anos você comprou o seu primeiro livro? Qual era?
Como os livros minassem ao meu redor, somente aos 14 anos, por
incontinência de apetite, comecei a comprar, com o parco dinheiro fornecido
pelas tias, a obras custosas da Editora Vecchi, exibida nos balcões da atulhada
e simpática Livraria Vitória, de propriedade do Raimundo Saraiva de Freitas,
distribuidor de romances em fascículos, última aparição dos Folhetins para
assinaturas. Ainda guardo as duas primeiras compras: Chamfort, Caracteres e
Anedotas; Benjamin Franklin, Breviário do Homem de Bem, vols. 7 e 8 da Coleção
de pequeno formato Os Grandes Pensadores.

De seus livros escolares, qual o que marcou ou dele você ainda se


lembra?
Dos livros escolares retive na memória a forma e a cor das capas, algumas
gravuras e certas frases, principalmente aquelas da Lição de coisas, de Felix Pedro
Pantoja, que era a Quinta-essência da Física de Aristóteles diluída em catecismo
(“Qual a diferença entre objeto natural e objeto artificial? O objeto natural é
feito pela mão de Deus, o objeto artificial é feito pela mão do homem”). O
mesmo método do Primeiro Catecismo da Doutrina Cristã, que estudava às quintas-
feiras, de tarde, na Igreja da Santíssima Trindade (“Sois Cristão? Sim, sou Cristão.
Fazei o sinal da Cruz. Que é ser Cristão?” etc., etc.). Para mim, os melhores
livros sempre foram os extra-escolares. Nos anos de instrução religiosa, também
rezava pelo catecismo de Dona Benta, porta-voz do pensamento liberal, céptico,
altamente político, no sentido da afirmação de uma consciência pública de caráter
ético, de Monteiro Lobato: História do Mundo para Crianças, Dom Quixote de La
Mancha, Robinson Crusoé, Robin Hood. Dom Quixote trazia gravuras de Gustav
Doré. Só algumas cenas dos filmes Kurosawa me trouxeram cenas tão
comoventes quanto a da imagem de Sancho Pança que, rosto contra focinho,
chora, abraçado, num gesto de despedida, ao burro que vai abandonar.

Quantos livros tem atualmente na sua biblioteca? Qual é o “forte”


dela? Quais os livros mais valiosos nela existente? Quanto tempo levou
para formá-la? Como ela funciona? É aberta à consulta? Quem cuida
dela?
Não posso precisar-lhe quantos livros tenho. O último catálogo que tentei
organizar data de meus vinte anos.Convencido de que era uma prática sorvedoura
de tempo, deixei, desde então, de contabilizar minha biblioteca. Trato dela
sozinho, seu forte é Filosofia e Literatura quase em partes iguais. Só uma
concessão à burocracia: procuro manter, a duras penas, um registro de
empréstimos; saídas não são raras para estudantes e colegas. Algumas,
infelizmente, tornam-se atestados de óbito: inúmeras as reposições que tenho
feito. Pelo que disse até aqui, já se adivinhou quanto tempo levei para juntar
esses livros, que somados aos anos de Maria Sylvia e Angelita, ocupam mais de

da palavra 71
quatro compartimentos da casa. Tem a biblioteca mais do que a minha idade,
porque surgiu antes de mim. Sou seu funcionário único, e até agora pude
controlá-la impecavelmente. É certo que lhe impus uma ordem pessoal; sei
onde encontrar cada livro de acordo com o assunto (História da Filosofia,
Filosofia da Ciência, Religião, Psicologia, Crítica Literária, Romances Brasileiros,
Romances Estrangeiros, Poesia e assim por diante). Não trago a biblioteca na
memória. Ela é, de certo modo, a minha memória, feita de perdas, lembranças e
recuperações. Gostaria de recuperar alguns dos meus antigos hóspedes, como
certas obras da Coleção Terramarear (Mowgli, o menino lobo, Jacala, o crocodilo,
de Kipling; Tarzan, o Rei das Selvas, de Edgard Rice Burroughs; Pinochio, de Colodi)
ou a Poesia de Manuel Bandeira editada pela Casa do Estudante do Brasil. Não
sofro da obsessão de querer renovar o alumbramento da primeira leitura, embora
persista a nostalgia da experiência passada. Cada qual tem o paraíso perdido
que merece. O meu é livresco. Se fosse rico compraria a Bibliothèque de la
Plèiade inteira, todos os volumes da Coleção Budé e dos clássicos Loeb; também
colecionaria edições de Shakespeare assim como os novos-ricos colecionam
santos barrocos. Mas longe estou do tradicional bibliófilo, com o gosto de edições
raras, à busca de obras finamente encadernadas ou de luxo. No entanto, o livro,
instrumento de trabalho para riscar e anotar, adquire a meus olhos identidade
física, com a sua capa, o cheiro do papel, o formato, a posição da estante. Nesse
ponto pareço-me com D. Pedro II, para quem cada livro era um estimulante dos
sentidos da vista, do tato e do olfato. Assim é que os guardo na memória, catálogo
único, compulsado onde quer que esteja.
Os mais valiosos são os que melhor me servem, me ajudam, me
acompanham: Fragmente der Vorsokratiker, de Hermann Diels; Kant completo,
13 vols., na Edição de 1921 da Academia de Berlim; Fichte, também completo,
em 6 vols., Edição de 1911; Schopenhauer, idem, em 6 vols. Reclam; História da
Filosofia, de Uberweg, 4 volumes, Berlim, 1906; Suma Teológica, 16 vols. Latim/
Francês, 1853 (presente de Chico Mendes); La Philosophie de la Nature, de J-Del.
de Sales, Paris, 1804, 10 vols. (obtido numa troca com Machado Coelho); os
livros de poesia (Pound, Dylan Thomas, Cummings, etc.) que pertenceram a
Mário Faustino.

Se tem filhos: eles gostam de ler? Se não tem filhos, parentes?


Os filhos únicos, adotivos, nossos gatos e cachorros, dóceis e inteligentes,
não se interessam por essas coisas. Mas os meus primos, que cresceram na
mesma casa onde nasci e me criei, gostam de ler; tivemos a mesma professora
primária, nossa tia de verdade, e não a postiça das escolas de hoje, e que
contribuiu para isso.

Quais os dez livros mais importantes na sua vida?


Prefiro mencionar textos, como livros ou partes de livros que estão
estranhados à minha vida pessoal: 1- Apologia de Sócrates (Platão); 2 - El sentimiento
trágico de la vida, de Miguel de Unamuno; 3- José e seus Irmãos, de Thomas Mann;
4 - A Morte de Ivan Ilicht, de Leon Tolstoi; 5 - Kant, Crítica da Razão Pura; 6 -
Proust, La Recherche du Temps Perdu; 7 - Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas;

72 da palavra
8 - Os Poemas elegíacos de Carlos Drummond de Andrade (em A Rosa do Povo
e Claro Enigma); 9 - A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector; 10 - Ser e Tempo,
de Heidegger.

Que livros são essenciais para um leitor?


Teria que escrever um livro sobre os livros como resposta a esta pergunta.
Na impossibilidade de fazê-lo agora, apresento-lhe algo simples, não no gênero
de Ce qu’ il faut lire dans la vie, obra de autor francês que encontrei, quando
cursava o ginásio, na biblioteca dos irmãos Viana (Garibaldi, Camilo, Raimundo
e Antonio Pedro), por eles herdada do pai, Prof. Josino. O que adiante se vai ler
é uma lista com as seguintes especificações e utilidades: a) - sujeita a muitos
acréscimos sem que dela possa ser suprimido; b) - vai do séc. VIII a . C. ao
início do séc. XX d.c., até por volta de 1903; c) - não serve para o Vestibular; d)
- pode denominar-se “o que é preciso ler à margem do ensino universitário
enquanto se estuda na Universidade e depois”, e) - enumera os livros e autores
que podem ser recolhidos numa Arca salvadora, em caso de Dilúvio antilivresco,
precipitado pelo eventual e possível agigantamento, como maremoto de certa
duração, da onda de estupidez intelectual, estética e ética, que já castiga o País.
Upanishada e Bhagavad-Gita; Ramayena; clássicos chineses, Taote-King
inclusive; textos budistas e zenbudistas; Hesiodo, Teogonia; Homero, Ilíada e
Odisséia; tragédias gregas & Ésquilo, Sófocles, Eurípedes); Heródoto, História;
Tucídides, A Guerra do Peloponeso; Obras de Platão, como Apologia de Sócrates e
Os Diálogos Banquete, Phedro, Phedrão, A República, O Sofista e Parmênides;
Aristóteles, Organum, Poética, Ética a Nicômaco; Virgílio, Eneida; Ovídio, As
Metamorfoses; Horácio, Odes; fontes do estoicismo e do ceptismo (Marco-Aurélio,
Epicteto e Sexto-Empírico); De Rerum Natura, de Lucrécio; Petrônio, Satiricon;
Apuleio, Asno de Ouro; Luciano de Samosata, Diálogos. Eclesiastes e Cântico dos
Cânticos: Os Evangelhos (inclusive os Apócrifos); Livros dp Pseudo-Dionísio
Aeropagita; As Confissões, de Sto. Agostinho; Abelardo, História de minhas
calmidades; Tristão e Isolda; O ciclo do Rei Artur; Tomás de Aquino, Suma Teológica;
I Fioretti, de São Francisco de Assis; Dante, A Divina Comédia; Eckardt, Sermões;
Poesias, de François Villon; Nicolau de Cusa, De docta ignorantia; Boccacio,
Decameron; Rabelais, Garantua e Pantagruel; Les Essais, de Monteigne; Shakespeare,
Tragédias e Comédias; Camões, Os Lusíadas e Sonetos; Fernão Mendes Pinto, As
Peregrinações; São João da Cruz, Subida do Monte Carmelo; Cervantes, Dom Quixote
de La Mancha; Calderon de la Barca, La Vida es sueño; Descartes, Discours de la
Méthode e Meditações Metafísicas; Pascal, Les Pensées; Spinoza, Ética; Molière, Le
Tartuffe, Le Medicin malgré lui, Le Malade imaginaire; Racine, Phédre, Esther,
Andromaque, Britanicus; La Rochefoucauld, Maximes; La Bruyère, Les Characteres.
Locke, Essay concerning the Human Understanding e Segundo Tratado sobre o
Governo; Montesquieu, O Espírito das Leis; Hume, Tratado sobre a anatureza humana;
Berkeley, Diálogo entre Hylas e Filonous; Leibniz, Monadologia; William Blake, Os
Livros proféticos (principalmente O Casamento o Céu com o Inferno); Rousseau,
Ensaio sobre a origem da desigualdade, Les Confessions e Les Revêries d’un promeneur
solitaire; Voltaire, Contos Filosóficos (sem esquecer L’Ingenu e Candide); Diderot,
Jacques le Fataliste e Suplemento à viagem de Bougainville; Goethe, Wilhelm Meister e o

da palavra 73
Fausto (1º e 2º); Schiller, Poesia ingênua e Poesia Sentimental e as Cartas sobre a
Educação Estética; Correspondência Schiller/Goethe; Kant, A Crítica da Razão
Pura, Filosofia da História do Ponto de vista Cosmopolita e Crítica do Juízo; Richardson,
Tom Jones; Novalis, Hinos à Noite; Holderlin, Elegias e Hinos; Kleist, A Marqueza
d’O; Buchner, Woyzzek e A Morte de Danton; Heinrich Heine, Livro das Canções;
As Mil e Uma Noites.
Chateaubriand, Atala e Mèmoires d’Outre-tombe; Sterne, Sentimental Journey e
Tristram Shandy; Odes, de Shelley e Keats; Coleridge, Biografia Literária; Leopardi,
Cantos; Hegel, A Fenomelogia do Espírito e Lições de Estética; Karl Marx, O Capital
e 18 Brumario; Schopenhauer, O mundo como vontade e representação; Kierkegaard,
Migalhas Filosóficas e o Tratado do Desespero; Balzac, A Comédia Humana; Stendhal,
O Vermelho e o Negro e Crônica Italianas; Victor Hugo, Les Contemplations, Notre
Dame de Paris, Les Misérables; Michelet, A Revolução Francesa; Tocqueville, O Antigo
Regime e a Revolução Francesa; Alexandre Dumas, Os Três Mosqueteiros; José de
Alencar, O Guarani, Iracema e As Minas de Prata; Almeida Garret, Viagens na
minha Terra; Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas, História da Origem e do
Estabelecimento da Inquisição em Portugal; Dickens, David Copperfield, Pickwick Papers;
Emily Brontè, O Morro dos Ventos Uivantes; Charlotte Brontè, Jane Eyre, Jane
Austen, Pride and Prejudice; Baudelaire, Les Fleurs du Mal; Rimbaud, Les Iluminations;
Verlaine, Romances sans Paroles; Mallarmé, Poesias; Edgar Allan Poe, Contos
Extraordinários; Emily Dickson, Poems; Lautréaumont, Chants de Maldoror; Omar
Kayyan, Rubayat.
Samuel Butler, The way of all flesh; Robert Loouis Stevenson, The Treasure
Island; Thomas Hardy, Judas o Obscuro; Flaubert, L’Education Sentimentale, Trois
Contes; Jules Verne, Viagem à Lua; Joseph Conrad, Nostromo; Lewis Carroll, Alice
no País das Maravilhas; Camilo Castelo Branco, O Amor de Perdição; Machado de
Assis, Memórias Póstumas de Braz Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Joaquim
Nabuco, Minha Formação; Ruy Barbosa, Contra o Militarismo; Euclides da Cunha,
Os Sertões; Tolstoi, Guerra e Paz e A Morte de Ivan Ilich; Dostoievski, Crime e
Castigo, Os Irmãos Karamazov, Os Possessos, O Idiota; Chekov, Contos, As Três Irmãs;
Ibsen, Solners, O Construtor; Strindberg, O Sonho; Thoreau, Walden e Desobediência
Civil; Walt Whitmann, Leaves of Grass; Kipling, O Livro da Jangal; Henry James,
A volta do parafuso; Mark Tawain, Huckleberry Finn; Eça de Queiroz, A Cidade e
as Serras, O Primo Basílio;
Bergson, Les Données Immédiates de la conscience; Nietzsche, Assim falava
Zaratustra; Husserl, Investigações Lógicas; Freud, Interpretação dos Sonhos; Proust,
La Recherche du Temps Perdu; Valéry, Poesias e Variétés; André Gide, Os Moedeiros
Falsos; Le Fils Prodigue; Gorki, Minhas Universidades; Apollinaire, Alcools e
Calligrames; Eliot, The Waste Land; Joyce, Dubliners, Ulisses; Pound, The Cantos;
Jorge Guillen, Cântico; Rilke, Elegias de Duino e Sonetos e Orfeu; Trakl, Poemas;
Lorca, Romancero Gitano; Fernando Pessoa, Guardador de Rebanhos, (Alberto
Caeiro), Odes (Ricardo Reis), Grandes Odes (Àlvaro de Campos); Heidegger, Ser
e Tempo; Jacob Wassermann, Processo, América, O Castelo, A Colônia Penitenciária;
H.O. Lawrence, O Homem que morreu, A Serpente Emplumada; Virginia Wolf, As
Ondas e Orlando; Hermann Broch, Os Sonâmbulos; Musil, O Homem sem Qualidades;
Oswald de Andrade, Poesia Paubrasil; Mário de Andrade, Macunaíma; Poesias de

74 da palavra
Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Manuel Bandeira;
Karantzakis, Ascese, Salvatores Dei.

Que livro causou-lhe a maior decepção?


O Baudelaire, de Jean-Paul Sartre, que culpa Baudelaire por ter sido
Baudelaire.

Dos livros que escreveu, qual o que mais lhe agrada? Qual o menos
satisfatório?
O que me agradou, dando-me prazer quando o escrevi, foi O Tempo na
Narrativa. O menos satisfatório é ainda um dos primeiros, Introdução à Filosofia
da Arte, que deverá ser revisto e ampliado nos próximos anos.

Que livros sobre a Amazônia devem constar de uma boa biblioteca?


Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem Filosófica; Bates, Um Naturalista no
Rio Amazonas; Gastão Cruls, A Hiléia Amazônica; todos os que Eidorfe Moreira
escreveu sobre o assunto; Curt Nimuendaju, Os Apinayé; Edson Soares Diniz,
Os índios Macuxi de Roraima; Frederico Barata, Análise estilística da cerâmica de
Santarém; Armando Mendes, Viabilidade Econômica da Amazônia e O Mato e o
Mito; Lúcio Flávio Pinto, Carajás, o Ataque ao coração da Amazônia e Jari (as
relações entre o Estado e as multinacionais na Amazônia); Vicente Salles, O
Negro no Pará. Ainda: O Coronel sangrando, de Inglês de Sousa; O Turista Aprendiz,
de Mário de Andrade; Moronguetá, de Nunes Pereira; Antônio Brandão de
Amorim, Lendas em Nheengatu em português; o ciclo ficcional de Dalcídio Jurandir,
começando por Chove nos campos de Cachoeira; Batuque, de Bruno de Menezes. E
mais: a poesia de Rui Barata (Anjo dos Abismos, A Linha Imaginária); a obra
poética de Paulo Plínio Abreu; O Homem e sua hora, de Mário Faustino; Verde
vago mundo, de Banedicto Monteiro; Galvês o Imperador do Acre, de Márcio Souza;
Cabelos no Coração, de Haroldo Maranhão; 60/38, de Max Martins. Lembramos
também Luis Bacellar, Sol de feira; Elcio Farias, Romanceiro; Jorge Tufic, Poesia
reunida; Paes Loureiro, Cantares Amazônicos; Age de Carvalho, Ror; Sérgio Wax,
Trinta e três experimentos e uma Suíte; Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente.

da palavra 75
Encontro com Benedito Nunes*

Por Edson Coelho1

Em 1929, a avenida Gentil Bittencourt nem era calçada. No trecho entre o Cemitério Ao lado: Em Rennes,
da Soledade e a Presidente Pernambuco, três cortiços ocupavam grandes terrenos. Em outubro outono de 1996
daquele ano de crack na Bolsa de Nova Iorque, morria o bancário Benedito Nunes. Em
novembro, nascia o futuro professor Benedito Nunes Filho. Não conheceu o pai. Mas daria
ao mundo reflexões profundas em várias áreas do conhecimento.
“Nasci em Batista Campos. Morava na Gentil, entre Serzedelo e Presidente
Pernambuco. Sabe qual é o trecho? É só se localizar pelo Cemitério da Soledade
e pela caixa d’água. Os cortiços - que chamávamos estâncias - eram habitados
mais por lavadeiras e empregadas domésticas. Minha infância foi realmente
tranquila. Eu era protegido!...”.
Neste espaço que faz questão de tão bem localizar, Benedito Nunes se dividia entre
os livros - aprendeu a ler aos quatro anos, em casa mesmo, onde funcionava a Escola
Sagrado Coração de Jesus, de uma tia - e as brincadeiras na rua, com os colegas pobres que
moravam nos cortiços.
“Brincávamos de papagaio, peteca, danças de roda, pião, polícia e ladrão...”
O senhor era bom? “Em peteca talvez fosse um pouco melhor. Em papagaio eu
era um pouco... um pouco... amarrado”, lembra entre risos um dos ganhadores, na
semana passada, do “Prêmio Multicultural Estadão”, que lhe rendeu dupla satisfação: ter
a obra escolhida por três mil pessoas ligadas à cultura, em todo o país, e usufruir do prêmio
de trinta mil reais. “Eu tinha um primo que me trazia os papagaios já com cerol na
linha. Aí eu dava os laços. Muitos adultos gostavam de papagaio. Era muito
divertido...”
Ele estudou com a tia até o quinto ano, quando se submeteu a exame de admissão no *
Entrevista concedida ao
jornalista Edson Coelho.
Colégio Moderno. Já então navegava de Monteiro Lobato - “o primeiro livro que li dele Transcrição do jornal O Li-
foi “As caçadas de Pedrinho’” - a clássicos da literatura universal. “Meu pai beral, 19/04/98. Cad. Cartaz,
p. 4-5.
tinha montado uma grande biblioteca. Eu lia Shakespeare, Machado de Assis, 1
Filósofo e jornalista.

76 da palavra
Foto: acervo Maria Sylvia Nunes

da palavra 77
Eça de Queiroz... Pode-se dizer que eu era uma criança metida a besta... Pena
que muitos daqueles livros, entre os quais exemplares raros, foram extraviados:
emprestávamos e não devolviam...”.
É com sabor de conversa que, nesta entrevista, Benedito Nunes relembra as primeiras
aventuras literárias e os companheiros de geração; “a França inteira de braços cruzados”,
pouco antes de eclodir a Revolução de Maio de 68; a experiência de dar aula nos EUA e na
França; os desafios do homem para o próximo milênio; como levou para a clínica uma
cadela recém-atropelada, em frente ao Bosque (“depois ela teve seis filhotes e hoje é fazendeira”)
e de como não gosta de futebol nem acredita em ET’s...

P: Como surgiu o hábito pela leitura?


O primeiro grande estímulo, o determinante, foram os livros herdados de
meu pai. E eu tinha também um tio, Carlos Alberto Nunes, que me mandava
muita coisa de São Paulo... Meus pais passaram a lua de mel lá. Minha mãe,
Maria de Belém Viana, ficou deslumbrada com São Paulo.

P: O senhor estudou até o quinto ano no colégio da tia. E depois?


Em 1940, entrei no Colégio Moderno. Ao concluir os estudos no Moderno,
estava tudo combinado com meus tios que eu iria a São Paulo , estudar filosofia.
Mas um deles, que era banqueiro - ou tinha uma casa bancária - faliu e acabei
estudando Direito na Faculdade de Direito do Pará. Quando entrei para a
Faculdade, comecei a lecionar filosofia no Moderno. Formei-me em 1952, ano
do meu casamento com a Maria Sylvia.
Nossa dedicação ao teatro - a Maria Sylvia, sobretudo, dirigia - rendeu
uma viagem à França. Ela montou a tragédia “Édipo Rei”, de Sófocles. Fomos
com a peça participar de um festival universitário em Santos. Ela ganhou o
festival e o prêmio da viagem: em navio, de primeira classe. Eu - que era apenas
“o marido da professora” - tive que conseguir dinheiro junto ao Capes para
poder viajar. Passamos seis meses na França. Fizemos vários cursos. Ela tinha
direito a estágios e a frequentar vários teatros, inclusive nos ensaios. Íamos a
museus... Estudei com o professor Paul Ricouer, na Sorbonne.

P: E os escritos?
Eu já assinava artigos no Suplemento Literário do Estado de São Paulo.
E também fazia uma crônica do Pará: resenhas sobre autores paraenses como
Eidorfe Moreira, Dalcídio Jurandir... Quando estava na França eu também
escrevia. Enviei vários artigos sobre um grande livro do Sartre, “Crítica da Razão
Dialética”.

P: Quando o senhor conheceu o Mário Faustino?


Em 48. Durante a primeira e única reunião da Associação Brasileira de
Escritores, convocada por Haroldo Maranhão. Mário estava interessadíssimo
no Jorge de Lima (depois fez uma revisão enorme da obra de Lima). Tenho
alguns livros que foram de Mário em que ele anotara exaustivamente, página
por página, todos, todos os sonetos de Jorge de Lima. Pouco antes, a Folha do
Norte instituíra o concurso Embaixador da Juventude, cujo prêmio era uma

78 da palavra
viagem ao Rio de Janeiro. A votação era com cupons, publicados diariamente
nos jornais. Eu representava o Moderno, Mário o Paes de Carvalho. Votaram
mais em mim e ganhei o concurso. Eu e Mário desenvolvemos uma amizade tão
profunda que costumávamos visitar a casa um do outro sem aviso prévio...
P: Por essa época o senhor chegou a escrever poesia...
(Risos) É, publiquei muita besteira naquela época... Coisas sem valor
nenhum. O Haroldo dirigiu um suplemento excelente na Folha do Norte. Todos
publicávamos - Max Martins, Alonso Rocha, Paulo Mendes, Paulo Plínio Abreu,
Ruy Barata. Era um suplemento local, mas de amplitude nacional: Carlos
Drummond de Andrade e Cecília Meireles, por exemplo, escreviam especialmente
para ele. Eram ideias modernas. (O modernismo aqui repercutiu duas vezes: a
geração de Bruno de Menezes, num primeiro momento, e a nossa. Entre nós, a
reação era principalmente ao parnasianismo.)
Aliás, antes, o Haroldo também fundara um jornal de colégio - O Colegial
- que circulava em todos as escolas e em que cheguei a publicar muita besteira.
P: Nas reuniões literárias dessa época havia aquele espírito irreverente, farrista?
Tinha bebida alcoólica?
Não. Nessa época - tínhamos 17, 18 anos - bebíamos mais era café com
leite. Depois - em 51, 52 - houve mais frequentação ao copo, mas sempre muito
moderada.
P: Cerveja, vinho...?
Uísque.

P: Quando o senhor começou a viajar? Morou fora de Belém?


Morei fora algumas vezes, mas sempre por temporadas. Por dois semestres
dei aulas nos Estados Unidos: um na universidade de Vanderbilt, que fica em
Nashville, Estado do Tenessee, e outra em Austin, no Texas. Em ambos fui
professor convidado de Literatura Brasileira. Na França, também por duas vezes.
A primeira, em 67, 68, como lecteur, que é um professor que não pertence ao
quadro e é nomeado para coadjuvar uma função.

P: Na França dos anos 20 e 30 moraram alguns dos maiores escritores deste século.
E no século passado havia aquelas reuniões em tarvernas, das quais inclusive o Rimbaud
participava. Havia uma curiosidade intelectual de frequentar esses lugares, reviver aquele
clima romântico de literatura?
O clima já não existe. Acabou há muito tempo. Mas muitos lugares foram
conservados, preservados vários referenciais históricos.

P: O senhor viveu em Paris os momentos de tensão e da própria eclosão da Revolução


de Maio. Conheceu o Fernando Henrique Cardoso, que também estava em Paris nesta
época?
Não. Mas ouvia-se falar muito dele entre os exilados. Era uma espécie de
trunfo: “Fernando Henrique vai estar em tal lugar”, “Fernando Henrique falou
isso e aquilo”, dizia-se dele na época.

da palavra 79
P: E as lembranças marcantes da Revolução?
Era a época dos estados gerais dos Estudantes. Havia muitas assembleias
estudantis, com representação paritária entre estudantes, professores...
P: O senhor se envolveu de alguma forma? Participou de reuniões, passeatas...
Não. Eu preparava uma tese para a Sorbonne e não tinha tempo. Uma vez
fomos a um subúrbio de Paris, assistir à montagem de “O rei da Vela”, de Oswald
de Andrade, dirigida por Zé Celso Martinez Correa. Na volta - retornamos pelas
vias normais, de metrô - percebemos um movimento inusitado na cidade. No
dia seguinte já começavam as passeatas. Seguiram-se as greves. Houve momentos
de tensão, mas, de certa forma, foi bom porque conheci Paris sob um aspecto
inédito. As pessoas nas ruas com os braços cruzados. A cidade inteira de braços
cruzados. Bancos, Correios, tudo fechado. Na ocasião, todos estavam à esquerda.
Faziam-se passeatas enormes, que geralmente acabavam em confronto com a
polícia. Uma vez, na volta de um restaurante em que encontráramos um amigo
professor italiano, presenciamos um confronto: de um lado, os policiais: com
viseiras, cacetetes e um tipo especial de fuzil, com cano largo onde punham as
bombas de gás lacrimogêneo. De outro, estudantes, professores... Não se mexiam.
Um defronte do outro. O confronto acabou em violência generalizada.
Os manifestantes também quiseram recompor as barricadas, uma tradição
em Paris. Eles serravam as árvores, que bloqueavam os bulevares... Também
usavam coquetéis Molotov. Foi nesta época que de Paris mudei-me para Rennes,
onde permaneci um ano lecionando - como lecteur - literatura brasileira e estética.
Na volta ao Brasil, já anos depois, lecionei filosofia da linguagem e estética
no Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp, em São Paulo. Hoje dou
muitas conferências: no Rio de Janeiro, São Paulo, São Luís, Porto Alegre, Belo
Horizonte e também no exterior.
P: O senhor ainda dá aula?
Aposentei-me da UFPA em 1992. O motivo principal foi a ameaça do
Fernando Collor de acabar com a aposentaria por tempo de serviço. Além das
conferências, oriento teses de mestrado em Letras, na UFPA, e, de vez em
quando, leciono a disciplina teoria da crítica.

A AMAZÔNIA, SEUS ESCRITORES


P: Como o senhor avaliaria o imaginário, o homem amazônico?
O imaginário amazônico é muito difundido e difuso. Está no
“Macunaíma”, de Mário de Andrade. Está também em outro grande escritor
paraense, José Veríssimo, do princípio do século. Ele é mais conhecido como
crítico - é autor de uma das melhores histórias da literatura brasileira - mas
também escreveu contos, foi etnólogo, publicou lendas amazônicas, escreveu
sobre pesca, fundou um colégio em Belém e contribuiu para a fundação do
museu Goeldi. O problema é que a literatura dessa época era laudatória, com
grandes discursos, aquele sonetos...
Sabes quantos discursos se fizeram na morte do Carlos Gomes? (Houve um
grande féretro em Belém, mas afinal ele foi enterrado em São Paulo. Em Belém,

80 da palavra
foi um acontecimento. Uma verdadeira procissão saiu da casa onde ele morreu,
na Quintino com Tiradentes. Participavam autoridades, representantes de colégios,
religiosos, bispos, associações, entidades. A primeira parada foi no Cemitério da
Soledade. Depois o corpo seguiu até onde hoje fica a Feira do Açaí.) Pois bem:
foram feitos nada menos que 40 discursos, fora os sonetos. É demais, não é?

P: O que ter nascido entre tantos rios e florestas moldou em nossa personalidade?
Quando os portugueses aqui chegaram, a população era indígena. Teve
um camarada que participava daquela famosa expedição do Pedro Teixeira que
disse que havia tanto índio que não podia cair uma agulha no chão. De forma
que muito do que os portugueses aprenderam e adotaram por aqui tem raiz
indígena: as técnicas de conseguir alimentação, caça, pesca, culinária, construção
de casa. Esta característica acabou preponderante em nosso imaginário. Depois
ela foi abafada, e hoje retorna apenas nas danças dramáticas, pássaros e rituais
dos encantados.

P: O amazônida seria mais lento, mais agitado, mais hospitaleiro - como situá-lo em
relação ao resto do Brasil?
É meio perigoso abordar isso superficialmente, porque vamos acabar
chegando à tese da preguiça. Por ter uma relação maior com a natureza e ter um
ritmo normal ao respeitar a sua natureza interior, os índios não tinham a mesma
noção de trabalho, as mesmas tensões. Hoje isso está tudo muito misturado.

P: Com poucas palavras: o que é o homem amazônico?


Ele existe? Tudo é muito diversificado: o ribeirinho, o citadino. Lamento
muito é a perda da linguagem. Talvez isso fosse um pouco do amazônida: um
certo modo de falar.

P: Que escritores se destacam na apreensão e expressão desse homem amazônida?


No passado, José Veríssimo e Inglês de Souza - o dos contos e romances,
ali pela década de 40 do século passado. No presente, Dalcídio Jurandir (prefiro
falar só dos que já morreram. Os outros são muito próximos, muitos são meus
amigos). Dalcídio fez o romance de Belém, e também o urbano, o rural. Seu
romance “Belém do Grão Pará” é muito belo. É o grande retrato de Belém da
época: tudo que perdemos está ali: todo, completo.

P: E Haroldo Maranhão?
Não quero falar dos vivos, mas o Haroldo é um grande amigo e também um
escritor de grande envergadura. É um grande escritor - domina o conto, a crônica e
a grande narrativa romanesca, de que “Cabelos no Coração” é um exemplo.

P: Ele seria o maior prosador, hoje, do Pará?


Eu acho que sim.

P: E outros, como Benedicto Monteiro?


Não quero falar dos que estão vivos.

da palavra 81
P: E Ruy Barata?
É um poeta que tem muitas dimensões. Ele consegue transcender a simples
realidade de escritor amazônico. E é um cruzamento de vários poetas, mas
sempre firme em sua individualidade (isso é muito importante: que o poeta não
se isole dos outros). Inclusive quando ele publicou “A linha imaginária” fez uma
brincadeira: colocou como endereço da editora o da minha casa.

P: Quem mais transcendeu o que se pode chamar de um “regionalismo” entre aspas?


José Veríssmo, Inglês de Souza, Dalcídio Jurandir, Bruno de Menezes,
Ruy Barata, Haroldo Maranhão, Max Martins, Paulo Plínio Abreu, Age de
Carvalho, Mário Faustino...

P: Mário seria o maior entre os poetas?


Todos são diferentes, únicos. O traço que distingue Mário dos outros é
que ele teve uma preocupação muito grande com a natureza da poesia. Uma
preocupação crítica. Uniu as duas coisas: poesia e crítica. Foi um esplêndido
poeta-crítico, que morreu muito novo.
Talvez por isso sempre há a expectativa pelo lançamento das obras
completas dele. Eu e a professora Maria Eugênia Boaventura, da Unicamp,
estamos organizando essa obra - que incluirá suas mais de cem crônicas, toda a
poesia, os artigos, contos, poesia traduzida, cartas, iconografia. A idéia é lançar
o primeiro volume ainda este ano. Depois se decidirá a que intervalos serão
lançados os outros. Devem ser cinco ou seis volumes.

P: Mário foi o autor mais importante que o Brasil perdeu precocemente?


Não se pode esquecer de Castro Alves, Álvares de Azevedo e outros
românticos. Eles todos morreram tão cedo. Mas eu incluiria os “Sete sonetos de
Amor e Morte”, de Mário, entre os poemas essenciais da literatura brasileira.

P: O senhor conhece a nova poesia paraense? Antônio Moura, Reivaldo Vinas...


Comecei a ler o Antônio Moura. Ele é muito bom, me surpreendeu. O
Reivaldo também tem coisas boas. Há também o Benilton Cruz, poeta de grande
valor em quem votei para o Prêmio Nestlé.

P: E o Age de Carvalho?
Este é um poeta de alta qualidade, e que se renova sempre. Os últimos
poemas que ele está escrevendo são completamente diferentes do que já fez.

P: Drummond é o grande poeta brasileiro?


É um dos grandes. Poesia é uma linguagem múltipla, muito diversificada.

P: Esse século - Fernando Pessoa, Lorca, Eliot, Yeats, Maiakovski - foi bom para
a poesia?
Até há bem pouco tempo foi. Hoje as condições não são muito propícias.
Mas o século passado também foi excelente. Basta lembrar de Rimbaud e
Baudelaire.

82 da palavra
P: Quem influenciou mais a literatura deste século, Freud ou Marx?
A influência foi sempre indireta. Eu diria que influenciou mais a crítica.
A criação foi influenciada, mas num plano interpretativo. Os autores assimilaram
a psicanálise e a adequaram à própria sensibilidade. Não houve um processo
doutrinário. Aí podem-se citar Fernando Pessoa e Clarice Lispector.

P:Fernando Pessoa é o grande poeta deste século que menos deve a Mallarmé?
Ele estava mais ligado a Baudelaire, Rimbaud, ao surreal. Nunca houve
poeta mais cético...

P: Machado de Assis ou Guimarães Rosa? Drummond ou João Cabral?


Todos.

P:Cinema é arte - no sentido de ter produzido grandes obras numa comparação com
o que se produziu na poesia, por exemplo?
É arte, mas que desloca o sentido da grande contemplação estética. Eu
diria que é arte no sentido de que pode atingir grandes níveis de pensamento.
Fellini pensa. Bergman pensa (especialmente de “O sétimo selo”). Kurosawa,
que fundiu Shakespeare à tradição japonesa, uma maravilha. Orson Welles eu
aprecio, mas não tenho com ele, digamos, muita afinidade.

DESAFIOS DO TERCEIRO MILÊNIO


P: O mundo está caminhando para uma virtualização? As pessoas vão pensar
diferente, ter ritmos diferentes?
A cultura eletrônica, se você me permite essa expressão, é penosa porque
de certa forma passa ao largo de uma multidão de analfabetos: por mais que
eles se iniciem nela, continuarão analfabetos. Então há duas mentalidades: a
dos que vivem essa transformação e a dos que são alheios a ela. O ideal seria
unir os dois tipos.
Virtualização? Acho que há transformações, mas não sei se vão determinar
mudanças tão profundas de comportamento. Mas há outras relações, outras
linguagens. O e-mail, por exemplo: não se escrevem mais cartas. E há as conversas
por computador: conversa na ausência de pessoas.
Mas a mais triste é a “virtualização” paradoxal do conhecimento. O homem
nunca teve tanto conhecimento de seus direitos - e nós vemos essa penúria do
estado de direito em toda parte. Nunca teve tanto senso de igualdade - e vemos
tanta forma brutal de opressão. O caso do Brasil é bem significativo...
Quanto ao livro e o computador, sou um homem livresco. Não vejo o fim
do livro. Acho que ele vai ser complementado, até colocado em outros planos.
O que é para um cego, por exemplo, apenas ouvir “Os irmãos Karamazov”? É
outra forma de vivenciar a literatura...
Também disseram que o vídeo ia acabar com o cinema - e, só num bairro
em Paris, há 40 salas de projeção. O CD nos permite ter uma orquestra dentro
de casa...

da palavra 83
Quanto a mim, o computador é uma máquina de escrever mais potente. Ele
me permite, com recursos práticos, escrever mais rápido. Hoje escrevo muito mais.
Quanto à Internet, só mexi quando o técnico veio ensinar. Nunca voltei a ela...

P: Como o senhor vê a globalização?


Até agora ela tem sido inevitável. Mas há muito palavrório quando se diz
que ela é o futuro da humanidade. Ela é um incidente grave, certamente, da
atual fase da economia mundial, envolvendo produção e consumo. É, de certa
forma, igual a mercado, domínio planetário da técnica. Mas não é o futuro. Isso
seria pôr em xeque as ideias de cidadania universal. Acho que a globalização
pode ser positiva se afastarmos a dominação do mercado. Quando se fala em
globalização, fala-se em dominação, não necessariamente de países, mas de
companhias sobre países. Esqueceram que nosso passado intelectual e histórico
não é só liberalismo. Ele inclui, por exemplo, o Socialismo Utópico, que Marx
quis ridicularizar.

P: O socialismo está sepultado?


O comunismo sim. Mas o socialismo pode renascer. Admito a ideia de
uma sociedade igualitária, conservando as diferenças de cor, religião e raça,
mas resguardando a igualdade de direito e sem miséria. Não acredito noutro
tipo de globalização, que é a comunista - um estado providencial, orientando,
normatizando politicamente. No fundo ainda é o problema do Kant, quando
falava da maioridade intelectual do homem.
Acredito que se possa fazer a junção de socialismo com democracia.

P: Que grandes desafios o terceiro milênio reserva para o homem?


O desafio do pensamento, principalmente. Como sintetizar o que já se
conhece, o que já se sabe? Como restabelecer um pensamento reflexivo diante
da automação e da automatização dos meios? Enfim, permanece a velha questão
dos iluministas: como melhorar o homem?
Eu diria que as grandes conquistas de nossa cultura - letrada e científica -
seriam a copernicana (o homem sabe que não é mais o centro do universo) a
freudiana (a consciência não é tudo) a darwiniana (que reforça isso) e a filosófica
heideggeriana (você não tem a verdade). O grande trauma do homem é ter
perdido a relação que tinha com o Absoluto e não poder preencher isso.
Como dar satisfação a esse sentido de sagrado? (Certamente não será por
meio dessas pequenas religiões que proliferam e que têm um vínculo direto com
o problema social...)

P: O senhor acredita em Deus?


No Deus cristão, você quer dizer. Acho que existem outras possibilidades
de conceituar Deus, fora do cristianismo. Em relação ao Deus judaico-cristão,
sou agnóstico: o que acha que não tem razões nem para acreditar nem para
desacreditar...
Heidegger defendeu que, se houver uma nova atitude perante o ser, diante
do que existe, haverá também uma nova idéia de Deus: seria “o último deus”.

84 da palavra
P: E os principais desafios do Brasil?
Tudo que a revolução de 30 não conseguiu resolver. Tivemos um momento
bom, de relaxamento (alívio) mental no período do Juscelino. O ano que não
deveria acabar... Quando parecia que ia recomeçar, veio o golpe (essa experiência
foi muito traumatizante). Agora, na fase do neoliberalismo, ou seja lá o que se
chame, continuam os mesmos problemas fundamentais: de carência, de
analfabetismo, de miséria, de população desvalida, de criança desamparada.
Enfim, coisas que se um brasileiro for pensar duas vezes, e tiver dinheiro, se
manda do país.

BICHOS, ET’S E FUTEBOL


P: O que faz para se divertir?
Cinema, música clássica e leitura.

P: Relê muito?
Sim, e os livros mais variados possíveis.

P: O que lê por puro prazer?


Poesia.

P: Quais os poetas mais visitados atualmente?


Rimbaud, Antonio Machado...

P: O senhor gosta de futebol?


Não. Realmente nisso não me identifico com os demais brasileiros: não
tenho o menor interesse por futebol.

P: Nem na Copa do Mundo?


O último interesse que tive foi na Copa de 70, aquela seleção com Pelé.
Depois a coisa se mercantilizou muito. Esses times de hoje - como se dizia
antigamente - são muito frouxos.

P: Acredita em extraterrestres?
Não acredito.

P: Crê que o universo inteiro só é habitado pelo homem?


Não é matéria de crença - que pode haver, muito bem. Mas crer que haja,
não. É uma questão de possibilidade, e não de crença.

P: Quantos livros o senhor publicou?


Doze ou treze. “O Mundo de Clarice Lispector”, “Introdução à Filosofia
da Arte”, “Filosofia Contemporânea”, “Farias Brito”, “O dorso do tigre”, “João
Cabral de Melo Neto”, “Oswald Canibal”, “Leitura de Clarice Lispector”,
“Passagem para o poético”, “Tempo na Narrativa”, uma nova versão de
“Filosofia contemporânea”, uma reedição da “Filosofia da arte”, “No tempo do

da palavra 85
niilismo e outros ensaios”, “O drama da linguagem”, mais os que fiz com outros
autores ou organizei.

P: Qual vai ser o próximo?


Será uma coletânea de ensaios sobre filosofia e literatura. Sai nos primeiros
dias de maio e será lançado na Bienal do Livro de São Paulo.

P: Que conselho daria aos novos escritores?


Se já são escritores não precisam de conselhos. Se ainda não são, leiam,
leiam, leiam, escrevam, escrevam, escrevam.

P: Quantas línguas o senhor fala?


Bem o francês, menos bem o inglês, entendo e leio bem o alemão e o
espanhol dá pro gasto.

P: O senhor gosta de bichos...


Sim, muito.

P: É verdade que internou numa clínica uma cadela que encontrou atropelada?
Sim, a Amaralina. Estava jogada contra o muro do Bosque Rodrigues
Alves. Passou uma semana na clínica. Estava grávida, teve seis filhotes e hoje é
fazendeira perto de Santo Antônio do Tauá. Aqui em casa temos uma gata, a
Gigi, e uma cachorra, a Martinha.
– A Martinha ficou convencida desde que apareceu no Jornal do Brasil e
cobra cachê para dar entrevista - diz Maria Sylvia, mulher do professor Benedito.
– É isso aí - concorda Bené.

86 da palavra
A filosofia nossa de cada dia

Nesta edição especial, o Mão Livre traz uma entrevista com o professor e
filósofo paraense Benedito Nunes, pensador brasileiro, com diversos ensaios
publicados sobre filosofia, arte e literatura. Este ano, Bené, como é chamado
pelos amigos, foi um dos ganhadores do Prêmio Estadão Cultural, promovido
anualmente pelo jornal O Estado de São Paulo.
Com Benedito Nunes, o Mão Livre fez uma entrevista diferente: convidou
profissionais ligados à arte para que fizessem as perguntas.
Entre os temas presentes nas questões formuladas a Benedito Nunes
estão a produção artística e a crítica em Belém, a política cultural, o pensamento
filosófico na Amazônia, o tempo e a Internet.

Mão Livre: Como relacionamo-nos com o tempo mínimo-infinito, quando


a velocidade da vida nos remete a um futuro afobado e nos tora a preciosidade
do átimo, do momento, do presente. Nós temos o tempo ou estaremos sempre
subjugados a ele? (Maria da Conceição Loureiro, produtora cultural e professora)

BN: Podemos pensar o tempo tanto sob o aspecto do futuro quanto do


passado e do presente. Mas o tempo mesmo não é qualquer desses aspectos
isoladamente. Se o fosse, teríamos três tempos em vez de um só, mesmo porque
há um presente do passado (quando pela memória você se lembra de
determinado instante de sua própria vida que já foi), um presente do futuro
(quando você, pela imaginação, está na expectativa do que vai acontecer), um
passado do presente (oito horas em relação a nove horas da manhã de hoje),
um futuro passado (quando você, relatando acontecimentos já sucedidos,
*
Entrevista publicada no ordena-os uns depois dos outros). Vide, a esse respeito, a magnífica descrição
Boletim Cultural da revista
Mão Livre, 1998. de Santo Agostinho no livro XI de sua “Confissões”.

da palavra 87
Um futuro não é menos futuro por ser afobado. É certo que vivemos
sempre para diante, e raros são aqueles que fruem o presente como tal, em
estado puro, pois que o presente também está se dividindo entre passado e
futuro. Felizmente! Sem essa divisão, o tempo seria um rio em que estaríamos
mergulhados ou uma corda tensa puxando-nos para a frente. Graças a essa divisão
é que há experiência vivida do tempo e de nós mesmos, e que consiste numa
contínua relação do presente com o passado na expectativa do futuro. Foi o que
Bérgson chamou a duração real. Só quem alcança a duração real pode voltar-se
para o átimo e encontrá-lo numa experiência excepcional, como os artistas quando
criam, escritores quando escrevem, místicos quando rezam.

Mão Livre: Qual a função do regionalismo na literatura e na filosofia?


(Márcia Mendes, jornalista e produtora cultural)

BN: Regionalismo é um termo histórico-literário datado, prevalecente


em fins do século XIX, profuso na América Latina, mas raro na Europa. Significa,
principalmente na narrativa, de modo particular na ficção romanesca, demarcar,
pelos limites de uma região geográfica, com suas características distintivas, a
temática, os personagens, as situações e a linguagem de uma obra literária. Em
geral, esses aspectos se articulam no regionalismo, cuja marca histórica,
entretanto, ficou sendo, entre nós, o realismo (descrição de costumes) e o
naturalismo (primado dos instintos primários, da hereditariedade, dos traços
raciais etc.), como no romance “A Bagaceira”, de José Américo de Almeida ou,
em dose mínima, em “Menino de engenho”, de José Lins do Rego. Por aí se vê
que o regionalismo nasce com uma filosofia: obedece a uma ideia de natureza.
Diz-se dessa ideias que é o pressuposto filosófico do regionalismo, proveniente
do século XIX e que integrou tanto o romantismo quanto o realismo.
Mas regionalismo não é uma rubrica filosófica. A Filosofia nunca é regional
no sentido acima. Não se conhece obra filosófica propriamente dita que seja
regionalista.
Acho que convém distinguir entre regionalismo e regional. A literatura
pode ter regionalidade sem que, forçosamente, seja regionalista. A filosofia está
acima das regiões; ela reside na amplitude das questões que levanta: amplitude
universal. Certa literatura, como a de Guimarães Rosa, que aproveita matéria
regional abundante, constitui uma espécie de supra-regionalismo. Quando alguém
escrevesse sobre a visão amazônica do mundo estaria aplicando um conceito
filosófico (visão do mundo = Weltanschauung) para tirar o sumo das lendas, crenças
e comportamentos do homem amazônico, no intuito de configurar um conjunto
de pensamentos, idéias e atitudes.

Mão Livre: O senhor ainda vê legitimidade na “pintura” como meio de


expressão artística contemporânea? Qual seria seu papel no próximo século?

BN: Por que não? A pergunta é o resultado de uma ideia linear sobre a
evolução das artes, de acordo com o ponto de vista do vanguardismo estético.
O que nela está implícito é uma linha evolutiva só, que passa pelo “quadro” e

88 da palavra
que o conduz ao acabamento da pintura. Mas há outras espécies de superfícies
e o quadro mesmo tem mostrado enorme vitalidade, sem ainda ter-se tornado
obsoleto. O que, talvez, tenha caído na obsolescência é um certo gênero de
representação pictórica.
Mão Livre: O segmento cultural tem se ressentido da ausência dos
representantes do pensamento intelectual paraense testemunhando o
desenvolvimento e os resultados de seu processo criativo. Esse distanciamento
não vem dificultar o reconhecimento da nossa produção artística contemporânea
e a tão necessária formulação de um pensamento crítico em relação a ela, por
parte dessa intelectualidade formadora de opinião? (Berna Reale, Tâmara Sare
e Tadeu Lobato / Galeria Theodoro Braga)

BN: Sem dúvida. O artista estaria sozinho, numa relação entre ele e o
que faz, sem mediador. Isso é carência. Por quê? Porque sempre, em todos os
tempos, a obra chega ao público através de um pensamento outro, que não é o
pensamento do artista. Um outro de compreensão, seja aprovadora seja de
oposição, que ajuda a formar ideia sobre o produzido. Em outros meios, a
presença da crítica se manifesta, ainda que esporadicamente. Entre nós, nem
isso. Ora, não se trata apenas da falta de ressonância do que se faz. O que se faz
não encontra um pensamento exterior que venha ao seu encontro para confirmá-
lo ou denegá-lo. Esse pensamento exterior integra a vida da arte, compõe o seu
perfil histórico. As obras se produzem, são expostas e em torno delas não há
palavras. Elas ficam sem vida, destituídas de história. Ao artista falta o seu
outro; em torno dele não se forma a comunidade de diálogo que o transporta ao
futuro.

Mão Livre: O senhor, há alguns anos, declarou em um jornal de grande


circulação que a geração atual estaria mais propícia, por causa de sua cultura
visual preponderante sobre o conhecimento da escrita e/ou contato com a leitura,
a produzir mais cineastas e videastas que escritores. Como o senhor pensa essa
questão hoje? A retomada do cinema nacional pode ser uma resposta a esta sua
análise? Neste prisma, qual seria a influência da Internet na produção da cultura,
no Brasil e no mundo? (Jorane Castro, cineasta)

BN: Pensava, naquela entrevista, especialmente nos fotógrafos. Entre


nós, há mais fotógrafos do que pintores de qualidade. É verdade que nossa
literatura de hoje – poesia e prosa – não é tão boa quanto a das décadas de 50 e
70. A cultura visual tem subido muito; nosso cinema comprova isso. Mas a
Internet ainda é um melting pot.O paraíso da comunicação ou da parolagem, do
blábláblá? Em parte. Por outro lado, o intercruzamento das mais díspares
informações; um vasto mercado não ruidoso de tudo, o etéreo mural, o mural
móvel da publicidade pessoal, interpessoal. Há sites para tudo. Solitários e ansiosos
de todo mundo, uni-vos, imaterialmente, descorporificados! Não sei o que possa
sair disso.

da palavra 89
Mão Livre: Se se concebe com Habermas que “a identidade de uma
sociedade é determinada em termos normativos e depende de seus valores
culturais, os quais podem mudar em consequência de um processo educativo”,
podemos também admitir que os órgãos públicos têm uma função catalisadora
nesse esforço simultâneo de sedimentação e transformação das implicações
normativas próprias da consciência intersubjetiva de uma dada sociedade. Como
considera, face à justeza deste postulado teórico-filosófico e Habermas, as
realizações daquilo que deveria corresponder à chamada “políticas cultural”
desenvolvida pelos nossos órgãos públicos competentes? (Andréa Feijó. Artista
plástica)

BN: Desconfio de toda política cultural. Por trás dela está o Estado,
definindo a cultura e determinando a sua política por essa definição. Pode também
se dar o contrário: a política sobredetermina a cultura e, já assim
sobredeterminada, o Estado a define. Isso tanto acontece no Estado forte quanto
no Estado liberal. Mesmo neste, de mansinho, o Estado toma conta da cultura
– o que quer dizer que a domestica para seus fins.

Mão Livre: Na 24ª Bienal de São Paulo, Cildo Meireles reapresenta “Desvio
para o vermelho”, um monocromo tridimensional em que o espectador penetra
na pintura. Adriana Varejão, por sua vez, toma como referência o quadro de
Pedro Américo, “Tiradentes esquartejado”, e através de um processo sofisticado
que envolve o tridimensional e o bidimensional, constrói a sua instalação. Como
o senhor observa esse diálogo entre uma arte tradicional como pintura e a
instalação em que o elemento motriz é a ideia? (Marisa Mokarzel, arte-educadora
e mestre em Crítica da Arte)

BN: Acho que a instalação assinala a tecnificação da arte em seu grau


máximo. A ação da técnica moderna avançada se distingue por amar seus efeitos
em grande ou pequena escala; diz-se que a técnica é o efeito de instalar
produzindo ou de produzir instalando. A “instalação” em arte tem semelhança
com a instalação técnica. Independentemente disso, o conjunto técnico-
instalatório pode aproveitar as outras artes – aproveitar “servindo-se” delas,
desintegrando-as para reintegrá-las em seus conjuntos. Mas, nesse caso, talvez
o reintegrado não subsista em sua essência; a pintura deixa de ser pintura. Ao
reintegrar-se, ela se torna como que uma “citação” do que houve e que terá sido
esquartejado como Tiradentes o foi.

Mão Livre: Sua obra é respeitada em nível nacional e internacional e, no


entanto, o senhor sempre manteve em Belém a sua base de trabalho e a sua
residência. Há praticidade nessa opção? Seria Belém uma segura reclusão dos
aborrecimentos da academia? Por outro lado, essa opção teria alguma motivação
intelectual ou sentimental? Qual seria? É possível fazer filosofia sob o calor de
Belém do Pará? (Fábio Castro, professor universitário)

90 da palavra
BN: Começo pela segunda pergunta. Peço-lhe para substituir “Belém”
por “minha casa em Belém”. Essa casa talvez possa ser considerada um lugar
de voluntária reclusão dentro mesmo de Belém. Não gosto da cidade tal como
ela é hoje: movimentada, barulhenta, com permanentes pontos de “insolação
sonora” e arquitetonicamente feia, modernosa, mas no fundo e no extenso, um
pobre e enorme subúrbio virado para o centro. Não mais a cidade das mangueiras,
as prediletas vítimas da fúria arborescida do paraense e da Prefeitura.
Para trabalhar, nada melhor do que a residência acima identificada. Onde
poderia encontrar no Rio, em São Paulo ou em Paris um lugar tão grande e
cômodo que pudesse abrigar tantos livros? Houve, portanto, praticidade na opção.
Mas se morasse numa dessas três cidades, talvez não tivesse tido necessidade
de acumular tantos livros. A escolha atendeu a circunstâncias múltiplas. Houve,
em 60, uma tentativa para emigrar. Não deu certo. Pouco me importei com o
insucesso. Depois disso, a casa criou raízes, como se expressaria o Armando
Mendes, e essas raízes me entrelaçaram. Gosto, sim, de sair de vez em quando,
de afastar-me do meio, para sempre voltar, não tanto a Belém como ao meu
abrigo ou, se quiser, nicho ecológico. Compreendi, desde cedo, que se pode
pensar e escrever em qualquer lugar, aqui ou ali, desde que se tenha – diria
antigamente – papel, lápis e caneta ou, como digo hoje, um bom e traiçoeiro
computador. Um dia esteve entre nós Anatol Rosenfeld, que me visitou, entrou
no gabinete onde trabalho e tomou um susto. “Como o senhor pode trabalhar
com esse calor?” Se o calor hoje atuasse, da maneira direta, a Filosofia iria
transpirar, como transpirava eu, de encharcar camisa e paletó quando, na década
de 50, dava aulas a uma da tarde. Mas havendo ar refrigerado... .

da palavra 91
92
da palavra
Foto: acervo Maria Sylvia Nunes
A outra vereda*

Rosa Assis**

A memória é sempre atual, pois a qualquer momento


podemos evocá-la. É vivida no eterno presente; aberta à
dialética da lembrança e do esquecimento; alimenta-se de
lembranças vagas, telescópicas, globais e flutuantes; e cria
sentimento de pertencimento e identidade, etc (Cláudio
Magalhães, Caderno Virtual de Turismo, v. 3, 2005)

Menina ainda, conheci Benedito Nunes na casa de meus pais, Celina e


Machado Coelho. O tempo passou e acabamos também nos tornando amigos;
por vezes ia até a Estrela – rua onde ele mora – , outras, vinha ele na Vinte e
Cinco de Setembro – rua onde morei – , mas em nenhum momento precisávamos
viver um na casa do outro para que nossa carinhosa amizade se tornasse cada
vez mais próxima e sólida.
Sempre admirei o profundo conhecimento filosófico, crítico e literário de
Benedito, suas inúmeras leituras tanto em português como em línguas
estrangeiras. Benedito é, a meu ver, uma biblioteca viva.
Ao lado: Agora, conversando com Benedito, lembro-me, como se hoje fosse, quando
Em 1949, na frente da
casa da Gentil: Rita e
ele foi meu professor num curso de Especialização na Universidade Federal do
Alonso Rocha; Benedito Pará; suas aulas e seus comentários acerca dos assuntos tratados encantavam a
Nunes e sua tia Joana; todos. Nos falava de Jakobson; as funções da linguagem, e recordando estes
os primos. À janela: tia momentos não posso esquecer de citar JAPIASSÚ para quem “a memória pode ser
de Benedito. entendida como a capacidade de relacionar um evento atual com um evento passado
do mesmo tipo, portanto como uma capacidade de evocar o passado através do
*
Entrevista concedida à pro- presente (Dicionário básico de filosofia,1996, 178).
fessora e amiga Rosa Assis,
em 2009. Mas, voltando ao Benedito, reitero o que já dissera antes: ele tem o dom
**
Doutora em Língua Portu- de se expressar com precisão e profundidade; as palavras ditas ou escritas por
guesa. Professora da UNAMA-
Universidade da Amazônia. este conhecedor do mundo e das coisas, sempre têm uma propriedade singular,

da palavra 93
e isso sempre me encantou, independentemente do assunto tratado, por exemplo:
do filosófico ao familiar. É um admirável prosador; gosta de conversar e dar
boas risadas.
Recentemente conversamos, primeiro por telefone, e depois pessoalmente,
quando entre risos e recordações lembramos de coisas várias, caminhando ora
por vias do erudito, ora do familiar, sem perder aquele sabor de infância gustável.
Na ocasião, eu disse ao Benezinho que gostaria muito de documentar aquilo
que ouvira ele me falar a respeito de si mesmo, com muita descontração, pois
quando saí de lá pensei nos ensinamentos de Pollak:.

Existem lugares da memória, lugares particularmente ligados a uma lembrança,


que pode ser uma lembrança pessoal, mas também pode não ter apoio no
tempo cronológico. Pode ser, por exemplo, um lugar de férias na infância, que
permaneceu muito forte na memória da pessoa, muito marcante,
independentemente da data real em que a vivência se deu. (Estudos históricos,
nº 3, Memória POLLAK e outros, 1992, 202).

e no que um dia lera em Drummond: “que riqueza, viver no tempo e fora dele”
(Boitempo & A falta que ama, 1968, p. 48).

Tudo isso junto foi o estímulo para transcrever o que a memória afetiva
de Benedito armazenou e depois ele mesmo escreveu para esta nossa publicação,
numa espécie de entrevista lúdica. Ora, puxar pela memória é fazer uma pesquisa
cronológica real, ir ao âmago de alguém para saber como foi o ontem, o que ele
fazia, como se sentia, e mais e mais; no caso do entrevistado, quanto lemos o
dito, logo percebemos que ele vive também a euforia do passado, tanto que
facilmente de suas palavras escritas visualizamos imagens, ouvimos sons. São,
portanto quadros vivos, porque vividos, que nos aparecem como se estivessem
em uma exposição; é uma espécie de olhar por meio de palavras. Pode também
o leitor formar a sua leitura visual e auditiva como se estivesse em frente de
uma tela de cinema, vendo o ‘trem’ passar, por exemplo. A visão de Japiassu
bem se enquadra no que afirmamos:

A memória pode ser entendida como a capacidade de relacionar um evento


atual com um evento passado do mesmo tipo, portanto como uma capacidade
de evocar o passado através do presente. (JAPIASSÚ, 1996, 178).

Por tudo isso e muito mais é que disse recentemente a jornalista Adriana
Klautau, ao me entrevistar sobre o amigo Benedito, que para mim ele é: sapiência-
sabedoria. E lembrei também que a memória dele é muito presente, basta ele
fazer uma pequena pausa, fechar os olhos que imediatamente afloram as
lembranças-aulas de assuntos mais variados.
A memória, como se sabe, é algo tão forte, que muitos escritores se valeram
dela para não apenas registrar, mas reviver, acordar, recordar, enfim, recomeçar o
que deixaram apenas armazenado, jamais escondido num baú, ou mesmo guardado
a sete chaves, facilmente localizadas numa torre, na casa de parentes, de amigos,
nos bancos escolares, em férias curtas ou longas. A memória é capaz de fluir

94 da palavra
rapidamente, basta um estímulo, tanto que um ah!, expresso por qualquer pessoa,
nos traz à tona um ontem, que passa a ser, proustianamente, um hoje.
Ecléa Bosi, em Memória e Sociedade (1995, p.68) lembra Stern cujo
excerto citado se ajusta a este caminho que estamos percorrendo:

A função da lembrança é conservar o passado do indivíduo na forma que é


mais apropriada a ele. O material indiferente é descartado, o desagradável,
alterado, o pouco claro ou confuso simplifica-se por uma delimitação nítida, o
trivial é elevado à hierarquia do insólito; e no fim formou-se um quadro total,
novo, sem o menor desejo consciente de falsificá-lo.” (William Stern)

Em 1974, nas livrarias do Rio de Janeiro, (foi lá inicialmente que


encontrei) aparece o Baú de Ossos, de Pedro Nava, título dos mais sugestivos,
pois a lexia baú, metaforicamente, significa guardiã de um passado, conceito
enfatizado por Drummond, conforme excerto a seguir:

Pedro Nava surpreende, assusta, diverte, comove, embala, inebria, fascina o


leitor, com memórias da infância, a que deu o título de Baú de Ossos. Seus
guardados nada têm de fúnebre. Do baú salta a multidão antiga dos vivos pois
este médico tem o dom estético de, pela escrita, ressuscitar os mortos.
(Drummond, Baú de surpresas, 1999)

Assim, num jogo de memória verbo-visual-sonoro, cujo estímulo simples


é: eu começo e tu terminas..., traçamos esta conversa que não tem cunho filosófico
e nem de crítica literária, é tão somente ‘a outra vereda’, a da memória, pois esta
sabe, senão vejamos.
Memória: do latim memÒrîa, memória, relembrar; período alcançado pela
lembrança; época, recordação narrada, relação1.
Benezinho,
1. A casa das tias....
era risonha e franca... Com três quartos intercomunicantes, de portas
abertas, um comprido corredor, faltava intimidade que eu mesmo haveria
de criar.

2. O Bibi...
foi designação específica dos parentes Leal, moradores da Cidade Velha, onde
eu e mamãe passávamos o fim de semana. Lá, Dona Miloca preparava
homeopatia para as doenças leves.

3. A primeira leitura...
foi a Caçada de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Esse livro me foi presenteado
por um mendigo, a quem as tias davam semanalmente esmolas. Só pude lê-lo
depois de longamente desinfetado pela comissão doméstica de higiene.
1
Dicionário etimológico da
língua portuguesa, José Pe- Em matéria de leitura estava confinado entre Homero e Shakespeare, ambos
dro Machado, Editorial Con-
fluência, Portugal e Livros,
traduzidos pelo meu tio Carlos Alberto Nunes, durante anos meu principal
Horizontes, Lisboa, 1957) fornecedor de livros.

da palavra 95
4. O rapaz no Colégio Moderno... Ao lado:
foi presidente do grêmio cívico, devia ser antipático e exibido. Aproveitou em Benedito, com sua mãe,
Maria de Belém Nunes
grau máximo, a parte em francês da Biblioteca do Colégio Moderno. Era
amigo do Serrão, o Augusto Serra, diretor do Colégio Moderno, com quem
conversava longas horas. Seja dito, a bem da verdade, que teve uma vaga gratuita
pra estudar nesse mesmo colégio.

5. O estudante universitário...
com Mário Faustino e Orlando Costa, dirigi revistas literárias. Fase das grandes
descobertas intelectuais, como a Filosofia da Existência e a participação política,
assinando manifestos e frequentando o “Café Central” sob a liderança de
Francisco Paulo Mendes.

6. As férias tão somente: as do menino...


lembro-me só de um período passado em Salvaterra. Com medo do tifo, que
por lá grassava, e de bois, que vedavam a passagem dos barrancos.

7. A casa da Estrela...
quando nos instalamos na Estrela, o Marco ainda era um distante subúrbio,
com o trem de Bragança apitando por volta das nove horas da noite. Hoje,
apesar de grande, a casa tem livros em todos os cômodos.

8. O teu escritório...
por causa de seu formato, o escritório, num dos extremos da casa, é chamado
de torre...

9. O primeiro estudo publicado...


foi sobre Clarice Lispector. Saiu em Manaus por obra e graça de Arthur César
Ferreira Reis, numa edição do Governo do Estado do Amazonas, do qual ele,
meu professor no Colégio Moderno de Belém, tinha sido organizador...

10. Os amigos...
os grandes amigos vieram cedo. O primeiro foi Haroldo Maranhão, com quem
iniciei uma “fase acadêmica”. Tivemos uma academia dos novos. Na época
conheci Max Martins, de frequência semanal em minha casa.

11. Tempos do Marahu...


foram tempos paradisíacos, que pouco duraram. Lá tivemos ilustres visitantes
como Loparic e Foucault.

12. E, agora, Bené?... 80 anos!


E agora, aos 80 anos, é preciso, recomeçar a tentativa de viver.

Parabéns, Benezinho

96 da palavra
Foto: acervo Maria Sylvia Nunes

da palavra 97
IV. Crônicas sobre
Benedito Nunes
Foto: Elza Lima

98 da palavra
da palavra 99
Foto: Elza Lima

100 da palavra
Multimodo, profuso, inquieto

Amarílis Tupiassú*

O admirável em sua contínua, ininterrupta, excessiva capacidade de pensar,


de seu pendor a verter-se reflexivamente sobre a condição humana, sobre existir
tomado em conjugação verbal infinita, aberta ao universal, seja qual for a
manifestação de ser, o admirável de sua inquietação por inquirir, espreitar, melhor
se diga, desafiar as orlas do abismo de nós mesmos – irrevogáveis e pendidos
ao mistério - é que a travessia à plena ou frágil revelação possível, o risco de
tanto especular e depois aflorar com respostas apenas plausíveis, não resultou,
na origem, de escolha pré-concebida, projeto prévio ou deliberada opção, fruto
da liberdade, ainda que frágil, de ir por aqui ou por ali porque assim foi decidido.
Diríamos, evocando o universo grego, tão interrogado e afeito ao pensamento
de Benedito Nunes, que tudo se deu por eleição dos deuses, das musas, pelos
bons votos de uma benfazeja moira, dirigindo o pensador às lides reflexivas, à
constância desse encargo, as deidades atuantes, seja em seus míticos circuitos
intemporais de outrora, seja aqui, no plano da vasta e plena ideação de nosso
filósofo.
Seu afã filosófico ascende, acende-se pouco a pouco, propagando clarões
por todas as direções do conhecimento, como se em decorrência, caso não dos
deuses, de predisposição arraigada em alguma genética sem registro factual,
lastro sanguíneo, disposição de nascença, o talhe de sua vida desenhado desse
jeito, porque sim, assim há de ser, assim se faça e ponto. Desse modo se dispõem
* Doutora em Letras. Pesqui- seus primeiros assomos, tão precoces, rumo à floração progressiva de sua
sadora e professora da Uni-
versidade da Amazônia – consciência filosófica, à montagem de sua máquina mental dada a remoer e
UNAMA. Autora, entre outros,
de A palavra divina na surdez do
burilar pensares e saberes, pessoais e ou de outros, todos inteligências do mesmo
rio Babel. EDUFPA,2008 tope e, que nem ele, a viver de pensar e a pensar como apelo vital de viver.

da palavra 101
Poder-se-á, portanto, neste esboço de apresentação, retrato a traços largos,
inferir, demarcar os entornos biográficos do homem marcado por signos de
maravilha, seus primeiros frutos nascidos de acordo firmado nessas aras do
invisível, do insondável, de onde irrompeu a ordem muda de votar-se ao ofício
deleitoso de estudar, algo como se fado ou sina, ou herança sem registro
oficializado em página cartorial, os bens, as herdades humorosas e floridas que
Benedito Nunes multiplica por esforço seu sempre a mais, lida de exclusiva
responsabilidade sua, seu basto de estudo, cuja germinação e colheita ele assegura
com rega persistente, cultivo diuturno, as floradas de ciência cuidadas com
zelo, muito polimento, luz, calor medido, as flores aconchegadas em ambientação
propícia à multiplicação e potencialização da dotação com que o pensador foi
agraciado por natureza, o dom de instigar-se à reflexão e à montagem dos livros
que nos oferta.
É o que se percebe quando se frui, usufrui da obra, isto é, do conjunto de
livros, dos ensaios filosóficos, da crítica de arte, da prosa curta e de sua prosa
alentada, dos papeis avulsos, anotações para encontros, fóruns, seminários,
simpósios, mesas, congressos, discussões científicas, filosóficas, artísticas, os
eventos a que dedica grande parte de seu tempo. Flanando pelas galerias à flor
da pele e subterrâneas dessa mina, encontram-se sentidos latentes,
silenciosamente falantes, a partir dos quais se deduz, infere-se e afere-se lucidez
tamanha, quando o autor, em carne e osso, parece passar furtivo, difundido
pelos interstícios, pelas entrelinhas de seus livros. É quando se extrai, da massa
de saber expresso, o eco de sua voz multímoda, sua concepção e circuito de
vida incomum, a inteligência incomum, incomum força de vontade, inquietação
vibrante, a confiança no saber, motor de mudança, a constância, a vasta
curiosidade, o prazer de especular, estes os timbres de sua fala proferida e grafada.
Suas atividades, quais sejam, por vias diretas ou transversais vão sempre firmar
sobre o sujeito de estudo o olhar percuciente, paciente, dardejante, olho teimoso
de fera mundiando a presa, assim o dirá o linguajar amazônico, para mencionar o
fitar, o labutar insistente, teimoso, arrimo da reflexão investida de rigor e cuidado,
o olhar varando a pauta a observar, esse rigor e teimosia a base sólida de sua
escrita, de seu modo de filosofar, o olho ávido a internar-se pela maranha
desafiadora de ser, existir, olho posto a recuperar as razões, os desvios, as
passagens centrais e vicinais da existência, seus princípios, meios, fins, esses os
embates, os motins de Benedito Nunes.
O sumoso fruto dessa inteligência, da sabedoria - sem concessões ao
fátuo, ao fácil – é o que se colhe quando se apruma e se finca a mente no solo
esclarecido de sua obra que teima em puxar os fios da (a)ventura ( ou desventura)
de ser e tecer a folha-mirante decidida a vislumbrar e enfocar o ido, o sendo e o
vir a ser. Essa é a obstinação, a tenacidade, desde seus primeiros escritos, Benedito
Nunes só um estudante e já dado à investigação, tarefa que, desde aí, eleva, o
pensador a tatear, perscrutar, averiguar do verso ao reverso do acontecimento,
da contingência de ser, transladando-se o investigador da pele aos ossos, do
aparente, sensível, ao que circunscreve a essência, essa sua assídua, talvez

102 da palavra
obsessiva ocupação, acolhida e desempenhada, não como obrigação fatigante e
sim como acridoce ofício, ação que compraz, absorve, domina, com alegria,
comprazimento, o sorriso esparso pela escrita maturada em paciente ir e vir até
atingir no alvo o horizonte a depurar, sem açodamentos nem pressas, em novos
cursos de ir e vir, voltear, cercar o território demarcado, observá-lo de perto e
de longe, tirar a distância, escavá-lo raiz adentro, rama, folhagem acima, devassá-
lo em escala mais alta, profunda, ampla e diversa possível. Sobre esse ponto,
consulte as notas biográficas e bibliográficas apensas a este número de Asas da
Palavra. São atestados, comprovantes de competência.
É gostoso deparar e seguir no encalço, no rastro dessa alegria. O leitor
para, sorri, também exulta, sente-se recompensado, quando Benedito Nunes
alça a público o pendão de seu entendimento. E, se qual ao acaso natural da
vida afirmou-se a origem de investimento no saber, seu texto patenteia o quanto
o assinalado se instrumentaliza às viragens de conhecer. Bendito vai a elas, não
só como o bricoleur que passa a mão, manuseia à sorte a aparelhagem, os utensílios
ao alcance imediato. É evidente que, se alguma vez, lança mão das livres
descobertas ocasionais, excede, ultrapassa qualquer sorte de bricolage, quando
toma distância, mede, elege seus portos, seu campo de ação, à precisão de afiar,
limar, lustrar seus instrumentos, a bússola, o quadrante, as faces da rosa-dos-
ventos. Então avalia outros demais olhares, debruça-se, com refinada acuidade,
sobre os aparatos alheios, as notas de outras navegações, daqui, dali, de ontem,
de agora, os dados que decifra, esmiúça e, se for certo o gozo, os saboreia com
evidente prazer. Assim se aferra ao armazenamento de provisões às longas
paragens da exploração, assentes as lupas intelectivas sobre todas as linhas
cartografadas, mesmo sobre as difusas. Ele preza a tudo, a tudo considera e
assim apetrechado embrenha-se no manacial de saberes, de outros escritos, outros
solos apinhados de preciosidade, que palmilha e de onde dá saltos à lavra de
assinatura própria mescla de singularidade, sedução, beleza.
É desse jeito, a passes de agudeza e alegria, de pressas, sim, mas a
compassos serenos, entre vagares e deleites, vagares e ócios, muita flanérie, muitos
tesouros achados, que Benedito-leitor/ Benedito-escrivão levanta âncoras para
mais uma investida. Desse jeito aporta às margens de acolher e encantar o leitor
beneditamente voltado aos veios de suas páginas. Desse jeito é que marcha o
scholar, o atento hermeneuta e escoliasta, o multímodo sábio à eleição e
acolhimento de pomos pelos hortos onde faz paradas para nutrir, cevar sua
basta sabedoria, rigorosamente talhada a moldes humanistas, o filósofo preso
às acepções classicamente contemporâneas de saber.
Cabe acentuar que seu modelo de pensar já rareia nestes tempos de
exagerada especialização, no mais das vezes redutora, sobretudo quando ocorre
submetida à requintadíssima e fabulosa tecnologia atual, bem-vinda, apesar de
acabrunhante dada a sua quase misteriosa maneira de fazer-se real, terra-a-terra,
para além do credível, potente, a imperar em todos os campos e correr célere a
inusitado grau de onisciência, onipresença, uma tecnologia em excesso, nada
saudável no formar e automatizar mentes sujeitas a percepções horizontais de

da palavra 103
Foto: Elza Lima

entendimento, mais nocivo ainda se tangido pela pressa que tende a desabar em
vã superficialidade. Benedito Nunes, o homem espelhado na obra, joga na
quietação, embebe-se de acalmia para alcançar o fundo do lago da sabedoria,
em sortidas rigidamente presas à verticalidade, aos amplos, difusos, profundos
leitos da cogitação. É tão compensador seguir com ele, imerso em calmaria,
imbuído de suas circunavegações serenas. Circunavegar sem sofreguidão, inspirar
outros climas, novos ares, porto a porto, aportar as altas galas do saber, esta é
sua marca, sua divisa.
É o que se pode depreender da obra, ela por si a desenhar o perfil do
scholar que, enquanto esquadrinha horizontes, recorta e imprime, sob a pauta
central, finíssima malha autobiográfica , nem sempre flagrante, mas inscrita na
tessitura da escrita. Quer-se dizer da pletora de inteligência que as entrelinhas
balbuciam. Um texto tão cuidado e de tal monta há de retratar o alto quilate do

104 da palavra
mentor. Benedito institui-se definitivamente como homem de pensar, cujo acervo
autoral conduz a lavrados e lavradores de prol, daqui e dali, d’outrora, como,
aliás, sói ocorrer na história dos pensadores excessivos e excepcionais.
Em outras palavras: a produção de Benedito Nunes desenha-se entre halos
de inquietação presa a extensa expectativa de saber, algo que revela uma
paisagem bahktianamente ou polifonicamente enformada, orquestral, ecoante,
dialogante. É como se borda essa obra, coando e escoando a sabedoria dos
tempos, veio de vária escrita, conjugados de vozes, redes correlacionadas. Assim
se inscreve essa obra, sem pressa, sem açodamentos, sem afogadilhos, sem
descurar do que é eixo e do que se impõe como conexões.
Essas são as cartadas de mestre, deixar-se vogar livre e seduzido, protegido
de qualquer facilitário, entregue de corpo e alma à tarefa de vigiar, assediar e
dominar a floresta compacta a averiguar, o acervo universal da humanidade,
sem esse assédio, mero legado mortiço, grafia sem fundo, o vazio, se sobre a
folha não mergulhasse ardente e prazenteira a rara acuidade. Desfiar e montar a
escrita tersa, elegante, sedutora, esse é, em síntese, um senhal de Benedito, o
nome ajustado à ação bendita. Imerso na tarefa pacienciosa, de fato calma,
ciosa e lenta de juntar os frutos e sorver de manso o sumo concentrado à
especulação e produção de idéias, assim segue o esquadrinhador, afinando
espéculos, refinando-se, interrogando, concluindo, incursionando os aléns de
todos nós, e chegando com respostas provisórias, não importa, que assim há de
ser, respostas, contudo, que iluminam o precário. Benedito faz questão de afirmar-
se em contínua revisão. Enfia, desata, torna remontar o novelo de sua autoria.
Desconfiado, ausculta as vozes de sua própria escritura, sabedor de que o saber
jamais é matéria finda, pronta, selada. Diz de um de seus livros: “O menos
satisfatório [dentre meus livros] é ainda [por enquanto] um dos primeiros,
Introdução à filosofia da arte, que deverá ser revisto e ampliado nos próximos anos”
(In: Um roteiro dos livros de um sábio paraense. Belém: Jornal “A Província do Pará”
- Entrevista a Lúcio Flávio Pinto, 26/05/91).
Há tanto o hermeneuta parece ter-se rendido ao cumprimento de uma
jura – a mesma do também raro Haroldo Maranhão – Nula dies sine linea -
ditada à necessidade vital, diária, de escrever, o que inclui contínuo pensar e
mentar. É a notícia que escapa implícita de entre as linhas visíveis dos livros e
segue ao leitor detido sobre essa profusa cogitação sobre ser e fazer-se o ser,
humano ou não. Dobrar-se sobre as fugidias esferas da existência (in)finita,
inquirir é o nem sempre leve fado a que intransigente se vota, por inteiro Benedito
José Vianna da Costa Nunes. Assim seguro e apercebido, abastecido, aparelhado
ele segue à acolhida e reconhecimento, à alegria, ao júbilo do leitor, certamente
mais lúcido, certamente recompensado, farto de saber, indubitavelmente
fascinado.

da palavra 105
Foto: acervo Lilia Chaves

106 da palavra
Benedito Nunes e o cinema

Pedro Veriano*

Em um fim de tarde dos anos 70, a sessão de cineclube no auditório do


Curso de Odontologia da UFPa estava vazia. O filme a ser projetado era um
desses que podia usar o hoje vulgarizado apelido de clássico. Benedito Nunes,
um dos poucos presentes, definiu a situação englobando a gênese da preferência
do público: “Cinema é sempre a sobremesa. Anunciam um programa que tem
tanta coisa e no fim se alerta que também tem um cineminha”.
Faço um flash-back e vejo Benedito ensinando História para a minha turma,
no Colégio Moderno, época em que a garotada comentava o “Sansão e Dalila”
de Cecil B. De Mille, o sucesso dos cinemas comerciais nesse ano. Abrindo um
parêntese na sua exposição sobre o Brasil de ontem, Benedito chamou o filme
de abacaxi e citou “um leão empalhado” a lutar com o Sansão Victor Mature.
Certamente era o modo mais simples de resumir o que a crítica comentava nos
jornais.
Seria um absurdo conhecer uma pessoa culta como o Benedito que não
admirasse a arte dos Lumiére. Em 1955 ele estava ao lado de Orlando Costa na
luta para manter o Cine Clube “Os Espectadores”, o primeiro de Belém. As
sessões eram realizadas no auditório da Sociedade Artística Internacional (SAI)
e as prévias dos filmes, feitas para os apresentadores, eram na garagem de minha
casa, perdão, no Cine Bandeirante. Um pouco antes dessa batalha pelo melhor
cinema, lembro da polêmica em torno do filme “O Boulevard do Crime”(Les
Enfants du Paradis) de Marcel Carné, exibido por apenas dois dias no cinema
Olímpia. Escreveu em “A Província do Pará” um crítico de ocasião que se dizia
Adelina Lisboa Coimbra (logo se descobriu quem era). Mencionava entre outras
*
Crítico de cinema. Presi- opiniões desagradáveis (pois o filme chegou até a ser considerado o melhor do
dente honorário da Associa- século XX pelos franceses, anos depois): “... Não queremos dizer que o filme
ção de Críticos de Cinema do
Pará. seja mau. É bom. Mas daí ao aplauso sem restrições vai um bom passo”.

da palavra 107
Respondeu Benedito em feitio de carta: “D. Adelina: Depois de ler a sua crônica
sobre “O Boulevard do Crime”(...) não dominei a tentação de escrever-lhe seja
quem a senhora for, homem ou mulher.De qualquer maneira eu me dirijo à
senhora, D. Adelina Lisboa Coimbra, que resolveu gastar seu precioso tempo
escrevendo uma crônica de cinema para não dizer nada. Tanto a sua crônica
como a sua pessoa estão para mim no gênero neutro.”
Em outro flashback vejo Benedito estudante, quando o conheci em 1947,
aluno de meu irmão (a matéria era Química), também no Colégio Moderno.
Nessa época o meio estudantil vibrava com o concurso “Embaixadores da
Juventude Brasileira”, uma promoção do “O Globo Juvenil”. Aqui em Belém
os cupons para se votar nos candidatos dos colégios eram publicados em “A
Folha do Norte”. Mas eu recebia “O Globo Juvenil” direto do Rio de
Janeiro,enviado por meu tio. Por isso eu votava de duas formas, ou seja, com
cupons do “Globo” e da “Folha”.. Benedito e Eva Andersen ganharam. Os
Serras (Augusto e Oswaldo), donos do Moderno, sorriam para as paredes.
Tivemos, de fato, bons embaixadores.
Voltando ao meu fio de meada, depois do Cine Clube Os Espectadores
surgiu o Centro de Estudos Cinematográficos da então jovem UFPA. Seus
idealizadores teriam que ser os professores da Faculdade de Filosofia: Orlando
Costa e Benedito Nunes (tinha também a mão de Francisco Paulo Mendes,
outra inteligência que abraçava o cinema com muito carinho). O Centro pouco
se manifestou, mas chegou a fazer um programa de filmes japoneses que não se
conhecia por aqui. Foi a vez de se ver, por exemplo, “Trono Manchado de
Sangue”, o Macbeth de Kurosawa, e pelo menos uma obra-prima de Mizoguchi:
“Os Amantes Crucificados”.
Antes mesmo de surgir o Cine Clube APCC (1997-1986), Benedito, sua
mulher Maria Sylvia, a cunhada Angelita Silva, e o amigo Chico Mendes,
frequentavam o Bandeirante quando por lá surgia uma dessas raridades
cinematográficas que eu caçava nas distribuidoras específicas. As sessões do
cineclube, na AABB, no auditório de Odontologia e no Grêmio Português,
seguiram sem solução de continuidade. As nossas conversas sobre cinema
internacional eram alimentadas pelo que Benedito e Maria Sylvia viam no exterior.
Foi por esse tempo que começaram as listas de melhores. Não só dos melhores
filmes exibidos em um ano, mas de todos os anos. A primeira, eu lembro, foi
editada pelo Acyr Castro, mas sem aferição qualitativa. Ele pedia “os filmes
que você levaria para uma ilha deserta”. Não sei quem respondeu, copiando o
que já tinham dito no âmbito da literatura, ou seja, que seriam filmes sobre
salvamento, ou como sair o mais depressa possível da tal ilha. Mas não demorou
a surgir a primeira relação dos melhores com as bênçãos cineclubinas.A última
dessas listas foi em 2000 quando se pediu, em ordem hierárquica, os filmes
mais importantes do século. É claro que cada um tinha o seu grupo. No de
Benedito cabia a obra do indiano Satyajit Ray, especialmente “Pather Panchali”
que eu só fui conhecer mais tarde, na TV de assinatura com o nome de “Canção
da Estrada”.

108 da palavra
Em uma apresentação no Grêmio Português do filme de Bernardo
Bertolucci “O Conformista”, Benedito fez uma alusão ao Mito da Caverna de
Platão na sequência final. Quem pensou nisso e não se manifestou antes uniu as
peças de uma análise imprescindível à compreensão de um dos bons filmes do
período. Aliás, Benedito e Maria Sylvia haviam visto na Europa os primeiros
filmes desse diretor, coisas que só chegariam à Belém neste século.
Volto ao recurso do flashback e vejo uma aula de Filosofia do curso cientifico
do Moderno. Lá estava Benedito Nunes e não faltava espaço para citar cinema,
afinal um modo de se comunicar com uma platéia pouco atenta (o curso visava
ciências ditas exatas e poucos alunos achavam necessário conhecer Sócrates ou
Platão). Nesse período já se delineava o filme introspectivo segundo Michelangelo
Antonioni (conhecido como “o cineasta da incomunicabilidade”) ou o mais que
sucedeu ao movimento neo-realista na Europa.
Outro ponto de encontro de quem dimensionava corretamente o cinema
era a sessão “Cinema de Arte” que passava das matinais de sábado do Olímpia
para as 6as. feiras à noite (22,30) no Cine Palácio. Nesse período Maria Sylvia
produziu um curta-metragem de animação dirigido por Sandra Coelho de Souza
chamado “Manosolfa”. O lançamento teve ares de premiére tipo Hollywood,
com os autores presentes. Em paralelo discutia-se a obra de Joseph Losey, os
trabalhos de Alain Resnais, o embrião da “nouvelle vague” e as novas tendências
do cinema mundial. Entre os exemplos considerados acadêmicos eu não esqueço
como Benedito e Maria Sylvia comentaram, maravilhados, o “La Strada”(A
Estrada da Vida) de Fellini, que viram bem cedo, fora de Belém. Tudo o que
disseram constatei emocionado ao ver o filme. Fellini era uma descoberta, e
mais tarde concordaríamos que “I Vitelloni” (Os Boas Vidas) era melhor do
que “Amarcord”, a versão posterior, a cores, das memórias desse autor (memórias
por ele desmentidas com o humor que acompanhou quase toda a sua obra)..
Uma das muitas pesquisas de Benedito abordou as crônicas que o poeta
Mario Faustino, seu amigo e também professor do Colégio Moderno no meu
tempo de estudante (e minha turma), escreveu sobre os filmes exibidos nos
cinemas da cidade. Mário manteve uma coluna no jornal “A Folha do Norte”,
entre 1948/49, dando cotações expressas em números de 0 a 3.
Cinema não foi a sobremesa para o hoje octagenário. Por isso, certamente,
alguns cineastas quando nos visitavam perguntavam por alguns intelectuais da
cidade, citando especialmente Benedito Nunes. Não se tratava de um “colega”
que fazia filmes, mas de um crítico a merecer o respeito do autor.

da palavra 109
Foto: Elza Lima

Benedito Nunes:
sedutor convite ao banquete filosófico

Ângela Maroja*

110 da palavra
No Campus da Universidade Federal do Pará, recebi minha primeira aula
sobre o pensamento de Kant. No calor daquela tarde de 1976, o Benezinho
estava particularmente emocionado. A turma era boa, com gente interessada e
atenta ...
Se, de fato, há muito da guerra no amor, aquela aula marcou a data de
minha rendição à filosofia. Quando o Bené referiu-se à terceira questão kantiana
com os olhos brilhantes de comoção (ele tem olhos claros, cor de tacacá), e a
voz, naturalmente, baixa, entrecortada e vacilante, não resisti! Mais ou menos,
como há séculos atrás, Alcebíades diante de Sócrates.
Haverá, entretanto, quem atribua os detalhes deste relato às fantasias de
uma Mnemosyne deslumbrada pelos encantos de Eros. Pedirei, então, que o
entendimento me perdoe, já que sob seu sisudo trabalho, a imaginação tece
sempre, e livremente, novas Formas, segundo uma obscura, mas legítima
legalidade.
Haverá, ainda, quem diga que tudo isso é retórica, e que a retórica não
enobrece o filósofo, nem o pensamento filosófico. Aos partidários da secura do
conceito, eu direi, apenas: Até hoje não conheci um filósofo como Benedito
Nunes.
O Benedito Nunes une duas raras qualidades que dificilmente andam
juntas: o rigor argumentativo e conceitual, aliado a uma profunda erudição
filosófica, mas não exclusivamente filosófica. Para a alegria de Nietzsche, o
Bené adestra, cotidianamente, seus ouvidos à música, e com muita precisão é
capaz de distinguir, já nos primeiros acordes, indicando seu intérprete, um
Quarteto de Beethoven. O Benezinho também ama a poesia como Heidegger a
amou. E se encanta com os Sonhos de Kurosawa, ou com a Nouvelle Vague
refletida por Goddard.
Os textos do Bené são textos de filosofia, e não de literatura. São textos
genuinamente filosóficos, densos e consistentes, o que não impede, porém, que
o conteúdo apresente-se, muitas vezes, articulado em uma bela linguagem, digna
de um texto literário. (Um pouco à maneira do velho Platão).
Nunca se esquivando de convidar sempre novos discípulos para a
partilha do banquete filosófico, seu telefone, sua casa, sua biblioteca, estão
sempre abertos aos interessados, num gesto de simplicidade exemplar e sedutora
generosidade, típicos do Benezinho. Comumente, as conversas têm lugar em
seu gabinete de trabalho construído como uma espécie de torre de pedra de
dois andares, anexada ao lado direito dos jardins da casa.
Mas, como todo bom mortal que se preza, o Benezinho tem lá, também,
suas fraquezas: ele é tarado por chocolate, e todos os dias anuncia a decisão de
largar o cigarro para sempre.
(Ele cumpriu a promessa!)
Belém, 8 de março de 2009
* Professora da Universida- Texto publicado na Revista PRAvaLER, Rio de Janeiro, ANO II, 1990,
de Federal do Pará - Departa-
mento de Filosofia. no. 14., sem o acréscimo final entre parênteses.

da palavra 111
112
da palavra
Foto: Elza Lima
A presença de Benedito Nunes
no ciberespaço

Maria Stella Faciola Pessôa Guimarães*

Do mais básico ao mais elaborado, três princípios


orientaram o crescimento inicial do ciberespaço: a
interconexão, a criação de comunidades virtuais e a
inteligência coletiva.
Pierre Lévy

Sempre tive o ensimesmamento como traço. É o que pode explicar o


longo período que passei sem me aproximar do professor Benedito Nunes. Eu o
admirava de longe. Na correria da vida, querendo deter o tempo que intentava
escapar entre os meus dedos, lia alguns textos escritos por ele, especialmente
sobre Clarice Lispector, a escritora que então começava a me empolgar. Apurava
os ouvidos quando Benedito era assunto nas cercanias. Percorria as matérias
dos jornais. Retinha na memória os comentários elogiosos que meu pai Hermínio
Pessôa fazia a respeito daquele quase vizinho da “Estrella” – eu morei na paralela
travessa Mauriti. Calada e atenta, algumas vezes testemunhei diálogos entre
Benedito e Hermínio, enquanto o papai, no linho branco amassado pelo ofício,
segurava o “guidon” de um velho mas reluzente “Oldsmobile”, apinhado de
filhos, caronas e amostras grátis de medicamentos. Depois conheci a professora
Therezinha Gueiros e a educação pública nos tornou amigas. Conversamos muito
e, pelas suas palavras reflexas e plenas de filosofia, eu soube mais da trajetória
de Benedito na Universidade Federal do Pará: seu comportamento inquisitivo,
o rigor estético, a permanente busca intelectual. Foi crescendo minha afeição
pelo mestre. Mas eu continuava pequena no meu canto e ainda sem a ousadia
de chegar perto dele. Vinha de um mundo prático e real com mais números e
*
Engenheira, analista de siste-
mas de informação e escritora. máquinas do que letras e flores. Até que o Centro de Cultura e Formação Cristã

da palavra 113
começou a oferecer aos sábados e domingos cursos livres de Filosofia e de
Literatura com Benedito Nunes. Quebrou-se o gelo. A distância acabou. Não
perdi mais nenhuma sessão depois da primeira palestra que assisti naquela
agradável área em Ananindeua, pertinho de Belém. Eu era, finalmente, aluna
de Benedito Nunes! Ganhei luz. Como sou internauta de todas as horas, logo
comecei uma pesquisa: trilhar os meandros do ciberespaço para apreender o
que ele registra sobre o pensamento e a obra de Benedito.
Louvo a expressão que Lucia Santaella usou para definir ciberespaço: “é
um espaço feito de circuitos informacionais navegáveis”, como está em seu
livro “Navegar no ciberespaço – O perfil cognitivo do leitor imersivo”. O
ciberespaço pode ser facilmente entendido pela internet, de uso cotidiano e
trivial, instalada em nossos dias depois de diferentes estágios de ascendimento
cultural e tecnológico, desde seu primeiro uso nos centros de pesquisas militares
dos Estados Unidos. O “boom” da internet foi deliberado principalmente pela
criação da “World Wide Web”, ou simplesmente “web”, ou ainda “www”. Trata-
se de uma grande teia de alcance mundial baseada em sistema de hipertexto –
permite que as pessoas, através de seus computadores, fiquem conectadas para
buscar informações, fazer encadeamentos e associações, conforme seus
interesses. Nem Penélope conseguiria imaginar, nem tecer ou muito menos
desmanchar, essa trama contemporânea que os internautas percorrem em alta
velocidade de comunicação – a banda larga está aí eliminando tempos e
distâncias. Salta-se entusiasticamente de ceca em meca, de “link” em “link”,
com escolhas e “zapping” próprios. Amplia-se a esfera da presença do ser. As
máquinas e suas informações digitais que compõem a rede enciclopédica
beneficiam-se umas das outras nessa integração, especialmente com o advento
dos mecanismos de buscas na internet. Tudo parece estar no leque da “web”.
Tal dimensão, cada vez mais homérica, exige sofisticação para que se ache com
rapidez o que se quer, daí o esmero no invento de buscadores de informação
que evoluem mais refinados. As associações são facilitadas. Termos especiais,
como capilaridade e rizomas, são usados em tom metafórico. “O Gosto” de
Montesquieu fica melhor entendido quando internautas experimentam, no
ciberespaço, “o prazer de abarcar todo o conteúdo de uma ideia geral” e o de
“comparar, associar e separar ideias” porque esses são “prazeres inerentes à
natureza da alma”. “O que suscita em nós uma grande ideia é quando alguém
diz uma coisa que nos leva a pensar num grande número de outras coisas”. O
ciberespaço, em seu apelo permanente à nossa imaginação – o que nos impele a
criar–, pode servir como exemplo de que a evolução biológica do ser humano é
inseparável da evolução tecnológica, quando sabemos que a mente é tipicamente
reconstrutiva ou “autopoiética” – como diz Humberto Maturana em “Cognição,
Ciência e Vida Cotidiana” e “A Árvore do Conhecimento – as bases biológicas
da compreensão humana”.
Penso que ninguém vislumbrou tão bem o ciberespaço, a internet, a “web”,
seus “sites” e bibliotecas digitais como Jorge Luis Borges em “Ficções”: “Saiba
que os poetas como os cegos / Podem ver na escuridão”, canta Chico Buarque de
Hollanda. “A Biblioteca de Babel”, que o escritor argentino confunde com o próprio

114 da palavra
universo, é uma imagem fantástica destes tempos de cibercultura. Cada galeria
hexagonal daquele devaneio privilegiado de quem podia enxergar no escuro é
como uma espécie de colmeia, com enxame e acumulações, ou tal qual um símbolo
geométrico do carbono, elemento de número atômico 6, cristalino, capaz de
constituir cadeias e formar compostos. Isso não é a “web”?! Os hexágonos de
Borges eram intermináveis e interligados, com circulação de ar e luz incessante
mas insuficiente, dispostos de tal forma que suas galerias estavam cobertas de
livros. Hexágonos sobre hexágonos, de cada um veem-se os inferiores e os
superiores, infinitamente. O que dizer dos espelhos borgeanos que duplicam as
aparências? E das peregrinações em busca dos livros, dos catálogos e até do
catálogo dos catálogos? “Talvez me enganem a velhice e o temor, mas suspeito
que a espécie humana – a única – está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará:
iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos,
inútil, incorruptível, secreta”. A Biblioteca perdurará eternamente.
As bibliotecas digitais da “web” neste terceiro milênio tecem loas e loas a
Benedito Nunes: teses e dissertações de mestrado e doutorado, “sites” nacionais
e estrangeiros, “blogs”, textos assinados em jornais e revistas, trabalhos em
congressos e vários encontros, notícias, entrevistas, referências feitas por outros
intelectuais, homenagens, resenhas, sinopses das livrarias, premiações,
fotografias, indicações abundantes nas listas geradas pelo “Google” etc. Labirinto
infindável! Mesmo que, nos moldes de Borges, um catálogo dos catálogos
referente à presença de Benedito Nunes no ciberespaço seja sempre inconcluso,
sei que há trabalhos importantes em andamento – como o projeto de Lilia
Silvestre Chaves – que visam a digitalizar acervos e reunir, em um “site”
catalisador e dinâmico, o que está espalhado nos meios digitais e disperso na
rede mundial, para então facilitar a consulta dos estudiosos. Fernando Pessoa
entendia muito bem dessa navegação: “Sou o Descobridor da Natureza / Sou o
Argonauta das sensações verdadeiras. / Trago ao Universo um novo Universo /
Porque trago ao Universo ele-próprio”.
Quanto às pesquisas que realizo na internet e cujos resultados estou
colecionando, em computador pessoal, como recortes digitais sobre Benedito
Nunes, já ocupam dimensão incompatível com os limites deste espaço físico de
impressão. No entanto, quero aproveitar o preito da Universidade da Amazônia.
Como tributo aos 80 anos do professor, apresento duas fontes que localizei na
internet para ilustrar e exemplificar sua presença marcante no ciberespaço: jornal
“Folha de S. Paulo” e revista “Colóquio / Letras”. Aqui escrevo com luva branca
e deixo para Benedito Nunes o sinete da minha gratidão. Fica, sobretudo, um
presente aos leitores, sejam extrovertidos ou ensimesmados, mas sempre eternos
aprendizes e ávidos de desvendar conhecimentos. O ciberespaço pode ser, em
cada “link”, um aliado importante na escolha reflexiva dos caminhos e palavras
que enlacem passado, presente e futuro.

PESQUISA NO JORNAL “FOLHA DE S. PAULO”


O jornal “Folha de S. Paulo” mantém em versão digital, para consulta dos
internautas assinantes, suas edições diárias desde 1994. Em pesquisa que realizei

da palavra 115
nesse acervo no final de 2007, através do uso de mecanismos eletrônicos de
buscas da própria “Folha” – hoje marchetada no portal da UOL / Universo On
Line–, garimpei 14 arquivos digitais. São geralmente análises de obras. Esses
textos assinados por Benedito Nunes estão todos relacionados a seguir com
seus títulos, respectivas datas de publicação e, sobretudo, transcrições de
pequenos trechos, que escolhi com o claro intuito de aguçar o interesse dos
leitores para que intentem obter os artigos completos circulados no jornal paulista
em preciosas edições já replicadas no mundo digital.
ELOGIO HUMANISTA DA VELHICE (12/03/1995) – Abordagem
sobre o livro “Memória e Sociedade – Lembranças de Velhos” de Ecléa Bosi,
publicado pela Companhia das Letras, que analisa, conforme a chamada do
jornal, o “papel do velho como fonte de tradições e detentor da memória
coletiva”.

“Memória e Sociedade”, pela adesão afetiva de sua escrita à situação dos


depoentes, alcança o vulto de uma apologia da velhice para nossa época. E é
por aí que o livro recorta a tradição humanística.
As apologias da velhice, que procedem das fontes romano-antiga e renascentista
da tradição humanística, são aplicações do regime da sabedoria estóica e epicurista
à última etapa da vida humana. Confrontam, a exemplo do diálogo ciceroniano
“De Senectute” e de certas páginas de Montaigne, as vantagens e desvantagens
do período de decrepitude física. E fazem, repetindo Platão no início de “A
República”, o elogio da idade avançada, pela aptidão para rememorar o passado
com que a favorece o seu estado de inatividade. “O fruto da velhice, venho
repetindo, é a lembrança...”, resume Catão no diálogo de Cícero.
[...]
Consequentemente, unindo “o começo ao fim”, o passado ao presente, a narração
rememorativa torna-se recuperação do tempo perdido: o velho se reconheceria
como velho, recobrando sua identidade individual e social menosprezada. Mas,
assim, o dom da memória amadurecida, que frutifica em narrativa, é o mesmo
da revivescência proustiana, suspensiva da dissipação do tempo. E, por isso,
rebela-se a lembrança dos velhos contra o presente, repondo as coisas “em seus
lugares antigos”.

SÓCRATES BAILARINO E CONSTRUTOR (13/09/1996) – Densos


comentários a respeito de “Eupalinos ou O Arquiteto”, do escritor francês Paul
Valéry, livro publicado pela Editora 34.

A insistente desconfiança de Valéry em relação à filosofia parece ter afinado nele


a mentalidade do filósofo, apta a passar de uma questão a todas as outras. Ao
tratar da arte, ou particularmente da literatura e da poesia, o filósofo já se
defrontava com os problemas mais gerais do pensamento – o ato de conhecer,
a linguagem, o Eu, a relação entre alma e corpo, o sono e o sonho, a simulação,
a sinceridade, as regras morais–, que também faziam parte da experiência do
poeta, subjugado à cadência das ideias, ao ritmo do sentido, flama ou claridade,
como a “cintilação serena” do céu, ilusório disfarce do devir ao qual vãmente se
opõe o cruel Zenão de Eléia, de “Le Cimetière Marin”. Uma longa hesitação
entre som e sentido – foi o que, resguardado embora por outra metáfora da

116 da palavra
claridade, o “lumen naturale” do intelecto, podia dizer da poesia, sempre que
passava o seu encanto, o irmão filosófico siamês do poeta.
[...]
De análoga maneira, no conhecimento, a experiência, por nós inengendrada,
fornece ao ato de pensamento os materiais sobre que edifica os conceitos teóricos.
Ambas espécies de construção, a cognoscitiva e a artística, pressupõem a
linguagem. Os conceitos se traduzem em outros conceitos. E as formas,
intraduzíveis, acenam e gesticulam. Na dança, as mãos falam e os pés escrevem.
Na arquitetura, há edifícios que cantam e outros que simplesmente falam. Sócrates
poderia tê-los construído, se tivesse suspeitado que a linguagem já secretamente
edificara, pela força de suas metáforas, a ideia do belo universal e abstrato.

A VOZ INAUDÍVEL DE DEUS (30/03/1997) – Benedito analisa o livro


“Ascese – Os Salvadores de Deus” do escritor grego Nikos Kazantzákis –
interpreta as relações do humano com o divino–, cujo prefácio é de José Paulo
Paes, editado pela Ática.

“Somente isto constitui a dignidade humana: viver e morrer corajosamente, sem


aceitar nenhuma recompensa”, confessa Kazantzákis no penúltimo capítulo de
sua autobiografia. Assim o êxtase desse místico ativo, sem igreja, se dá, na paragem
da ação, contemplando o abismo de encontro ao qual a dignidade humana se
equilibra, agônica, numa trágica dança de resistência à sedução do além-mundo
– também dança sacrificial de aceitação da vida–, que o “Assim Falava Zaratustra”,
por ele traduzido, lhe ensinou a heroicamente dançar.
[...]
“O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma
corda por sobre um abismo”, assim começa a primeira pregação do Zaratustra
de Nietzsche. Mas o abismo do poeta grego já é, em consonância com a primeira
teologia negativa – que foi helenística–, um dos nomes de Deus. E o super-
homem, nem extra-humano, nem acima do humano, seria, na visão transindividual
de Kazantzákis, herdada de Nietzsche, em vez do homem em sua generalidade,
objeto do humanismo tradicional, a sofrida paixão que o devora, exaltada por
um Saint-Exupéry depois de Gide.

ANTONIO CANDIDO – UM PACTO DE GENEROSIDADE COM O


LEITOR (19/07/1998) – Benedito participa do caderno dominical “Mais!” em
que o jornal homenageia o professor Candido, escrevendo nessa edição ao lado
de expoentes intelectuais como Alain Touraine, Celso Lafer, Haroldo de Campos,
José Miguel Wisnik, Leyla Perrone-Moisés, Luiz Costa Lima, Lygia Fagundes
Telles, Silviano Santiago e Walnice Nogueira Galvão, entre outros.

[...] no professor, a coragem se combina com a paciência; a liga das duas


conforma-lhe a ciência, pacientemente vivida e coerentemente exercida, de que
tenho sido um dos muitos beneficiários desde a juventude. Passei a respeitá-lo,
diante da justeza de suas intervenções, no 2º Congresso de Crítica e História
Literária, de Assis, em 1961. Foi quando o conheci pessoalmente e aprendi a
admirá-lo. Mas só muito depois, na década de 70, lecionando no IEL (da
Universidade Estadual de Campinas), pela primeira vez a seu convite, descobri
o quanto o humor tempera aquela liga moral e intelectual da coragem na gentil

da palavra 117
paciência, da ciência na coerência, política inclusive.
[...]
Não posso esquecer como, principalmente em dois momentos delicados, o
professor me assistiu com paciência e ciência bem-humoradas. Tolerou minhas
delongas na entrega dos dois livros, “Introdução à Filosofia da Arte” e “Filosofia
Contemporânea”, que me solicitara a escrever para a coleção “Buriti”, pouco
antes do golpe de 64. Em 67, decidira, sob a pressão dos duros tempos, instalar-
me no estrangeiro. No seu gabinete da antiga faculdade da rua Maria Antônia,
onde estive, grafou num meu caderno, envelhecido hoje, indicação de fontes
para os estudos da antropofagia modernista que eu iniciaria na França. Reúno
essas lembranças, de cor, como tributo aos 80 anos de Antonio Candido.

NÓS SOMOS UM DIÁLOGO (13/08/1998) – Ensaio sobre a obra “Verdade


e Método”, editada pela Vozes, escrita pelo filósofo alemão Hans-Georg
Gadamer, que foi aluno de Heidegger.

Compreendemos o outro quando com ele falamos; uma ferramenta quando a


utilizamos; os acontecimentos cotidianos quando nos atingem; o ambiente ou o
mundo em que vivemos. Compreender é uma atitude mais primária do que o
exercício do conhecimento científico, a teoria no sentido estrito. Por ser primária,
é curial, e por ser curial, inapercebida. Podemos compreender sem conhecer
cientificamente, mas não podemos conhecer cientificamente sem antes termos
compreendido a coisa de que se trata. Daí dizer-se que a compreensão é adesiva,
envolvendo, como diz Gadamer, uma relação de pertença ao que nos rodeia.
[...]
A linguagem que o filósofo considera é a que, como suporte da experiência
humana, extravasa a ciência da linguagem, resvalando do método para a verdade
da pertença ao mundo, ao tempo e à história. A experiência humana não é
linguística e sim linguajeira (“spraclich”): o falar dos textos, das obras de arte, o
entender-se e o desentender-se uns com os outros, a imensa, penetrante
conversação humana e a sua tradutibilidade de universo linguístico para universo
linguístico. Parece que estamos a ouvir a ressonância do ensinamento de Heidegger
extraído de Hölderlin: nós somos um diálogo.

O MUNDO DE CABEÇA PARA BAIXO (14/11/1998) – Análise do


historiador espanhol José Antonio Maravall, através do seu livro “A Cultura do
Barroco”, editado pela associação Edusp / Imprensa Oficial.

Depois da morfologia de Wölflin, já se poderia afirmar a existência de um estilo


barroco, oposto ao clássico, ambos correspondendo a distintos modos de
visualidade plástica. Com Werner Weisbach, o barroco se estendeu como estilo
artístico ao movimento de Contra-Reforma, preponderantemente jesuítico, que
lhe foi correlato do ponto de vista cultural. Extrapolada, então, do espaço das
igrejas ao espaço circundante, dos templos à corte, da paisagem ao vestuário,
dos palácios aos jardins e parques, das festas aos préstitos triunfais, mediante o
viés da cultura, a mesma arte do Setecentos passou a ser concebida como estilo
de vida, a serviço de Deus ou da Igreja, em benefício do fortalecimento do
dogma, da autoridade eclesiástica e do poder real.
[...]

118 da palavra
Todos os caprichos são admitidos, todas as novidades toleradas, contanto que
não passem do palco à sociedade. Os bufões têm a palavra livre, a toda hora,
diante dos reis. E o mundo mesmo é uma bufoneria que, “de cabeça para baixo”,
se assemelha a um teatro, se não a um labirinto, de difícil saída, onde, com as
guerras de religião e depois delas, imperam a crueldade e a violência. Só poderia
ser pessimista, com a tônica da melancolia, sintoma de desencanto e atestação da
fugacidade de tudo, dos azares da fortuna, irmã gêmea do jogo, o ânimo desse
mundo revirado, que passara a conhecer as leis galileanas do movimento, penhor
tanto de eterna mudança quanto da caducidade e do declínio.

A INVENÇÃO MACHADIANA (10/07/1999) – Abordagem a respeito de


um dos livros de Alfredo Bosi sobre a obra de Machado de Assis: “O Enigma
do Olhar”, editado pela Ática.

O olhar do ficcionista sente pensando e pensa sentindo. Nesses sentir e pensar,


mutuamente entrelaçados, ele se distancia dos objetos de que a visão o aproxima.
A proximidade do olhar garante o conhecimento de um dado contorno humano:
a sociedade, as ações individuais e os motivos a que obedecem. Mas só recolhido
no âmbito da imaginação, que o distancia desse contorno em que se acha incluído,
ganha o olhar do ficcionista a percuciente lucidez de um foco reflexivo aceso
sobre uma “persona” – a pessoa feita personagem ou a personagem tradutível
em pessoa.
[...]
Certamente, Pascal como Leopardi, Schopenhauer como Stendhal contribuem
para a gênese desse olhar, mas aliados a La Rochefoucauld, La Bruyère, Manuel
Bernardes, Matias Aires, Vauvenargues, Helvetius e Adam Smith. O exemplário
desses modos de pensamento, em apêndice no final do livro, nos oferece, numa
escala nuançada, os tons, entretons e timbres de um pensamento cético ajustado
às artimanhas do humor, que teriam convergido no foco do olhar machadiano
– não espelho de luz difusa, mas lente analítica do real.

TRÁGICA DIALÉTICA DA LEMBRANÇA (25/07/1999) – Benedito escreve


sobre os poemas de Salvatore Quasimodo – um dos três grandes líricos italianos
do século XX, ao lado de Eugenio Montale e Giuseppe Ungaretti – editados
pela Record.

A voz histórica ativa de Platão, fundadora de uma das fortes tradições do


pensamento ocidental, nos diz que conhecer é lembrar; toda coisa só se torna
conhecida por meio do acesso reminiscente, a que nos eleva o amor premido
pelo desejo, a uma ideia universal, organizadora da experiência e a ela sobreposta,
permitindo-nos identificar o que não é idêntico no diverso e mutável curso da
realidade empírica perceptiva. Mas só os poetas, a que Platão vedou entrada em
sua “República”, mostrariam o lado inverso letal do conhecimento: ao reviver, a
lembrança celebra a morte do objeto do amor; a reminiscência escava o túmulo
daquilo que se ama. Quando surge, a ideia universal se erige em lápide funérea
do real empírico, conforme outra voz, a de Quasimodo, nos diz em
contraposição ao platonismo: “Não tenho mais lembranças, nem as desejo; /
toda memória se remonta à morte, / a vida não se acaba. Cada dia / é nosso...”.

da palavra 119
TRÊS QUESTÕES SOBRE NIETZSCHE (06/08/2000) – Ao lado de Roberto
Romano, Benedito Nunes dá respostas a três perguntas formuladas pelo caderno
“Mais!” a respeito de Nietzsche: Qual a importância de sua obra para a filosofia
ocidental? Qual seu principal legado para o século 20? Vive-se hoje em uma
época nietzschiana?

São tantos os legados que é impossível apontar um principal. Pela primeira vez a
filosofia recebeu um legado não-filosófico – ou antifilosófico. Pela primeira vez
a filosofia se fez por via “destrutiva”. E pela primeira vez a filosofia passou a ser
aturdida pela linguagem filosófico-poética. E por que não dizer que o pensamento
nietzschiano foi o primeiro a consagrar a união nupcial da filosofia com a poesia?

O HUMANISMO ATEU DE NIELS LYHNE (10/02/2001) – O personagem


do escritor dinamarquês Jens Peter Jacobsen no romance editado pela Cosac &
Naify é comentado por Benedito que evidencia semelhanças com algumas figuras
da literatura de Dostoiévski.

Por certos aspectos biográficos de seu personagem, “Niels Lyhne”, de Jens Peter
Jacobsen, livro de cabeceira de Rainer Maria Rilke, tem quase tudo de um
“Bildungsroman” (romance de formação): a relação decisiva com amigos, os
entrechoques amorosos, os ganhos ou perdas de conhecimento e afeição, traçam
aí o perfil de uma vida em busca de si mesma. Segundo escreve Otto Maria
Carpeaux, no ensaio que dedicou ao autor dinamarquês, esse perfil é nuançado,
como atestam as grandes cenas de amor, de despedida e de morte que recortam
a narrativa.
[...]
Nos romances de formação que nos oferecem a saga do nascimento do artista
ou do poeta, como no “Retrato do Artista Quando Jovem”, de Joyce, no
“Doutor Fausto”, de Thomas Mann, no “Wilhelm Meister”, de Goethe, e mesmo
nesse defectivo “Niels Lyhne”, nuançado dentro do gênero, a meta poética
prepondera. Nas quatro obras, o conhecimento orienta a conduta ética, ambos
condicionados à criação artística e operando uma mudança na atitude religiosa
dos personagens, da qual resulta uma crítica ou uma rejeição do cristianismo.
Wilhelm Meister tenderia para o universalismo religioso, Stephan abandonaria a
fé católica, o doutor Fausto tornar-se-ia um místico panteísta. Niels Lyhne, poeta
como aqueles três, adotou porém uma aguda forma de ateísmo, que o aproxima
de outra família romanesca, aquela a que pertencem certas personagens de
Dostoiévski, como Stravoguin e Kirilov, em “Os Demônios”, e Ivan e Dimitri,
em “Os Irmãos Karamazov”.

LINHAS DA INQUIETAÇÃO (01/09/2002) – Análise de “Cartas a Suvórin”


(Anton Tchekhov / Edusp) e “Cartas – Volume 2” (Carl Gustav Jung / Editora
Vozes), obras publicadas simultaneamente e, conforme o chamado desse artigo,
que “estabelecem um contraste fértil entre o ceticismo elegante do escritor russo
e as preocupações teológicas do psicólogo suíço”.

Quanto mais, atualmente, vai se tornando corriqueiro, em detrimento da carta,


do velho gênero epistolar, mediado pelo serviço de correios e telégrafos, o uso

120 da palavra
da ultra-rápida correspondência eletrônica do fax e do computador, mais vem
aumentando o interesse tanto documental quanto literário pela missiva escrita,
como estilo de comunicação agora em franco envelhecimento. São recentes
exemplos entre nós desse interesse duas coletâneas de cartas – as de Carl Gustav
Jung (1875-1961) a vários consulentes e as de Anton Tchekhov (1860-1904) a
seu editor Aleksei Suvórin–, equivalentes em densidade informativa, mas diferindo
na matéria e no estilo.

O ESQUECIMENTO DA FALA (08/02/2003) – Grande autoridade em Martin


Heidegger, Benedito Nunes escreve sobre o “Dicionário Heidegger”, de Michael
Inwood, publicado por Jorge Zahar Editor.

Para um filósofo como Heidegger, que faz da palavra a emergência sonora do


sentido, ao mesmo tempo “poiesis” e “logos”, fala recuperada na linguagem,
voz falada na escrita, pensamento enquanto caminho que avança dos objetos à
coisa, do ente ao ser, retraindo-se à objetificação dos signos – para um filósofo,
enfim, que pensa poeticamente e para quem, portanto, se torna mínima a diferença
entre pensar e poetar, a língua se reveste de importância fundamental. Um
pensamento desse tipo, gerador de um vocabulário próprio, só pode admitir,
em tácito acordo com o nosso poeta Drummond, que, mesmo sem nascerem
amarradas, as palavras subsistem em estado de dicionário. A filosofia
heideggeriana vive nesse estado.
[...]
A recapitulação do uso de “Dasein”, desde o seu significado pé no chão no
alemão corrente até o seu enriquecimento nocional quando decomposta na forma
“Da-sein” (aquele que busca o ser, atende a seu apelo, a ele se abrindo), é a mais
completa possível. Mas o verbete assinalado é um dos poucos, senão o único,
que ficou sem nenhuma tradução, fugindo, portanto, da regra de duplas entradas
estabelecida pela coordenadora. Mas a vantagem dessa transgressão foi nossa:
ao assim proceder, a coordenadora restabeleceu a dança heideggeriana das palavras
e a luta agonística do filósofo com e contra elas, em vez de fixá-la numa só
palavra: a “pre-sença” de sua versão completa, já citada, de “Ser e Tempo”.

A VIA-CRÚCIS DA ESTRELA (16/10/2005) – Ensaísta de destaque entre os


críticos de Clarice Lispector, Benedito aqui desenvolve sua análise sobre dois
novos livros a respeito da vasta obra da escritora brasileira nascida na Ucrânia:
“Outros Escritos” (organização de Teresa Montero e Licia Manzo, com
publicação pela Rocco) e “Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos” (Vilma
Arêas / Companhia das Letras).

É de sua “Via-Crúcis” que Clarice salta para “A Paixão Segundo G.H.”, e desta,
depois do aflitivo purgatório intelectualista de “Uma Aprendizagem”, para “A
Hora da Estrela”, final de uma trajetória pela pedregosa via de “Água Viva” – o
caminho da escrita como “um emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores
e palavras”.
Mas esse final de trajetória traz uma reviravolta. A narrativa estelar une os fios
extremos da vida de uma mulher, desvalida nordestina e pobre no Rio de Janeiro,
Macabéa, à sua morte anônima na rua. Formam os fios dessa personagem um
“auto-retrato” da escritora, revelador de seu trabalho de criação, tecidos no

da palavra 121
rústico tear da pobreza brasileira, de modo que “A Hora da Estrela” é também
“uma verdadeira radiografia centrada na pobreza urbana”.
Aí Clarice, como diz o narrador de “A Hora da Estrela”, estaria “mudando de
modo de escrever”. Violenta a linguagem para poder falar dessa “raça anã
teimosa”, semelhantemente à atitude de Graciliano Ramos em “Vidas Secas”
para dar voz a Fabiano.

ODISSEIA (21/05/2006) – Através da sessão dominical “Biblioteca Básica”,


parte do caderno “Mais!”, Benedito Nunes declara a importância de Homero na
sua formação intelectual.

A “Odisseia” de Homero foi importante em minha formação tanto literária


quanto filosoficamente. Literariamente porque coloca em foco o tema da viagem,
do retorno, que se expandiu e vem de Homero até Joyce. Filosoficamente porque
o ensino da filosofia, em primeiro lugar da filosofia grega, é inseparável do
conhecimento de Homero. É uma fonte mitológica e um modo de pensar o
mundo. O mito da viagem é encontrado em Joyce, em “Ulisses”, e também em
Guimarães Rosa – seus personagens estão sempre se movimentando, sempre
em viagem. Esse núcleo da “Odisseia” é muito importante até hoje.

Além desses 14 relacionados, há outro texto assinado por Benedito Nunes


na “Folha” que é facilmente obtido na internet, apesar de ter sido escrito antes
do período que engloba arquivos já digitalizados pelo próprio jornal. Trata-se
da avaliação crítica do romance “Estorvo” escrito por Chico Buarque de
Hollanda. Pode ser encontrada no site oficial do artista com a data de 03/08/
1991.

[...] o passado do narrador se anula, seu futuro é a expectativa do pior, e a


procura de si mesmo, um movimento inconsequente, marcha voluntária para o
suicídio-assassinato. Outra particularidade formal desse relato, em correspondência
com o andamento ágil, lesto, frenético, é a causalidade do imaginário, anulando
a causalidade natural. Em vários momentos, o narrador não sabe (e o leitor com
ele) se conta o que lhe aconteceu ou aquilo que imagina ter-lhe acontecido.
Sonhamos a nossa realidade ou realizamos os nossos sonhos? De qualquer forma,
a realidade, muito nossa – de uma época, de uma geração, de um país – que
Estorvo configura, é a realidade de um sonho mau, de um demorado pesadelo.

Há outros resultados da minha pesquisa na “Folha de S. Paulo” que são


textos com referências feitas a Benedito Nunes, tanto na abordagem especializada
de sua obra por outros estudiosos identificados no jornal, como no formato de
notícias acerca do professor paraense e de sua trajetória intelectual visível no
Brasil e no exterior. Assim, localizei no site paulista mais 49 registros digitais,
datados entre 30/01/1994 e 05/05/2007, todos agora também residentes, na
íntegra, em computador pessoal onde prossigo essas investigações encantatórias
sobre a presença de Benedito Nunes no ciberespaço.

122 da palavra
Quanto à análise direta de sua obra por renomados professores e escritores,
chamo a atenção para dois ensaios.

PENSAMENTO MUNDIFICADO (27/09/1998) – Fábio Lucas comenta os


ensaios de Benedito reunidos no livro “Crivo de Papel” publicado pela Ática.

“Crivo de Papel” reproduz o que há de mais denso e constante na obra de


Benedito Nunes. O ponto de partida, seminal, é a filosofia. A outra face do
vasto campo de interesse do crítico constitui a literatura. A preocupação mais
envolvente de Benedito Nunes é, na filosofia, a obra de Heidegger, da qual tem
sido, no Brasil, um dos mais autorizados analistas. No campo literário, ocupa-se
primordialmente de Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, sem
descurar Fernando Pessoa, que lhe oferece sínteses adequadas e epígrafes às
indagações filosóficas. E agrega, ainda, ao “Crivo de Papel”, penetrante e oportuno
balanço da historiografia literária brasileira. Outros estudos se organizam no
interior da obra, como a visão de Sócrates, sob a vigilância de Valéry, a investigação
da música entre as artes e a exploração de temas como a história, a ética, o
tempo e a poesia.
[...]
Que dizer da especulação filosófica de Benedito Nunes? Além de apontar a crise
da filosofia, como o faz especificamente em “A Filosofia e o Milênio”, tem-se a
sensação de transitar num labirinto. Louvem-se a beleza da exposição e a
contribuição à estética, em especial nas questões sobre a natureza da arte, quando
aborda o pensamento de Kant e Heidegger. No mais, são trabalhos mais
expositivos do que conclusivos, na linha de Heidegger, para quem “o mundo
não é, mas se mundifica”.

O TRABALHO DA HERMENÊUTICA (11/03/2000) – Franklin Leopoldo e


Silva analisa o livro de Benedito denominado “Hermenêutica e Poesia – O
Pensamento Poético”, na ocasião veiculado pela editora da Universidade Federal
de Minas Gerais.

Compreender Heidegger talvez tenha de ser, sempre, retomar a tarefa de


contornar o caráter inesgotável de uma meditação que, recusando as enunciações
propositivas, assume o trabalho de interpretar as impossibilidades que o
pensamento metafísico construiu para si próprio e que de alguma maneira
permitiram que as realizações culturais da história do Ocidente ocorressem como
atividades periféricas esquecidas do seu centro. Acompanhar Heidegger, inserir-
se em seu modo de pensar, é assumir a negatividade implícita na memória
metafísica e tentar vislumbrar as paisagens que ela recalcou nos extremos de um
passado que é origem fundante e esquecida.
O livro de Benedito Nunes assume com coragem e serenidade essa tarefa de
pensar a distância na ambiguidade de suas implicações, para compreender o
significado mais íntimo dos laços que separam e aproximam poesia e filosofia.
Atingimos primeiramente esse processo constitutivo de revelação e ocultamento,
quando nos damos conta da indigência contida nas ideias de “filosofia da arte”
ou “da literatura”, na medida em que conotam a possibilidade de absorção da
arte pela reflexão filosófica.

da palavra 123
Quanto à menção feita a Benedito nas análises de obras desenvolvidas
por outros autores na “Folha”, também posso destacar os trechos de algumas
matérias exibidas nas edições dos jornais impressos que, com o avanço das
tecnologias da informação neste terceiro milênio, estão agora propagadas em
formato digital pela internet.
OS DEMÔNIOS CULTURAIS DE LLOSA (27/11/1994) – Milton Hatoum
assina texto sobre Mario Vargas Llosa.

Na sua obra ficcional Vargas Llosa usou e desenvolveu a montagem de diálogos


presente no “Madame Bovary”, na famosa cena do comício agrícola de Yonville;
uma ousadia que “consiste em intercalar partes de um diálogo a partes de outro
entre os mesmos personagens, em situações temporal e espacialmente distintas”,
como apontou Benedito Nunes ao analisar a ilusão da simultaneidade nos
romances “Madame Bovary” e “A Casa Verde” (“O Tempo na Narrativa”,
editora Ática).

O PURGATÓRIO DE SOFIA (09/08/1996) – Luiz Paulo Labriola escreve a


respeito de Jostein Gaarder.

[...] a narrativa padece de outros problemas de verossimilhança. Conforme lembra


Benedito Nunes, em sua “Introdução à Filosofia da Arte”’ (Ática, pág. 40), um
texto literário não pode, a rigor, ser tomado como “completamente real (...)
nem como uma cabal ilusão”.

MANEIRAS DE LER POESIA (14/02/1997) – Leyla Perrone-Moisés elabora


fascinante resenha sobre “Leitura de poesia”, livro da Ática que tem a participação
de Benedito, na companhia de Alcides Villaça, Alfredo Bosi, Fábio de Souza
Andrade, João Luiz Tafetá, Jorge Koshiyama, José Miguel Wisnik e Murilo
Marcondes de Moura.

Benedito Nunes, leitor de Mário Faustino, está, a meu ver, na categoria “hors-
concours”. Um fino crítico como é Benedito Nunes, lendo um poema belíssimo
como “Juventude” de Mário Faustino é algo que coloca a poesia e a crítica
brasileiras no seu mais alto patamar. O crítico se desincumbe da difícil tarefa de
mostrar a particularidade de um poema cujo tema não poderia ser mais geral:
amor e morte, tempo e eternidade. Ao mesmo tempo que usa, discretamente,
seu vasto arsenal filosófico, procede a uma leitura musical do poema, ressaltando
sua “avassaladora sonoridade”, seu “efeito encantatório” por iteração,
paronomásia e ritmo ondulatório. O poema de Mário Faustino se revela, assim,
como próximo da essência da poesia lírica: “ação celebratória” ou, no conceito
de Valéry, desenvolvimento de uma exclamação face à maravilha de haver mundo
e vida.

AS DONZELAS VÃO À GUERRA (02/08/1998) – Em entrevista concedida


a Marcos Roberto Flamínio Peres, a professora Walnice Nogueira Galvão faz
alusão a Benedito.

124 da palavra
[...] eu me lembrei de que fui membro da comissão julgadora da Prêmio Nestlé
de Literatura. De fato havia muitas obras regionalistas, o que achei curiosíssimo,
além de muitas cópias de Borges e Cortázar, mas não acho que haja influência
do “realismo mágico”, como o de García Márquez.
Um fato curioso foi constatado pelo professor Benedito Nunes, que também
fazia parte da comissão: talvez porque os textos fossem escritos diretamente no
computador, as obras literárias se impregnaram da linguagem da informática.
Termos como “acessar”, “deletar” eram muito comuns nos romances que
concorriam.

A INTROSPECÇÃO DE EVALDO COUTINHO (22/07/2001) – Matéria


acerca dos 90 anos desse filósofo e crítico de arte desenvolvida por Marcos
Enrique Lopes.

Essas ideias estão dispostas nos cinco volumes de “A Ordem Fisionômica”, a


base de sua ontologia. O professor e escritor paraense Benedito Nunes encontra
nela o que chama de tanatologia, ressaltando que, em sua essência, “alcançou um
ritmo sintático, um fraseado aliciante, que seduz o leitor por sua clareza e riqueza
vocabular, de cunho metafórico”. Lembra, ainda, a leitura “esplêndida” que nos
traz de “O Sofista”, de Platão, ou o paralelo que Wittgenstein lança sobre o
solipsismo como tese. “Ele é correto, só que mostra o que não pode ser visto, o
que não pode ser dito”. Quer dizer, faz diferença entre o dizer e o mostrar,
porque “as coisas que não podemos dizer é melhor calar, pois quando a linguagem
filosófica ou poética se cala, ela está mostrando algo que não pode dizer
inteiramente”. E é isso que a arte e a literatura fazem. Para Nunes, não se trata de
um simples esteta, um mero professor de filosofia, “mas de um verdadeiro
filósofo”.

UMA MEDIDA CONCRETA (14/09/2003) – O caderno especial “Mais!”


apresenta entrevista de Haroldo de Campos feita por José Marcio Rego, na qual
o autor de “Metalinguagem e Outras Metas” faz um balanço da crítica literária
brasileira.

O Benedito Nunes e o Gerd Bornheim [morto em 2002] são dois casos que têm
certos pontos de contato, de filósofos que fazem crítica e a fazem muito bem.
Com muitas armas de conhecimento e sensibilidade. O Gerd tem sido, sobretudo,
um crítico de teatro, além dos livros importantes que tem publicado no campo
filosófico, desde a tese de livre-docência. Ele tem escrito muito sobre teatro, é
especialista em Brecht, talvez o nosso mais notável especialista em Brecht. E o
Benedito Nunes, que também, em certo aspecto, é um heideggeriano. Benedito
já se dedicou mais a outros aspectos literários. À Clarice Lispector, por exemplo,
da qual, parece, é um dos mais argutos estudiosos. Ao João Cabral, ao Guimarães
Rosa... Enfim, é uma pessoa que tem se dedicado, ao lado de sua formação de
filósofo, ao estudo literário, o que é raro no ambiente brasileiro.

O SINISTRO E SEUS DUPLOS (02/07/2005) – Manuel da Costa Pinto analisa


a coletânea de contos de Haroldo Maranhão – “Feias, Quase Cabeludas” –
selecionada por Benedito e publicada pela Planeta.

da palavra 125
Nos 40 e 50, o escritor Haroldo Maranhão formou, com o filósofo Benedito
Nunes e com o poeta Mário Faustino, uma tríade de intelectuais cujas trajetórias
são marcantes na vida cultural brasileira. Tendo como epicentro Belém do Pará
e, mais especificamente, o suplemento literário criado por Maranhão na “Folha
do Norte”, em 1946, a história desse grupo serve, por si só, para derrubar
polaridades que opõem centro e periferia, ou caricaturas em que os Estados
distantes dos grandes polos urbanos estão vocacionados para uma concepção
provinciana de mundo e, no caso da literatura, para o regionalismo.

Sobre as notícias constantes do acervo digital da “Folha” disponibilizado


na internet – no caderno “Ilustrada” ou no caderno “Mais!”–, cabe aqui ainda
pinçar parte do que está lá registrado como passos da trajetória de Benedito:
prefácio e comentários para livros de Mário Faustino; participação em encontro
realizado por Adauto Novaes; análise de livros de João Cabral de Melo Neto;
presença em fortuna crítica de Guimarães Rosa; apresentação em colóquio sobre
Heidegger; referência em entrevista de Nádia Battella Gotlib sobre Clarice
Lispector; participação em encontro de críticos e poetas; membro do júri do
Prêmio Nestlé de Literatura; presença em evento sobre Blaise Cendrars para
discutir a “utopialândia”; destaque no 2º Colóquio Latino-Americano de Estética;
presença no documentário de Pedro Bial sobre Guimarães Rosa; recebimento
do Prêmio Guimarães Rosa de Literatura; inclusão no livro de conversas com
filósofos brasileiros da Editora 34, ao lado de nomes como, por exemplo, Bento
Prado Jr, Gerd Bornheim, José Arthur Giannotti, Leandro Konder, Marilena
Chauí e Miguel Reale; convidado pelo caderno “Mais!” para compor o grupo
que escolheu a personagem de preferência dos admiradores da literatura brasileira;
crítico citado em entrevista do poeta Age de Carvalho; matéria sobre a morte
de Haroldo Maranhão; citação por João Cezar Castro Rocha como estudioso da
obra de Oswald de Andrade; referência em comentários sobre obra de Erico
Veríssimo; nome incluído entre os comentaristas da edição de “Cadernos de
Literatura Brasileira” sobre Clarice Lispector; referência em análise de Adriano
Schwartz relativa a “Mário Faustino – Uma Biografia” escrito pela paraense
Lilia Silvestre Chaves; participação na 3ª edição da FLIP em Paraty; presença
em São Paulo para encontro a respeito de Sartre; elaboração de texto sobre
Clarice Lispector para o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo.

PESQUISA NA REVISTA “COLÓQUIO / LETRAS”


De acordo com informações disponíveis em seu site oficial na internet,
a Fundação Calouste Gulbenkian, com sede em Lisboa, é uma instituição
portuguesa de direito privado e utilidade pública, cujos fins estatutários são a
Arte, a Beneficência, a Ciência e a Educação. Desde 1971, a Fundação edita a
revista “Colóquio / Letras”.
Nota de Abertura (1971): “Colóquio / Letras” vem preencher uma lacuna que
se tornava sensível: será, em Portugal, a única revista especificamente literária –
com textos de poesia e de ficção, mas, na maior parte, destinada ao estudo de
modo não puramente erudito, não polêmico, não meramente divulgativo, antes
serenamente reflexivo, problemático, ensaístico.

126 da palavra
[...]
De caráter vincadamente ensaístico e admitindo uma grande pluralidade de pontos
de vista, incluindo quer artigos de investigação quer leituras críticas da atualidade
editorial, a “Colóquio / Letras” publica inéditos de poesia e ficção de autores
contemporâneos, consagrados e jovens, traduções de poesia e partes de espólios
literários de autores do passado, procurando levar a uma revalorização de escritores
esquecidos e pouco estudados. Dedica-se quase em exclusivo às literaturas de língua
portuguesa, o que abrange não só a nossa mas também a brasileira, as africanas de
expressão portuguesa e a galega (tendo esta sido matéria de dois números publicados
em 1996). Conta com um vastíssimo número de colaboradores, tanto portugueses
como estrangeiros estudiosos das referidas áreas.

Em pesquisa que efetuei na “web” em 2008, pude coligir 37 artigos


assinados por Benedito Nunes na “Colóquio / Letras”, que os denominou de
“recensão crítica” – uma espécie de resenha ou de apreciação de um livro. Forneço
a seguir a relação dessas resenhas, por ordem cronológica (mês e ano de
publicação), e faço para algumas, a título de exemplos, a transcrição de trechos
dos ensaios do professor paraense editados na importante revista de Portugal.

“CÓDIGO DE MINAS & POESIA ANTERIOR”, DE AFFONSO ÁVILA


(09/1971).
De resto, à estrutura desses poemas pertencem, conjuntamente, os respectivos
títulos e as citações históricas, geográficas, literárias e jornalísticas que os
acompanham em epígrafe, como elementos de contrastação irônica. Até mesmo
devido ao aspecto compedioso e tratadístico que emprestam à obra, o efeito de
tais citações, que o trocadilho e o “non-sense” de certas passagens dos textos
poéticos reforçam, é um por vezes compenetrado e grave humor, a definir o
parentesco do poeta, já ligado a João Cabral de Melo Neto pelo controle racional
da composição, com Carlos Drummond de Andrade, a quem dedica “Código
de Minas”. Estendendo a si próprio esse humor, Affonso Ávila, que mineiro é,
descodifica-se ao decifrar o “Código de Minas”: “eu em texto de minas / eu em
templo de minas / eu em tempo de minas”.

“OS CONDENADOS”, DE OSWALD DE ANDRADE (12/1971).


Para os círculos literários ligados ao Modernismo, ainda na fase de procura estética,
o romance de Oswald de Andrade constitui surpreendente revelação de
originalidade criadora. Subdividido em planos descontínuos que enquadram a ação,
misto de análise psicológica e drama passional, na moldura de episódios isolados,
ao sabor de um ritmo entrecortado, que varia conforme a dimensão desses episódios
– alguns até lembrando improvisadas anotações de diário–, “Os Condenados”
impressionaram há 42 anos atrás justamente devido a esse processo de construção
sincopada da narrativa, que Oswald de Andrade utilizaria, de maneira plena, em
“Memórias Sentimentais de João Miramar” (1924) e “Serafim Ponte Grande”
(1933), duas pedras de toque da atualidade literária brasileira, desvinculadas da
Trilogia, e que formam, no dizer de Antonio Candido, um “par-ímpar”.

“BLAISE CENDRARS NO BRASIL E OS MODERNISTAS”, DE ARACY


AMARAL (03/1972).

da palavra 127
Verdadeiramente pioneira, a monografia de Aracy Amaral “Blaise Cendrars no
Brasil e os Modernistas” permite-nos avaliar o papel mediador exercido pelo
poeta de “La Prose du Transsibérien” – que veio a São Paulo em 1924 a convite
de Paulo Prado, por sugestão de Oswald de Andrade – entre aquelas vanguardas
estrangeiras, sobretudo a cubista e a futurista, associadas no “esprit nouveau” de
Apollinaire, e a vanguarda dos rebeldes da Semana de Arte Moderna.

“HISTÓRIA E IDEOLOGIA”, DE FRANCISCO IGLÉSIAS (05/1972).


“SAUDADES DO CARNAVAL”, DE JOSÉ GUILHERME MERQUIOR (05/
1973).
“H’ERA”, DE MAX MARTINS (07/1973).
A sondagem verbal está catalizada por referenciais genésicos que, tomando por
base a analogia entre “carne” e “verbo”, entre “eros” e “logos”, latente à poesia de
Max, estendem às coisas exteriores os signos duma representação erótica do mundo.
[...]
A carência interior e exterior assumida, “aguando o sémen da linguagem”, e por
isso sem poupar amor e verbo, redunda, sob o prisma do erotismo, numa
“explicação órfica da Terra”, que é, conforme escreveu Mallarmé a Verlaine, “le
seul devoir du poète et le jeu littéraire par excellence...”. Vem dessa origem e
desse compromisso a inabstraível presença da poesia de Max Martins no conjunto
da poesia brasileira atual.

“VERDE VAGOMUNDO”, DE BENEDICTO MONTEIRO (07/1973).


Se em “Verde Vagomundo” a história, como processo social e político, entrama-
se à história como poesia e é por esta interpretada, se neste romance a ficção
toma pé na realidade e a ela se volta reflexivamente para compreendê-la, deve-
se isso ao estratagema da forma romanesca. Desdobrado nos múltiplos relatos
individuais dos personagens, nos registros das manchetes radiofônicas, nas
anotações dum diário e nas peças do inquérito militar, que se distribuem
alternativamente, alimentando a narração geral, em primeira pessoa e da autoria
do Major, “Verde Vagomundo” consegue manter entre os planos do real e do
imaginário um regime oscilante de aproximação e distanciamento.

“A TRANSGRESSÃO DO TEXTO”, DE MÁRIO CHAMIE (09/1973).


Para concluir, há um pequeno reparo reivindicativo. O ensaísta ilustrou o discurso
monológico com o “Dom Casmurro” de Machado de Assis, que estaria privado
dos três níveis de interlocução – do autor em diálogo com o texto, do texto em
diálogo com o leitor e do contexto em diálogo com o texto – que caracterizam
o discurso dialógico. Mas se Chamie examinar à luz desses critérios as “Memórias
Póstumas de Braz Cubas” – romance no qual o personagem defunto, pseudo-
autor dum diálogo com o próprio texto, se dirige ao leitor dentro dum contexto
parodístico – verá que Machado de Assis se antecipou, de certa maneira, à escrita
dialógica de transgressão.

“MARCA REGISTRADA”, DE ARMANDO FREITAS FILHO (03/1974).


“ÁGUA VIVA”, DE CLARICE LISPECTOR (05/1974).
“POESIA E FILOSOFIA NA OBRA DE FERNANDO PESSOA” (07/1974).

128 da palavra
Possíveis modos de ser e de compreender o mundo, os Outros que Fernando
Pessoa projetou fora de si, no espaço imaginário dum diálogo – “dum teatro sem
drama” ou “dum drama sem teatro”, no dizer de Álvaro de Campos–, nada mais
foram, à semelhança do autor que os criou e que deles se fez ator – e nisso está a
ironia trágica do desdobramento – senão o disfarce da realidade insondável e
profunda, máscara sobre máscaras, modelando os indivíduos e a eles estranha.
“Tudo o que é profundo gosta de mascarar-se”, reza o aforismo de Nietzsche que
pode servir de intróito à poesia da metafísica em crise de Fernando Pessoa.

“CIDADE CALABOUÇO”, DE RUI MOURÃO (09/1974).


“UMA VIA DE VER AS COISAS”, DE DORA FERREIRA DA SILVA (01/
1975).
Elegíaco, o primeiro poema de “Aqui” (“Vespertino”) é um lamento para a
nossa época de ocaso, época que apagou a lembrança consoladora de Sião, e
substituiu o “repentir chrétien” pela leitura dos jornais, em que Hegel viu a oração
quotidiana do homem moderno: “Aqui estou, nascida no ocaso / quando as
lágrimas se apagam, e os rios / Leio o jornal, mão crispada na página.” Na
dicção contida desse poema, prosaica no melhor sentido – a prosa do mundo –
e que sabe, como a de Carlos Drummond de Andrade, retirar aquilo que é
exemplar daquilo que é comum, afluem, imagens de nossa carência, os mitos e
as mistificações da época.

“A METÁFORA DO CORPO NO ROMANCE NATURALISTA”, DE


SONIA BRAYNER (01/1975).
“GRANDES CONTEMPORÂNEOS”, DE MANUEL ANTUNES (03/1975).
“A METAMORFOSE DO SILÊNCIO”, DE LUIZ COSTA LIMA (03/1975).
Enquanto para Jakobson a análise literária é o instrumento capaz de concretizar
os elementos todos do eixo de seleção que se projetam sobre o eixo da
comunicação, e assim de explicitar o sentido implícito à forma explícita, para
Costa Lima, o poema, como texto literário, mantém-se na tensão, condicionada
pelos dois eixos que não se recobrem, entre o pleno das significações emergentes
e o vazio submerso que o discurso integra.

“O TEMPO E OUTROS REMORSOS”, DE ALCIDES VILLAÇA (07/1975).


“O CONVIDADO”, DE MURILO RUBIÃO (11/1975).
“CONFISSÕES DE RALFO (UMA AUTOBIOGRAFIA IMAGINÁRIA)”, DE
SÉRGIO SANT’ANNA (01/1976).
“O CARRO DOS MILAGRES”, DE BENEDICTO MONTEIRO (07/1976).
As sete narrativas aqui reunidas nascem da atitude explícita do relato oral, que
consiste na transmissão contínua de acontecimentos singulares extraídos da
experiência comum, e que é a célula matriz do gênero literário denominado
“conto”. Mas aquela que mais exemplarmente condensa as possibilidades líricas,
épicas e dramáticas da forma do relato oral é a do conto-título do volume, “O
Carro dos Milagres” – caso ocorrido durante o Círio, a procissão que marca o
início, cada ano, no segundo domingo de Outubro, da festividade de Nossa
Senhora de Nazaré, em Belém, cujos motivos lendários, transpostos de Portugal,
rebrotaram no Brasil numa manifestação coletiva de piedade popular,
secularmente difundida por todo o Estado do Pará. Com a sua carga orgiástica

da palavra 129
difusa, seus tradicionais carros alegóricos que precedem o andor da Santa (a
Berlinda) – um dos quais o dos Milagres–, o Círio, ocasião de verdadeira
“transumância” (assim o qualificou Eidorfe Moreira, no primeiro ensaio
sociológico que se escreveu a respeito), atrai, do interior do Estado, devotos,
romeiros e pagadores de promessas transportando ex-votos.

“OBRAS EM PROSA”, DE FERNANDO PESSOA (01/1977).


“A ESTÉTICA DE LÉVI-STRAUSS”, DE JOSÉ GUILHERME MERQUIOR
(03/1977).
“DISTÂNCIA”, DE LIBERTO CRUZ (07/1977).
“XADREZ DE ESTRELAS. PERCURSO TEXTUAL (1949-74)”, DE
HAROLDO DE CAMPOS (07/1977).
Tentar separar a trajetória poética de Haroldo de Campos dos rumos do
Concretismo seria tão absurdo como pretender estudar os rumos de André
Breton independentemente da trajetória do Surrealismo. Entretanto, o poeta de
“Xadrez de Estrelas” filtrou, de modo peculiar, o “realismo absoluto” (o poema
existindo “espacialmente” como objeto, em sua materialidade de signo, e
equivalendo ao processo de sua estruturação) e o “anti-historicismo” (tendência
a valorizar o novo como medida “histórica” da invenção poética irruptiva),
incorporados à teoria e à prática do Concretismo, firmadas a partir do
reconhecimento da existência de uma crise do verso na modernidade e da viragem
literária que representou “Un Coup de Dés” de Mallarmé para superá-la.

“A HORA DA ESTRELA”, DE CLARICE LISPECTOR (11/1978).


“A HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA”, DE WILSON MARTINS
(01/1980).
“SIGNANTIA QUASI COELUM / SIGNÂNCIA QUASE CÉU”, DE
HAROLDO DE CAMPOS (01/1981).
“CANTO EM SI E OUTROS CANTOS”, DE REYNALDO VALINHO
ALVAREZ (05/1981).
“VOO DE GALINHA”, DE HAROLDO MARANHÃO (01/1982).
Não há, neste livro, retratos do corpo inteiro, mas perfis: o maníaco de “Minha
Senhora”, os semiloucos e párias de “Os Scaff, Pai e Filho”, a matrona edípica
de “O Pai de Cassiano, a Mãe, o Cassiano”. Os gestos ou o simples movimento,
como no equívoco e fatal mergulho da moça de “O Salto”, resumem o curso
de uma ação implícita.

“IMPRESSÕES DE VIAGEM. CPC, VANGUARDA E DESBUNDE: 1960/


70”, DE HELOÍSA BUARQUE DE HOLANDA (07/1982).
“REFLEXÕES SOBRE A VAIDADE DOS HOMENS E CARTA SOBRE A
FORTUNA”, DE MATIAS AIRES (09/1982).
Os estudos introdutórios de que se acha munida a presente edição crítica
proporcionam-nos essa leitura renovada de uma obra que, estampando o espírito
de dois períodos, estampa, antes de tudo, ao encontro do pensamento moral
conflitivo de nossa época, prevenido contra os disfarces das paixões, a permanente
inquietação humana.

130 da palavra
“EM LIBERDADE”, DE SILVIANO SANTIAGO (09/1982).
Ensina-nos a história literária que Graciliano Ramos começou a narrar a sua
experiência de preso político sem processo entre 1936 e 1937, somente em
1946, quase dez anos depois de finda. A morte surpreendeu-o antes de haver
iniciado o capítulo final, precisamente aquele que na obra póstuma, “Memórias
do Cárcere”, dada a lume em 1953, na forma em que a deixara o romancista,
descreveria a volta à liberdade.

“CLARICE LISPECTOR OU O NAUFRÁGIO DA INTROSPECÇÃO”


(11/1982).
Creio que a morte da autora abriu uma terceira fase de recepção à sua obra,
condicionada às peculiaridades de dois livros, “A Hora da Estrela”, que precedeu
de meses o passamento de Clarice Lispector em 1977, e “Um Sopro de Vida”,
publicado postumamente. O primeiro não mais exibe o rótulo de “romance”,
ainda conservado em “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” (1969),
nem o de “ficção”, como em “Água Viva” (1973) – e o segundo, concluído na
mesma data, traz o subtítulo de “Pulsações”. Por uma sorte de efeito retroativo,
ambos permitem desvendar certas articulações da obra inteira de que fazem
parte, dentro de um singular processo criador, centrado na experiência interior,
na sondagem dos estados da consciência individual, que principia em “Perto do
Coração Selvagem”.

“MANUEL BANDEIRA PRÉ-MODERNISTA”, DE JOAQUIM-


FRANCISCO COELHO (09/1983).
“O TETRANETO DEL-REI”, DE HAROLDO MARANHÃO (01/1984).
Não bastaria portanto dizer que o Torto, identificado a Camões pela comum
lesão orbital, sai das câmaras femininas de Lisboa. Ele também se evade das
páginas dos “Lusíadas” e percorre, em suas andanças, sobre folhas de livros a
serem escritos no futuro, inclusive “Grande Sertão: Veredas”, uma floresta
bibliográfica tropical, antropofagisticamente enxertada, entre tantas referências e
citações diretas ou alusivas, com versos de Mário Faustino, Camões, Carlos
Drummond de Andrade e Fernando Pessoa.

“DEDO-DURO”, DE JOÃO ANTÔNIO (05/1984).


“JOÃO CABRAL: FILOSOFIA E POESIA” (07/2000).
Nunca são diretas mas transversais as relações entre poesia e filosofia. Porém,
se o poeta é eminentemente crítico como João Cabral, se, para ele, em
contraposição a todo o êxtase, a toda a inspiração, e portanto contra o vezo
para o irracional, o vago e o místico, o poema nasce de um movimento de
ascese, capaz de criá-lo enquanto “trabalho de arte”; se esse mesmo crítico
poeta ou poeta crítico escreve “Psicologia da Composição” (1947) – na verdade
uma filosofia da composição, se não uma fenomenologia do poema–,
tematizando, como permanente acompanhamento da obra, a ascese que depura
pacientemente a linguagem até neutralizar nela o sujeito como Eu, para assegurar
à mesma linguagem a comunicabilidade por meio da forma construída, então
muito prosperam as relações transversais entre poesia e filosofia.

da palavra 131
132
da palavra
Foto: Elza Lima
Benedito Nunes:
a inteligência presente

Nelly Cecília Paiva Barreto da Rocha*

“... o bosque de oliveiras de Academe,


retiro de Platão, lá onde o pássaro ático
faz ouvir seus gorgeios por todo o Verão.”
(Milton, P.R., IV, versos 244 e segs.)1

Nas cercanias de Atenas havia um jardim. Um jardim chamado Academo,


em honra ao personagem da Mitologia Grega que, segundo a tradição, ajudou a
Cástor e Pólideuces a encontrar sua irmã Helena, raptada por Teseus.
* Professora da Universida-
de da Amazônia (UNAMA) / Foi nesse jardim, cercado por um bosque sagrado e dedicado à deusa
Membro da Academia Paraen-
se de Letras Palas Atena, que Platão (Atenas : ? 427 – 347 a.C.) fundou, por volta de 387
Doutoranda em Ciências da a.C., sua escola – a Antiga Academia.
Linguagem / Autora de Madre
Mariana Alcoforado: o Hábito da Nesse espaço havia alojamentos, refeitórios e salas de leitura, onde Platão
Solidão, Além da Tapeçaria e dos
Véus: mistérios de Lígia Fagundes e seus discípulos discutiam Matemática, Astronomia, Política, Poesia, Música,
Telles; Quincas Borba, de Macha- Filosofia... Sua intenção era formar homens de princípios elevados, preparados
do de Assis: romance e estudo crítico,
entre outros. para exercer as mais destacadas atividades daquela época.
Agraciada com os prêmios “Sa-
muel Mac Dowell” (Governo do Entre esses alunos de Platão estava aquele que foi seu maior discípulo
Estado do Pará e Academia por mais de 20 anos: Aristóteles (Macedônia, Estagira: 384 – 322 a.C.).
Paraense de Letras), Cultural
CEJUP, Carlos Nascimento, en- Diziam os contemporâneos desses dois filósofos que Platão chamava
tre outros.
1. HARVEY, Paul. Dicionário Aristóteles de “o Ledor”, “ o Entendimento”, “o Espírito”. O estagirita era
Oxfor de Literatura Clássica (Gre- considerado, pois, o Nous (a “Inteligência”) da Academia.
ga e Latina). Tradução: Mário
da Gama Kury. Rio de Janeiro: Declararam, ainda, esses contemporâneos que “Platão, ao verificar, certo
Jorge Zahar, 1987.
2. TELLES JÚNIOR, Goffre- dia, que Aristóteles não se encontrava na Academia”, proferiu as seguintes
do. Aristóteles: Arte Retórica e Arte palavras: “A Inteligência está ausente.” (“Como é sabido, Aristóteles ouviu,
Poética. Rio de Janeiro: Tecno-
print S.A, 1991. por cerca de vinte anos, as lições de Platão, na Academia de Atenas.”)2

da palavra 133
Essas palavras de Platão, proferidas há mais de vinte e três séculos, podem
– perfeitamente – ser repetidas nesta primeira década do século XXI, em um
jardim localizado na Travessa da Estrela, em aprazível residência: a casa de
Benedito e Maria Sylvia Nunes.
Nesse jardim, envolvido por samambaias que não são apenas “de
metro”, mas ‘quilométricas’ – habitualmente – reúne-se o casal e alguns amigos.
Diletos amigos. Amigos que se reúnem para conversar, ouvir música, aprender...
aprender... aprender... (Há alguns anos, encontrar-se-ia, também, nesse espaço
a Angelita Silva, irmã de Maria Sylvia).
Ensinar / aprender nesse jardim, em salas de aula e em auditórios de
universidades do Brasil e do exterior é, pois, uma realidade no cotidiano do
Professor Benedito Nunes. Uma realidade que eu tive o privilégio de usufruir
como sua aluna em cursos de Pós-Graduação e ouvinte atenta em Congressos
literários realizados Brasil afora. (Fui sua aluna e muito aprendi). De Maria
Sylvia, fui colega no Curso de Extensão sobre o Teatro de Gil Vicente, ministrado
pelo Professor Francisco Paulo do Nascimento Mendes.
Maria Sylvia, professora de História do Espetáculo na UFPa, dirigia peças
teatrais – premiados espetáculos no Brasil e além fronteiras; Benedito Nunes
proferia – e profere – conferências em várias universidades do Brasil e do exterior.
E escreve livros – notáveis obras. Obras que se atemporalizarão.
Hoje, constato quão necessário se faz voltar no Tempo para escrever este
artigo na revista Asas da Palavra, da Universidade da Amazônia (UNAMA).
Volto no Tempo, para lembrar, por exemplo, que Benedito e Maria Sylvia
se fizeram presentes na minha vida e na de Octavio Avertano Rocha (que era o
assistente do Professor Benedito Nunes na disciplina Filosofia, na antiga
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras) quando foram os escolhidos para
padrinhos da primogênita Nelly Miriam (e, logo depois, foram os padrinhos “ad
hoc” de Ana Cecília e Isadora Octavia.).
Entretanto, nem é preciso voltar no Tempo para metonimicamente dizer:
Benedito Nunes: a Inteligência presente.

134 da palavra
Benedito Nunes,
o professor*

José Maria Bassalo1

Convidado pelo Magnífico Reitor da Universidade Federal do Pará,


Professor Cristovam Wanderley Picanço Diniz para dizer algumas palavras sobre
o Professor BENEDITO JOSÉ VIANNA DA COSTA NUNES nesta ocasião
em que recebe o Título de Professor Emérito da Universidade Federal do Pará,
achei que seria interessante, pelo menos para mim, falar de três momentos em
que tive a oportunidade de conviver mais de perto com esse ilustre professor,
momentos esses importantes para a minha carreira acadêmica.
O primeiro momento ocorreu em 1953 quando fui seu aluno no Colégio
Estadual “Paes de Carvalho” (CEPC), na disciplina História do Brasil, cursando
o então 3º Científico. Muito embora jovem (pois se encontrava no início de sua
carreira de professor), o que mais me impressionou, bem como a meus demais
colegas, era a clareza e a profundidade de suas aulas, uma vez que ele não se
limitava apenas a descrever cronologicamente os fatos históricos mais relevantes
da história de nosso país. Ele os correlacionava através de uma visão que hoje
se denomina sociológica. E, mais ainda, quando fosse pertinente, Benedito
Nunes fazia uma incursão filosófica nessa correlação.
Hoje, refletindo sobre aquelas aulas e as demais (e de mesmo nível)
recebidas de outros professores no velho casarão da Praça da Bandeira,
compreendo a razão pela qual, pelo menos nos últimos 50 anos, uma boa parte
da elite política, profissional e empresarial que contribuiu para o desenvolvimento
*
Publicado originalmente do Pará, estudou e/ou ensinou naquele casarão. Por outro lado, há outros
no livro Benedictus, homena- membros dessa elite, que também engrandeceram o nosso Estado, embora não
gem da UFPA por ocasião da
titulação de Professor Eméri- hajam passado pelo CEPC, estudaram e ensinaram em Colégios particulares,
to em novembro de 1998.
1
Professor Titular Aposen- cujo ensino era tão bom quanto o do CEPC. E por que havia esse equilíbrio?
tado do Departamento de Fí- Por causa de uma lei mercadológica e hoje renegada: o bom ensino público
sica da Universidade Federal
do Pará - UFPA. induz o bom ensino privado

da palavra 135
O segundo momento em que convivi com o Professor Benedito Nunes
ocorreu em 1958, na casa do Professor Machado Coelho, meu sogro. Nessa
casa, todas as noites, reuniam-se intelectuais: advogados, médicos, engenheiros,
poetas, pintores, literatos, antropólogos, jornalistas, professores, escritores,
músicos etc. (mas nem todos ao mesmo tempo), obviamente, para conversar
sobre os mais variados temas. Quando essas conversas versavam sobre literatura,
a discussão se tornava calorosa, principalmente entre meu sogro e seu amigo e
compadre, o professor Francisco Paulo do Nascimento Mendes, ambos literatos.
Quando havia um impasse na discussão, eles apelavam para o Professor Benedito
Nunes para saber quem estava com a razão. Com um sorriso, o nosso
homenageado de hoje encerrava a discussão, dizendo que ambos tinham razão,
apenas os enfoques é que eram diferentes. Ele, Professor Benedito Nunes, quase
sempre tinha um outro enfoque, contudo só o usava quando os ânimos
estivessem serenados.
As conversas e discussões que ouvi na varanda do Machado Coelho (como
eram conhecidas aquelas reuniões) por quase 40 anos, mostraram a importância
da interdisciplinaridade na formação intelectual de qualquer pessoa. Por exemplo,
por várias vezes, vi que a interpretação de um quadro ou de uma peça literária
dependia de outros conhecimentos, além dos de pintura ou de literatura e,
principalmente, de História e de Filosofia.
Sobre essa interdisciplinaridade, recordo-me de um fato muito marcante
em minha vida. Em 1959, alguns intelectuais que frequentavam a varanda e,
sob a liderança de meu sogro, Benedito Nunes e Paulo Mendes promoveram,
por inter médio da Aliança Francesa, curso sobre Pintura Francesa
Contemporânea. Uma das palestras desse curso foi proferida pelo saudoso
engenheiro e matemático Rui da Silveira Brito (um dos frequentadores da
varanda), e que abordou o tema Matemática e Pintura. Depois de falar da
importância dos princípios matemáticos, da perspectiva usada pelo pintor italiano
Piero Della Francesca, na Idade Média, concluiu sua exposição dizendo que a
Topologia talvez tenha influenciado a Pintura Abstrata. Para ilustrar essa
afirmação, observou que entes topológicos, como, por exemplo, a fita de Möbius
e a garrafa de Klein, poderiam ser vistas como “pinturas abstratas”.
A interdisciplinaridade voltou a ser o objeto principal de meu terceiro
momento de convivência com o Professor Benedito Nunes. Com efeito, de 1980
a 1982, os Departamentos de Filosofia e de Física da UFPA realizaram uma
série de seminários, coordenados e dirigidos pelo Professor Benedito Nunes,
nos quais se discutiu uma série de temas dessas duas disciplinas. Por exemplo,
recordo-me que, além de discutirmos temas puramente filosóficos e físicos,
discutimos, também, assuntos nos quais havia uma relação dialética entre Ciência
e Filosofia, tais como: o processo cognitivo da ciência; a intuição criadora; ciência
e ideologia; ciência, tecnologia e desenvolvimento, dentre outros.
Muito embora a filosofia fosse motivo de conversas entre mim, minha
mulher Célia, meu sogro, meus cunhados e concunhados, além dos varandeiros,
foram aqueles seminários que me alertaram para a importância da Filosofia no

136 da palavra
entendimento da Física. Assim, com o conhecimento dessa disciplina que adquiri
participando das discussões sérias ocorridas nos seminários referidos acima,
passei então a aprofundar as leituras dos principais filósofos da ciência de nosso
século: Gaston, Bachelard, Karl Popper, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend,
Maurice Merleau-Ponty (professor de Benedito Nunes), Mário Bunge, Imre
Lakatos, Gerald Holton, Alan Musgrave, David Bohm, Jacob Bronowski e outros.
Essas leituras me foram bastante importantes na elaboração dos cinco tomos
de minhas Crônicas da Física. (Nesta oportunidade, quero destacar que meu
primeiro contato com Popper foi através da leitura que fiz de seu famoso livro
A Lógica da Pesquisa Científica (Editora Cultrix e EDUSP, 1975), e que me
foi indicado, em 1976, por meu concunhado, o literato Pedro Pinho de Assis,
nas conversas da varanda.)
Na conclusão desta homenagem ao Professor Benedito Nunes menciono
mais um exemplo da interdisciplinaridade que demarcou (no sentido popperiano)
o meu convívio com esse estimado amigo. O momento está registrado no livro
A Crise do Pensamento, publicado pela Universidade Federal do Pará e a
Fundação Rômulo Maiorana (EDUFPA, 1994), que reúne as palestras proferidas
no Ciclo de Preleções: A Crise do Pensamento patrocinadas e realizadas no Núcleo
de Arte da UFPA, em junho de 1993, e organizadas por Professor Benedito
Nunes. Em duas dessas preleções, o Professor Benedito Nunes e eu discutimos,
respectivamente, os aspectos filosóficos e físicos do tempo.

da palavra 137
Foto: Elza Lima

A travessa da Estrela
e o metonímia Ben(e)dito

Paulo Nunes1

138 da palavra
O complexo mundo do pensamento tem sua lógica própria. Para adentrar
nele, precisamos de um longo tempo preparatório, parcimônia, pois que nossas
limitações aumentam a necessidade de cultivar a paciência, sentimento tão
necessário quanto fôssemos adentrar numa cápsula daquelas que transporta –
metáforas? – argonautas ao abismal espaço. Imagino – imago – que se chegando
ao território do inimaginável, pensamos que a Terra é azul, um “blue”
cantocantado, e que a Lua está tão próxima das nossas mãos quanto as teclas de
uma máquina Remington, hoje bibelô na mesinha de centro da sala. Poder de
suprema posse? Ilusão? A viagem, como toda caminhada valorosa, é complexa,
duradoura, inconclusa e contém obstáculos. Há algo de “religare” no universo
do pensamento. Trilhamos vias sacras, “estandebairizamo-nos” nas estações, a
fim de nos abeberarmos das palavras, palavras que contêm um caudal mágico,
mais ou menos como dissera Cecília Meireles, certa feita: “Palavra, Oh! Palavra,
que estranha potência a vossa!...” Faço todo este rodeio, intróito preparativo, e
o leitor já desconfia do motivo. Quero tratar, na cerimônia celebrativa, observador
à distância que sou, sobre uma personalidade que habita – sacerdote privilegiado?
– o mundo do “logos”. Transformei a desvantagem em vantagem aparente.
Explico-me: não tenho intimidade com esta pessoa, sequer sou seu amigo.
Frequentador da travessa da Estrela? Não sou (embora lá tenha sido recebido
durante três vezes: uma para entregar um volume de Márcia Marques de Morais
sobre Guimarães Rosa, no qual o professor é citado; outras duas, quando Josse
Fares, Josebel Akel Fares e eu fomos conversar com o escritor Haroldo Maranhão
durante o lançamento de “nosso” Texto e Pretexto, em que o autor de Voo de
Galinha é estudado; houve ainda a gravação do documentário sobre Max
Martins, “Fazer como os Pássaros...”, dirigido por Abdias Pinheiro, que tem
roteiro de texto da Josse).
Pois bem, por menor que possa parecer, nossa experiência tem mostrado
que toda cidade tem seus nomes emblemáticos; ícones que se transformam em
representantes do mundo das palavras, das artes, enfim, da cultura. Não somos
diferentes, Belém também tem seus ícones. E um deles chama-se Benedito Nunes.
Quase sempre, quando apresentamos trabalhos em encontros de literatura, há
alguém que exclama: “Ah! São de Belém... a terra do Benedito [Nunes]?” Ora,
tal manifestação é um modo de dizer que uma pessoa, graças à proeza de seu
trabalho - pensamentos e escritos -, é verbo encarnado, como eu poderia dizer,
uma metonímia2 de nós todos. Assim, não é exagero dizer-se aqui que, de certo
modo, Benedito Nunes é um metonímia de Belém.
Conheci nosso metonímia (pessoalmente, digo) quando, “ borracho” -
eu,muito jovem ainda, iniciara o curso de Letras na Universidade Federal do
Pará, início dos anos 80. No auditório do então Centro de Letras (hoje
1
Professor da Universidade curiosamente este espaço chama-se Francisco Paulo Mendes, nome de um amigo
da Amazônia, Belém-PA, ape-
sar do Nunes que traz no so- pessoal do mestre da Travessa da Estrela), uma palestra sobre Guimarães Rosa.
brenome, Paulo não é paren-
te do intelectual homenagea- Novatos, eu e Elaine Oliveira (e mais um significativo número de estudantes),
do nesta crônica; o Paulo lei- hoje minha colega de magistério na Unama, escutávamos magnetizados o que
tor de Dalcídio amadureceu
acerca de algumas artimanhas falava o mestre, e a plateia, silenciosamente, apre(e)ndia. Confesso a vocês que
construtivas de romancistas não entendi meio quilo das toneladas de “alimento” que o professor Benedito
marajoaras nos estudos de
Benedito Nunes. repartia fraternalmente conosco naquela ceia. Saí dali – falo evidentemente tão

da palavra 139
somente por mim - com um misto de curiosidade e semi-humilhação. O assunto
da preleção era nada menos que Guimarães Rosa, então uma leitura um tanto
rala feita no meu segundo grau; assunto que me tantalizara olhos e ouvidos
(coisa que se intensificou bastante quando a rede Globo levou ao ar a série com
Toni Ramos e Bruna Lombardi). Mas, sem desviar caminhos, voltemos ao
professor Benedito. Naquele dia, pensava eu: como um homem fisicamente tão
pequenininho podia saber com tanto sabor? Tamanho é documento? Quando
eu “crescer”, quero ao menos apertar sua mão... Eu expressara (ingenuamente?)
esse desejo em sala de aula. Ruy Barata, nosso professor de Literatura Brasileira,
sarcasticamente, me gozava: “Paulo, irmãozinho, este sobrenome... Queres te
valer da fama do Benedito, hein?” Eu olhava atônito para o Ruy e me limitava
a sorrir. O que fazer?Afinal, calouro, não tinha ainda a malícia necessária para
lidar com os jogos de linguagem do Paranatinga. A fábula da raposa e as uvas.

2
Segundo a versão eletrôni-
ca do Dicionário Houaiss de
Língua Portuguesa, metoní-
mia é “figura de retórica que
consiste no uso de uma pala-
vra fora do seu contexto se-
mântico normal, por ter uma
significação que tenha relação
objetiva, de contiguidade,
material ou conceitual, com o
conteúdo ou o referente oca-
sionalmente pensado [Não se
trata de relação comparativa,
como no caso da metáfora.]”

140 da palavra
Como eu disse, não participo do círculo de amigos (em Belém há alguns
reconhecidos discípulos dele) do professor Benedito (talvez por isso seja
incongruente eu chamá-lo aqui de “Bené”), mas há alguns fatos que gostaria
de lembrar nesta quase crônica de registros. Ao promovermos um encontro
sobre literatura paraense no colégio Deodoro de Mendonça, em 1983, fui,
aos poucos, me aproximando de ancho “magro poeta” Max Martins;
inicialmente na SUCAM (então um prédio colonial na avenida Nazaré com
a Rui Barbosa) e depois ali na Casa da Linguagem. A Casa, braço da Fundação
Curro Velho, é, como sabemos, espaço mágico reservado à expressão verbal
que o Estado mantém na avenida Nazaré com a Assis de Vasconcelos. E,
vez ou outra, o Max falava de seus amigos, dentre eles, o ilustre morador da
Travessa da Estrela. A fala de Max era de uma expressão franciscana,
compassada, mas fluente e verdadeira, e, sobretudo, substancial,
consubstancial. Porque em Belém, o observador atento perceberá em uma
ou duas reuniões, há quem queira demonstrar intimidade com Benedito
Nunes, tratando o mestre simplesmente como “Bené”. Há os que podem
fazê-lo, mas há os que não deveriam “forçar a barra”, afinal tal gesto chega
a transpirar esnobismo quando não uma demonstração de falsa intimidade
com o filósofo e crítico literário. É como que se ao enunciar “hoje estive
com o Bené”, se concretizasse uma sentença valorativa, espécie de escalada
progressiva na trajetória intelectual do enunciador. Bem, mas eu dizia que
algumas de minhas conversas com o Max Martins, traziam à baila as figura
de Benedito e Maria Sylvia Nunes.
Sei que, perdoem-me, cometo rodeio retórico. Trasladando-me em torno
de meu próprio eixo? Corro o risco de perder-me na floresta das palavras?
Em suma, é preciso enfatizar, antes, sobre o valor de “adido intelectual de
Belém” que o professor do antigo Centro de Filosofia da UFPa goza fora de
nossos amazônicos limites territoriais. E uma demonstração concreta disso
se deu quando meu querido Audemaro Taranto Goulart me disse, em Belo
Horizonte: “Paulo, você precisa explorar mais em seu texto O Tempo na
Narrativa3, do Benedito!” É bem verdade, que em minha graduação, após a
experiência reveladora da conferência aqui aludida, tive contato com um
capítulo de Passagem para o Poético: filosofia e poesia em Heidegger.
Aquela leitura foi, na realidade, uma forma mais didática de me fazer
compreender sobre a força da palavra poética. Confesso, entretanto, que as
leituras reiterativas e mais significativas que fiz de nosso filósofo foram os
dois textos sobre Dalcídio Jurandir. Um primeiro, que me gentilmente cedido
pelo amigo Silvio Holanda (professor do Instituto de Letras da UFPa), foi a
resenha sobre Belém do Grão-Pará, publicada no Estado de S.Paulo, em
1960.E um segundo, que foi publicado na revista Asas da Palavra sobre
Dalcídio Jurandir, editado pela Unama em 2004, estudo que muito me auxiliou
na interpretação do romance urbano de Dalcídio. Tirei proveito também de
3
Maria das Neves Penha uma conferência do professor Benedito durante o Encontro Nacional dos
Obadia me ajudou muito nes- Estudantes de Letras, que se realizara em Belém, campus da UFPa, em 1995,
te particular. Aproveito para
agradecer a ela publicamente. se não me falha a memória. Foi naquele ENEL que o filósofo paraense

da palavra 141
noticiara a respeito – já relatei isso noutro texto – da conversa que ele tivera
com Dalcídio Jurandir, logo após a publicação de Grande Sertão: Veredas,
de Guimarães Rosa. Segundo Nunes, Jurandir ficara atônito com o que lera,
e assim o ficcionista paraense perguntava: “Bené, o que um romancista pode
fazer depois da publicação deste romance do Rosa?...”. Tal revelação teve
um gosto especial para mim, porque além de demonstrar que estávamos
diante de um Dalcídio exigente leitor, tínhamos no autor de Marajó um
homem afinado com as novidades do romance de seu tempo. Outro trabalho
de Benedito Nunes que me causou contentamento foi o Crônica de duas
Cidades, escrito em parceria com Milton Hatoum, publicado pela SECULT-
Pa. O livro, como se sabe, trata de Belém e Manaus como capitais culturais
da América Latina, obra que se transformou numa jóia preciosa de que
também lancei mão para escrever minha tese em Belo Horizonte. A edição
da SECULT-Pa é caprichada e nos faz confirmar o fato de quanto o Brasil
republicano – além das grandes distâncias geográficas, é claro! – isolou,
ainda mais, a Amazônia do restante do Brasil. Na Unama estive umas duas
ou três vezes com o professor. Uma em que ele fora homenageado no Fórum
Paraense de Letras, e noutro, quando o homenageado, noutra versão do
encontro, foi prestigiar Max Martins.
Pois bem, eis uma rápida declaração pessoal da importância desta
figura emblemática, que muito provavelmente demarca a nossa – paraense
– vida cultural em duas fases, antes e depois dele. Benedito Nunes é, portanto,
um marco. Mais que territorial, um marco simbólico das terras do Grão-
Pará, por vezes tão amesquinhado, pela incompetência e vaidade excessiva.
Uma terra feminina, mariana, teimosa, que resiste graças a algumas de suas
filhas. E filhos.

Santa Maria de Belém do Grão-Pará, ano de 2009.

142 da palavra
Uma posição singular*

Maria Annunciada Ramos Chaves1

Não me surpreendeu a brilhante atuação de Benedito Nunes no movimento


cultural do País. Meu aluno no curso secundário do Colégio Moderno – já lá se
vai meio século – revelava uma inteligência acima do comum, um gosto pelos
livros raro de encontrar-se em tão pouca idade, um vivo interesse pelos aspectos
mais nobres da existência humana.
Oscilando entre a filosofia e a literatura desde o início de sua produção
intelectual, tem conservado essa dupla característica ao longo de toda a sua
fértil atividade mental, o que lhe valeu uma posição especial na crítica literária,
acentuada, particularmente, em seus belos estudos sobre Mário Faustino e
Clarice Lispector, nos quais a abordagem filosófica acompanha a análise da arte
de escrever. Essa duplicidade de inteligência, característica da obra de Benedito
Nunes, muito tem influído, sem dúvida, para a posição singular que ocupa na
literatura brasileira. Desde “O Dorso do Tigre” até “O Crivo de Papel”, seu
trabalho, sempre original e fecundo, o tem distinguido na cultura nacional, sem
ter precisado, para isso, de integrar-se ao eixo Rio – São Paulo. Nascido em
Belém e aí fixado, tem cultivado, dentro da amplitude do seu pensamento, as
características não só amazônicas como, até mesmo, paraenses, no modo de
viver e produzir.
Isso lhe valeu, de certo, uma posição personalíssima no ambiente cultural
brasileiro e muito tem contribuído para o prestígio de que goza nos meios
intelectuais do País, tornando-o detentor de várias distinções significativas,
* Publicado originalmente no
livro Benedictus , homena- inclusive, recentemente, o Prêmio Multicultural Estadão, para cuja conquista
gem da UFPA por ocasião da foi o seu nome indicado por três mil pessoas numa ampla manifestação da opinião
titulação de professor eméri-
to em novembro de 1998. pública, que soube captar a singularidade da sua posição nas letras brasileiras.
1- Professora titular de Histó-
ria do Brasil da Universidade
A proximidade entre filosofia e literatura reflete-se, também, na atividade
Federal do Pará, e sua ex-pró- pedagógica do autor de “Crivo de Papel”, tornando-o o verdadeiro organizador
reitora, foi, por muitos anos,
presidente do Conselho Esta- dos cursos de filosofia da Universidade Federal do Pará, para os quais atraiu
dual de Cultura, cargo em que estudantes que, sem o seu toque especial, não teriam despertado para tão sutil
se notabilizou pela entusiásti-
ca e intransigente defesa da atividade intelectual.
Memória paraense. Era mem-
bro também do Instituto His-
A maior alegria que o professor pode experimentar é ver-se ultrapassado
tórico e da Academia de Le- em saber, competência e capacidade por seus discípulos. Essa a inefável sensação
tras do Pará. Faleceu em 16 de
agosto de 2006, em Belém. que experimento ao percorrer as páginas assinadas por Benedito Nunes.

da palavra 143
Foto: Luiz Braga

144
da palavra
V. Estudos sobre a
obra de Benedito Nunes
da palavra 145
clarice

146 da palavra
Reflexôes acerca da crítica
de Benedito Nunes1

Jucimara Tarricone2

Ao lado: Clarice Lispector, Ao apresentar Benedito Nunes, antes de sua conferência3 denominada
reprodução.
“Crítica literária no Brasil, ontem e hoje” (2000), Flávio Aguiar divide em três
momentos a obra do professor paraense: 1. os escritos de fundamentação, por
exemplo, Passagem para o poético (1986); 2. os de interpretação, como os estudos
de O dorso do tigre (1969) e No tempo do niilismo e outros ensaios (1993); 3. os de
edição, a publicação dos poemas de Mário Faustino (1985) e a edição crítica de
A paixão segundo G. H. (1996), de Clarice Lispector.
Conquanto Aguiar declare que tal divisão não pode ser entendida de modo
estanque, é preciso salientar o risco em que toda classificação incorre. No caso,
a obra de Nunes dificilmente se deixa enfaixar de modo a pertencer a esta ou
àquela linha. O que se percebe, por certo, são nuances de uma escritura que, ao
não aceitar a estéril generalização, realiza-se como invenção e expressão em
1
O presente ensaio é, com
ligeiras modificações, uma par-
diferentes momentos no espaço da crítica.
te da minha tese de doutorado Basta assinalar que a sua práxis de interpretação nasceu no solo literário,
denominada Hermenêutica e crí-
tica: o pensamento e a obra de Bene- em cuja fonte a filosofia – a Filosofia Hermenêutica, importante lembrar – incide
dito Nunes. como linguagem, no reconhecimento da literatura como “experiência do possível”.
2
Professora-assistente da Uni-
versidade Católica de Santos. (NUNES, 1993, p.199 – grifo do autor)
Doutora em Teoria Literária e
Literatura Comparada pela Uni- Assim, o diálogo literatura e filosofia se institui como campo de sua
versidade de São Paulo.
3
O texto da conferência e de
instrumentação e perpassa seu discurso crítico de modo a compor um fio ao
sua respectiva apresentação é qual seu raciocínio se prende. Nas suas palavras:
uma das exposições perten-
centes a Rumos da crítica (2000),
resultado de um ciclo de pa- Não sou um duplo, crítico literário por um lado e filósofo por outro. Constituo
lestras que constituiu o pro- um tipo híbrido, mestiço das duas espécies. Literatura e filosofia são hoje, para
grama Rumos da Literatura e
da Crítica do Itaú Cultural, ocor-
mim, aquela união convertida em tema reflexivo único, ambas domínios em
rida em 1999. conflito, embora inseparáveis, intercomunicantes. (NUNES, 2005, p.289)

da palavra 147
Diante dessa posição, talvez seja pertinente perguntar o que isso representa,
qual o lugar e a importância que ocupa tal analítica dentro do quadro instável
em que se desenvolveu a crítica literária brasileira. O adjetivo instável, vale
dizer, não possui um qualificativo negativo; antes, revela a natureza complexa
do tema, merecedor de diversas e, por vezes, polêmicas exegeses.
Por outro lado, pode-se indagar, de acordo com Costa Lima (2000, p.17),
se um crítico, ou a crítica literária em si, tem lugar definido, já que, como ele
constata, esta é apenas um horizonte de que “seus praticantes tão-só estão
próximos ou distantes”. Em poucas linhas:

O crítico não é aquele que, por força de uma instrumentação técnica, “mostra”
aos leigos o que eles por si não saberiam ver, senão aquele que usa de uma
instrumentação, só às vezes técnica, para tornar visível a presença de uma
propriedade que, em tese, seria a todos acessível.

O crítico, pois, é aquele que, ao ler a obra literária, compartilha com outros
leitores sua experiência de leitura do texto. De fato – e não é novidade –, são as
diferentes formas de ler o fenômeno literário que propiciam as diversas interpretações
textuais. Basta recordar a atualidade da assertiva de Merleau-Ponty (1989) de que só
encontramos nos textos aquilo que colocamos neles. Ou o vaticínio de Paul de Man
(1988): a literatura, por sua própria natureza, condena o crítico a certa cegueira e só lhe
permite poucos vislumbres.
Ao descortinar as camadas da linguagem, ao investigar o possível sentido
que se produz em cada dobra, o crítico concretiza sua prática do discurso literário
pela leitura. Prática esta também teórica, posto que a ação de interpretar envolve
princípios e conceitos. Da mesma forma, a crítica e a teoria não se isolam da
história literária; são tênues as fronteiras dessas vertentes que se interpenetram
e não podem ser vistas separadamente.
Interessa-me aqui tão-somente mostrar que a questão acerca da leitura – e,
portanto, desta como instância crítica – perpassa grande parte dos ensaios de Benedito
Nunes. Se a dialogação literatura e filosofia é a marca de tal leitura-crítica, é preciso,
no entanto, esclarecer quais os princípios e os limites desse intento.

I. A tensão entre a escrita dos escritores e a leitura dos críticos


Em “Ética e leitura”, um dos títulos de Crivo de papel (1998), por exemplo,
Nunes põe em cena esse assunto ao afirmar que a “prática da leitura seria um
adestramento reflexivo, um exercício de conhecimento do mundo, de nós mesmos
e dos outros”. (NUNES, 1998, p.175) Essa mesma idéia, aliás, é a que responde
à reflexão de George Steiner (1988) se não valeria a pena dispensar a crítica e
deixar vir à tona as “reais presenças” das obras literárias:

Mas como reconhecer essas presenças reais (...), se muitos de nós se omitem ao
dever principal, suporte da ética da literatura, de transmitir aos nossos estudantes
o prazer da leitura dos textos: prazer que, adestrando reflexiva e criticamente a
mente e o coração de quem o experimenta, prolonga-se em descoberta de nós
mesmos e do mundo? (NUNES, 1999a, p.20)

148 da palavra
Na esteira de Ricoeur (1990), de quem absorve o conceito de texto, o ato
de ler, para Nunes, é o movimento especular em que o leitor, ao compreender o
texto, compreende-se a si próprio. Nesta mobilização, a hermenêutica que a
obra do discurso (seja poesia, seja prosa) nos oferece é a da experiência do
mundo do texto, ou do texto transformado em mundo, caracterizado por uma
referência outra, distante da subjetividade do autor.
O crítico-leitor, ao apreender a obra, projeta no seu discurso a prática
dessa linguagem, ponto de encontro da literatura e da filosofia, pois o
pensamento, ao demandar essa linguagem, já se interpretou nela. Como
interpretantes-leitores pode-se dizer que “a literatura pensa, não apenas no
sentido (...) de extrair a Filosofia implícita de certas obras literárias (...), mas,
também, no sentido do efeito anagógico, conversor, propiciado pelo ato de sua
leitura”. (NUNES, 2005, p.303-4)
Sob este ângulo, é possível encontrar, em Nunes, o testemunho de uma
leitura primeva, advinda de imediato do embate com a obra literária, como
quando descreve sua reação ao episódio da morte de Diadorim (ROSA, 1986,
p.529-0):

Até hoje, depois de tantos anos da primeira leitura de Grande Sertão: Veredas, não
posso deixar de emocionar-me nesta passagem. Compartilho o sofrimento do
outro para quem nenhuma consolação, humanamente falando, é possível. E
compreendo a ação do romance, compreendendo-me (juízo) através dela, em
minha condição de sujeito, fadado ao sofrimento. O movimento completou-se
fora do livro, a experiência (estética) do conflito prolongada na experiência de
vida do leitor (Katharsis). (NUNES, 1998, p.184)

Compreender a obra é, assim, tentar alcançar a singularidade de sua


linguagem, perceber que esta é capaz de se abrir em múltiplos sentidos, cuja
interpretação pode transformar o texto em um objeto de juízo estético ou reflexivo.
Por certo, sua leitura crítica não se limita à experiência estética, já que é
próprio desta trabalhar sem conceitos. Há, sim, em um primeiro momento, para
dizer como Coleridge4, uma “suspensão da descrença” (willing suspension of
disbelief). Ou seja, o receptor é enlaçado pelo texto que apresenta algo diferente
da sua expectativa. Ao aceitar capturar-se por inusitados meandros textuais,
passa a incorporar essa nova experiência e amplia seu repertório de conhecimento.
Entretanto, tal conhecimento, advindo do apelo estético, é apenas uma
reação do receptor, um comportamento manifestado diante de um estímulo e,
portanto, ainda não é de fato algo a respeito do qual se possa estabelecer leis.
Em que momento, então, há a passagem da experiência estética à crítica
propriamente dita? Para Benedito Nunes, é quando ocorre uma tensão entre o
texto e o leitor, tensão esta avivada por uma escritura inovadora, criativa, no
limite extremo que exige do crítico-leitor um novo olhar interpretativo, reflexivo:

4
Cf. COLERIDGE, S. T. Bio- Se a experiência do crítico reside na leitura que faz da obra, a experiência do
graphia literaria or biographical
sketches of my literary life and opi- escritor deriva de sua escrita. De uma e de outra experiência, concordante ou
nions. London, New York: J. M. discordantemente, derivam mudanças, ora pacíficas, ora conflitivas, da literatura.
Dent, 1956, p.168-9.

da palavra 149
Os momentos literários mais fecundos, aqueles que fazem história, talvez sejam
os de maior tensão entre a escrita dos escritores e a leitura dos críticos. (NUNES,
2000, p.54)

A resposta a essa passagem, todavia, ainda não esclarece de todo esta


problemática. Como prerrogativa inicial, há de se esclarecer a relação entre a
Estética e a Crítica e de como a leitura de Nunes a respeito delas desemboca na
problemática da confrontação filosófica e artística. Ou antes, deve-se deixar
claro que o crítico paraense se refere à experiência estética em uma dimensão
ontológica, da qual se esboça a leitura hermenêutica empreendida por ele.
Sem me ater a um arrazoado excessivo, é necessário pontuar, entretanto,
essas questões sem perder de vista a contribuição do pensamento de Benedito
Nunes para caracterizá-las. Isto porque, ao acompanhar suas reflexões, estar-
se-á à procura de melhor apreender seus passos.

II. Considerações a respeito da Estética


Em um artigo de 2006, Mario Perniola delineia o conceito de horizonte
estético como aquele composto por quatro tipos de investigação – o belo, a
arte, o conhecimento sensível e a educação – e defende que tal horizonte é
marcado por um dinamismo constante, manifestado por conflitos abertos e
transpassado por tensões e atritos.
Sob este prisma, a situação estética contemporânea pode ser caracterizada
por duas vertentes opostas: uma, mais expansiva, é descrita como “a viragem
cultural da estética” (p.108 – grifo do autor), por meio da qual esta é identificada
com o estudo da cultura. Nessa linha, Perniola destaca o trabalho da estética
cultural de Jakob Burckhardt, do historiador Georg Mosse, dos sociólogos
Plessner e Gehlen, de Umberto Eco, de Watsuji, de Pierre Bourdieu, entre outros.
Em uma segunda tendência, de fragmentação, há uma “desconstrução da
estética”, em que as suas concepções fundamentais perdem sua natureza de
unidade e são “inseparáveis das línguas” (p.115) nas quais são expressas. Como
exemplo, o autor italiano cita o Vocabulaire Européen des Philosophes. Dictionnaire
des Intraduisibles (2004), dirigido por Bárbara Cassin, inspirado no Vocabulário
das Instituições Indo-Européias (1995), de Émile Benveniste.
No livro A estética do século XX (1998), Mario Perniola já havia apresentado
cinco conceitos essenciais no núcleo dos quais se pode traçar contribuições
mais expressivas a esta disciplina: “a vida e a forma”, remetidos a Kant; “o
conhecimento e a ação”, referidos a Hegel; e o “sentir”, aludido a Nietzsche.
Para ele, a estética se move contemporaneamente em decorrência desses
contributos, ainda que haja a expansão e a fragmentação do seu horizonte acima
aludido.
A referência a Mario Perniola tem como finalidade mostrar que, de forma
modelar, a preocupação com a Estética excede os limites de tempo e de espaço
e se torna um interesse teórico em não poucos pensadores.
A contribuição de Benedito Nunes acerca desse assunto tem sido a de
considerar a Estética como Hermenêutica e, portanto, circunscrita em um campo

150 da palavra
reflexivo de enfrentamento e de aproximação com a experiência histórica e
científica. Entendida como filosófica, a Estética “não pode interpretar a arte,
sem interpretar-se de acordo com os pressupostos que lhe fornece o todo da
cultura de que faz parte”. (NUNES, 1993, p.60)
Nesse sentido, o caminho que Nunes tem privilegiado é o do grupo
hermenêutico do pensamento contemporâneo, erigido por Heidegger e acrescido
por Hans George Gadamer e Paul Ricoeur.
Aliás, como explica Benedito Nunes (1975a, p.211), o questionamento
da Estética, como um lugar pertinente ao saber ocidental,

é hoje um questionamento essencial paralelamente ao da própria Metafísica.


Questionar a estética é de fato questionar a primazia gnoseológica do sujeito
implantado com o moderno regime do saber, sob a vigência do cogito cartesiano.
Seria também questionar os conceitos fundamentais e correlatos de matéria,
forma, eidos, substância, e até mesmo o de tekne. (grifos do autor)

Para o professor paraense, em uma noção mais ampla, o pensamento


estético compreende duas espécies. A primeira, a Estética, é definida como um
domínio discursivo, por excelência especulativo, que pesquisa o fenômeno da
arte em suas implicações gerais, cuja autonomia “não é outra senão a da própria
indagação filosófica, levando para essa esfera o teor problematizante da
reflexividade que a caracteriza”. (NUNES, 1978, p.85)
A segunda, a Crítica, é um discurso hermenêutico e analítico, que interpreta
as produções artísticas em particular. Sua prática é legitimada por métodos que
utiliza, exigidos que são pelo caráter contingente das obras.
Como complementa Cesare Segre (1974, p.45-6), o estudioso da Estética
é capaz de escalar livremente a Torre de Babel da Arte; já o crítico se vê forçado
a reconstruir, pedaço por pedaço, o complexo fenômeno artístico.
Segundo Nunes, os dois discursos se integram: o crítico ao buscar
fundamentos no discurso da Estética e este ao utilizá-lo como meio de
especulação teórica. O primeiro adentra o campo da Estética quando generaliza
sobre o Belo ou a natureza da Arte; ao passo que o Filósofo da Arte, ao considerar
as propriedades singulares de uma obra, torna-se crítico.
Essa inter-relação acontece “sem prejuízo do alcance excedentário da
Filosofia”, da qual a Estética é uma extensão. Ao assentar o foco reflexivo
sobre o fenômeno artístico, a Filosofia “desata, em função dele, a cadeia das
questões gnosiológicas e ontológicas fundamentais”. (NUNES, 1978, p.86)
Desse modo, as diferentes perspectivas com relação ao poético garantem
à crítica uma natureza cujo princípio é, mais do que estabelecer regras, ser
entendida como um instrumento para o pensar. Mesmo sem uma postura
normativa, o crítico, todavia, pode utilizar-se de conceitos. Tais conceitos,
porém, são destituídos de um traço regulador do objeto:

Na crítica de arte e de literatura, o conceito se torna a ferramenta para o pensar;


algo, por definição, plástico e modificável de acordo com o objeto singular que
analisa, com sua posição no espaço e no tempo. Nesse sentido, poder-se-ia mesmo

da palavra 151
dizer que a crítica, porque sabe que nunca está pronta para ser aplicada, apresenta
tão-só o limite a que cada crítico aspira. Não há propriamente críticos, mas sim
aqueles que se aproximam, ora mais, ora menos, do horizonte do pensar que os
justifica. (COSTA LIMA, 2000, p.17)

O pensar que justifica a crítica de Benedito Nunes está no senso de


acuidade de sua função crítica. Isto é, da sua consciência em querer ultrapassar
a experiência estética suscitada pela obra.
Para ele, sob o efeito de encanto que lhe proporcionou a “suspensão”,
após a percepção estética, ocorre uma Katharsis, na acepção de Jauss (1979,
p.81): aquela que libera o “espectador dos interesses práticos e das implicações
de seu cotidiano, a fim de levá-lo, através do prazer de si no prazer do outro,
para a liberdade estética de sua capacidade de julgar”.
A experiência estética a que Nunes se refere liga-se a uma dimensão
ontológica; isto é, são estéticas, como a de Sartre e a de Merleau-Ponty, ainda
que com sensíveis diferenças, que “integram a experiência estética à estrutura
da subjetividade humana, e realçam, sobretudo a de Merleau-Ponty, o papel que
as obras de arte, particularmente as literárias e pictóricas, desempenham no
desvendamento do real”. (NUNES, 1993, p.61)
Na citação acima, o realce da estética merleau-pontyana tem uma razão
particular: é que, a partir da obra Signes (1960), o filósofo francês muda de uma
perspectiva fenomenológica para uma investigação ontológica.
Para Merleau-Ponty, a ontologia é concebida como região pré-reflexiva,
“selvagem e bruta, de onde emergem as categorias reflexivas”. A filosofia
necessita regressar às origens da própria reflexão e desvendar seu solo anterior à
tarefa reflexiva e responsável por ela. “Essa região é o ‘logos do mundo estético’,
isto é, do mundo sensível, unidade indivisa do corpo e das coisas, unidade que
desconhece a ruptura reflexiva entre sujeito e objeto”. (CHAUÍ In: MERLEAU-
PONTY, 1989, p.VIII) No entanto, as reflexões nascidas nessa região carregam
um dinamismo e um simbolismo próprios, que progridem historicamente e
constituem a região do “logos do mundo cultural”, ou seja, “da prática inter-
humana mediada pelo trabalho e, portanto, pelas relações sociais e pelas coisas
aí produzidas”. (idem)
As ideias e conceitos que Merleau-Ponty desenvolve a respeito da
dimensão ontológica da Arte e da palavra poética tem, para Nunes, um significado
preciso: é um dos embasamentos reflexivos que ele incorpora ao seu discurso
para aproximar a descrição filosófica do dizer poético. Para o autor de Le visible
et l’invisible (1964), a existência da obra de arte ocorre como uma maneira de ver
ou de dizer o mundo. A experiência estética que se inicia, provocada por essa
obra de arte, suspende a realidade, mas depois a ela faz voltar; volta essa, no
entanto, já transformada pela vista e pela linguagem do mundo.
É preciso esclarecer, entretanto, que a experiência estética não ocorre
apenas na recepção da obra de arte. O autor do texto também é capaz de ir além
dos limites da escritura. Ou melhor, trabalhar de tal forma a linguagem a ponto
de romper com as fronteiras da sua própria exigência pessoal.

152 da palavra
De tal ruptura da linguagem, do desconforto/tensão que ela gera, a
experiência estética pode provocar uma nova visão ao crítico: ao aceitar o desafio,
ele se reconhece no jogo da linguagem5, que a obra lhe proporciona.
É somente nesse impasse que há a passagem da experiência estética para a
crítica. De qual crítica? Daquela que torna presente uma nova dimensão da poíesis,
que sabe distanciar-se do discurso da arte, para não se confundir com ele.

III. Considerações a respeito da Crítica


Em um sentido amplo, a característica da crítica contemporânea6 revela-
se como um novo gênero análogo à obra que analisa, isto é, um discurso crítico
tão poético-ficcional quanto o texto que lhe serviu como base de exame. Em
resposta a uma literatura que se interroga enquanto linguagem, que possui em si
a metalinguagem, a crítica torna-se, ela mesma, inventiva.
Nesta perspectiva, Gerd Bornheim (2000, p.44) vislumbra o paradoxo
em que essa vive: se a obra de arte já não se reduz à condição de um objeto, à
mercê de um resultado analítico, o exercício crítico torna-se autônomo, “a
concorrer de certo modo com a criatividade da própria arte”. Se a literatura põe
em questão o seu sentido e a sua forma, a investigação já não pode operar
apenas como função avaliativa, julgadora, mas ser também, leitura e escrita.
Por outro lado, é interessante lembrar que Afrânio Coutinho (1978, p.92)
questiona esta posição, pois, para ele, a crítica é uma

atividade reflexiva, a matéria-prima sobre que atua é a literatura, o fenômeno


literário, expresso pelos diversos gêneros. Por isso que ela incide sua mirada
indagadora sobre os gêneros, deduziu-se abusivamente que ela é também gênero.
Como se a ciência que estuda as flores com elas se confundisse. A crítica literária
tem por meta o estudo da literatura, dos gêneros, mas não é um deles.

Ao propor uma autonomia do ato crítico, defende um método científico,


de rigor reflexivo e intelectual na produção crítica.
5
A expressão “jogo da lin- Já Luiz Costa Lima (1980, p.113-114) indica uma ênfase na relação obra/
guagem” refere-se ao termo leitor como estímulo para um imergir na historicidade do objeto literário, pois
usado por Wittgenstein nas
Investigações filosóficas. Coleção pleiteia a “não-transparência entre experiência estética e juízo sobre o poético”.
Pensadores. Trad. José Carlos
Bruni. São Paulo: Nova Cultu-
Isto é, visa ao desenvolvimento de uma atividade crítica capaz de mostrar a
ral,1989. lógica de um objeto experimentado como estético, sem recorrer a um discurso
6
O adjetivo contemporâneo,
ou melhor, o conceito de con- de cunho científico ou ficcional:
temporaneidade, tem suscita-
do impasses e polêmicas. No
entanto, parece-me que João A única maneira, em síntese, que encontro de justificar a função do crítico consiste
Alexandre Barbosa (1990, p.68) em convertê-la em função crítica, qualquer que seja o meio, universitário ou
responde bem a esta questão
ao discutir a evolução da críti- jornalístico, onde se exerça. E isso contra os irracionalismos, seja o dos cientistas
ca literária não em um senti- (...) seja o dos humanistas, que parecem pensar que, mais do que ideia, o homem
do cronológico, como indi-
cado por Alceu Amoroso é emoção. Contra eles, porque ambos terminam por justificar os regimes “de
Lima (1959), nem como a sín- segurança” e as ditaduras “benfeitoras”.
tese realizada por Wilson Mar-
tins (2002), mas como marca-
da pela tensão entre análise De qualquer forma, os posicionamentos divergentes sobre a crítica, aqui
formal e interpretação histó-
rica. apenas esboçados, apontam para as diferentes abordagens que ela suscita.

da palavra 153
Benedito Nunes escreveu, especialmente, sobre o período dos anos 50, tanto
no texto “Ocaso da literatura ou falência da crítica?” (1999a) quanto em “Crítica
literária no Brasil, ontem e hoje” (2000), e citou, como exemplo, o Segundo
Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, em 1961, realizado pela
Faculdade de Filosofia e Letras de Assis, palco de exposições das diferentes
correntes que vigoravam entre nós.
Como lembrou o professor paraense, a década de 50 é um

novo momento de tensão entre a leitura crítica (...) enriquecida com a atividade
de poetas-críticos – Mário Faustino, Décio Pignatari, Augusto de Campos,
Haroldo de Campos, Ferreira Gullar e Mário Chamie – e a escrita dos escritores,
abalada e fecundada com a publicação de Grande sertão: veredas (1956), de
Guimarães Rosa, Duas águas (1956), de João Cabral de Melo Neto, e Laços de
família (1960), de Clarice Lispector. (2000, p.61)

Da mesma forma, João Alexandre Barbosa (1990, p.69), no texto “Forma


e história na crítica brasileira de 1870-1950”, situou este período como de
ruptura, localizado, segundo ele,
na transferência do eixo interpretativo para o eixo analítico (...) correlata à própria
evolução verificada na criação de uma literatura, seja na ficção, seja na poesia, que
criava a necessidade de uma tal ruptura. Neste sentido, há extrema coerência naquilo
que se produz e publica no Brasil nos anos cinquenta; de um lado, por exemplo,
estão as obras de João Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto que passam a
exigir da crítica, tanto na prosa da ficção quanto na poesia (e é do mesmo ano, 1956,
o aparecimento de Grande sertão: veredas e Duas águas) mecanismos de apreensão
mais refinados analiticamente para que a interpretação possa ser mais do que
tautológica; e, de outro, está a defesa e ilustração de uma crítica sob a influência quer
do close reading – técnica de esmiuçamento textual fornecida pelo New Criticism
anglo-americano – quer, da estilística, seja a de origem germânica, em que sobressaem
os ensaios de Leo Spitzer, Vossler ou Auerbach, seja a espanhola de Dámaso Alonso,
Amado Alonso ou Carlos Bousoño.
Sem dúvida, esta década fundamentou a fase áurea da nossa crítica,
veiculada, principalmente, pelo jornal, meio de que se serviu o exercício reflexivo
desde as primeiras manifestações nos oitocentos.
A crítica jornalística, na qual, como se sabe, Nunes se iniciou, permite
revisitar as variadas linhas de recepção que marcaram e, ainda hoje, marcam, a
leitura dos textos literários. São tendências modelares de uma tradição analítica
que, grosso modo, podem ser divididas em: a) ensaios, cuja relação com o literário
é mais cientificista, preso a normas; b) outras que operam com uma visão mais
criativa, ao privilegiar um olhar mais acurado para a natureza do poético e na
busca de uma linguagem investigativa própria; e c) críticas que tentam alcançar
um discurso único, nem cientificista nem ficcionista.
É nesse sentido que caminham obras pontuais sobre o ofício crítico,
caracterizadas por retratarem diferentes olhares literários. Da mesma forma,
pode-se falar em métodos de interpretação que implicam, como afirma João
Alexandre Barbosa (1980, p.20), “rigor na disposição do aprendizado crítico

154 da palavra
inserto em sua análise, não surgindo a todo o momento, como os andaimes não
surgem para sempre nos edifícios terminados”. Métodos como “filtros
fotográficos” (SEGRE, 1974, p.17) cuja função pode ser a de acentuar ou a de
atenuar o objeto fotografado.
Com relação a esse tema, aliás, Haroldo de Campos, em texto sobre Luiz
Costa Lima7, observou que a importância de se compreender o que é a crítica,
por parte do leitor, e deste conseguir discernir sobre a escolha teórica do autor
e do uso de seus métodos, torna o ato de ler mais favorável, “uma vez que a
eleição do método (da meta-linguagem) não é inocente, mas, ao invés, afeta o
recorte e a interpretação das produções literárias que constituem a linguagem-
objeto submetida ao crivo do analista”.
Para Benedito Nunes (2000, p.62), seja qual for a atividade judicativa, a
maneira do fazer crítico se move sempre filosoficamente: “não há crítica sem
perspectiva filosófica: a compreensão literária, ato do sujeito, implica uma forma
singular de conhecimento, logicamente escudado e constituído pelo método
próprio de que se utiliza”.
A tarefa hermenêutica a que se propõe tem como principal atividade uma
dinâmica de interpretação cujo deslocamento se apresenta na confluência entre
aquilo que a obra revela e a nossa apreensão do seu sentido. Neste caminho, o
método hermenêutico fundamenta-se no transitar dessa dualidade, possível
apenas na “abertura” da obra à profundidade interpretativa, isto é, “abertura”
7
CAMPOS, Haroldo. “O lu- do sujeito manifestada pela inquietude da arte, razão do movimento e do
gar de Luiz Costa Lima”. In:
LIMA, Luiz Costa. Vida e mi- encontro hermenêutico.
mesis. São Paulo: Ed.34, A leitura do crítico seria, então, um caminho entre o ressaltar do gênero
p.9-13.
8
A palavra “imagem” substi- poético, sem que a sua própria escritura se transforme em poética, e um modo
tui, por vezes, o termo “metá-
fora” quando se quer destacar de pensar a respeito da obra, sem ser uma análise cientificista. Por isso, Costa
o seu aspecto “plástico”. Cf. Lima (2000, p.17) afirma que o crítico não tem um lugar definido.
CARONE, Modesto. Metáfora
e montagem. São Paulo: Perspec- O leitor, portanto, ao buscar as análises produzidas, procuraria saber como
tiva, 1974, p.12. o crítico fundamentou sua investigação e não, simplesmente, saber o que ele
9
Embora “a tal ponto a ima-
gem está hoje introjetada na compreendeu de certos textos. Desse modo, o receptor tem sua criticidade
palavra poética que a mera
menção do tema – palavra e
desenvolvida e pode, ocasionalmente, contrapor ou ir além do juízo do analista.
imagem – parece conduzir o Se na leitura que Benedito Nunes empreende do poético aparece o uso de
pensamento inexoravelmente
para a poesia” (SANTAELLA imagens8, isto não significa que a sua escritura se torne poética. Há de se ter
& NÖTH, 1998, p.71); o nosso cuidado: a imagem não é característica intrínseca do poético9, assim como, definir
discurso verbal, independen-
te do poético, é permeado de o que é poético ou não, como vimos, depende da maneira como cada época
imagens. Cf. SANTAELLA, considera e valoriza a arte10.
Lúcia & NÖTH, Winfried.
Imagem – cognição, semiótica, mí- No passado, a estética “pré-existia à ação criadora e impunha-se a ela, ao
dia. São Paulo: Iluminuras, passo que agora as inquietações estéticas são por assim dizer compostas
1998.
10
Para Leyla Perrone-Moisés juntamente com a elaboração da obra.” (BORNHEIM, 1993, p.54) Isto
(1978, p.65-6): “a fronteira en-
tre a obra poética e a obra crí-
expressa que a linguagem da arte, unida à criação estética, exige do crítico
tica continua estável até nos- profundas mudanças para que ele possa acompanhar os processos de
sos dias. Isto porque a distin-
ção entre os dois tipos de obra desenvolvimento pelos quais passou a composição artística.
é mais do que uma simples Acompanhar não significa romper a divisa entre a crítica e a obra de arte.
distinção genérica. A crítica
não é nem literatura, nem não- Acompanhar significa, para Benedito Nunes (2005, p.305), deixar que a arte
literatura; é uma espécie de fale, não a crítica, pois “quando a Filosofia e as Ciências se calam, é sempre a
paraliteratura, quase diríamos
uma pária-literatura”. poesia que diz a última palavra”.

da palavra 155
Como crítico hermenêutico, como autor que traz no seu discurso uma relação
dialogal com o modus operandi da Filosofia Hermenêutica, Nunes (1993, p.198)
reconhece que deve evitar duas falácias: a primeira, “é a falácia da transposição
de uma dada filosofia, aplicada, de maneira absorvente, ao entendimento do
texto literário que passa a ilustrá-la”. A segunda, achar que as diversas
metodologias que existem para análise dos textos literários dão conta da leitura
do objeto literário:
Linguística, Sociologia, História, Psicologia ou Psicanálise – qualquer desses campos
metodológicos pode ser requerido para a compreensão da obra, e nenhum
deles, por mais que necessário seja, é suficiente no cumprimento desse fim. A
exigência filosófica de verdade impõe, dessa forma, como princípio do discurso
do método, em caráter permanente, a cauta admissão das ciências humanas, em
estado de simpósio: cada qual é capaz de iluminar a obra, e nenhuma, por si só,
traz a completa chave de sua decifração. Filosoficamente, o objeto literário
permanece inesgotável.
Sua crítica, portanto, advinda da tensão provocada pela linguagem literária,
empenha-se na construção de um discurso reflexivo que, ao pôr em relevo o
literário, ao pensar acerca dele, abre-se para a discussão. Tanto quanto a sua
leitura da obra literária, a leitura suscitada pela sua crítica leva o leitor a um
questionar do texto artístico, do texto crítico, em um “exercício de conhecimento
do mundo, de nós mesmos e dos outros”. (NUNES, 1998, p.175)

IV. O intérprete hermenêutico


O texto de Nunes – “O trabalho da interpretação e a figura do intérprete
na literatura” (1986) – permite apresentar sucintamente algumas de suas reflexões
sobre a atividade de crítico.
Com o objetivo de comentar a exposição de Alfredo Bosi, denominada
“A interpretação da obra literária” (1986), ocorrida na 2ª Bienal Nestlé de
Literatura11, Nunes parte de uma questão primeira e essencial: por que interpretar?
Esta pergunta, no entanto, nos diz ele, transporta-nos para um problema maior:
a relação opaca entre significação e linguagem; isto é, o contato indireto e
arbitrário que, como se sabe, ocorre entre palavra e coisa.
A interpretação surge, assim, como resposta imprescindível “à contingência
do caráter simbólico da linguagem”. (NUNES, 1986, p.74) Coextensiva a este
preceito, a Hermenêutica, como exegese textual, move-se na busca de aclarar o
possível sentido atado à escrita.
Conforme Benedito Nunes, para que haja uma boa análise literária é preciso
que o intérprete se movimente dentro do círculo hermenêutico, com base em
uma leitura prospectiva que o faça apreender retrospectivamente o processo
formativo da obra.
Neste sentido, descreve a problemática que se desenha ao adotar este 11
Cf. PROENÇA FILHO,
ângulo de análise: 1. o confronto do intérprete com o texto, desdobrado em três Domício (org.). Literatura bra-
sileira: ensaios – criação, in-
questões: técnica, histórica e estética e 2. a completude dessa prática, isto é, a terpretação e leitura do texto
verificação da correspondência significativa interna da obra à característica literário. Vol.II. 2ª Bienal Nes-
tlé de Literatura Brasileira. São
histórica da qual deriva e na qual se reintroduz como produto cultural. Paulo: Norte, 1986.

156 da palavra
A questão técnica refere-se ao procedimento hermenêutico da
interpretação, o deslocamento da parte para o todo e do todo para a parte. Para
que isto se efetue, no entanto, é preciso que o crítico já tenha uma pré-
compreensão do texto. À medida que a interpretação se torna mais profunda, a
concepção prévia, advinda da primeira leitura, altera-se. Isto porque, a
“tendência da interpretação é aliviar as projeções do próprio intérprete para que
ele se conforme àquilo que Gadamer chama de a ‘coisa’ do texto – a ‘coisa’ que
o texto pode dizer, em diferentes situações, para diferentes leitores-intérpretes”.
(NUNES, 1986, p.96)
É no diálogo estabelecido entre o hermeneuta e o texto, no intercurso
dialético tal qual a lógica da pergunta e da resposta gadameriana12, que o trabalho
interpretativo delineia sua forma: o intérprete questiona o texto, mas é por ele
também questionado.
Como expôs Foucault, em Nietzsche, Freud e Marx (1967), na hermenêutica
moderna, fundada por estes autores13, o ato interpretativo, ao envolver o próprio
intérprete, tende a alongar-se ilimitadamente, à ausência de um fundamento
último. Em razão disto, o intérprete, ao realizar esse ato, ao mesmo tempo em
que interpreta o texto, se interpreta.
Na poesia de João Cabral de Melo Neto, por exemplo, Nunes nos lembra
que as palavras “pedra”, “secura”, “deserto”, temáticas integrantes da poética
cabralina, oferecem uma probabilidade de primeira leitura, já que o trabalho
interpretativo tenta rastrear esses temas a fim de ajustar, em um embate dialógico,
as imagens, as analogias, os enunciados lógicos à perspectiva do lirismo de Cabral.
Contudo, a interrogação do texto só acontece se houver um vínculo deste com
o hermeneuta capaz de determinar a interpelação. No poeta pernambucano, em
particular, e em outros autores do modernismo, em geral, o crítico Nunes aponta
esse liame em razão da nova construção do fazer literário impresso por eles, o
que exigiu uma posição também inovadora da crítica.
A prática de uma compreensão antecipada supõe observar que, apesar da
distância temporal, o sentido preliminar de um texto encontra-se presente nele
próprio, como veículo transmissor da tradição, como fonte de elemento comum
do discurso e do experimento linguístico da representação da fala fixada na
escrita, o que desencadeia uma leitura comparativa à situação atual.
A essa questão histórica do exercício interpretativo, o professor paraense
exemplifica-a ao comentar a tragédia Édipo Rei, de Sófocles: “o sentido do texto
é sempre o mesmo, pois que a ele retorno pela leitura, e sempre diferente, pois
12
Cf. GADAMER, Hans-G. que se desencobre ao encontro de minha situação, nos limites da perspectiva
Verdade e Método. 4ª ed. Trad.
Flávio Paulo Meurer. Rio de
cultural e histórica que ela me impõe, e que me possibilita compreendê-lo”.
Janeiro: Vozes, 2002, p.544-556. (NUNES, 1986, p.78)
13
Benedito Nunes, em Crivo
de papel (1998, p.88), ao comen- Neste contexto, a compreensão é produtiva, porquanto imponho à
tar este texto de Foucault, dialética da pergunta e da resposta, em favor de minha própria historicidade, a
acrescenta o filósofo Heide-
gger ao lado de Nietzsche, interpretação como meio de descobrir o sentido do texto. Todavia, a ligação da
Freud e Marx, já que em Sein
und Zeit (1927) a questão da obra ao hermeneuta não se abre apenas mediante a consciência histórica. Para
interpretação aparece como o
problema maior do pensa-
uma abertura do caminho hermenêutico é necessário ressalvar a questão estética,
mento. correspondente à questão histórica, mas sem um grau de primazia de uma em

da palavra 157
relação à outra. A função estética, de cunho perceptual ou sensível, mobiliza os
planos imaginativos e conceituais, que garantem o ingresso e o transporte do
sentido nas obras literárias.
A experiência estética, segundo Jauss (1979, p.46), não nasce da
compreensão e interpretação do significado de uma obra ou pela reorganização
do objetivo de seu autor. A experiência primeira de uma obra de arte efetua-se
na reciprocidade com seu efeito estético: o fruir desinteressado suscita um novo
interesse, que reprojeta a imaginação e movimenta a compreensão dos textos.
Tal resultado possibilita ao receptor/intérprete observar a significação do mundo
e da realidade circunscrita pela interpretação.
Neste aspecto, a relevância estética é a “relevância da forma como forma
simbólica e o assinalamento do modo de existência da obra literária como
discurso ficcional. A prática interpretativa não pode desaperceber-se do caráter
ficto daquilo que compreende”. (NUNES, 1986, p.79)
Essa prática, envolta em uma completude cognoscitiva, anteriormente
referida, aponta para a incongruência que parece existir entre o objeto ficcional
do discurso literário e a suposta ligação com o real de suas enunciações.
No debate a esta questão, Benedito Nunes acompanha as reflexões
desenvolvidas por Ricoeur em “A função Hermenêutica do Distanciamento”,
constante de Interpretação e Ideologias. (1990, p.43-59)
Aliás, embora Nunes reconheça ter com Heidegger maior afinidade14, é
com o filósofo francês que o arcabouço do crítico literário se faz mais próximo.
No ensaio referido acima, Ricoeur propõe encontrar uma solução para a
antinomia defendida por Gadamer entre distanciamento alienante e experiência
de pertença, discutidas nas três esferas da experiência hermenêutica, em Wahrheit
und Methode (1960): estética, histórica e da linguagem.
Por distanciamento alienante entende-se a postura com base na qual é
plausível a objetivação que impera nas ciências do espírito ou ciências humanas.
Tal distanciamento, no entanto, ao se determinar o estatuto científico das ciências
é, ao mesmo tempo, a destruição da relação essencial que nos faz pertencer e
participar da realidade histórica da qual pretendemos construir em objeto. Neste
sentido, ocorre a escolha subjacente ao título gadameriano, Verdade e Método: ou
“praticamos a atitude metodológica, mas perdemos a densidade ontológica da
realidade estudada, ou então praticamos a atitude de verdade, e somos forçados
a renunciar à objetividade das ciências humanas”. (RICOEUR, 1990, p.43)
Ricoeur recusa esta alternativa e propõe ultrapassá-la ao introduzir a ideia
de texto; para ele, uma noção positiva e produtora do distanciamento. O texto
se define, dessa forma, como um paradigma do distanciamento na comunicação
e revelador da própria historicidade da experiência humana, isto é, uma
comunicação na e pela distância.
Sob este enfoque, cinco critérios, conjuntamente, constituem a
textualidade: a efetuação da linguagem como discurso; a efetuação do discurso
como obra estruturada; a relação da fala com a escrita no discurso e nas obras
de discurso; a obra de discurso como projeção de um mundo; e o discurso e a
obra de discurso como mediação da compreensão de si. (Cf. RICOEUR, 14
Cf. “Meu caminho na críti-
1990, p.44) ca” (2005, p.300), por exem-
plo.

158 da palavra
Benedito Nunes compartilha dessas mesmas características formadoras
dos pressupostos da hermenêutica ricoeuriana. Porém, ao afirmar que Benedito
Nunes se inscreve como intérprete hermenêutico, cumpre esclarecer quais as
implicações desta atitude nas suas análises. Ou melhor: como se realiza a sua
leitura hermenêutica?

V. O procedimento crítico
Especificamente na reflexão já citada “O trabalho da interpretação e a
figura do intérprete na literatura” (1986), Benedito Nunes centra a exposição
na dimensão referencial da obra de ficção e de poesia, interessado em que está
em responder o problema, antes referido, da relação significativa interna entre a
obra e o real.
O discurso tem a pretensão de representar o real; a escrita tenta distanciar-
se dele ou desrealizá-lo. Pelo discurso, a linguagem projeta a forma de um
mundo; pela escrita, a enunciação do discurso introduz-se no aspecto fictício
de representação. Contudo, não há discurso “de tal forma fictício que não vá ao
encontro da realidade, embora em outro nível, mais fundamental que aquele
que atinge o discurso descritivo, constatativo, didático, que chamamos de
linguagem ordinária”. (RICOEUR, 1990, p.56)
É no jogo dialético entre discurso e escrita no processo de estruturação
da obra, que os textos literários efetuam uma nova espécie de referencialidade
capaz de apontar para o ser-no-mundo inscrito diante do texto.
Deste modo, interpretar uma obra é descortinar o mundo a que ela se
refere, o mundo que se abre por meio da linguagem para os mecanismos gerais
da existência humana, “tais como a tonalidade afetiva ou disposição anímica, a
apropriação projetiva do mundo e a intersubjetividade”. (NUNES, 1986, p. 81)
Tais mecanismos possibilitam a circulação da vida cultural e histórica no
texto; circulação de mundo projetado na obra, do qual o leitor interage, posto
que o texto só se transforma em obra no intercâmbio com este.
Estas breves observações retomam o limiar da pergunta formulada no
item anterior: como Nunes realiza a sua leitura hermenêutica? Realiza-a quando
procura a verdade da obra15 impressa como ficção; quando examina seu modus
operandi, o seu como, revelador dessa verdade.
Realiza-a quando traduz para o discurso reflexivo o discurso dos textos
literários, os sinais de natureza humana que eles carregam, manifestações de
nós próprios e do mundo.
Esta tradução transforma o hermeneuta em “copartícipe da criação poética
e do conhecimento teórico, a meio caminho das ciências humanas e da poesia –
se é que ele também não está entre a poesia e a filosofia”. (NUNES, 1986, p.81)
Poesia e Filosofia são os dois campos em que se move, como já se assinalou,
15
Cf. BENJAMIN, Walter.
a crítica literária de Benedito Nunes. Crítica esta que perfaz, pelo ensaio, pelo
“Les affinités électives” de mergulho além da superfície textual, o caminho hermenêutico. Tal caminho
Goethe. In: Oeuvres I – Mythe et
violence. Paris: Les Lettres Nou- aspira percorrer o duplo trabalho da hermenêutica pretendida por Ricoeur (1990,
velles, Denoël, 1971, p.161-260.

da palavra 159
p.43): desdobrar a dinâmica interna do texto e restaurar o poder de a obra se
projetar para fora na representação de um mundo habitado por nós.

VI. Literatura e Filosofia


A questão que Nunes se coloca diante dessas disciplinas abrange, antes
de tudo, um repensar sobre o lugar da Literatura e da Filosofia dentro das Ciências
Humanas. Tal debate já se iniciara desde a crise da metafísica – colocada em
foco pela primeira vez na Crítica da Razão Pura (1781), de Kant, – e do
“aparecimento da Literatura” como linguagem singular, a qual se refere Foucault
em Les mots et les choses (1966), ao comentar a organização das ciências humanas.
De fato, o que as aproxima é que, ambas, são obras de linguagem. Existem,
portanto, apenas no modo operativo e poético, na acepção da palavra grega
poiesis. No entanto, como obras de linguagem colocadas em ação, possibilitam
distinguir o real para além do fenômeno imediato, empírico.
Na prática de leitura de Benedito Nunes, essas linguagens se
intercomunicam e se enobrecem mutuamente: ingressa o poético na filosofia e
ingressa o filosófico na poesia, mas sem igualar-se, sem perderem seus traços
intrínsecos. Pode-se dizer que os limites entre a filosofia e a literatura são porosos,
mas a filosofia não tem a última palavra.
Esse intercâmbio, não obstante, tem precedentes históricos e culturais
que remontam à Antiguidade, marcados por confrontos e polêmicas. No texto
“Filosofia e Literatura”, constante em No tempo do niilismo e outros ensaios (1993),
por exemplo, Nunes rememora a tradição desse diálogo, o que seria ocioso
recapitular aqui.
No entanto, é preciso ressaltar a importância da Fenomenologia, em que,
segundo ele, os laços da Filosofia e da Literatura se estreitam com mais vigor,
em razão da intencionalidade que, ao deslocar a Filosofia para o campo da
existência individual, também a deslocou para o da experiência literária e
artística.
Dessa intencionalidade, ou da natureza que dela derivou, é marcante no
pensamento do crítico paraense a chamada prática meditante em Heidegger; a
função desrealizante da consciência em Sartre; e a experiência perceptiva do
mundo em Merleau-Ponty.
De qualquer modo, a poesia põe em relevo o tom indagador, no momento
mesmo que a filosofia também caminha em direção ao poético. É desta forma
que, lembra Nunes (1999a), autores como Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke,
Paul Valéry buscam, no registro filosófico, a investigação do sentido da linguagem.
Igualmente, filósofos como Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Gaston Bachelard,
Michel Foucault, Paul Ricoeur aprendem, com os poetas, os limites da palavra
e a aporia do discurso.
Se, nessa ligação recíproca, a Filosofia utiliza a obra literária como tal
objeto de sua indagação, a obra literária, por outro lado, “reverte sobre a Filosofia,
da qual, ela, obra, se faz, como poética, a instância concreta, reveladora (ou
desveladora) das originariamente abstratas indagações filosóficas”. (NUNES,
2005, p.295)

160 da palavra
A Literatura sugere um método; a Filosofia pode corroborá-lo ou não,
assim como a obra estudada igualmente pode oferecer uma luz ao filosófico:

A literatura é objeto de conhecimento filosófico porque é uma forma simbólica,


porque há um domínio do simbólico, a que se atém o pensamento – ponto de
convergência e de divergência da filosofia com a linguagem: o domínio do sentido
das proposições, tal como especificado por Gilles Deleuze, em sua Logique du
Sens”. (NUNES, 2002, p.204)

Neste sentido, uma possível Ciência da Literatura só poderia ser


estabelecida quando da “competência” da Filosofia em lidar diretamente com o
poético, da poiesis, da Dichtung intrínseca às formações verbais.
Por certo, o diálogo da Literatura com a Filosofia só se efetua no plano da
Crítica, no entendimento interpretativo das obras. A Filosofia responsável por
esse diálogo é a Filosofia Hermenêutica, a qual, por sua vez, “já opera com a
noção de texto, que toma por pressuposto”. (NUNES, 1993, p.197)
Todavia, nesse caminho, há de se evitar o risco da dependência da obra à
perspectiva hermenêutica do método filosófico, ou do risco, segundo Wellek &
Warren (2003, p.138), de se converter o texto literário em um “tratado filosófico”.
Para Nunes (2002), refletir filosoficamente é assentar o foco da
interpretação em um interesse interdisciplinar, uma vez que a filosofia se
compreende como um discurso sobre outros discursos, para os quais também
colabora com as suas considerações. A abordagem filosófica de uma obra literária,
entendida como forma, pode ser investigada, assim, sob três ângulos: a) a
linguagem; b) as vinculações da obra com as linhas do pensamento histórico-
filosófico; c) “a instância de questionamento que a forma representa, em função de
ideias problemáticas, isto é, de ideias que são problemas do e para o pensamento”.
(p.205, grifos do autor)

VII. Um exemplo de leitura crítica


Estes aspectos foram estudados, por exemplo, em Grande sertão: veredas,
de Guimarães Rosa, em texto apresentado na conferência Literatura-Filosofia,
no II Encontro Nacional de Professores de Literatura na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, em 1975, – publicado, depois, no Caderno 28 da
PUC/RJ, em 1976. O mesmo ensaio consta do livro Teoria da literatura em suas
fontes, vol.1, com organização de Luiz Costa Lima – cuja primeira edição é de
1975 – e serviu também como ilustração em “Meu caminho na crítica” (2005),
quando Nunes se referiu ao romance roseano.
Ao seguir sucessivamente as três perspectivas citadas acima, Benedito
Nunes mostrou que é possível ler a obra de Rosa, ao mesmo tempo, como
Literatura e como Filosofia – relações que se enfatizam pela História. Tal História
(e a temporalidade nela grafada) é revelada pelas formas de linguagem, as “formas
simples” – examinadas por André Jolles –, anteriores à “história da literatura,
mas nela incidindo, na medida em que serviram de suporte ao desenvolvimento
das eruditas”. (NUNES, 2002, p.206) A Lenda, a Saga, o Mito e a adivinhação

da palavra 161
(Charada ou Enigma), o Caso e a Sentença, o Conto e o Memorial são criados,
fabricados e interpretados pela cultura. Não obstante, “tudo o que é criado,
fabricado e interpretado é denominado pela linguagem” (p.206) – linguagem
que, segundo Heidegger, é o alicerce da historicidade.
No “romance polimórfico” de Guimarães Rosa, encontramos na forma o
caso, a adivinha ou enigma e a sentença. Presentes no tecido narrativo, pontuam
“dúvidas” filosóficas, como o mito do pacto com o Demônio, “que cria, entre
pergunta e resposta, um objeto de conhecimento absoluto”. (p.208) Esse mito
modula a textura épica do romance, “do ciclo de aventuras narradas” e é
“indissociável da indagação sobre a existência do Demônio, do mal em si, e de
seu oposto, Deus – contraponto a que incessantemente se retorna”. (p.210)
Na urdidura da narração, os elementos épicos e míticos da linguagem
encontram pontos de articulação com “determinadas linhas do pensamento
histórico-filosófico”. (p.212) Desse diálogo, a reflexividade da narração, do
discurso, entretece metáforas, “que são topoi do pensamento”, disseminadas
em um discurso pontuado por traços conceituais de Heráclito, Agostinho, Plotino
e a tradição hermética. Todavia,
nem uma das linhas do pensamento histórico-filosófico – a neoplatônica, a
agostiniana, a heraclitiana, e até mesmo a gnóstica, que nos pode sugerir a ideia
da alma absoluta -, nem uma dessas linhas, que se entrançam à reflexividade
tensa, enfaixa a perspectiva do narrador e do romance, reaberta a cada passo
pelo dinamismo e pela mutabilidade da própria narração. (p.213)
A reflexão de Riobaldo, além dos topoi, introduz um terceiro termo, o
Sertão-Mundo, meio dos opostos extremos – Deus e o Diabo –, que os une
como faces complementares de uma mesma “realidade problemática”. (p.214)
Para Nunes, essa “realidade problemática”, o Sertão como espaço errático,
no qual o homem se perde e se acha, “corresponde ao repetido motivo, que
alenta a reflexão, do viver perigoso”. (p.214)
Na experiência/processo de leitura, caminhamos do epos ao mito; este,
subordinado à indagação reflexiva que o “neutralizou”, nos leva a um ethos,
“inquietação ética ou ética da inquietação”.
Nesse ponto, a filosofia é chamada “a nos servir de guia”, termo que Walter
Benjamin usou quando da ponderação sobre as Afinidades Eletivas, de Goethe16.
Filosofia como “instância de questionamento”, como abertura à questão do tempo,
no qual a existência adquire densidade em seu ethos da inquietude:
Os três tempos – o passado, o presente e o futuro – formam um só tempo que
se distende, um só processo de temporalização, que conflui com o processo da
própria narrativa. As carências do narrar – e a sua forçosa necessidade –, as
carências desse contar dificultoso de Riobaldo, se desdizendo, depondo em falso,
procurando o essencial e encontrando o acidental, dando o verdadeiro como
plausível; todo esse contar ansioso do narrador em busca de si mesmo, que é
contudo a única maneira que lhe permite ver e saber, alcançar a matéria vertente na
retaguarda dos fatos, dar formato à vida, reunir e coligir o possível e o impossível,
16
Cf. BENJAMIN, Walter.
“Les affinités électives” de
retraçar a ação e compreendê-la; toda essa penúria e toda essa força do narrar Goethe. In: Oeuvres I – Mythe et
depende do tempo como movimento da existência finita em seu cuidado e em violence. Paris: Les Lettres Nou-
velles, Denoël, 1971, p.161-260.
sua inquietude. (p.216)

162 da palavra
O entrelaçamento do ethos e do mito, no romance, engendra uma encenação
poética da narrativa humana, conduzida pela temporalidade como travessia da
existência.
Segundo Nunes, é pela temporalidade, na “instância questionante do
romance”, que há o encontro entre Literatura e Filosofia. Pela “verdade
romanesca”, o drama da cultura ou do pensamento pode ser revisto em três
momentos: a discriminação da literatura pela filosofia platônica; a estética
moderna, de Kant a Hegel, ao situar o artístico ou o poético ao lado da filosofia;
e o embaraço que Nietzsche pressentiu quanto a saber se “a filosofia é uma arte
ou uma ciência”.
Com a linguagem, vista como primeiro plano da reflexão, a filosofia tende
a perguntar-se se ela não é certa espécie de literatura. Ou melhor: ao deparar-se
com a literatura, a filosofia caminha “ao encontro de si mesma, a fim de não
somente interrogá-la, mas também, refletindo sobre um objeto que passa a refleti-
la, interrogar-se diante e dentro dela”. (p.217)
Esse exemplo de crítica, assim como essas breves reflexões, servem como
pequenas ilustrações para ratificar que, para Benedito Nunes (1998, p.1975), a
experiência de leitura, “particular e momentânea”, torna-se, em última instância,
um aprendizado da “experiência da vida, geral e cumulativa”.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo – ensaios de crítica. São Paulo:
Iluminuras, 1990.
BORNHEIM, Gerd. As dimensões da crítica. In: MARTINS, Maria Helena (org.).
Rumos da crítica. São Paulo: Editora SENAC/Itaú Cultural, 2000, p.33-45.
. Gênese e metamorfose da crítica. In: DUARTE, Rodrigo A.P. (org.).
Anais do colóquio nacional A morte da arte hoje. Belo Horizonte: Laboratório de
Estética/FAFICH-UFMG, 1993, p.46-55.
COSTA LIMA, Luiz. Mimeses: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
. Questionamento da crítica literária. In: DIAS, Ângela et al. Função
da crítica. Revista Tempo Brasileiro, n° 60, Rio de Janeiro, janeiro-março de 1980,
p.105-114.
COUTINHO, Afrânio. Crítica literária. In: Notas de teoria literária. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. In: Cahiers de Royaumont. Paris:
Les Editions de Minuit, 1967.
. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966.
JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor. Textos de Estética da Recepção.
2ª ed. Seleção, tradução e introdução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2001.
MAN, Paul de. Blindness and insight: essays in the rhetoric of contemporary criticism. 2ª
ed. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988.

da palavra 163
MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil. Vols 1 e 2. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves/Imprensa Oficial do Paraná, 2002.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos selecionados. In: Os pensadores. Trad.
Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Nova Cultural, 1989.
NUNES, Benedito. Meu caminho na Crítica. In: Estudos Avançados, vol.19, n°55,
setembro-dezembro de 2005, p.289-305.
Literatura e filosofia. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da Literatura em
suas fontes. vol.1. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.199-219.
. Crítica literária no Brasil, ontem e hoje. In: MARTINS, Maria
Helena (org.). Rumos da crítica. São Paulo: Editora SENAC/Itaú Cultural, 2000,
p.51-79.
. Hermenêutica e poesia – o pensamento poético. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999.
. Ocaso da literatura ou falência da crítica? In: Revista Língua e
Literatura. São Paulo, USP – Departamento de Letras, no 24, 1999a, p.11-21.
. Crivo de papel. São Paulo: Ática, 1998. (Série temas, v. 67. Filosofia
e Literatura)
. No tempo do niilismo e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1993. (Série
Temas, 35)
. O trabalho da interpretação e a figura do intérprete na literatura.
In: PROENÇA FILHO, Domício (org). Literatura Brasileira – ensaios, criação,
interpretação e leitura do texto literário. Vol.II. São Paulo, Norte, 1986, p.73-80.
. O pensamento estético no Brasil. In: CRIPPA, Adolfo (coord.) As
idéias filosóficas no Brasil – parte II. São Paulo: Convívio, 1978, p.85-141.
PERNIOLA, Mario. Expansão e fragmentação do horizonte estético. In: Revista
Diacrítica. Série Filosofia e Cultura, n° 20/2. Trad. Vítor Moura. Braga:
Universidade do Minho – Centro de Estudos Humanísticos, 2006, p.107-118.
. A estética do século XX. Trad. Teresa Antunes Cardoso. Lisboa:
Estampa, 1998.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto. Crítica. Escritura. São Paulo: Ática, 1978.
RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1990.
. Du texte à l’ action: essais d’herméneutique II. Paris: Seuil,1986.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1986.
SEGRE, Cesare. Os signos e a crítica. Trad. Rodolfo Ilari e Carlos Vogt. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
STEINER, George. Linguagem e silêncio - ensaios sobre a crise da palavra. Trad.
Gilda Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
WELLEK, René & WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos
literários. Trad. Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

164 da palavra
da palavra 165
166 da palavra
O Filósofo da poesia

Lilia Silvestre Chaves*

A correspondência é a forma utópica da conversa,


porque anula o presente e faz do futuro o único lugar
possível do diálogo.
Ricardo Piglia

Benedito Nunes foi, uma vez, poeta. Hoje considera as suas incursões na
poesia como “pecadilhos juvenis”. Mas sempre se interessou pela filosofia e
pela crítica literária e, como crítico, dedicou talvez a maior parte de sua vida a
comentar e a divulgar a obra daquele que foi um de seus mais fraternais amigos,
confidente e correspondente, Mário Faustino, o poeta da poesia, como uma vez
o próprio Benedito Nunes o chamou. Corresponderam-se a vida inteira, quando
distantes, em cidades diferentes.
Ao contrário do amigo, Benedito Nunes sempre cuidou de guardar
todas as cartas que lhe escreveu Mário Faustino, cartas em que a vida é
transformada em texto, original, autobiográfico, fragmentado, secreto. Talvez
essa correspondência seja o mais vivo documento sobre a vida e a arte de
Mário Faustino, documento que per mitiu ao filósofo-crítico, como
interlocutor privilegiado, uma compreensão ainda maior da obra do poeta.
As cartas de Mário Faustino retomam assuntos comuns entre ele e o “Bené”
(como o chamava), referem-se a leituras, a pessoas e a um mundo
compartilhado e, apesar de ouvirmos somente a voz de Mário Faustino –
com o silêncio de permeio assinalado pelo espaço e pelo tempo que as cartas
testemunham –, é possível reconstituir as falas do amigo por entre as linhas
*
Professora da Universidade
Federal do Pará - UFPA. Dou- perdidas, com o auxílio sempre pronto da imaginação, tendo como guia
tora em Literatura; autora, en- referências e retomadas dos textos das próprias cartas. Esse início de
tre outros, do livro Mário Faus-
tino: uma biografia. Belém: Se- correspondência será a conversa realizada agora por nós (no cruzamento
cult; IAP; API, 2004. com outros textos), em um futuro que o poeta não viveu e que é presente

da palavra 167
agora. As cartas de Mário Faustino anulam o passado vivido por Mário e
Benedito e fazem do presente-agora (como predisse Piglia, citado na epígrafe
deste texto) o único lugar possível do diálogo.
Mário Faustino mostra-se como palavra íntima na primeira carta que está
colecionada no arquivo, datada de 1950, e que, por alguma coincidência com a
origem do autor, foi escrita em Teresina, cidade natal de Mário Faustino. “Este
Norte é mesmo o tal”, escrevia ele. De férias, na Chapada do Corisco, entre os
mais cultos e poliglotas arigós, Mário, com 20 anos incompletos, de férias, inicia,
para nós, leitores de hoje, as perguntas sem respostas de suas cartas. As respostas,
cabe a nós supor ou inventar.
Benedito Nunes desdobrou uma a uma as três cartas, que lhe mandara
Mário Faustino de Teresina, entre dezembro de 1950 e fevereiro de 1951, e
que iniciaram a correspondência entre os dois amigos: as duas primeiras eram
manuscritas; a terceira, datilografada. Observou com cuidado aquela letra
que ele viu mudar tanto com o passar dos anos, virou as folhas, olhou a
assinatura. Releu a primeira das cartas, em que o amigo contava suas férias.
Nessa temporada, Mário aprendera a dirigir, e guiar pela cidade era o seu
maior divertimento, além dos passeios matinais a cavalo e das leituras que o
absorviam. A despeito da vida interiorana, Mário Faustino sentia-se bem
naquela terra em que, para sua surpresa e satisfação, encontrara “gente culta,
inteligente, moderna e de espírito à beça [...]. Por aqui tem gente da classe do
Mendes ou do Bitar” (27 dez. 1950).1 Daquele Nordeste, entre “os mais cultos
e poliglotas arigós”, ele discorre, entusiasmado, sobre Meridiano, a revistinha
dos novos de lá, sobre os poetas e intelectuais de Teresina. “Tem muita gente
estudiosa por toda parte, até no Piauí!!!”, escrevia, no seu estilo epistolar
escrito-oral.
Mário, quando deixou A Província, passou a trabalhar como secretário na
Folha do Norte, por influência de Haroldo Maranhão, neto do proprietário do
jornal (Paulo Maranhão), “cuja redação chefiou, remodelando inteiramente a
feição do velho jornal paraense, e onde, com interrupções resultantes de viagens,
trabalhou durante sete anos” (MARANHÃO, 1966). Mário Faustino logo
conquistou o pai de Haroldo, que era gerente, e chegou, pouco tempo depois, a
chefe de redação, cargo que ocupou por vários anos. Antes disso, já colaborava
no suplemento literário do jornal (que Haroldo Maranhão criara em 1946 e que
tinha inicialmente o título de Suplemento Artes-Literatura e, mais tarde, passou
a se chamar Artes-Letras), publicando contos, traduções de poesia (do francês e
do inglês) e seus primeiros poemas. 1
Orlando Bitar era professor
da Faculdade de Direito e fa-
O episódio tratado aqui neste artigo mais profundamente2 revela o primeiro lava várias línguas.
2
comentário crítico feito por Benedito Nunes dos poemas iniciais de Mário Esse episódio da vida dos
dois amigos (Benedito Nunes
Faustino, nesse começo de 1951. E só nos é possível saber do desdobramento e Mário Faustino) já foi por
mim tratado mais superficial-
dessa crítica por meio das cartas de Mário, que, por sua vez, provocam uma mente no livro Mário Fausti-
leitura mais atenta e interpretativa de alguns artigos dos números 163, 164 e no: uma biografia (2004) e em
um ensaio, “O filósofo e o
165 dos Suplementos dedicados às Artes e às Letras, publicados nas edições de poeta”, ainda inédito. O pre-
domingo da Folha do Norte. sente artigo – “O filósofo da
poesia” – deverá fazer parte
Depois de tanto tempo – quase cinquenta anos passados –, Benedito Nunes de um capítulo da biografia
lembra-se ainda perfeitamente da reportagem e do artigo crítico que provocou, de Benedito Nunes, objetivo
de minha pesquisa atual, em
sem querer, o primeiro desentendimento (talvez o único) entre ele e Mário fase de elaboração.

168 da palavra
Faustino. “Foi tudo uma ideia do Ruy Barata”, conta, divertindo-se com a
lembrança. Quando, no final de 1950, Haroldo Maranhão, responsável pelo
Suplemento da Folha do Norte, viajou de férias para Fortaleza, deixou dois números
prontos para serem editados e nomeou Ruy Barata para substituí-lo na
organização dos exemplares. A reportagem prevista para o número 163, de 24
de dezembro, era uma antologia de dez poetas paraenses, todos pertencentes à
nova geração de intelectuais que frequentava o Café Central, todos colaboradores
do Suplemento.
Ruy Barata, brincalhão, sem que ninguém soubesse do plano, combinou
com o Bené que este escreveria um artigo crítico sobre a antologia e assinaria
com um pseudônimo, como se fosse um crítico de fora comentando a poesia
da terra. E assim foi feito. Uma semana depois, o Suplemento Arte-Letras
de 31 de dezembro de 1950 publicou uma curiosa carta de um tal Sr. João
Afonso ao redator do Jornal, dizendo-se crítico literário de passagem pela
cidade e que, tendo lido a antologia do domingo anterior, tomava a liberdade
de mandar para o jornal algumas observações que lhe sugerira a leitura:

De passagem por esta cidade, domingo último, quando foi publicada no


Suplemento Literário uma antologia de poetas paraenses que li e achei muito
interessante, tomo a liberdade de mandar-lhe, juntamente com esta, algumas
observações que essa leitura me sugeriu. Não tenho pretensões de fazer crítica
e mesmo os meus afazeres que são inúmeros não me deixam tempo para
dedicar-me ao trabalho contínuo e severo que a literatura exige. Mas pensei
que seria bom mostrar, escrevendo essas notas, a impressão que causou numa
pessoa, que não vive radicada aqui, a coletânea organizada por v.s. Poderia
dirigir-lhe o que escrevi, em caráter particular; entretanto atendendo à missão
que desempenham os Suplementos Literários, que é de divulgação e
esclarecimentos, não hesito em pedir-lhe que receba minhas notas para dar-
lhes publicidade no Suplemento ou até mesmo no corpo do jornal.
Atenciosamente. João Afonso (J.A.).3

E o crítico, em seguida, passava a comentar, um a um, todos os dez poetas.


Parece que Benedito Nunes e Ruy Barata quiseram dar uma “sacudidela”
nos leitores do Suplemento cuja missão, dizia o crítico de passagem, é a de
divulgação e esclarecimentos. E conseguiram.
O artigo causou um alvoroço inesperado e, tomando dimensões que
ultrapassaram a simples brincadeira, provocou indignação entre os poetas
criticados, indo atingir o diretor do Suplemento (um dos poetas) no seu descanso
na praia, onde Mário Faustino também se encontrava por alguns dias. Haroldo
Maranhão, tendo concluído que o artigo era de autoria do Francisco Paulo
Mendes, escreveu, imediatamente, um artigo combatendo o que ele chamava
de “a crítica mordaz” do tal João Afonso, a ser publicado no Suplemento, à
guisa de resposta.
3
Todas as citações do artigo O autor da “crítica mordaz” de 1951 sorriu. A memória aveluda as arestas
que Benedito Nunes escreveu e revela o que há de cômico ou doce nas situações mais difíceis do passado.
sob o pseudônimo João Afon-
so (Dez poetas paraenses, 1950) Onde estaria o exemplar do jornal em que foi publicada a crítica? Benedito
serão seguidas das iniciais J.A. Nunes foi buscar a sua coleção de Suplementos da Folha, arquivados
entre parênteses.

da palavra 169
cuidadosamente no armário de canto da Bicom, a “Biblioteca complementar”
(junto aos suplementos do Jornal do Brasil, aos três exemplares da revista Norte
e a outros jornais esparsos, revistas e pastas contendo artigos variados).
Pegou primeiro o Suplemento n.o 163, publicado na véspera do Natal de
1950. A antologia ocupava as quatro páginas do Suplemento, com fotos dos
poetas, organizados pelo nome, em ordem alfabética, além de algumas notas
biográficas e dos poemas de cada um (uma coluna para cada poeta, três colunas
em cada página, o Ruy Barata sozinho na quarta página) e o título: “Dez poetas
paraenses”, seleção e notas de Ruy Guilherme Barata.

Figura 1. Cabeçalho do Suplemento e o tema do número especial (24.dez.1950).

Passou os olhos pelos retratos dos amigos longínquos, tanto pelo tempo
da juventude fixado pela fotografia, quanto pelo tempo transcorrido, revelado
na usura do papel do jornal machucado, velho. Os poemas selecionados pelo
Ruy Barata, por sua vez, também fixam uma época de afirmação maior ou
menor de cada um, o início do caminho de alguns talentos poéticos, o rumo
ainda não encontrado de escritores que se consagrariam, mais tarde, na prosa
ou no ensaio filosófico, como seria o seu caso pessoal.

170 da palavra
da palavra 171
172 da palavra
da palavra 173
174 da palavra
Procurou o Suplemento n.º 164, do domingo seguinte, dedicado à
Antologia de sete contistas paraenses (a segunda reportagem prevista por
Haroldo Maranhão, antes de viajar): na metade inferior da primeira página (com
continuação na 2ª página), lá estava o artigo que assinara com um nome fictício.
Benedito Nunes percorreu-o com o olhar.

Figura 6: comentário crítico de J. Afonso sobre os poemas dos Dez poetas paraenses (31.dez.1950).

O João Afonso inicia seus comentários pelos poemas do sr. Floriano Jayme,
sem nenhuma condescendência: “Nunca a Esfinge formulou perguntas que
fossem mais difíceis do que os poemas do sr. Floriano Jayme”, dizia, ironicamente.

Não é a dificuldade natural que se encontra diante de um verso cujo hermetismo


reconhecido traduz algo que sentimos e que não podemos exprimir. Não é uma
dificuldade poética, digamos assim: ela é uma dificuldade material. [...] A primeira
impressão que se tem dessa poesia é que ela é apenas mistificação. [...] Parece-me
que ele está possuído pela necessidade louca de encontrar a poesia, seja a que
preço for, mesmo com sacrifício da própria poesia (J.A.).
No artigo crítico de João Afonso, talvez a única brincadeira a que se
permitiu Benedito Nunes nesses anos de Suplemento, o ensaísta, não sem ironia,
expõe suas ideias extremamente sérias a respeito da poesia e do poeta em geral:

O poeta não é como o selvagem de Rousseau. Ele não vive em estado de


natureza, porque a natureza com que ele trata, não é esta que nos cerca. As
invocações, os vocativos que qualquer um de nós atirasse ao Sol, esperando que
ele nos devolvesse versos, não constituem poesia. [é preciso que haja] trocas
entre a realidade objetiva e a subjetiva até [que o poeta consiga] subjugá-la num
campo seu, onde ela se manifesta de modo a ser captada de maneira poética –
nem completamente objetiva, nem completamente subjetiva, mas uma fusão
orgânica de duas realidades – isto é, simbólica. Assim o poeta cria um mundo
que é seu, cuja base ontológica é a palavra, que fundiu dois mundos aparentemente
incompatíveis (J.A.).

da palavra 175
O crítico transita de um poeta para outro, interligando-os por algum traço
de estilo poético que os une ou distingue. Segue criticando os poemas de Haroldo
Maranhão, em que, segundo ele, o encadeamento das imagens, artificial e
mecânico faz com que as palavras soem abafadamente e o dizer poético seja
quase nulo, com exceção de alguns achados, como o verso “Nossa memória: o
azul amanhecendo”, do poema “Breve apelo”.4
O disfarce de Benedito Nunes confundiu os leitores do Suplemento e,
principalmente, os poetas que participavam da antologia. Uma das razões da
confusão foi justamente o pseudônimo escolhido. João Affonso (com dois “ff ”)
era o nome do avô de Francisco Paulo Mendes, o intelectual em torno do qual
todos eles se reuniam e que os influenciava de uma forma ou de outra. E
confundiu mais ainda o poeta Mário Faustino, que, em suas cartas – por causa
do pseudônimo e da semelhança de trechos da crítica com o texto do artigo de
Francisco Paulo Mendes publicado no Suplemento em 1948 –, discute e refuta
os argumentos da crítica recebida.
O assunto do João Afonso vem à baila na segunda carta vinda de Teresina,
de 29 de janeiro de 1951, e é mencionado na seguinte, de 16 de fevereiro de
1951, essa última datilografada em tinta azul, no papel timbrado da firma J. V.
Silva & Cia., de “Theresina - Piauhy”, timbre que Mário teve o cuidado de
riscar com o lápis ágil que usou para fazer algumas correções e para assinar.
Ele explica que recebera uma carta de Mendes desvendando o mistério:

Já sabia – pelo Mendes – que não era ele e, sim, tu, o J. Affonso [...] Pensava que
fosse o Mendes: as opiniões do J. A. são tão semelhantes às dele! Mas é natural:
uma verdade se parece com outra – são uma só – e tuas opiniões, como as dele,
são verdadeiras (29 jan. 1951).
Talvez essas palavras tenham ferido o orgulho do crítico confundido, apesar
de Mário acrescentar no parágrafo seguinte:

Embora todo esse negócio do Suplemento, sobretudo por eu me achar


desajeitadamente no meio, me parecesse a coisa chata que iniciou 1951, fiquei
4
Essa memória do poeta da
satisfeito por saber-te o João Afonso. Sabes que gosto das coisas bem feitas, e o juventude, o autor de Tetrane-
teu artigo está muito bem escrito (29 jan. 1951). to Del Rey vai abandonar. Se-
guindo outra via de escrita, o
Pensativo, Benedito Nunes comparou os originais das cartas de Mário autor esquece ou renega seus
primeiros escritos, uma espé-
Faustino com as cópias datilografadas pela estagiária de um projeto de publicação cie de amnésia desejada, nas
das obras completas do poeta.5 Na época em que lhe pediram cópia das cartas, páginas abandonadas de poe-
sia.
ao revisar essas cópias para atender ao pedido de escrever algumas notas 5
Em 1996, uma pesquisadora
explicativas e, inclusive e sobretudo, para dar a sua permissão à publicação da UNICAMP veio a Belém
procurar o professor Benedi-
desses escritos tão íntimos, ele pensara que talvez devesse omitir certos trechos to Nunes. Trazia na mala um
projeto para publicar a obra
– um dos quais seria a discussão provocada por esse episódio do J. Afonso. completa de Mário Faustino.
“Não publicar”, escreveu Benedito Nunes ao lado do primeiro parágrafo da Benedito Nunes abriu seus
arquivos a Maria Eugênia Boa-
terceira carta, em que Mário Faustino escrevera, em 16 de fevereiro de 1951: ventura, que estendeu suas
“Recebi ontem tua última carta e foi com grande tristeza que reconheci ter pesquisas aos arquivos da Bi-
blioteca Pública e aos dos jor-
provocado, involuntariamente, o primeiro incidente de nossa já antiga amizade. nais paraenses. O projeto com-
A respeito, quero, antes de encerrar tudo, dizer-te algumas coisas, que vou preendia a publicação da obra
completa de Mário Faustino,
numerar, com licença do Cléo” (Cléo Bernardo, da turma do Café Central, em vários volumes.

176 da palavra
costumava numerar tudo, e Mário Faustino não perdeu a oportunidade de fazer
uma piada, de introduzir um riso na carta que ia ficando cada vez mais tensa).
O guardião do arquivo de Mário Faustino defrontava-se com o conceito
de privacidade no contexto contemporâneo das publicações de biografia, em
que a vida não é mais propriedade privada: quase nada é possível ocultar no
universo social (WERNECK, 1996, p. 181). Nem mesmo um pequeno
desentendimento íntimo tocando ao mesmo tempo a evolução poética de Mário
e a sua própria originalidade na crítica de poesia. Quando, algum tempo depois,
diante daquela negativa escrita, eu perguntei se poderia revelar as vozes dessa
carta um pouco mais exaltada que o normal da correspondência que trocavam,
Benedito Nunes acabou permitindo. Sabia que nem Mário, nem ele poderiam
mais estar sozinhos, deixados em paz. As palavras conflagradas de Mário
Faustino teriam de encontrar a paz exatamente na leitura dos seus textos e na
revelação do homem como um todo. Sabia também do valor da leitura desses
trechos em que Mário Faustino, sem o saber, ilumina (e esclarece), neste diálogo
realizado no tempo futuro em que o amigo crítico sobreviveu ao poeta, um
documento importante sobre a poesia paraense do início da década de 50 do
século XX. Não é demais repetir as palavras de Mário Faustino: “fiquei satisfeito
por saber-te o João Afonso. Sabes que gosto das coisas bem feitas, e o teu artigo
está muito bem escrito” (29 jan. 1951).
Justamente, quanto à poética de Mário Faustino, em particular, por mais
que pareça citar as opiniões emitidas por Francisco Paulo Mendes, na sua
“Primeira notícia sobre a poesia de Mário Faustino” (1948), o crítico que usou
o pseudônimo de João Afonso já esboçou com segurança - mesmo que tenha
sido por trás de uma máscara – suas ideias sobre os primeiros passos de um
poeta de cuja obra, mais tarde, seria o maior e mais fiel divulgador. Foi essa,
portanto, a primeira vez que Benedito Nunes escreveu sobre Mário Faustino.
Tinham-se passado dois anos desde o dia em que Mário chegara ao Café Central
com a folha datilografada do seu primeiro poema, que entregou, triunfalmente,
a Francisco Paulo Mendes e que lhe valeu o seguinte elogio (situando Mário, de
18 anos, como um dos poetas de mais força entre os que haviam aparecido
ultimamente no Brasil):

[Um jovem poeta surge] de modo quase inacreditável, pela perfeição e realização
de seus poemas, com certas qualidades de expressão e de forma que somente
possuem os poetas já de todo completos. Há, principalmente na sua poética –
além do equilíbrio e da ordem que ela reflete das tendências últimas da poesia
contemporânea, e que o fazem [...] um dos seus representantes mais autênticos
em nosso meio – um vocabulário moderno e belíssimo (MENDES, 1948).
Os poemas que a antologia dos dez poetas paraenses trouxe foram os
mesmos do início de 1948, o primeiro e o segundo “Motivo da rosa”, os dois
“Poemas do anjo” e “Elegia” (“Ela existia misteriosa e oculta”), escrita em 6 de
março de 1948 e publicada no Suplemento em setembro de 1949. Nas palavras
de Benedito-João Afonso, que se mostra surpreso pela qualidade da técnica
poética, foi por essa razão que o poeta “conseguiu revalorizar” de maneira
extremamente pessoal “dois temas que foram a consagração de muitos poetas
notáveis e a tábua de salvação de um sem número de medíocres: o Anjo e a

da palavra 177
Rosa”. Sem ter talvez consciência de que suas palavras repetiam algumas das
ideias de Paulo Mendes expressas no ensaio saído dois anos antes, sobre os
primeiros poemas de Mário Faustino, o crítico “de fora” discorre confiantemente:

O Sr. Mário Faustino parece ter encontrado o seu mundo particular, mas é fora
de dúvida que não tomou as devidas providências para nele se fixar em caráter
definitivo. É, segundo os dados biográficos, um rapaz de apenas vinte anos que,
para surpresa nossa, pode dispor de uma técnica que os bons poetas só usam
aos quarenta. Daí a razão por que conseguiu revalorizar, imprimindo um cunho
pessoalíssimo de tratamento, dois temas que foram a consagração e muitos poetas
notáveis e a tábua de salvação de um sem número de medíocres: o anjo e a rosa.
Essa maestria no tratamento poético, a posse em que ele se encontra dos segredos
da técnica poética, são as suas perigosas virtudes. Porque o virtuosismo é uma
qualidade absorvente, que o poeta que a detém, pensa poder criar unicamente às
suas expensas e, em consequência, opera-se uma confusão de conceitos – entre
técnica e substância poética – em virtude da qual a primeira é tida como equivalente
da segunda. Daí dizermos que o seu universo poético é vacilante. Vacila sob o
peso duma grande beleza ainda não inteiramente possuída. Uma beleza insincera,
que ele captou por meio de sua técnica, de sua habilidade para o verso e que não
encontra uma base espiritual – enfim, uma beleza sem mundo, que tem apenas a
ida que lhe dá o poder mágico da palavra (J.A.).
Depois ataca a si mesmo, ao Benedito Nunes poeta, para despistar os
leitores: “Os achados [poéticos] puramente casuais não representam uma
conquista definitiva na vida do poeta. É o que nos sugere a poesia do sr. Benedito
Nunes. Aqui e ali um e outro achado, que ele não soube aproveitar, mostrando-
se quase que inteiramente desprovido do manejo da técnica do verso”. A Max
Martins coube uma alusão à foto escolhida: “Numa das fotografias aparece o sr.
Max Martins acendendo um cigarro. Eis um motivo que ele não deixaria de
aproveitar. A sua poesia tem o cotidiano como matéria prima”, e, então, comenta
o “profundo sentimento de viver que lateja [nos] poemas [de Max]”. Paulo
Plínio, cuja vocação poética, segundo o crítico, “incorporou a vida em si mesma:
quer dizer que se fez vida”, teve sua poesia elogiada: “Gostaria de transcrever
aqui todos os seus poemas”. A ironia dirigiu-se mais acentuadamente a Ruy
Barata, poeta muito conhecido em Belém, que, com os seus trinta anos de poesia
e experiências poéticas mais decisivas, teria criado para si, nas palavras do ferino
João Afonso, uma antologia dentro da Antologia. O resultado da crítica que
surpreendeu os poetas da antologia agravou-se pela ironia do escritor que diz
entregar-se ao “ritmo irregular dos seus cochilos” (J.A.), sugerindo que os poemas
da antologia provocaram-lhe sono. Obedecendo à ordem do “movimento
preguiçoso do olhar, num dia de domingo” (J.A.), o crítico João Afonso acaba
comentando todos os poetas, como se fosse guiado pelas impressões de leitura
reavivadas no momento da escrita.
Largando a leitura dos Suplementos, Benedito retoma a terceira carta
enviada de Teresina por Mário Faustino que parece responder a uma carta irritada
sua (de Benedito), perdida, mas totalmente recuperável nas entrelinhas do texto
de Mário: “Fiquei boquiaberto ao saber da verdade, tamanha era a semelhança

178 da palavra
do J. A. com o Mendes: até o pseudônimo, se não me engano, é o nome tanto de
um primo dele como de seu avô materno”, tenta explicar Mário Faustino, “então
escrevi-te, ainda dominado pela surpresa”. Pelo que se depreende dessa resposta
de Mário, Benedito Nunes respondera aborrecido aos comentários de 29 de
janeiro, pois o poeta tratou de escrever para Belém, entre atacando e defendendo-
se das acusações aparentemente veladas do Bené: “Salvo engano (não guardo
cópias de cartas) escrevi ‘... tamanha foi a semelhança entre as tuas opiniões e
as que o Mendes costuma expressar’...” (16 fev. 1951).
Uma carta oferece a possibilidade de o autor manifestar-se a si mesmo e
ao seu interlocutor. Nessa última carta de Mário Faustino, que trata quase
inteiramente do assunto, podemos, claramente, ouvir o diálogo entre Mário e
Benedito. Em nenhum outro momento da correspondência que se desenrola
entre eles, Benedito Nunes esteve tão presente nas retomadas de frases, nas
palavras reescritas do que na carta-resposta de Mário Faustino. E, por outro
lado, a carta provocou de tal forma a presença de Mário, que o crítico, ao recebê-
la, pode certamente sentir o olhar do amigo pesando sobre ele. Toda a carta e o
episódio referido estão impregnados do humor faustiniano, apesar da crescente
veemência de suas palavras. Mário Faustino faz marcha a ré, volta às suas
intenções, revendo suas certezas: “quando escrevi ‘... enfim uma verdade se
parece sempre com outra e o que dizes é a expressão da verdade’, até te puxei o
saco, não achas?”. As frases são postas em questão e retomadas ainda em um
longo post scriptum, do qual destaco um trecho:

P.S. Ia-me esquecendo de sublinhar, para teu uso, algumas expressões de tua
carta com as quais eu poderia ofender-me: – “...percebi a maldade”. Será possível?
– “...está escondida a maldade”. Será possível? [...] – “...ora, Mário, afinal és o
poeta das Rosas”. Está mais do que claro que esqueceste de colocar a palavra
ainda entre as palavras afinal e és. É a pura verdade, mas são coisas que não se
dizem a amigos. – “... que não se escrevem certas coisas impunemente, mesmo
estando no Piauí”. Então tu achas que, se eu estivesse no Pará, deixaria de dizê-
lo, hein? Em poucas palavras: “Mário, és um covarde”.
[...]
Será que traduzi bem as intenções que tiveste ao escrever aquelas tantas coisas? Se
traduzi, estamos quites. Se não traduzi, se interpretei mal, por aí podes concluir
[...] o grande número de significados que as palavras podem revestir sobretudo
à luz de um pouco de má vontade, de vaidade ofendida, etc... etc... (16 fev.
1951).
O que essa polêmica mostra de mais importante – tanto nos diálogos
travados pelas cartas, quanto nos que se deram no jornal entre a antologia dos
poemas e os artigos críticos – é a influência que Francisco Paulo Mendes exercia
no meio literário, nas ideias e no estilo de cada um dos membros do grupo do
Central Café, principalmente nos mais jovens, a ponto de todos acabarem por
copiar suas ideias, espelharem-se em seu estilo. “Não é verdade que eu tenha
me ofendido com isso” – diz, hoje, docemente, o filósofo, a propósito das
menções que Mário fizera na carta de tantos anos atrás, repetindo-lhe as palavras
escritas – “nunca me importei quando o Eli, o Machado e outros que tais diziam
que nós todos éramos apenas uns papéis-carbono do Mendes. Nós éramos,

da palavra 179
mesmo!” (16 fev. 1951). Levantando os olhos da carta de Faustino, Benedito
Nunes acrescenta, por sua vez: “o Mendes habituara-se tanto a essa espécie de
dominação, que, em relação ao Mário, no momento em que este, contrariando a
vontade do mais velho, decidiu partir para os Estados Unidos, a amizade
diferenciada que havia entre eles se quebrou” (NUNES, 2000).
A brincadeira no jornal custou a Mário e a Benedito alguns momentos de
irritação e talvez de orgulho ferido, mas forneceu motivo para muitas risadas
posteriores, animando e enriquecendo o Suplemento dominical da Folha, naquela
virada de ano. No Suplemento n.º 165, de 14 de janeiro (não houve suplemento
no primeiro domingo de 1951), Benedito Nunes assina o artigo Considerações
sobre A peste (1951, p. 4) e inclui, entre parênteses, abaixo de sua assinatura, o
pseudônimo J. Afonso, revelando sutilmente que o artigo anterior era de sua
autoria:

Figura 7: Ensaio sobre o romance A peste, de Camus, assinado por Benedito Nunes e, entre
parênteses, o pseudônimo que o crítico usara na crítica à antologia dos Dez poetas paraenses (14.jan.1951).

E o assunto não se detém aí. Alguém usou do mesmo estratagema para


responder ao Sr. João Afonso. No mesmo número do Suplemento, outro crítico
de passagem por Belém contra-ataca, na primeira página, com outro artigo de
mesmo título dos dois anteriores, assinado desta vez por Acrísio de Alencar.

Figura 8: Artigo assinado por Acrísio de Alencar, em resposta à crítica do Sr. J. Afonso (14.jan.1951).

180 da palavra
Acrísio de Alencar (Haroldo Maranhão?) assim se apresentava: “Permita
o grande suplemento literário de nossa terra que um jovem do interior venha
sumariar suas impressões acerca de um assunto muito palpitante, suscitado na
edição de 31 de dezembro por um viajante ilustre, a quem, parece, melhor
agradou o nome suposto para o patrocínio de suas opiniões”.
Há, ainda, nesse número do Suplemento, uma réplica de Floriano Jaime
respondendo ao artigo de J. Afonso:

Figura 9: Artigo assinado por Floriano Jayme, um dos poetas da antologia (14.jan.1951).

Esse episódio revela a força e a importância do Suplemento – local, mas


de amplitude nacional – naquele pequeno mundo da cidade provinciana, em
que os leitores, na sua maioria, eram os próprios colaboradores do jornal,
compostos pelos dois grupos que atuavam na vida intelectual da terra: a geração
velha (do final dos anos 30) e a nova (a turma do Café Central), que se
entrechocavam, uma desdenhando de certa maneira da outra. Como um campo
neutro, o “Suplemento Literário de a Folha traduziria, durante cinco anos, o
espírito comum do grupo maior, afinado pela leitura dos mesmos poetas,
ficcionistas e filósofos e pela admiração votada aos mesmos artistas” (NUNES,
2001, p. 16). Da parte desses jovens que se denominavam “os novos” havia um
desconhecimento quase voluntário da antiga geração de escritores de Belém:
“desse grupo antigo, nós só respeitávamos o Bruno de Menezes”, confessa
Benedito Nunes (2000). Foi justamente Bruno de Menezes, poeta responsável
pela inovação da poesia paraense, com o longo poema-ritmo “Batuque” (1931),
que, em entrevista ao Suplemento Literário da Folha do Norte sobre a literatura
no Pará, publicada com o titulo de Posição e destino da Literatura Paraense,
escreveu: “É uma farsa muito vazia de sentido falar-se em ‘Geração Moderna’
do nosso estado”. Mas, “se moderno quer dizer da hora presente”, poderiam ser
lembrados os nomes “de um Ruy Guilherme Barata, um Paulo Plínio de Abreu,
um Benedito Nunes, ou os de Haroldo Maranhão, Jurandir Bezerra, Max Martins,
embora ainda presos aos complexos liricamente emotivos”. Quanto a escritores,

da palavra 181
teatrólogos, ensaístas, pensadores em geral, Bruno cita “valores distintos como
um Francisco Mendes, um Cécil Meira, um Raimundo Moura, um Cléo Bernardo”
(1947, p. 2). Na mesma reportagem, Romeu Mariz, também membro da
Academia Paraense de Letras, dá o seu depoimento: “há, na atualidade, dois ou
três elementos, dos novíssimos, alçando voos promissores, belos voos, podendo-
se apontar entre eles, Haroldo Maranhão, Geogenor Franco e Mário Faustino,
parecendo-me que desse filão áureo não virão outras gemas de prol” (1947, p.
2). Esses depoimentos revelam que os acadêmicos não deixavam de valorizar
os novos escritores da terra.
Apesar de dois anos mais novo que Benedito Nunes, Vicente Sales fazia
parte do grupo dos antigos (como os literatos da geração anterior eram chamados
pela turma entusiasta do Central). Diziam-se membros da “Academia do peixe
frito” e frequentavam uma outra espécie de “salão”, bastante popular. Reuniam-
se pelas madrugadas no Café Manduca, no Barbinha ou nos arredores do mercado
do Ver-o-Peso, para comer o peixe frito que dava nome ao grupo. “Eram velhos”,
conclui Vicente Salles, “era o Pinagé, o Bruno, o Jacques Flores, o De Campos
Ribeiro, o Geogenor Franco”. Para o historiador, naquela época, a cidade tinha
um ar de decadência: “aquele ar do já teve que até hoje muitas pessoas ficam
lamentando esse passado perdido”. Sua lembrança fixou os sérios problemas
urbanos que Belém conheceu, “problemas da luz, da água, dos transportes. Uma
luz muito... [...] no pique do consumo, você não enxergava para ler... a luz apagava,
os bondes paravam...”. Segundo ele, só é possível considerar aquele tempo como
uma fase de efervescência cultural a partir do Suplemento: “Eu lembro inclusive
que o Levi Hal de Moura publicou grande parte do seu livro, da visão marxista
da História do Pará (Esquema da evolução da sociedade paraense), em capítulos,
no Suplemento da Folha. A última página trazia sempre um poema chocante,
bom”, conta Vicente Sales. Segundo ele, fundamental nessa geração foi a
liderança de Haroldo Maranhão, como jornalista, “porque ele mantinha contato
com a geração anterior dos ‘velhos’ e o elo era o ‘Suplemento’” (SALES, 2002).
O Suplemento da Folha do Norte não somente unia a geração antiga e a nova dos
intelectuais de Belém, como também trazia para o Norte os textos dos artistas
consagrados do Sul do país.
Além das reuniões nos bares e cafés, dos suplementos literários dos jornais,
revistas também congregaram as ideias da época, inserindo a província no
movimento mais amplo da modernidade nacional. Encorajados pelo sucesso do
Suplemento Arte-Letras e pela facilidade de impressão oferecida pelo jornal,
Haroldo Maranhão, Mário Faustino e Benedito Nunes tiveram a ideia de fundar
(ainda em 1948) a revista literária – Encontro –, que morreu ao nascer. Nesse
único número, Mário publicou o seu trágico conto “Nigel”.
Dessa época, existe uma fotografia de Mário Faustino com os amigos, em
uma festa, no terraço da casa do Sr. Mascarenhas (avô de Mário) na antiga São
Jerônimo.

182 da palavra
Figura 10: fotografia tirada em uma reunião na casa do avô de Mário Faustino, reunindo amigos,
poetas e críticos.

Em primeiro plano, Francisco Paulo Mendes mantém-se alheio ao aceno


do fotógrafo. Atrás, de pé, da esquerda para a direita, Beckmann, um vizinho de
Mário, Benedito Nunes atrás de Maria Sylvia e ao lado de Mário Faustino, que
pousa o braço em suas costas, o gesto eterno da amizade (revelando que o
primeiro – e único – desentendimento entre os amigos já havia sido esquecido).
Do outro lado de Mário Faustino, sentado, Ruy, Paulo André e Norma Barata.
Na outra extremidade, Raimundo Moura, cujo olhar, divertido, parece não se
desviar do de Francisco Paulo Mendes. A presença das mulheres e da criança
(Maria Sylvia, que namorava Benedito Nunes, Norma, casada com Ruy Barata
e Paulo André, seu filho, futuro compositor e parceiro do pai) marca o início do
fim dessa fase despreocupada em que Mário ainda morava em Belém.
Benedito Nunes, Mário Faustino, Ruy Barata, Francisco Paulo Mendes
pertenciam ao grupo de amigos (do qual fazia parte a maioria dos dez poetas
paraenses da antologia), que se encontravam amiúde no Café Central, local que
testemunhou o surgimento de vários poetas, alguns dos quais ultrapassaram os
limites da província. Ali quase todos acabavam escrevendo poesia, por influência
de Francisco Paulo do Nascimento Mendes, crítico de literatura e de arte, ensaísta
e professor de Literatura Portuguesa e História da Arte na Universidade do
Pará. Por causa disso, Mendes ganhou o epíteto de “fazedor de poetas”. Mas
Francisco Paulo Mendes foi, na verdade, um fazedor de escritores, dos mais
variados gêneros, pois também iniciou e encorajou críticos e prosadores. Haroldo
Maranhão, por exemplo, enveredou pela prosa de contos e romances, e Benedito
Nunes prosseguiu no rumo do texto ensaístico, dos estudos filosóficos e críticos.

da palavra 183
Hoje, tranquilamente, Benedito Nunes se define:

Não sou nem poeta nem ficcionista. Exceto os pecadilhos juvenis de alguns
versos, contos e dois capítulos de romance, João Severo, imitação de O
menino de Engenho, de José Lins do Rego, escrevo, de preferência, ensaios
literários e filosóficos, quando não comentários a livros publicados,
especialmente de poesia (NUNES, 2007).

Eu, então, acrescento, relembrando o epíteto dado por ele a Mário Faustino:
Benedito Nunes é um filósofo da poesia.

REFERÊNCIAS
CHAVES, Lilia Silvestre. Mário Faustino: uma biografia. Belém: SECULT; IAP;
APL, 2004.
CHAVES, Lilia Silvestre. O filósofo e o poeta. No prelo.
JAYME, Floriano. Ainda sobre dez poetas paraenses. Folha do Norte, Belém, 14
jan. 1951. Suplemento Arte-Letras, n. 165, p. 4.
MENDES, Francisco Paulo. Primeira notícia sobre a poesia de Mário Faustino.
Folha do Norte, Belém, 1948, p. 1 e 3.
MARANHÃO, Haroldo. O poeta e sua vida. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 9
jul. 1966.
MARANHÃO, Haroldo (sob o pseudônimo de Acrísio Alencar). Dez poetas
paraenses, Folha do Norte, Belém, 14 jan. 1951. Suplemento Artes-Letras, n.
165, p. 1 e 3.
POSIÇÃO e destino da Literatura Paraense. Folha do Norte, Belém, 2 dez. 1947,
p. 2.
NUNES, Benedito. Da caneta ao computador ou entre filosofia e literatura.
2007.
NUNES, Benedito. O amigo Chico fazedor de poetas. In: ______ (Org.). Belém:
SECULT, 2001. p. 15-24.
NUNES, Benedito. Entrevista. 2000. Inédita.
NUNES, Benedito. Considerações sobre A peste. Folha do Norte, Belém, 14 jan.
1951, p. 4.
NUNES, Benedito (sob o pseudônimo de João Afonso). Dez poetas paraenses.
Folha do Norte, Belém, 31 dez. 1950. Suplemento Arte-Letras, n.164, p. 1 e 3.
SALES. Entrevista, 2002. Inédita.
WERNECK. O homem encadernado. Rio de Janeiro: Eduerj, 1996.

184 da palavra
Mário Faustino e Benedito Nunes. (Acervo Lilia Chaves)

da palavra 185
186 da palavra
Contribuição de Benedito Nunes
à bibliografia rosiana

Sílvio Holanda, Aldo José Barbosa,


Loíde Leão dos Santos, Marcellus da Silva Vital,
Johann Raphael Gomes Guimarães

Apoiado em um sentido humanístico de formação acadêmica, aberta e de


contornos fluidos, o ensaísmo de Benedito Nunes contribuiu para a elucidação
crítica de nomes importantes da cultura brasileira, como Farias Brito, João Cabral
de Melo Neto, Clarice Lispector, Oswald de Andrade, etc. Em relação a
Guimarães Rosa, o professor paraense também trouxe uma interpretação original,
cujos contornos se desenham entre a dimensão imagético-poética e o nível
conceitual das especulações filosóficas, planos esses articulados por uma
constante interpelação da própria linguagem, à luz de pensadores como Heidegger
e Sartre.
A produção bibliográfica nunesiana conta com aproximadamente vinte e
seis artigos e cinco capítulos de livros. Os textos publicados em jornais e revistas
datam do período que vai de 1957 a 2007, perfazendo cinco décadas de uma
produção ensaística relevante para os estudos rosianos no Brasil e no exterior.
Publicados em revistas brasileiras e estrangeiras ou nos mais importantes
suplementos literários nacionais, tais textos abordam, sob diversas perspectivas,
temas como a tradução, o menino, o amor, a viagem, etc., com base no estudo
interpretativo de diversas obras rosianas como Sagarana, Grande sertão: veredas,
Corpo de Baile, Tutaméia, entre outras.
Sintetizar tais textos, cuja dimensão material supera, em muito, o artigo
dos nossos dias, levando em consideração sua base teórico-crítica, é uma tarefa
que aqui não é possível, contudo salientemos suas linhas de força, centradas em
temas fundamentais como a concepção erótica da vida e as relações entre poesia
e filosofia. No ensaio “O amor na obra de Guimarães Rosa” (1964), republicado
em O dorso do tigre, considerando as obras Grande sertão: veredas, Corpo de Baile e
*
Pesquisadores da Primeiras Estórias, o crítico postularia a tese da centralidade do amor, no que diz
Universidade Federal
do Pará – UFPA. respeito à cosmovisão rosiana:

da palavra 187
O tema do amor ocupa, na obra essencialmente poética de Guimarães Rosa,
uma posição privilegiada. Em Grande Sertão: Veredas, onde aparece entrelaçado
com o problema da existência do Demônio e da natureza do Mal, atinge
extrema complexidade e envolve diversos aspectos que compõem toda uma
idéia erótica da vida.1

As três espécies de amor existentes na obra rosiana poderiam ser


representadas por Otacília (o enlevo), Diadorim (a dúbia paixão pelo amigo), e
Nhorinhá (volúpia). Embora os tipos de amor sejam qualitativamente diversos,
ocorre uma interpenetração entre eles. Sem recorrer à interpretação alegorizante
dos trabalhos de Heloisa Araujo, o professor paraense buscará mostrar que a
temati-zação do amor, na obra rosiana, remonta ao platonismo, porém, numa
perspectiva mística heterodoxa, “que se harmoniza com a tradição hermética e
alquímica, fonte de toda uma rica simbologia amorosa, que expri-me, em
linguagem mítico-poética, situada no extremo limite do profano com o sagrado,
a conversão do amor humano em amor divino, do erótico em místico.”2
A visão erótica da vida, em Guimarães Rosa, segundo Benedito Nunes,
permitiria a aproximação entre o profano e o sagrado. Assim, de Nhorinhá a
Otacília, há uma como uma ascensão, partindo da explosão erótica de Nhorinhá
à imagem angelical de Otacília, objeto ideal, à semelhança do mundo inteligível
de Platão. O platonismo está subjacente a essa idéia de amor, uma vez que se
pode falar numa espécie de conversão do carnal em espiritual. Em Guimarães
Rosa, assim, o amor carnal gera o espiritual e nele se transforma. Tal
transformação vincula-se a um misticismo de teor platônico, próximo da teologia
cristã, sendo o amor concebido, simultaneamente, como força ascendente e
descendente.
Assim, o amor espiritual se apresenta como uma transfiguração do amor
físico, transfiguração essa operada pela força impessoal e universal de Eros.
Assim, pode-se ler os textos de Corpo de Baile e o Grande sertão: veredas à luz da
concepção erótica rosiana, destacando-se a energia corporal não-pecaminosa e
a “ausência de degradação e de malícia nas prostitutas, que nem sempre são
figuras secundárias, cir-cunstanciais”3. A mulher, nesse contexto, independente
de sua idade, mobiliza um fogo, capaz de perdurar até a velhice. Para exemplificar
essa idéia o crítico se vale de “A estória de Lélio e Lina”.
Benedito Nunes ocupar-se-ia da tradução francesa de Guimarães Rosa em
artigo publicado no suplemento literário de O Estado de São Paulo, em 14 de
setembro de 1963. Lembrando a tradução de fragmentos do Finnegans Wake pelos
irmãos Campos, define o ato tradutório como interpretativo como interpretativo:

Desse ponto de vista, a tradução é um ato inter-pretativo, ao mesmo tempo


crítico e inventivo, que se processa orientado pelo parti pris estilístico da obra.
Não importa que termos e expressões determinados sejam inconvertíveis, desde 1
NUNES, Benedito. O dorso do
que se respeite o fluxo de sentido, a propensão da forma, a direção da linguagem. tigre. 2. ed. São Paulo: Perspec-
tiva, 1976. p. 143.
Se o tradutor passa à categoria de intérprete e, superada a preocupação com a 2
Idem, ibidem, p. 145.
literalidade, resta-lhe o caminho da versão livre, sua liberdade para inventar, não 3
4
Idem, ibidem, p. 148.
NUNES, Benedito. O dorso do
podendo transgredir a ordem infusa do original, nem os limites que a sua própria tigre. 2. ed. São Paulo: Perspec-
língua lhe impõe, será, como toda li-berdade, consciência da necessidade.4 tiva, 1976. p. 200.

188 da palavra
Com base nessa concepção de tradução, o crítico faz diversos reparos à
tradução de J. J. Villard, publicada em 1960, pelas Éditions du Seuil, a quem
repreende pela falta de força poética dos textos, o que lhes impõe, “na forma de
uma prosa bem urdida, um ponto de vista estilístico estranho ao autor, que não
corresponde à con-cepção-do-mundo que é a dele.”5
Em 1967, ao se ocupar de “Cara-de-bronze” em “A viagem do Grivo”, o
estudioso, retomando aspectos já evidenciados em trabalhos anteriores, define
este conto como uma síntese da poética rosiana: “Tematização do motivo da
viagem, estrutura poli-mórfica, horizonte mítico-lendário são, pois, os aspectos
marcantes que fazem desse conto uma composição exemplar, verdadeira síntese
da concepção-do-mundo de Guimarães Rosa, onde certas possibilidades extremas
de sua técnica de ficcionista se concretizam.
Em outros trabalhos, dedicar-se-ia o ensaísta a outras obras como Tutaméia
e às implicações filosóficas de Grande sertão: veredas. Sobre esse último aspecto,
em A matéria vertente (1983), ponderou:

Uma abordagem filosófica de Grande Sertão: Ve-redas, como a que tentamos


fazer aqui, recai dentro do problema mais geral das relações entre filosofia e
literatura. § O que pode a filosofia conhecer da literatura? Tudo quanto interessa
à elucidação do poético, inerente à lingua-gem, e portanto, tudo quanto se refere
à simbolização do real nesse domínio. Essa resposta, num trabalho anterior,
baseou-se na idéia de que não há um método filosófico específico para a análise
literária, em concorrência com os da Teoria da Literatura, que assentam, contudo,
em pres-supostos filosóficos, quaisquer que sejam os campos científicos de que
se originam.6

Grande parte dos trabalhos aqui referidos foi republicada em livros


organizados pelo autor ou por outrem: O dorso do tigre (1969 e 1976), Teoria da
Literatura em suas fontes (2. ed., 1983), Seminário de ficção mineira II (1983), O livro
do seminário (1983), Guimarães Rosa (1991), Crivo de papel (1998), Veredas no sertão
rosiano (2007). Como se trata de livros muito conhecidos e debatidos pela crítica
especializada, propõe-se uma breve referência ao primeiro texto rosiano escrito
por professor Benedito Nunes em 1957: “Primeira notícia sobre Grande sertão:
veredas”, estampado no Jornal do Brasil, de 10 de fevereiro de 1957.
O artigo de 1957, lido em confronto com a tradição crítica que se formou
em torno de Guimarães Rosa na última década, põe em foco o vínculo entre
Guimarães Rosa e Mário de Andrade. Além disso, discutem-se a linguagem, o
processo narrativo, o problema do gênero, entre outros aspectos.
Para estabelecer a peculiaridade da linguagem rosiana, Benedito Nunes
cita um trecho de Euclides da Cunha:
5
Idem, ibidem, p. 200-201. Estiram se então planuras vastas. Galgando as pelos taludes, que as soerguem
6
NUNES, Benedito. A maté- dando lhes a aparência exata de tabuleiros suspensos, topam se, a centenas de
ria vertente. In: — et al. Semi-
nário de ficção mineira II. Belo metros, extensas áreas ampliando se, boleadas, pelos quadrantes, numa
Horizonte: Conselho Estadu- prolongação indefinida, de mares. É a paragem formosíssima dos campos gerais,
al de Cultura, 1983. p. 9.
7
CUNHA, Euclides da. Os expandida em chapadões ondulantes – grandes tablados onde campeia a
Sertões. Ed. Crítica. São Paulo: sociedade rude dos vaqueiros...7
Brasiliense, 1985. p. 34.

da palavra 189
O texto rosiano apresenta-nos em uma “nar-ração inteiriça” e oscila,
abandonando-se a língua culta, entre dialeto regio-nal e criação arbitrária. A
inovação introduzida pelo autor mineiro se justifica esteticamente pela
“necessidade irrecorrível, exigida pela natureza do próprio romance, cuja tra-ma,
situações e personagens demandavam forma especial de tratamento.”8
No que diz respeito à técnica narrativa, Benedito Nunes apoia-se no
conceito de discurso livre para explicar a autonomia do narrador em relação ao
romancista
Ele não é, entretanto, o narrador controlado pelo romancista que, em geral,
quando adota este recurso de fa-zer com que o personagem exponha os
acontecimentos ou as próprias idéias, não desaparece atrás de sua criação e com
ela não se confunde. Mas, nesse romance, o autor quis se enredar num problema
dificílimo de técnica. Como permitir que Riobaldo falasse, num discurso livre,
ele mesmo contando a sua história, sem desfigurar-se a condição humana do
sertanejo, inculto, mas extremamente sensível, ligado ao mundo pelo constante
pelejar, com um código moral diferente do nosso, sem dúvida e, ainda, com seu
linguajar próprio, limitado, regional? 9

A relação Mário de Andrade vs. Guimarães Rosa – depois retomada por


Mary Daniel e outros intérpretes – é um dos eixos do artigo de 1957. O linguajar
do sertão se transforma em linguagem artística, em estilo, resolvendo o problema
do regionalismo, debatido desde a recepção crítica primeira de Sagarana.

Sob esse, aspecto, o processo de Guimarães Rosa não é novo. Mário de Andrade
em Macunaíma fez, guardadas as proporções, o mesmo, for-jando uma língua
que reuniu várias moda-lidades linguísticas existentes no país; en-trosou os termos
de origem indígena aos de origem africana, alterou a sintaxe, deu vi-gor literário
às expressões familiares e de gíria.10

Assim, relacionando, de modo original, a linguagem ao tema, às situações


e aos personagens, fazendo desta “instrumento psicológico”, cuja intensidade
garante a unidade da obra e o seu “poder expressivo que confina com a poesia”.
Não se limitando a uma gesta do sertão, Grande sertão: veredas ultrapassa o
âmbito regional, pois no drama do sertanejo ou do jagunço, “irrompem os grandes
problemas humanos – seja a luta do homem contra natureza que o estimula e o
abate ao mesmo tempo, seja o ímpeto do jagunço que se põe em armas para
defender uma causa indefinível, adota a lei da guerra menos pela rudeza de seu
espírito do que pela necessidade de viver e de realizar o seu destino.”11
Antecipando tanto leituras sociológicas quanto esotéricas da obra-prima
rosiana, Benedito Nunes postula uma interpretação “espiritual” da terra e do
povo que nela vive. Os fatores mesológicos, sociais e históricos, na mesma 8
NUNES, Benedito. Primei-
ra notícia sobre Grande Sertão:
linha do conceito de reversibilidade de Antonio Candido, tomam a forma de um Veredas. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 10 fev. 1957.
problema mais amplo (O Diabo existe ou não? O que leva o homem à crueldade 9
Idem, ibidem.
e à violência?). Ademais, o crítico refere a presença, no texto, de “expressões 10
NUNES, Benedito. Primei-
ra notícia sobre Grande sertão:
acordes com a tradição do misticismo – tanto no oriente como no ocidente”. veredas. Jornal do Brasil, Rio de
Entre essas, cite-se: “Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, Janeiro, 10 fev. 1957.
11
Idem, ibidem.

190 da palavra
de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as coisas não são de
verdade” (GSV, 1956, § 146).
Em consonância com a crítica estilística, dominante na década de 1950,
o estudioso aponta a saturação de elementos pitorescos na linguagem de Grande
sertão: veredas, a fim de defender um estilo afim do poético, dada a sua peculiar
configuração rítmica, algo que Oswaldino Marques já fizera para o obra até
então publicada por Guimarães Rosa:
Mas quase sempre o estilo é extremamente poético. A prosa tem ritmo: é célere
ou lenta conforme a situação exige. [...] Mas raras são as mudanças do léxico e
da sintaxe que não correspondam a uma contorsão necessária, para dilatar o
poder expressivo da linguagem. E assim, carregada de expressividade, essa
linguagem é de um modo geral eficiente. Ela serve de veículo emocional.
Transmite-nos o con-teúdo de uma vida diferente da nossa, põe-nos em contato
com a substância humana outros indivíduos, afetados por condi-ções que não
conhecemos. Mas devido mesmo à comunicação emotiva que se estabe-lece,
participamos de seus problemas, de suas lutas, alegrias e aflições.12

Ao lado das deficiências, entre elas o abuso de desarticulações sintáticas,


contrações e elipses, o crítico salienta, no livro tumultuoso e imenso, episódios hoje
consagrados pela crítica brasileira e estrangeira: o amor de Riobaldo por
Diadorim, a morte dos cavalos assassinados pelos cangaceiros, o encontro da
tropa de jagunços com os catrumanos, as lembranças tumultuosas de Riobaldo,
os últimos combates entre os dois bandos que dividiam o domínio dos “gerais”
e a descoberta de que Dia-dorim é mulher e não homem.
Como se viu, o artigo de 1957, lançado às páginas do Jornal do Brasil, onde
já atuava Mário Faustino, embora datado e ligado a circunstâncias diversas,
insere-se na tradição crítica rosiana, tanto pelas vias abriu, como a aproximação
com Mário de Andrade, quanto pela retomada de perspectivas já em consolidação,
como a via da crítica estilística de um Oswaldino Marques e de um Cavalcanti
Proença. A esse primeiro trabalho, viria somar-se um conjunto de textos que,
malgrado a modéstia de nosso homenageado, mudaram definitivamente a leitura
crítica do maior romancista brasileiro do século XX.

REFERÊNCIAS
ARTIGOS
NUNES, Benedito. Primeira notícia sobre “Grande Sertão: Veredas”. Jornal do
Brasil, 10 fev. 1957.
NUNES, Benedito. Guimarães Rosa e tradução. O Estado de São Paulo. Suplemento
Literário, São Paulo, 14 set. 1963.
NUNES, Benedito. O menino. O Estado de São Paulo. Suplemento Literário, São
Paulo, v. 7, n. 316, p. 4, 2 fev. 1963.
12
NUNES, Benedito. Primei- NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. Revista do Livro, Rio de
ra notícia sobre Grande sertão:
veredas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, v. 7, n. 26, p. 39-62, set. 1964.
Janeiro, 10 fev. 1957.

da palavra 191
NUNES, Benedito. Guimarães Rosa e tradução. Leitura, Rio de Janeiro, v. 24, n.
94-95, p. 40-2, maio-jun. 1965.
NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. O Estado de São Paulo.
Suplemento Literário, São Paulo, v. 9, p. 2-3, 27 de mar. 1965.
NUNES, Benedito. A Viagem. O Estado de São Paulo. Suplemento Literário, São
Paulo, v. 10, n. 509, p. 6, 24 dez. 1966.
NUNES, Benedito. A viagem do Grivo. O Estado de São Paulo. Suplemento Literário,
São Paulo, 10 de jun. 1967. p. 3.
NUNES, Benedito. A viagem do Grivo. O Estado de São Paulo. Suplemento Literário,
São Paulo, 17 de jun. 1967. p. 5.
NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. Minas Gerais. Suplemento
Literário, Belo Horizonte, v. 2, n. 65, p. 7, 25 nov. 1967.
NUNES, Benedito. Interpretação de Tutaméia. O Estado de São Paulo. Suplemento
Literário, v. 11, n. 543, 2 set. 1967.
NUNES, Benedito. Guimarães Rosa em novembro. Minas Gerais. Suplemento
Literário, Belo Horizonte, v. 3, n. 117, p.1, 23 nov. 1968.
NUNES, Benedito. A Rosa o que é de Rosa. O Estado de São Paulo. Suplemento
Literário, v. 13, n. 619, p. 6, 22 mar. 1969.
NUNES, Benedito. Aspetti della prosa brasiliana contemporanea. Aut Aut,
Milano, n. 109-110, p. 116-123, Gennaio-Marzo 1969.
NUNES, Benedito. Gênese e estrutura. O Estado de São Paulo. Suplemento Literário,
São Paulo, v. 13, n. 642, 20 nov. 1971.
NUNES, Benedito. A viagem do Grivo. Minas Gerais. Suplemento Literário, Belo
Horizonte, v. 9, n. 398, p. 4-5, 6 abr. 1974.
NUNES, Benedito. Literatura — filosofia: análise de Grande sertão: veredas, de
João Guimarães Rosa. Cadernos/PUC, Rio de Janeiro, n. 28, p. 7-24, 1976.
NUNES, Benedito. Grande sertão: veredas: uma abordagem filosófica. Bulletin des
études portugaises et brésiliennes, Paris, ADPF, n. 44-45, p. 389-404, 1985.
NUNES, Benedito. Ensaio re-vela lado esotérico de Rosa. Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, 3 set. 1994.
NUNES, Benedito. Leitura filosófica de Guimarães Rosa. Arquivo Suplemento
Literário de Minas Gerais — SEC, n. 19, p. 20-2, nov. 1996.
NUNES, Benedito. Leitura filosófica de Guimarães Rosa. Minas Gerais, Suplemento
Literário, Belo Horizonte, p. 20-22, nov. 1996.
NUNES, Benedito. O mito em Grande sertão: veredas. Scripta. Belo Horizonte, v.
1, n. 1, p. 33-40, 1997.
NUNES, Benedito. O mito em Grande sertão: veredas. Scripta. Belo Horizonte, v.
2, n. 3, p. 33-40, 2.º sem. 1998.

192 da palavra
NUNES, Benedito. O mito em Grande sertão: veredas. Moara. Belém, n. 14, p. 9-
19, jul./dez. 2000.
NUNES, Benedito. O autor quase de cor: rememorações filosóficas e literárias.
Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo, ns. 20-21, p. 236-244, dez. 2006.
NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa Asas da Palavra, Belém,
v. 10, n. 22, p. 71-85, 2007.

LIVROS
NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969. 278 p.
NUNES, Benedito. O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. 279 p.
NUNES, Benedito. Prefácio. In: ALBERGARIA, Consuelo. Bruxo da linguagem
no Grande Sertão: leitura dos elementos esotéricos na obra de Guimarães Rosa.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977. p. 13-15.
NUNES, Benedito. Literatura e filosofia. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da
Literatura em suas fontes. 2.. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. v. 1, p.
188-207.
NUNES, Benedito. A matéria vertente. In: — et al. Seminário de ficção mineira II.
Belo Horizonte: Conselho Estadual de Cultura, 1983. p. 9-39.
NUNES, Benedito. O romance. In: O livro do seminário; Bienal Nestlé de Literatura
Brasileira. São Paulo: LR Editores, 1983. p. 43-70.
NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: COUTINHO,
Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1991. p. 144-169.
NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: ROSA, João
Guimarães. Ficção Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 1, p. 112-
141.
NUNES, Benedito. De Sagarana a Grande Sertão: Veredas. In: Crivo de papel. São
Paulo: Ática, 1998. p. 247-262
NUNES, Benedito. Bichos, plantas e malucos no sertão rosiano. In: SECCHIN,
Antônio Carlos et alii. Veredas no sertão rosiano. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. p.
19-28.
OUTROS AUTORES
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Ed. Crítica. São Paulo: Brasiliense, 1985. 728 p.

da palavra 193
194
da palavra
Foto: Rosário Lima
O universalismo
de Benedito Nunes*

Victor Sales Pinheiro

“combinar o mais acurado localismo


ao mais autêntico senso universalista”
Benedito Nunes, Do Marajó ao arquivo
“nuestra tradición es toda la cultura occidental”
Jorge Luis Borges, El escritor argentino y la tradición

Na resenha que escreveu sobre a primeira obra de Benedito Nunes, O


mundo de Clarice Lispector (Ed. Governo do Estado do Amazonas, 1966), Vilém
Flusser aponta a ironia presente na sua apresentação, que a define como “uma
contribuição à cultura regional da Amazônia”.
A ironia identificada pelo filósofo tcheco-brasileiro estaria na contradição
que a idéia de cultura regional apresentava à verdadeira universalidade do conjunto
de ensaios de Benedito Nunes, os quais Flusser inscreve, ao lado da ficção de
Clarice Lispector, na “conversação geral que se desenvolve no Ocidente”, sendo “prova
da maturidade e da universalidade do pensamento brasileiro”. Por se tratar de “uma
contribuição para a temática fundamental da nossa cultura”, continua Flusser, o livro
de Benedito Nunes merece “não apenas uma distribuição ampla no Brasil, mas
também traduções para outras línguas.”1
* Escrito como prefácio ao A questão subjacente à observação de Flusser é a de que, embora a origem
livro NUNES, Benedito. Do
Marajó ao arquivo: um breve pano- de Benedito Nunes seja a Amazônia, o seu valor intelectual não se limita de
rama da cultura no Pará. Organi-
zação Victor Sales Pinheiro.
modo algum às fronteiras regionais. Da mesma forma, com esta noção universalista
Belém: EDUFPA (no prelo). de cultura, Benedito Nunes se aproxima dos seus conterrâneos, estudando e
1
FLUSSER, Vilém. O mundo
de Clarice Lispector, de Benedito dialogando com a cultura desenvolvida “no” Pará, mas que não se restringe a ser
Nunes. Publicada no jornal O simplesmente paraense. Com efeito, Benedito Nunes não se refere à “literatura
Estado de São Paulo, em 23 de
junho de 1968. amazônica”, mas à “literatura da Amazônia”, a fim de sublinhar a procedência da

da palavra 195
arte literária sem recair nos localismos de qualquer perspectiva regionalista
(Benedito Nunes ensina o caminho de volta – entrevista a José Castello). Interessa-lhe os
autores que se inspiram na “região ou na cor local como meio de passagem ao universal”
(Meus poemas favoritos, ontem e hoje), sendo este o critério de aferição do valor de
uma obra de temática regional.
Próximo de uma enciclopédia pela extensão do horizonte cultural do autor,
este livro recolhe praticamente toda a produção de Benedito Nunes, ao longo
de mais de 50 anos, sobre autores e temas que compõem a cultura no Pará, da
qual ele não só é um dos mais argutos estudiosos como um dos mais reconhecidos
protagonistas. Os escritos deste volume são marcados pela diversidade de
for matos de que se reveste o gênero ensaístico, constante de estudos
monográficos, crônicas, conferências, entrevistas, apresentações, prefácios e
orelhas de livros. “Gênero essencialmente flexível” - como mostrou Alexandre
Eulalio no seu premiado estudo O ensaio literário no Brasil-, o ensaio é marcado
por uma elasticidade que concede ao pensamento mover-se em peças curtas ou
composições longas, “dentro de um campo que compreende tanto a erudição
pura quanto o apontamento ligeiro do fait divers”2.
Filósofo que encontra na estética o eixo central de suas reflexões, é,
sobretudo, no âmbito da crítica literária que Benedito Nunes se concentra - o
que justifica a predominância de estudos voltados à poesia e à prosa paraenses
neste livro.
Mas a resenha crítica de Benedito Nunes, mesmo numa breve orelha de
livro, não permanece um comentário acessório da obra estudada, antes a toma
como início de uma reflexão que ganha contornos próprios, não raro
ultrapassando os liames de uma apresentação para alcançar uma exploração
filosófica autônoma, ainda que sintética, de sua camada mais densa, a que origina
a dimensão poética do homem. Na apresentação do livro Infância Vegetal, de
Paulo Vieira, Benedito Nunes revela o pendor reflexivo de sua crítica literária:
“Toda poesia autêntica, legítima, como esta, leva-nos a indagar sobre a essência do poético. O
que é, afinal, isso que constitui a poesia? A força da rememoração da palavra, a presença, feita
verbo, dos arcanos?”

Tema fundamental de seu pensamento, a que dedicou a sua obra de maior


fôlego, Passagem para o poético – poesia e filosofia em Heidegger (Ática, 1986), a essência
do poético é perseguida em vários escritos do presente volume. Concisas
elaborações filosóficas despontam de seus textos curtos; uma definição de poesia,
na orelha escrita para o livro Arquitetura dos ossos, de Age de Carvalho:
“Se as palavras (...) desencadeiam, entre som e sentido, o ‘poder de silêncio’, que concentram,
como apelo capaz de revelar o mundo ao homem e o homem a si mesmo – então quem emprega
as palavras desse modo não-instrumental se faz poeta, porque cria da linguagem e na linguagem 2
EULALIO, Alexandre. O en-
um espaço inter-subjetivo de conhecimento e de encontro dialogal”. saio literário no Brasil. Em:
______. Escritos. Organização
Com uma profunda indagação metafísica principia a apresentação do livro Hong- Berta Waldman e Luiz Dantas.
São Paulo: EdUNICAMP;
Kong de Antônio Moura: EdUNESP, 1992. p.11 e 13.

196 da palavra
“Até que ponto a lírica suporta o ‘desaparecimento elocutório do poeta’, a supressão do sopro
pessoal de sua frase, de respiração expressiva do verso?”

Uma articulação da ação da poesia consta na apresentação de E todas as orquestras


acenderam a lua, de Lilia Chaves:
“O efeito da leitura de poesia se dá por espelhamento. A poesia nos reflete quando o seu
fingimento nos torna reflexivos.”

De fato, o traço distintivo da fisionomia intelectual de Benedito Nunes é a


convergência do crítico literário e do filósofo, harmonicamente afinados na polifonia
de seus escritos. Como ele explica no ensaio de autobiografia intelectual que abre
este volume, Da caneta ao computador ou entre literatura e filosofia, considera-se
“um crítico na acepção mais ampla que acompanha o uso da palavra Crítica em
Kant. (...) Ser crítico literário seria poder estabelecer as condições preliminares da existência do
texto literário, sem esquecer a existência do texto filosófico com o qual aquele se confronta”.

Porém não é só com a tradição filosófica que a crítica de Benedito Nunes


dialoga. Reiteradas vezes, ele lembra que nenhum poeta anda sozinho, que poeta é
ser de companhia, pois “a poesia brota da poesia, o princípio de um poeta está em outros
poetas” (O nativismo de Paes Loureiro); por isso, na compreensão dos literatos
paraenses, interessa-lhe relacioná-los às fontes da tradição local, nacional e
ocidental que os animam, ligando, por exemplo, Dalcídio Jurandir a Érico
Veríssimo e Proust, Haroldo Maranhão a Mario de Andrade e Rabelais, Benedicto
Monteiro a Inglês de Souza, Bruno de Menezes a Jorge de Lima e Mallarmé,
Paulo Plínio Abreu a Augusto Frederico Schmidt e Rilke, Ruy Barata a Baudelaire
e Homero, Mário Faustino a Cecília Meireles e Ezra Pound, Max Martins a
Drummond e Dylan Thomas, Paes Loureiro a Bruno de Menezes e Maiakovski,
Vicente Cecim a Nietzsche, Age de Carvalho a Max Martins e Rimbaud, Antonio
Moura a João Cabral e Laforgue, Paulo Vieira a Mário Faustino. Leitor de Eliot,
Benedito Nunes sabe do grande crítico e poeta inglês que:
“No poet, no artist of any art, has his complete meaning alone. His significance, his appreciation
is the appreciation of his relation to the dead poets and artists. You cannot value him alone; you
must set him, for contrast and comparasion, among the dead”.3

Não se pode julgar um poeta isoladamente, mas deve-se incluí-lo no seio


3
ELIOT, T.S. Tradition and the
individual talent. Em:____ Se- da tradição que alimenta a sua experiência literária individual. De fato, a obra de
lected essays. Londres: Faber and Benedito Nunes ratifica o juízo de Eliot: “Honest criticism and sensitive appreciation
Faber, 1999, p.15.
4
ELIOT, T.S. Tradition and the is directed not upon the poet but upon the poetry”4.
individual talent. Em:____ Se-
lected essays. Londres: Faber and Ao costurar a cadeia de influxos da tradição literária paraense, incluindo-
Faber, 1999, p.17. a no contexto maior da literatura brasileira, esta já dimensionada na experiência
5
Cf. NUNES, Benedito. Her-
menêutica e poesia – o pensamento
literária ocidental, o universalismo de Benedito Nunes sobressai como o traço
poético. Organização e apresen- distintivo de sua obra, que abarca, portanto, a teoria e a história literárias, sem
tação Maria José Campos. Belo
Horizonte: Ed.UFMG, 1999 e prejuízo da já referida elaboração filosófica de um pensamento poético que torne
NUNES, Benedito. Poética do
pensamento. Em:______ Crivo de
hermeneuticamente fecundo o diálogo entre Literatura e Filosofia5. Deste modo,
Papel. São Paulo: Ática, 1998. o crítico assume “a relevância histórico-cultural” que lhe cabe, porque

da palavra 197
“julgar uma obra individual é, antes de mais nada, assinalar-lhe a posição no conjunto de que
participa. (...) E o que a crítica julga, em cada caso, no ciclo de civilização a que pertence a experiência
literária, representada, refletida ou modificada pela obra, é, afinal, toda a literatura” 6.

Além de problematizar a essência do poético, o que lhe concede dignidade


filosófica, e avaliar a experiência literária individual contextualizando-a na
tradição a que pertence, o que lhe dá alcance teórico e histórico, a relevância
cultural da crítica de Benedito Nunes envolve, ainda, dois aspectos fundamentais:
uma fértil interação intelectual com os escritores paraenses e uma participação,
ao lado da literatura estudada, na compreensão da realidade amazônica.
A crítica de Benedito Nunes, iniciada na década de 50 e estabelecida na
de 60, nasce consciente da sua função constitutiva da literatura como “um pólo
de tensão com a escrita dos escritores”, como ele a define em Crítica literária no Brasil,
ontem e hoje7. Ela sempre se orientou, portanto, no sentido de cumprir o importante
papel cultural que desempenha “como teoria da literatura, não um elemento menor e
dispensável em sua prática”, para dizer com Northrop Frye8. No Brasil, a década de
50, foi, segundo Afrânio Coutinho, “o momento em que se adquire a consciência
exata do papel relevante da crítica em meio à criação literária”, como “atividade reflexiva
de análise e julgamento”, “detentora de uma posição específica no quadro da literatura”9.
O contato que Benedito Nunes desde jovem estabeleceu com Haroldo
Maranhão, Max Martins, Mário Faustino e Ruy Barata, testemunha um profícuo
diálogo entre literatura e crítica, e remonta aos seus primeiros escritos como
crítico, neste livro representados pelo ensaio O anjo e a linha, de 1952, sobre o
segundo livro de Ruy Barata, A linha imaginária. Em 1948, aos 18 anos, Benedito
Nunes publicou um ensaio denominado Posição e destino da literatura paraense10,
afirmando a identidade da nova geração de intelectuais, poetas e escritores, que se 6
NUNES, Benedito. Conceito
de forma e estrutura literária.
formava no seio do Suplemento Literário da Folha do Norte, dirigido por Haroldo Em:_____. A Clave do poético.
Maranhão. No final de 1950, sob o pseudônimo de João Afonso, Benedito Nunes Organização e apresentação
Victor Sales Pinheiro. São Pau-
escreverá a primeira crítica sobre os seus amigos poetas, intitulada Dez poetas lo: Cia das Letras, 2009. (no
paraenses11, dentre eles Ruy Barata, Max Martins, Mário Faustino e Haroldo prelo)
7
NUNES, Benedito. Crítica
Maranhão (que, à época, como Benedito Nunes, escrevia poesias). Esses autores literária no Brasil, ontem e hoje.
Em:_____. A Clave do poético.
pertencem tanto à biografia quanto à bibliografia de Benedito Nunes, que os Organização e apresentação
estudou e divulgou, organizando, prefaciando, resenhando os seus livros, muitos Victor Sales Pinheiro. São Pau-
lo: Cia das Letras, 2009. (no
dos quais interveio partejando as idéias que os originaram. Por isso, um texto prelo)
como Max-Martins, mestre-aprendiz, assim como O nativismo de Paes Loureiro, 8
FRYE, Northrop. O caminho
critico. São Paulo: Perspectiva,
constituem importantes capítulos da história intelectual paraense, protagonizada 1973. p.12.
9
COUTINHO, Afrânio. A
e pensada por Benedito Nunes. Na seção Lembranças, as crônicas de Benedito crítica literária no Brasil – 1. Em:
Nunes ajudam a reconstruir aspectos do passado de uma das gerações de _____. Crítica e Poética. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização
intelectuais paraenses mais férteis do século 20, através de micro-relatos Brasileira. 1980. p. 83.
memorialísticos que sublinham momentos da vida de Benedito Nunes ao lado 10
NUNES, Benedito, Posição
e destino da literatura paraense.
de, por exemplo, Francisco Paulo Mendes, Haroldo Maranhão, Mário Faustino, Belém: Suplemento Literário
da Folha do Norte, n.60, 01/
Max Martins, Alonso Rocha, Jurandir Bezerra, Anunciada Chaves e Arthuz 01/48.
Cezar Ferreira Reis. 11
NUNES, Benedito (sob o
pseudônimo de João Afonso).
Como se lerá em Francisco Paulo Mendes, para além da crítica literária, o grupo Dez poetas paraenses. Belém: Su-
de amigos de que Benedito Nunes fazia parte, reunidos em torno do Suplemento plemento Literário da Folha
do Norte n. 164, de 31/12/
Literário da Folhe do Norte, teve de Francisco Paulo Mendes uma de suas 1950.

198 da palavra
influências mais marcantes, pela atenção que o grande professor concedia à
literatura, elevada à dimensão de reveladora da realidade mais profunda do
homem, individual e socialmente considerado. Como lembra Benedito Nunes
na crônica Devoção à poesia, para o professor Mendes, “a literatura era poesia, e a
poesia maneira de sentir e pensar, como descobrimento da vida na linguagem”. Esta força
pensante da literatura influi decisivamente na interpretação de Benedito Nunes
da realidade amazônica, refletida e absorvida pela literatura que a desvela. De
fato, como mostra Paul Ricoeur, uma das fontes principais do pensamento
hermenêutico de Benedito Nunes,
“a ficção é o caminho privilegiado da descrição da realidade, e a linguagem poética é aquela que,
por excelência, opera aquilo que Aristóteles, refletindo sobre a tragédia, chamava de mimesis.
A tragédia, com efeito, só imita a realidade, porque a recria através de um mythus, de uma
‘fábula’, que atinge sua mais profunda essência.”12

Assim, considerando o modo próprio de pensamento da ficção - “o


distanciar-se da realidade imediata, que a nega para recuperá-la esteticamente”13 -, a análise
de Benedito Nunes de Verde Vagomundo, de Benedicto Monteiro, é emblemática
sob dois aspectos centrais de sua crítica a autores paraenses, a atenção à
“incorporação literária de aspectos da realidade amazônica” e a universalidade buscada
na literatura regional. Benedito Nunes nota que neste romance “a história, como
processo social e político, entrama-se à história como poesia e é por esta interpretada”, pois
“a ficção toma pé na realidade e a ela se volta reflexivamente para compreendê-la”. Ao
atingir a essência profunda da realidade, a que se refere Ricoeur, a narrativa de
Benedicto Monteiro eleva-se à dimensão mítica, por plasmar a essência da vida
e do tempo da cidade de Alenquer, “espécie de microcosmo do interior da Amazônia”
aberto à universalidade do macrocosmo que o envolve e condiciona. Segundo Benedito
Nunes, nesta composição épica, a cidade se reveste de uma “função exemplarista”,
proporcional à força arquetípica que alcança um dos personagens principais do
romance, o caboclo Miguel,

“homem enraizado à terra, e através de cuja visão, indissociável das peculiaridades da fala local,
descobrimos os elementos da Natureza, da cultura e do trabalho, qualificados numa perspectiva
penetrante que os desveste (às vezes tão-só pela força poética da nomeação, da repetição e da
enumeração) da viciosa retórica que lhe impôs um paisagista serôdio, para realçar a invasora
presença das coisas e a dureza da condição humana”. (Recensão crítica de Verde Vagomundo,
de Benedicto Monteiro)

Na análise da literatura regional, importa-lhe as obras que, como Verde


12
RICOEUR, Paul. A função
hermenêutica do distanciamento. Vagomundo, souberam romper “com as limitações do regionalismo”, integrando, “numa
Em: _____. Hermenêutica e ideo-
logias. Organização, tradução e narrativa universalmente representativa, o mais característico e o mais peculiar tanto
apresentação Hilton Japiassu. do meio físico e cultural quanto do estado das relações humanas, inclusive sociais
Petrópolis: Vozes, 2008. p.66-
67 e políticas”. Esta universalidade, continua Benedito Nunes, torna uma obra
13
NUNES, Benedito. Macha-
do de Assis e a filosofia. Em: “representativa do regional na medida em que o vincula ao nacional e ao mundial, e a
______. No tempo do niilismo e universalidade concreta dos vários contextos – lingüísticos, sociológicos, religiosos, políticos”.
outros ensaios. São Paulo, Ática,
1993. p.131 (Recensão crítica de Verde Vagomundo, de Benedicto Monteiro)

da palavra 199
No âmbito do debate sobre o movimento regionalista da literatura
moderna brasileira, Benedito Nunes acolheu a noção de transregional com que
Antonio Candido caracterizou a universalidade da obra de Guimarães Rosa, que
transcende a região14, “graças à incorporação em valores universais de humanidade”, o que
“transforma a nossa realidade particular brasileira em substância universal”15. Desde os
primeiros e seminais ensaios de O Dorso do Tigre, a camada metafísica e mitopoética
da obra de Guimarães Rosa será um dos temas mais estudados por Benedito
Nunes16, que, com esta mesma noção filosófica de universalidade transregional, se 14
CANDIDO, Antonio. Notas
aproxima da literatura regional da Amazônia. de crítica literária – Sagarana -
1946. Em: _____. Textos de in-
No importante ensaio Literatura e cultura de 1900 a 1945 – panorama para tervenção. Seleção, apresentação
estrangeiro, Antonio Candido nota que “a literatura contribuiu com eficácia maior e notas de Vinicius Dantas. São
Paulo: Ed.34, 2002. p.183-189.
do que se supõe para formar uma consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas 15
CANDIDO, Antonio. No
Grande sertão - 1956. Em:
brasileiros”17; e que “a dialética do localismo e do cosmopolitismo” inspirou a _____. Textos de intervenção. Se-
cadência “da nossa vida espiritual”, “por meio da tensão entre o dado local (que se leção, apresentação e notas de
Vinicius Dantas. São Paulo:
apresenta como substância da expressão) e os moldes herdados da tradição européia (que Ed.34, 2002. p.190,192.
se apresentam como forma de expressão)”18. Segundo Benedito Nunes, o sucesso da 16
Cf. NUNES, Benedito, O
dorso do tigre. São Paulo: Pers-
síntese, superadora do antagonismo dialético do regional e do universal, operada pectiva, 1969 (3ª ed.; Ed.34,
2009, no prelo); ________
por Benedicto Monteiro reside na linguagem adotada pelo personagem arquetípico Literatura e Filosofia - Grande
de Verde Vagomundo, Miguel. Sertão: veredas (em: LIMA, Luiz
Costa. (org.) A teoria da literatu-
ra em suas fontes. Vol.1. 3ª ed.
“Nele, o modo de ser e o modo de falar acham-se enraizados, com a visão das coisas correspondentes, Rio de Janeiro: Civilização
a uma forma de sentir e valorizar a existência pelo ato de narrá-lo oralmente, de transformá- Brasileira, 2002. pp. 199-219);
________. A matéria vertente
lo em matéria de múltiplas histórias contadas que se entrelaçam.” (Resenha crítica de O Carro (em: Seminário de Ficção mi-
dos Milagres, de Benedicto Monteiro) neira II. Conselho Estadual de
Cultura de Minas Gerais. Belo
Descerrando o mundo nativo amazônico, o personagem Miguel, por ter – na Horizonte, 1983. pp. 09-28.);
________ O mito em Grande
esteira do jagunço Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas - o “seu modo de ser radicado Sertão: Veredas (em: Scripta –
na linguagem”, atinge altitude arquetípica, para Benedito Nunes, sem recair numa Revista do Programa de Pós-
Graduação em Letras e do
“súmula abstrata do homem da Amazônia, como paradigma de caboclo”, recorrente Centro de Estudos Luso-afro-
brasileiros da PUC/Minas.
deturpação do autêntico universalismo. Antonio Candido mostra, em A literatura Belo Horizonte, vol.2, nº 3,
e a formação do homem, que “o regionalismo estabelece uma curiosa tensão entre tema e p.33-40, 2ºsem., 1998.); e
______ De Sagarana a Grande
linguagem”, contorcendo o autor que se abastece da experiência local, porém a Sertão: veredas (em: ______ Cri-
exprime numa linguagem dela distanciada. Pois, se, por um lado, “o tema rústico vo de papel. São Paulo: Ática,
1998. Pp.-247-262.)
o direciona para uma linguagem inculta e cheia de peculiaridades locais”, por 17
CANDIDO, Antonio. Litera-
tura e cultura de 1900 a 1945. Em:
outro, “a convenção normal da literatura, baseada no postulado da _____ Literatura e sociedade. 9ª
inteligibilidade” o retém numa “linguagem culta e mesmo acadêmica”, que lhe ed. rev. Rio de Janeiro: Ouro
sobre azul, 2006. p.139-140.
dissolve a vivência local na generalidade das fórmulas abstratas19. 18
CANDIDO, Antonio. Litera-
Como os de Benedicto Monteiro, os romances de Dalcídio Jurandir tura e cultura de 1900 a 1945. Em:
_____ Literatura e sociedade. 9ª
também operam a coerente síntese do regional e universal, pautado no equilíbrio de ed. rev. Rio de Janeiro: Ouro
sobre azul, 2006. p.117.
uma linguagem que absorveu as tendências linguísticas populares sem recair na 19
CANDIDO, Antonio. A lite-
ideológica dualidade de notação da fala, que objetifica o exótico e reforça o caráter ratura e a formação do homem. Em:
_____. Textos de intervenção. Se-
distanciado e projetado que o estereotipa - procedimento comum no primeiro leção, apresentação e notas de
regionalismo brasileiro, como nota Antonio Candido20. Segundo Benedito Nunes, Vinicius Dantas. São Paulo:
Ed.34, 2002. p.87.
um romance como Passagem dos inocentes, de Dalcídio Jurandir, requalifica a narrativa 20
CANDIDO, Antonio. A lite-
ratura e a formação do homem. Em:
pela linguagem, pela “adesão da voz de quem narra à fala dos personagens, o que leva a _____. Textos de intervenção. Se-
um grau máximo de aproximação o ato de narrar e a maneira de ver e sentir o mundo” leção, apresentação e notas de
Vinicius Dantas. São Paulo:
(Dalcídio Jurandir: as oscilações de um ciclo romanesco) Ed.34, 2002. p.89.

200 da palavra
Esteticamente impactado por Grande Sertão: Veredas, que despertou nele
as mais recônditas potencialidades de sua linguagem, Dalcídio Jurandir explora
vivamente o “imaginário linguístico da região”, investindo na autenticidade da
fala dos personagens, pelo uso de termos locais ou regionais e expressões coloquiais,
metamorfoseando a língua em respeito à “realidade humana, social e
politicamente à qual se ata”. (Dalcídio Jurandir: as oscilações de um ciclo romanesco).
Filosoficamente consciente de que “a linguagem é um modo de ser, de sentir, de agir”,
na primeira resenha que escreveu sobre Belém do Grão Pará, de Dalcídio Jurandir,
publicada em 1961 no jornal O Estado de São Paulo, Benedito Nunes reforça o
poder da linguagem de transfundir, mais do que a estilização folclórica da cultura
regional, o modo de ser belenense:

“Mas a recriação poética de Belém, quer como paisagem, quer como meio social
– os dois aspectos formando uma só realidade – para exprimir o que ela tem de
típico, de característico, de concreta universalidade, baseia-se no aproveitamento das
peculiaridades linguísticas regionais. Os modismos, locuções e vocabulários privativos
de consumo local, além da forma sintática que a fala nortista adota
espontaneamente, permitiram, melhor do que outros aspectos mais estabilizados e
mais conhecidos da cultura regional, já em estado de folclore, penetrar na psicologia do
povo e na sua maneira de interpretar a vida.” (Belém do Pará)

Benedito Nunes também considera universal o nativismo de Paes Loureiro,


que sorveu a substância do regional para esculpir na linguagem poética “uma
visão amazônica do mundo”. Herdeiro da primeira geração modernista paraense,
liderada por Bruno de Menezes, Paes Loureiro explora o imaginário amazônico
local para elevá-lo poeticamente à dimensão perene do mito, exprimindo o
universal humano da cultura nativa, desvelando a humanidade da várzea e da floresta.
Mas, para tanto, o poeta precisou enraizar a sua linguagem nesta seiva local que
a nutre, “a partir do uso regional da língua portuguesa, aproveitando-lhe o sumo
das peculiaridades léxicas”. (O nativismo de Paes Loureiro)
Se não é o critério localista que concede valor às obras literárias, tampouco
será o critério nacionalista que o originou, sob risco de restringir a liberdade estética
de imaginação do autor a uma temática pré-estabelecida, seja a região ou a nação
que o cerca, o beco que não sai do beco e se contenta com o beco, como dizia Mário de
Andrade. Além de transregional, o universalismo de Benedito Nunes aponta também
para o transnacional, noção com que conclui a extensa e erudita monografia
Historiografia literária do Brasil21. Com efeito, Machado de Assis soube arrematar,
com o refinamento que lhe é peculiar, o debate oitocentista em torno da crítica
21
NUNES, Benedito. Histori- romântica, no célebre ensaio Instinto de Nacionalidade, que permanece um dos
ografia literária do Brasil. Em:
______. Crivo de papel. São Pau- manifestos maiores da inteligência universalista brasileira. Diz Machado de Assis:
lo: Ática, 1998, p.245-6
22
ASSIS, Machado. Instinto de “Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente
nacionalidade – Notícia da atual
literatura brasileira, 1873. Em:
alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão
COUTINHO, Afrânio (org.) absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento
Caminhos do pensamento crítico.
Vol.I. Rio de Janeiro: Ed. Ame-
íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos
ricana, Prolivro, 1974. p.345. no tempo e no espaço.”22

da palavra 201
Historiador, teórico e crítico literário, Benedito Nunes compreende que a
questão da identidade literária nacional, mesmo que formalmente superada a
problematização da independência e da autonomia da literatura brasileira,
permanece nas ramificações historiográficas que resultaram de seu “campo
metafórico”:
“Tal ‘campo metafórico’ espraiada no Indianismo, no Regionalismo e em outras variantes,
localistas e particularistas, do nacional, pertence ao conjunto simbólico e valorativo de alcance
ideológico e político chamado Cultura Brasileira, com o qual confina a Historiografia literária,
mas que a própria Historiografia literária contribuiu para formar.” 23

Desse modo, a Historiografia literária de Benedito Nunes, consciente do


papel intelectual que desempenha no contexto da formulação da noção de
Cultura Brasileira, tronco de que se divisa a Paraense, seguirá a exigência de
Machado de Assis, e não exigirá dos autores paraenses temas locais, regionais
ou nacionais, antes valorizará o alcance universal dos autores que souberam, a
exemplo de Ruy Barata, Mário Faustino e Max Martins, elaborar poeticamente
temas perenes, como o amor e a morte, a partir do diálogo com a tradição cultural
do ocidente.
Na mesma direção transnacionalista, Jorge Luis Borges lembra, no lúcido
ensaio El escritor argentino y la tradición, que não há camelos no Alcorão; a ausência
de “cor local” no livro árabe por excelência não o torna menos autêntico, como
Shakespeare não se distanciou de seu espírito inglês por compor Hamlet, um tema
dinamarquês, ou Macbeth, um tema escocês. O que diz Borges do caráter
restringente do nacionalismo argentino vale para caracterizar a transnacionalidade
da historiografia literária de Benedito Nunes:

“los nacionalistas simulan venerar las capacidades de la mente argentina pero quieren limitar el
ejercicio poético de esa mente a algunos pobres temas locales, como si los argentinos solo pudiéramos
hablar de orillas y estancias y no del universo.”24

Borges reivindica o direito dos argentinos, dos sul-americanos em geral,


de herdar toda a cultura ocidental, posto que ela lhes pertence; sem nenhuma
imposição nacional empobrecedora, devem pensar que o seu patrimônio é o universo e
ensaiar todos os temas. Estudioso do ideário estético modernista, tanto do brasileiro
como do paraense, Benedito Nunes acrescentaria ainda: devemos devorar
23
NUNES, Benedito. Histori-
ografia literária do Brasil. Em:
canibalmente a cultura ocidental, digerir-lhe todos os temas e abrasileirá-los pela ______. Crivo de papel. São Pau-
lo: Ática, 1998, p.246
“originalidade nativa” que os torna também nossos25, como fez Paes Loureiro, 24
BORGES, Jorge Luis. El es-
que, “no estilo da antropofagia oswaldiana”, “digeriu o universal humano da critor argentino y la tradición. Em:
______ Discusión (1932), Obras
cultura nativa” (O nativismo de Paes Loureiro). Este regime de assimilação devorativa completas I. Buenos Aires: Eme-
da cultura européia equalizou, segundo Benedito Nunes, a dialética do particular cé Editores, 2008. p.321.
25
NUNES, Benedito. Histori-
e do universal na literatura brasileira, prescrevendo o debate nacionalista, e o ografia literária do Brasil. Em:
______. Crivo de papel. São Pau-
regionalista por extensão, de afirmação dos temas e modos expressivos locais lo: Ática, 1998, p.243.
em detrimento daqueles legados pela cultura ocidental26. 26
NUNES, Benedito. Histori-
ografia literária do Brasil. Em:
É com este espírito universal, antropofágico, que Ruy Barata procederá, em O ______. Crivo de papel. São Pau-
Nativo do Câncer, ao repoetizar o regional, ligando a mitologia amazônica à grega lo: Ática, 1998, p.243. Cf.
______. Oswald canibal. São
(Apresentação de Antilogia), como Paes Loureiro, que o segue, numa “revivescência Paulo: Perspectiva, 1979.

202 da palavra
da tradição clássica”, em que figuras míticas, cristãs e pagãs, misturam-se com
icamiabas e iaras, metáforas homéricas e virgilianas (O nativismo de Paes Loureiro),
recurso poético anteriormente adotado por Mário Faustino (cf. A obra poética e a
crítica de Mário Faustino). Universal também é Max Martins, na leitura de Benedito
Nunes, ao elaborar uma erótica poética, que absorve aspectos do pensamento
erótico grego-platônico e oriental-budista, no que têm de comum, a noção de
arte erótica como êxtase, passagem para além do objeto desejado, “tentativa de domação do
tempo, eternização do instante” (Max Martins, mestre-aprendiz). É canibalesca a criação
literária de Haroldo Maranhão, cujo romance O tetraneto del-rei figura o personagem
Torto, que percorre “uma floresta bibliográfica tropical, antropofagisticamente
enxertada, (...) com versos de Mário Faustino, Camões, Carlos Drummond de
Andrade e Fernando Pessoa.” (Recensão crítica de O Tetraneto del-Rei).
A abertura filosófica do pensamento de Benedito Nunes permite-lhe uma
aproximação consistente de literaturas originadas do diálogo com outras
disciplinas, como a de Mário Faustino, poeta e crítico literário, e Haroldo
Maranhão, prosador e historiador. Para interpretá-las, o crítico precisa recolocá-
las novamente no interior do diálogo que as originou, articulando a poesia e a
crítica de Mário Faustino e a forma de narrativa ficcional que absorve a história,
na literatura de Haroldo Maranhão.
O estudo dos romances de Haroldo Maranhão exigiu do crítico uma
consideração filosófica sobre o tema do entrecruzamento da História e da Ficção
- a que Benedito Nunes já dedicara o ensaio Narrativa histórica e narrativa ficcional27,
estudo relacionado ao seu notável livro O tempo na narrativa (Ática, 1988). Em
romances como O tetraneto del-Rei e Cabelos no coração a história é “o suporte real”
da ficção que sobre ela incide, recriando-a, dando-lhe “carne, copo e alma” “na
concretude da ação ficta desenrolada” (História e ficção). No caso específico de
O tetraneto del-Rei, “verdadeira sátira menipéia”, gênero de Luciano e de Petrônio,
de Swift e de Rabelais, o efeito cômico reside na parodística mimese verbal do
estilo da escrita quinhentista, desconstruído e transformado a fim de suscitar
exatamente “o foco de estranhamento do discurso narrativo, de que derivam, a um só
tempo, o alcance satírico da obra e o caráter do largo espaço literário que ela
cria”. (Recensão crítica de O Tetraneto del-Rei). A base hermenêutica do pensamento
de Benedito Nunes, que faz da sua crítica literária um “conhecimento interpretativo
das obras”28, o conduz, renovadamente, à reflexão sobre as relações entre forma
27
Cf. NUNES, Benedito. Nar-
de pensamento e forma de linguagem, para perceber o modo como a literatura relaciona-
rativa histórica e narrativa ficcio- se com outras formas expressivas de ideias, estabelecendo constante conexão
nal. Em: ______. Ensaios filo-
sóficos. Organização e apresen- interdisciplinar com as ciências humanas e com os estudos humanísticos29.
tação Victor Sales Pinheiro. São Com efeito, desde os seus primeiros estudos sobre a cultura no Pará, que
Paulo: Martins Fontes, 2010.
(no prelo) remontam ao final da década de 50, Benedito Nunes nunca se limitou à análise
28
NUNES, Benedito. Literatu- do fenômeno literário, mas a estendeu às outras produções culturais e a incluiu
ra e Filosofia. Em: _____. No
tempo do niilismo e outros ensaios. no contexto maior da vida intelectual do Estado. Como porta-voz da cultura no
São Paulo: Ática, 1993. p. 197.
29
Cf. NUNES, Benedito. Pro- Pará no cenário intelectual brasileiro, na nota Panorama cultural: 1959, da seção
legômenos a uma crítica da razão Crônica de Belém, com que estreou no jornal O Estado de São Paulo, Benedito
estética. Em: ______. A clave do
poético. Organização e apresen- Nunes observa o conjunto das produções culturais de sua cidade, registrando uma
tação Victor Sales Pinheiro. atenção sinóptica e panorâmica às diversas modalidades intelectuais e artísticas -
São Paulo: Cia das letras, 2009
(no prelo) jornalismo, literatura, pintura, teatro, cinema, antropologia, arqueologia, direito

da palavra 203
e história –, como o fará, sucessivamente, em diversas ocasiões, culminando no
ensaio verdadeiramente enciclopédico Do Marajó ao arquivo: um breve panorama
da cultura no Pará, cujo título inspira o do presente livro. Ainda na seção Crônica
de Belém, como crítico literário, Benedito Nunes analisa os livros de Dalcídio
Jurandir e Max Martins, e como humanista de interesse difuso, estuda as pesquisas
arqueológicas de Evans, Megger e Hilbert sobre a cerâmica marajoara e a
geografia filosófica de Eidorfe Moreira. A partir de então, Benedito Nunes
estabelecerá um profícuo diálogo, mediante a prática da interdisciplinaridade,
com intelectuais diversos, principalmente com os estudiosos das ciências
humanas, como o historiador Aldrin Figueiredo, com quem assina o ensaio Luzes
e sombras do iluminismo paraense; na crônica Pará, capital Belém a interlocução é
com Vicente Salles, Roberto Santos, Fábio Castro, Eidorfe Moreira, Augusto
Meira Filho e Ernesto Cruz.
Como se lerá no ensaio Universidade e regionalismo, em que Benedito Nunes
reflete sobre a crise da universidade, a prática da interdisciplinaridade apresenta-se
como reação teórica à crise epistemológica no interior das ciências, consoante a
“época da suspeita”, de que fala Ricoeur, “suspeita do conhecimento totalizador
abrangente”. Se “nenhuma ciência constitui mais um universo isolado de
conhecimento”, essa prática é

“o confronto dialogal, crítico e interpretativo, (...), entre disciplinas, cujas fronteiras movediças,
instáveis, convidam ao debate de conceitos, no esforço de entrosá-los teoricamente para melhor
compreendê-las e para melhor aproveitar-lhes os benefícios da aplicação prática que geram.”
(Universidade e regionalismo)

Consciente não só da necessidade mas da fertilidade de tal atitude


intelectual, o ensaio de Benedito Nunes sobre o pensamento de Armando Dias
Mendes, em À margem do livro, atesta a consistência e a eficácia deste “diálogo
crítico e interpretativo das ciências humanas” e o enraizamento dos dois pensadores na
região Amazônica, pensada a partir da diversidade e universalidade do
conhecimento científico e filosófico. Neste texto, a questão ecológica, articulada,
inicialmente, no contexto geopolítico-econômico do desenvolvimento regional
por Armando Dias Mendes, é refletida na sua dimensão filosófica por Benedito
Nunes, a partir da questão ontológica da técnica, esquecimento do ser resultante
no poder devastador da Terra, tal como proposta por Heidegger. A “conversa”
é intermediada pelo pensamento de Hans Jonas, cujo princípio responsabilidade,
pautado na dimensão ecológica, aproxima e interliga o problema ontológico e o
problema do desenvolvimento, acrescentando-lhes a problemática ética, comum
aos dois pensadores. O esforço intelectual de Armando Dias Mendes de articular
um pensamento econômico-ecumênico coerente que supere os recorrentes
simplismos do desenvolvimento sustentável é retribuído por Benedito Nunes com
um comentário filosófico penetrante, que aponta os impasses do biocentrismo e
do antropocentrismo, e sublinha o valor e o alcance do humanismo ecológico de seu
interlocutor.
No diálogo que Benedito Nunes entretém com os intelectuais paraenses,
ele marca a sua posição de filósofo, atento aos fundamentos epistemológicos das

204 da palavra
ciências humanas. Interessa-lhe ressaltar as diferenças cognitivas das disciplinas,
o alcance de cada olhar sobre o objeto estudado. Assim, sabe que um antropólogo
cultural como Raymundo Heraldo Maués, “fronteiriço das ciências humanas”
entre o historiador e o sociólogo, não considera os fenômenos puros, estudando a
religião sob o foco sociológico e político do conflito grupal, no que se distancia do filósofo
fenomenólogo que busca definir a essência do religioso (Apresentação de Uma outra
invenção da Amazônia). No caso da análise da geografia filosófica de Eidorfe Moreira,
Benedito Nunes aponta para uma possível contradição epistemológica, por
perceber o influxo de certa tendência romântico-idealista no seio do seu realismo
metodológico, uma vez que o pensador geógrafo encara “o amor e o sentimento
pátrio como forças telúricas” e admite “uma correspondência objetiva entre os
estados de ânimo e os aspectos da paisagem”. (Uma concepção geográfica da vida).
Na nota crítica à edição das obras completas de Eidorfe Moreira, Benedito
Nunes retoma essa resenha, acrescentado, ainda, a capacidade do ensaísta “de
elevar mesmo os temas locais, particulares, a um plano de universalidade cultural
e histórica”, infenso ao “prurido localista da pesquisa universitária de rotina no
campo das ciências humanas”, que se voltam diretamente à “realidade concreta”,
esquecendo-se de relacioná-la ao “universal dos conceitos” (Nota crítica à obra
reunida de Eidorfe Moreira).
No contexto da reflexão universalista de Benedito Nunes, esse “prurido
localista”, de que exemplarmente se esquivou Eidorfe Moreira, é a perspectiva
regionalista, presente também na formulação do pensamento teórico, enquanto
“tendência que consagra o regional e não o universal, como medida de valor do conhecimento,
da arte e da literatura” (Universidade e regionalismo). O conjunto de ensaios sobre a
cultura no Pará enfeixados neste livro demonstra a coerência da crítica cultural
e literária de Benedito Nunes, pautados na superação universalista da dialética
do localismo e do cosmopolitismo.
Além desta dimensão filosófica e literária, desde o início de sua intervenção
intelectual no jornal A província do Pará, em 1957, a questão da condição da
cultura no Pará é relacionada à questão econômica de sua subsistência e sua
integração no contexto da sociedade. O diagnóstico cultural de Benedito Nunes,
no final da década de 50, sobre a atividade intelectual na Amazônia demonstra
uma impressionante atualidade:

“Falta-nos vitalidade cultural, simplesmente porque nos falta vitalidade econômica.


O trabalho intelectual puro, em nosso meio mais do que no resto do país, não
pode representar atividade profissional efetiva, garantida economicamente e não
pode alcançar também, significação social. A literatura e a arte são quase proibitivas
entre nós. E os que se dedicam a elas, parecem escarnecer da miséria coletiva,
distanciando-se da maioria, que tolera essas ocupações inusitadas a título de
capricho individualista e ócio domingueiro.” (Inventário e Planejamento)

Não só o isolamento social e a falta de estrutura econômica condizente,


também a desagregação dos intelectuais entre si é apontada por Benedito Nunes
como óbice ao desenvolvimento da cultura letrada na Amazônia.

da palavra 205
“Estão [nossos literatos e artistas] isolados, disseminados, cada qual sonhando
com seu talento, numa existência solipsista a que falta diálogo, a comunicação, a
divergência, a união e a guerra fraterna. (...) Vivem todos extrativamente, da
colheita rala, ao Deus-dará, improvisando e adivinhando. (...) As tentativas
frustradas, a desesperança, a certeza prévia do esforço, as ideias, o talento e a
coragem serão sacrificados pela vida vegetativa, adormecem a sensibilidade e
retardam a inteligência. A desagregação não é aqui um acidente, mas quase um
imperativo.” (Inventário e Planejamento)

O insulamento social, fator de marginalismo e efemeridade das atividades


culturais na Amazônia, é marcado por um amadorismo que obsta o
reconhecimento de que

“a verdadeira consciência artística precisa de cultura autêntica para desenvolver-


se. O talento, como dote pessoal, não basta. É preciso adubá-lo com ideias,
reforçá-lo com o indispensável apoio de subsídios culturais onímodos” (Inventário
e Planejamento)

Neste texto Inventário e planejamento, de 1957, a articulação do sentido


universal da cultura já norteia a reflexão de Benedito Nunes:

“Ele [o intelectual] precisa medir-se com as exigências de sua época, pôr-se em


dia com o movimento geral das ideias, com os problemas sociais, filosóficos,
estéticos e mesmo científicos. Essa atualização é imprescindível para que a sua
atividade tenha um sentido universal. Atualização e tradição não se opõem, mas
se completam. Atualização significa renovar e recriar, sob novas formas, o que
de melhor nos legou a tradição e o que o passado tem de imperecível.” (Inventário
e Planejamento)

A atitude de Benedito Nunes, porém, nada tem de derrotista. O seu


diagnóstico cultural ganha ainda mais consistência se pensarmos que ele
colaborou ativamente para transformar esse quadro, na intensa atividade de
formação que desenvolve como professor e escritor, num esforço pessoal de
transmitir uma cultura universal, sobretudo literária e filosófica, compartilhando
a erudição que persegue de forma autodidata, desde jovem. A sua militância
cultural direcionou-se também para a consolidação de um ambiente universitário que
formalizasse a atividade intelectual, assegurando-lhe “vida objetiva”, à parte dos
indivíduos que constituem as instituições. (Panorama cultural: 1959). Em 1955, Benedito
Nunes será um dos fundadores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade do Pará (Cf. Anuário de literatura brasileira – Pará), posteriormente
federalizada também sob sua iniciativa, em 1974, ano da fundação do Curso de
Filosofia da Universidade Federal do Pará.
Em todas as intervenções culturais de Benedito Nunes pode-se notar o
sentido universalista que o inspira. No manifesto, substancialmente redigido
por Benedito Nunes, do Norte Teatro Escola, grupo amador de autodidatas
fundado em 1957, desponta a inclinação transregional e transnacional, anteriormente
referida:

206 da palavra
“O fato de sermos provincianos no sentido geográfico não nos obriga a que o sejamos também no
sentido cultural. Daí porque pretendemos ligar o nosso teatro ao de todas as épocas e ao de todos
os povos (...). Não somos teatro regional e não nos julgamos acorrentados pelo dever estrito de
levar à cena os textos de autores locais ou mesmo nacionais, (...) Bairrismo e nacionalismo são
incompatíveis com a arte. Distinguimos apenas entre os bons e o maus autores.”30

Assim, o Norte Teatro Escola, liderado por Maria Sylvia Nunes e Angelita
Silva, encenará tanto João Cabral de Melo Neto quanto Sófocles, destacando-se
nos dois Festivais Nacionais de Teatros de Estudantes de que participou (cf. Francisco
Paulo Mendes, para além da crítica literária). Para elevar o nível da cultura teatral
local, o Grupo era também uma Escola, que almejava formar intelectualmente os
interessados, não só atores, autores ou diretores, mas o público em geral, pela
necessidade premente de dar ao teatro a sua “verdadeira função”: “um meio de educar
a sensibilidade e de afirmar a inteligência, para que a primeira se torne mais receptiva e a
segunda mais esclarecida”, “incompatível com o mau gosto, a improvisação”, dos que o
vêem como mera “distração”31. Em 1963, na gestão do reitor José Silveira Neto, do
Norte Teatro Escola surgirá a Escola de Teatro da Universidade Federal do Pará,
liderada por Maria Sylvia Nunes, uma de suas fundadoras e mais atuantes
professoras e coordenada, até 1967, por Benedito Nunes.
A questão da universidade, correlata à da universalidade do conhecimento científico
e filosófico, pode ser considerada o tema que catalisa as intervenções culturais de
Benedito Nunes selecionadas no presente livro. Em 1959, recém fundada a
Faculdade de Filosofia da Universidade do Pará, ele ponderava que “ainda não
se compreendeu a significação pedagógica da Universidade, que, entre nós, pouco tem de
universal e nada de sua amplitude educacional.” Os intelectuais que a compõem
praticam, segundo ele,
“um extrativismo mental deliqüescente, que não os predispõe sequer a explorar,
de maneira autêntica, os motivos regionais, abundantes e quase que inteiramente
inaproveitados, nem os capacita para vôos altos e universais.” (Panorama
cultural: 1959)

Quase 50 anos depois, em 2007, no discurso Universidade e Identidade


Brasileira, Benedito Nunes lembra, mais uma vez, que
30
Manifesto Por um Teatro Es-
cola no Pará, assinado por Be-
nedito Nunes, Maria Sylvia “A Universidade Federal do Pará é uma universidade regional. Regional mas não
Nunes, Angelita Silva, Marga- regionalista. O regionalismo, que tornaria particularidades sociais e culturais do
rida Schivazappa, Candido
Marinho Rocha, Claudio de meio normativas e reguladoras, como a fala, o canto ou o vestuário, é uma
Sousa Barradas, Acyr Castro, demarcação social e cultural limitadora, oposta ao âmbito universal a que a
Rui Barata, Lindanor Celina,
Durval Machado, Adelina Universidade pertence pela sua própria natureza.” (Universidade e Identidade Brasileira)
Cruz, Francisco Paulo Men-
des, Loris Pereira, Wilson Pena,
Alice Teles, Maria Helena Co- No Discurso do quinto aniversário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
elho e Silvia Mara Brasil. Be- Universidade do Pará, em 1960, Benedito Nunes ressalta que a Faculdade de
lém: Suplemento Dominical Le-
tras e Artes do jornal A província Filosofia, é responsável pela formação filosófica da cultura, consoante “o espírito
do Pará, 10/03/1957.
31
Manifesto Por um Teatro Es-
universitário” de investigação permanente, de inquietação dialética, de
cola no Pará. Belém: Suplemento insatisfação intelectual e congregação dos saberes. É através desse “espírito
Dominical Letras e Artes do jor-
nal A província do Pará, 10/03/ filosófico” que a Universidade “tornar-se-á verdadeiramente universal” e terá
1957. “existência cultural”.

da palavra 207
A universalidade atingida na Universidade pelo “espírito filosófico” é a
que a insere na tradição cultural que lhe dá historicidade e lhe revela o caráter
sempre problemático da cultura, pois “os problemas filosóficos são, certamente, os
problemas eternos do homem; mas eles se refletem no espelho temporal de uma
época.” Para Benedito Nunes, sem o conhecimento dessa tradição filosófica, a
Universidade não alcança a sua função de “escola do pensamento”, pois precisamos
conhecer a tradição filosófica viva “para não perdermos a continuidade da própria elaboração
filosófica, que somente pode prosseguir hoje por aquilo que se pensou e concebeu ontem.”
(Discurso pronunciado na sessão comemorativa do quinto aniversário da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Pará - 1960)
O espírito filosófico anima a Universidade, dando-lhe existência cultural
pela “densidade existencial iniludível” da Filosofia, vivida pelos universitários numa
atitude integradora de teoria e prática, que recupera o seu sentido original,
vigorante entre os gregos, de

“investigação dinâmica e não disciplina estática, o eros do conhecimento, o


pensamento em atividade desdobrando as suas possibilidades conceptuais, e
distendido, num esforço de assimilação, por sobre a trama da realidade natural e
humana.” (Discurso pronunciado na sessão comemorativa do quinto aniversário da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Pará - 1960)

Assim, repudiando a superficialidade do funcionalismo pedagógico,


“ornamental” e “vagamente educativo” do caráter e da inteligência dos
estudantes, Benedito Nunes defende um autêntico humanismo universitário,
segundo o qual a Filosofia torna-se cultura, enquanto “empenho em compreender
a realidade e dar um sentido e direção à vida”.
“Fator ativo de cultura, a filosofia proporciona uma concepção das coisas, do
universo, do homem. Sem essa concepção, que provém do empenho consciente
e crítico do homem para compreender a si mesmo e o universo, para expressar
e retificar as idéias e os valores que circulam na sociedade, para plasmar uma
sabedoria total diante da história e da vida, sem uma concepção semelhante, não
há cultura.” (Discurso pronunciado na sessão comemorativa do quinto aniversário da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Pará - 1960)

Mas uma reflexão sobre a Universidade, sabe o filósofo Benedito Nunes,


não pode ser separada do contexto maior da crise da cultura, tema recorrente
em sua obra32. Em Universidade e regionalismo, conferência de 1999, o desafio da
Universidade Federal do Pará é pensada em quatro eixos, indissociavelmente
ligados: o histórico (o surgimento da intelligentsia paraense), o epistemológico (a já
referida “a era da suspeita”), o institucional (os problemas político-econômicos) e
o cultural (a massificação da sociedade pela indústria cultural). Neste último
aspecto, o impasse da universidade é saber como reagir ao “controle 32
Os seus ensaios sobre a
uniformizador da opinião pública”, à “didática da superficialidade” engendrada cultura foram reunidos em
pela indústria cultural, massificadora da sociedade com seus “esquemas simplificadores NUNES, Benedito. Modernismo,
estética e cultura. Organização e
de conhecimento e a retórica de estilo publicitário”, que “põem em cheque tanto a apresentação Victor Sales Pi-
nheiro. São Paulo: Ed.34. (no
cultura erudita e a cultura popular” (Universidade e regionalismo). Se não há prelo)

208 da palavra
antídotos ao “cerco dos mídia”, Benedito Nunes reforça a importância da prática
da interdisciplinaridade, como já visto, e de um programa consistente de
publicações, pensadas a partir do espírito filosófico que recupere a força pedagógica
da instituição universitária, ideia reiterada no recente discurso Universidade e
Identidade Brasileira, de 2007.
O humanismo de Benedito Nunes, tal como expresso no citado Discurso
de 1960, pelo alcance da noção de “espírito filosófico” nele elaborado, é um
ideal formativo, uma reação, no plano filosófico, à perpetuação das “paideias ocidentais
sem efetividade”, que, como ele articula em Introdução à crise da cultura,

“subjazem no vazio ético da sociedade de consumo; entre a anomia permissiva e o conformismo


hedonístico do indivíduo massificado – intervalo onde os autoritarismos se reforçam e que os
meios técnicos de informação e comunicação ritualizam”33.

Desse modo, reagindo à ideologia do igualitarismo, mola propulsora da


massificação educacional, Benedito Nunes, no discurso Quase um plano de aula,
de 1998, insurge-se contra “o novo didatismo”, que muitas vezes disfarça a incompetência
e nega o elitismo próprio às Universidades:

“...pugnei contra o populismo reinante, a contrafação interna da democracia


(quando não se tem democracia na sociedade, tenta-se recuperá-la intramuros)...
Não pode a instituição universitária abdicar da escolha seletiva dos melhores;
nesse sentido ela é elitista e sê-lo-á enquanto subsistir como Universidade.” (Quase
um plano de aula)

Outro ponto recorrente nas intervenções culturais de Benedito Nunes é a


necessidade da prática vital da leitura na Universidade, pois sem ela “a instituição
universitária perde a sua alma” (Universidade e regionalismo). Benedito Nunes nota,
ainda, no recente discurso Universidade e Identidade Brasileira, de 2007, que a
questão da leitura está ligada ao programa editorial que atesta a “vida intelectual
de uma Universidade”, que “pulsa, sobretudo, nas suas publicações, livros e
revistas.” Como coordenador da edição da obra completa de Platão, traduzida
por Carlos Alberto Nunes, Benedito Nunes reforça, no discurso Quase um plano
de aula, de 1998, a necessidade de a Universidade Federal do Pará mantê-la
sempre acessível, promovendo a sua constante reedição.
A importância de editoração de uma obra como a de Platão é extremamente
significativa para Benedito Nunes no contexto da “sobrevivência de obras mestras
do pensamento Ocidental e de sua cultura”, como sublinhará no Discurso da
sessão comemorativa dos 40 anos do curso de Biblioteconomia da UFPA, de 2005. A
Universidade e sua Biblioteca devem reagir ao sempre iminente risco do
esquecimento, do apagamento da História da nossa cultura, universal, nacional
e regional. Não é, entretanto, só sobre os ombros das instituições que repousa a
responsabilidade de preservação do passado de uma cultura, cabe também ao
33
NUNES, Benedito. Introdu- Filósofo lembrá-lo e pensá-lo.
ção à crise da cultura. Em:
______. No tempo do niilismo e A presente antologia de Benedito Nunes, olhada em sua inteireza, constitui
outros ensaios. São Paulo: Ática, uma efetiva contribuição à reflexão sobre a cultura no Pará, e ganha também
1993. p.177

da palavra 209
34
NUNES, Benedito. Filosofia
uma dimensão de registro histórico do pensador sobre a sua realidade cultural. e memória. Em: _____. Ensaios
Se a cidade de Belém está “sob a ameaça de perder a sua própria identidade filosóficos. Organização e apre-
sentação Victor Sales Pinhei-
histórica e cultural” - como adverte Benedito Nunes em Pará, capital Belém -, o ro. São Paulo: Martins Fontes,
2010. (no prelo)
“risco do apagamento dos ícones que guardam a sua memória” é extensivo
também ao seu patrimônio imaterial, literário, artístico e intelectual, igualmente
neutralizado pela indústria cultural. Com esta antologia, o filósofo Benedito
Nunes, uma das inteligências universais brasileiras, relembra o vínculo da
Filosofia com a Memória e a História numa época de exacerbadas rupturas com o
passado, conservando um patrimônio cultural a não ser olvidado, mas estudado
e valorizado:

“Diante da diversidade das culturas, em nossa época de fastígio da ciência,


como forma de conhecimento sob dominância tecnológica - época, também,
de exacerbação das rupturas com o passado e de valorização ideológica do
futuro, como dimensão privilegiada do tempo – a Filosofia assume, entre outras
funções modestas, o encargo hermenêutico de intérprete das heranças culturais
e das modalidades de consciência histórica. (...) Tal como a poesia, de que se
aproxima, a Filosofia tende hoje a lembrar o que não deve ser esquecido.”34

210 da palavra
* Professor da UFPA
1
Trata-se da atualização da
Da Floresta Negra ao
palestra intitulada “O
Pensamento de Heidegger Verdevagomundo –
em Benedito Nunes” que foi
proferida durante o
Colóquio “Alemanha na
O Pensamento de Heidegger
Amazônia”, no Núcleo de
Arte da UFPA, 26 de
novembro 1998.
em Benedito Nunes1
2
Gilberto Gil no seu
pronunciamentocomo
Ministro de Cultura, em
Macapá (AP), no dia 28 de
abril de 2008. O início da Gunter Karl Pressler*
fala: “Hoje estamos dando
um passo decisivo a fim de
impulsionar e ampliar a
produção e o acesso à
cultura na Região Norte.
Apenas juntos podemos
romper com o jogo
excludente que, de um lado,
priva o Norte do Brasil e,
de outro, priva o Brasil do
Norte. Uma região que
carrega não só uma
biodiversidade rica e
exuberante, mas uma
semiodiversidade também Talvez a presença do “vasto mundo verde”2, o arquipélago das águas
rica e exuberante, precisa
zelar não só pela preservação amazônicas, há muito tempo aparentemente sem história e tempo, sensibilizou
de seu ambiente, mas pela a disponibilidade do filósofo Benedito Nunes à escolha da questão ontológica
preservação de suas culturas.
Das 180 línguas faladas do ser-no-mundo em Martin Heidegger. A ontologia e a metafísica estavam de
pelos povos indígenas hoje
no Brasil, cerca de 140 se
volta no século XX. Depois do Idealismo Alemão com Kant, Fichte, Hegel; a
concentram na Região Norte. segunda metade do século XIX - diante do desenvolvimento acelerado da
E pensar que há 500 anos, às
vésperas da conquista, os sociedade moderna: tecnologia, metrópoles e ritmos “desnaturalizados” à
povos indígenas do país percepção humana (a questão da velocidade) - valorizou duas questões principais
falavam cerca de 1200
línguas. Ou seja, de lá para para a vida moderna e pós-moderna: a historicidade e a temporalidade.
cá, tivemos uma redução de
85%. Isso é muito grave, é
A respeito da primeira questão, encontramos a proposta de Wilhelm Dilthey
um crime. E o crime (1833-1911) em vista à fundamentação das ciências humanas, diante da
cultural pode ser tão danoso
e irreversível quanto o crime cientificidade das exatas, chamada também a ciência da razão histórica ou a
ambiental. Sabemos que, construção do mundo histórico nas ciências humanas. Para a segunda proposta,
quando morre uma língua,
morre também uma cultura. a do conceito do tempo psicológico, encontramos a proposta de Henri Bergson
Devemos todos passar a
compreender a gravidade
(1859-1941): “duração” (“durée”). As duas tendências surgem de forma bem
dessa situação e a nos marcante nos meados do século XX na Filosofia da Existência, no Marxismo da
empenhar pela valorização
da extraordinária diversidade Escola de Frankfurt e, numa grande expressão filosófica, no pensamento de
cultural que pulsa na região Martin Heidegger3.
Norte“ (grifado por mim).
A imprescindível temporalidade funda a subjetividade, constata Benedito
3
Sobre a particularidade da
obra Ser e Tempo, B.Nunes
Nunes, “o eu sou, o quem do Dasein [ser-aí], como ser-no-mundo” (NUNES
alerta o leitor: “esse livro, 1993: 11). E, depois de uma longa caminhada, atravessando toda a história da
que se propunha a investigar
o mais antigo dos problemas filosofia e da arte, concluiu a sua Introdução á Filosofia da Arte (1962) com a
filosóficos, parecia pergunta: “Abstração é deshumanização?” —·um balanço caracterizado pelo
compartilhar da tendência
para o retorno à especulação prefixo “de” ou “des” — decomposição da realidade, destruição estética e
metafísica que empolgou
outros pensadores na década
filosófica, desvendamento do “Ser-aí” (“Dasein”), desconstr ução da
de 20” (NUNES, 1992: 9). subjetividade, depuração dos próprios sentimentos, desinteresse humano,

da palavra 211
dessacralização e desumanização da arte, desgaste da presença da obra de arte,
devastação da terra — um balanço que procura uma compreensão crítica do
niilismo ativo; desembocando no pensamento do seu filósofo de escolha, Martin
Heidegger, o filósofo da Floresta Negra, da terra escura e firme.
Heidegger levantou na década de 1930 aquela questão da temporalidade
com sua obra prima, mas inacabada: Ser e Tempo (1927) de uma maneira diferente
de filosofar e marcante para toda a filosofia posterior. E, neste momento e nesta
particularidade, encontramos a sedução de pensar, explica Nunes: não estive
sob o efeito do “encantamento mimético, produzido pelo vigor de invenções
verbais que atuam com a força de uma revelação misteriosófica para iniciados”
(NUNES 1993: 7). A analítica do “Dasein” o desafiou; a prática meditante
cristalizada como “passagem para o poético” (1986) seduziu o historiador da
filosofia e da estética e o crítico literário para “um novo tempo e para uma nova
História: um pós-niilismo” (NUNES, 1993: 15).
Entretanto, a década de 1960 foi decisiva para a formação do pensamento
de Benedito Nunes, gerou a sua Filosofia Contemporânea (1967) e fundamentou o
seu estudo exemplar e significativo para toda crítica literária no Brasil, a sua
abordagem filosófico-literária da obra de Clarice Lispector (1966 e 1973).
O fascínio do fragmento, do inacabado, de certa contradição da obra Ser e Tempo
que “voltando ao problema-mor da tradição filosófica, rejeitado ou neutralizado
pelas correntes modernas, esse fragmento de uma obra segmentada revolveu a
especulação metafísica a que aparentava retornar” (NUNES 1992: 9), permanece
até hoje. “O fenômeno primordial da temporalidade”, nessa investigação de
Heidegger, reconhece Nunes, é “a questão do sentido do ser em geral” (NUNES
1992: 10, grifo no original) e, com isso, seu gancho e a empolgação.
Benedito Nunes tornou-se o pensador de Heidegger no Brasil - na sua
forma particular da apropriação crítica e autônoma. Ele não estudou filosofia
na Alemanha (como pensei no primeiro momento), estudou em Paris com Paul
Ricoeur e Maurice Merleau-Ponty, fenomenólogos importantes do pensamento
francês deste século. Isso sugeria uma leitura do pensamento heideggeriano pela
recepção deles, sabendo que A Carta sobre o Humanismo, de Heidegger, de 1946,
influenciou significativamente a filosofia francesa do pós-guerra; influenciou e
enganou no mesmo instante como Jürgen Habermas constata na sua crítica a
Jacques Derrida: “O homem como o ser para a morte, já viveu sempre em relação
ao seu fim natural. Mas agora trata-se do fim da auto-compreensão humanística:
na apatridade do niilismo não é o homem que vadia cego, mas a essência do
homem [...] Heidegger preparou a finalização de uma época que talvez no sentido
histórico-ôntico nunca termina” (HABERMAS 1985: 191).
Não pretendo comprovar se a influência de Heidegger em Nunes ocorreu
através dos franceses ou não, apesar do fascínio do ponto de vista da teoria da
recepção que é o meu campo de pesquisa: a formação da intelectualidade 4
J.Amado apud Paulo Nunes
brasileira (o pensamento de W.Benjamin no Brasil). No primeiro momento, 2001: 67. D.Jurandir mesmo
caracteriza seu estilo assim: “Eu
sempre me coloco como leitor ingênuo no sentido de Hans Robert Jauss que me fixo muito na linguagem,
fala dos três passos da leitura: “uma primeira leitura de percepção estética”, a nos vagares da narrativa, no
ritmo lento das cenas”
leitura crítica de “interpretação retrospectiva” e a terceira leitura, “a histórica” (Jurandir, 1996: 29).

212 da palavra
(JAUSS 1983: 305s), percebo que Nunes conduz o leitor brasileiro para o
conhecimento histórico e sistemático de Heidegger; nesse instante, ele é
historiador do pensamento de Heidegger em que o ápice é visto no livro Passagem
para o Poético (1986). Uma aplicação desse pensamento, encontramos no campo
da literatura brasileira, uma interpretação filosófica da estrutura narrativa acerca
do tempo: os livros sobre Clarice Lispector, no qual se vê originalidade do filósofo
e crítico literário.
Benedito Nunes mergulha profundamente nas “Experiências do Tempo”
(NUNES, 1992), como intitulou sua exposição para o ciclo de conferências
“Tempo e História, Caminhos da Memória, Trilhos do Futuro”, em São Paulo,
em 1992. Uma abordagem do tempo formada pela leitura de Heidegger e de
outros, um desdobramento ontológico que inclui passagens difíceis, bastante
difíceis pela abstração do visível, pela paradoxalidade e pela tautologia do assunto.
O que aparece como tautologia tem uma consistência que conquista no sentido
do alemão “begreifen”, uma variação do verbo “greifen” (“pegar”; substantivo
“Griff ”, “alça”, “ligado à mão”, “tocar”, “anfassen”). De outro lado, Nunes
consegue transmitir um assunto tão complexo e abstrato para o iniciante (o
iniciante não só entendido como aluno da graduação universitário, mas também
“iniciante” mais entendido como aquele profissional, professor e pesquisador
que, depois de longas viagens e passando por aperfeiçoamentos da formação
acadêmica, alcança, digamos assim, a instância socrática: fazer uma pergunta
simples, compreender a questão a partir do início).
Introduzindo o tema tempo, Nunes cita o romance A Montanha Mágica, de
Thomas Mann, ilustrando essa questão do tempo na música. Tempo é matéria
prima na música como elemento da narrativa. “É mais fácil compreender as
ligações do tempo com a música, por ser esta basicamente articulada segundo
medidas temporais (ritmo, compasso e andamento ou velocidade), do que com as
formas narrativas, nas quais se apresenta quase sempre de modo implícito”
(NUNES 1988: 6). Jorge Amado, por exemplo, usa a metáfora do rio, do ritmo
lento e constante para caracterizar a maneira de narrar de Dalcídio Jurandir: “esse
romance lembra-me certas músicas de órgão, lentas e profundas”4 e Paulo Nunes
achou a expressão feliz e prometida, “Aquonarrativa” para a narrativa dalcidiana.
No romance Chove nos Campos da Cachoeira, o tempo não é função determinada na
estruturação da narrativa, o tempo é a narrativa, a narrativa é o tempo.
Entretanto, Benedito Nunes oferece no seu livro O Tempo na Narrativa
(1988) uma leitura didática no melhor sentido. Didática como transmissão
de um conteúdo complexo - não como transmissão de um significado de um
horizonte já limitado. Viajar no espaço e no tempo do pensamento humano
5
J.G.Merquior 1980: 20. As
necessita, de vez em quando, parar e voltar à origem - não no sentido nostálgico,
referências dessa dicotomia mas no sentido de (re)ligar-se as suas raízes e à origem da questão, como diz
encontram-se em F.Strich,
R.Jakobson e V.Zirmúnski. David Daiches: “Não tem a menor significação aprender uma série de respostas,
Prazer distinguia a magia quando não se conhece quais são as perguntas, a quem atender” (DAICHES,
“homeopática”: “confusão de
semelhanças com causalidade, 1967: 8).
de magia ‘contagiosa’: confusão E nesse sentido, Benedito Nunes é mestre. Ele sabe e sempre se faz ouvinte
de contigüidade com
causalidade”. e leitor (“guerreiro da lida”, usando uma expressão da poetisa bragantina Leila

da palavra 213
Nascimento, 1998: 15). Depois de uma abordagem crítica (crítica entendida
como construtiva, como falar bem sobre uma obra, porque vale a pena levantar
uma determinada questão a partir de uma determinada obra; criticar não é falar
mal), após enfocar a questão do tempo e da temporalidade na obra de Clarice
Lispector, ele volta - digo isso com todo cuidado (lembro-me bem quando usei
a palavra “resgate” numa pergunta ao Benedito Nunes depois de uma palestra
sobre Dalcídio Jurandir); Nunes volta ou retoma, então, à origem da sua terra-
água, divulgando a obra desse autor exemplar (2006). A consciência individual
e a sondagem introspectiva que Nunes detecta com grande mestria em Clarice
Lispector caracterizam o enfoque ontológico como sondagem existencial, o que
também encontramos em Dalcídio Jurandir, pensamos no primeiro romance do
“Ciclo do Extremo Norte”, Chove nos Campos de Cachoeira (escrito 1929, publicado
1941). A sondagem existencial é mais de uma sondagem individual de Eutanázio,
é a sondagem existencial de um grupo de seres humanos: os ribeirinhos do
interior do Pará, o amazônida, os habitantes da ilha de Marajó. Mas no modo de
apreensão artística de Dalcídio Jurandir, reconheço a ligação dialética entre o
coletivo e o individual: o coletivo é o individual, concretiza-se no indivíduo
como indivíduo social e, com isso, depende do social que é uma questão do
poder econômico e político; o abandono do interior pelo dono do interior que
vive na cidade grande, na metrópole.
O grito na obra de C.Lispector é o grito do vazio, no sentido existencial:
o herói moderno/a heroína moderna até pós-moderna, “esvaziamento do sujeito”
(1989: 156), diz Nunes; o herói perdido, a heroína perdida no vazio da existência,
no absurdo, compreendida com a filosofia da existência de Jean Paul Sartre e
Albert Camus, não no sentido do “Dasein”, do “Ser-aí” de Heidegger. O grito
na obra de Dalcídio Jurandir é diferente, é o grito existencial diante do vazio do
abandono, do abandono do ribeirinho, o grito de um sujeito saindo da “existência
inautêntica, de Heidegger, mergulhada no anonimato coletivo” (NUNES 1969:
131); o grito do absurdo existencial diante da pobreza produzida ali no interior
(lembramos no final do romance: o Doutor Lustosa que compra toda terra em
torno da vila de Cachoeira; “ao vencedor as batatas”). O grito do absurdo diante,
ou melhor, no meio do cheio, da presença, da fertilidade e da rica natureza
poetizada na imagem da Irene, “Irene ou o princípio do mundo”, o
questionamento:

Sim, como veio tão bela! Perdera aquela brutalidade, aquele riso, aquele desleixo.
Veio calma na sua marcha para a maternidade. Eutanázio abriu mais os olhos.
Ninguém ficou na saleta.
Desejou passar a mão naquele ventre que crescia vagaroso como a enchente,
com a chuva que estava caindo sobre os campos. Desejaria beijá-lo. Estava vendo
ali a Criação, a Gênesis, a Vida. Havia nela qualquer coisa de satisfeito, de
profundamente calmo e de inocente. Não dava mostra nenhuma de sofrimento,
nem de queixa, nem de ostentação. Era como a terra no inverno. Seu ventre
recebeu o amor como uma terra. Como a terra dos campos de Cachoeira recebia
as grandes chuvas. Por isso ela já humilhava-o de maneira diferente (JURANDIR,
1998: 399).

214 da palavra
O “fracasso da linguagem” de que fala Benedito Nunes em Clarice
Lispector não se encontra em Dalcídio Jurandir. O narrador é diferente, não é
um narrador na primeira pessoa que envolve o leitor e si mesmo num
metadiscurso sobre a existência e sobre o meio desta expressão: a linguagem.
“Fracasso” entendida no sentido filosófico, alerta Nunes, “de acordo com a
conotação que lhe emprestam as concepções existenciais” (NUNES, 1969: 137).
Nunes fala desse fracasso da linguagem dentro do tópico do “jogo da
linguagem” e destaca que esse jogo analisado na obra de Lispector recebe uma
direção oposto em Guimarães Rosa que

apresenta um estilo de acréscimo: palavras novas, riqueza semântica, exploração


dos veios arcaicos da língua, invenção de modalidades sintáticas etc. Assim o
exigem a diversidade humana, a pletora do mundo, a generosidade da Natureza,
a exaltação da realidade sensível no romancista de Grande Sertão: Veredas” [...]
Guimarães Rosa alcança a transcendência através da afirmação do mundo, com
todas as suas pompas, com todas as suas contradições, religiosas, metafísicas e
éticas” (NUNES 1969: 138).

Essa transcendência “assemelha-se mais a uma trans-descendência [em


C.Lispector]. É uma espécie de mergulho nas potências obscuras da vida, através
da negação do mundo” (l.c.) - e a narrativa de Dalcídio Jurandir? Eu me arrisco
constatar uma trans-descendência diferente, no meio do caminho entre Lispector
e Rosa. O “fracasso” em Jurandir é o “fracasso” total da sociabilidade da
linguagem (“com perfeição e criatividade solitária ela se faz igual à própria
natureza; ela é vida, expressão das realidades externas e internas e não se dissolve
nas coisas” (NUNES, 1969: 97)). O “fracasso” é o fracasso ainda mais da
sociabilidade do próprio ser humano diante das condições inumanas do seu
ser-aí (“Dasein”).
Pode ser que nessa comparação entre Lispector, Rosa e Jurandir
encontremos a diferença histórica: a década de trinta, na literatura brasileira
falamos da segunda geração dos Modernistas; Jurandir e Lispector estréiam no
meio da Segunda Guerra Mundial, Guimarães Rosa logo depois da guerra. A
segunda vez que a humanidade recebeu um golpe fatal e calou-se. A década de
trinta caracteriza-se como um tempo de grandes mudanças sociais, políticas e
culturais ainda num clima de grande esperança, mas uma esperança já atingida
em intelectuais sensíveis como Walter Benjamin que se concretiza com
melancolia: a primeira frase do livro Chove nos Campos da Cachoeira expressa
essa melancolia: “Voltou muito cansado. Os campos o levaram para longe. O
caroço de tucumã o levara também, aquele caroço que soubera escolher entre
muitos no tanque embaixo do chalé. Quando voltou já era tarde” (JURANDIR,
1998: 117).
Depois da Segunda Guerra Mundial não tem mais melancolia. José
Guilherme Merquior distingue as diferenças no uso da figura predominante da
Modernidade: a alegoria. A Modernidade no século XX sofre uma “metamorfose
da semiose literária [...] uma mudança dentro do mesmo regime semiótico”
da alegoria que emerge “um outro tipo de alegoria” (MERQUIOR, 1980: 20).

da palavra 215

Você também pode gostar