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Nos séculos XIX e XX, a noção de inconsciente psíquico foi objeto de teorias
desenvolvidas e poderosamente estruturadas (Freud, Jung, Adler etc.) que podem
levar a acreditar que se trata de uma descoberta recente.
Podemos dizer que existe também um inconsciente corporal que é constituído por
tudo o que existe, age ou se produz em nosso corpo mas não tem intensidade
suficiente para que o percebamos e dele tomemos uma consciência clara (Leibniz
chamava isso de “pequenas percepções”).
Podemos por isso dizer que o inconsciente espiritual é uma noção que, no próprio
quadro da espiritualidade cristã, não chegou até hoje a ser objeto de nenhum
estudo sistemático. Entretanto, as referências ou as alusões ao que podemos
designar como um “inconsciente espiritual” são suficientemente numerosas nas
fontes tradicionais (especialmente nos escritos patrísticos) para que possamos
considerar que há na espiritualidade cristã oriental uma concepção subjacente do
inconsciente espiritual e que ela pode servir para compreender uma grande parte
não somente da vida espiritual, mas ainda, por via de consequência, da psicologia e
do comportamento humanos que lhe são relativos, inclusive naqueles que não
entendem seu ser e seu modo de existência em relação a Deus ou em relação a uma
espiritualidade definida.
Notamos que a relação do ser humano com Deus pode ser positiva ou negativa. A
esta distinção correspondem duas dimensões do inconsciente espiritual.
No cristão que leva uma vida espiritual, a vida ascética (no sentido amplo em que a
entendemos) permite uma tomada de consciência progressiva e, em consequência,
uma redução do inconsciente espiritual em suas duas dimensões. No asceta que
atinge a impassibilidade, a dimensão negativa do inconsciente espiritual
desaparece, do mesmo modo que sua dimensão positiva, em proveito de uma plena
consciência do que ele é em sua relação com Deus.
Essa atividade tem uma influência sobre a vida espiritual da pessoa, mas também
sobre sua vida psíquica, na medida em que está é relativa àquela.
O inconsciente teófilo
Mas o logos da natureza define também sua finalidade, isto é, o fim que Deus lhe
determinou, fim já pontencialmente ou idealmente realizado segundo a ideia-
vontade de Deus, que corresponde, pois, para a natureza à norma de sua perfeição,
a um ideal de realização ou de acabamento de si mesma, da qual é portadora e para
a qual ela tende. Assim, o “logos da natureza” é ao mesmo tempo “uma lei natural e
divina”.
Em segundo lugar vem o desejo. Máximo Confessor observa que temos “um desejo
natural de Deus”. E associando as faculdades de conhecer e de desejar ele escreve:
“Deus, que fundou com sabedoria toda natureza e que, secretamente, inseriu em
cada uma das essências racionais como faculdade primeira o conhecimento dEle
mesmo, deu-nos também, a nós humildes seres humanos, como Mestre generoso,
segundo a natureza, o desejo voltado para Ele e o amor [dEle], tendo-lhe associado
naturalmente o poder da razão, pela qual nos é possível conhecer facilmente os
modos de realização [desse] desejo e de não deixar escapar por erro o que nos
esforçamos para obter”.
Em terceiro lugar vem o poder irascível, que Máximo associa à razão e ao desejo,
para lhe reconhecer Deus como finalidade de seu uso: “O fim da operação
raciocinante da alma é o verdadeiro conhecimento; o fim da operação desejante, o
amor, o fim da operação irascível, a paz [...] Daí vem que, naturalmente, tenhamos
a capacidade de raciocinar para buscar Deus, que tomemos a faculdade desejante
(epithumia) para desejá-lo, só a Ele, e que o poder irascível (thumos) nos seja
concedido, a fim de lutar por Ele só”.
Podemos dizer que o estar mal constitui um recalque ativo e permanente das
tendências da natureza por um modo de existência contrário a essas tendências.
Daí que o ser humano se torno assim inimigo de si mesmo, como sublinharam
vários Padres, inclusive São Máximo, alimentando pelo pecado e pelo modo de vida
que lhe está ligado um conflito entre o que ele quer ser em sua natureza profunda e
o que ele escolhe ser em seu modo de existência decaído.
No ser humano que vive no pecado e nas paixões, o livre-arbítrio contradiz e recalca
em permanência a vontade de sua natureza. Esta não pode se impor, porque ela
depende do livre-arbítrio da pessoa para que possa ou não se expressar e se realizar.
O logos da natureza se expressa, entretanto, por um lado, nas tendências positivas e
boas do ser humano, como por exemplo num certo sentido do bem e do mal ou da
justiça e da injustiça, no amor experimentado por seus pais, por seus filhos ou por
seu cônjuge, na amizade, nos sentimentos de piedade e de compaixão, nas
manifestações de ajuda mútua ou de solidariedade, na busca da justiça e da paz etc.
Mas, mais frequentemente, essas tendências, não estando mais ligadas
conscientemente a seu princípio e a seu fim em Deus, perdem sua qualidade
espiritual.
O logos da natureza se expressa, por outro lado, de uma maneira desviada nas
atitudes, nos cultos e nos ritos pseudo-religiosos aos quais se entregam, em graus
diversos e de uma maneira muitas vezes inconsciente, todos os seres humanos, sem
exceção. Poderíamos falar aqui de um “retorno do recalcado”, na medida em que a
orientação dinâmica para Deus, que caracteriza fundamentalmente o logos da
natureza humana e é, portanto, ativa em todo ser humano, assim mesmo chega a se
expressar no nível consciente, mas em uma forma desviada, travestida, deformada,
faltando à sua finalidade verdadeira.
b) A díade imagem-semelhança
Muitos Padres afirmam que é à própria imagem do Logos, do Verbo de Deus, que
Adão foi criado, e que o próprio mistério da criação do ser humano à imagem do
Logos liga-se ao mistério da deificação do ser humano no Verbo encarnado. Não há
para o ser humano, desde a sua criação, a não ser um fim normal: a semelhança
com Cristo, norma da realização de sua natureza, plena e claramente revelada na
Encarnação de Jesus. O ser humano foi criado como ser “lógico” (logikos), isto é,
racional, mas mais fundamentalmente como um ser cristológico, significando
logikos para os Padres conforme ao Logos, ao Verbo de Deus. E os Padres chegam
mesmo a afirmar que o ser humano foi criado não somente à imagem do Logos
enquanto Deus, mas mesmo à imagem do Logos encarnado, do Cristo Deus e
homem, e que ele tem por destino, desde a sua criação, por causa de sua própria
natureza, tender com todo o seu ser a se assimilar ativamente a Cristo. São Nicolau
Cabasilas escreve assim: “A natureza humana foi criada desde a origem em vista do
Homem Novo, a inteligência e o desejo do ser humano são criados para o Cristo:
recebemos a inteligência para conhecer o Cristo, o desejo para que sejamos atraídos
para Ele e a memória para carregá-lo em nós. E isto ainda mais que Ele serviu de
modelo à nossa criação. De fato, não foi o velho Adão o modelo (paradeigma) do
Novo, mas o Novo do antigo (cf. Rm 5,14). Para nós, que o reconhecemos como
nosso ancestral, o primeiro Adão passa como sendo o arquétipo da natureza
humana; mas para Aquele que tem diante dos olhos todos os seres, antes mesmo
que eles existissem, o ancestral é apenas a imitação do novo Adão. Ele foi criado à
imagem e semelhança deste último”. Podemos pois dizer que “o ser humano tende
ao Cristo não somente por causa da divindade de Nosso Senhor, mas também por
causa desta outra natureza [a humana] que Ele possui”. São Gregório Palamás
ensina no mesmo sentido: “Já a própria formação do ser humano desde a origem,
criado à imagem de Deus, foi em vista do Cristo, a fim de que o ser humano possa,
no tempo preciso, compreender nele o Arquétipo”.
(d) A graça
Uma outra dimensão do insconsciente teófilo no ser humano consiste na graça
divina da qual ele participa. Esta graça está presente em diferentes graus e sob
diferentes formas, se bem que se trata sempre da mesma graça, divina em sua
natureza e em sua origem.
A presença ativa de Deus nos logoi dos seres corresponde ao que a teologia
ortodoxa chama de energias divinas. Assim, São Máximo Confessor observa que o
intelecto, na multidão dos logoi que pode perceber nos seres, se tiver as disposições
requeridas, “contempla as energias de Deus”. De fato, explica ele, “em cada logos
de cada coisa particular, e semelhantemente em todos os logoi segundo os quais
todas as coisas existem, é Deus”, que entretanto não é nenhum dos seres e está
acima de todos. “Toda energia divina significa Deus todo inteiro indivisivelmente
através dessa energia”; mas, tudo “sendo todo inteiro e comumente em todos e
particularmente em cada um dos seres, Deus o é sem parte nem partilha, não
estando nem separado diversamente nas diferenças infinitas dos seres nos quais Ele
está inerente, portanto nem contraído segundo a existência particular de um só,
nem contraindo as diferenças dos seres segundo a única totalidade de todos, mas
Ele é verdadeiramente tudo em todos, Ele que não sai nunca de Sua própria e
indivisível simplicidade”.
As energias divinas, enquanto são comunicadas, dadas por Deus às criaturas, são
comumente chamadas de “graça”.
O inconsciente deífugo
São Macário nota o caráter inconsciente, para a maioria dos seres humanos, dos
efeitos neles do pecado ancestral: “O pecado que se introduziu [pela desobediência
de Adão] e que corresponde a um certo poder espiritual de Satanás e a uma
realidade semeou todos os males. Sem ser descoberto, ele age no homem interior e
nos seu espírito, e introduz a guerra nos pensamentos. Mas o ser humano ignora
que ele age por instigação de uma força estranha. Ele imagina que tudo isso é
natural e que se trata de suas próprias reflexões”. João o Solitário, ao ser
questionado por Eusébio por que razão os seres humanos cuidam das doenças de
seu corpo mas não se preocupam com as doenças de sua alma, responde que, sob o
efeito do pecado, “eles se tornam incapazes de ver e de ouvir, mas [são] parecidos
com mortos que não sentem nenhuma piedade por seu estado interior”. “Doentes
que somos”, constata São João Clímaco, “não podemos diagnosticar [as doenças
espirituais que estão em nós], ou por causa de nossa fraqueza, ou porque elas estão
muito profundamente enraizadas”.
O ser humano decaído, na medida em que não tem consciência de seu estado
doentio, negligencia deixar-se cuidar e afirma que não tem necessidade da cura que
lhe propõem. Numerosos são aqueles “incapazes de sentir suas paixões. E como eles
não as sentem não se empenham também em curá-las”, constata Santo Isaque. Eles
resistem à medicina espiritual. “De fato, como aceitaria ser cuidado aquele que não
se deixa convencer de que vive doente ou ferido?”, pergunta São Simeão. Ora,
ficando inconsciente de seu estado, ele só o agrava. “A pior das doenças é aquela
que consome um paciente sem que ele suspeite disso”, observa São João
Crisóstomo, que aliás observa no mesmo sentido que “ignorar a si mesmo é a pior
das loucuras e dos frenesis”.
A esse respeito, há assim uma distância considerável entre o pecador que é como
um cego a seu respeito e aquele que progride na ascese. Enquanto este as desaloja
nos recônditos mais escondidos de sua alma, aquele se crê isento delas desde que
não atinjam proporções extraordinárias em relação ao estado de decadência médio
da humanidade ambiente. É assim que São Macário observa: “Tanto tempo quanto
um ser humano é retido nas coisas visíveis deste mundo, cercado das diversas
cadeias da terra, arrastado pelas más paixões, ele não sabem nem mesmo que há
um outro combate, uma outra luta, uma outra guerra dentro dele. De fato, só
quando um ser humano levanta-se para combater e se libertar de todos os laços
visíveis deste mundo [...] e começa a permanecer com perseverança diante do
Senhor, esvaziando-se deste mundo, só assim ele pode conhecer o combate interior
das paixões que se ergue nele, a guerra interior e os pensamentos maus. Como
dissemos, tão longo tempo quanto alguém não luta, não renuncia ao mundo, não se
desprende de todo o seu coração da cobiça terrestre, não quer se unir inteiramente
e sem reserva ao Senhor, ele não conhece sem as astúcias secretas dos espíritos de
malícia, nem as paixões escondidas nele. Mas ele é estranho a si mesmo, não
sabendo que traz em si as chagas das paixões secretas”. Notemos que, de todas as
paixões, é o orgulho que obnubila mais a consciência do ser humano e o leva a ser
inconsciente de suas doenças, tanto das menores ou mais sutis como das mais
importantes. “O orgulho”, diz São João Clímaco, “produz um total esquecimento
dos pecados”. “A maioria dos orgulhosos”, constata ele ainda, “ignoram a si mesmos
e acreditam ser impassivos; somente na hora da morte eles descobrem a sua
pobreza”. Aliás, ao orgulho está ligado o que os Padres chamam de “mania de se
justificar”, atitude pela qual o ser humano, em presença de seu pecado, recusa-se a
reconhecê-lo como seu, recalca a consciência.
Não é apenas por não ser suficientemente desperto espiritualmente que explica o
fato do ser humano ser total ou parcialmente inconsciente das paixões que o
habitam. Frequentemente, como observa São Máximo Confessor, as paixões estão
em um estado de anergesia (anergesia), em outras palavras, de inativação ou de
sono. Tal estado pode durar mais ou menos tempo e fazer o próprio espiritual
acreditar que está isento ou liberto desta ou daquela paixão, que faz algum tempo
não se manifestou ou até mesmo nunca se revelou. Assim, pode se estabelecer na
alma um estado de paz na verdade ilusório.
Pode acontecer também que o ser humano tenha a consciência abafada pelas
atividades mundanas múltiplas e febris às quais ele se entrega, que suas paixões lhe
sejam veladas por suas preocupações cotidianas que o impedem de considerar seu
estado. “Graças a seu corpo”, nota neste contexto São Doroteu de Gaza, “a alma é
distraída e aliviada de suas paixões. Mas “que venha um de vocês e que eu o feche
em uma cela escura, que ele passe somente três dias sem comer, sem beber, sem
dormir, sem ver ninguém, sem salmodiar, sem rezar, sem nunca se lembrar de
Deus, e ele verá o que lhe farão as paixões”.
Este ensinamento de São João Clímaco evidencia o fato de que a paixão, enquanto
não tiver sido totalmente extirpada, não somente subsiste na alma, mas nela se
desenvolve sem que a pessoa tenha consciência disso; tomando incremento, ela
adquire uma força que exerce uma pressão e a revelará com violência, assim que
um objeto que lhe seja conveniente lhe der a ocasião de se expressar, todavia com a
condição de que o ser humano esteja bastante desatento para lhe deixar o caminho
livre e não a dominar pela força da graça.
É evidente , desde este momento, que uma das primeiras funções da terapêutica
posta em prática para curar o ser humano decaído de suas paixões será fazer
aparecê-las bem claramente, torná-lo plenamente consciente delas.
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