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MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Instituto Rio Branco

ACOLHIMENTO DE REFUGIADOS PALESTINOS DO


CAMPO DE RUWEISHED PELO PROGRAMA DE
REASSENTAMENTO SOLIDÁRIO DO BRASIL: CUSTOS E
BENEFÍCIOS PARA A DIPLOMACIA BRASILEIRA

Cláudia Assaf Bastos Rebello

Brasília, 2008
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
Instituto Rio Branco

ACOLHIMENTO DE REFUGIADOS PALESTINOS DO


CAMPO DE RUWEISHED PELO PROGRAMA DE
REASSENTAMENTOSOLIDÁRIO DO BRASIL: CUSTOS E
BENEFÍCIOS PARA A DIPLOMACIA BRASILEIRA

Cláudia Assaf Bastos Rebello

Dissertação do Mestrado em Diplomacia,


orientada pelo Prof. Dr. Marcelo Böhlke e
entregue à Coordenação de Ensino do
Instituto Rio Branco em 26 de dezembro de
2008.

Brasília, 2008
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
INSTITUTO RIO BRANCO

TERMO DE APROVAÇÃO

DISSERTAÇÃO APRESENTADA POR CLÁUDIA ASSAF BASTOS REBELLO


AO PROGRAMA DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO (PROFA - I), DO
INSTITUTO RIO BRANCO, COMO REQUISITO PARCIAL PARA A
OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM DIPLOMACIA.

_____________________________________________
MARCELO BöHLKE (ORIENTADOR )

_____________________________________________
( EXAMINADOR )

_____________________________________________
( EXAMINADOR )

DEZEMBRO, 2008
Dedico este trabalho a meus avós maternos
e paternos, que, sem recursos e, alguns, até
analfabetos, foram visionários, ao serem
capazes, com muita luta, de dar a meus
pais a maior das riquezas: educação.
AGRADECIMENTOS

Entre as páginas deste trabalho, apenas uma é capaz de materializar a sensação indescritível de

dever cumprido: esta. Isso porque o dever simplesmente não se cumpriria, não fosse a cooperação vital de

certas pessoas, cada uma a seu modo, sobretudo quando a fase final do processo ocorre durante minha

missão na Embaixada do Brasil em Doha, Estado do Catar.

Primeiramente, agradeço a disposição infinita do meu orientador, Dr. Marcelo Bölhke. Além do

profundo conhecimento na matéria, foi capaz de me despertar para problemática cuja relevância para a

dignidade do ser humano até então eu desconhecia nos detalhes. Guiou-me não só no mérito do estudo,

mas, devo admitir, no companheirismo concretizado nas palavras de apoio quando mais precisei.

Igualmente, registro o apoio do Embaixador do Brasil em Doha, Anuar Nahes, com cujos sábios

conselhos contribuiu mais do que ele imagina para a conclusão de meu estudo.

Ademais, devo referir-me ao nome Marcela Pignanelli Pereira, Servidora exemplar do Itamaraty,

que, com aguçada organização, me assessorou na busca das fontes primárias que se mostraram vitais na

fundamentação de meus argumentos.

Agradeço, ainda, minha irmã Helena e minha prima Danielle. Essa, pelas valiosas opiniões;

aquela, porque, do Brasil, com sua infinita paciência diante de minhas detalhadas instruções, procedeu na

feitura das cópias físicas e digitais, mediando na logística entre mim e o Instituto Rio Branco para a

entrega;

Não posso deixar de mencionar a gratidão que sinto pela contribuição, indireta talvez, de meus

pais e minhas tias, pelo ensinamento de uma vida inteira, alicerce que sustenta os valores que hoje tenho.

Por fim, a base de tudo, a quem não encontro palavras para expressar o que sinto e sem os quais

qualquer realização ficaria incompleta. Meu marido, Fábio, e meu filho, Amin.
RESUMO

Este estudo busca refletir se os benefícios da decisão brasileira em acolher os palestinos do

campo de Ruweished compensam os custos. São apresentados o arcabouço jurídico, regional e

internacional, que embasa o refúgio e o reassentamento, a legislação brasileira no tema e o

processo decisório que culminou no acolhimento do grupo de palestinos. Realiza-se estudo

comparado com outras experiências de reassentamento no País, a fim de se obter projeção sobre o

possível resultado da ação de reassentar o grupo no Brasil, fator relevante para a análise dos

benefícios da decisão.

ABSTRACT

This work attempts to examine whether the benefits of the Brazilian decision in resettling

Palestinians from Ruweished refugee camp compensates its costs. It presents the legal regional

and international instruments on refuge and resettlement, the Brazilian legislation on the issue

and the decision process involved for the approval of the resettlement of the group. Moreover, a

comparative study using other Brazilian experiences on resettlement is presented in order to

project possible results of the Palestinian resettlement in Brazil, a decisive element to the

analysis of the benefits of the decision.


É certo que precisamos superar os obstáculos que nos separam da excelência
dos serviços oferecidos pelo Estado Social. Carecemos de recursos para
melhorar toda a atividade pública. Há dívidas históricas a saldar com a
camada mais sofrida da população brasileira, que, entretanto – não custa
lembrar –, mesmo enfrentando estoicamente graves problemas cotidianos,
nem de longe passa pelo desconforto da condição de exilado – sem pátria,
sem família, sem direitos políticos, sem bens, às vezes até sem identidade ou
memória.

Sim, o Brasil importa-se com os refugiados e, na medida de sua capacidade,


acolhe-os comprometendo-se a lhes dar assistência compatível àquela
dispensada aos nacionais. Numa época em que as fronteiras se fecham num
pavor xenófobo nunca visto, em que sangrentas guerras destroçam cruelmente
etnias quase inteiras e os ódios raciais e religiosos se acirrram para levar cada
vez mais a mortes e destruição, o gesto de boa vontade brasileiro resplandece
como estrela de primeira grandeza para quem, defendendo o primordial dos
direitos, o único que lhe restou – o direito à vida –, luta como autêntico herói
para manter a derradeira gota de esperança e, com dignidade, recomeçar.

Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, Ministro do Supremo Tribunal Federal


SUMÁRIO

Introdução ...................................................................................................................... 8

Capítulo I: Arranjo jurídico ......................................................................................... 12

1.1 Instituto do refúgio .................................................................................................... 14

1.2 Instituto do reassentamento ....................................................................................... 22

1.3 ACNUR: breve histórico ........................................................................................... 25

1.4 Legislação brasileira .................................................................................................. 27

1.5 Reassentamento solidário .......................................................................................... 29

Capítulo II: Experiência brasileira em matéria de reassentamento ......................... 32

2.1 Os afegãos ................................................................................................................. 35

2.2 Os colombianos ......................................................................................................... 36

Capítulo III: Os palestinos de Ruweished – da Palestina ao Iraque ao Brasil ........ 39

3.1 A questão palestina .................................................................................................... 39

3.2 Os refugiados palestinos e o direito de retorno ......................................................... 46

3.3 Origem do campo de refugiados de Ruweished ........................................................ 49

3.4 Processo decisório do reassentamento dos refugiados de Ruweished pelo Brasil .... 56

Capítulo IV: Perspectivas para a diplomacia brasileira com o acolhimento dos


66
palestinos ........................................................................................................................

4.1 Estudo comparado: afegãos x colombianos x palestinos de Ruweished ................... 66

4.2 Custos e benefícios do reassentamento dos palestinos de Ruweished para a


75
diplomacia brasileira .......................................................................................................

Considerações finais ...................................................................................................... 80

Referências bibliográficas ............................................................................................. 85


8

INTRODUÇÃO

Os refugiados palestinos do campo de Ruweished, localizado em deserto jordaniano,

viviam no Iraque, acolhidos pelo regime de Saddam Hussein. Com a queda do líder iraquiano,

ocorrida em conseqüência da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 20 de março de 2003,

as famílias palestinas que viviam em território iraquiano passaram a ser perseguidas por grupos

opositores a Saddam, culminando na fuga desesperada desse contingente para, entre outras

localidades, o campo de Ruweished, criado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para

Refugiados (ACNUR) especificamente para acolher esse grupo. O campo de Ruweished

localizava-se em solo jordaniano, na região de fronteira com o Iraque. Com condições climáticas

adversas e sem infra-estrutura digna para abrigar pessoas, o grupo que ali se refugiava estava no

limite da sobrevivência, já sob pena de perder a própria vida. Ademais, a ausência absoluta de

perspectivas para crianças, adolescentes e adultos, em meio ao ócio e ao “nada” em que se

inseriam, fazia, dessa forma, a rotina naquele local verdadeira violação aos tratados de direitos

humanos.

O Governo brasileiro, por meio do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE),

decidiu, em maio de 2007, aceitar as 22 famílias restantes que ainda viviam naquele campo de

refugiados, totalizando cerca de cem palestinos, e acolhê-los no âmbito do Programa de

Reassentamento Solidário, fato inédito no País em relação a refugiados de origem palestina. Com

a decisão, o Brasil permitiu que o campo insólito fosse extinto e que alguma perspectiva de vida

voltasse a ser uma possibilidade para aquelas famílias.

Este estudo pretende analisar os custos e os benefícios para o País e para a diplomacia

brasileira envolvidos no acolhimento dos refugiados de Ruweished pelo programa de nacional de

reassentamento.
9

Primeiramente, serão apresentados os instrumentos jurídicos que regem a matéria de

refúgio e reassentamento. Para isso, no primeiro capítulo, será estudado o arcabouço jurídico do

tema, em que, além da distinção entre os institutos do refúgio e do reassentamento, serão vistos

os instrumentos internacionais, regionais e nacionais, basilares acerca da matéria, com destaque

para a Convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, o Protocolo de 1967, a

Declaração de Cartagena de 1984 e suas sucessoras, a Lei nº 9.474/1997 (Lei de Refugiados) e o

Reassentamento Solidário. Ressalva-se que a feitura de trabalho que se dedique a expor a

legislação brasileira acerca dos direitos dos refugiados e dos reassentados, por ser essa uma

legislação de vanguarda, contribuirá para ampliar o conhecimento acerca do refúgio e do

reassentamento, ainda pouco difundido na própria sociedade brasileira e, até mesmo, no meio

diplomático.

Serão, ainda, apresentados os órgãos nacionais e internacionais, conforme sua

competência, que cuidam do refúgio. Os destaques serão para o ACNUR, a Agência das Nações

Unidas para os Refugiados da Palestina e do Oriente Próximo (UNRWA) e o CONARE – órgão

colegiado cuja presidência pertence ao Ministério da Justiça e cuja vice-presidência compete ao

Ministério das Relações Exteriores.

No segundo capítulo, serão abordadas duas experiências de acolhimento de

refugiados no âmbito do programa de reassentamento brasileiro: afegãos e colombianos. Com

isso, haverá parâmentros conhecidos para o posterior estudo comparado que possibilitará a

avaliação do reassentamento dos refugiados palestinos de Ruweished em solo brasileiro.

Em seguida, no que diz respeito mais precisamente à saga dos refugiados palestinos

como um todo, no terceiro capítulo será feito brevíssimo recuo histórico sobre a origem da

questão palestina. Incluído nessa parte estará o chamado “direito do retorno”, tão defendido entre

os negociadores árabes na linha de frente das conversações de paz do conflito israelo-palestino,


10

que, naquele ano de 2007, completara sessenta anos (em 1947, houve a Partilha da Palestina pelas

Nações Unidas). Ainda nesse capítulo, será mostrado como surgiu o campo de Ruweished e, por

fim, apresentado o processo decisório envolvido que culminou no acolhimento daqueles

palestinos pelo Governo brasileiro.

No quarto e último capítulo, será feito estudo comparado entre as experiências

brasileiras em matéria de reassentamento. Como o processo de reassentamento dos palestinos no

Brasil ainda está em sua fase inicial, será utilizado, como já mencionado, método comparado,

para ser possível a inferência de sucesso ou insucesso da ação. Os parâmetros serão as outras

experiências de reassentamento no Brasil, fornecidos no capítulo segundo. Com base na

comparação, será feita a descrição de cenários possíveis que retratem a conseqüência do

acolhimento dos refugiados de Ruweished para a diplomacia brasileira.

Ainda no quarto capítulo, será feita a descrição de alguns dos custos e dos benefícios

da aceitação brasileira pelo acolhimento dos refugiados palestinos de Ruweished. A hipótese

central do estudo é a de que os benefícios, para a diplomacia brasileira, gerados pelo

reassentamento dos refugiados palestinos provenientes de Ruweished, e que chegaram ao Brasil

no segundo semestre deste ano de 2007, compensam os custos.

Entre os custos, por exemplo, está o político, traduzido pela suposta incoerência em

aceitar refugiados produzidos por conflito – invasão do Iraque pelos EUA – ao qual o Brasil se

opôs, não sendo, em tese, aceitável que arque com custos dos subprodutos desse conflito.

A investigação dos benefícios abordará a possibilidade de a iniciativa brasileira em

concordar com a vinda de 22 famílias elevar o perfil do Brasil, no âmbito internacional, como

País que se preocupa com questões humanitárias, em especial com a causa palestina. Além disso,

será analisada a possibilidade de se reforçar a percepção internacional do Brasil como país

protetor de políticas para refugiados. Para isso, o sucesso do reassentamento em tela, traduzido
11

pela integração harmônica dos refugiados com a comunidade local, contribuiria para tal

percepção.

A tudo isso soma-se a busca da política externa brasileira de hoje por um papel mais

atuante nas matérias concernentes ao Oriente Médio, nomeadamente no conflito israelo-palestino.

A constituição do Escritório de Representação em Ramallah, a designação de um Embaixador

Extraordinário para assuntos de Oriente Médio e a liderança brasileira na organização da Cúpula

América do Sul- Países Árabes são alguns elementos relevantes que sinalizam para uma política

externa brasileira mais participativa em temas médio-orientais. O acolhimento de refugiados

produzidos por conflitos na região poderá impulsionar a visibilidade que o Brasil busca no

sentido de ser percebido como ator que se interessa genuinamente pelo tema.

Acima de qualquer custo e benefício resultantes da decisão soberana e voluntária do

Brasil em acolher pessoas que sobreviviam em barracas no meio de um deserto, fica aqui

registrado que, independentemente do sucesso ou do insucesso da decisão, o fato é que os

palestinos de Ruweished recomeçaram novo capítulo de suas vidas no momento em que

receberam a notícia de que deixariam de vez aquela localidade. Alguns chegaram a afirmar, em

depoimentos em vídeo, no momento da euforia, que já eram brasileiros.


12

CAPÍTULO I: ARRANJO JURÍDICO

O refúgio é tema antigo, mas o arcabouço jurídico internacional que o define e regula

é recente. Se a problemática vivida pelos refugiados, entendidos como deslocados forçados, ainda

que motivados apenas por “fundado temor de perseguição”, existe desde quando guerras e

perseguições entraram para a história da humanidade, a sistematização de regras pela comunidade

internacional para o tema em tela é relativamente recente, estabelecida pela primeira vez no

âmbito da Liga das Nações, na década de 1920.

Por sua vez, a legislação brasileira para tratamento do refúgio e do reassentamento é

considerada avançada, refletindo o compromisso do País com as diretrizes definidas no âmbito

multilateral. Isso se deve, primeiramente, ao fato de o Estado brasileiro entender a questão do

refúgio sob o viés humanitário, e, não, migratório. Segundo o Alto Comissário das Nações

Unidas para os Refugiados, António Guterres, “o Brasil é exemplo porque tem uma das mais

avançadas legislações do mundo em matéria de exílio, além de ter vasta experiência no assunto”1.

Soma-se a isso o passado histórico recente do País, em que perseguidos políticos latino-

americanos buscavam asilo no Brasil e vice-versa.

Desde já, cabe ressalvar a distinção entre asilo político e refúgio. Embora ambos os

institutos permitam ao estrangeiro viver legalmente em um Estado, desenvolveram-se de forma

distinta. As similaridades estão, primeiramente, no fato de possuírem o mesmo propósito, qual

seja, proteger o indivíduo de perseguição em seu país de origem ou residência. Além disso,

ambos os institutos baseiam-se no respeito aos direitos humanos, na solidariedade internacional e

no seu caráter humanitário. Ainda, ambos estão fundamentados no artigo 14 da Declaração dos

1
Agência de Notícias, “Ministro da Justiça recebe Alto Comissário da ONU”, 07/11/2005. Disponível na Internet:
<www.mj.gov.br>. Acesso em 15 out 2008.
13

Direitos Humanos2. Talvez por essas similitudes, os institutos do asilo político e do refúgio sejam

confundidos, sobretudo na América Latina.

O Ministério da Justiça advoga que

A Constituição Federal de 1988 declara em seu art. 4º que o Brasil rege-se nas
suas relações internacionais pelos princípios da "prevalência dos direitos
humanos e da concessão do asilo político".
O asilo político é tratado, ainda, em título próprio da Lei nº 6.815/80 (Estatuto
do Estrangeiro), que dispõe que o estrangeiro admitido no território nacional na
condição de asilado político ficará sujeito, além dos deveres que lhe forem
impostos pelo Direito Internacional, a cumprir as disposições da legislação
vigente e as que o Governo brasileiro lhe fixar3.

Entre as principais diferenças entre o asilo político e o refúgio, destacam-se: (a) o

desenvolvimento do asilo teve início na antigüidade, ao passo que o do refúgio, no início do

século XX; (b) o asilo é discricionário do Estado, enquanto o refúgio é regulado por normas

internacionais; (c) a necessidade real de haver uma perseguição, no caso do asilo, e, no refúgio, a

suficiência em existir simplesmente o temor fundado de perseguição; (d) o asilo pode ser

concedido no território de origem (caso do asilo diplomático), para depois se transformar em

asilo territorial, ao passo que o refúgio só é concedido fora do país de origem4.

Pelo fato de possuir arcabouço jurídico interno específico para a matéria, alicerçado

em critérios tão-somente técnicos, em sintonia com os princípios de direitos humanos e em

parceria com órgãos internacionais específicos para refugiados, o Brasil tornou-se ator

reconhecido em matéria de refúgio e reassentamento, capacitado a atuar de forma cada vez mais

2
1. Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países; 2. Este
direito não pode, porém, ser invocado no caso de processo realmente existente por crime de direito comum ou por
atividades contrárias aos fins e aos princípios das Nações Unidas.
3 Disponível na Internet: <http://www.mj.gov.br>. Acesso em 15 out 2008.
4 BOHLKE, 2008. JUBILUT, 2006.
14

relevante e independente no acolhimento daqueles que recomeçam a vida do nada, ainda que se

perceba, em termos absolutos, número reduzido de refugiados admitidos em território nacional,

se comparado a certos países tradicionalmente acolhedores5.

Este capítulo mostrará, de início, o surgimento do refúgio como instituto jurídico e os

marcos regulatórios internacionais para seu tratamento. Em seguida, descreverá igualmente o

reassentamento, diferenciando-o do refúgio. Será apresentado, ainda, órgão de relevância ímpar

na linha de frente da problemática dos deslocados de todo tipo, refugiados, reassentados ou

simplesmente deslocados internos: o ACNUR. Por fim, será feito recuo histórico do processo

vivido pelo Estado brasileiro na evolução de seu ordenamento jurídico para refugiados e

reassentados, culminando no programa de Reassentamento Solidário, proposto pelo Brasil em

2004, em foro multilateral latino-americano.

1.1 INSTITUTO DO REFÚGIO

Antes de analisar os marcos jurídicos que caracterizam o instituto do refúgio, é

importante localizar o tratamento e a evolução do tema dentro da doutrina jurídica. A

internacionalização dos direitos humanos levou à especificação crescente de temas concernentes

à proteção da pessoa humana. Dessa forma, elaboraram-se tratados temáticos os mais variados,

como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a

Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972), a Convenção

sobre o Direito das Crianças (1989), para citar apenas três entre muitos outros. Assim sendo, a

positivação de regras internacionais objetivando a proteção e a promoção dos direitos humanos

5
Relatório divulgado pelo CONARE afirma que o Brasil possuía, em 31/12/2007, 3.815 refugiados e reassentados
(para diferenciação entre refugiado e reassentado, ver item 1.2 deste estudo), dos quais 90,7% são refugiados em
primeiro país de asilo. Estatística do ACNUR estima total de 11.400.000 de refugiados em todo mundo, em
dezembro de 2007. Disponível na Internet: <http://www.csem.org.br/2008/dia_do_refugiado2008_o_desafio_
das_politicas_publicas_rosita_milesi.pdf>, p. 2. Acesso em 15 dez 2008.
15

formou núcleo jurídico internacional de proteção à pessoa humana, denominado direito

internacional dos direitos humanos.

Muito antes, porém, casos mais urgentes de necessidade de proteção dos direitos

humanos – sobretudo de proteção do principal deles, que é a proteção do direito à vida – já

haviam sido codificados. São eles: o direito internacional humanitário, para situações de conflito

armado; e o direito internacional dos refugiados, codificado no âmbito internacional a partir da

década de 1920, cuidando daqueles indivíduos perseguidos dentro de seus próprios países por

motivos diversos.

Se, por um lado, alguns estudiosos consideram as três modalidades – Direitos

Humanos, Direito Humanitário e Direito dos Refugiados – sistemas distintos entre si, outros,

como Antônio Augusto Cançado Trindade e Guido Fernando Silva Soares, por outro lado,

afirmam que, na realidade, o que existe é

um grande sistema de proteção à pessoa humana que apresenta três vertentes de


proteção de acordo com a realidade da qual resulta a violação dos direitos dos
ser humano.[...] Dessa forma, pode-se dizer que, hoje em dia, a pessoa humana
conta com um grande sistema de proteção denominado comumente de Direito
Internacional dos Direitos Humanos lato sensu (ou Direito Internacional de
Proteção da Pessoa Humana), que se divide em três vertente de proteção: o
Direito Internacional dos Direitos Humanos stricto sensu, o Direito Internacional
Humanitário e o Direito Internacional dos Refugiados6.

Seja como for, independentemente da doutrina defendida, o fundamental é haver o

consenso – o que existe – de que seja inquestionável a necessidade da proteção à pessoa humana.

Mais especificamente em relação ao tema deste estudo, refugiados são indivíduos que necessitam

de tal proteção e, dessa forma, o compromisso daqueles atores que se dedicam solidariamente a

6
JABILUT, 2006, p. 58-59.
16

minimizar o sofrimento desse grupo insere-se na seriedade com que entendem a proteção e a

promoção dos direitos humanos em sua própria sociedade nacional. Como ensina a Diretora do

Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), Rosita Milesi,

os refugiados são a crua expressão das desordens e dos desequilíbrios mundiais,


que os compele e constrange a deixar sua terra, raízes, pátria. São homens,
mulheres e crianças obrigados a deixar sua pátria por fundado temor de
perseguição, seja por motivos de raça, religião, nacionalidade, opinião política
ou grupo social, seja pela própria violação de direitos e falta de proteção do seu
Estado. Caminham carregando sonhos, dramáticas histórias de vida, e uma
obrigação que lhes foi imposta como única alternativa, a de recomeçar7.

Os instrumentos internacionais em matéria de refúgio são basicamente dois: a

Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951; e o Protocolo sobre o Estatuto dos

Refugiados, de 1967. Quaisquer outros documentos, seja no âmbito internacional, seja no

regional, seja no nacional, baseiam-se nos princípios da convenção e do protocolo.

O ponto de partida para compreender as diretrizes do regime internacional em matéria

de refúgio é a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 19518, adotada pelas Nações

Unidas e ratificada pelo Brasil em 1961. O fato de a Convenção de 1951 ser considerada marco

no tratamento internacional do tema não significa ausência de regulamentação anterior que

determinasse a condição de refugiado. Tanto assim que aqueles já legalmente reconhecidos como

refugiados não perderam esta condição com a entrada em vigor da Convenção de 1951. Ao

7
Disponível na Internet: <http://www.csem.org.br/2008/dia_do_refugiado2008_o_desafio_das_politicas_publicas_
rosita_milesi.pdf>, p. 1. Acesso em 15 dez 2008.
8
A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados foi assinada em Genebra em 28/07/1951, adotada por 41 votos a
favor, cinco contra e dez abstenções, durante a Conferência das Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto
dos Refugiados e Apátridas, convocada pela Resolução 429 (V) da AGNU, de 14/12/1950. Entrou em vigor em
22/04/1954 e, na ordem jurídica brasileira, em 28/01/1961, pelo Decreto 50.215.
17

contrário, logo o primeiro artigo do documento reza que o termo “refugiado” aplicar-se-á também

a qualquer pessoa que

tenha sido considerada refugiada em aplicação dos Arranjos de 12 de Maio de


1926 e de 30 de Junho de 1928, ou em aplicação das Convenções de 28 de
Outubro de 1933 e de 10 de Fevereiro de 1938 e do Protocolo de 14 de Setembro
de 1939, ou ainda em aplicação da Constituição da Organização Internacional
dos Refugiados. [...]

São os chamados “refugiados estatutários”.

Produzida no imediato pós-II Guerra Mundial, a Convenção de 1951 limitava

temporal e geograficamente a classificação de indivíduo como refugiado, o que resultou na

necessidade da posterior elaboração do Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, de 19679.

Tais limitações eram no sentido de restringir a qualidade de refugiados apenas

àqueles que tiveram de fugir de seu país em função da II Guerra Mundial, possibilitando, dessa

forma, o maior número de adesão possível de Estados contratantes. As reservas temporal e

geográfica estão expressas na seção B do artigo primeiro, que diz que

Para os fins da presente Convenção, as palavras acontecimentos ocorridos antes


de 1º de janeiro de 1951, do artigo 1º, seção A, poderão ser compreendidas no
sentido de ou
a) acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa10; ou
b) acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa ou
alhures.

Afirma, ainda, que

9
O Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1967, foi adotado e aberto à adesão pela Resolução 2.198 (XXI)
da AGNU, de 16/12/1966, e aprovada anteriormente pela Resolução 1.186 (XLI) do ECOSOC, de 18/11/1966. O
referido Protocolo entrou em vigor na ordem jurídica brasileira em 07/08/1972, pelo Decreto 70.946.
10
A limitação temporal explica-se quando a Convenção enquadra apenas as vítimas de aconteceimentos ocorridos
antes de 1951; a limitação geográfica, apenas vítimas do continente europeu, afirmação desta opção (a).
18

cada Estado Membro fará, no momento da assinatura, da ratificação ou da


adesão, uma declaração precisando o alcance que pretende dar a essa expressão,
do ponto de vista das obrigações assumidas por ele em virtude da presente
Convenção.

Em outros termos, o documento deixava a critério do Estado contratante a escolha da

definição dos acontecimentos cujas conseqüências enquadravam suas vítimas na condição de

refugiado. Para evitar o fluxo de imigrantes advindos dos países de menor desenvolvimento

relativo e que deixavam sua terra natal por motivos econômicos, ou para evitar o

comprometimento em receber contingentes perseguidos de outras regiões, os países que aderiram

à Convenção o fizeram optando pela definição (a), ou seja, não estariam violando o tratado ao

rejeitar estrangeiros extra-europeus que tradicionalmente buscavam aquele continente para ali se

fixarem na expectativa do enriquecimento ou melhora de condições de vida para si e para a

família, ou, até mesmo, para resguardar a própria vida. Ao todo, 25 Estados, incluindo o Brasil,

aplicaram a Convenção de 1951 só para refugiados europeus.

Durante o período preparatório da Convenção de 1951, houve algumas divergências.

A primeira delas fazia referência a quem poderia ser considerado refugiado. Cogitou-se a

inclusão da expressão “pessoas desprovidas de proteção estatal”, o que permitiria a inclusão não

só de refugiados, como também de apátridas – como preferia o bloco socialista. Estados Unidos e

França protestaram, e, por fim, prevaleceu a inclusão tão-somente dos refugiados. Em

conseqüência, os socialistas não aceitaram o convite para participar da elaboração do documento.

Outra divergência dizia respeito à justificativa usada pelo indivíduo, uma vez atendido o critério

das limitações temporal e geográfica, já mencionadas. O indivíduo elegível para a assistência

internacional seria somente aquele com fundado temor de perseguição em função de seu grupo
19

étnico, religião, nacionalidade, filiação a certo grupo social ou opiniões políticas, ainda que tal

perseguição, na realidade, inexistisse.

Ressalva-se que, apesar de a Convenção de 1951 ser passível de críticas, os princípios

ou regras nela estabelecidos representam marco no tratamento internacional da matéria. Entre

eles, destacam-se os seguintes: princípio da não-repatriação (non-refoulement), que impede que o

indivíduo seja enviado, contra sua vontade, para território onde estará sob risco de morte ou onde

sabe que poderá ser encaminhado a terceiro território em que será perseguido; regra que impede a

punição por entrada irregular em um Estado, fundamental para o solicitante de refúgio; princípio

da não-discriminação; regras sobre documentação de viagem; e regras sobre trabalho a ser dado

ao refugiado.

Embora esteja clara a importância do ineditismo do enfrentamento pormenorizado da

questão dos refugiados pela comunidade internacional a partir da Convenção de 1951, o

documento ainda não considerava outros aspectos, igualmente importantes, sendo o principal

deles as reservas temporal e geográfica, que limitava a elegibilidade de muitos perseguidos,

resultantes de conflitos que passaram a se desenvolver na segunda metade do século XX até os

dias atuais. A necessidade de um conceito de refugiado mais abrangente fazia-se cada vez mais

urgente.

Diante da inaplicabilidade da definição de refugiado pela Convenção de 1951 para

contingentes de deslocados produzidos fora da Europa e após 1951, foi assinado o Protocolo

Sobre o Estatuto dos Refugiados, ou simplesmente Protocolo de 1967, o que levou à criação do

conceito ampliado de refugiado.

Logo em seu preâmbulo, o Protocolo já deixa claro por que foi criado:

Os Estados Partes no presente Protocolo,


20

Considerando que a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, concluída


em Genebra em 28 de Julho de 1951 (daqui em diante referida como a
Convenção), só cobre aquelas pessoas que se tornaram refugiados em resultado
de acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951,
Considerando que, desde que a Convenção foi adotada, surgiram novas situações
de refugiados e que os refugiados em causa poderão não cair no âmbito da
Convenção,
Considerando que é desejável que todos os refugiados abrangidos na definição
da Convenção, independentemente do prazo de 1 de Janeiro de 1951, possam
gozar de igual estatuto,
Concordaram no seguinte: [...]

Em seu artigo primeiro, item 2:

Para os efeitos do presente Protocolo, o termo refugiado deverá [...] significar


qualquer pessoa que caiba na [definição de refugiados da Convenção], como se
fossem omitidas as palavras como resultado de acontecimentos ocorridos
antes de l de Janeiro de 1951 e as palavras como resultado de tais
acontecimentos [...].

Além da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, arranjos regionais também

reafirmam a codificação de regras internacionais para refugiados, contribuindo para a eficácia da

atuação dos Estados signatários dos documentos descritos, complementando-os e reforçando-os,

como é o caso da Convenção da Organização da Unidade Africana (atual União Africana),

assinada em Adis-Abeba em 1969, em vigor desde 1974.

No âmbito do sistema interamericano, no qual o Brasil se insere, o primeiro destaque

é a Declaração de Cartagena sobre Refugiados, de 1984, produto final de colóquio organizado na

Colômbia pela Universidade de Cartagena das Índias e apoiado pelo governo colombiano. Na

Declaração, marco no tratamento de refugiados na América Latina, estão listadas as conclusões a

que dez países participantes chegaram em relação a ações a serem tomadas a partir dali. Vale
21

destacar que o documento agregou outras características para a definição de refugiado, além

daquelas já definidas na Convenção de 1951 e no Protocolo de 1967. Para os latino-americanos

participantes do Colóquio em Cartagena das Índias, refugiado era também aquele que, “devido a

grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade

para buscar refúgio em outro país”.

Em suma, o documento, que visa à harmonização dos sistemas nacional, regional e

internacional de tratamento da matéria, conclamou os Estados participantes a adaptarem suas

respectivas legislações nacionais, inclusive em nível constitucional, a fim de aderirem à

Convenção de 1951, bem como ao Protocolo de 1967. Estabeleceu, ainda, uma gama de

recomendações viáveis, porém negligenciadas até então. Na Declaração, foram listadas dezessete

conclusões, as quais deixavam clara a intenção da América Latina em trabalhar de forma a

complementar as diretrizes já acordadas no âmbito mundial. É este aspecto – o de

complementaridade – que faz do sistema interamericano de proteção ao refugiado ser louvado

nos mais diversos organismos internacionais e Estados extra-americanos, sobretudo no que tange

à ampliação da definição de refugiado.

Em dezembro de 1994, na Costa Rica, realizou-se o Colóquio Internacional em

Comemoração ao Décimo Aniversário da Declaração de Cartagena sobre Refugiados, que gerou

a Declaração de São José sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas. Igualmente importante, o

documento reafirmou as bem-sucedidas diretrizes já em vigor ao longo dos dez anos pós-

Cartagena, bem como destacou outros aspectos interessantes de se notar, como a chamada

específica para a grave problemática daqueles perseguidos dentro de seu próprio território

nacional – o caso dos deslocados internos, cujo número crescia a cada dia naquela década.

Vinte anos após Cartagena, surge mais um marco no arcabouço jurídico regional e

que geraria conseqüências positivas para a problemática dos refugiados em nível mundial. Em
22

2004, na Cidade do México, países latino-americanos participaram da Reunião de Comemoração

ao Vigésimo Aniversário da Declaração de Cartagena, que produziu não só mais uma Declaração

– igualmente relevante –, mas, sobretudo, o Plano de Ação do México para Fortalecer a Proteção

Internacional dos Refugiados na América Latina.

O Plano de Ação do México é especialmente importante para as diretrizes regionais

em matéria de refugiado, pois, durante o encontro, foi lançado o programa latino-americano de

reassentamento solidário, proposto pelo Brasil, a ser abordado mais adiante neste estudo, após

breve dissertação acerca do instituto do reassentamento.

1.2 INSTITUTO DO REASSENTAMENTO

O reassentamento é uma das três soluções duradouras para o refugiado de longa

duração. Em 2001, por ocasião dos cinqüenta anos da assinatura da Convenção de 1951, o

ACNUR organizou as chamadas Consultas Globais – uma série de reuniões em que diversos

atores debateram os diferentes aspectos da problemática do refúgio, a evolução no tratamento do

tema, bem como as deficiências que ainda existiam. Em uma das reuniões, realizada em Genebra,

foram discutidas justamente as chamadas três soluções duradouras para um refugiado, já previstas

na Convenção de 1951 e no Protocolo, quais sejam: (i) a repatriação voluntária, considerada a

solução ideal, em que o indivíduo, por vontade própria, optaria por retornar a sua terra natal, o

que ocorria quando os riscos que justificaram sua fuga não mais existiam; ou (ii) a integração

plena à nova sociedade onde o refugiado obteve reconhecimento da condição de refugiado

primeiro; ou (iii) o reassentamento em um segundo país de refúgio, caso o refugiado continue a

correr riscos no primeiro país onde se refugiou.

A primeira dessas soluções – a repatriação voluntária – é considerada a solução ideal,

na medida em que o retorno à pátria-mãe não só sinaliza para o fim da perseguição de outrora,
23

mas, sobretudo, representa o reencontro do indivíduo com sua memória de vida, seu patrimônio

cultural, sua tradição, seus entes queridos que ficaram, seu lar. Já a segunda solução – a

integração local no primeiro país de refúgio – é a solução que também resolveria, em tese, a

situação daquele que não mais pode regressar à terra natal. Ao se integrar efetivamente à

sociedade acolhedora, o refugiado volta a ser cidadão, com dignidade e direitos civis e políticos,

para dar prosseguimento à vida. Volta a sentir o pertencimento a um agrupamento humano, ainda

que distinto de sua cultura, mas fundamental ao indivíduo.

O reassentamento, por sua vez, explica-se pelo fato de nem sempre o refugiado

encontrar condições propícias para recomeçar sua vida no primeiro país em que busca asilo.

Quando, já acolhido como refugiado, os riscos a que ele estava exposto continuam a existir, ou

quando novos riscos surgem, o indivíduo poderá ser oficialmente encaminhado a um outro país

que se voluntaria a acolhê-lo, num gesto solidário.

Cabe lembrar que não há hierarquia entre as três soluções duradouras citadas. Todas

são igualmente importantes e cada caso irá definir qual a mais adequada. Muitas vezes, será o

reassentamento a solução que possibilitará a vida digna de uma família.

A descrição comum de reassentamento como “última instância” não deve ser


interpretada à luz de uma hierarquia de soluções, sendo o reassentamento a
menos importante delas. Para muitos refugiados, o reassentamento é, com efeito,
a melhor ou, talvez, a única alternativa [...]11.

Em outros termos,

o reassentamento é a única solução possível para os refugiados que não têm


condição de se integrarem no país de refúgio e, ao mesmo tempo, não podem
retornar a seus países de origem12.

11
JABILUT, 2006, p. 58-59.
12
VIEIRA, 2005, p. 130.
24

O aspecto voluntário já mostra a primeira diferença a ser apontada entre o refúgio e o

reassentamento. Enquanto aquele é regido por regras internacionais bem definidas as quais um

Estado-parte não pode, em tese, se eximir de cumprir, este resulta da ação voluntária do Estado.

Em outros termos, acolher como refugiado aquele que, observadas certas condições, encontra-se

em território nacional é obrigação do país que é parte dos tratados específicos do tema, ao passo

que, no reassentamento, o país se voluntaria para receber o indivíduo. É esse voluntarismo,

materializado no ato unilateral de um Estado soberano, que justifica o caráter humanístico e

solidário daquele que se propõe a oferecer seu território para reassentar refugiados.

O Estado norueguês é considerado país tradicional em reassentamento. Outros, como

o Brasil e alguns países da América Latina, são definidos pelo ACNUR como emergentes em

matéria de reassentamento. Isso porque só recentemente países desta região firmaram acordo com

o Alto Comissariado se voluntariando para acolher refugiados ainda em risco no primeiro país de

refúgio, uma experiência que se intensifica a cada ano.

O ACNUR lamenta que muitas vezes os países desenvolvidos que possuem programa

de reassentamento o fazem com base em critérios usados para sua política de imigração, mais

seletiva, sem viés humanitário. Países em desenvolvimento, segundo o ACNUR, por sua vez,

entendem o reassentamento sob a ótica da solidariedade internacional e humanista.

Para desenvolver o reassentamento em seu território, um país firma acordo de

parceria com o ACNUR, que se compromete a assistir o país em todas as fases do processo de

acolhimento, incluindo o acompanhamento do refugiado depois de reassentado em território

nacional. No Brasil, foi a partir de 1997, com a promulgação da Lei nº 9.474/1997, estudada mais

adiante, que o reassentamento entra oficialmente para o ordenamento jurídico interno. O Brasil

decidiu por desenvolver política de reassentamento no ano de 1999, assinando com o ACNUR o
25

Acordo Marco para Reassentamento de Refugiados. Pelo acordo, estabeleceram-se regras claras,

sempre técnicas, acerca dos critérios a serem considerados no momento da decisão pelo

acolhimento do refugiado que enfrenta problemas no primeiro país de asilo.

O referido Acordo Marco para Reassentamento de Refugiados baseia-se nos

princípios já estabelecidos nos tratados de que o Brasil é parte bem como na sua legislação

nacional para refúgio, objetivando a solidariedade internacional na busca de soluções duradouras.

Desde a assinatura do Acordo Marco, dados do IMDH, sediado em Brasília e parceiro

estratégico do ACNUR no Brasil, mostram que entre 2002 e 2007 foram reassentadas no país 284

pessoas, sendo 52% do sexo masculino e 48% do feminino. A maioria desses reassentados – 159

– chegaram com idade entre 18 e 59 anos, e 109 deles, com idade entre 5 e 17 anos. Os demais

eram crianças com menos de 5 anos e um indivíduo com mais de 60 anos. Ainda segundo o

IMDH, entre 2007 e 2008, foram reassentados mais 530 indivíduos no território brasileiro, sendo

380 colombianos e 150 palestinos. Do total de reassentados até hoje, 64% estão na área urbana e

36% na área rural. O custo financeiro para a vinda dessas pessoas é do ACNUR, que conta com

entidades da sociedade civil e com o governo brasileiro para atuarem na integração local.

1.3 ACNUR: BREVE HISTÓRICO

O Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (Office of the

United Nations High Commissioner for Refugees ou UNHCR) foi criado pela Resolução 319 (IV)

da Assembléia Geral das Nações Unidas (AGNU), de 1949, e seu Estatuto, aprovado em 1950,

anexado à Resolução 428 (V) da AGNU. Em 1951, o ACNUR dava início às suas atividades.

Seguindo diretrizes tanto da Assembléia Geral quanto do Conselho Econômico e Social

(ECOSOC) e, ainda, com caráter integralmente apolítico, o trabalho do Alto Comissariado

pretende-se humanitário e social, como estipulam as disposições gerais do seu Estatuto.


26

Com sede em Genebra, o principal objetivo do ACNUR é a busca das três soluções

duradouras para os refugiados, já citadas no item 1.2 deste estudo. Para isso, empregam

aproximadamente seis mil funcionários, 80% dos quais trabalhando no terreno. O Alto

Comissariado mantém-se por meio de doações feitas pelos Estados, pelo setor privado e por

doadores particulares. Seu orçamento anual está na ordem de um bilhão de dólares por ano. A

estratégia de trabalho do órgão está na chamada parceria tripartite: ACNUR, sociedade civil e

governo.

Além das doações financeiras, o ACNUR – presente em mais de cem países – conta

com rede de instituições da sociedade civil, com cuja parceria é capaz de dar eficácia e eficiência

a seus projetos, sobretudo no que diz respeito à integração local, seja do refugiado, seja do

reassentado. Em 2008, mais de 22 milhões de pessoas estão sob a proteção do ACNUR mundo

afora. Outra parceria fundamental para os trabalhos do ACNUR é a que mantém com o governo

de cada país.

O Brasil, que faz parte do Comitê Executivo do ACNUR desde sua criação, possui

atuantes instituições que, juntamente com esta agência das Nações Unidas, capacitam o Estado

brasileiro a se classificar como país de vanguarda no tratamento de refugiados. Esse fato é

reforçado, ainda mais, após a promulgação da legislação nacional específica, de 1997, bem como

a assinatura do Acordo Marco para Reassentamento de Refugiados, de 1999.

As principais parcerias do ACNUR no Brasil são o IMDH, as arquidioceses, ONGs e

o próprio governo brasileiro – fundamental na articulação das atividades desempenhadas pelo

ACNUR no país e cuja legislação faz do Brasil um dos Estados mais respeitados pelo órgão da

ONU em matéria de refúgio e reassentamento.

Quando um Estado compromissado com o reassentamento, como é o caso do Brasil,

decide por acolher um refugiado em risco, é o ACNUR que arca com os custos da viagem do
27

indivíduo para o país, bem como a sua manutenção pelos primeiros 24 meses. O país acolhedor,

por sua vez, contribui não só cedendo o território e as documentações que dão cidadania, mas

sobretudo oferecendo a infra-estrutura necessária característica de um país acolhedor, com a

valiosa parceria das instituições não-governamentais engajadas na causa do refúgio.

A dimensão da importância do ACNUR e demais órgãos internacionais dedicados ao

bem-estar e à dignidade do refugiado transcende o imaginário do cidadão comum que não vive o

drama da fuga de sua própria terra natal para reconstruir a vida a partir do zero. Não fosse a

dedicação diuturna dos trabalhadores e dos parceiros desses órgãos, a problemática hoje, já tão

agravada, desse contingente humano seria ainda mais dramática.

1.4 LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

O Brasil, consciente de que a eficácia de medidas para refugiados depende da

coordenação e da harmonização entre sistemas universais, regionais e esforços nacionais, é ator

dinâmico na formulação e aplicação das normas acordadas em qualquer âmbito. Por isso mesmo,

foi o pioneiro no Cone Sul na elaboração de lei para regulamentar o refúgio e o reassentamento

em seu território. Com viés humanitário e baseado em critérios tão-somente técnicos, o governo

brasileiro não pondera aspectos político-ideológicos durante o processo decisório de concessão

do status de refugiado a um indivíduo presente no território nacional (normalmente em situação

irregular) ou de acolhimento de um refugiado em seu programa de reassentamento.

Inicialmente, o Brasil aderiu à Convenção de 1951 optando pela cláusula da reserva

geográfica. Além disso, o Brasil fez reservas aos artigos quinze e dezessete, não reconhecendo o

direito de associação e de profissão assalariada, respectivamente. Somente ao aderir ao Protocolo

de 1967, o Brasil passaria a reconhecer esses dois direitos, mas mantinha a reserva geográfica – o

que impedia o Brasil de aceitar como refugiados os perseguidos políticos que chegavam ao País
28

durante os regimes militares latino-americano. Mesmo porque essas pessoas que chegavam

estavam fugindo de seus países pela mesma razão que os brasileiros perseguidos fugiam do

Brasil. Por meio de instituições ligadas à Igreja católica, os que buscavam refúgio no Brasil

começavam a ser atendidos, recebendo hospedagem e alimentação até que pudessem ser

seguramente encaminhados a outro país. A cláusula da reserva geográfica só foi revogada pelo

Brasil em 1989, pelo Decreto nº 98.608, quando, finalmente, o País comprometia-se a receber

refugiados de nacionalidade extra-européia.

Publicada no Diário Oficial da União em 23 de julho de 1997, a Lei nº 9.474/1997

marca o compromisso do Brasil em âmbito nacional em matéria de refúgio e reassentamento.

Regulamentou no seu ordenamento jurídico interno, entre outras providências, mecanismos para

a implementação da Convenção de 1951. Para a definição de refugiado, a referida lei baseou-se

não só naquela expressa na Convenção de 195113 e no Protocolo de 1967, mas expandiu o

conceito para incluir aqueles que devido a grave e generalizada violação de direitos humanos,

são obrigados a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país – em

linha com as diretrizes da Declaração de Cartagena, de 1984.

Os artigos 4514 e 4615 da referida lei dispõem acerca do reassentamento. Como já

citado, o Governo brasileiro assinou, em 1999, Acordo Marco com o ACNUR para o

estabelecimento das regras referentes ao mecanismo do reassentamento de refugiados no seu

13
Definição de refugiado, segundo a Convenção de 1951, é toda pessoa que, devido a fundados temores de ser
perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país
de sua nacionalidade e proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha
sua residência habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido a este temor, não quer a ele
voltar.
14
“O reassentamento de refugiados em outros países deve ser caracterizado, sempre que possível, pelo caráter
voluntário” (Lei nº 9.474/1997, artigo 45).
15
“O reassentamento de refugiados no Brasil se efetuará de forma planificada e com a participação coordenada dos
órgãos estatais e, quando possível, de organizações não-governamentais, identificando áreas de cooperação e de
determinação de responsabilidades” (Lei nº 9.474/1997, artigo 46).
29

território. Foi a partir daí que o Estado brasileiro passava a reconhecer legalmente o

reassentamento como instrumento importante dos refugiados na busca de soluções duradouras.

A Lei nº 9.474/1997 também criou Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE).

Órgão interministerial, o CONARE é o responsável não só por receber as solicitações de refúgio,

como também outorgar documentação que permite ao solicitante reconhecido como refugiado ou

reassentado acolhido residir legalmente no país, trabalhar e ter acesso aos serviços públicos. O

CONARE é presidido pelo Ministério da Justiça, com a vice-presidência cabendo ao Ministério

das Relações Exteriores. Os demais integrantes do Comitê são: Ministério do Trabalho e do

Emprego, Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Departamento da Polícia Federal, Cáritas

Arquidiocesana de São Paulo e do Rio de Janeiro e ACNUR, sendo que o Alto Comissariado

participa das reuniões, porém sem direito a voto.

1.5 REASSENTAMENTO SOLIDÁRIO

O programa regional de reassentamento solidário é uma das soluções duradouras

definidas pelo Plano de Ação do México. Trata-se de sugestão do governo brasileiro para

reassentar, sobretudo refugiados latino-americanos, baseando-se no princípio da solidariedade

internacional.

O Reassentamento Solidário foi proposto pelo Brasil nos encontros consultivos para a

Reunião apelidada de Cartagena +20, de Comemoração ao Vigésimo Aniversário da Declaração

de Cartagena, ocorrida na Cidade do México, em novembro de 2004, que contou com a

participação de vinte países. As consultas tinham por objetivo analisar os desafios em matéria de

refúgio que se impunham aos Estados latino-americanos e identificar formas de assistir os países

acolhedores na busca de soluções adequadas, seguindo justamente o espírito de Cartagena, de

1984.
30

Ao todo, houve quatro reuniões consultivas naquele ano de 200416. Cada uma gerou

um informe consensual que, juntos, deram origem ao Plano de Ação do México para Fortalecer a

Proteção Internacional dos Refugiados na América Latina. Tratava-se de um conjunto de

diretrizes que guiariam os Estados participantes em suas políticas públicas sobre refúgio e

reassentamento. O terceiro capítulo do Plano de Ação cuida das soluções duradouras no âmbito

regional, nas quais se insere o reassentamento solidário.

Como já mencionado, o ACNUR define três soluções duradouras para a problemática

do refúgio como um todo, conforme explicado no item 1.2 deste capítulo. São elas o retorno

voluntário, a integração local e o reassentamento, sem haver a idéia de uma ordem hierárquica, a

despeito de o retorno voluntário ser considerada a solução ideal. As soluções duradouras tratadas

no Plano de Ação estão em linha com aquelas definidas pelo ACNUR, com a ressalva de que se

aplicam às especificidades latino-americanas. Tais especificidades dizem respeito a dois aspectos:

primeiramente o fato de haver número crescente de refugiados urbanos, o que em conseqüência

faz que eles devam ser acolhidos por centros urbanos, facilitando a integração; e, ainda, o fato de

haver elevado número de cidadãos colombianos indocumentados em regiões fronteiriças da

Colômbia com Equador, Panamá e Venezuela. Assim sendo, com base nessas características

típicas da região, o Plano de Ação definiu suas três soluções duradouras aplicadas ao contexto

latino-americano, visando ao atendimento desse contingente, quais sejam: programa de auto-

suficiência e integração local Cidades Solidárias; programa integral Fronteiras Solidárias; e

programa regional de Reassentamento Solidário.

Segundo o ACNUR,

16
Reuniões preparatórias consultivas para Cartagena +20 (México), todas ocorridas em 2004: São José, Costa Rica,
em 12 e 13 de agosto; Brasília, Brasil, em 26 e 27 de agosto; Cartagena das Índias, Colômbia, em 16 e 17 de
setembro; e Bogotá, Colômbia, em 6 e 7 de outubro.
31

o programa regional de Reassentamento Solidário beneficia principalmente


vítimas do conflito colombiano, mas a recente acolhida de refugiados palestinos
no Brasil abriu a possibilidade de reassentamento para refugiados de fora da
América Latina. Em breve, o Chile também receberá refugiados de origem
palestina no âmbito do seu programa de reassentamento17.

O reassentamento solidário é, portanto, uma das soluções duradouras no âmbito

latino-americano para a problemática dos refugiados e sugerida pelo Brasil, em 2004, por ocasião

da comemoração de vinte anos da Declaração de Cartagena.

17
Disponível na Internet: <http://www.acnur.org/paginas/?id_pag=7054>. Acesso em 12 nov 2008.
32

CAPÍTULO II: EXPERIÊNCIA BRASILEIRA EM MATÉRIA DE REASSENTAMENTO

Ato voluntário, como já visto, o reassentamento tem na sua essência a solidariedade.

Ciente de que o reassentamento constitui uma das soluções duradouras fundamentais em matéria

de refúgio, o Brasil decidiu tornar-se país acolhedor de refugiado em risco no primeiro país de

refúgio. Firmou com o ACNUR o Acordo Marco para Reassentamento de Refugiados18 em 1999.

Dessa forma, o Brasil não restringiu sua contribuição tão-somente aos instrumentos

internacionais vinculantes do qual é parte em se tratando de refúgio, mas foi além, oferecendo,

sem a obrigação de fazê-lo, seu território para receber aqueles acolhidos em outro país, porém

ainda sob grave risco ou fundado temor de perseguição.

A seleção do candidato ao reassentamento no Brasil é feita com base em critérios

jurídicos e humanitários, como afirma o Acordo Marco. O Acordo segue os princípios da

Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967. Também está em linha com as diretrizes da

Declaração de Cartagena (1984) e da Lei nº 9.474/1997 – que utiliza definição de refugiado mais

ampliada do que daquelas contidas nos acordos internacionais. Trata-se de projeto que guiaria a

partir daquele ano de 1999 o reassentamento de refugiados no Brasil, que, por meio do

CONARE, analisa os pedidos tendo por base as razões puramente humanitárias.

O objetivo do Brasil para o reassentado é oferecer os meios necessários não só a sua

integração à sociedade brasileira, mas também à auto-suficiência – o que permite que o refugiado

reassentado contribua positivamente com a comunidade local. A política brasileira para

reassentamento evoluiu para o programa de reassentamento solidário, sugerido pelo país no

âmbito de elaboração do Plano de Ação do México, em 2004, uma resposta regional cuja essência

18
O documento possui dez tópicos: (1) objetivo, (2) critérios de elegibilidade, (3) critérios para o reassentamento, (4)
seleção de candidatos, (5) descrição dos benefícios, (6) procedimento de seleção, (7) formalidades de chegada e
documentação, (8) reunião familiar, (9) execução e implementação do projeto e (10) instalação doméstica e serviços
consulares.
33

foi a solidariedade como principal vetor para justificar o acolhimento voluntário do refugiado em

risco no primeiro país de refúgio.

Para aceitar um refugiado em seu programa de reassentamento, o Governo brasileiro

analisa, por meio do CONARE, a situação exata em que se encontra o solicitante. O processo de

seleção inclui análise subjetiva embasada por documentos que comprovem direta ou

indiretamente as razões dadas pelo solicitante. Nesta análise deverão, ainda, ser consideradas

possíveis situações, que, dependendo do caso, o acolhimento poderá requerer tratamento

diferenciado, incluindo o tipo de atenção profissional psicológica dada ao indivíduo que chega.

Poderá, por exemplo, haver a necessidade de proteção jurídica ou física ou ser refugiado vítima

de violência ou tortura, mulheres em perigo, refugiado sem perspectiva de integração no primeiro

país de refúgio e, ainda, pessoas com necessidades especiais.

O processo de seleção do refugiado a ser reassentado é sistematizado e é

precipuamente feito pelo CONARE. Há duas formas possíveis de o Comitê analisar o perfil dos

solicitantes: por dossiê elaborado pelo ACNUR ou, idealmente, por dados coletados in loco pelos

técnicos do CONARE. Esta fase de análise é a mais importante para o sucesso do

reassentamento, na medida em que é neste momento que as expectativas do refugiado são

confrontadas com a realidade que o Brasil pode oferecer. O objetivo da ida da missão é

minimizar os problemas potenciais de adaptação, sendo, portanto, altamente recomendável sua

realização. A missão engloba a visita de técnicos do CONARE que se reúnem individualmente

com cada candidato, a fim de conhecer suas expectativas, bem como mostrar um pouco da

realidade brasileira. A missão também poderá contar com representantes do ACNUR-Brasil ou,

ainda, com integrantes de ONG que atua como entidade executora de acolhimento de refugiados.

Durante o encontro individual no primeiro país de refúgio, a equipe tem a

oportunidade de questionar os refugiados para averiguar os riscos sob que dizem estar, transmitir
34

a realidade do Brasil, por meio de vídeos, fotos, explicações, folhetos, e, ainda, comparar as

expectativas informadas com a realidade brasileira – a qual os técnicos bem conhecem.

Nessa fase, também, os técnicos do CONARE podem avaliar o perfil do candidato ao

reassentamento em termos do nível educacional que possui, do possível trabalho a desempenhar

uma vez reassentado, da área de moradia (rural ou urbana), da disposição por parte do candidato

de partir para um novo país e tentar reiniciar a vida numa nova cultura. Baseado no conjunto de

informações obtidas, o CONARE delibera.

A relação tripartite – ACNUR, sociedade civil e governo – é claramente observada no

processo. Os gastos com a viagem do refugiado a ser reassentado recaem sobre o ACNUR ou

sobre um patrocinador, não sobre recursos do Tesouro Nacional. Uma vez em território

brasileiro, o ACNUR conta com o apoio de entidades da sociedade civil, como organizações não-

governamentais e entidades religiosas – as chamadas entidades executoras –, que se posicionam

na linha de frente entre o país e o acolhido. Ao chegar ao país, o indivíduo é conduzido ao seu

local de residência provisória pela instituição que o orientará e dará todo o apoio necessário para

a integração. O alojamento, alimentação, vestimenta e utilidades domésticas serão garantidos pela

entidade executora, sempre em parceria com o ACNUR, até que o refugiado reassentado consiga,

por conta própria, pagar por sua subsistência. Para isso, é fundamental o acesso desse contingente

a programa de emprego, crédito produtivo e capacitação profissional, a fim de que atinja a auto-

suficiência o quanto antes. Nesse sentido, o Governo brasileiro, por sua vez, garantirá que os

reassentados tenham sua documentação emitida, ingressem no sistema público de ensino, tenham

acesso ao sistema público de saúde, outorgando ao refugiado o mesmo tratamento dado ao

cidadão brasileiro ou ao estrangeiro legalmente residente no país.

Neste capítulo, serão descritas as duas primeiras experiências brasileiras para para

reassentamento, após a assinatura do Acordo Marco de 1999.


35

2.1 OS AFEGÃOS

Desde o final dos anos de 1970, até a virada do século, o Afeganistão vivia sob guerra

civil, sofrendo também invasões, como foi o caso da antiga União Soviética, em 1979. Durante

aqueles vinte anos de conflito, cerca de cinco milhões de afegãos buscaram refúgio nos países

próximos, sem necessariamente deixarem de ser perseguidos ou continuar a viver sob risco.

Em 2001, 23 afegãos que se refugiavam na Índia e no Irã foram acolhidos e

instalados em Porto Alegre. Tratava-se do primeiro grupo de refugiados que o Brasil reassentava

no âmbito do Acordo Marco de 1999.

O processo decisório utilizado pelo CONARE foi via dossiê elaborado pelo ACNUR

sediado nos países de primeiro refúgio dos candidatos – Índia e Irã. Isso porque os técnicos

brasileiros a caminho daqueles países viram-se obrigados a abortar a missão por causa dos

acontecimentos do 11 de setembro (2001) nos Estados Unidos. Para selecionar os refugiados

candidatos ao reassentamento, o CONARE baseou-se em parecer produzido pelo escritório local

do ACNUR nos respectivos países.

No Brasil, os afegãos decepcionaram-se. Não tiveram a oportunidade de freqüentar

curso para aprender o português nos primeiros meses, o que obstaculizou a integração local. O

idioma natal não era conhecido pelas comunidades já estabelecidas no Brasil. Desenvolveram

atividades variadas, desde cozinhar até consertar tapete persa, orientados pela entidade executora,

no caso em tela, a Central de Orientação e Encaminhamento (Cenoe). Apesar de estarem livres

dos riscos que corriam no primeiro país de refúgio, os afegãos mostraram profunda insatisfação

com o reassentamento em território brasileiro, chegando a enviar carta às Nações Unidas e ao

Ministério da Justiça para expressá-la. Além disso, havia profissionais técnicos, como Abdul

Rahimi – técnico em engenharia, à época contando 38 anos de idade – que trabalhava como
36

porteiro, e reclamava do baixo salário. Vieram para o País sem saber ao certo o que os aguardava,

daí a insatisfação, nada obstante estarem em ambiente de paz.

O ACNUR no Brasil relata que os afegãos decidiram pelo programa brasileiro de

reassentamento entendendo que o salário de R$ 260,00 seria por dia, não por mês. Já outros,

como o comerciante Abdul Nabizada, à época com 35 anos, não mais suportava a saudade que

sentia dos familiares no Afeganistão. Muitos reclamaram também da dificuldade em aprender o

português e da profunda diferença cultural.

O fim dos riscos no Afeganistão associado à inadaptação dos afegãos no Brasil levou

a maior parte desses reassentados a decidirem pela repatriação voluntária – uma das soluções

também considerada duradoura pela Convenção de 1951.

2.2 OS COLOMBIANOS

A segunda experiência do Estado brasileiro em reasssentamento foi com os

colombianos. Ocorreu em 2004 e consubstanciou-se no reassentamento de 75 refugiados

colombianos que viviam na Costa Rica e no Equador. Foram reassentados no Rio Grande do Sul,

no Rio Grande do Norte e em São Paulo.

O perfil dos colombianos reassentados variou, cada um com específicas situações

conjunturais, porém, em comum, a situação de risco que viviam no primeiro país de refúgio.

Parte deles carecia de proteção legal ou física onde estavam refugiados, além de não possuir

perspectivas de integração local. Outros necessitavam de proteção física e legal em caráter de

urgência. Havia, ainda, contingente constituído por mulheres em risco.

Originariamente, eram famílias advindas de diferentes atividades na Colômbia.

Alguns eram fazendeiros, que, após visitados por membros das Forças Armadas Revolucionárias

da Colômbia (FARC), foram ameaçados caso não optassem por se associar ao grupo guerrilheiro,
37

se tornar informante ou pagar a chamada “taxa de guerra” ou “vacuna”, tornando a vida

insustentável na região de Medellín. Fugiram primeiramente dentro do próprio país, tornando-se

deslocados internos, mas, diante da contínua perseguição, acabaram emigrando para países

vizinhos, como o Equador. Lá, indivíduos com sotaque colombiano continuavam a ameaçá-los, o

que tornou a vida no primeiro país de refúgio muito perigosa e arriscada. Casos mais graves

envolviam repetidas tentativas de assassinato, fazendo que a vida ficasse inviável no primeiro

país de refúgio.

Ao longo do ano de 2004 – ano em que a Declaração de Cartagena completava 20

anos e o Brasil sugeria o programa de reassentamento solidário no âmbito do Plano de Ação do

México – missões constituídas por um assessor do CONARE, um representante do ACNUR e de

uma organização não-governamental brasileira viajaram ao Equador e à Costa Rica para

entrevistar os candidatos ao reassentamento. Foram coletadas por meio de questionários e

entrevistas as expectativas individuais e a eles foram expostas as condições de vida no Brasil.

Após análise, o CONARE deliberava acolhê-los.

A integração local dos colombianos acolhidos em 2004-2005 ocorreu de forma

satisfatória e dentro do previsto. Nos primeiros três meses, estudaram de forma intensiva o

idioma, com apoio da entidade executora, conforme previsto e já informado por época da

entrevista. Aqueles com perfil rural fixaram-se em área de atividade pesqueira ou de plantação.

Outros priorizaram a busca pelo emprego de forma a obter a auto-suficiência antes mesmo do fim

do prazo estabelecido pelo ACNUR para oferecer salário de sustento da família – ajudada pela

capacitação profissional também promovida pelo ACNUR em parceria com a sociedade civil.

Com o agravamento da situação na Colômbia, as levas de refugiados que ainda

corriam risco no primeiro país de refúgio continuaram a crescer nos anos subseqüentes, exigindo

cada vez mais a solidariedade regional para promover a solução durdoura para este grupo em
38

permanente perseguição. O Brasil, por sua vez, está atento para que o caráter puramente solidário

e humanitário que embasa seu programa de reassentamento não importe para dentro do território

nacional o conflito que motivou a perseguição dos acolhidos. Advém daí o cuidado e a

seletividade do país no momento de optar pela concessão do benefício ao estrangeiro em risco,

tendo por meta única a solidariedade, com a devida atenção para a segurança nacional.
39

CAPÍTULO III: OS PALESTINOS DE RUWEISHED – DA PALESTINA AO IRAQUE AO BRASIL

Um deserto jordaniano e o território brasileiro parecem duas realidades que não se

relacionam sob nenhum aspecto, não fosse a decisão do Brasil em acolher contingente de

palestinos que tentavam sobreviver naquele local sob condições naturais as mais adversas. O

programa de reassentamento solidário, já visto, surgiu com a intenção de servir aos deslocados e

refugiados produzidos pelos conflitos no sistema inter-americano. O acolhimento dos 108

palestinos do campo de Ruweished foi decisão cujos custos e benefícios serão analisados mais

adiante neste estudo.

Este capítulo pretende, de forma breve, organizar os principais marcos da questão

palestina. Pretende, ainda, analisar um dos mais complexos subproduto do conflito israelo-

palestino, que já ultrapassa meio século: os refugiados e, com eles, o chamado “direito de

retorno”. Em seguida, será apresentado, mais especificamente, o estabelecimento do campo de

Ruweished, na Jordânia, e a situação dos palestinos que nele viviam. Será descrito o processo

decisório que culminou na aceitação brasileira pelo acolhimento das últimas famílias palestinas

que ainda sobreviviam naquele campo de refugiados, e, por fim, serão apresentadas algumas

características da vida dos referidos palestinos reassentados em território brasileiro.

3.1 A QUESTÃO PALESTINA

Não é pretensão deste trabalho analisar em profundidade as lutas e conquistas da

questão palestina, mas passaremos a breve relato para situá-la na história. As raízes históricas do

tema em tela remontam à antigüidade, período em que vários povos conviviam na Palestina –

também chamada de Canaã bíblica, ou ainda, Sion, pelos judeus mais ortodoxos.

O território foi conquistado em 1200 a.C. pelo povo hebreu, cujos integrantes mais

tarde seriam conhecidos como judeus. A idéia motivadora da conquista daquele território pelos
40

hebreus surgiu muitos séculos antes, em 1850 a.C., com um crente chamado Abraão, mercador da

cidade de Ur (situada no atual Iraque), que, como a maioria naquele tempo, era politeísta.

Naquele ano, Abraão recebeu uma mensagem de um deus instruindo para abandonar tudo e partir

em busca de um novo lar: Canaã, ou Palestina, uma área banhada pelo rio Jordão a leste e pelo

mar Mediterrâneo a oeste. Abraão obedeceu àquela voz divina e seguiu viagem, acompanhado de

seguidores, escravos e família. Durante o trajeto teve dois filhos: Ismail, mais velho, filho de sua

escrava Agar; e Isaac, filho de sua esposa, Sara. Os judeus traçam sua origem genealógica até

Isaac, ao passo que os muçulmanos, até Ismail.

Diferentemente dos demais povos daquela época, que seguiam o politeísmo, os

hebreus foram os protagonistas, portanto, da primeira revolução monoteísta. Eram os únicos a já

crerem em um deus único, ao contrário das crenças politeístas prevalecentes naquele período.

Para eles, Isaac era o descendente legítimo de Abraão.

Na Palestina, antes da chegada dos hebreus seguidores de Abraão, outros povos já

habitavam o local, entre eles também hebreus e filisteus, povo que dava nome ao território.

Etimologicamente, a palavra “Palestina” significa “terra dos filisteus”. A origem do povo filisteu

não é, ainda, consenso entre os historiadores, prevalecendo a explicação de que se tratava de

grupo indo-europeu, que vivia harmoniosamente com os povos de origem semita naquela região.

O motivo da chegada dos filisteus à Palestina também divide especialistas. A explicação mais

comumente aceita é a que afirma terem sido os filisteus “povos do mar” que, após derrotados

pelos egípcios em batalhas marítimas, refugiaram-se no que passou a se chamar Terra dos

Filisteus, ou Palestina.

Para sobreviver, os povos que viviam na Palestina antes da chegada dos seguidores de

Abraão disputavam recursos escassos e estavam sob o jugo de potências estrangeiras. Com o fim

da Idade do Bronze no Oriente Médio a partir de 1200 a.C., quando se iniciou a interrupção
41

generalizada do abastecimento de bronze, as potências entraram em decadência, o que permitiu

os povos da Palestina e da região do crescente fértil a estabelecerem administrações próprias,

como foi o caso dos filisteus, dos arameus e dos persas. Ao longo da costa mediterrânea, por

exemplo, desenvolveram-se cidades-estado.

Entre esses novos Estados arameus figura o reino de Israel, confederação de


pequenas entidades unidas sob a liderança do rei David (1010-970 a.C.) e do rei
Salomão (970-931 a.C.). Após a morte de Salomão, o reino se dividiu. A parte
norte foi destruída pelos assírios em 722 a.C., enquanto Nabucondonosor II, rei
da Babilônia, pilha Jerusalém, capital do reino do Sul, em 587 a.C., e exila sua
elite judaica para essa capital19.

A famosa tomada de Jerusalém em 587 a.C. pelo rei da Babilônia, bem como outras

conquistas estrangeiras, levou o povo judeu a cada vez mais deixar as terras onde vivia,

fenômeno conhecido como a Diáspora judaica, indo a maioria se instalar na Europa e em outras

partes do Oriente Médio. Devido à Diáspora judaica, ocorrida no início da Era cristã, os judeus se

espalharam pelo mundo.

A partir daí, a dominação da Palestina variou com o passar dos séculos. Com a

expansão do Império Romano, Roma incluiu a Palestina no rol de terras sob sua dominação. Nos

primeiros séculos da Era Cristã, duas revoltas dos judeus contra a dominação romana marcaram

de vez a saída dos judeus da Palestina. Seus templos sagrados foram destruídos. O Muro das

Lamentações – hoje local sagrado de peregrinação judaica –, por exemplo, foi o que restou do

primeiro templo destruído. Com a acelerada diáspora judaica após as revoltas contra os romanos,

a Palestina passou a ser habitada, majoritariamente, por populações romanizadas. No século

quatro da Era Cristã, com a divisão do Império Romano, a Palestina ficou sob a administração do

19
ATLAS DE HISTÓRIA MUNDIAL. Rio de Janeiro: RD, 2001, p.58.
42

Império Romano do Oriente ou Bizantino. No século VII, com o advento do Islã – a terceira

revolução monoteísta da história humana – a Palestina passou a ser fortemente influenciada pelos

árabes, que difundiram a mensagem deixada pelo líder profético Mohammed (Maomé) no âmbito

da expansão do islã.

O território também passou pelo domínio cristão, quando as Cruzadas fundaram um

Estado cristão na Palestina, por volta do século XII, visto que se tratava de território que acolhera

o profeta Jesus e seus seguidores. Como se vê, as três religiões monoteístas tiveram na Palestina

– a Terra Santa – motivos de adoração ao longo dos últimos três mil anos, alternando-se, cada

uma a seu tempo, dependendo de suas lideranças e motivações. Por volta do século XIX, a

composição populacional na Palestina era da ordem de 6% de judeus e mais de 90 % de árabes20.

Na Europa, onde viviam espalhados geração após geração, os judeus do século XIX

continuavam perseguidos, vítimas do anti-semitismo, em ataques conhecidos por pogrom. Até

que decidiram não mais se submeter às perseguições que perduravam havia séculos. Sob a

liderança do austríaco Theodor Herzl, que, em 1895, escrevera o livro “O Estado judeu”, os

judeus estabeleceram objetivo claro e bem definido: precisavam fundar um lar dos judeus, fosse

onde fosse, um Estado que acolheria os descendentes de Abraão perseguidos mundo afora. No

final do século XIX, quando a Palestina estava sob o domínio do Império Otomano, fortemente

islamizado, essa busca pelo Estado judeu ficou conhecida pelo termo Sionismo.

O local escolhido para a fundação de um Estado para acolher o povo judeu foi

debatido durante o Congresso de Basiléia, de 1897, convocado por Herzl. Entre as opções

estavam a Argentina e o Quênia; no entanto, judeus ortodoxos exigiram que o local para a

fundação do lar judeu necessariamente fosse a Palestina – a Terra Prometida a Abraão em 1850

20
BOTELHO, 2006, p. 30.
43

a.C. Uma vez definido o território, já a partir daquele século, levas de judeus deixaram a Europa

rumo à Palestina – cuja população era basicamente composta por árabes muçulmanos.

Na versão oficial de Israel, é equivocada a idéia de que os judeus não tinham direito à

terra hoje chamada de Israel, por não mais habitarem a região desde a Diáspora, ocorrida no

início da Era cristã.

É um erro achar que todos os judeus foram forçados à Diáspora pelos romanos
após a destruição do segundo templo de Jerusalém, no ano 70 d.C e que só 1800
anos depois regressaram à Palestina exigindo seu país de volta21.

Seja como for, nas primeiras duas décadas do século XX, cerca de quarenta mil

judeus chegavam à Palestina, onde, à época, já habitavam cerca de meio milhão de árabes

palestinos. Lá, os judeus recém-chegados compravam terras vendidas pelos próprios árabes e se

organizavam em propriedades coletivas de produção – os kibutzes. A imigração de judeus na

Palestina recebeu apoio do governo britânico, materializado pela Declaração Balfour, em 1917.

Após a Primeira Grande Guerra, 1914-1918, o Império Otomano deixava de existir.

As vastas terras sob seu domínio foram divididas entre Inglaterra e França, que recebiam

mandatos da Liga das Nações. A Palestina, que possuía em seu território dois povos que não mais

suportariam a dominação estrangeira, ficou sob administração inglesa. Cada um queria, ao fim e

ao cabo, administrar a si próprio, e, assim, pôr um basta àquela eterna dominação sob a qual

viviam, mudando somente o ator dominador.

Inicialmente pressionada pela população árabe, que se incomodava cada vez mais

com a aquiescência dos ingleses em relação à entrada acelerada de judeus, a Inglaterra passou a

proibir as levas migratórias – que, mesmo assim, continuavam a entrar na Palestina. Militantes

21
BARD, 2004, p. 9.
44

sionistas lutavam tanto contra tropas britânicas quanto contra os próprios palestinos, e vice-versa.

Se, no início do século XX, a Palestina contava com menos de cem mil judeus, em 1947, eles

somavam mais de meio milhão, resultado das migrações descontroladas e em massa para a

chamada Terra Santa.

Diante da mistura potencial e real para conflito que se transformara aquela região, os

britânicos entregaram a administração do território à organização recém-criada: as Nações

Unidas. Era o ano de 1947 e os conflitos na Palestina eram já constantes. As Nações Unidas

decidiram resolver a questão, dividindo o território em dois: 55% ficariam para os judeus, e 45%,

para os árabes palestinos. A cidade de Jerusalém, sagrada para as três religões monoteístas,

permaneceria sob administração das Nações Unidas, para, assim, ser considerada solo

internacional. Era a Resolução 181, conhecida como Plano de Partilha da Palestina, que, naquele

mesmo ano de 1947, a Assembléia Geral, reunida sob a presidência do brasileiro Osvaldo

Aranha, votou e aprovou22.

Satisfeitos com a decisão das Nações Unidas, os judeus fundaram o tão-sonhado

Estado, dando-lhe o nome de Israel23, a 14 e maio de 1948. Data daí o início dos graves conflitos

que perduram até hoje na Palestina. Isso porque os árabes não aceitaram a Partilha, alegando

alguns fatores. Primeiramente, em sendo a esmagadora maioria populacional, não conceberam

22
Em 29 de novembro a Assembléia Geral das Nações Unidas decidiu por 33 votos contra 13, e 10 votos nulos, a
favor do Plano de Partilha. A divisão seria no mesmo dia em que a Inglaterra desocupasse a Palestina; os EUA e a
União Soviética também aprovaram o plano. Os 33 países que votaram a favor do Plano de Partilha da Palestina, na
AGNU, foram: África do Sul, Austrália, Bélgica, Bolívia, Brasil, Belárus, Canadá, Costa Rica, Dinamarca,
República Dominicana, Equador, Estados Unidos, Filipinas, França, Guatemala, Haiti, Holanda, Islândia, Libéria,
Luxemburgo, Nova Zelândia, Nicarágua, Noruega, Panamá, Paraguai, Peru, Polônia, Suécia, Tchecoslováquia,
Ucrânia, URSS, Uruguai e Venezuela. Os 13 países que votaram contra o plano foram: Afeganistão, Cuba, Egito,
Grécia, Iêmen, Índia, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Arábia Saudita, Síria e Turquia. Os 10 países que anularam seus
votos foram: Argentina, Chile, China, Colômbia, El Salvador, Etiópia, Honduras, México, Reino Unido e Iugoslávia.
Um estado não participou, a Tailândia. Os países árabes protestaram contra a decisão da ONU através da Corte de
Justiça Internacional, afirmando que não era correto dividir um país contra a vontade da maioria da população, mas o
apelo foi negado. Disponível na Internet: <www.midiaindependente.org/pt/blue/2006/06/356673.shtml>, Centro de
Mídia Independente). Acesso 20 nov 2008.
23
Eretz Israel, em hebraico.
45

receber menos da metade do território em questão. Ainda, não ficaram satisfeitos com a

descontinuidade de suas terras: Cisjordânia e Faixa de Gaza. Se, para os judeus, o 14 de Maio

representou a Independência do Estado de Israel, ou melhor, sua criação, para os palestinos, a

mesma efeméride representa a nakba, que, em árabe, significa “catástrofe”.

Alegando o dever de salvar os palestinos, os países árabes vizinhos resolveram

enfrentar os judeus, menos de 24 horas após declarado o estabelecimento do Estado de Israel.

Tinha início a primeira guerra entre judeus e árabes, a chamada Guerra de Independência de

Israel. No campo de batalha, Jordânia e Egito contra o recém-criado Israel.

Como resultado dos conflitos, todos os três envolvidos nas lutas – israelenses,

jordanianos e egípcios – saíram vitoriosos. Derrotados estavam os palestinos. Isso porque, após a

referida guerra, a divisão do território ficou da seguinte forma: Israel passava a contar com um

território de 80% da Palestina, portanto bem acima dos 55% definidos pela Partilha decidida

pelas Nações Unidas; a Faixa de Gaza ficou com o Egito; a Cisjordânia ficou com os jordanianos;

e, por fim, Jerusalém ficou dividida, com sua parte oriental sob domínio da Jordânia, e a parte

ocidental, de Israel. Para os palestinos, nada. Ao contrário, estatística oficial das Nações Unidas

mostra que o conflito gerou cerca de 750 mil refugiados palestinos que, sob fogo cruzado ou

aconselhados pelos árabes, tiveram de abandonar suas casas e se instalar em países vizinhos. Aí

está, portanto, a origem da saga dos refugiados palestino, tal como o termo é entendido hoje. A

título de exemplo, atualmente, mais da metade da população da Jordânia, para onde muitos

refugiados da guerra se dirigiram, é de origem palestina.

Em dezembro de 1949, a Resolução 302 (IV) da AGNU criou a Agência das Nações

Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA), para lidar

com a problemática que nascia naquele momento e que perdura até os dias de hoje. A agência

atua na Jordânia, no Líbano, na Síria e, ainda, dentro dos próprios Teritórios Palestinos Ocupados
46

(TPOs) – Cisjordânia e Faixa de Gaza, onde diversos pontos de controle israelenses não

permitem a livre circulação do cidadão palestino. Ressalva-se que o campo de Ruweished, objeto

de análise deste estudo, não estava sob a responsabilidade da UNRWA.

3.2 OS REFUGIADOS PALESTINOS E O DIREITO DE RETORNO

Oficialmente, o chamado direito de retorno está codificado. Trata-se do dispositivo

onze da Resolução 194 (III) da AGNU, de 11 de dezembro de 1948. A referida Resolução afirma

que a Assembléia Geral, considerando a situação na Palestina, resolve

que se deve permitir aos refugiados que desejam retornar a suas casas e viver em
paz com seus vizinhos, que o façam o quanto antes, e que indenização a título
compensatório deverá ser paga àqueles que decidirem por não retornar, bem
como a todos os bens perdidos ou danificados que, sob os princípios da lei
internacional ou por razões de igualdade, devem ser reparados pelo governo ou
autoridade responsável;
Instrui à Comissão de Conciliação a facilitar a reparação, o reassentamento e a
recuperação econômica e social dos refugiados e o pagamento de compensação,
e manter relação estreita com o Diretor da UNRWA e, por meio dele, com os
órgãos e as agências adequados das Nações Unidas.

A adesão de Israel à Organização, ocorrida em 11 de maio de 1949, portanto após a

adoção da Resolução 194, foi condicionada à aceitação de todas as resoluções já aprovadas pela

AGNU até então, bem como à concordância de Israel em não considerar a matéria dos refugiados

palestinos como assunto interno e de soberania israelense.


47

Pela definição da UNRWA, refugiado palestino é o indivíduo, incluindo seus

descendentes, cujo território de residência entre junho de 1946 e maio de 1948 era a Palestina, e

que, por conseqüência da guerra de 1948, perdeu sua casa e sua fonte de sobrevivência24.

Ao fugirem da Palestina durante o estabelecimento do Estado de Israel, muitos


árabes cristãos e muçulmanos esperavam voltar em breve para casa. Por isso
tiveram o cuidado de trancar as portas antes de partir. Foi em vão, já que
nenhum dos refugiados da primeira guerra entre árabes e judeus retornou. Suas
terras foram desapropriadas e muitas aldeias sumiram do mapa. Em 1950, o total
de refugiados registrados pela ONU passava de 900 mil. Dentro de Israel,
sobraram 150 mil árabes, dos quais 20% tiveram de deixar suas terras, tornando-
se refugiados internos25.

O Estado de Israel contesta os números apresentados para contabilização de

refugiados palestinos, alegando, também, que a guerra de 1948 produziu considerado contingente

de refugiados judeus.

Embora tenha se ouvido falar muita coisa sobre a situação dos refugiados
palestinos, pouco se diz sobre os judeus que fugiram dos países árabes. [...] O
número de judeus que fugiu dos países árabes nos anos que se seguiram à
independência de Israel foi quase o dobro do de árabes que deixaram a Palestina.
[...] Até novembro de 2003, 101 das 681 resoluções da ONU sobre o conflito do
Oriente Médio referiram-se diretamente aos refugiados palestinos. Nenhuma
mencionou os refugiados judeus dos países árabes26.

24
Disponível na Internet: <http://www.un.org/unrwa/refugees/whois.html>. Acesso em 18 nov 2008.
25
BOTELHO, 2006, p. 41.
26
BARD, 2004, p. 144.
48

Apesar disso, o problema dos refugiados judeus foi solucionado, sendo a maioria

absorvida por Israel, como afirma o próprio Bard, ao escrever que “dos 820 mil refugiados judeus

entre 1948 e 1972, 586 mil foram reassentados em Israel”27.

A cronologia dos conflitos árabo-israelenses é extensa. Sua abordagem não é objeto

deste estudo, porém é importante ter em mente que cada enfrentamento produziu número

substantivo de novos refugiados, para não contar as gerações seguintes de descendentes que

nascem já em país de refúgio. Dessa forma, a agência das Nações Unidas possui hoje (2008)

registrados cerca de cinco milhões de refugiados palestinos, contra menos de um milhão em

1950, início de suas operações. Somam-se aos registrados na UNRWA aqueles palestinos que se

encontram em campos ou países não administrados pela agência, como é o caso dos refugiados

que pereciam em Ruweished. Este contingente, somado, elevaria significativamente o número

total de refugiados palestinos mundo afora. Dados de final de 2006 do Escritório Central de

Estatística da Palestina28 revelam que mais de dez milhões de palestinos vivem espalhados pelo

mundo, na seguinte proporção estimada: cinco milhões dentro dos TPOs; 2,8 milhões na

Jordânia; 1,6 milhão em outros países árabes; e 600 mil fora do mundo árabe.

O direito de retorno é um dos pontos que norteiam as negociações de paz do lado

palestino, e se reforça em conseqüência das pífias condições de vida em grande parte dos campos

de refugiados. Em relação aos campos situados dentro dos TPOs, por exemplo, relatório de 2007

da UNRWA afirma que

Nos TPOs, o estado dos refugiados palestinos continua precário, com alta taxa
de desemprego, pobreza e deterioração econômica resultante de profunda

27
BARD, 2004, p. 144.
28
PALESTINIAN CENTRAL BUREAU OF STATISTICS, Statistical Abstract of Palestine, n. 8. Disponível na
Internet: <http://atlas.pcbs.gov.ps/atlas/Default.asp>. Acesso em 1 dez 2008.
49

violação dos direitos dos palestinos. Na Cisjordânia, pontos de barreira e o


regime de controle continuam a se expandir, em violação a leis internacionais,
estagnando a economia, atrofiando o modo de vida e destruindo a perspectiva da
volta a uma vida dita normal na Palestina. Ataques das Forças de Defesa de
Israel continuam na Cisjordânia, incluindo as áreas sob o comando das forças de
segurança palestinas29.

Parte dos palestinos vê no direito de retorno a condição da qual os negociadores

oficiais da paz não poderiam prescindir. Já para israelenses, a expressão representa a subjugação

do Estado de Israel. Isso porque, a população em Israel, em estatística divulgada pelo governo

israelense em maio de 2008, é de 7,2 milhões, sendo, desses, quase seis milhões de judeus. A

volta dos refugiados para a região representaria, em termos numéricos, uma desproporção entre

árabes e judeus israelenses – o que o governo de Israel não admite dentro de sua estratégia de

segurança, defendendo, em seu lugar, indenizações aos palestinos que desejariam retornar.

3.3 A ORIGEM DO CAMPO DE REFUGIADOS DE RUWEISHED

No Iraque, durante o regime baathista de Saddam Hussein, viviam cerca de 34 mil

árabes palestinos30. Esses refugiados não se inseriam na estrutura de acolhimento do UNRWA –

órgão que cuida especificamente dos refugiados palestinos. Essas pessoas dirigiram-se em fuga

para o Iraque em três principais momentos31: pós-1948 (Guerra de Independência de Israel),

quando cerca de cinco mil refugiados saíram de Haifa e Jaffa; pós-1967 (Guerra dos Seis Dias); e

1991, expulsos do Kuaite e de outros países vizinhos após a Primeira Guerra do Golfo.

29
Disponível na Internet: <http://www.un.org/unrwa/publications/pdf/ComGen-AR2007.pdf>, p. 7.
30
Esta estimativa é do Human Rights Watch. O ACNUR estima que apenas quinze mil palestinos viviam no Iraque
antes da invasão de 2003 (telegrama 939, de 26 de abril de 2007, de DELBRASGEN).
31
Telegrama 939, de 26 de abril de 2007, de DELBRASGEN.
50

O campo de refugiado de Ruweished situava-se em solo jordaniano, distante cerca de

sessenta quilômetros da fronteira com o Iraque. Deserto, com condições adversas para a

sobrevivência humana, o local foi criado em 2005 pelo ACNUR para receber os palestinos

perseguidos no Iraque após a derrubada de Saddam Hussein. Compreender a origem dos

palestinos de Ruweished passa pelo contexto iraquiano em que se inseriam antes da queda de

Saddam Hussein.

Vivendo em sua maioria em Bagdá, esses palestinos desfrutavam de direitos vários

no território iraquiano. Tanto assim que os iraquianos não ligados ao regime de Saddam – era a

maioria da população, e composta por xiitas – sentiam certa revolta em ter em seu país cidadãos

mais bem tratados pelo sistema do que eles próprios, iraquianos. Pelo tratamento que receberam

no Iraque, os palestinos lá refugiados não precisaram ser cadastrados como tal pela UNRWA,

mesmo porque o governo iraquiano assim exigia, preferindo acolhê-los por conta própria32.

Possuíam documento especial, bem como direitos de cidadão comum. Várias gerações nascidas

deste contingente vêem no Iraque seu país de origem, não fosse a história do drama vivido na

Palestina passada para eles pelos pais e avós.

Com o fim do acolhimento iraquiano por força da guerra, esse grupo de palestinos e

seus descendentes se viram sem pátria e sem documentação válida, pois nem como refugiados

eram classificados, tampouco eram iraquianos propriamente ditos.

Após a invasão em 2003, centenas de famílias palestinas no Iraque foram


despejadas de suas casas por proprietários que tinham sido forçados a conceder-
lhes moradia subsidiada. Eles então tiveram que se submeter a um humilhante
processo de renovação das permissões de residência. Esses refugiados nasceram
no Iraque e viveram toda a sua vida no país, porém tiveram que solicitar o
direito de residência regularmente sem garantia de recebê-lo. A falta de

32
Idem.
51

documentos de residência válidos no Iraque de hoje coloca o indivíduo sob o


risco de prisão em postos de controle.33

Com a queda de Saddam Hussein, teve início sangrenta violência sectária. Após a

invasão dos EUA, em 2003, os iraquianos xiitas, até então alijados do poder, vislumbraram a

possibilidade de exercer a liderança no país dilacerado. Dessa forma, milícias armadas atacaram

as estruturas e as instituições que tivessem qualquer ligação com o líder deposto. Além disso,

grupos armados da facção sunita, ligada ao baathismo de Saddam, também passaram a perpetrar

atos de terror contra a maioria xiita. Os palestinos não estariam, portanto, livres dos ataques

arbitrários levados a cabo por setores mais violentos dos dois lados.

Ressalva-se que a invasão estrangeira no Iraque produziu também contingente sem

precedentes de refugiados iraquianos, que, fugindo do campo de batalha, buscaram os países

vizinhos. Em outros termos, os palestinos que lá viviam eram apenas uma parte do problema.

Havia também os iraquianos que fugiam em desespero. Essa busca continuou mesmo após a

queda de Saddam, já que atos terroristas contra civis inocentes passaram a ser a ordem do dia. A

fuga em massa de cidadãos iraquianos foi inevitável e, com o tempo, esgotou a capacidade dos

países vizinhos em receber tamanho contingente em fuga.

Inicialmente, Síria e Jordânia aceitaram recebê-los34. Matérias de imprensa

relatam que os iraquianos em busca de sobrevivência ficavam no país vizinho sob a bandeira da

temporariedade, ou seja, não recebiam o status de refugiado. Mesmo porque, ressalva-se, nem a

Síria, nem a Jordânia ratificaram a Convenção de 1951, tampouco o Protocolo de 1967. Há

33
Rafeef Ziadah, “A Lenda”. In A Intifada Eletrônica, 11 de março de 2007. Disponível na Internet:
<http://rafaelfortes.wordpress.com/2007/04/07/refugiados-palestinos-do-iraque-artigo-traduzido/>. Acesso em 15
dez 2008.
34
Esses dois países referem-se aos refugiados pela palavra “hóspede” (Telegrama 283, de 29 de julho de 2007, da
Embaixada do Brasil em Amã – Núcleo Iraque).
52

relatos de ingresso das filhas de famílias iraquianas na prostituição35. Era época em que entravam

por dia cerca de dois mil iraquianos36 na Síria por dia – já com seus serviços públicos sem

condições de atender nem mesmo ao cidadão sírio.

A insatisfação dos países receptores não tardou. Não achavam justo terem de arcar

com o produto gerado por conflito ao qual se opuseram, sem qualquer ajuda financeira vinda de

fora, sobretudo daqueles responsáveis pela invasão. Em agosto de 2007, a previsão feita pela

burocracia síria era a de que, caso nada fosse feito, a quantidade de “hóspedes” iraquianos

atingiria a marca dos dois milhões – número que representaria 10,8% da população de 18,5

milhões de habitantes que a Síria possuía então37.

Do ponto de vista da economia, essa presença, como de esperar, trouxe pressão,


que se vê refletida em especial na elevação de preço da alimentação, habitação e
combustíveis. Alguns exemplos que retratam percentuais facilmente verificáveis
são: o pão, [...] teve consumo aumentado em 40% [...]; o consumo de água
potável subiu 24%; o uso do transporte público e de veículos privados aumentou
em 30%. Grave para os cofres públicos por serem altamente subsidiados, o
consumo de óleo diesel cresceu 21%, o de gás, 11%, e a eletricidade, 32% (este
não-subsidiado). O mercado imobiliário conheceu alta impensável para este país,
de 40% para a compra/venda e de 150% para aluguel, valores confirmados por
empresas de consultoria que prestam serviços a bancos estrangeiros aqui
instalados38.

A situação dos países lindeiros chegou ao limite. Mesmo querendo ajudar, não mais

o podiam fazer, vendo-se obrigados a fechar suas fronteiras. O ACNUR entendia o esgotamento.

35
Desperate Iraqi Refugees Turn to Sex Trade in Syria, The New York Time. Disponível na Internet:
<http://www.nytimes.com/2007/05/29/world/middleeast/29syria.html?_r=3&th=&oref=slogin&emc=th&pagewante
d=print&oref=slogin&oref=slogin>. Acesso em 29 mai 2007.
36
Telegrama 369, de 09 de agosto de 2007, da Embaixada do Brasil em Damasco.
37
Idem.
38
Idem.
53

Em 2007, o Alto Comissário mostrava reconhecimento à solidariedade da Síria e da Jordânia que,

segundo ele, acolhiam, respectivamente, um milhão e 750 mil iraquianos. Com pouco apoio

internacional, reconhecia, ainda, que os dois países vinham, sozinhos, sofrendo o impacto e

enfrentando dificuldades em atender às necessidades do influxo de levas sem precedentes de

indivíduos em seus territórios, para não mencionar a dificuldade de integração local de tamanho

contingente39.

A situação dos palestinos-iraquianos não era menos dramática. Talvez um pouco

mais agravada, porque, fora do Iraque, enquanto os iraquianos continuavam classificados como

iraquianos, com passaporte e documentação, os palestinos-iraquianos eram apátridas, sem

documentos, sem ao menos o status de refugiados.

Já em 2003, os ataques terroristas e as perseguições em solo iraquiano direcionaram

seu alvo para os palestinos. Inicialmente, os perseguidos e deslocados buscaram os países

vizinhos, que, como já mencionado, em seguida se fecharam. Com as fronteiras já quase todas

bloqueadas, restou o desespero. Pais de família palestina eram torturados e mortos diante de seus

familiares. Ameaças por escrito chegavam às casas de palestinos, determinando que deixassem o

Iraque ou morreriam.

O depoimento40 de uma família de refugiados, Walid Tamimi e sua esposa, Huda, que

vivia de forma tranqüila em Bagdá com os filhos, contando à época cinco anos, e outro, três

meses, em casa confortável, dá a idéia do clima de insegurança em que se transformou a capital

iraquiana. Huda afirmou que “as ameaças de milícias xiitas eram constantes”. Uma delas, por

escrito e até hoje guardada pelo casal, foi colocada na porta da casa da família, e lia: “Nós

sabemos que você é palestino. Para garantir a sua sobrevivência e a de seus filhos, você tem de

39
Telegrama 885, de 20 de abril de 2007, de DELBRASGEN.
40
TAMIMI, Walid e Huda. Rio de Janeiro, 24/07/2008. Entrevista a Luciana Marinho (CBN).
54

desaparecer de toda a região num prazo de 72 horas”. Tudo foi deixado para trás, a construção

de anos de trabalho, bem como as recordações da família, que se dirigiu para a fronteira.

É nesse contexto que o ACNUR criou campos de refugiados emergenciais em

desertos, com condições naturais as mais adversas, incluindo a presença de escorpiões e

tempestades de areia, em área fronteiriça entre o Iraque e a Jordânia, para os palestinos que

fugiam em desespero das perseguições no Iraque – seu primeiro país de refúgio – e que não mais

eram aceitos nos países vizinhos, esgotados que estavam. É o caso do campo de Ruweished, em

espaço considerado “terra de ninguém” na Jordânia, país que não tinha mais condições para

receber em seu sistema público novos refugiados, cedendo, apenas, o espaço fronteiriço para o

estabelecimento do campo em Ruweished. A condição imposta ao ACNUR era a de que os

refugiados não poderiam sair dali, nem receber visitas não autorizadas pelo governo jordaniano.

A guarda jordaniana fazia a vigilância da área 24 horas por dia.

Os palestinos de Ruweished optaram pela sobrevência naquele campo tão-somente

porque a alternativa seria a tortura e a morte perpetradas por milícias armadas no Iraque. No

refúgio, não havia escola, casas, lojas, universidades, hospitais. Eram as barracas fornecidas pelo

ACNUR, os escorpiões e a areia. O verão com temperaturas acima de quarenta graus e o inverno

com termômetros chegando a zero grau. Depoimentos de famílias palestinas de Ruweished

afirmam que crianças nascidas no campo, já contando quatro anos de idade, não conheciam nada

além do universo céu-areia e as dificuldades do local. Como afirma o comunicado conjunto do

ACNUR e do CONARE, datado de 29 de maio de 2007,

As condições do campo de Ruweished, que fica no deserto jordaniano, são


precárias. A região é infestada por escorpiões, as tempestades de areia são
constantes e as variações climáticas tornam a região inóspita durante o todo o
ano. Além disso, os refugiados não são reconhecidos pelas autoridades
55

jordanianas. O campo é fechado e tem sua entrada controlada pelo governo.


Saídas só são autorizadas em casos de emergência.

O ACNUR provia, na medida do possível, água e refeição, enquanto seus funcionários

percorriam o mundo tentando convencer governos a aceitar acolher aqueles palestinos.

Em abril de 2007, as Nações Unidas convocaram a Conferência Internacional sobre

as necessidades humanitárias dos deslocados internos e refugiados no Iraque e em países

vizinhos, ocorrida em Genebra. Após a reunião, o Alto Comissário para refugiados, António

Guterres, ficou otimista diante da conscientização que o evento foi capaz de transmitir aos

Estados participantes.

Com a participação de 86 delegações, o encontro permitiu que reflexões fossem feitas

acerca da situação pós-invasão iraquiana. O Alto Comissário para refugiados “qualifiou o

deslocamento maciço de iraquianos como o mais significativo do Oriente Médio, desde os

dramáticos eventos de 1948”41. Continuou Guterres: “A escala do problema fala por si: 1,9

milhão de deslocados internos e dois milhões de deslocados fora do Iraque, principalmente em

países vizinhos. De cada oito iraquianos, um é deslocado”42.

No encontro, o ACNUR divulgou dados que contribuíram para a conscientização de

muitos países até então sem contato mais direto com a problemática vivida pelo refugiados

produzidos pela invasão. Com o ano-base de 2007, divulgou-se que 43% dos iraquianos

permaneciam no Iraque, 44% na Síria e na Jordânia, 9% em outros países do Oriente Médio, 4%

na Europa e 0,5% espalhados no resto do mundo. Países que acolhiam os iraquianos eram Síria

(1,2 milhão), Jordânia (750 mil), Egito (cem mil), Irã (54 mil), Líbano (quarenta mil) e Turquia

41
Telegrama 926, de 24 de abril de 2007, de DELBRASGEN.
42
Idem.
56

(dez mil)43. As delegações participantes reconheceram a grave situação vivida pelos iraquianos, o

fardo gerado para os países vizinhos, a ineficácia da integração local como solução duradoura

para aquele tipo de refugiado e, sobretudo, a urgente necessidade de oferta de reassentamento em

terceiros países para grupos mais vulneráveis. Mesmo reconhecendo que a solução ideal para o

caso em tela seria o repatriamento voluntário, houve consenso no sentido de que o

reassentamento seria a única solução que se fazia urgente para muitos, afinal a situação no Iraque

ainda era de risco.

3.4 PROCESSO DECISÓRIO PARA O REASSENTAMENTO NO BRASIL DOS REFUGIADOS DE

RUWEISHED

Foi no âmbito Conferência Internacional sobre as necessidades humanitárias dos

deslocados internos e dos refugiados no Iraque e em países vizinhos, convocada pelas Nações

Unidas e realizada em Genebra, que o Brasil, em sua intervenção, mostrou que o país sabia da

problemática humanitária no Iraque e se preocupava com a situação emergencial daquela

população civil.

O Brasil participou da referida conferência e interveio, por meio de sua Delegação em

Genebra (DELBRASGEN). Na sua intervenção, o representante brasileiro reafirmou que o Brasil

tinha ciência da deterioração das condições humanitárias no Iraque e países lindeiros. Lamentou,

ainda, a escalada da violência sectária em território iraquiano. Reconheceu que aquela poderia ser

considerada uma das piores crises humanitárias dos últimos anos. Afirmou, em uníssono com o

Alto Comissário, que a solução ideal seria o retorno voluntário dos refugiados para suas cidades

de origem. Reafirmou, por fim, que o Governo brasileiro entendia que a crise iraquiana requereria

43
Idem.
57

uma solução conjunta da comunidade internacional e, sobretudo, maior flexibilização da política

migratória, em especial dos países capazes de receber esse contingente cuja vida estava

evidentemente ameaçada.

Neste mesmo encontro, o representante brasileiro mencionou, ainda durante sua

intervenção, o programa de Reassentamento Solidário44, que, até então, havia beneficiado

refugiados da África e das Américas. Reafirmou, neste sentido, que os critérios para a aceitação

brasileira de refugiados em risco em seu primeiro país de asilo seguiam tão-somente parâmetros

técnicos. Explicou que o CONARE seria o órgão do Governo brasileiro responsável pela decisão,

uma vez analisados os subsídios a ele entregues. Esclareceu, ainda, a composição do CONARE,

reiterando que o Brasil estaria atento para o desdobramento dos acontecimentos, a fim de oferecer

assistência no que couber.

Na mesma conferência, o Chile anunciou sua disposição em reassentar cem palestinos

em situação de risco no Iraque, na fronteira com a Síria, no âmbito de seu programa de

reassentamento. Antes da conferência, o então Diretor do Escritório do ACNUR para as

Américas, Phillippe Lavanchy, manteve encontros no Chile com autoridades nacionais, em busca

de aprovação do Governo chileno no acolhimento daquele contingente, haja vista a existência de

comunidade palestina no país. Documento do Itamaraty45 revela que, durante a visita à América

do Sul, Lavanchy também visitou Argentina e Uruguai – países que igualmente possuem

programas de reassentamento – mas esses dois países não haviam sinalizado, na ocasião,

disposição em acolher os palestinos46.

44
Ver capítulo I, item 1.5.
45
Telegrama 885, de 20 de abril de 2007, de DELBRASGEN.
46
Recorda-se que, desde 2006, Lavanchy já havia contactado o Governo brasileiro para verificar a possibilidade de
reassentar os palestinos de Ruweished (Telegrama 376, de 27 de fevereiro de 2007, de DELBRASGEN).
58

À margem do evento, DELBRASGEN recebeu em seu escritório o ativista de direitos

humanos e documentarista Adam Shapiro. Judeu de família estadunidense, nascido em Nova

York, Shapiro fundou o Movimento Internacional de Solidariedade (IMS), uma ONG pró-

Palestina que advoga, por meios não-violentos, o fim da ocupação de Israel em territórios

palestinos. Ficou conhecido quando, ao tentar evacuar palestinos feridos no ataque ao quartel-

general de Yasser Arafat, em 2001, ficou preso com o então líder palestino. Shapiro havia

visitado Ruweished, produzindo um CD com depoimentos das famílias palestinas que lá viviam.

O IMS, após ser alertado da situação dos palestinos nos acampamentos de

Ruweished, iniciou trabalho independente na busca de solução humanitária para aquelas famílias.

Por não serem afiliados a nenhuma ONG ou às Nações Unidas, o movimento estava em

condições para explorar várias frentes, concentradas nas seguintes categorias: (a) evacuar os

refugiados palestinos dos campos de fronteira, entre os quais Ruweished; (b) estabelecer um

centro de evacuação temporário dentro do Iraque para a comunidade palestina que permanecia

em Bagdá; (c) levantar fundos para manter o referido centro de evacuação temporário bem como

para ajudar os países na evacuação dos palestinos do Iraque. Todas essas iniciativas ganharam o

aval da Organização para Libertação da Palestina (OLP)47.

Adam Shapiro mantinha contato com o ACNUR e, à época, efetuava gestões pessoais

junto a governos capazes de acolher refugiados de Ruweished, em especial governos cujos

Estados tivessem política nacional em matéria de reassentamento pela América do Sul. Seu

interesse pela América do Sul residia no fato de essa região já possuir vastas comunidades de

palestinos e árabes, plenamente integradas à vida no país.

47
Fax oficial OF-016, da Embaixada do Brasil em Amã, Jordânia, para o Itamaraty, em 29 de maio de 2007.
59

Shapiro, durante seu encontro com a Missão do Brasil em Genebra à margem da

conferência, fez detalhado relato da situação de risco em que viviam os palestinos-iraquianos.

Durante sua conversa, afirmou que uma das fontes de ressentimentos entre o nacional iraquiano e

o palestino lá instalado por Saddam

teria sido a formação, em 2001, de uma força paramilitar nova, a Jaysh Al-Quds
(Exército de Jerusalém), com o objetivo de ‘libertar’ Jerusalém. Saddam Hussein
teria forçado homens iraquianos, na maior parte xiitas e curdos, a servir no
exército, quando os palestinos eram isentos do serviço militar48.

No mês seguinte, em maio de 2007, o ativista viajou para o Brasil, com o objetivo de

fazer gestões pessoais junto a membros do Congresso Nacional, CONARE, Cáritas e outros. No

Ministério das Relações Exteriores, encontrou-se com funcionários da Divisão das Nações

Unidas e da Divisão do Oriente Médio I. O objetivo seria o de sensibilizar pessoas com poder de

decisão para o sofrimento dos palestinos que pereciam em Ruweished.49

Por ocasião da chegada de Shapiro ao Brasil, a Delegação palestina em Brasília

mostrou insatisfação com a visita do ativista e a possível “interferência” do Estado brasileiro na

questão dos refugiados palestinos. A então chefe da Delegação da Palestina, Embaixadora

Mayada Bamie, em 8 de maio de 2007, fez chegar ao Itamaraty documento assinado por ela

acerca da questão dos refugiados, que, indiretamente, também mostrava sua refutação pela visita

de Shapiro. No documento, a diplomata afirmava que o presidente do ACNUR no Brasil, Luís

Varese, havia lhe comunicado que o Alto Comissariado em Brasília estava de posse de um

pedido para que o Governo brasileiro aceitasse “um grupo de palestinos advindos do campo de

48
Telegrama 939, de 26 de abril de 2007, de DELBRASGEN.
49
Telegrama 977, de 1 de maio de 2007, de DELBRASGEN.
60

refugiados de Ruweished no Iraque (sic)50”. Afirmava, ainda, que tanto a OLP quanto a

Autoridade Nacional Palestina (ANP) haviam decidido que o tema refugiados do Iraque só seria

resolvido no contexto árabe, não cabendo qualquer outra solução. Foi além, mencionando que a

questão dos refugiados palestinos deveria ser tratada à luz da Resolução 194 (III)51 da AGNU.

Disse ainda:

Atualmente, alguns ativistas de Direitos Humanos querem contatar o ACNUR e


o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) do Ministério da Justiça para
tratar desse tópico. Eles agem com boa intenção, com preocupações
humanitárias e com vistas a aliviar o sofrimento dos refugiados, mas não
possuem autorização da OLP.
A Delegação Especial da Palestina no Brasil é a única que representa o
Presidente da OLP e da ANP e o povo palestino neste país [Brasil] e só a
Delegação tem mandato para tratar desse assunto com autoridades brasileiras e
organismos internacionais aqui [Brasil] também representados.

Como se vê, a chefe da Delegação palestina em Brasília entendia o simples fato

(soberano, diga-se) de o Brasil receber o ativista, bem como a possibilidade da decisão brasileira

de acolher refugiados palestinos em seu território, intromissão brasileira em assunto interno da

OLP e da ANP.

Paralelamente a isso, a mídia nacional afirmava que o Brasil estava pressionado a

aceitar refugiados palestinos, sinalizando que, se concordasse, o Brasil o faria por força de tal

pressão. Em abril, por ocasião da Conferência Internacional sobre as necessidades humanitárias

dos deslocados internos e dos refugiados no Iraque e em países vizinhos, o jornal Estado de São

Paulo publicava a manchete “Brasil é pressionado a aceitar refugiados”. A matéria afirmava que

tanto as Nações Unidas quanto os EUA pressionavam o Brasil a dar refúgio a palestinos que
50
O campo de Ruweished ficava em solo jordaniano, na fronteira com o Iraque.
51
Ver item 3.2 deste estudo.
61

viviam no Iraque. Dizia, ainda, que a hesitação do Brasil se dava porque, ao aceitar o pedido, isso

seria uma forma de dar aval àquela guerra. Como se sabe, o Brasil oficialmente se opôs à decisão

estadunidense de invadir o Iraque. Arcar com parte do prejuízo não seria justo, pensava-se.

É importante ressalvar que um pedido de acolhimento de refugiado feito ao Governo

brasileiro é levado diretamente ao CONARE para, em reunião colegiada, deferir ou não o pedido,

com base tão-somente em critérios técnicos, definidos por parâmetros humanitários e apolíticos,

como já estudado no capítulo I. As motivações políticas que culminaram na produção de

indivíduos refugiados em cada caso não são variáveis consideradas. Não cabe aos membros do

CONARE julgar se o cidadão comum que sofre no asilo está vivendo indignamente por causa de

decisões equivocadas de seu Estado ou de seus representantes políticos, muito menos se tais

decisões foram contrárias à linha política que o Brasil apoiava.

Como qualquer pedido que lhes chega à mão, o CONARE, em 25 de maio de 2007,

realizou reunião plenária. Na reunião, o Comitê decidiu aprovar proposta formulada pelo

ACNUR para proceder com o reassentamento no Brasil de um grupo de 96 refugiados

provenientes do campo de Ruweished, com o financiamento do referido reassentamento feito

pelo ACNUR52. Lembramos que o ACNUR é parte do CONARE, porém sem poder de voto.

Caberia, ainda, ao ACNUR a missão de constituir equipe que iria pessoalmente àquele campo de

refugiados para dar-lhes informações a respeito das perspectivas de condições de vida no Brasil,

de modo a certificar-se de que o grupo realmente concordaria com a vinda ao país53.

No dia 10 de julho de 2007, teve início projeto conjunto do CONARE e do ACNUR

para orientação cultural ao grupo de refugiados palestinos de Ruweished. O projeto teve duração

de dois meses. Objetivou transmitir aos cidadãos palestinos a serem reassentados no Brasil

52
Ofício 321 do CONARE, Ministério da Justiça, endereçado à DNU, Itamaraty.
53
Despacho telegráfico 127, de 1 de junho de 2007, da SERE (Itamaraty).
62

noções de cultura, legislação e economia do País. Também cumpriu tutorias de ensino da língua

portuguesa. Os cursos foram ministrados por dois funcionários brasileiros do ACNUR sediados

em Amã, que falavam fluentemente o idioma árabe.

No dia 21 de setembro de 2007, o Itamaraty anunciou a chegada do primeiro grupo de

Ruweished ao Brasil, mediante nota à imprensa, número 455, em que se lia:

O Comitê Nacional para os Refugiados decidiu, em maio de 2007, reassentar no


Brasil grupo de refugiados palestinos oriundos do campo de refugiados de
Ruweished, na Jordânia, cerca de 70 km da fronteira com o Iraque, onde
estavam estabelecidos desde 2003.

O primeiro contingente de 35 refugiados palestinos chegou hoje, 21 de


setembro, ao Brasil, dando início à primeira etapa da operação de
reassentamento. No mês de outubro próximo, outros dois contingentes deverão
chegar ao País, totalizando aproximadamente 117 pessoas.

Signatário da Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados, o Brasil já


possui tradição consolidada na área, tendo atuação destacada na América Latina,
consubstanciada no Programa de Reassentamento Solidário.

Os refugiados palestinos serão reassentados nos Estados de São Paulo e Rio


Grande do Sul, onde o Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados (ACNUR), a cargo do financiamento da operação, trabalha em
parceria com as ONGs Cáritas Brasileira e a Associação António Vieira.

Trata-se de importante decisão do Governo brasileiro, fundamentada em razões


humanitárias, que reflete o comprometimento do Brasil com o Direito
Internacional dos Refugiados e traduz nesse gesto humanitário a solidariedade
do País com relação ao povo palestino54.

A Autoridade Nacional Palestina saudou a decisão brasileira. Aos doze de novembro

de 2007, em contradição com as gestões da Delegada Especial da Palestina em Brasília, Mayada

54
Itamaraty, nota à imprensa número nº 455, 21 de setembro de 2007.
63

Bamie, por ocasião da visita de Shapiro ao Brasil antes da decisão do CONARE em acolher os

refugiados, o Ministro de Estado das Relações Exteriores do Brasil, Embaixador Celso Amorim,

recebia carta do seu homólogo palestino, Riad Al-Maliki, de saudação ao Governo brasileiro e

agradecimento pelo acolhimento dos palestinos de Ruweished. Na carta, o Ministro Al-Maliki

afirmou ainda que

a decisão do Governo em receber os refugiados palestinos em seu País confirma


o sentimento nobre para com o sofrimento humano. Refugiados que passaram
por um longo período de sofrimento, devido à difícil situação no Iraque.
Estamos confiantes de que aqueles palestinos sentirão que se encontram entre
familiares nesse digno País55.

Todos os palestinos que ainda viviam em Ruweished foram reassentados no Brasil,

totalizando 108 indivíduos. Com a vinda deles para o País, o campo fechou. A transferência

ocorreu em três levas, entre setembro e dezembro de 2007. Um total de 56 palestinos foi para

Mogi das Cruzes, interior de São Paulo; outros 52 foram para o Rio Grande do Sul, mais

precisamente para as cidades de Santa Maria, Venâncio Ayres, Sapucaia do Sul e Pelotas.56

Segundo Hassan Zarifi, do movimento Palestino para Todos, a adaptação do grupo

mostra-se satisfatória para uns, mas problemática para outros. Uns reclamam de determinadas

condições, outros já estão plenamente adaptados e integrados à comunidade local. Os que

mostram certo grau de insatisfação ressalvam que não reclamam do Brasil ou da nova condição

de vida – afinal, afirmam, à exceção do risco que corriam no Iraque, nada poderia ser pior que o

campo no deserto57.

55
Carta recebida na Subsecretaria de Assuntos Políticos-II (SGAP-II) do Itamaraty, em 12 de novembro de 2007, sob
o protocolo 831.
56
MARINHO, Luciana. Reportagem da Rádio CBN, de 25 de julho de 2008.
57
HASSAN ZARIFI. São Paulo/SP, 22 de dezembro de 2008. Entrevista concedida à autora.
64

Rasim Zaidan, um dos reassentados, mostrou que o grupo vivia, por razões óbvias,

melhor do que no deserto de Ruweished, mas foi categórico em afirmar que alguns aspectos

deveriam ser revistos com urgência. Zaidan, palestino nascido em 1966, cresceu no Iraque e

viveu quatro anos e meio no Campo de Ruweished, até ser reassentado no Brasil. Disse estar feliz

com o acolhimento no País, onde reside, sozinho, em Mogi das Cruzes (SP). Destacou o fato de

não se sentir discriminado, admirando que no Brasil “todos são amigos de todos”. Apesar disso,

assinalou que sofria por não ter ninguém da família por perto. Seus parentes estariam mundo

afora, uns na Europa, outros na Síria. Tentava conseguir visto para ir visitá-los, mas alegou que o

“passaporte amarelo” que lhe fora concedido possuía a data de validade de apenas dois meses, o

que não era aceito em nenhum consulado. Também reclamou da falta de funcionários para dar-

lhe assistência. A maior problemática, no entanto, residia na dificuldade de integração por causa

da barreira lingüística. Alegou que os árabes presentes no Brasil não lhe ajudavam. Reclamava

que os palestinos reassentados não estavam recebendo aulas de português de forma intensiva,

como prometido, “apenas seis horas por semana”. Além disso, alegou que muitos não

encontravam os remédios de que precisavam na rede pública de saúde. Zaidan fez parte do grupo

que chegou a acampar em frente à sede do ACNUR, em Brasília, em julho de 2008. Só saiu

quando o ACNUR prometeu que a situação melhoraria. Decidiu retornar a Mogi das Cruzes. Na

viagem, relatou, um grupo armado entrou no ônibus em que viajava e roubou todos os

documentos que já lhe haviam sido concedidos, incluindo a carteira de trabalho. Até o momento

de seu depoimento ao telefone ainda não havia conseguido obter segunda via do que fora

roubado. Dizia não mais suportar a justificativa que costuma receber dos órgãos que o assiste,

qual seja, a de que estava em situação bem pior em Ruweished e, por isso, deveria parar de
65

reclamar. Por fim, insistiu no ponto em que desde que chegou pedia para se consultar com

psicólogo, mas nunca fora atendido58.

Já outros reassentados palestinos mostraram-se em processo de integração com a

comunidade local, segundo o movimento Palestina para Todos e a ONG do Rio Grande do Sul,

Associação Antônio Vieira. Alegaram estar satisfeitos, em especial, com a estabiidade, a

segurança e o futuro para os filhos. Alguns já desempenhavam atividades remuneradas e

desenvolviam seu potencial. É o caso de Ali Abu Taha, um reassentado que ingressou em time de

futebol em Brasília. Deixou Mogi das Cruzes e hoje, por causa do clube onde trabalha, o Brazsat,

reside na capital federal. Em entrevista durante a matéria da Rádio CBN, Taha manifestou

expectativa de progressos e melhorias em sua carreira desportiva59.

O casal Walid Tamimi e Huda, já citados, também demonstram satisfação com o

processo de reassentamento. Ele é xiita; ela, sunita. Além da linha religiosa, discordam

livremente também das preferências dos times brasileiros de futebol para os quais torcem. Os

filhos, agora com nove e cinco anos, já mostram desenvoltura com o português e formaram rede

de amizades60. Sabbah, reassentado em Sapucaia do Sul (RS), deu sinais de integração com a

comunidade local ao estabelecer negócio e formar família61.

58
RASIM ZAIDAN. Mogi das Cruzes/SP. 22 de dezembro de 2008. Entrevista concedida em árabe à autora.
59
ALI ABU TAHA. Brasília. 25 de julho de 2008. Entrevista concedia à jornalista Luciana Marinho (CBN).
60
WALID TAMIM e HUDA. Mogi das Cruzes/SP. 25 de julho de 2008. Entrevista concedia à jornalista Luciana
Marinho (CBN).
61
SABBAH. Sapucaia do Sul/RS. 25 de julho de 2008. Entrevista concedia à jornalista Luciana Marinho (CBN).
66

CAPÍTULO IV: PERSPECTIVAS PARA A DIPLOMACIA BRASILEIRA COM O ACOLHIMENTO DOS

PALESTINOS

A decisão do Estado brasileiro em acolher os palestinos do campo de Ruweished

gerou custos e benefícios para o País e, em especial, para a diplomacia brasileira. A ação foi

resultado do comprometimento do CONARE bem como gestões de diplomatas, instruídos pelo

Governo brasileiro, culminando na aprovação do acolhimento. Tal decisão ficou conhecida

internacionalmente, expondo o país aos “holofotes” da comunidade internacional, seja da

sociedade civil concernente, seja dos demais Estados envolvidos ou interessados na problemática

do refúgio.

A análise de tais custos e benefícios, objeto central deste estudo, será feita neste

capítulo. Antes, porém, deveremos abordar a perspectiva de sucesso da iniciativa brasileira em

acolher os palestinos de Ruweished. Como este estudo está sendo escrito um ano depois da

chegada dos reassentados, não se tem, portanto, tempo suficientemente significativo para

qualquer julgamento acerca do sucesso ou do insucesso do reassentamento em tela. Por isso, será

feito breve estudo comparado entre o acolhimento dos palestinos de Ruweished – que ainda se

adaptam ao Brasil – e outros dois acolhimentos cujos resultados já são conhecidos: dos afegãos e

dos colombianos, ambos já vistos no capítulo II. Com base na comparação de alguns aspectos que

podem ter influenciado no resultado final, ficará viável a avaliação que sinalize para o resultado

positivo ou negativo da experiência brasileira no acolhimento dos palestinos de Ruweished.

4.1 ESTUDO COMPARADO: AFEGÃOS X COLOMBIANOS X PALESTINOS DE RUWEISHED

O estudo comparado entre os três casos de reassentamento em tela tem por objetivo

verificar a possibilidade de sucesso da integração local dos palestinos de Ruweished acolhidos

pelo Brasil em final de 2007. Por ser um processo ainda em curso – faz um ano que eles
67

chegaram ao Brasil –, serão consideradas algumas variáveis independentes cujo comportamento

será analisado para, em seguida, contrastá-lo com o resultado, conhecido (afegãos e colombianos)

ou não (palestinos).

Para cada caso, serão consideradas quatro variáveis independentes: (a) cumprimento

das etapas necessárias para a decisão pelo acolhimento; (b) barreira lingüística; (c) posse de

ofício profissional anterior ao reassentamento; e (d) aproximação cultural.

Conhecemos o resultado das duas experiências de reassentamento citadas – afegãos e

colombianos: o reassentamento dos afegãos mostrou-se insatisfatório, ao passo que o

reasentamento colombiano permitiu a integração satisfatória à comunidade local em território

brasileiro.

(a) cumprimento das etapas necessárias para a decisão pelo acolhimento

No caso dos afegãos, não foi possível o envio de missão do CONARE para o Irã ou a

Índia. O objetivo da missão, como já mencionado, seria o de transmitir àquele contingente um

pouco da realidade brasileira, extrair as expectativas do grupo, desfazer mitos ou idéias

equivocadas que por ventura estivessem contidas no imaginário daqueles refugiados em busca de

um segundo país de refúgio. Por causa dos acontecimentos terroristas de 11 de setembro, que

prejudicaram o deslocamento internacional, não foi possível o envio de missão com técnicos

brasileiros para encontrar com os refugiados afegãos que diziam correr risco no Irã e na Índia.

Assim sendo, o processo de decisão pelo acolhimento dos afegãos – primeira

experiência brasileira – ocorreu por dossiê, com base em entrevistas levadas a cabo por

funcionários do ACNUR local, que pouco ou nada sabiam da realidade brasileira. Eram cinco

famílias, totalizando 23 indivíduos, reassentados em Porto Alegre em abril de 2001. Para se ter

idéia da discrepância entre expectativas dos solicitantes e realidade brasileira, existe depoimento
68

de afegãos que pensavam ser o salário mínimo, à época de R$ 261,00, pagamento diário, não

mensal, como de fato o era.

No caso colombiano, segunda experiência de reassentamento em território brasileiro,

foi constituída missão tripartite CONARE-ACNUR-ONG, todos sediados no Brasil, que viajaram

à Costa Rica e ao Equador para realizar entrevistas com os solicitantes colombianos. Durante o

processo, foram coletadas as expectativas individuais, bem como apresentada idéia das condições

que o aguardavam no Brasil.

No que se refere a esta variável, apesar da situação de emergência em que se

encontravam, os palestinos de Ruweished também receberam a visita de brasileiros do ACNUR

sediados em Amã, fluentes no idioma árabe, que expuseram a realidade brasileira e tomaram nota

das expectativas do grupo. Embora aquele fosse momento em que qualquer oferta soava

alentadora, dadas as condições de vida adversas a que estavam submetidos no deserto jordaniano,

os palestinos de Ruweished vieram ao Brasil já sabendo que deveriam passar por processo de

adaptação e que estariam sujeitos a todo tipo de inadaptação possível de ocorrer. Ainda no campo

de Ruweished, palestras foram proferidas, fotos foram mostradas, situação econômica foi

explicada às famílias palestinas. Estavam plenamente cientes de que a vinda para o Brasil não

representaria o fim dos seus problemas, mas a entendiam como início de uma fase de vida, a

despeito das adversidades a que estariam ainda expostos e que estariam dispostos a superar.

(b) barreira lingüística

Em relação aos afegãos, o idioma português mostrou-se o principal obstáculo à

adaptação em território brasileiro. Primeiramente, não foi organizado curso de língua portuguesa

nos primeiros meses da chegada – momento decisivo para o sucesso da adaptação.

Posteriormente, uns reclamavam da dificuldade que sentiam para aprender a língua. Soma-se a
69

isso a ausência de comunidade afegã previamente instalada no Brasil, o que poderia contribuir no

processo de aprendizagem do idioma. Como se sabe, o Afeganistão não se inclui nas tradicionais

levas migratórias que se dirigiram para o Brasil, em especial ao longo do século XX.

No caso colombiano, o idioma português não pode ser entendido como barreira à

adaptação. Ao contrário, aulas do idioma foram ministradas desde o momento da chegada ao

território brasileiro. Tais aulas eram oferecidas intensivamente nos três primeiros meses, sempre

com o apoio das entidades executoras. Soma-se a isso a estrutura gramatical e a proximidade

lingüística entre o português e o espanhol, sobretudo a variação do espanhol utilizada no

continente americano, o que facilitou a interação entre os colombianos e os brasileiros que com

eles conviviam.

Os palestinos, por sua vez, possuíam algumas desvantagens e vantagens. Como

desvantagens, se considerarmos a estrutura do árabe, língua de origem semita, de fato, a distância

lingüística é indiscutível, se comparada com a neo-latina portuguesa. A eles, entretanto, foram

ministradas aulas de português antes mesmo de sua chegada ao Brasil. Nas primeiras semanas, já

era possível perceber a desenvoltura, em especial das crianças palestinas, para com o idioma

português. Em menos de seis meses, já estavam matriculadas regularmente no ensino básico ou

fundamental do sistema público de educação.

Outra vantagem que muito contribuiu para a adaptação lingüística dos palestinos

refere-se à presença de substantivo contingente de origem árabe no Brasil, além de entidades não-

governamentais voltadas para a causa palestina que se mostraram dispostas a contribuir para a

adaptação de seus conterrâneos, como foi o caso da Fepal (Federação Árabe-Palestina do Brasil),

ou do movimento Palestina para Todos.

(c) posse de ofício profissional anterior ao reassentamento


70

No caso dos afegãos, a capacitação profissional que já possuíam foi subutilizada ou

não atendida. Havia profissionais técnicos empregados como porteiros de prédio. Outros,

igualmente capacitados, foram utilizados em atividades popularmente conhecidas por biscates,

sem perspectivas, apenas para a sobrevivência diária, ou atividades outras. Como não falavam o

português, não poderiam desempenhar ofício que necessitava de comunicação. Soma-se a esse

cenário os baixos salários. Como conseqüência, a insatisfação do grupo era profunda.

No caso dos colombianos, o grupo foi dividido entre os que tinham perfil rural e

urbano. Aqueles com perfil rural desenvolveram atividades com que tinham mais familiaridade,

como pesca e plantio. Aqueles com perfil urbano foram reassentados nas cidades.

Os palestinos buscaram os mais variados campos de trabalho. Experientes no

comércio, alguns vêm abrindo seu próprio negócio com micro-crédito facilitado. Como ainda

estão na fase de adaptação e recebendo recursos do ACNUR até completar 24 meses, a maioria

dos palestinos ainda não definiu como será a vida profissional. Há, ainda, o caso dos jovens que

se interessam por esportes e já ingressaram em clubes desportivos.

(d) aproximação cultural

Depoimentos de afegãos reassentados no Brasil e informações recebidas de entidades

executoras diretamente envolvidas com o reassentamento afegão revelam que a inadaptação aos

costumes e à rotina de vida brasileira se mostrou como fator relevante pela decisão de deixar o

Brasil. A inabilidade com o idioma português e a insatisfação em termos econômicos alinharam-

se com o abismo cultural que separava a cultura afegã da brasileira. Os afegãos, advindos das

regiões de montanha e com costumes característicos daquela região, viam-se oprimidos diante do

modo de vida singular que encontraram em território brasileiro, sem nada que lhes fosse familiar.

Não faziam idéia da realidade que os esperava.


71

No caso colombiano, a aproximação cultural mostrou-se um fator que colaborou com

a adaptação do grupo. Além da aproximação lingüística, a divisão dos colombianos pela área de

origem em termos de campo-cidade contribuiu no aspecto cultural, pela semelhança na rotina de

vida. Dessa forma, as atividades desempenhadas não alterou muito o modo de fazer e de viver

colombiano. Soma-se a isso a proximidade geográfica, que acabou por gerar no imaginário do

grupo a sensação, ainda que possivelmente infundada, de proximidade com a terra natal.

Um aspecto marcante da identidade cultural colombiana e que muito dialoga com a

brasileira é a religiosidade. Quase a totalidade da população colombiana é católica praticante. Ao

se estabelecer em um país como o Brasil, onde igrejas estão por toda parte, encontram o conforto

que os ajuda a seguir a vida, na fé que possuem.

Outro aspecto de destaque de aproximação cultural poderia ser atribuído à adoração

pelo futebol. Embora não haja relações diretas entre os reassentados e a atuação nessa

modalidade esportiva, o fato de estarem inseridos em comunidade que tradicionalmente

supervaloriza o esporte também adorado em seu país de origem permite a sensação de “estar em

casa”, emprestando à adaptação, ainda que em seu nível inconsciente, um tom mais familiar.

Não menos importante está a gastronomia. O café, também parte essencial da dieta

colombiana, pode ser entendido como um fator capaz de facilitar a integração entre os que vieram

e a comunidade local.

Por fim, na literatura, o consagrado escritor colombiano Gabriel García Marques, lido

por substantivo número de brasileiros, revela algumas semelhanças na construção da identidade

de ambos os povos, além do fato por si só – a consagração de escritor colombiano no Brasil – ser

um elemento de aproximação.

No caso palestino, tem-se uma situação singular, já que as diferenças não causam

estranheza, como de se esperar. Apesar das drásticas diferenças culturais entre palestinos e
72

brasileiros, devemos ter em mente a influência árabe na construção da identidade brasileira, a

começar pela transferência da Corte portuguesa ao Brasil, em 1808. “A família real veio

acompanhada de frei Antônio Abrantes (1737-1813), profundo arabista português que dava aulas

de árabe na Ordem Terceira da Penitência”62.

O interesse de D. Pedro II pela tradição de origem árabe também era marcante. Ele

tornou-se profundo conhecedor da história egípcia e apaixonado pela cultura árabe, chegando a

dominar fluentemente o idioma árabe. Seus professores de árabe o acompanhavam em viagens

que fazia ao Oriente Médio63.

A imigração árabe em diferentes fases, desde final do século XIX até o final do século

XX, influenciou a tradição e os costume brasileiros. Na gastronomia, são comuns os pratos de

origem árabe. Na literatura, escritores daquela origem também são lidos no Brasil, como Mansur

Chalita, Milton Hatoum, Raduan Nasser, entre outros consagrados. Como bem resume o escritor

naturalizado brasileiro, Assad Zaidan:

Os imigrantes árabes e seus descendentes trouxeram para as Américas,


sobretudo para o Brasil, ricas fontes literárias. Escreveram valiosas obras em
língua portuguesa e marcaram presença em romances dos maiores escritores
brasileiros, como ‘Gabriela cravo e canela’, de Jorge Amado; na poesia ‘Os
Fenícios’, de Olavo Bilac. O jornalista Mussa Kuraim e o poeta Chafic Maluf
eram amigos do escritor e professor de matemática João Batista de Melo e Souza
(Malba Tahan) e o orientaram bastante na elaboração de seus contos sobre
cultura árabe64.

No comércio, por vários mercados Brasil afora, é possível observar a presença das

ruas com lojas no estilo dos “suqs” árabes. No idioma, cerca de mil palavras do português vieram
62
ZAIDAN, 2005, p. 95.
63
ZAIDAN, 2005, p. 95.
64
ZAIDAN, 2005, p. 96-97.
73

do árabe, sobretudo a maioria daquelas que se iniciam por “al” ou “a”, como alface, azeite e

açúcar, entre centenas de outras.

Como se vê, tendo por base os quatro aspectos abordados – (a) etapas cumpridas para

aceitação do acolhimento, (b) barreira lingüística, (c) posse de ofício anterior, e (d) aproximação

cultural –, pode-se resumir cada caso da forma que segue.

No caso dos afegãos, não se cumpriu as etapas do processo decisório para o

acolhimento, a língua mostrou-se na prática um empecilho à adaptação; o ofício possuído por

parte do grupo não foi considerado; e não se percebeu traços culturais que dialogassem. Sabemos,

ainda, que a experiência afegã de reassentamento no Brasil mostrou-se insatisfatória.

No caso dos colombianos, houve o cumprimento das fases recomendadas para a

deliberação do CONARE em aceitar ou rejeitar aquele pedido de reassentamento. O idioma

português foi ensinado de modo intensivo logo da chegada do grupo acolhido, para não

mencionar a similaridade das estruturas lingüísticas entre espanhol e português, sendo ambas

neo-latinas. Respeitou-se, ainda, a experiência laboral do grupo, alocando-os em área rural ou

urbana, dependendo do caso. Culturalmente, alguns aspectos das tradições colombiana e

brasileira não causavam profundas estranhezas. Sabe-se que a experiência brasileira do

reassentamento colombiando mostrou-se satisfatória e levas crescentes de reassentados de origem

colombiana continuaram a entrar no Brasil.

No caso dos palestinos de Ruweished, o processo decisório englobou as etapas

iniciais necessárias para a deliberação do CONARE, com visitas in loco e comunicação clara

sobre a realidade brasileira, contrastando-as com as expectativas. No que tange à barreira

lingüística, aulas do idioma português foram ministradas ao grupo, com as crianças já integradas

nas escolas públicas logo nos primeiros meses da chegada ao Brasil. Isso para não mencionar a

influência de palavras de origem árabe na língua portuguesa. Quanto ao ofício prévio,


74

tradicionalmente o imigrante árabe cresceu economicamente no Brasil em especial no setor de

serviços, abrindo o próprio comércio. Não está sendo diferente com o grupo de palestino recém-

chegado de Ruweished, que já auferem renda resultante do pequeno negócio que abrem.

Culturalmente, apesar de à primeira vista parecer cultura diametralmente distinta da brasileira,

fortes traços culturais em diferentes campos unem os dois povos, como já citado.

Comparando-se as quatro variáveis estudadas – e considerando a possibilidade de elas

terem influenciado em certo nível o resultado da experiência brasileira em matéria de

reassentamento em cada caso –, pode-se inferir que a integração local dos palestinos de Ruweishd

acolhidos pelo Brasil em final de 2007 será satisfatória, haja vista a semelhança entre palestinos e

colombianos no que diz respeito ao comportamento das variáveis estudadas.

Em particular, no que tange à primeira variável – etapas cumpridas para aceitação do

acolhimento –, conclui Rosita Milesi que alguns ensinamentos puderam ser extraídos da primeira

experiência de reassentamento (afegãos), como

a necessidade de preparar as vindas de futuros grupos com entrevistas in


loco, no país de primeiro asilo, de modo que tanto o refugiado como os
próprios brasileiros que o receberão tenham uma perspectiva mais
próxima da realidade conjunta a ser enfrentada65.

Quanto às condições para uma eventual repatriação voluntária – uma das soluções

consideradas duradouras pelas Nações Unidas – ressalva-se que a volta dos refugiados afegãos

espalhados pela Ásia para seu país de origem vinha se intensificando já em 200266, daí a

tendência dos reassentados afegãos no Brasil optarem pela volta, motivados ainda mais pela

65
MILESI, 2003, p. 170.
66
BBC. “Crise levou Brasil a receber refugiados afegãos”. Disponível na Internet: <http://www.bbc.co.uk/
portuguese/noticias/2002/020827_refugiadosg.shtml>. Acesso em 2 dez 2008.
75

inadaptação ao Brasil. Não é o caso dos colombianos, tampouco dos palestinos, ambos ainda sob

risco nos respectivos territórios de origem.

4.2 CUSTOS E BENEFÍCIOS DO REASSENTAMENTO DOS PALESTINOS DE RUWEISHED PARA A

DIPLOMACIA BRASILEIRA

Como qualquer decisão de política pública, o acolhimento dos palestinos de

Ruweished implicou custos e benefícios para o Estado brasileiro. Esta parte do estudo pretende

expor alguns custos gerados para o Brasil e benefícios que a ação poderá trazer para a diplomacia

do País.

O primeiro custo a ser pensado é político. O Governo, via CONARE, precisaria

justificar para a sociedade brasileira a decisão em acolher refugiados palestinos deslocados após a

invasão do Iraque por tropas estadunidenses – episódio em que a posição do Brasil foi claramente

contrária. Não seria, portanto, aceitável que o Brasil arcasse com custos dos subprodutos desse

conflito. Esse custo fica diluído no momento em que o CONARE deixa claros seus critérios no

processo decisório, pautando-se pelo humanitarismo da questão, não importando, como já visto,

as causas que levaram ao sofrimento de determinado grupo de indivíduos. Nesse aspecto, importa

menos – ou nada – o mérito da questão do que o grau de sofrimento dos seres humanos

envolvidos e os riscos a que estão expostos.

Há mais um aspecto que se refere ao custo político da decisão em relação à sociedade

brasileira. Em entrevistas aleatórias realizadas em Brasília durante a pesquisa deste estudo, ao

serem questionados se o Brasil estava agindo bem ao acolher refugiados palestinos, alguns

cidadãos brasileiros responderam que não, alegando a incapacidade do País em cuidar de suas

próprias mazelas internas. Não poderia, portanto, absorver outros necessitados. A este argumento,

podemos dizer que não procede. Primeiramente, os custos envolvidos para a vinda do reassentado
76

e para a sua manutenção nos primeiros 24 meses da chegada correm pelo ACNUR, em parceria

com as entidades executoras. O custo para o Estado brasileiro estaria no ingresso de mais pessoas

no sistema público de saúde e educação; entretanto, um grupo de pouco mais de cem palestinos

não será a causa dos problemas que ainda vigoram nesses sistemas, há décadas sem solução e

cuja melhora dependeria de transformações estruturais, ainda que poucos precisassem fazer uso

deles. Na mesma linha, ensina Rosita Milesi que

Muitas pessoas, no entanto, olham com desconfiança esta posição do Brasil [a de


oferecer o território para reassentamentos], principalmente dado o caráter
voluntário do reassentamento. Argumentam que já temos problemas internos
suficientes para buscarmos resolver os de outros povos. Há ainda os que
desconfiam do abrigo conferido a estrangeiros, porque não acreditam na
contribuição eficaz que os refugiados, sobretudo de países do Terceiro Mundo
(sic), possam trazer para a sociedade brasileira. Puro preconceito. Signatário da
Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, o Brasil tem atualmente cerca de
quatro mil refugiados de mais de quarenta nacionalidades. Entre eles, contam
médicos, músicos, artistas plásticos, professores, agricultores. Recentemente, a
televisão mostrou jovens angolanos cegos que vêm descobrindo no aprendizado
do futebol uma nova razão de viver. Não servirão eles de modelo e ensinamento
para muitos de nossos joivens, moralmente mutilados e que poderão também
encontrar nas artes e no esporte um caminho de recuperação?67.

Outro custo a ser considerado é o diplomático, com a possibilidade tangível que

surgiu de prejudicar as relações bilaterais Brasil-OLP ou Brasil-ANP, haja vista a oposição inicial

feita pela Delegação palestina em Basília. A Delegação mostrou-se refratária à vinda desses

palestinos a país tão distante dos territórios palestinos. Ainda, interferiu em assuntos internos, ao

mostrar seu descontentamento com o recebimento do ativista Adam Shapiro por autoridades

brasileiras, como já relatado no capítulo III, item 3.4. Em nota enviada ao Itamaraty, já estudada,

67
MILESI, 2003, p. 168.
77

alegou a Delegada especial da Palestina no Brasil em 2007 que o tema “refugiados palestinos”

era de exclusividade da Palestina, transmitindo, subliminarmente, que a dispersão do povo

palestino para longe da região enfraqueceria a causa palestina. Este possível custo diplomático,

sobretudo em momento em que o Brasil pretende exercer papel mais atuante na mediação do

conflito israelo-palestino, também diluiu-se, uma vez que os dirigentes palestinos louvaram a

decisão brasileira pelo acolhimento e as relações bilaterais se fortaleceram ainda mais, com

visitas recíprocas de altas autoridades.

A decisão pelo reassentamento dos palestinos de Ruweished pelo Brasil também

implicou benefícios para o País. Não se pode deixar de considerar como benefício a elevação do

perfil do Brasil, no âmbito internacional, como país que se preocupa com questões humanitárias,

em especial com a causa palestina. Em momento em que as políticas imigratórias dos países

desenvolvidos se tornam cada vez mais restritivas, o Brasil dá exemplo de espírito humanitário,

além de mostrar que sua política, tão elogiada em matéria de refúgio e reassentamento, não é letra

morta. Ao contrário, é flexível e se adapta às necessidades contemporâneas, sobretudo após a

abrangência da sua classificação de refugiados, que inclui também aqueles que fogem devido a

grave e generalizada violação dos direitos humanos.

Em conseqüência, a decisão do CONARE traz a possibilidade de se reforçar a

percepção internacional do Brasil como país protetor de políticas para refugiados. Em se

consolidando como experiência de sucesso, tal percepção ganhará chances de consolidar-se.

Como visto no estudo comparado, as características do reassentamento dos palestinos de

Ruweished no Brasil sinalizam para a integração harmônica deles com a comunidade local.

A decisão pelo reassentamento dos refugiados palestinos também poderá gerar

ganhos para a política externa brasileira. Aceitar voluntariamente contingente palestino que

perecia em um deserto certamente beneficiará o papel mais substantivo que o Brasil busca na sua
78

política externa para temas médio-orientais como um todo, nomeadamente no conflito israelo-

palestino. A constituição do Escritório de Representação em Ramallah, a designação de um

Embaixador Extraordinário para assuntos de Oriente Médio e a liderança brasileira na

organização da Cúpula América do Sul-Países Árabes, já caminhando para sua segunda edição,

em 2009, são alguns elementos decisivos que mostram o interesse nacional estratégico em temas

políticos referentes aos árabes. O acolhimento de refugiados produzidos por conflitos na região

credencia e subsidia os diplomatas brasileiros em suas gestões pelo papel mais atuante brasileiro

na referida mediação.

Além disso, a ação voluntária brasileira reforça o compromisso que o País demonstra

ter perante a comunidade internacional com os instrumentos jurídicos dos quais é parte,

nomeadamente a Convenção de 1951, o Protocolo de 1967, as Declarações no âmbito inter-

americano e sua legislação interna para o tema. Há um abismo entre ser tão-somente parte e ser

ator atuante, ainda que em escala relativamente baixa. Nesse caso, a intenção e os esforços

envidados pelos formuladores de política externa do Governo brasileiro, independentemente de

possíveis resultados negativos, certamente não passam despercebidos. Isso demonstra vontade

política e, em especial, solidariedade internacional para com o outro que sofre, não importando

sua nacionalidade, religião, cor, origem ou qualquer outro fator ainda capaz de se constituir

critério de negação de entrada em país estrangeiro, principalmente em época de difusão de

políticas imigratórias restritivas.

Tal demonstração tem potencial em contribuir para a consolidação do perfil brasileiro

em matéria de solidariedade internacional. Entendemos que o espírito solidário basta por si, e o

embasamento da decisão brasileira tão-somente aí se esgotaria. Entretanto, para atender àqueles

que só aceitam ações que contribuam para a realização concreta do interesse nacional, a eles

podemos dizer que a solidariedade brasileira está registrada e é de conhecimento da comunidade


79

internacional, o que certamente ajudará o Brasil em vários outros pleitos, seja em pedidos de

voto, seja em outros temas de interesse nacional.

Como se vê, observa-se que a decisão do Governo brasileiro em reassentar pouco

mais de cem palestinos que tentavam sobreviver no campo de Ruweished implicou custos e

benefícios, como qualquer política pública de tamanha magnitude que envolve a dignidade de

seres humanos. A ponderação entre esses custos e benefícios será feita nas considerações finais, a

seguir neste estudo.


80

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Humanismo: esse é o termo que concentra em si a motivação para um Estado optar

pelo ingresso do reassentamento em seu ordenamento jurídico interno – ato voluntário, de

soberania e de personalidade, sobretudo hoje. O mundo passa por momento em que as sociedades

nacionais, ao mesmo tempo que se globalizam, se fecham para o outro que sofre, estrangeiro em

necessidade, de forma crescente. Vivemos período histórico em que políticas imigratórias se

restringem, discriminações se acirram, decisões políticas inconseqüentes são tomadas diariamente

e grupos humanos inocentes perecem aos milhões. É nesse exato contexto que o Brasil, assim

como outros poucos, assumem o compromisso de trazer, de forma responsável, para dentro de

seu território nacional, indivíduos entregues às adversidades da natureza e da política imprudente

de mandatários, porque não mais seriam aceitos em nenhum outro local do planeta. O humanismo

que embasa a decisão soberana do Estado brasileiro, ainda que criticada, está inserida tão-

somente nos princípios da solidariedade internacional para com o outro Estado, e que, na prática,

recai na solidariedade para com o indivíduo.

Ao confrontar os custos com os possíveis benefícios para o Brasil ao aceitar acolher

os refugiados palestinos de Ruweished, concluímos por classificar como acertada a decisão.

Primeiramente, o custo político em relação ao Brasil arcar com subproduto de uma situação à

qual se opôs não pode ser aceito como válido, uma vez que os parâmetros de decisão do

CONARE não levam em conta a causa do sofrimento humano, e, sim, o sofrimento em si.

Ademais, não haveria motivo para se preocupar com drenagem de recursos destinados ao cidadão

brasileiro para acolher o refugiado reassentado, na medida em que o tesouro nacional não

participa dos gastos envolvidos.

O custo diplomático também não chegou a ameaçar as relações bilaterais. O possível

desgaste nas relações bilaterais Brasil-ANP ou OLP, como já visto, não se materializou, apesar da
81

demonstração de descontentamento da Delegação Especial da Palestina em Brasília por ocasião

da visita do ativista Adam Shapiro ao Brasil.

Os benefícios, por sua vez, justificariam por si a ação soberana brasileira pelo

acolhimento dos palestinos de Ruweished. Não só trazem o potencial em consolidar o perfil do

Brasil como Estado que se preocupa com refugiados, mas também expõem de forma inequívoca a

prontidão brasileira pelas mazelas resultantes do conflito israelo-palestinos, em momento que

busca papel de maior peso no processo de paz naquela região. Ademais, as repercussões para a

diplomacia brasileira do acolhimento de refugiados gerados por conflito que ocupa posição

destacada na pauta internacional de hoje, por si só, justificam o interesse que o referido

acolhimento gera para os profissionais atuantes na arena internacional, como é o caso dos

diplomatas.

Podemos listar, ainda, o benefício da difusão do tema refugiados no meio

diplomático. Vivemos um momento em que conflitos estouram por diversos pontos do mundo,

gerando contingentes perseguidos em sua terra natal cada vez maiores. A aceitação de refugiados

vindos de tão longe contribui para a conscientização e a humanização daqueles que estão na linha

de frente da negociação, entre eles o corpo diplomático dos Estados, ainda que sejamos um país,

em geral, distante da área de conflito (à exceção, entretanto, do flagelo guerrilheiro na

Colômbia). São os profissionais da linha de frente que, por sua vez, poderão trabalhar

genuinamente engajados na busca das soluções e na tentativa de minimizar o sofrimento daquele

que vê na fuga de sua própria terra natal, onde está a fonte de sua identidade cultural, a única

saída para sobreviver.

Como se vê, entendemos que o reassentamento dos palestinos no Brasil em final de

2007 será bem-sucedido. O estudo comparado mostrou a tendência para uma adaptação

satisfatória das famílias palestinas acolhidas, harmonizadas e integradas com a comunidade local
82

e brasileira como um todo. Com base no exposto no capítulo anterior, os benefícios pela decisão

em reassentar os refugiados de Ruweished compensam os custos. Mesmo porque, os custos

mencionados ou não se justificaram ou se diluíram com o passar do tempo. Assim sendo, o fato

em si poderá motivar o País, via CONARE, a dar continuidade a sua política de reassentamento

solidário, sempre aprimorando o processo com base no aprendizado trazido por cada experiência.

Juridicamente, o trabalho pretendeu contribuir para a difusão da legislação brasileira

acerca dos direitos dos refugiados e dos reassentados. Como mencionado na introdução do

estudo, trata-se de legislação de vanguarda, que poderá definir padrões ou modelo para possíveis

seguidores. Este estudo pretendeu, ainda, mostrar as fases envolvidas no desenvolvimento de

política pública nos moldes do reassentamento aqui estudado e que culminou na chegada

propriamente dita dos refugiados acolhidos. Trata-se de processo longo, complexo, que envolveu

vontade política dos mais diferentes órgãos da Administração Pública, além de gestões

diplomáticas nas mais variadas instâncias, que, juntos, trabalharam em sintonia para a

concretização do projeto.

A reflexão final do estudo caminha necessariamente para caráter humano da ação do

Estado brasileiro no acolhimento dos refugiados de Ruweished. Primeiramente, acolher o referido

grupo palestino sob o programa de reassentamento solidário mostrou, em tese, a flexibilidade da

política brasileira em matéria de refúgio e de reassentamento. Destacou, o caráter humanitário

que embasa tal política. Mostrou ainda a força de sua legislação interna, que funciona, não

decora. Não fosse assim, o País buscaria esquivar-se de qualquer subproduto de um conflito a que

se opôs – qual seja, a invasão do Iraque em 2003.

Sabemos que o Brasil é ator comprometido em temas de Direitos Humanos, a

despeito da realidade interna que muitas vezes poderia passar a idéia oposta. Ao perceber o

caráter humanitário do Brasil em temas de refúgio, a comunidade internacional credencia o País


83

em seus pleitos pela participação ativa em foros dedicados a matérias de Direitos Humanos, entre

eles o disputado Conselho de Diretos Humanos, recente e importante instância onusiana. Como já

explicado neste estudo, temas de refúgio – desenvolvidos no campo específico de Direito

Internacional dos Refugiados – inserem-se no campo do Direito Internacional de Direitos

Humanos lato sensu.

A associação imediata do Brasil à proteção dos Direitos Humanos tende a se reforçar,

caso continuadas ações como a do reassentamento dos palestinos de Ruweished continuem a

guiar as decisões soberanas do País. Temos que, por ocasião do acolhimento do pequeno grupo

afegão – primeira experiência brasileira no seu programa de reassentamento –, depoimentos na

grande imprensa a favor do Brasil foram amplamente divulgados, como o de Hope Hanlan, então

Diretora do Departamento do ACNUR para as Américas, em dezembro de 2001, quando afirmou

que “vários países nos dão dinheiro, mas não querem receber os refugiados. Nós apreciamos

muitíssimo a atitude genuína do governo brasileiro”. Hoje, comentários desta natureza

multiplicam-se e se fazem presentes não só na grande mídia, mas também no meio diplomático.

Por fim, não é demais afirmar que a grandeza da decisão do Brasil em receber os

refugiados palestinos que fugiam do Iraque talvez só seja percebida, na sua essência e totalidade,

por aqueles que pereciam pouco a pouco no campo insólito de Ruweished, ou seja, pelos próprios

refugiados. Este estudo pretendeu contribuir para que tal decisão fosse igualmente percebida por

demais atores, sejam nacionais, sejam estrangeiros, com o objetivo maior de motivar o espírito

solidário entre as diversas nacionalidades. No momento em que vivemos, histórico, em que

muitos defendem a falácia chamada choque de civilizações como a causa de todos os conflitos e,

por isso mesmo, restringem ainda mais suas políticas imigratórias, o ato voluntário e soberano do

Brasil em receber o pequeno grupo de refugiados traz, acima de tudo, a renovação de esperança

para a vida daqueles seres humanos envolvidos. Essa constatação, isolada, por si só, já
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recompensaria o Brasil pela decisão tomada. Nesse sentido, nada mais oportuno do que

remetermos o leitor, no derrardeiro parágrafo, ao texto da epígrafe deste estudo. São as palavras

escritas por respeitado jurista brasileiro e que materializam o humanismo basilar da decisão pelo

reassentamento do grupo de Ruweished. Sintetizam a essência que – de fato – guia as políticas

públicas do Estado brasileiro em matéria de refúgio e de reassentamento.


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Fontes primárias

Série telegráfica do MRE sobre o reassentamento no Brasil dos palestinos de Ruweished.

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