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O inconsciente espiritual

Nos séculos XIX e XX, a noção de inconsciente psíquico foi objeto de teorias
desenvolvidas e poderosamente estruturadas (Freud, Jung, Adler etc.) que podem
levar a acreditar que se trata de uma descoberta recente.

Na realidade, a existência de um inconsciente psíquico é um fato conhecido desde a


mais remota Antiguidade. Platão, por exemplo, faz alusão a isso, pondo em relação
o sonho com os desejos insatisfeitos ou a agressividade não expressa e
apresentando uma concepção que antecipa a do recalque.

Podemos dizer que existe também um inconsciente corporal que é constituído por
tudo o que existe, age ou se produz em nosso corpo mas não tem intensidade
suficiente para que o percebamos e dele tomemos uma consciência clara (Leibniz
chamava isso de “pequenas percepções”).

Do mesmo modo existe um inconsciente espiritual.

A noção de inconsciente espiritual foi evocada principalmente pela psicanálise


existencial, cujos principais representantes foram Igor Caruso, Wilfried Daim e
Viktor Frankl. Viktor Frankl consagra ao inconsciente espiritual um breve capítulo
em seu livro O Deus inconsciente; mas no que se refere à espiritualidade ele fica em
generalidades, o que sem dúvida lhe era imposto por seu projeto de elaborar uma
psicoterapia que fosse aplicável aos seres humanos de todas as crenças. Sua tese
principal é que toda neurose resulta de uma perda do sentido da existência, e que a
única terapêutica adequada é a “logoterapia”, que visa a encontrar o sentido
perdido, que reside em Deus. Quanto a Igor Caruso, ele considera que toda neurose
resulta de uma absolutização (e portanto de uma deificação) de valores relativos, e
que a terapêutica consistirá pois em dar de novo aos valores da existência sua justa
dimensão. Seu discípulo Wilfried Daim retomou esta concepção. Segundo ele, o ser
humano, constituído por uma relação vital com o Absoluto, desencadeia em si
conflitos psíquicos cada vez que confere um caráter absoluto a seres relativos e
substitui por ídolos o único absoluto que é Deus.

Como vemos, esses autores permanecem no quadro da psicopatologia, isto é, da


parte da psicologia que se interessa pela origem, pela forma, pela evolução e pelo
tratamento das doenças psíquicas. Sua referência a Deus, ainda que reivindique
judaica no caso de Frankl e cristã no caso de Daim e Caruso, permanece muito
geral.

Podemos por isso dizer que o inconsciente espiritual é uma noção que, no próprio
quadro da espiritualidade cristã, não chegou até hoje a ser objeto de nenhum
estudo sistemático. Entretanto, as referências ou as alusões ao que podemos
designar como um “inconsciente espiritual” são suficientemente numerosas nas
fontes tradicionais (especialmente nos escritos patrísticos) para que possamos
considerar que há na espiritualidade cristã oriental uma concepção subjacente do
inconsciente espiritual e que ela pode servir para compreender uma grande parte
não somente da vida espiritual, mas ainda, por via de consequência, da psicologia e
do comportamento humanos que lhe são relativos, inclusive naqueles que não
entendem seu ser e seu modo de existência em relação a Deus ou em relação a uma
espiritualidade definida.

Notamos que a relação do ser humano com Deus pode ser positiva ou negativa. A
esta distinção correspondem duas dimensões do inconsciente espiritual.

A dimensão positiva do inconsciente espiritual é constituída por tudo o que no ser


humano o liga, o une a Deus e o orienta para Ele, sem que ele esteja consciente; por
estas razões podemos qualifica-lo de “inconsciente teófilo”. Sua dimensão negativa
é constituída por tudo o que desprende, separa, afasta o ser humano de Deus e o
orienta em um sentido oposto a Ele, sem que ele esteja consciente; podemos assim
qualifica-lo de “inconsciente deífugo”.

Essas duas dimensões do inconsciente espiritual moram juntas em todos os seres


humanos, segundo proporções variáveis, relativas a cada um, no grau de
consciência que ele tem de uma e de outra, mas também na sua história pessoal
pela parte de inconsciente relativa a esta história.

No homem decaído que vive longe de Deus e de toda preocupação espiritual o


inconsciente atinge o mais alto grau.

No cristão que leva uma vida espiritual, a vida ascética (no sentido amplo em que a
entendemos) permite uma tomada de consciência progressiva e, em consequência,
uma redução do inconsciente espiritual em suas duas dimensões. No asceta que
atinge a impassibilidade, a dimensão negativa do inconsciente espiritual
desaparece, do mesmo modo que sua dimensão positiva, em proveito de uma plena
consciência do que ele é em sua relação com Deus.

As duas dimensões do inconsciente espiritual não devem ser concebidas como


realidades estáticas, mas como realidade dinâmicas, não somente no sentido de que
são suscetíveis de um aumento ou de uma redução em relação à consciência que a
pessoa tem, mas igualmente no sentido de que têm uma atividade e um dinamismo
próprios quanto à sua forma e ao seu conteúdo.

Essa atividade tem uma influência sobre a vida espiritual da pessoa, mas também
sobre sua vida psíquica, na medida em que está é relativa àquela.

O inconsciente teófilo

O inconsciente teófilo pode ser compreendido, de maneira geral, sob quatro


aspectos.
a) A díade logos-tropos

A dimensão positiva do inconsciente espiritual é constituída fundamentalmente,


em cada ser humano, pelo logos de sua natureza.

O “logos da natureza” do ser humano é a definição da natureza humana segundo o


projeto divino, tal como Deus a concebeu e quis antes dos séculos em Seu Desígnio,
e portanto também como Ele a realizou criando-a.

Portanto, é o que define fundamentalmente, caracteriza essencialmente o ser


humano ao sair das “mãos de Deus”. É também a natureza humana em sua
qualidade de criação ‘boa”, em sua (relativa) perfeição original.

Mas o logos da natureza define também sua finalidade, isto é, o fim que Deus lhe
determinou, fim já pontencialmente ou idealmente realizado segundo a ideia-
vontade de Deus, que corresponde, pois, para a natureza à norma de sua perfeição,
a um ideal de realização ou de acabamento de si mesma, da qual é portadora e para
a qual ela tende. Assim, o “logos da natureza” é ao mesmo tempo “uma lei natural e
divina”.

Entre todas as faculdades do ser humano dinamicamente orientadas para Deus, o


intelecto (noûs) vem em primeiro lugar. Máximo evoca o impulso natural do
intelecto para Deus e observa que ele tende, por esse impulso natural, a procurar
Deus, sublinhando também a capacidade natural desta faculdade de gozar
espiritualmente de Deus no fim desse impulso. De acordo com um modo que
corresponde À sua natureza, a razão tem a mesma tendência.

Em segundo lugar vem o desejo. Máximo Confessor observa que temos “um desejo
natural de Deus”. E associando as faculdades de conhecer e de desejar ele escreve:
“Deus, que fundou com sabedoria toda natureza e que, secretamente, inseriu em
cada uma das essências racionais como faculdade primeira o conhecimento dEle
mesmo, deu-nos também, a nós humildes seres humanos, como Mestre generoso,
segundo a natureza, o desejo voltado para Ele e o amor [dEle], tendo-lhe associado
naturalmente o poder da razão, pela qual nos é possível conhecer facilmente os
modos de realização [desse] desejo e de não deixar escapar por erro o que nos
esforçamos para obter”.

Em terceiro lugar vem o poder irascível, que Máximo associa à razão e ao desejo,
para lhe reconhecer Deus como finalidade de seu uso: “O fim da operação
raciocinante da alma é o verdadeiro conhecimento; o fim da operação desejante, o
amor, o fim da operação irascível, a paz [...] Daí vem que, naturalmente, tenhamos
a capacidade de raciocinar para buscar Deus, que tomemos a faculdade desejante
(epithumia) para desejá-lo, só a Ele, e que o poder irascível (thumos) nos seja
concedido, a fim de lutar por Ele só”.

A estas faculdades principais que desempenham um papel essencial na orientação


dinâmica da natureza humana para Deus, é necessário acrescentar a vontade
(thelema, thelesis), que depende, como sublinhou Máximo, da essência ou da
natureza e não da hipóstase. Segundo Máximo, a vontade é “uma orientação geral
da natureza racional comum para o bem conforme esta natureza, uma harmonia
com o que lhe dará seu ser acabado”, isto é, Deus. “Enquanto natural”, a vontade
humana não somente “não é contrária a Deus”, mas “quando ela é típica e movida
nativamente [isto é, segundo a sua natureza] está em sintonia [com Deus]” e tende
para Ele como Aquele em quem a natureza encontrará sua realização. Podemos,
pois, dizer que “a deificação [é] o fim supremo ao qual tende a vontade humana”, do
mesmo modo que a deificação corresponde à “plena satisfação do desejo profundo
do ser humano pelo retorno a seu princípio”.

É aí que intervém, no pensamento de São Máximo, em relação com a de logos, a


noção de tropos.

Enquanto o logos refere-se À essência ou à natureza, o tropos é relativo à hipóstase


ou à pessoa.

Enquanto o logos define a natureza, os poderes (ou faculdades) desta e as


atividades (ou operações) destes poderes, o tropos define a maneira pela qual essa
natureza existe e a maneira (ou o modo) pela qual suas faculdades se exercem ou
operam. Enquanto o logos é imutável, o tropos varia segundo as pessoas. Ele
depende da disposição da vontade (gnome) [7] assim como da escolha (proaireses)
de cada um, e as expressa em uma maneira de ser ou em um comportamento (é o
sentido elementar da palavra tropos) que toma seu sentido relativamente ao logos;
este, como vimos anteriormente, define a norma daquilo que o ser humano é
segundo a sua natureza verdadeira, tanto quanto À constituição essencial desta
quanto a seu fim ou à sua realização de acordo com a ideia-vontade de Deus. Para
São Máximo, é pelo modo de realização da operação natural que “é conhecida a
diferença daqueles que agem e das coisas que são efetuadas, a favor ou contra a
natureza”, e que é segundo o tropos que “se é justo ou injusto, mais ou menos,
como isto ou como aquilo, segundo nos prendemos mais à natureza ou nos
afastamos mais dela”.

Enquanto a pessoa leva um modo de existência que contradiz o logos de sua


natureza, este logos continua a existir nela e a orientar dinamicamente sua natureza
para Deus. Ele constitui um inconsciente espiritual que possui, de algum modo, sua
vida e seu dinamismo próprios, continuando a orientar a natureza para Deus,
mesmo quando um modo de existência contrário a Deus é levado pela pessoa que
vide no pecado, nas paixões e no esquecimento de Deus.

Podemos dizer que o estar mal constitui um recalque ativo e permanente das
tendências da natureza por um modo de existência contrário a essas tendências.

Produz-se então, no fundo do ser humano decaído, um conflito, igualmente


inconsciente, por um lado entre ao que a natureza aspira profundamente e tende
através de todas as suas faculdades e, por outro lado, a atividade que a pessoa dá a
estas faculdades, fazendo uso delas em um sentido contrário ao logos da natureza.

Daí que o ser humano se torno assim inimigo de si mesmo, como sublinharam
vários Padres, inclusive São Máximo, alimentando pelo pecado e pelo modo de vida
que lhe está ligado um conflito entre o que ele quer ser em sua natureza profunda e
o que ele escolhe ser em seu modo de existência decaído.

No ser humano que vive no pecado e nas paixões, o livre-arbítrio contradiz e recalca
em permanência a vontade de sua natureza. Esta não pode se impor, porque ela
depende do livre-arbítrio da pessoa para que possa ou não se expressar e se realizar.
O logos da natureza se expressa, entretanto, por um lado, nas tendências positivas e
boas do ser humano, como por exemplo num certo sentido do bem e do mal ou da
justiça e da injustiça, no amor experimentado por seus pais, por seus filhos ou por
seu cônjuge, na amizade, nos sentimentos de piedade e de compaixão, nas
manifestações de ajuda mútua ou de solidariedade, na busca da justiça e da paz etc.
Mas, mais frequentemente, essas tendências, não estando mais ligadas
conscientemente a seu princípio e a seu fim em Deus, perdem sua qualidade
espiritual.

O logos da natureza se expressa, por outro lado, de uma maneira desviada nas
atitudes, nos cultos e nos ritos pseudo-religiosos aos quais se entregam, em graus
diversos e de uma maneira muitas vezes inconsciente, todos os seres humanos, sem
exceção. Poderíamos falar aqui de um “retorno do recalcado”, na medida em que a
orientação dinâmica para Deus, que caracteriza fundamentalmente o logos da
natureza humana e é, portanto, ativa em todo ser humano, assim mesmo chega a se
expressar no nível consciente, mas em uma forma desviada, travestida, deformada,
faltando à sua finalidade verdadeira.

b) A díade imagem-semelhança

A díade logos-tropos, analisada sobretudo por São Máximo Confessor, corresponde


, nele e em muitos outros Padres gregos, a uma díade mais conhecida: a imagem
(eikon) e a semelhança (omoiosis) de Deus.

Geralmente os Padres consideram que é fundamentalmente por sua alma


intelectiva e racional que o ser humano é criado à imagem de Deus.

O ser humano é criado igualmente à imagem de Deus por sua capacidade de


autodeterminação, que, como vimos, se identifica, para São Máximo, com a vontade
natural.

Entre as propriedade constitutivas da natureza do ser humano que são


participações naturais nas propriedades divinas e fazem dele um ser à imagem de
Deus figuram, pois, o fato de ser inteligente e razoável, assim como a independência
(autodespoton) e a autodeterminação (autexousion).

Algumas dessas propriedades constitutivas da imagem de Deus referem-se ao


começo, outras ao fim do ser humano. São Máximo Confesor considera ser a
imagem de Deus o logos do ser humano, o qual, como vimos, define as
características essenciais do ser humano, mas também o que ele é, ideal e
potencialmente, segundo a vontade de Deus, seu fim assim como a tendência a este
fim. Figuram igualmente como componentes da imagem de Deus propriedades que
da mesma forma permitem ao ser humano realizar seu fim. É assim que Máximo
une à imagem o movimento em direção ao ser, a capacidade de buscar Deus e de
tender a Ele. São Máximo tem, pois, uma concepção da imagem de Deus no ser
humano eminentemente dinâmica. Para ele, mas também para outros Padres
gregos, a imagem é um conjunto de capacidades que permitem ao ser humano
realizar a semelhança, e ela o orienta já dinamicamente para essa realização.

A semelhança, mesmo que não conheça solução de continuidade em relação à


imagem, é de uma outra natureza. Enquanto a imagem refere-se à natureza, a
semelhança é relativa à hipóstase. Enquanto a imagem faz parte da constituição
natural do ser humano e lhe é dada de imediato pelo Criador, não supondo
nenhuma intervenção de sua parte, a semelhança no início só é potencial; ela pede
sua participação pessoal para ser realizada e é, neste sentido, tributária de seu livre-
arbítrio. De acordo com São Máximo, enquanto a imagem dependo do logos de sua
natureza, a semelhança depende de seu gênero de vida, em outras palavras do
modo (tropos) de sua existência.

Enquanto Deus possui por natureza as qualidades que correspondem às virtudes, o


ser humano é chamado a possuí-las pela participação. Cabe-lhe por disposição
querer e por escolha adquiri-las, e isto fazendo-se pessoalmente o imitador de
Deus. Enquanto a posse da imagem é imediata, a posse da semelhança é o fruto de
um devir, não pode ser adquirida senão no final de um esforço ascético constante
pelo qual o ser humano procura se conformar ao Arquétipo divino, e em
consequência de um modo de vida habitual conforme às virtudes que a constituem.
De fato, pela vida segundo as virtudes, ligada à prática dos mandamentos divinos, o
ser humano se torna semelhante a Deus.

c) A alma naturalmente cristã

Um terceiro aspecto do inconsciente teófilo fará aparecer o caráter não somente


religioso mas propriamente cristão da concepção do inconsciente que
desenvolvemos.

Muitos Padres afirmam que é à própria imagem do Logos, do Verbo de Deus, que
Adão foi criado, e que o próprio mistério da criação do ser humano à imagem do
Logos liga-se ao mistério da deificação do ser humano no Verbo encarnado. Não há
para o ser humano, desde a sua criação, a não ser um fim normal: a semelhança
com Cristo, norma da realização de sua natureza, plena e claramente revelada na
Encarnação de Jesus. O ser humano foi criado como ser “lógico” (logikos), isto é,
racional, mas mais fundamentalmente como um ser cristológico, significando
logikos para os Padres conforme ao Logos, ao Verbo de Deus. E os Padres chegam
mesmo a afirmar que o ser humano foi criado não somente à imagem do Logos
enquanto Deus, mas mesmo à imagem do Logos encarnado, do Cristo Deus e
homem, e que ele tem por destino, desde a sua criação, por causa de sua própria
natureza, tender com todo o seu ser a se assimilar ativamente a Cristo. São Nicolau
Cabasilas escreve assim: “A natureza humana foi criada desde a origem em vista do
Homem Novo, a inteligência e o desejo do ser humano são criados para o Cristo:
recebemos a inteligência para conhecer o Cristo, o desejo para que sejamos atraídos
para Ele e a memória para carregá-lo em nós. E isto ainda mais que Ele serviu de
modelo à nossa criação. De fato, não foi o velho Adão o modelo (paradeigma) do
Novo, mas o Novo do antigo (cf. Rm 5,14). Para nós, que o reconhecemos como
nosso ancestral, o primeiro Adão passa como sendo o arquétipo da natureza
humana; mas para Aquele que tem diante dos olhos todos os seres, antes mesmo
que eles existissem, o ancestral é apenas a imitação do novo Adão. Ele foi criado à
imagem e semelhança deste último”. Podemos pois dizer que “o ser humano tende
ao Cristo não somente por causa da divindade de Nosso Senhor, mas também por
causa desta outra natureza [a humana] que Ele possui”. São Gregório Palamás
ensina no mesmo sentido: “Já a própria formação do ser humano desde a origem,
criado à imagem de Deus, foi em vista do Cristo, a fim de que o ser humano possa,
no tempo preciso, compreender nele o Arquétipo”.

(d) A graça
Uma outra dimensão do insconsciente teófilo no ser humano consiste na graça
divina da qual ele participa. Esta graça está presente em diferentes graus e sob
diferentes formas, se bem que se trata sempre da mesma graça, divina em sua
natureza e em sua origem.

A presença ativa de Deus nos logoi dos seres corresponde ao que a teologia
ortodoxa chama de energias divinas. Assim, São Máximo Confessor observa que o
intelecto, na multidão dos logoi que pode perceber nos seres, se tiver as disposições
requeridas, “contempla as energias de Deus”. De fato, explica ele, “em cada logos
de cada coisa particular, e semelhantemente em todos os logoi segundo os quais
todas as coisas existem, é Deus”, que entretanto não é nenhum dos seres e está
acima de todos. “Toda energia divina significa Deus todo inteiro indivisivelmente
através dessa energia”; mas, tudo “sendo todo inteiro e comumente em todos e
particularmente em cada um dos seres, Deus o é sem parte nem partilha, não
estando nem separado diversamente nas diferenças infinitas dos seres nos quais Ele
está inerente, portanto nem contraído segundo a existência particular de um só,
nem contraindo as diferenças dos seres segundo a única totalidade de todos, mas
Ele é verdadeiramente tudo em todos, Ele que não sai nunca de Sua própria e
indivisível simplicidade”.

As energias divinas, enquanto são comunicadas, dadas por Deus às criaturas, são
comumente chamadas de “graça”.

Essas energias divinas que se manifestam em todos os seres da criação em graus


diversos estão presentes no ser humano em um grau eminente, visto que ele ocupa
a primeira fila entre as criaturas e é a única das criaturas feita à imagem de Deus.
Essas energias divinas estão presentes no logos da natureza humana, mas também,
bem entendido, na imagem de Deus no ser humano, que caracteriza
fundamentalmente esse logos, e igualmente nas virtudes, que estão presentes na
natureza de uma certa forma.

O inconsciente deífugo

São Macário nota o caráter inconsciente, para a maioria dos seres humanos, dos
efeitos neles do pecado ancestral: “O pecado que se introduziu [pela desobediência
de Adão] e que corresponde a um certo poder espiritual de Satanás e a uma
realidade semeou todos os males. Sem ser descoberto, ele age no homem interior e
nos seu espírito, e introduz a guerra nos pensamentos. Mas o ser humano ignora
que ele age por instigação de uma força estranha. Ele imagina que tudo isso é
natural e que se trata de suas próprias reflexões”. João o Solitário, ao ser
questionado por Eusébio por que razão os seres humanos cuidam das doenças de
seu corpo mas não se preocupam com as doenças de sua alma, responde que, sob o
efeito do pecado, “eles se tornam incapazes de ver e de ouvir, mas [são] parecidos
com mortos que não sentem nenhuma piedade por seu estado interior”. “Doentes
que somos”, constata São João Clímaco, “não podemos diagnosticar [as doenças
espirituais que estão em nós], ou por causa de nossa fraqueza, ou porque elas estão
muito profundamente enraizadas”.

O ser humano decaído, na medida em que não tem consciência de seu estado
doentio, negligencia deixar-se cuidar e afirma que não tem necessidade da cura que
lhe propõem. Numerosos são aqueles “incapazes de sentir suas paixões. E como eles
não as sentem não se empenham também em curá-las”, constata Santo Isaque. Eles
resistem à medicina espiritual. “De fato, como aceitaria ser cuidado aquele que não
se deixa convencer de que vive doente ou ferido?”, pergunta São Simeão. Ora,
ficando inconsciente de seu estado, ele só o agrava. “A pior das doenças é aquela
que consome um paciente sem que ele suspeite disso”, observa São João
Crisóstomo, que aliás observa no mesmo sentido que “ignorar a si mesmo é a pior
das loucuras e dos frenesis”.

A esse respeito, há assim uma distância considerável entre o pecador que é como
um cego a seu respeito e aquele que progride na ascese. Enquanto este as desaloja
nos recônditos mais escondidos de sua alma, aquele se crê isento delas desde que
não atinjam proporções extraordinárias em relação ao estado de decadência médio
da humanidade ambiente. É assim que São Macário observa: “Tanto tempo quanto
um ser humano é retido nas coisas visíveis deste mundo, cercado das diversas
cadeias da terra, arrastado pelas más paixões, ele não sabem nem mesmo que há
um outro combate, uma outra luta, uma outra guerra dentro dele. De fato, só
quando um ser humano levanta-se para combater e se libertar de todos os laços
visíveis deste mundo [...] e começa a permanecer com perseverança diante do
Senhor, esvaziando-se deste mundo, só assim ele pode conhecer o combate interior
das paixões que se ergue nele, a guerra interior e os pensamentos maus. Como
dissemos, tão longo tempo quanto alguém não luta, não renuncia ao mundo, não se
desprende de todo o seu coração da cobiça terrestre, não quer se unir inteiramente
e sem reserva ao Senhor, ele não conhece sem as astúcias secretas dos espíritos de
malícia, nem as paixões escondidas nele. Mas ele é estranho a si mesmo, não
sabendo que traz em si as chagas das paixões secretas”. Notemos que, de todas as
paixões, é o orgulho que obnubila mais a consciência do ser humano e o leva a ser
inconsciente de suas doenças, tanto das menores ou mais sutis como das mais
importantes. “O orgulho”, diz São João Clímaco, “produz um total esquecimento
dos pecados”. “A maioria dos orgulhosos”, constata ele ainda, “ignoram a si mesmos
e acreditam ser impassivos; somente na hora da morte eles descobrem a sua
pobreza”. Aliás, ao orgulho está ligado o que os Padres chamam de “mania de se
justificar”, atitude pela qual o ser humano, em presença de seu pecado, recusa-se a
reconhecê-lo como seu, recalca a consciência.

Não é apenas por não ser suficientemente desperto espiritualmente que explica o
fato do ser humano ser total ou parcialmente inconsciente das paixões que o
habitam. Frequentemente, como observa São Máximo Confessor, as paixões estão
em um estado de anergesia (anergesia), em outras palavras, de inativação ou de
sono. Tal estado pode durar mais ou menos tempo e fazer o próprio espiritual
acreditar que está isento ou liberto desta ou daquela paixão, que faz algum tempo
não se manifestou ou até mesmo nunca se revelou. Assim, pode se estabelecer na
alma um estado de paz na verdade ilusório.

De fato, ao lado do estado de paz autêntico que resulta da impassibilidade (estado


que atinge o ser humano no cume da práxis, quando ele está realmente liberto de
toda paixão), pode existir, como assinala Evágrio, um falso estado de paz que
resulta da retirada dos demônios, sobretudo quando eles estão seguros de possuir
mesmo sua vítima, com um outro ponto de vista. É o caso por exemplo quando a
vaidade ou o orgulho vêm tomar na alma o lugar de todas as outras paixões.

Pode acontecer também que o ser humano tenha a consciência abafada pelas
atividades mundanas múltiplas e febris às quais ele se entrega, que suas paixões lhe
sejam veladas por suas preocupações cotidianas que o impedem de considerar seu
estado. “Graças a seu corpo”, nota neste contexto São Doroteu de Gaza, “a alma é
distraída e aliviada de suas paixões. Mas “que venha um de vocês e que eu o feche
em uma cela escura, que ele passe somente três dias sem comer, sem beber, sem
dormir, sem ver ninguém, sem salmodiar, sem rezar, sem nunca se lembrar de
Deus, e ele verá o que lhe farão as paixões”.

Quando o ser humano renuncia à vida mundana para se comprometer


profundamente com a vida espiritual, é normal igualmente que paixões das quais
ignorava a existência nele ou que lhe pareciam até então pouco desenvolvidas
despertem e revelem-se então com toda a sua intensidade. “Não nos admiremos”,
escreve São João Clímaco, “de nos ver mais sujeitos às paixões nos começos de
nossa vida monástica do que o estávamos quando vivíamos no mundo. [...] De fato,
os animais ferozes já estavam lá, escondidos, mas não se mostravam”. E Santo
Talássio observa: “As piores paixões estão escondidas nas almas. Mas aparecem
quando as coisas são repelidas”.

Este ensinamento de São João Clímaco evidencia o fato de que a paixão, enquanto
não tiver sido totalmente extirpada, não somente subsiste na alma, mas nela se
desenvolve sem que a pessoa tenha consciência disso; tomando incremento, ela
adquire uma força que exerce uma pressão e a revelará com violência, assim que
um objeto que lhe seja conveniente lhe der a ocasião de se expressar, todavia com a
condição de que o ser humano esteja bastante desatento para lhe deixar o caminho
livre e não a dominar pela força da graça.

É evidente , desde este momento, que uma das primeiras funções da terapêutica
posta em prática para curar o ser humano decaído de suas paixões será fazer
aparecê-las bem claramente, torná-lo plenamente consciente delas.

Fonte: Jean-Claude Larchet, O Inconsciente Espiritual, Edições Loyola, São Paulo,


2009, trechos selecionados.

http://avidaintelectual.blogspot.com.br/2015/01/o-inconsciente-espiritual.html

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