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A Oficina de Paleografia - UFMG, em uma iniciativa conjunta com a Imprensa Oficial de Minas Gerais, traz

ao público este audacioso projeto, que revela os enlaces entre três diferentes dimensões — manuscrito,

transcrição e narrativa histórica — caminhos estes que nem sempre estão claros no fazer historiográfico.

O principal objetivo da Oficina é reunir subsídios para a leitura de fontes manuscritas pertinentes à História

luso-brasileira. Pretendemos, então, consolidar um espaço permanente de estudo, discussão, exercício e troca de

experiências no trabalho em arquivos e na leitura e transcrição dessas fontes. Todos(as) os(as) interessados(as) são

convidados(as) a participar, independentemente de experiência prévia.

Acreditamos que o desenvolvimento da habilidade de ler e compreender os manuscritos importa, primei-

ramente, pelo seu caráter propedêutico: o de possibilitar o acesso direto a fontes de pesquisa, sem depender da

publicação de transcrições e/ou comentários. Além disso, a leitura e transcrição paleográfica podem se constituir

como campo de atuação profissional e como fonte de renda para aqueles que as dominam.

Nossas atividades se iniciaram com uma aula inaugural em 9 de abril de 2012. No dia 16 de abril, iniciamos

os nossos encontros semanais, ao longo dos quais pudemos repensar e aprimorar nossa metodologia de trabalho.

Hoje contamos com a participação de alunos(as) e egressos(as) do Programa de Pós-Graduação em História da

UFMG partilhando suas experiências de pesquisa em fontes manuscritas. Essa metodologia, consolidada a partir

do 2º semestre de 2012 e em constante revisão, tem por objetivo, ainda, promover a integração entre os diferentes

níveis de formação, graduação, mestrado e doutorado.

Desde a nossa fundação, realizamos quatro aulas inaugurais, com público de até 80 participantes, dois

Seminários interdisciplinares e mais de 60 encontros semanais, contando com uma média de 30 participantes de

diferentes cursos da UFMG e de outras instituições de ensino.

A Oficina de Paleografia - UFMG é um projeto parceiro da Oficina de Paleografia - UFJF e da Oficina de

Paleografia - UFOP. Contamos com o apoio do Centro Acadêmico de História (CAHIS - UFMG), do Colegiado de

Graduação, do Programa de Pós-Graduação, do Departamento de História e da Faculdade de Filosofia e Ciências

Humanas da UFMG.

A presente obra conta com os textos de André Cabral Honor, Carmem Marques Rodrigues, Mateus

Frizzone, Emilly J. O. Lopes Silva, Marileide Lázara Cassoli, Carlos O. Malaquias, Gusthavo Lemos, Cássio Bruno

de Araujo Rocha e Marcus Vinícius Duque Neves e prefácio do professor do Departamento de História da UFMG

José Newton Coelho Meneses.

Essa realização não seria possível sem o inestimável apoio da Imprensa Oficial de Minas Gerais, que gene-

rosamente acolheu nossa proposta de publicação, inserindo-a como mais uma iniciativa de democratização da

informação e difusão da história e cultura de Minas Gerais, projetos levados a cabo por esse órgão desde a sua

fundação, em 1891. A equipe da Oficina agradece imensamente pela grandiosa oportunidade viabilizada por essa

parceria.
Cadernos de
Paleografia
Número I
Organizadores:

Douglas Lima, Fabiana Léo, Gabriel Chagas, Gislaine Gonçalves, Igor Rocha,


Leandro Rezende, Ludmila Torres, Luíza Parreira, Maria Clara C. S. Ferreira,
Mateus Frizzone, Mateus Rezende, Rodrigo Paulinelli

Cadernos de
Paleografia
Número I

iª edição
[versão eletrônica]

ISBN: 978-85-68687-01-7
ISBN da Edição Impressa: 978-85-68687-00-0

Imprensa Oficial de Minas Gerais


Belo Horizonte, 2014
Governo do Estado de Minas Gerais
Governador: Alberto Pinto Coelho

Secretaria de Estado de Casa Civil e de Relações Institucionais


Secretária: Maria Coeli Simões Pires

Imprensa Oficial de Minas Gerais

Diretor-Geral:
Eugênio Ferraz

Chefe de Gabinete:
Antonio Carlos Teixeira Naback

Cadernos de Paleografia: Número I

Coordenação Editorial e Transcrição Paleográfica e Maria Clara Caldas Soares Ferreira


Revisão dos Textos: Revisão das Transcrições: Rodrigo Paulinelli de Almeida Costa
Douglas Lima de Jesus André Cabral Honor
Fabiana Léo Pereira Nascimento Cássio Bruno de Araujo Rocha Apresentação:
Gabriel Afonso Vieira Chagas Douglas Lima de Jesus Eugênio Ferraz
Gislaine Gonçalves Dias Pinto Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva
Igor Tadeu Camilo Rocha Fabiana Léo Pereira Nascimento Prefácio:
Leandro Gonçalves de Rezende Gabriel Afonso Vieira Chagas José Newton Coelho Meneses
Ludmila Machado Pereira Gislaine Gonçalves Dias Pinto
de Oliveira Torres Igor Tadeu Camilo Rocha Projeto gráfico, diagramação,
Luíza Rabelo Parreira Leandro Gonçalves de Rezende tratamento de imagens e capa
Mateus Freitas Ribeiro Frizzone Ludmila Machado Pereira Daniel Dutra
Mateus Rezende de Andrade de Oliveira Torres
Maria Clara Caldas Soares Ferreira Luíza Rabelo Parreira Finalização Editorial (IOMG)
Rodrigo Paulinelli de Almeida Costa Marcus Vinícius Duque Neves Fabiana Tinoco, com a
Mateus Freitas Ribeiro Frizzone colaboração de Joicely Agenor
Mateus Rezende de Andrade

Os textos e transcrições paleográficas contidos nesta obra estão licenciados sob uma Licença Creative Commons Atribuição - Não
Comercial - Sem Derivações 4.0 Internacional. É permitido copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato para
uso não-comercial, desde que se atribua explicitamente a autoria e se indique os termos desta licença. Para ver uma cópia da
licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/.
Os direitos de uso das imagens aqui reproduzidas devem ser verificados junto às respectivas instituições de guarda.

H897 Cadernos de Paleografia, Número 1 — Belo Horizonte : Imprensa


Oficial de Minas Gerais, 2014.
264 p.

ISBN: 978-85-68687-01-7

Vários autores.

1. Paleografia — Discursos, ensaios, conferências. 2. Brasil —


História. 3. Portugal - História.

CDD 417.7
“Sonho que se sonha só
É só um sonho que se sonha só
Mas sonho que se sonha junto é realidade”
Raul Seixas

Dedicamos este livro ao Felipe Damasceno,


que teria sonhado todos esses sonhos conosco.
Agradecimentos

Agradecer é uma tarefa difícil, especialmente quando podemos contar com con-
tribuições de tantas pessoas e em tão variadas formas.
Primeiramente, gostaríamos de agradecer àqueles que nos apoiaram desde o
engatinhar do nosso projeto, quando tínhamos mais sonhos do que realidades:
Centro Acadêmico de História (CaHis), Colegiado de Graduação, Programa de
Pós-Graduação e Departamento de História e Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas (FaFiCH) da Universidade Federal de Minas Gerais, bem como o seu
corpo docente, discente e técnico-administrativo.
Fundamentais na gestação dessa iniciativa foram o Prof. Dr. Eduardo França
Paiva e os colegas Douglas Lima e Felipe Damasceno (in memoriam), que no segundo
semestre de 2009 iniciaram o grupo de estudos então denominado Paleografia e
Análise Crítica de Documentos Manuscritos, que tanto nos inspirou.
Foram também muito importantes no decorrer de nossa caminhada o Prof. Dr.
José Newton Coelho Meneses, que coordenou o PPGHis durante a maior parte
desse tempo e tanto nos estimulou em todos os nossos anseios e até no que nem
ousávamos imaginar, de modo que não poderia ser outra pessoa a prefaciar este
livro, o Prof. João Euripedes Franklin Leal e a Prof.ª Dr.ª Maria Helena Ochi Flexor,
referências no campo da Paleografia no Brasil, que tão carinhosamente nos acolhe-
ram e encorajaram a voar mais alto. Não podemos nos esquecer da equipe que orga-
nizou o II Congresso Brasileiro de Paleografia e Diplomática — CBPD, momento a
partir do qual a Oficina teve a oportunidade de ser conhecida para além do que nós,
coordenadores, poderíamos imaginar naquela tarde de verão numa mesa da cantina
em que nos reconhecemos como samideanos.
Foram imprescindíveis no dia-a-dia da Oficina os frequentadores das nossas
atividades, razão da nossa existência, bem como os convidados a partilhar suas
experiências nos nossos encontros, alguns dos quais nos brindaram com as reflexões
encontradas neste livro. Somos igualmente gratos aos convidados e participantes
dos eventos que promovemos e que tanto enriqueceram nosso aprendizado, assim
como aos que nos proporcionaram a possibilidade de estender nossos diálogos na
academia e fora dela.
Muito nos alegra, ainda, ver florescerem e darem frutos outras iniciativas discen-
tes com quem compartilhamos um ideal de construção solidária do conhecimento,
dentre elas as Oficinas de Paleografia da UFJF e da UFOP, a Revista Temporalidades,
o Encontro de Pesquisa em História da UFMG — EPHIS e o Núcleo Interdisciplinar
de Estudos Teóricos — NIET, aos quais desejamos sempre sucesso e longa vida.
Não seria possível concretizar este e outros sonhos sem a amistosa sintonia
entre os membros da coordenação, sem nos esquecermos daqueles que nos deixa-
ram para alçar outros voos. É muito recompensador o trabalho coletivo em todas
as suas dimensões, aprendendo com cada tropeço e comemorando cada pequena
conquista como se fosse a conquista do mundo.
Ao nosso diagramador, que fraterna e generosamente nos presenteou com este
belíssimo projeto gráfico, só nos resta desejar que ao longo de seu caminho não lhe
faltem mãos amigas como as que ele nos estendeu.
Registramos nosso agradecimento, ainda, aos arquivos que guardam a docu-
mentação aqui reproduzida em fac-símile, a saber: Arquivo Histórico Ultramarino,
Arquivo Público Mineiro, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Casa Setecentista
de Mariana, Arquivo do IPHAN — São João del-Rei e Arquivo Municipal de
Santa Bárbara.
Finalmente, nosso muito obrigado à Imprensa Oficial de Minas Gerais e seu
dedicado corpo de funcionários, que deram forma e matéria ao sonho da nossa
primeira publicação. Muito nos honra o reconhecimento e apoio de tão prestimosa
instituição, pioneira na difusão cultural em nosso estado.

A Coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG


Eugênio Ferraz
Diretor-Geral da Imprensa Oficial de Minas Gerais

Apresentação

A Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, além de fomentar a história e


a cultura de Minas, também cumpre o papel institucional de apoiar e divulgar o
conhecimento em áreas importantes para a preservação de propagação de fazeres
(e.g. o reaproveitamento de sobras de sua área industrial) e de saberes.
Partindo dessa premissa, a Autarquia — que também construiu objetos para
uso contínuo com restos descartáveis de carreteis e pedaços de papelão, sobras de
madeira e aparas de papel — participou da produção da altruísta iniciativa intitu-
lada Cadernos de Paleografia: Número 1.
A obra se articula a partir da apresentação, transcrição e comentário de fontes
manuscritas utilizadas pela Oficina de Paleografia, um projeto voluntário, coorde-
nado pelos próprios alunos da Universidade Federal de Minas Gerais. Os capítulos
que compõem esta publicação se originam de conferências apresentadas por con-
vidados da Oficina, criada por alguns estudantes que sentiram a necessidade de
buscar mais conhecimentos práticos no estudo de manuscritos antigos, e buscaram
uma parceria para publicá-los.
A participação da Imprensa Oficial nesta parceria com alunos e egressos da
graduação e pós-graduação do Departamento de História da UFMG vem legar para
a posteridade uma cultura e uma tradição que estava se perdendo, ficando esque-
cida. Com a publicação, resgatamos toda essa bagagem que não pode ser deixada
adormecida.
Em adição a este trabalho gráfico, oportuno em testes de novos equipamentos,
o Grupo propiciará a servidores da Imprensa Oficial curso e oficinas de paleografia,
abertos a outros órgãos e a cidadãos interessados, conjugando, assim, a missão da
Autarquia com a disseminação cultural, em um encontro de valores em benefício da
sociedade.
Aos membros do Grupo — e por extensão a seus professores, mestres que neles
despertaram a paixão pelo tema — nossos mais efusivos parabéns pela profundi-
dade, seriedade e respeito com que tratam a busca e disseminação do conhecimento.
À Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, orgulha muito participar de um
projeto dessa envergadura.
Sumário

José Newton Coelho Meneses Marileide Lázara Cassoli


Prefácio Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis.
15 Mariana, 1850-1888
117
A Coordenação da Oficina
de Paleografia — UFMG Carlos de Oliveira Malaquias
A Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do
experiência discente trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc.
21 XIX
145

André Cabral Honor Gusthavo Lemos


A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite Fragmentos da paisagem rural brasileira: os Registros
açucareira goianense: entre vitupérios e rezas Paroquiais de Terra
39 173

Carmem Marques Rodrigues Cássio Bruno de Araujo Rocha


Os Portugueses e os Mapas: relações histórico- O estranho sodomita
cartográficas 195
61

Mateus Freitas Ribeiro Frizzone Marcus Vinícius Duque Neves


Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da Peculiaridades da documentação sobre exploração
cadeia velha de Vila Rica (1734) mineral em Minas Gerais no séc. XIX
73 237

Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva


A censura literária em Portugal no Período Pombalino
93
Lista de documentos

Carta do capitão-mor de Itamaracá, José Fernandes Trechos do processo-crime de Joaquim Luís do


da Silva, ao rei [D. João V], sobre o procedimento dos Nascimento e Antônio de Miranda Magro. Disponível
freis Miguel da Assunção e Manoel de São Gonçalo no Arquivo do Escritório Técnico II, Iphan, 13ª
Disponível no Arquivo Histórico Ultramarino, Superintendência, São João del Rei.PC 28-05, 1835.
notação AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3164 Data: 6 de maio de 1835, página 157
Data: 24 de setembro de 1726, página 51
Trechos do processo-crime de José Antônio Marcelhas
Requerimentode José da Silva solicitando liberdade. e Ana Joaquina de Faria. Disponível no Arquivo do
Disponível no Arquivo Público Mineiro, Fundo Escritório Técnico II, Iphan, 13ª Superintendência,
Câmara Municipal de Ouro Preto, CMOP Cx. 06 São João del Rei. PC 04-09, 1843.
Doc. 06 Data: 1843, página 165
Data: 23 de janeiro de 1734, página 79
Trechos do Livro de Registros Paroquiais de Terra.
Representação da Câmara de Vila Rica informando Disponível no Arquivo Público Mineiro, Registros
da dificuldade em conseguir carcereiros. Disponível Paroquiais de Terra, 1854-1861. TP-1-160.Piranga,
no Arquivo Público Mineiro, Fundo Câmara Nossa Senhora da Conceição do (Vila de), Distrito de
Municipal de Ouro Preto, CMOP Cx. 07 Doc. 05 Calambau. 1856.
Data: 31 de julho de 1734, página 83 Data: 1856, página 181

Petição do carcereiro de Villa Rica para que nomeie Trechos do Livro de Registros Paroquiais de Terra.
um médico para pestar assistência aos presos. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Registros
Disponível no Arquivo Público Mineiro, Fundo Paroquiais de Terra, 1854-1861. TP-1-159. Piranga,
Câmara Municipal de Ouro Preto, CMOP Cx. 07 Doc. Nossa Senhora da Conceição do (Vila de). 1855-1856.
25 Data: 1855-1856, página 189
Data: 31 de setembro de 1734., página 87
Trecho (Sentença) do Processo do Padre Frutuoso
Censura por Antônio Pereira de Figueiredo. Alvares. Disponível no Arquivo Nacional da Torre
Disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de
Real Mesa Censória, caixa 5, censura nº 55A. Lisboa, processo 5846. Código de referência: PT/TT/
Data: 12 de junho de 1770, página 105 TSO-IL/028/05846.
Data: 7 de julho a 7 de agosto de 1593, página 215
Trechos do processo de liberdade de Antonio Avelar,
escravo de Affonso Augusto de Oliveira. Disponível Trechos da Ação sobre o direito de posse da Lavra
no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Ação da Tartaruga entre Capitão José de Aguiar Leite
Cível. Códice: 448. Auto: 9680. Ano: 1883. Iº Ofício. Mendonça Vasconcellos e sua mulher versus Eufrázio
Data: 15 a 25 de maio de 1883, página 131 Pereira da Silva e outros. Disponível no Arquivo
Municipal de Santa Bárbara/MG. Cx. 63, 1849 —
Embargos — Caethé — Santa Bárbara.
Data: 6 de Junho de 1849, página 249
José Newton Coelho Meneses
Professor Associado do Departamento de História da UFMG

Prefácio

Prefaciar este livro é antes de tudo uma alegria, além de uma honra dada a mim
pelos alunos da Oficina de Paleografia do Curso de História da FaFiCH-UFMG.
Alegria porque a edição é produto denotativo de uma experiência acadêmica dis-
cente concreta e rica, em um tempo em que tais iniciativas são pouco estimuladas
e, em decorrência, pouco concretizadas. A honra me faz sentir ainda mais feliz, des-
tacado que fui entre meus colegas docentes para fazer essa apresentação, mas com
a plena consciência de que outros o fariam melhor. No entanto, fui eu, dentre os
incentivadores da iniciativa, o premiado com a escolha dos alunos. É, então, como
um presente ganho, que assumo essa responsabilidade. A retribuição a ele é meu
compromisso com a continuidade de meu estímulo ao trabalho da Oficina.
O meu texto será curto. Os que lhe seguem são os que, verdadeiramente, mere-
cem e precisam ser lidos.
As iniciativas acadêmicas dos discentes são atividades que merecem maior valo-
rização no meio universitário. O que dizer, então, de iniciativa discente integradora
que se amplia no espectro dos vários cursos (Graduação, Mestrado e Doutorado),
incorpora a experiência docente, dialogando com ela e, ainda mais, se estabelece
como interdisciplinar? Esse tipo de ação universitária, que integra níveis pouco dis-
postos à conjunção do ato cotidiano é, ainda, mais louvável e é dele que falamos
nessa apresentação e que este livro apresenta como produto, de forma, a meu ver,
original e inédita.
É comum em nosso momento, no espaço da Universidade brasileira, uma cor-
rida produtivista e, às vezes, tecnicista e competitiva que vem dificultando a valori-
zação e a dedicação às iniciativas mais formadoras que, necessariamente, impõem
Prefácio

[16]

necessidades de dedicação mais atentas ao cômputo amplo das partes que fazem a
Universidade, seus corpos docente, discente e técnico-administrativo. Vivemos com-
partimentadamente esse nosso cotidiano na Universidade e discutir essa questão é,
aliás, proposta que não ganha muitos adeptos na academia.
Como historiador, tento compreender esse momento e o entendo. Como profes-
sor, busco aquilatar as propostas e os caminhos da formação universitária. Como
pesquisador, quero dar ênfase às buscas instrumentais da pesquisa. Como cidadão,
penso que a Universidade desempenha papel fundamental de aliar teoria e apreen-
são do real. Mas não sou um indivíduo partilhado de forma estanque nessas instân-
cias e faço escolhas que as tentam conciliar em uma complexa unidade intelectual e
em uma difícil ação corriqueira na Escola. É a partir dessa tentativa de compreensão
do nosso mundo e do nosso meio que avalio a experiência da Oficina de Paleografia
dos estudantes do Curso de História da UFMG (Graduação e Pós-Graduação).
Adiantando uma síntese, ela é, para mim, atividade rica para a formação disciplinar,
e é ação acadêmica integradora.
A Paleografia tem importância fundamental para a pesquisa histórica e, neste
sentido, serve a várias disciplinas para além da História. É hoje, penso eu, mais fun-
cional e pragmática, sem perder seu caráter teórico e compreensivo acerca da escrita
e de sua inserção temporal nos processos sócio-históricos. A função pragmática de
avaliação da autenticidade documental e da interpretação-tradução da linguagem
antiga constituíram o lugar do paleógrafo e da Paleografia no mundo moderno. Ela,
sobretudo, apresenta-se, para os estudiosos que fazem dela uma prática no pro-
cesso de compreensão dos escritos antigos e de sua transcrição, um instrumento de
memória poderoso e eficaz na guarda do feito original da escrita. Eficaz porque se
presta, em sua essência, como instrumento analítico do documento histórico, atento
à sua datação, sua procedência, à sua autenticidade e aos aspectos gráficos de sua
construção.
A leitura paleográfica é prática plena e exemplar de uma sabedoria que carac-
teriza o saber científico da modernidade. Como ele, é umbilicalmente ligada a uma
utilidade humanista precípua: desvelar o mundo através da manipulação cria-
tiva e criadora desse próprio mundo, conhecer o homem pelos feitos do próprio
homem. Desvendar o humano pela escrita do homem é a raiz da Paleografia. Ela é
um dos instrumentos mais poderosos da ciência moderna, ciência essa que trata o
aporte instrumental como elemento primordial do próprio saber teórico da ciência.
Instrumentalizar para investigar e investigar a instrumentalização são ações distin-
tas e diversas, mas se igualam em importância no processo do saber.
Prefácio

[17]

Como utilidade primordial, a Paleografia se apega a objetivos que são, também,


específicos. Daí a sua especialidade como “disciplina”: atender, por meio de parâ-
metros estudados, aos vários saberes que precisam da escrita antiga e às diversas
formas de acessar essa escrita. Neste livro uma das formas possíveis, a fac-similar,
que não constrói uma mediação entre o leitor e o texto antigo, é acrescida. No
entanto, privilegia-se a transcrição do texto em sua forma estritamente paleográ-
fica, onde a intervenção do autor respeita todos os aspectos testemunhais da escrita
original. Os autores das transcrições, após apresentá-las, passam ao exercício mais
pleno da mediação, viram intérpretes, exercitam a prática historiográfica, mostram-
-se historiadores.
O livro que o leitor tem em mãos, quando observo sua proposta e procuro
entendê-la, busca a técnica paleográfica e a sua compreensão, sua aplicação na
interpretação historiográfica. Os textos, ainda, objetivam discutir, mesmo que mini-
mamente, os suportes físicos, materiais dos conteúdos textuais antigos. Apresentam
a experiência de uma oficina de leitura paleográfica, mesmo que não mostrem todas
as atividades da Oficina que compreendem o levantamento, a catalogação, a higie-
nização, a microfilmagem, a fotografia, a digitalização, além, é claro, do próprio
exercício de transcrição, evidenciado nos “capítulos” que se seguem. O livro, tam-
bém, pode denotar pouco atividades como a discussão acerca dos processos de tra-
tamento de imagens e de preservação das fontes, mas o essencial é que evidencia
as técnicas de transcrição, de acordo com a metodologia da disciplina paleográ-
fica. Além disso ele denota claramente a importância da leitura documental para o
historiador.
Vem de muito tempo o valor da prática paleográfica, mesmo muito antes de a
Paleografia ser vista como uma disciplina. A prática de historiar na Idade Média
já apresentava transcrições, traduções, interpretações de alfabetos, coleções docu-
mentais escritas de tempos anteriores, utilizadas para a compreensão das realidades
passadas. O nascimento da Paleografia moderna, no entanto, costuma ter seu marco
cronológico plantado no século XVII. Atribui-se esse surgimento a uma necessidade
jurídica de diferenciar documentos falsos e verdadeiros, para dirimir as disputas em
torno de direitos civis e eclesiásticos, no âmbito dos tribunais de justiça. Seria um
tempo onde a Paleografia e a Diplomática se confundiriam e apenas se iniciava uma
preocupação em configurá-la como uma disciplina.
Neste contexto, o embate religioso entre jesuítas e beneditinos acerca da auten-
ticidade documental teria tido importância fundamental e fundadora. Em Antuérpia,
os padres da Companhia de Jesus se dedicaram a construir uma coleção de textos
sobre as vidas de homens santos, os Acta Sanctoru. O Jesuíta Jean Bolland (1596-
1665) foi o responsável pelos primeiros volumes dessa coleção e os “bollandistas”
Prefácio

[18]

seguiram seus passos. Um deles, o padre holandês Daniele Van Papenbroek (1628-
1714) fez pesquisas em vários mosteiros pela Europa e, preocupado com a auten-
ticidade de documentos, publicou, em 1675, como prefácio do segundo volume
dos Acta Sanctorum, o texto Propylaeum antiquarium circa verí ac falsi discrimen
in vetustis membranis (Princípios introdutórios para a discriminação entre o ver-
dadeiro e o falso nos documentos antigos). Essa crítica diplomática colocou em
evidência dúvidas sobre a autenticidade de documentos de alguns mosteiros benedi-
tinos na França, principalmente os da Abadia de Saint-Germain-des-Près, nos arre-
dores de Paris, pondo sob dúvida uma tradição secular beneditina. A resposta desta
ordem vem por um de seus membros, Jean Mabillon (1632-1707). Ele publicou,
em 1681, De re diplomatica. Tal obra propugna princípios e refuta argumentos
de Papenbroek, sendo muito bem aceita e elogiada até pelo próprio padre jesuíta
criticado. São princípios básicos da Diplomática que, na sua parte final propõe
uma classificação sistemática das escritas, considerado como um primeiro tratado
de Paleografia, sem, no entanto, utilizar essa palavra. Ela é introduzida na obra
de outro beneditino, Bernard Montfaucon (1655-1741), em seu livro Paleographia
Graeca sive de ortu et progressu Litterarum, de1708. Apesar disso, tem-se Mabillon
como o pai da Diplomática e da Paleografia modernas. Tal atribuição vem do fato
de que sua obra estimulou o aparecimento de vários outros textos que dialogaram
com ele e aprimoraram as regras paleográficas na Inglaterra, Espanha, Alemanha
e Itália. Na Itália, afinal, é que Scipione Maffei (1675-1755), a partir do estudo de
códices de várias épocas da Biblioteca de Verona, publica, em Mântua, em 1727,
o livro Istória Diplomática che serve d’introduzione all arte critica en tal matéria,
base de uma nova classificação de textos antigos.
O final do século XVII e o início do XVIII foi um tempo, portanto, onde se pode
sediar o início da Paleografia disciplinar moderna. A partir daí, estudos paleográ-
ficos foram feitos e refeitos com uma frequência constante e rica em proposições
disciplinares, começando, inclusive, a comporem cátedras nas universidades euro-
peias. Em Gottingen, na Alemanha, por exemplo, em 1765, o professor Johann
Christophe Gatterer (1727-1799), construiu uma classificação das escritas, inspi-
rada em Lineu, onde dispunha uma hierarquia de escritas em regna, classes, ordines,
series, partitiones, genera e species.
É ao final do século XVIII, ainda, que surgem as Escolas Superiores de Paleografia.
São exemplos delas, na Itália (Bolonha, Florença e Milão, em 1765), na França (École
Royale des Chartes), na Espanha (Escuela Superior de Paleografia y Diplomática, em
1838), na Áustria (Instituto de Paleografia, em 1854) e na Inglaterra (Paleographical
Spciety, em 1873). Neste tempo, assim, a Paleografia é vista como uma ciência.
Prefácio

[19]

No final do século XIX, a fotografia surgiu como novo instrumento importante


para a Paleografia e documentos começaram a ter sua reprodução em fac-símiles
apresentadas ao público interessado. Nova forma surgiu para servir aos estudiosos
e preservadores das escritas, e adquiriu grande importância em todo o século XX.
Neste último século, então, a Paleografia, menos disciplinar e mais como técnica
popularizada e pragmática, foi se incorporando aos estudos universitários de várias
formações e ganhou força nas pesquisas históricas, o que se verifica até nossos dias.
Esse comentários contextuais acima, mesmo que superficiais e rápidos, a título
de apresentação ao leitor de outros campos que não os da História, nos servem para
aquilatar a importância da iniciativa deste livro e sua fundamentação na busca de
tratar o documento escrito com uma crítica criteriosa e com rigor investigativo. A
complexidade da leitura paleográfica ultrapassa a simplicidade da simples busca
pela autenticação. Ela é parte fundamental da crítica ampliada às fontes escritas. É
instrumento sem o qual o historiador que utiliza tais fontes não investiga.
O conjunto dos documentos e dos textos interpretativos aqui apresentados por
graduados, mestrandos e mestres, doutorandos e doutores, nos mostra uma varie-
dade documental interessante. Processos crimes ou embargos, acórdãos ou autos
de censura, cartas ou processos de liberdade são substratos daquilo que verdadei-
ramente tratamos como fontes. Repertórios ricos de dados que permitem aos auto-
res uma exploração criativa de informações, para transformá-los em interpretações
plausíveis e em compreensões de um real que tenta escapar de nós. De arquivos
nacionais ou de acervos arquivísticos locais, são escritas de outros tempos que per-
mitem uma história viva, pulsante de presentes e de devires.
Os autores dos textos que seguem, André Cabral Honor, Carlos de Oliveira
Malaquias, Cássio Bruno de Araujo Rocha, Emilly Joyce de Oliveira Lopes Silva,
Gusthavo Lemos, Marcus Vinícius Duque Neves, Marileide Lázara Cassoli e Mateus
Freitas Ribeiro Frizzone, atentaram por atender ao objetivo deste livro e foram feli-
zes ao construírem interpretações que evocam as possibilidades dos documentos
transcritos, optando pela perspectiva e problema definidos. Os textos são claros e
sintéticos para atender à demanda da Oficina. A despeito disso, são claramente pro-
duzidos com rigor e capricho, com vontade didática e criatividade reflexiva. Precede
estes textos, diríamos, analíticos documentais, um necessário capítulo escrito a várias
mãos pelos coordenadores da Oficina: Douglas Lima, Fabiana Léo, Gabriel Vieira
Chagas, Gislaine Gonçalves, Igor Camilo Rocha, Leandro Gonçalves de Rezende,
Ludmila Torres, Luíza R. Parreira, Maria Clara C. S. Ferreira, Mateus Frizzone,
Mateus Rezende de Andrade e Rodrigo Paulinelli. “A Oficina de Paleografia —
UFMG: a construção de uma experiência discente” aponta tudo o que poderíamos
relatar sobre a iniciativa dos alunos. Historiam o trabalho da Oficina, justificando
Prefácio

[20]

sua existência, refletem sobre os documentos escritos e seu papel na construção da


narrativa histórica e, por fim, apresentam o pensamento do grupo a respeito da
Paleografia no ensino de História.
A edição deste livro apresenta uma experiência de oficina paleográfica desen-
volvida por estudantes que valorizam esse saber-fazer e que o experimentam em seu
cotidiano de pesquisa histórica. Saber, prática e uso cotidiano são aliados poderosos
na consistência do que vai aqui exposto ao leitor. Ele não mostra tudo que esses
estudantes vivenciam na experiência acadêmica da Oficina de Paleografia. Mais
que técnicas e pragmatismos, a Oficina exercita o rigor no trabalho investigativo, a
capacidade de abstração e as possibilidades problematizadoras dos objetos docu-
mentados pela escrita.
Ao leitor atento, é salutar ler as páginas que se seguem com a humildade do
aprendiz. Verá lições de jovens historiadores.

Paris (neste momento fria, mas com céu azul,


depois de 24 horas de escuridão e chuva),
13 de outubro de 2014.
A Coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG 1

a Oficina de Paleografia
— UFMG: a construção de
uma experiência discente 2

Uma iniciativa discente pioneira

No ofício do historiador, a leitura e a transcrição paleográfica são fundamentais,


primeiramente, pelo seu caráter propedêutico: o de possibilitar o acesso direto às
fontes de pesquisa, sem depender da publicação de transcrições e/ou comentários.
Essas habilidades podem, ainda, se constituir como fonte de renda adicional ou
principal para aqueles que as dominam. No entanto, a leitura paleográfica perma-
nece como uma espécie de nicho, e são relativamente poucos os historiadores por
formação que se aventuram nesse campo. É muito frequente que o trabalho com as
fontes originalmente manuscritas se dê a partir de publicações impressas ou que a
fase da pesquisa relativa à consulta às fontes seja “terceirizada”, deixada a cargo de
estagiários e bolsistas ou de prestadores de serviço mais ou menos especializados. É
difícil não atribuir esse descompasso entre a importância da leitura paleográfica na

1. ANDRADE, M. R.; CAMILO ROCHA, Igor Tadeu; CHAGAS, G. A. V.; COSTA, R. P. A.;
FERREIRA, Maria Clara C. S.; FRIZZONE, M. F. R.; LÉO, Fabiana; LIMA, Douglas; PARREIRA, L.
R.; PINTO, G. G. D.; REZENDE, L. G.; TORRES, L. M. P. O..
2. Uma versão estendida deste texto foi submetida ao II Congresso Brasileiro de Paleografia e
Diplomática, ocorrido em junho de 2013, pelos coordenadores Douglas Lima de Jesus, Fabiana Léo
Pereira Nascimento, Gabriel Afonso Vieira Chagas, Igor Tadeu Camilo Rocha, Leandro Gonçalves
de Rezende e Mateus Freitas Ribeiro Frizzone, com o título “O ensino da leitura paleográfica na
Oficina de Paleografia — UFMG: relatos de uma experiência discente”.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[22]

pesquisa histórica e o domínio das habilidades a ela relativas pelos historiadores a


uma patente lacuna nas grades curriculares dos cursos de graduação, associada à
quase inexistência, pelo menos de maneira mais sistemática, de iniciativas extracur-
riculares nesse sentido.
Em uma breve pesquisa sobre a existência de iniciativas de ensino de paleografia
estruturadas nos cursos de História de outras instituições realizada no ano de 2013,
buscaram-se informações sobre os cursos de graduação em História oferecidos em
Belo Horizonte e nas nove universidades federais existentes no estado de Minas
Gerais3. O trabalho se deu, quando possível, através do contato com alunos, ex-alu-
nos e docentes; além disso, foram feitas pesquisas nos currículos e nas disciplinas
ofertadas, a partir de informações disponíveis nos sites dessas instituições. O fato
de não encontrar resultados positivos não significa, necessariamente, a inexistência
de tais iniciativas. Porém é possível supor o caráter efêmero e, sobretudo, a baixa
divulgação e circulação dessas experiências.
Iniciativa de uma dupla de alunos do Departamento de História da UFMG que
compartilhavam dificuldades e experiências na transcrição paleográfica entre si, o
grupo de estudos então denominado Paleografia e Análise Crítica de Documentos
Manuscritos surgiu no segundo semestre de 2009 como um grupo de ajuda mútua
entre aqueles que trabalhavam ou pretendiam trabalhar com manuscritos, princi-
palmente dos séculos XVIII e XIX, e se viam às voltas com o desafio de se capacitar,
de maneira autodidata, para a leitura de suas fontes de pesquisa. Naquele momento,
outros 6 alunos tiveram seu primeiro contato com documentação digitalizada, con-
tato este que se revelou bastante profícuo, uma vez que a totalidade daqueles alunos
de alguma forma passou a se envolver em atividades de pesquisa em manuscritos.
Com o fim do semestre letivo, a incompatibilidade de horários e sobrecarga de tare-
fas acadêmicas impossibilitou a continuidade do projeto, que, no entanto, permane-
ceu vivo como memória de uma experiência modesta, porém bastante frutífera, de
aprendizagem construída de maneira colaborativa. No início de 2012, a iniciativa
foi retomada. Hoje a coordenação é formada por seis alunos do mestrado, um do
doutorado, quatro da graduação e um egresso; desses, cinco são coordenadores
desde o início.
No seu formato original, ainda que com reuniões abertas ao público, se espe-
rava uma participação pequena de novos interessados. O segundo nome do grupo

3. Foram pesquisados os currículos dos cursos de História das seguintes instituições: PUC MG,
Uni-BH, Estácio de Sá BH, UFJF, UFSJ, UFV, UFU, UFTM, UNIMONTES, UNIFAL, UFVJM e
UFOP. Vale ressaltar que o currículo do curso de História da Uni-BH prevê uma disciplina de
paleografia, porém, segundo informações de docentes, tal disciplina já não é ofertada há algum
tempo.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[23]

corrobora com essa dimensão reduzida que fora planejada: Oficina Permanente
de Paleografia. O fato de a palavra “permanente” estar presente na denominação
aponta para uma vontade de consolidar o projeto de maneira duradoura — ven-
cendo os primeiros encontros e tentando superar a efemeridade de parte conside-
rável dos grupos de estudo criados até então — mais do que para o projeto, que
acabou se realizando preterintencionalmente, de ampliação do público-alvo e diver-
sificação das atividades.
É importante ressaltar aqui que o público recebido extrapolou muito as expec-
tativas iniciais, não só na quantidade, mas também em sua variedade. Inicialmente
essa variedade se deu dentro do próprio curso de História, com participantes de
diversos períodos, muitos sem nenhum contato com documentação manuscrita. A
grande procura das atividades da Oficina por indivíduos cuja experiência na lei-
tura documental e paleográfica tendia a zero exigiu uma contínua reelaboração de
metodologia e objetivos. Essa reestruturação ainda não chegava ao oferecimento
de um curso de paleografia propriamente dito, mas na inserção desses interessados
nos debates do grupo — ainda compreendido como de ajuda mútua, apesar dessa
primeira ampliação — dispensando uma parte do tempo das reuniões para discu-
tir e trabalhar questões muitas vezes já tidas como conhecimento comum para o
grupo fundador. Rediscutir esses aspectos de forma diluída ao logo dos encontros
não foi, entretanto, penoso e enfadonho, e sim muito enriquecedor. Resultado disso
foi a incorporação, de maneira permanente, dos componentes historiográficos e
contextuais relacionados aos manuscritos trabalhados, que foram ganhando, como
veremos adiante, um espaço maior nas discussões semanais.
A Oficina passou, gradualmente, a se consolidar como um algo a mais do que
um grupo de estudos, tornando-se um projeto de atuação cada vez mais multiface-
tada e plástica e, talvez por isso, não definível por nenhuma das nomenclaturas tra-
dicionais para iniciativas extracurriculares no âmbito da universidade. A coordena-
ção se estabeleceu propriamente como um grupo de estudos que planeja, estrutura
e oferece um curso com componentes teóricos, historiográficos e práticos, visando
promover com seu público treinamento na leitura elementar e crítica e na transcri-
ção de fontes manuscritas modernas em língua portuguesa. Ao ampliar as ativida-
des de modo a incluir público externo à universidade, de uma maneira inicialmente
tímida, mas mais sistemática nos projetos futuros, é possível dizer que a Oficina
vem se tornando uma espécie de guarda-chuva de projetos menores, atuando, assim,
tanto no nível da pesquisa como do ensino e da extensão4 .

4. As atividades semanais da Oficina são gratuitas e abertas a todo o público interessado. O grupo
também oferece minicursos em eventos acadêmicos, buscando sempre novas parcerias para ofertá-
los à comunidade em geral. Atendendo à solicitação de alguns professores do Departamento de
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[24]

Vale acrescentar ainda que o alto índice de interessados se deu pelo sucesso da
divulgação oral, sendo importantíssima a contribuição de alguns professores do
Departamento de História da UFMG. Além disso, a coordenação da Oficina utilizou
extensamente as mídias sociais, começando pela internet, com a criação do site e da
página na rede social Facebook5 e a maciça divulgação nesses meios, assim como a
utilização das mídias institucionais da Universidade Federal de Minas Gerais. Para
maximizar o alcance, era necessário simplificar o nome do projeto, buscando o
seu enraizamento entre o público alvo. Dessa forma, chegamos à nossa terceira e
última designação, Oficina de Paleografia — UFMG. A supressão do termo “per-
manente” refletiu a constatação de que a iniciativa havia extrapolado seus objetivos
e desafios iniciais, gerando mais confiança quanto à superação do antigo risco de
desintegração.
A respeito da explicitação do recorte linguístico-temporal da atuação da Oficina
(do termo genérico “paleografia”, contido na denominação do projeto, ao um pouco
mais específico “paleografia portuguesa moderna”, que passou a constar na descri-
ção da iniciativa tanto nos documentos de apresentação do projeto à universidade
e seus interlocutores como nos canais de comunicação com o público-alvo) cabe
ressaltar que ela é resultado de pelo menos 3 processos: (a) a consciência, cada
vez mais clara, da extensão do campo do conhecimento que pode ser denominado
Paleografia, em sua abrangência espaço-temporal e cultural, em seu caráter cien-
tífico e teórico-metodológico próprio e em seus múltiplos diálogos e interinfluên-
cias com os mais variados campos do saber humano; (b) a percepção cada vez
mais nítida da limitação da capacitação adquirida até então pelos coordenadores
(baseada, como discutiremos adiante, no autodidatismo) combinada a uma limita-
ção também da disponibilidade de tempo e materiais de estudo para acelerar essa
capacitação, o que levou a definir objetivos diferenciados para o curto, o médio e
o longo prazo e (c) a necessidade, diante do aumento e diversificação exponenciais
do público interessado, de recortar e explicitar melhor a atuação possível, dentro da
disponibilidade de materiais e capacitação da coordenação, no curto e médio prazo.

História e da Escola de Belas Artes da UFMG, ministrou aulas de introdução à paleografia em


suas respectivas disciplinas de cursos de graduação. Finalmente, em 2014, desenvolveu um projeto
paralelo no Colégio Pedro II, em Belo Horizonte, com alunos de Ensino Médio, projeto este que tem
a perspectiva de se estender a outras instituições de educação básica da região.
5. Os endereços são: <http://abre.ai/oficinadepaleografia> e <http://facebook.com/
oficinadepaleografia>.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[25]

História e documentos6

Pensando a História como uma narrativa que se pretende ao real por uma repre-
sentação do acontecido, construída a partir de vestígios do passado7, consideramos
então que o “documento” — em uma perspectiva alargada — é fundamental na
produção dessa narrativa. A pesquisa documental fornece ao historiador elementos
imprescindíveis de fundamentação empírica necessários para que sua pesquisa seja
conduzida sem que se perca uma noção do real, separando, dessa forma, a História
da narrativa literária. Como nos diz Certeau8, muito além de uma narrativa, a ope-
ração historiográfica é também uma prática e uma instituição. O passado não é
um dado, mas um produto da História, que depende de uma prática, dos arquivos,
da documentação, da fabricação desses documentos e sua constante reorganização,
que, por sua vez, possui técnicas específicas e bem definidas.
Essa necessidade da prova, de uma ligação com o real, com o acontecido —
que, mesmo sendo um objetivo inalcançável, é um objetivo eterno — é suprida
pelos vestígios do tempo passado que chegaram ao presente. No entanto, é sabido
e muito discutido que se deve considerar todo documento como ao mesmo tempo
verdadeiro e falso: verdadeiro enquanto produto de uma época, falso enquanto por-
tador de uma intencionalidade que não pode ser deixada de lado. Segundo Carlo
Ginzburg, “os historiadores [...] têm como ofício alguma coisa que é parte da vida
de todos: destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício, que é a trama
do nosso estar no mundo”9.

6. A nomenclatura “documento” remete, inicialmente, ao escrito produzido pelo poder estabelecido


e suas instituições oficiais. Na pesquisa histórica contemporânea, torna-se mais adequada a
denominação de “fonte”, que aponta tanto para uma variação do suporte e forma, incluindo os
vestígios não escritos em toda a sua multiplicidade (filmes, canções, imagens, novelas, etc.), como
para uma extensão, dentro do próprio universo da cultura escrita, daquilo que pode ser considerado
como de interesse para os estudos históricos. Dessa forma, também escritos de natureza privada
e informal, como cartas, bilhetes, diários, contabilidade de propriedades privadas, dentre outros
exemplos, passaram a ser, ao lado dos documentos oficiais, objeto de pesquisa e estudo. “Documento”
e “fonte” não se confundem, por serem termos que se referem a compreensões diferentes do fazer
histórico. No entanto, por um certo uso consagrado do primeiro termo, ele permanece sendo
utilizado de uma maneira ressignificada. No presente texto, exceto quando se referir a contextos
anteriores da ciência histórica, os termos “documento” e “manuscrito” deverão ser compreendidos
nesse contexto alargado do que seja uma fonte histórica.
7. GAY, Peter. O Estilo na História: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. São Paulo: Cia das Letras,
1990. passim.
8. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2006.
9. GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar
e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.14.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[26]

Atentando-nos mais para a questão do documento, não é possível deixar de


mencionar a tão conhecida e importante discussão de Jacques LeGoff10 sobre a
necessidade de se tratar o documento como monumento11:

O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é


um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força
que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monu-
mento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-
-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa. [...] O
documento é uma coisa que dura, que fica, e o testemunho, o ensina-
mento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro
lugar analisados, desmistificando-lhe o seu significado aparente. O
documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históri-
cas para impor ao futuro — voluntária ou involuntariamente — uma
imagem de si próprias12.

Sendo assim, o documento histórico pode ser lido como um produto de um


determinado contexto que o forjou de modo a passar, conscientemente ou não, um
rico campo de relações, ideias e representações sobre si à posteridade. Fundamental
ao ofício do historiador, o documento é um objeto de disputa em torno de uma
ampla e complexa construção de discursos que lhe atribuem sentidos mutáveis ao
longo do tempo. É, frequentemente, objeto de polêmicas. Tal questão acerca da
natureza monumental dos documentos adquiriu novos contornos na medida em
que surgiram correntes que valorizavam a autenticidade dos documentos e desen-
volveram mecanismos de verificação da mesma.
Uma crítica entre a ligação do discurso ao poder assumiu novas feições na Idade
Moderna, sobretudo no contexto das Reformas religiosas ocorridas a partir da pri-
meira metade do século XVI. Combater princípios de autoridade defendidos no
discurso eclesiástico contrarreformista, reforçado e difundido após o Concílio de
Trento (1545-63), tornou-se um desafio em diversos campos do pensamento do
período. Propuseram-se a esse combate, por exemplo, Erasmo de Roterdã e Rabelais,
precedidos pela perícia filológica dos humanistas italianos desde o século XIV. Um
célebre exemplo disso foi o de Lorenzo Valla (1407-57), que examinou documen-
tos medievais e desmentiu a versão canônica da doação das terras vaticanas que
o Imperador Constantino teria feito ao Bispo de Roma. A sua análise linguística

10. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: LE GOFF, J. História e Memória. Campinas:


Editora Unicamp, 2010. 4ª reimpressão. p. 525 — 541.
11. Le Goff, a princípio, caracteriza o monumento como um sinal do passado ligado ao poder de
perpetuação das sociedades históricas, que raramente é de papel; enquanto o documento tem um
papel justificativo, de prova, muito mais objetivo.
12. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. p.536-538.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[27]

demonstrou que o latim do diploma de doação era “bárbaro”; um texto forjado,


portanto, cuja língua não correspondia ao estilo oficial romano do século IV13. Uma
noção similar de documento como representação fidedigna do passado foi reto-
mada séculos depois pela História metódica dita positivista, importante no século
XIX no sentido da afirmação da História como campo das ciências14.
Mudanças nos paradigmas historiográficos ocorridas entre o último quartel do
século XIX e o início do século XX alteraram de maneira dramática a crítica do his-
toriador em relação às suas fontes, tendo em vista dimensões que não eram aborda-
das de maneira muito direta anteriormente. Nota-se que a noção de documento se
ampliou muito com a Escola dos Annales15, o que não significou, de forma alguma,
o abandono do documento escrito, sequer a perda de importância do mesmo.
Mudou-se muito a forma de ver o documento como prova fidedigna do ocorrido
no passado. A crítica documental passou da verificação da autenticidade para uma
verificação dos explícitos e implícitos, da já mencionada consideração de que todo
documento é falso e verdadeiro. A expansão da ideia de documento e a possibili-
dade de cruzamento de diversas fontes — escritas ou não — foram fundamentais
na reformulação de sua crítica. Considerando os paradigmas atuais da pesquisa
histórica, com o surgimento de correntes como as da história das mentalidades e da
micro-história, o falso torna-se um objeto de pesquisa e interesse do historiador, na
medida em que dialoga com ideias e interesses dos atores envolvidos na produção
do documento. Como exemplo, podemos voltar à questão de Valla e a “Doação de
Constantino”, da qual Ginzburg destaca que no medievo uma falsificação como
esta dialogaria com aquilo que nesse contexto era chamado de piae fraudes, no caso,
documentos e relíquias forjadas, com datação falseada de forma a parecer mais
antiga, conferindo-lhes uma legitimidade em torno de sua antiguidade. Ainda que

13. Ver o ensaio de Renato Janine Ribeiro, “Lorenzo Valla e os inícios da análise de texto”in.: A
última razão dos reis: Ensaios sobre filosofia e política. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Retomando a questão da “doação de Constantino”, refutada por Lorenzo Valla, ver Carlo Ginzburg
em History, rhetoric, and proof. Lebanon: University Press of New England, 1999.
14. REIS, José Carlos. A história metódica dita positivista. In: História: entre a filosofia e a ciência. 3.
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 15-32.
15. Ocorre uma incorporação dos documentos não escritos, assim como os não oficiais no fazer
historiográfico, assim como uma mudança de enfoque do historiador que passa do fato ao contexto,
abrindo campos antes não explorados de análises e de objetos de estudo, assim como novas fontes
que incluem cartas, crônicas, literatura, entre outros, assim como a possibilidade de serialização das
fontes históricas. Ver em REIS, José Carlos. O programa (paradigma?) dos Analles ‘Face aos Eventos’
da História. In: ______. História: entre a filosofia e a ciência. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004,
p. 67-106.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[28]

baseadas em informações falsas, seriam verdadeiras em ideia, pois buscavam inspi-


ração na verdadeira religião16.
Algo similar encontra-se muito posteriormente, no ocaso do século XIX, acerca
da questão dos “Protocolos dos Sábios de Sião” (1897). Tais protocolos teriam sido
publicados nesse período em diversos locais da Europa, da França à Rússia, num
tom de denúncia sobre uma suposta reunião acontecida em 1807, na Basiléia, em
que um grupo de sábios judeus e maçons teriam elaborado um documento deta-
lhando um plano de dominação mundial. O mesmo teria sido descoberto pela polí-
cia secreta do Czar Nicolau II, da Rússia, em 1897, e fora traduzido para vários
idiomas, alcançando grande circulação nesse período apesar de trazer um conteúdo
um tanto inverossímil. Analisando as obscuras origens dos protocolos na produção
francesa do Diálogo entre Montesquieu e Maquiavel (1864), atribuído a Maurice
Joly, Ginzburg atribui a grande difusão dos “Protocolos” ao sentimento antisse-
mita que crescia durante esse período no continente europeu e de cujo conspiracio-
nismo, mais tarde, o nazifascismo se apropriaria a fim de legitimar suas políticas de
segregação17.
Torna-se necessário frisar que, embora tenham sido apresentadas diversas
mudanças e polêmicas, além da ampliação significativa de objetos que podem ser
considerados e analisados como sendo fontes com valor histórico, escritas ou não,
os manuscritos ainda ocupam posição de destaque na análise histórica. Isso porque
eles foram produzidos por praticamente todas as sociedades humanas e também na
maior parte dos períodos históricos, proporcionando, dessa forma, vestígios para
que sejam analisados pelos historiadores do presente.

A ampliação do acesso às fontes como


subsídio à prática historiográfica

Ao longo do século XIX houve na Europa a preocupação de reunir e publi-


car enormes corpi documentais para subsidiar o estudo de épocas, países, regiões
e, até mesmo, instituições. Em um contexto marcado, entre outras características,
pela emergência dos nacionalismos, esse tipo de divulgação visava ocupar um
papel importante no processo de interpretação e construção das histórias e identi-
dades nacionais. Não se deve esquecer, também, que muitas daquelas publicações
se inseriam em grandes correntes de pensamento que pregavam a necessidade da

16. GINZBURG, Carlo. Representar o inimigo — Sobre a pré-história francesa dos Protocolos. In:
______. O fio e os rastros: o verdadeiro, o falso e o fictício, p. 202.
17. GINZBURG, Carlo. Representar o inimigo, p. 202-6.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[29]

comprovação científica. A produção de conhecimento histórico, como parte inte-


grante do seu próprio tempo, não permaneceu incólume diante daquela realidade.
Philippe Ariès destaca que, naquele contexto, a publicação e crítica dos docu-
mentos era uma atividade desenvolvida paralelamente com a tentativa de produzir
uma “história viva”18. Mais do que somente trazer a público a documentação antiga,
percebe-se a necessidade de realizar sua contextualização histórica e de explorar
suas possibilidades enquanto fontes para o historiador, ainda que tais perspectivas
fossem bastante diferenciadas da visão historiográfica atual.
Le Goff observa que a maior parte das grandes coleções de documentos do século
XIX foi concebida sob o título de Monumenta, denominação associada à ideia de
monumento. Em um tempo no qual algumas pessoas entendiam os monumentos
como meios para demonstrar “as raízes mais profundas e mais vivas” da ordem
social, a documentação antiga passou a ser vista como repositório das memórias
históricas19. A Monumenta Germaniae Historica é uma das obras mais emblemáti-
cas dessa categoria de publicações. Seu primeiro volume foi lançado em 1826 pela
Sociedade Histórica Alemã (Gesellschaft für Deutschlands ältere Geschichtskund).
A coleção prossegue suas edições até hoje e já possui mais de 300 volumes lançados20.
Embora não possua a designação de Monumenta, a Collection de documents
inédits sur l’histoire de France (Coleção de documentos inéditos para a história da
França), divulgada inicialmente pelo então ministro da instrução pública, François
Guizot, a partir de 1835, também representa uma ideia de monumentalização
dos documentos. Na apresentação que fez do projeto ao rei, Guizot ressaltou que
durante anos “homens de ciência rara” exploraram vastos conjuntos de manuscri-
tos resguardados por arquivos e bibliotecas da França. Com o passar do tempo, a
busca, inicialmente aleatória, revelou documentos que eram verdadeiras riquezas
históricas esquecidas. A publicação da Collection de documents seria uma forma
de integrar os esforços, até então desconectados, em uma grande obra de abran-
gência nacional para revelar desde a história das cidades até a história de ideias e
costumes21.

18. ARIÈS, Philippe. O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. p. 213.
19. LE GOFF, Jacques. História e Memória. p. 537.
20. Informações disponíveis em: <http://www.brepols.net/publishers/pdf/Brepolis_MGH_EN.pdf>.
Acesso em: 28 de abril de 2013.
21. GUIZOT, François. Rapports au Roi et pièces: Collection de documents inédits sur l’histoire
de France. Paris: Imprimerie Royale, 1835, p. 3-9. Disponível em: <http://archive.org/details/
collectiondedocu00franuoft>. Acesso em: 28 de abril de 2013..
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[30]

Outra coleção que não leva o nome de Monumenta, mas que também se norteia
pelo ideal de reunir uma ampla gama de documentos relativos a um período his-
tórico e a uma determinada região, foi publicada na Inglaterra entre 1858 e 1911.
Os 251 volumes das Chronicles and memorials of Great Britain and Ireland during
the Middle Ages (Crônicas e memoriais da Grã Bretanha e Irlanda durante a Idade
Média) são frutos do trabalho de arquivistas e historiadores reunidos no Public
Record Office. A obra acabou por extrapolar os limites temporais registrados no
título e divulgou documentos produzidos durante a Idade Moderna22.
Em Portugal, foi publicada a partir de 1856 a Portugaliae Monumenta Historica,
dirigida por Alexandre Herculano como representante da Academia das Ciências de
Lisboa. A obra seguiu o modelo da Monumenta Germaniae Historica, que foi a
grande referência para todos os empreendimentos semelhantes ao longo do século
XIX. Na apresentação, Herculano constatou que a preocupação em inventariar e
publicar documentos históricos era um esforço perceptível nos ambientes acadêmi-
cos de vários países da Europa na época. Ao demonstrar a importância desse tipo
de publicação, o organizador da coleção, com uma argumentação que lembra a de
Guizot, afirmou que todos os dias eram desenterrados do “pó das bibliothecas e
dos archivos monumentos desconhecidos”23. A visão do historiador como um cien-
tista que resgata das estantes do esquecimento vestígios do passado e estabelece sua
interpretação crítica de modo a modificar, corrigir ou confirmar versões historiográ-
ficas foi um elemento presente em quase todas as iniciativas que se dedicaram a levar
a cabo as Monumentae. O ponto de vista de Herculano serve ainda para confirmar
o quanto era comum o referencial que igualava os documentos aos monumentos.
A organização de Monumentae prosseguiu ao longo do século XX. A partir
de 1952 foi publicada em Lisboa por António Brásio a Monumenta Missionaria
Africana, conjunto de fontes considerado referencial para a pesquisa sobre a atua-
ção de missionários católicos nas possessões portuguesas na África entre os sécu-
los XV e XVIII. Apesar de se dedicar principalmente a assuntos religiosos, essa
Monumenta também possui transcrições de documentos administrativos, relatos de
viagem e correspondências24. Em 1960, por ocasião do quinto centenário de morte

22. SCHELLENBERG, Theodore R. Arquivos modernos: princípios e técnicas. 4. ed. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2004, p. 335-336.
23. COELHO, Maria Helena da Cruz. Alexandre Herculano: a história, os documentos e os arquivos
no século XIX. Revista Portuguesa de História, 42, Coimbra, 2011, p. 78-80. Disponível em:
<http://www.uc.pt/chsc/recursos/mhcc/mhcc_rph42.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2013. Toda a
trajetória que levou à publicação da Portugaliae Monumenta Historica, assim como o panorama
historiográfico da época em Portugal, são muito bem detalhados nesse artigo.
24. CORREIA, Stéphanie Caroline Boechat. O reino do Congo e os miseráveis do mar: O Congo, o
sonho e os holandeses no Atlântico (1600-1650). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[31]

do Infante Dom Henrique, se iniciou a publicação da Monumenta Henricina. Esta


coletânea se estendeu em 15 volumes editados até 1976 e se dedicou a coligir docu-
mentos diplomáticos e narrativos de modo a subsidiar as pesquisas em torno de
D. Henrique e das navegações portuguesas. A publicação reúne fontes que vão do
século XII ao XVII25.
No final do último século foi lançada a Portugaliae Monumenta Africana que
reuniu documentos custodiados em arquivos em Portugal e Espanha com objetivo
de oferecer novas alternativas à história eurocêntrica da África. Seus quatro volu-
mes foram publicados entre 1993 e 2002 e representam o grande trabalho cole-
tivo desenvolvido por quase trinta anos sob os auspícios de várias instituições. Na
apresentação da obra se registram os principais obstáculos enfrentados durante sua
execução, como a dispersão das fontes em vários arquivos, transcrições feitas ao
longo do tempo sem critérios padronizados, problemas na leitura de documentos
microfilmados e dificuldade de acesso a alguns documentos originais26.
Nos últimos anos, a emergência dos meios digitais diminuiu a frequência de
publicação das Monumentae, embora elas ainda sejam importantes ferramentas de
trabalho para o historiador. Desde a década de 1990, os projetos de divulgação de
documentos estão focados na produção de CD ROMs e, mais recentemente, na
disponibilização das imagens digitalizadas via internet. Essa tarefa tem sido levada
a cabo, principalmente, pelos arquivos onde as fontes estão depositadas. A publi-
cação de transcrições ainda é uma atividade extremamente relevante para a prática
historiográfica; no entanto, tal produção se encontra pulverizada em periódicos que
não têm como objetivo principal a divulgação serial e/ou temática de documentos
em larga escala.
Digitalizar e disponibilizar os documentos via internet tornou-se uma forma de
divulgação bem menos dispendiosa do que a produção de Monumentae, tarefa que
demandava muitos recursos financeiros e humanos, se arrastava ao longo de vários
anos e muitas vezes não era concluída. Ultimamente, as próprias Monumentae têm
sido digitalizadas e colocadas à distância de alguns cliques na rede mundial de

de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2012, p. 11. Disponível


em: <http://www.historia.uff.br/stricto/td/1685.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2013.
25. LIMA, Douglas Mota Xavier de. O Infante D. Pedro e as alianças externas de Portugal (1425-
1449). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2012, p. 19. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/
stricto/td/1590.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2013.
26. ALBUQUERQUE, Luís de; SANTOS, Maria Emília Madeira (Direção). Portugaliae Monumenta
Africana. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Instituto de Investigação Científica Tropical, 1993. v. 1. p. 5-14.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[32]

computadores, o que permite sua utilização por pesquisadores do mundo inteiro,


ao contrário do que antes acontecia, quando eram impressos poucos exempla-
res das coletâneas de documentos, que ficavam restritos a pequenos círculos de
pesquisadores.
Essa mudança na forma de acesso às fontes tem servido para aumentar a inte-
gração entre os pesquisadores. O que se observa atualmente é uma grande preo-
cupação em fazer com que as informações circulem e estejam disponíveis em uma
escala cada vez maior. Ainda está longe o dia em que a cultura de ocultação de
documentos e fontes será totalmente superada no meio historiográfico, mas o certo
é que essa realidade aos poucos se modifica. Um feliz resultado disso é que, além
de possibilidades aumentadas de diálogo e da diversificação do repertório de fon-
tes à disposição daqueles que já se dedicavam à pesquisa histórica, o contato mais
próximo com fontes manuscritas tornou-se viável a um sem número de estudan-
tes e profissionais que ficavam alienados dessa importante etapa da pesquisa, seja
por incompatibilidade entre suas rotinas de trabalho e o horário de funcionamento
dos arquivos, seja pela indisponibilidade de acervos organizados em seus locais de
residência.
A significativa criação de novos arquivos e o investimento na preservação e na
restauração de documentos deram novo fôlego a iniciativas voltadas para a valo-
rização dos manuscritos na pesquisa histórica em suas mais variadas facetas. São
sintomáticos desse momento, por exemplo, o surgimento e a consolidação de cursos
superiores como o de Conservação e Restauração de Bens Móveis da UFMG, insti-
tuído em 200827, e que conta com um eixo formativo para o restauro e conservação
de papel, além de um grande e bem equipado laboratório. No entanto, o que mais
parece ter favorecido o acesso a esse tipo de documentação são os inúmeros pro-
jetos de digitalização e disponibilização, tanto na internet como em outras mídias.
Tais projetos, além de facilitarem e difundirem o acesso à documentação sem que
haja um prejuízo aos documentos, tais como extravios ou danos físicos, muitas
vezes sistematizam os cuidados para com a documentação no suporte original e sua
organização.
A organização arquivística é um ponto particularmente delicado para o histo-
riador, que muitas vezes se encontra teórica e tecnicamente despreparado para esse
trabalho. É uma realidade que tende a gerar conflitos com os profissionais especia-
lizados em questões de organização e preservação. Entender as lógicas do arquivo
torna-se fundamental para se fazer uma pesquisa histórica, pois elas, em geral, são

27. O curso de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis foi criado como o primeiro
curso do Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais - Reuni na UFMG.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[33]

pensadas para facilitar o acesso e a recuperação da informação. Não obstante, os


arquivos históricos possuem inúmeras especificidades que se destacam no olhar do
historiador. Esse panorama apenas reforça a necessidade de integração entre os
diferentes ofícios envolvidos nos processos de organização e gestão dos arquivos.
Tal interação profissional e acadêmica se reflete na própria dinâmica de funcio-
namento da Oficina, que vem congregando estudantes de História, Arquivologia,
Conservação, Museologia, Biblioteconomia, dentre outros.

A leitura paleográfica como atividade docente

Apesar de a Oficina se dedicar a uma atividade eminentemente prática, os


encontros e seu planejamento proporcionam oportunidades de reflexão sobre os
aspectos teóricos e metodológicos relacionados à utilização das fontes manuscritas
na operação historiográfica e sobre a prática da leitura paleográfica como atividade
de docência e de incremento à docência.
Enquanto grupo idealizado e composto, em sua maioria, por estudantes de
História, a Oficina de Paleografia — UFMG visa aliar a leitura e transcrição de
manuscritos a alguns “saberes do arquivo” que facilitam o trabalho de pesquisa do
historiador. O já mencionado esforço para o entendimento de uma lógica arquivís-
tica se alia ao compartilhamento de experiências individuais de pesquisa em arqui-
vos, contando também com os relatos e questões propostas pelos conferencistas.
Para aprofundar ainda mais essas discussões, são realizadas visitas técnicas a arqui-
vos, abertas a todos os participantes.
Outro aspecto, marcadamente influenciado pela origem da Oficina, é o de
o estudo não se limitar à pura e simples leitura e transcrição, mas considerar os
documentos como fontes. Então, enquanto fontes, esses manuscritos devem ser dis-
cutidos, contextualizados, explorados para além do que está escrito, inquiridos e
pensados a partir de diversos ângulos de pesquisa. No entanto, qualquer tentativa
de contextualização e reflexão histórica sobre uma fonte manuscrita está necessa-
riamente impedida, se se pretende como teórica e metodologicamente aceitável, de
prescindir de uma análise cuidadosa do conteúdo e forma em si daquele manuscrito.
Dito de outra forma, não há leitura crítica sem a leitura elementar — o risco desse
divórcio é perder o próprio caráter histórico da análise, que passa a ter o mesmo
valor de narrativas não-científicas como a literária. Esse contato mais direto com a
fonte, entretanto, é frequentemente substituído por um contato indireto, mediado
pela reflexão de outros historiadores, e é frequente que os trabalhos desenvolvi-
dos, especialmente durante a graduação, se componham majoritariamente de uma
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[34]

revisão bibliográfica em vez de se apoiar mais sistematicamente na consulta e aná-


lise das fontes que o sustentaram — ou deveriam ter sustentado. Como observam os
participantes do PIBID/FAE/UFMG:

É importante destacar que a distância entre o ensino e as fontes não


ocorre apenas na educação básica. Muitos alunos dos cursos de gra-
duação em História sentem-se distantes desses documentos, ou não
sabem que muitos deles podem ser manuseados e pesquisados por
qualquer pessoa que se disponha a visitar um arquivo. Portanto, a
visita e o estímulo à pesquisa recorrente em arquivos são de grande
valia. Identificação, leitura, seleção, transcrições e cópia de documen-
tos são atividades que podem ser realizadas articulando-se ensino e
pesquisa de História28.

Porém, com a forma como vem se estruturando o ensino de História na UFMG


e em outras instituições igualmente gabaritadas, torna-se necessário até mesmo para
alunos de períodos avançados, ou da pós-graduação, dizer o que parece óbvio: que
os manuscritos produzidos em épocas passadas não são automaticamente acessíveis
e inteligíveis aos olhos contemporâneos. É de se notar, por exemplo, que o capítulo
referido acima, cujo objetivo é incentivar e refletir sobre o uso de manuscritos em
sala de aula, sequer menciona os obstáculos relativos à leitura paleográfica, muito
embora proponha tarefas que dela dependem diretamente, como a “identificação”,
“leitura”, “seleção”e “transcrições” — estas últimas aparecem no texto quase como
sinônimo de “cópia”. Muito se enfatiza a necessidade de uma análise contextual e
crítica da fonte, e por vezes se esquece de que a habilidade de compreender os carac-
teres em que ela foi escrita não é de domínio de todos os que se dedicam a essa aná-
lise — arrisca-se dizer que seja, na verdade, de uma pequena parte. É sintomático
observar, por exemplo, a queda de público da Oficina entre as aulas introdutórias,
nas quais, como se verá adiante, se oferece uma breve iniciação na qual os manuscri-
tos aparecem, por assim dizer, como uma ilustração do que está sendo demonstrado,
e os encontros práticos, em que a transcrição começa a ser efetivamente realizada.
Procura-se suavizar essa transição, explicando pausadamente e com exemplos as
normas técnicas, começando com transcrições pequenas, conduzidas com a ajuda
dos coordenadores. Ainda assim, é notável que compreender os caracteres grafados
e extrair deles alguma informação se constitui como um desafio cuja superação um
número significativo de participantes prefere adiar.
Como mencionado anteriormente, muito além de uma leitura elementar do
documento, que consideramos como um passo primeiro e fundamental, se propõe

28. LIMA, Pablo L. O (Org.). Fontes e reflexões para o ensino de História indígena e afrobrasileira:
uma contribuição da área de História do PIBID/FAE/UFMG. Belo Horizonte: UFMG , p. 67.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[35]

uma leitura crítica e contextual. Para conseguir trabalhar esses aspectos foi sendo
desenvolvida uma metodologia, uma maneira mais ou menos estruturada para que,
no desenrolar dos semestres, os encontros semanais refletissem na prática os objeti-
vos supracitados.
A atual metodologia da Oficina consiste, em um primeiro momento, numa
breve exposição de introdução à paleografia, e mais especificamente à paleografia
utilizando documentos modernos em língua portuguesa, seguida de atividades ini-
ciais de transcrição. A partir de então, os encontros acontecem com a participação
de convidados, em sua maioria alunos e egressos do Programa de Pós-Graduação
em História da própria UFMG. Essa metodologia foi construída ao longo do tempo,
de acordo com os problemas e as soluções que surgiam e com as opiniões e suges-
tões dos participantes durante os semestres.
Os gabaritos dessas transcrições, quando necessário, são elaborados pela pró-
pria coordenação e disponibilizados no site para conferência pelos participantes.

O ensino de paleografia na Oficina

Didaticamente, a coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG buscou


apoio em manuais e na bibliografia disponível. Como as primeiras habilidades dos
coordenadores se desenvolveram, no momento inicial do grupo, de maneira autodi-
data, muito baseada em tentativas e erros e na reunião de dicas e técnicas práticas,
sentiu-se a necessidade, com a ampliação do público do grupo, de aprimorar essa
capacitação, buscando respaldo na bibliografia técnica especializada. Alguns obstá-
culos se colocaram então, uns relacionados à falta de orientação e ao caráter mais
ou menos aleatório com que se reuniam materiais e indicações de publicações, e
outros advindos de uma disponibilidade restrita e baixa circulação dessas publica-
ções, indisponíveis, em sua maioria, na biblioteca da universidade. É possível consi-
derar que o pouco investimento na compra e disponibilização aos alunos de obras
de referência da área de paleografia seja um reflexo do caráter secundário que ela
assume no ensino acadêmico de História, a despeito de sua importância evidente.
Há um público, cada vez mais numeroso e sedento de conhecimento, que neces-
sita de ferramentas para entender e praticar a transcrição paleográfica. No entanto,
o acesso a essas ferramentas se torna, pelos motivos expostos, dificultado. Foi pos-
sível perceber uma grande quantidade de apostilas e blogs na internet dedicados ao
ensino da leitura paleográfica. Após uma análise mais detida, no entanto, nota-se
que o conteúdo mais propriamente teórico é em grande parte redundante: há, entre
eles, a repetição quase idêntica de trechos inteiros mostrando a chamada “evolução”
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[36]

da escrita e os arquétipos caligráficos, depois se passa para uma listagem das prin-
cipais dificuldades encontradas na leitura dos manuscritos, a apresentação das nor-
mas técnicas e então para exemplos práticos de documentos.
A obra de referência em todos esses matériais é certamente Noções de Paleografia
e de Diplomática29 de autoria de Ana Regina Berwanger e João Eurípedes Franklin
Leal, arquivista e historiador respectivamente, em sua terceira edição revista
e ampliada e publicada pela Editora da UFSM. O texto explora os conceitos de
paleografia e de diplomática, mostrando características dos documentos tanto na
forma quanto na técnica e nos materiais, tipos de escrita, de números e as dificul-
dades ao se lidar com manuscritos antigos. Há também as Normas Técnicas de
Transcrição e Edição de Documentos Manuscritos, conforme a reformulação feita
em 1993 durante o II Encontro Nacional de Normatização Paleográfica e de Ensino
de Paleografia, realizado em São Paulo. Por fim, apresentam-se alguns documen-
tos transcritos. Como não podia deixar de ser, tanto as aulas introdutórias como
as reflexões ao longo dos encontros da Oficina também se basearam fortemente
nesse manual, que em muito facilitou o processo de ensino-aprendizagem da leitura
paleográfica entre os participantes, melhorou a capacidade de leitura dos próprios
coordenadores a partir de um contato mais sistemático com as características dos
materiais, suportes e técnicas caligráficas e do desenho dos caracteres ao longo do
tempo e enriqueceu bastante as discussões. Considera-se, no entanto, que o incre-
mento do acervo de obras de referência é um obstáculo a ser superado pelo menos
no médio prazo.
Também a elucidação das normas técnicas constitui um momento de desafio.
Na experiência da Oficina, elas significam mais do que um simples modo de forma-
tação do texto transcrito: são compreendidas como um conjunto de diretrizes para
dotar ao máximo possível da lógica do texto manuscrito as informações transferidas
a um novo suporte. Embora seja notável a maior adequação das normas brasileiras
a esse propósito — uma vez que, ao contrário das portuguesas, elas determinam
que se sinalizem todas as interferências do transcritor, incluído aí, por exemplo, o
desenvolvimento de abreviações — não deixa de haver situações em que não se sabe
ao certo como formatar, na transcrição, uma peculiaridade daquele manuscrito. As
soluções encontradas nesse sentido são de natureza inventiva e provisória; embora
funcionem no contexto da Oficina, não podem ser empregadas formalmente sem o
risco de comprometimento da sua compreensão.

29. BERWANGER, Ana Regina e LEAL, João Eurípedes Franklin. Noções de paleografia e
de diplomática. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2008.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[37]

Outro obstáculo encontrado, como referido anteriormente, é motivar o público


a enfrentar o desafio de transcrever, ou de tornar acessíveis a um maior número de
pessoas os caracteres paleografados, que parecem inteligíveis apenas a iniciados.
Mais um grande desafio da coordenação é conciliar os diversos interesses dos
participantes. Quanto mais a Oficina se estabelece e fica conhecida, mais diversos
são esses interesses. Esse leque vai desde dispostos a discutir e aprimorar a leitura
paleográfica para a própria pesquisa, passando por pessoas que desejam conhecer
a Paleografia, até interessados em desenvolver fontes digitais inspiradas em alguma
caligrafia antiga. Para tentar atender a um número mais variado possível de interes-
ses dentro da História, Arquivologia e Restauração e Conservação de documentos
a Oficina realizou o I e o II Seminários da Oficina de Paleografia UFMG, nos finais
dos anos de 2012 e 2013, respectivamente. Sendo o primeiro evento de caráter local,
com conferencistas convidados da própria UFMG, e o segundo um evento nacional
que contou com grandes nomes da paleografia no Brasil.
Ainda se deve salientar a diversidade de níveis de experiência com leitura e
transcrição de manuscritos dentre os participantes. A Oficina é procurada por mui-
tos alunos sem nenhuma experiência paleográfica e também por outros tantos com
uma experiência vastíssima. Além disso, o objetivo continua sendo o de uma ofi-
cina permanente, portanto, muitos participantes seguem por mais de um semestre,
alguns estão desde o início. A metodologia utilizada, convidando conferencistas,
aliada aos primeiros encontros introdutórios, tentam unir um curso de iniciação a
leitura e transcrição paleográfica com um espaço de discussão constante sem que
isso seja repetitivo, enfadonho e maçante. Essa constante retomada das discussões
iniciais, além de inserir os novatos na discussão, permite um aprofundamento cada
vez maior nos estudos e nos questionamentos, assim como a busca de novas soluções
para os problemas que surgem. A referida variação de temas e documentos apresen-
tados, acrescida de uma variedade de atividades disponibilizadas nos encontros de
exercício, têm permitido conciliar com algum sucesso a diversidade de interesses e
de familiaridades com a leitura e a transcrição paleográfica.
Espera-se, com a disseminação da iniciativa da Oficina, que já se desdobrou para
outras instituições de ensino, a Universidade Federal de Juiz de Fora e Universidade
Federal de Ouro Preto, incentivar um maior recurso aos manuscritos e uma maior
integração e troca de experiência entre os diversos estudantes e profissionais envol-
vidos na leitura e transcrição paleográfica. Dessa forma, será possível resgatar o
lugar privilegiado que esse ramo de atuação deveria encontrar no ensino acadêmico
e na pesquisa histórica. Como nos instiga Lucien Febvre:
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

[38]

O historiador não vai rondando ao azar através do passado como um


maltrapilho em busca de despojos, mas como parte de um projeto
preciso na mente, um problema para resolver, uma hipótese de traba-
lho para verificar [...]. Tarefa singularmente árdua, porque descrever
o que se vê é fácil, mas ver o que se deve descrever, isso sim é muito
difícil30.

30. FEBVRE apud LIMA, Pablo L. O. (Coord.). Fontes e reflexões para o ensino de História indígena
e afrobrasileira, p. 62.
André Cabral Honor
Doutor em História pela UFMG e professor da Prefeitura Municipal de João Pessoa — PB

A Ordem Primeira de Nossa


Senhora do Carmo e a elite
açucareira goianense:
entre vitupérios e rezas

Não se enganem com o título deste ensaio. O objetivo principal não é adentrar
nas minúcias sobre a presença da Ordem de Nossa Senhora do Carmo nas capi-
tanias do norte do Estado do Brasil. A presente análise documental que envolve a
Ordem Carmelita na vila de Goiana em Pernambuco é apenas o pretexto usado para
alcançar um objetivo maior: demonstrar as potencialidades de Histórias que uma
peça documental pode fornecer ao pesquisador bem preparado.
Já conhecia o louvável empreendimento daqueles alunos em trabalhar e compar-
tilhar o conhecimento da transcrição paleográfica antes mesmo de ser gentilmente
convidado para palestrar na Oficina Permanente de Paleografia da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma iniciativa que se diferencia por ter sido ini-
ciada por alunos, para alunos. Assim como Dr. Jekyll e Mr. Hyde, eles próprios são
o criador e a criatura nesse exercício de circulação do saber acadêmico. Então, com
muita honra, e certo receio de não ser bom o suficiente, disse sim ao gentil convite.
A paleografia é parte intrínseca do leque de conhecimentos de um historiador
que se arrisca em estudar as desventuras da América portuguesa e do Império do
Brasil. Desconhecer os mecanismos de transcrição e decodificação da escrita cali-
gráfica antiga não inviabiliza uma pesquisa nessa área, mas definitivamente torna o
trabalho mais árduo, por vezes, desanimador. Uma palavra não compreendida ou
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas

[40]

erroneamente transcrita pode conduzir o pesquisador a interpretações errôneas ou


criar lacunas dentro do texto historiográfico.
A análise de um documento bem transcrito pode, dependendo do tipo de abor-
dagem, superar as dificuldades por vezes impostas devido à pouca documentação
acessível sobre um determinado tema ou recorte. O historiador deve sempre buscar
o máximo de fontes e informações disponíveis sobre o assunto abordado, porém, o
que constitui a operação historiográfica é a forma como o historiador irá tratar essa
documentação. É o modo de fazer da operação historiográfica. A abordagem teórica
adequada ao tipo de fonte obtida pode superar a ausência de maiores informações,
afinal, a História é um conhecimento interpretativo e não descritivo. Parafraseando
a extraordinária fala da professora de Teoria da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB), Drª Regina Célia Gonçalves, por vezes, o historiador no afã de buscar quan-
tidade de fontes esquece que um documento, e muita erudição, podem ser suficientes
para escrever uma boa História. Se não fosse dessa maneira, seria inviável escrever
sobre períodos mais remotos, pois é regra geral que a documentação escrita arrefeça
à medida que se retrocede no tempo.
Para que não haja mal entendidos, é importante conceituar um pouco mais o que
chamo de erudição. O que defendo é que o documento seja visto como um conjunto
de possibilidades que fogem à sua motivação principal, tornando a historiografia
como um dos motores da escrita histórica. Conhecendo a bibliografia pertinente ao
período, o historiador ampliará suas questões ao documento. Consequentemente,
temáticas não antes exploradas florescerão e novas informações poderão ser aufe-
ridas a partir do texto paleografado. Vasculhando as linhas e entrelinhas da peça
documental é possível inclusive estabelecer novas relações entre fontes de fundos
diversos que dantes não pareciam ter ligação alguma.
Importante colocar que a aplicabilidade do documento a determinadas temá-
ticas é limitada não apenas pelo tempo e local, mas também pela quantidade de
informações escritas. Portanto, algumas peças documentais possuem um alcance
menor de informações, enquanto outras vão mais longe. O que quero ressaltar é
que a erudição, entendida aqui como o acúmulo de leituras historiográficas e conhe-
cimento da documentação sobre o período, pode estender consideravelmente as
possibilidades de uma fonte primária.
Pensando nessas múltiplas possibilidades da documentação, mas também
levando em consideração a quantidade de páginas e o nível de desafio a ser
enfrentado na transcrição paleográfica — deliberadamente escolhi uma peça que
apresentava perda de papel, tinta trespassada e ilegibilidades da caligrafia — propus
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas

[41]

que fosse transcrito e debatido o seguinte documento retirado do Arquivo Histórico


Ultramarino de Lisboa, seção Pernambuco:

1726, setembro, 24, Goiana


CARTA do capitão-mor de Itamaracá, José Fernandes da Silva, ao
rei [D. João V], sobre o procedimento dos freis Miguel da Assunção e
Manoel de São Gonçalo, do Convento do Carmo Reformado da dita
vila, contra alguns religiosos e contra o ajudante de ordens Antônio
Gonçalves Pereira.
Anexo: 1 doc.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3164.1

O Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU) reúne toda a documentação


administrativa da América portuguesa e demais possessões portuguesas no além-mar.
Sua extensa massa documental provém de três fundos: Conselho Ultramarino (séc.
XVI a 1833),  Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar  (séc. XVI - 1910) e
Ministério do Ultramar (1911-1975).

O Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) foi legalmente criado pelo


Decreto-lei nº 19869 de 9 de Junho de 1931. Teve como objectivo reu-
nir num só local, em boas condições de segurança e conservação, toda
a documentação colonial que se encontrava dispersa. Desta forma
tornou-se possível tratar tecnicamente toda a documentação para que
pudesse ser posta à disposição do público e divulgada a informação
nela contida.2

Como resultado do Projeto Resgate Barão do Rio Branco de 1995, a documen-


tação referente à América Portuguesa foi microfilmada e disponibilizada primeira-
mente por meio de CDs, e, posteriormente, através do sítio eletrônico do Centro de
Memória Digital da Universidade de Brasília3. Essa iniciativa proporcionou um novo
fôlego às pesquisas sobre América portuguesa, abrindo a possibilidade para alunos

1. BARBOSA, Maria do Socorro Ferraz (Coor.). Documentos manuscritos avulsos da Capitania de


Pernambuco. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2006, p. 1728. O código da referência significa: AHU
— Arquivo Histórico Ultramarino; ACL — Administração Central; CU — Conselho Ultramarino;
015 número da série Brasil - Pernambuco; Cx. — Caixa (1 a 50); D. — Documentos.
2. Informação do Sítio da Câmara de Lisboa disponível em: <http://www.cm-lisboa.pt/equipamentos/
equipamento/info/arquivo-historico-ultramarino>. Acesso em: 27 mar. 2014.
3. Para o acesso online dessa documentação, ver o sítio eletrônico: <http://www.cmd.unb.br/resgate_
busca.php>. Acesso em: 27 Mar. 2014. Infelizmente, o site fica fora do ar constantemente, além
de enfrentar problemas técnicos permanentes que se arrastam por anos sem solução, deixando
indisponível parte da documentação de Pernambuco e dos Códices.
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas

[42]

de graduação de todo o Brasil adentrarem nos estudos sobre História Colonial e


Paleografia manuseando documentação primária.
O Arquivo Histórico Ultramarino resguarda atualmente a maior massa docu-
mental sobre a presença da Ordem de Nossa Senhora do Carmo nas capitanias do
norte do Estado do Brasil. A deterioração ao longo dos anos do acervo documental
carmelita localizado no Convento do Recife e a perda de suas respectivas cópias
no terremoto que devastou a capital portuguesa em 1755 — essa documentação
era arquivada no Convento de Lisboa até 1725, quando a Província Reformada de
Pernambuco ficou independente de Portugal — fazem do AHU uma dos maiores
acervos de fontes primárias disponível aos pesquisadores que estudam a Ordem de
Nossa Senhora do Carmo nas capitanias do norte do Estado do Brasil.
No caso dos religiosos do Carmelo, essa massa documental resguarda aqueles
eventos que de alguma forma transcenderam os muros dos conventos e resvalaram
em questões que envolviam a administração portuguesa na América. Por meio do
questionamento correto, é possível auferir preciosos dados sobre a atuação dos car-
melitas em Pernambuco e o contexto que os rodeava.
O documento transcrito é um relato de vituperação contra os frades Miguel
da Assunção e Manoel de São Gonçalo, ambos alocados no Convento de Goiana e
seguidores da Reforma Turônica4. Logo ao início da carta, José Fernandes da Silva
fala que “Entrando no governo desta capitania de Itamaracá de que he donatário
o marquês de Cascay em julho do anno passado de 1725 que ocupaçõens do lugar
deyxey de dar conta a Vossa Magestade(...)”5. A ênfase na questão da donataria res-
salta a vitória do marquês em reaver a Capitania após um longo processo que come-
çou com o abandono de Itamaracá durante a invasão holandesa6. Logo no início da
fala de José Fernandes da Silva percebe-se que os herdeiros, apesar da longa disputa
judiciária, não administravam a capitania, optando por nomear um capitão-mor.

4. No final do século XVII, os conventos carmelitas de Goiana, Cidade da Paraíba e Recife adotaram
a Reforma Turônica por meio da Constituição da Estrita Observância. O Convento de Olinda
permaneceu com a Constituição da Antiga Observância, atrelado ao Convento da Bahia que
tomaria da casa olindense o posto de cabeça da Província.
5. A partir desse ponto todas as citações documentais não referenciadas remetem ao documento
AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3164.
6. Sobre a querela entre o Marquês de Cascais e seus herdeiros com o reino português para reaver
a capitania após a expulsão dos holandeses ver: ANDRADE, Manuel Correia de. Itamaracá, uma
capitania frustrada. Coleção Tempo Municipal 20, Recife: Centro de Estudos de História e Cultura
Municipal — CEHM, 1999; BARBALHO, Luciana de Carvalho. Capitania de Itamaracá poder local
e conflito: Goiana e Nossa Senhora da Conceição (1685-1742). 126 f. Dissertação (Mestrado em
História) — Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2009. Captado em: <http://www.cchla.
ufpb.br/ppgh/2009_mest_luciana_barbalho.pdf>. Acesso em: 02 mar. 2012.
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas

[43]

Essa aferição é o pontapé inicial para pesquisas que busquem responder com maior
precisão como funcionava a relação entre donatários, administradores e coroa por-
tuguesa no século XVIII, já que José Fernandes peticiona diretamente ao rei sem
recorrer aos donatários.
No mesmo parágrafo, o capitão-mor denuncia que “Frey Miguel da Assunção e
Frey Manoel de São Gonçalo que há mais de 28 annos se perpetuaõ prelados alter-
nativamente neste convento do Carmo da Reforma desta Villa de goyanna residên-
cia dos capitoens mores della”. Uma questão interna como a alternância nos cargos
não deveria afligir o capitão. Mais desnecessário ainda seria levar isso ao rei, que só
interferia em questões internas dos regulares quando era extremamente necessário.
Todavia, o convento carmelita era o coração da vila de Goiana, abrigava o cofre da
capitania e servia de residência ao capitão-mor. Será que aqui temos uma tentativa
de isolar o governante da capitania do contato com a população, como ocorria com
os ouvidores no México7, para que o mesmo não pudesse ser influenciado pela elite
local? Uma pesquisa sobre essa questão é cabível. Sobre a reclamação do capitão, já
é possível vislumbrar motivos: a convivência diária com os religiosos no convento
não deveria ser amistosa e, provavelmente, o capitão não estava satisfeito em ter de
se submeter às regras estabelecidas pelo prior que regia a casa.
Para agravar a relação, Frei Miguel da Assunção era afeito a querelas políticas.
Em 1708 abrigou no convento os membros camaristas que estavam sendo persegui-
dos pelo capitão-mor de Pernambuco, Sebastião de Castro e Caldas8. Em retaliação
às atitudes do frade, em 1710 Castro e Caldas mandou retirar do Convento o cofre
da Capitania e instalou-o na vila de Nossa Senhora da Conceição, Ilha de Itamaracá.
Atitude tomada à revelia do monarca, o cofre foi devolvido ao Convento Carmelita
de Santo Alberto em Goiana por meio de uma ordem régia de 17139.

7. PARRY, John Horace. The spanish seaborne empire. Berkeley: University of California, 1990.
8. O polêmico governo de Sebastião Castro e Caldas à frente da Capitania de Pernambuco foi
responsável pelas chamadas “Sublevações em Pernambuco”, evento mais conhecido na historiografia
como “Guerra dos Mascates”. Sobre esse assunto ver: MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos
mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2003.
9. “Registro de hua carta de El Rey escripta ao provedor desta capitania aserqua de se restituir o
cofre das sobras dos sucidios ao convento de Goyana” — Ordens Régias — Registro de Ordens
Régias da Provedoria da Fazenda de Itamaracá nos anos de 1680-1760. Fl. 64. Encontrada em:
BARBALHO, Luciana de Carvalho. Capitania de Itamaracá poder local e conflito: Goiana e Nossa
Senhora da Conceição (1685-1742). 126 f. Dissertação (Mestrado em História) — Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, 2009, p. 83. Captado em: <http://www.cchla.ufpb.br/ppgh/2009_
mest_luciana_barbalho.pdf>. Acesso em: 2 mar. 2012.
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas

[44]

Ao falar dos empecilhos que os frades impuseram ao ajudante Antonio Goçalves


Pereira de realizar diligências, o capitão deixava transparecer o vínculo que havia
entre a figura do monarca e a imagem de Deus.

Estes doys religiosos esquecidos do temor de Deos e de vossa mages-


tade intentarão devertir com amiaças ao meo ajudante Antonio
Gonçalves Pereira para menam obediser, e menos executar varias deli-
gencias de prender criminozo, que lhe avia emcarregado Soblevando
do serviço de Deos e de Vossa Magestade, e do Socego desta terra (...).

Ao desobedecer ao monarca, desobedecia-se a Deus. E vice-versa. O rei portu-


guês agia de acordo com a vontade divina na Terra, daí a importância de cristianizar
a população que aqui vivia: era por meio do catolicismo que se estabelecia o vínculo
identitário entre Portugal e a América10.
Continuando com sua injúria, José Fernandes da Silva ataca a ingerência dos
frades no que diz respeito aos engenhos Japomim e Jacaré.

DeyxandoSelhes o engenho de Japomin, vizinho desta Vila monte, e


conciente em nome de rendeyros que pagavão missas de seiscentos
mil reis por anno, com lavradores, canas, escravos, cobres, bois, bes-
tas, terras de pastoz e matos muitas obras de tijollo, e pedra, que
mobia com agoa: e por isso fazenda principal, que tudo valia milhor
de quarenta mil cruzados, esta em tal estado pelo seo governo, gastos
de prelazias pessoais, que pedra sobre pedra lhe não deycharam, que
pasmos o escandallo de tanta desolaçaõ. Peor, e mayor escandallo
padesse o outro emgenho chamado Jacarê tambem vizinho desta
villa, que com Seos uzos e Prelazias o tem destruhido, vendendolhe os
escravos, cobrez e pondoo em pastos de Gado alheos.

Acusava-os de depredar as respectivas unidades produtivas sob responsabili-


dade da ordem, deixando caírem em ruínas, vendendo seus cobres e escravos. O
capitão-mor não mentia sobre o estado de abandono dos engenhos, todavia, desco-
nhecia, ou deliberadamente ignorava em seu relato, o que se passava naqueles locais.
Quatro anos depois, em 1730, o governador da Capitania de Pernambuco,
Manoel Rolim de Moura, expressava sua preocupação com os engenhos que os
carmelitas reformados possuíam na Capitania de Itamaracá, os mesmo Jacaré e

10. Portugal seria o reino cristão por excelência, pois teria sido fundado por meio de uma intervenção
divina durante a batalha de Ouriques, portanto, estaria fadado a levar o cristianismo aos quatro
cantos do mundo. Para saber mais sobre a formação do reino português e a intercessão do Anjo
Custódio de Portugal ver: PALACIN, Luís. Vieira e a visão trágica do Barroco. São Paulo: Hucitec,
1986. Para entender melhor a construção dessa ideia e de como serviu para interesses políticos na
formação de Portugal ver: BARBOZA FILHO, Rubem. Tradição e artifício: Iberismo e Barroco na
formação americana. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2000.
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas

[45]

Japomim já citados. O governador não poupou os carmelitas reformados acusando-


-os, inclusive, de serem diretamente responsáveis pela instabilidade dessas regiões
como consequência do abandono desses locais11. Ademais, os carmelitas teriam dila-
pidado o patrimônio dos engenhos, vendendo seus cobres e até os telhados das
fábricas.

Muytas dezordens e perturbaçoes aos ditos colonos e moradores vizi-


nhos de que se segue estarem tam importantes propriedades inuteys e
dezaproveitadas e a contingencia de ficarem para sempre destruídas
em quanto forem possuídas pelos ditos frades, que athe os cobres e
telhados e maes petrechos dos ditos engenhos tem vendido (…).12

Quem elaborou a defesa dos carmelitas foi o então prior do Convento de Goiana,
Frei Manoel de São Gonçalo. Rebateu um a um os argumentos do governador, e
ressaltou que tudo aquilo ocorria devido a inimizade declarada entre os carmelitas
e o vigário de Goiana, Manoel de Araújo Dadim. O religioso, possuidor do hábito
de São Pedro, era rendeiro dos reformados em um partido de cana no engenho
Mariuna desde 1714, com validade de dezesseis anos. Para Frei Manoel de São
Gonçalo, se as terras estavam abandonadas, a culpa era do vigário e não dos fra-
des13. Explicava também que o engenho Jacaré se encontrava arrendado ao tenente
e coronel Manoel Dias de Carvalho desde 1723 por vinte anos, mas que o abando-
nou devido à esterilidade, e por isso o prior designou um frade para viver naquele
local e cuidar do patrimônio, sendo mentira a afirmação de que foram vendidos os
cobres e que os moradores daquelas terras haviam fugido. Importante lembrar que
a venda dos cobres era considerada uma falta grave, nem tanto pelo valor das peças,
mas pelo seus formatos e tamanhos fundamentais para a fabricação de um açúcar
de qualidade. Essa tecnologia deveria ser protegida de estrangeiros que, caso apren-
dessem o funcionamento do maquinário, poderiam fazer concorrência ao açúcar da
América portuguesa, produzindo-o em outro lugar. Daí o problema que poderia ser
causado caso esse material fosse vendido a esmo.
Para manter seu projeto doutrinário na América, os carmelitas, assim como as
demais ordens religiosas, adentraram nos assuntos temporais estabelecendo ativida-
des que pudessem prover o sustento de suas casas conventuais, dentre as quais estava

11. O governador também reclamava do abandono de uma partida de cana no engenho Mariuna.
12. AHU_ACL_CU_015, Cx. 31, D. 2826.
13. O prior acusa o vigário de ter “conveniências” com o provedor da fazenda de Itamaracá, desafeto
declarado do Convento de Goiana devido à acusação que os frades lhe faziam de há mais de cinco
anos não pagar a ordinária devida a essa casa.
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas

[46]

o plantio da cana e produção do açúcar. Utilizavam-se de mão-de-obra escrava e


livre, sendo a última aparentemente predominante no engenho Jacaré em 1730.
O engenho Japomim também mencionado em 1726 e 1730 é um caso à parte.
Frei Manoel de São Gonçalo afirma que os carmelitas investiram na fábrica, pri-
meiro drenando suas terras e estabelecendo plantações. Todavia, o mau tempo e a
praga pão-de-galinha tornaram a empreitada pouco lucrativa, por isso seu aban-
dono. Ao fim diz que os carmelitas estavam dispostos a vender esse engenho caso
houvesse alguém interessado em comprá-lo, “que se alguem achar o Japomim capaz
de canas e as quizer lavras nelle: dezobrigandonos das obrigações que por elle esta
a nosso cargo, e dandonos metade do que custou e com elle gastamos com boa von-
tade o largamos”14.
Tem-se um pequeno relance sobre a maneira como os carmelitas reformados
sustentavam seu projeto missionário na América portuguesa: não viviam apenas
de esmolas e doações post-mortem, mas se envolviam nos principais negócios que
movimentavam as localidades nas quais estavam instalados. Não se envolveram
apenas com a fabricação de açúcar, mas com outras atividades, como o arrenda-
mento de terras e o cultivo de partidos de cana-de-açúcar para terceiros15.
No intuito de que suas súplicas reverberassem com mais força nos ouvidos
do rei, José Fernandes insinuava que os religiosos desagradavam também a elite
local. O capitão-mor reclamava que esses homens eram discriminados dentro do
Convento de Goiana, não ascendendo a cargos importantes. “Não concentem o
natural do Brasil cargo algum, nem praticão a alternativa, que nas mais religioens
costumarão entre huns, e outros naturaes (...)”.
Em um contexto marcado pela mestiçagem, as ordens religiosas abriam as por-
tas de seus conventos para os que nasciam na América portuguesa estabelecendo
uma estratégia de cooptação da elite que resultava em mercês e privilégios para a
Ordem. Estaria o convento de Goiana vetando a ascensão dessas pessoas, na con-
tramão do que era costumeiro entre os carmelitas reformados?16 Analisando sob a

14. AHU_ACL_CU_015, Cx. 31, D. 2826.


15. Sobre os negócios que os carmelitas reformados se envolveram na América portuguesa ver:
HONOR, André Cabral. Universo cultural carmelita no além-mar: formação e atuação dos carmelitas
reformados nas capitanias do norte do Estado do Brasil (sécs. XVI a XVIII). 315 f. Tese (Doutorado
em História) — Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013.
16. Baseado na pouca documentação disponível, há indícios de que os carmelitas reformados não
impunham empecilhos para a ascensão de pessoas nascidas na América portuguesa para cargos
dentro da Ordem. Sobre isso ver: HONOR, André Cabral. Universo cultural carmelita no além-mar:
formação e atuação dos carmelitas reformados nas capitanias do norte do Estado do Brasil (sécs.
XVI a XVIII). 315 f. Tese (Doutorado em História) — Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2014.
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas

[47]

perspectiva de uma longa duração, a resposta seria não, vários frades nascidos no
Brasil conseguiram altos cargos nas Províncias Carmelitas na América, entretanto,
não se descarta a possibilidade de que em determinados períodos houvesse maio-
res dificuldades para a ascensão desses mestiços, pois a obtenção de cargos era um
delicado jogo político que dependia das peças colocadas no tabuleiro, ou seja, da
influência que o religioso tivesse sobre seus demais irmãos.
Como se não bastassem essas acusações, o capitão-mor direcionou seu ataque à
honra dos frades que agiriam em oposição ao seus votos de celibato.

Sam tam escandalozos estes dous religiozos que o dito Frey Miguel
conserva nas suas terras do Acahu huma escrava do convento para
seos uzos mundanos donde continuamente asiste alem de outras mui-
tas que para esse effeito se guardão e padecem imquietaçoens pello
não consentirem impudicamente. Com o mesmo escadallo vive o dito
Frey Manoel de São Gonçalo pois tem nesta vila ajuntamento com
muitas molheres e filha de certa mulher cazada com Benedito Soares
natural do reyno de quem a apartou alem de outros ajuntamentos que
conservam vizinhos do seo convento: (...).

Marc Bloch afirmava sabiamente que o historiador deveria “compreender por-


tanto, e não julgar”17. Não cabe discutir a veracidade das informações sobre a con-
duta sexual dos frades, mas perceber os argumentos usados pelo capitão-mor na
tentativa de denegrir a imagem do religioso. Todavia, para que essas acusações sur-
tissem efeito, era necessário que esse tipo de conduta fosse factível. Podia até ser que
os frades carmelitas Miguel e Manoel fossem inocentes, porém as acusações não
soavam absurdas dentro do contexto social da América portuguesa.
Notícias sobre condutas sexuais envolvendo religiosos corriam no cotidiano. Às
vezes, tratavam-se de relações notórias e antigas que eram toleradas. A sociedade
costumava ser complacente com esses religiosos, desde que se mantivessem na mais
absoluta discrição sem escândalo público. Nesses casos, é possível aplicar a mesma
consideração a que chegou Stuart B. Schwartz ao estudar a presença do toleran-
tismo religioso no mundo ibérico.

17. LE GOFF, Jacques. Prefácio. In: BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador.
Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 30. Com essa frase, Marc Bloch não prega
uma atitude de passividade do historiador perante os fatos, “Compreender, no entanto, nada tem
de uma atitude passividade. Para fazer uma ciência, será sempre preciso duas coisas: uma realidade,
mas também um homem. A realidade humana, como a do mundo físico, é enorme e variegada. (...)
Assim como todo cientista, como todo cérebro que, simplesmente, percebe, o historiador escolhe e
tria. Em uma palavra, analisa”. BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Trad.
André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 128.
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas

[48]

O que tentei fazer neste livro foi demonstrar que no mundo ibérico,
esfera cultural onde, devido às políticas oficias de intolerância, não
seria de se esperar tal tipo de ideia, era comum a dissidência em ques-
tões de fé, e de longa data existia uma atitude de tolerância, pelo
menos alguns elementos da população.18

Como membros de uma sociedade escravista, os carmelitas possuíam escravos


de ambos os sexos e podiam dispor sexualmente dos mesmos. O sociólogo Gilberto
Freyre expôs na sua obra-prima Casa-grande e senzala19 essas relações sexuais que
envolviam os senhores e sua escravaria. São subsídios para uma História da sexua-
lidade dos religiosos e da população que nos seus universos particulares rompiam
com as normas de boa conduta exigidas publicamente.
Continuando com seu breve, mas intenso relato, o capitão-mor comenta sobre
os escândalos que envolviam a nomeação dos juízes na Capitania, afirmando que os
frades adulteravam o resultado da eleição dos juízes, “no seo Convento hê onde se
costuma goardar a Cayxa dos Peloyros e todas as vezes que lhesparese com os seos
embandeyradoz abrem e fazen outros Peloyros afim de meterem por Juizes aos do
seu sequito (...)”.
Além do cofre da Capitania de Itamaracá, o convento guardava a Caixa dos
Pelouros, um poderoso instrumento do complexo sistema eleitoral da América
portuguesa.

O intrincado sistema eleitoral se fazia por meio de um sistema de


indicações, no qual a eleição se dava através da organização de listas
nominais por ordem do ouvidor da comarca, que se fazia da seguinte
maneira: primeiramente, o conjunto dos “homens bons” elegia seis
representantes, dividiam-nos em pares, chamados eleitores; estes,
divididos em duplas, produziam as listas com os nomes dos “homens
bons” que deveriam ocupar os cargos camarários. Tais listas, no total
três, eram guardadas em pelouros, que eram bolas de cera, e deposita-
das no cofre da Câmara. No final de cada ano, um menino escolhido
aleatoriamente retirava um dos pelouros, que era aberto e sua lista
revelada, com os nomes contidos na mesma indicando quem seriam
os ocupantes camarários do ano seguinte.20

18. SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico
ibérico. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras; Bauru: EDUSC, 2009, p. 365.
19. FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 51 ed. São Paulo: Global, 2010.
20. MONTEIRO, Lívia Nascimento. Distinção social nos trópicos: as eleições na câmara
de São João Del Rey em meados do século XVIII. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA DA
ANPUH — RIO, XXIII, 2008, Niteroi. Anais do XXIII Encontro de História da Anpuh — Rio.
Niteroi: ANPUH, 2008. Captado em: <http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas

[49]

O capitão-mor de Itamaracá acusava os dois frades de adulterarem os resulta-


dos das eleições dos juízes pondo nomes de agrado dos carmelitas dentro da caixa.
Normalmente, essas caixas eram fechadas com três chaves, que eram entregues a
pessoas diferentes para que somente pudessem ser abertas na presença dos esco-
lhidos no dia da eleição. Se realmente havia alguma adulteração no conteúdo da
caixa dos pelouros de Goiana, ocorria com a anuência dos demais portadores das
respectivas chaves.
Esse documento é um pequena amostra da intrincada relação entre os frades
carmelitas e a elite de Itamaracá. Os carmelitas possuíam seus pares dentro da
Capitania e sua influência se impunha até mesmo na nomeação daqueles que eram
eleitos para exercerem os principais cargos locais. Há de se duvidar da fala do capi-
tão sobre a fraude na caixa dos pelouros, entretanto, não há porquê questionar sua
afirmação de que os eleitos eram sempre aliados dos carmelitas, pois caso isso não
fosse verdade, não haveria motivos para José Fernandes da Silva escrever ao rei ten-
tando minar a influência dos frades carmelitas e aliados. O que acontecia naquela
vila reverberava em toda a Capitania, pois Goiana era a cabeça de Itamaracá, sendo
o convento de Santo Alberto o seu coração.
Ao tomar as duas páginas manuscritas do Arquivo Histórico Ultramarino como
exemplo, pretendi demonstrar como um único documento pode fornecer material
para a análise de temáticas diversas. Essa peça singular não abarca toda a realidade,
mas abre uma fresta na janela do tempo que possibilita ao historiador começar a
compreender o que se passava em determinado período. A leitura de um documento
é como a vida observada por detrás de uma rótula: enquanto esses personagens
desfilam em frente aos nossos olhos, sem saberem que estão sendo vistos, somos
compelidos a analisá-los, compreendê-los e a fazer conexões com o que já vimos ou
conhecemos.
Assim, principia-se a escrita da boa História.

anais/1212866921_ARQUIVO_ResumoeTextoAnpuh-RIO.pdf>. Acesso em: 09 abr. 2014. Sobre


o funcionamento das eleições e o uso da caixa dos pelouros importante referenciar os artigos:
XIMENDES, Carlos Alberto. “Nomes no pelouro”: as eleições da Câmara de São Luís, durante a
segunda metade do século XVII. SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, XXV, 2009, Fortaleza.
Anais do XXV Simpósio Nacional de História. Fortaleza: ANPUH, 2009. Captado em: <http://
anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.0569.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2014;
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Redes de Poder na América Portuguesa — o caso dos Homens
Bons do Rio de Janeiro, 1790-1822. In: Revista Brasileira de História, v. 18, n. 36, 1998. Captado em:
< http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01881998000200013&script=sci_arttext>. Acesso em:
09 abr. 2014.
Documento 1
Carta do capitão-mor de Itamaracá, José Fernandes da Silva,
ao rei [D. João V], sobre o procedimento dos freis Miguel da
Assunção e Manoel de São Gonçalo Disponível no Arquivo
Histórico Ultramarino, notação AHU_ACL_CU_015, Cx. 34,
D. 3164

Data
24 de setembro de 1726

Resumo
Carta do capitão-mor de Itamaracá, José Fernandes da Silva,
ao rei D. João V, sobre o procedimento dos freis Miguel da
Assunção e Manoel de São Gonçalo, do Convento do Carmo
Reformado da dita vila, contra alguns religiosos e contra o
ajudante de ordens Antônio Gonçalves Pereira. O dito capitão
se queixa das condutas dos freis, tanto morais quanto no que
se refere às interferências políticas na administração de Goiana.
O documento foi digitalizado a partir do microfilme e apresenta
muitas manchas e transferências de tinta.

1. Nota dos Transcritores: Esta transcrição, bem como todas as demais contidas nesta obra, foi
elaborada para utilização nos encontros semanais da Oficina de Paleografia — UFMG e está de
acordo com as Normas Técnicas para Transcrição e Edição de Documentos Manuscritos. Disponível
em: <http://www.arquivonacional.gov.br/Media/Transcreve.pdf>. Acesso em: 19 de agosto de 2014.
[fl. 1]

<Pernambuco 1 Senhor
24 setembro
1726>

<[ilegível: 2 linhas]
[3 sinais públicos]>

<Deve informar com


o seo parecer o Governador de
Pernambuco averiguan
do a verdade do que Se contem
neste avizo
[sinal público]>1
2 Entrando no governo desta Capitania de Itamaracá, de que hê Donatário o Mar —
3 quês de Cascais em Julho do anno passado de 17253, que ocupaçoẽns do lu
4 gar deychey de dar conta a Vossa Magestade da inquietação muito antigua, que no
5 politico, e militar Cauza Frey Miguel de Assumpção, Frey Manoel de Saõ
6 Gonçallo, que há mais de 28 annos Se perpetuaõ Prelados alternativamente,
1. Nota de mão alheia.. 7 neste convento do Carmo da Reforma desta Vila de Goyanna, Rezidencia
8 dos capitoens Mores desta.

9 Estes dous Religiosos esquecidos do temor de Deos, e de Vossa Magestade inten


10 taraõ devertir4 Com amiaças ao meo Ajudante Antonio Gonçalvez Pereira para menam
11 obediser e menos e executar varias deligencias de prender Criminozos que
12 lhe avia emcarregado, SobLevando do Serviço de Deos, e de Vossa Magestade, e do
13 Socego desta Terra: e por que lhemandey pedir satesfaçaõ destes car-
14 gos, em vingança de naõ Ser Seo preçoadido dito Ajudante o deitaraõ fora
15 das terras do convento donde morava: Proferindo contra antençaõ do meo Lu
16 gar injurias, amiaças, e calunias actualmente escandalizaõ os Seculares
17 pella perpetuaçaõ que os ditos Religiozos Sobornaõ as Prelazias: por que Se hú
18 deixa de Ser Prior hú Irmão hê para que o outro lhessoceda dito[?] o cómissário
<Escreva-se ao Gover 19 que Val o mesmo que o logar de Provincial, que agora neovamente Criaram por
nador, que informe 20 isso traziam a muitos Riligiozos fugidos por Se conservarem melhor nos
como aponta o Pro 21 Cargos que nunca Largão, Como exprimentam Reis [ilegível] Spiritu Santo
curador da Coroa 22 extraminando5 deste convento por não Sair nas eLeyçoens, e poir isso se es-
Lixboa ocidental 12 de 23 tão passando para os Carmelitas calçados maiores dos Seos religiozoz Com
Mayo de 1727 24 menores gastos de Roma, deyxandolhes Seos dottes como grande perjuizo de
[4 sinais públicos]>2 25 Seos Pais, e parentes que tudo Suportão pellos Res[guar]darem do cativeiro
26 em que vivem, e em nome destas pessoas Sepede a Vossa Magestade o Remedio ma
27 is [ta]nto o trabalho[?].

2. Nota de mão alheia


(caligrafia diferente da nota
anterior).
28 Naõ Concentem o natural do Brazil cargo algũ, nem pra
29 ticaõ a alternativa, que nas mais Religioins Costumaraõ entre huns, e outros na
30 turaes, Este hê o estados dos Seos Religiozos, ou Suas Reputaçoeñs: quanto a com
31 Servação dos Seos Patrimônios para seos uzos Reprovados hê taõ exceciva
32 mente pessimo, que em Suma direy o que todos estamos vendo: DeyxandoSelhes
33 o engenho de Japomina, vizinho desta Vila mointe, e conciente em nome

3. Nota dos Transcritores: Utiliza-se o grifo duplo quando o trecho está grifado
no original (critério nosso), e o grifo simples para indicar o desenvolvimento
de abreviaturas, como recomendam as Normas Técnicas.
4. Provavelmente corruptela de “advertir”.
5. Arrependimento na quarta sílaba.
[fl. 1v]

1 Derrendeyros que pagavão missas de SeisCentos mil reis por anno,


2 Com lavradores, canas, escravos, Cobres, bois, bestas, Terras de pastoz
3 e matos muitas obras de tijollo, e pedra, que mobia com agoa: e para[?] isso
4 fazenda principal, que tudo valia milhor de quarenta mil cruza
5 dos, estâ em tal estado pello Ser governo, gastos de Prelazias
6 pessoais, que pedra sobre pedra lhe não deycharam, que pasmos
7 o escandallo de tanta desolaçaõ.

8 Peor, e mayor escandallo padesse o outro emgenho cha


9 mado Jacarê tambem vizinho desta villa, que com Seos uzos
10 e Prelazias o tem destruhido, vendendolhe os escravos, cobrez
11 e pondoo em pastos de Gado alhu[re]s.

12 Sam tam escãdalozos estes dous Religiozos que


13 o dito Frey Miguel ConServa nas Suas terras do Acahû huma es
14 crava do convento para Seos uzos mundanos dando continua
15 mente aSiste alem de outras muitas que, para esse effeito Seguardaõ
16 e padecem enquistaçoens pello naõ ConSentirem impudicamente

17 Com mesmo escandallo vive o dito Frey Manoel


18 de São Goncallo Pois tem nesta Vila ajuntamento com muitas molheres
19 e filho de Certa molher Cazada Com Benedito Soares natural
20 do Reyno de quem a aPartou alem de outros ajuntamentos que conserva
21 vizinhos do Seo convento: tanto que as Sabindas Serresanberçe [sic]
22 nesta Vila.

23 O exercicio destes dous Religiozos hê trazêrem


24 Estes governannos emvolvidos com Juizes Seos pareites para os te
25 rem de Suas maũs para que naõ desse parte a Vossa Magestade dos Seos vicioz
26 no Seo Convento hê onde Secostuma goardar a Cayxa dos Peloyros
27 e todas as vezes que lhesparese Com os Seos embandeyradoz abrem
28 e fazen outros Peloyros afim de meterem por Juizes aos do seu Sequi
29 to Por estes vicios ja Vossa Magestade que Deos Guarde fas Servido mandar
30 extraminar desta Villa ao dito Frey Miguel; que tendo notica
31 desta ordem Ser[i]terou para o convento do Recife, e fingindoce doente, tan
32 to que a frota fez v[i]agem Setorno a Ricolher a esta Vila a fazer
33 pior do que fazia por que naõ pode passar Sem pacialidadez por
34 certas as cameras delle Sequeyxem, e que tudo Seacabase fomentã
35 do discordiar com os capitaens Mores todas as vezes que lhes nam
36 fazem Suas vontadez:

37 Por esta pedimos a Vossa Magestade a extraminaçaõ destes dous


38 Religiozos para os Seos Conventos da Parahiba, ou Pernambuco, e que Semi
39 formem [sic] para quem Vossa Magestade for Servido. Nosso Senhor Conceda a Vossa Magestade
40 a saude e, vida de que carecemos. Goyanna 24 de Septembro de
[fl. 2]

1 De 1726

2 Do Capitam Mor de Itamaracá Jozeph Fernandez da Silva


[fl. 2v]

1 Sua Magestade he Servido que ven[doce]


2 no Conselho as seis cartas incluzas do Capitam
3 mor de Itamaraca Joseph Fernandes da Silva,
4 Selhe consulte o que parecer sobre os pontos de que
5 nellas fas menção. Deoz guarde aVossa Mercê Paço,
6 22 de Abril de 1727.

7 Despacho de Merce Cosselho Real

8 Por[?] Antonio [perda no suporte]


Carmem Marques Rodrigues
Mestre em História pela UFMG, bolsista CAPES

Os Portugueses e os Mapas:
relações histórico-cartográficas

Os mapas das Grandes Navegações

Quando as barcas portuguesas partiram em busca das ilhas lendárias do


Atlântico e se depararam com o arquipélago das Canárias, uma nova relação entre
o homem e o mar começou a ser construída. A partir do século XV, Portugal enxer-
gou na imensidão do mar, que se alarga ao longo da sua costa, uma possibilidade
de expansão1.

Com o apoio financeiro de um rei da Península Ibérica, uma expe-


dição marítima conduzida por marinheiros italianos parte em busca
das ilhas que se dizia existirem em algum lugar do Atlântico. Guiados
por mapas contendo uma mistura de elementos reais e imaginários,
eles descobrem uma série de ilhas nas quais encontram uma socie-
dade pagã previamente desconhecida da Europa. Levam prisioneiros
humanos, que acreditam interessar a mercadores da Europa. A notícia
sobre as ilhas se espalha rápido e chega ao papa, que se considera no
direito de conceder sua propriedade a quem julga apropriado — e, ao
fazê-lo, provoca uma corrida entre diferentes monarcas ibéricos para
investigar, explorar e cristianizar a região2.

1. Ver em: CORTESÃO, Jaime. História da expansão portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa
da Moeda, 1993; RUSSELL-WOOD, A.J.R. Um mundo em movimento: os portugueses na África,
Ásia e América (1415-1808). Lisboa: Difel, 1992.
2. LESTER, Toby. A quarta parte do mundo. A corrida aos confins da Terra e a épica história do
mapa que deu nome à América. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.137.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas

[62]

Todavia o movimento de expansão não era realizado às cegas. Ao mesmo tempo


em que utilizava o conhecimento naval e cartográfico de marinheiros italianos e
catalães, Portugal, ao se lançar no mar, também carregava uma concepção geo-
gráfica que misturava conhecimentos práticos e imaginários. Nesse período, entre
o final do século XIV e o início do século XV, os europeus vivenciavam um movi-
mento de transformações em suas concepções cosmológicas que culminou na rees-
truturação da concepção geográfica do mundo que possuíam3. Com o incentivo
dos humanistas italianos, vários manuscritos da antiguidade foram redescobertos,
estudados e traduzidos, dentre eles, a Geografia, de Claudio Ptolomeu4. Sua redesco-
berta não só abriu as portas da geografia do mundo antigo, como também mostrou
a chave para o conhecimento do mundo moderno. Assentado em cálculos matemá-
ticos, Ptolomeu mostrou aos europeus um método muito mais eficaz de cartografar
o mundo, baseado em coordenadas geográficas:

European advances in seafaring were related to the revival of Ptolemaic


cartography, which was indirectly reintroduced by the Muslims. (…)
Portolan charts, which had originated in the thirteenth century, were
also vital to the European cartographical renaissance. Their emphasis
on scale and accurate depiction of coastlines was based on empirical
observation (including use of the compass), a process quite distinct
from Christian cartography prevalent at that time in Europe5.

Ao longo do século XV, o principal objetivo dos portugueses foi conquistar


entrepostos na costa africana e, finalmente, alcançar uma rota marítima para as
Índias6. O grande problema consistia na efetividade dessa missão, pois a rota marí-
tima para a Ásia era desconhecida dos europeus. Para obter a certeza necessária
e legitimar suas pretensões, Afonso V buscou o conhecimento dos renascentistas
italianos sobre as possibilidades da rota marítima para as Índias via costa africana.

3. A expansão do mundo europeu e suas transformações podem ser vistas nas obras: COWAN,
James. O sonho do cartógrafo. Meditações de Fra Mauro na corte de Veneza do século XVI. Rio
de Janeiro: Rocco, 1999. HARLEY, John & WOODWARD, David. (Orgs.) History of Cartography:
Cartography in Pre-historic, Ancient, and Medieval Europe and Mediterranean; JACOB, Christian.
The Sovereign Map: theoretical approaches in cartography throughout history; LESTER, Toby. A
quarta parte do mundo. A corrida aos confins da Terra e a épica história do mapa que deu nome à
América; LESTRINGANT, Frank. A oficina do cosmógrafo ou a imagem do mundo no Renascimento.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
4. LESTER, Toby. A quarta parte do mundo, p. 150-168.
5. KLINGHOFFER, Arthur J. The power of projections: how maps reflect global politics and history.
Westport, Conn.: Preager Publischers, 2006, p.55.
6. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O início da expansão ultramarina (século XV). In: RAMOS, Rui
(coord.), VASCONCELOS E SOUSA, Bernardo e MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História de Portugal.
4ªed. Lisboa: Círculo de Leitores, 2010, p. 172-196.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas

[63]

This knowledge that one could travel around Africa to Asia was secu-
red from the Muslims by the Venetian cartographer Fra Mauro of
San Michele, who had been hired by Afonso V of Portugal to produce
a world map. Fra Mauro’s 1459 work, submitted to the Portuguese
crown, depicted the sea passage to Asia and a rather accurate shape
for Africa. Portugal therefore has a distinct advantage over Spain,
which did not possess this information7.

O mapa de Fra Mauro era a confirmação que os portugueses precisavam de que


as custosas viagens pela costa africana seriam recompensadas.

O mapa de Fra Mauro é um híbrido magnífico, mas desvirtuado: um


gigantesco mapa-múndi circular, com quase 1,80 metros de diâmetro,
às vezes descrito como o último grande mappamundi medieval. Mas
ele é muito mais que isso. Orientado com o sul no topo, ao estilo
islâmico, o mapa reproduz a visão tradicional medieval cristã do
mundo, mas sobrepõe-lhe uma riqueza de informações retiradas de
outras fontes: cartas náuticas portuguesas e italianas, os escritos de
Ptolomeu e Estrabão, relatos de comerciantes e mercadores árabes,
as histórias de Marco Polo e Niccolò Conti, e mais. (...) Mauro não
deixou nenhuma dúvida sobre a viabilidade de se navegar ao redor
da África8.

Na década de 1480, um novo projeto de caminho para as Índias foi apresentado


à Corte portuguesa pelo marinheiro Cristóvão Colombo. Com base nos cálculos e
mapas construídos a partir das tábuas de Ptolomeu, Colombo afirmou que a cir-
cunferência da Terra possibilitava a navegação para as Índias, do leste para o oeste,
ou seja, que a proximidade entre Europa e Ásia poderia ser transposta diretamente
pelo mar, sem a necessidade de contornar a África. No entanto, os cosmógrafos
portugueses, experientes na navegação, tinham seus próprios cálculos sobre a cir-
cunferência da Terra e alertaram o Rei sobre o perigo dessa empreitada. A persis-
tência portuguesa foi coroada com a frota de Vasco da Gama que, em 1499, chegou
às Índias via costa africana, desmentindo os cálculos de Colombo, afirmando a
geografia moderna e prática dos portugueses. “Mapmaking had become a matter
of politics and geometry, with no religious principles applied. The age of Christian
cartography was over as European states moved in the direction of rationalism and
empiricism — as well as global rivalry”9.

7. KLINGHOFFER, Arthur J. The power of projections, p.57.


8. LESTER, Toby. A quarta parte do mundo, p.244.
9. KLINGHOFFER, Arthur J. The power of projections, p.64.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas

[64]

Durante o auge da expansão portuguesa, a cartografia recebeu atenção especial


dos monarcas10. Além do trabalho dos cosmógrafos-mores, como Pedro Nunes11,
Luís Serrão Pimentel12 e Manoel Pimentel13, que ditavam as regras da cartografia
oficial e do ensino da cosmografia e da matemática, algumas famílias de cartó-
grafos desenvolveram um importante trabalho com a construção de vários Atlas e
mapas-múndi14.
A cartografia portuguesa era eminentemente uma produção oficial e sigilosa.
Em função disso, a produção manuscrita se sobressaiu à impressa, fato que prova-
velmente dificultou a sobrevivência de muitos mapas. Todavia, a curiosidade das
nações estrangeiras e o uso dos mapas tanto para decoração, como para o ensino
proporcionaram uma florescente produção cartográfica impressa, principalmente

10. MARQUES, Alfredo Pinheiro. Origem e desenvolvimento da cartografia portuguesa na época dos
descobrimentos. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987.
11. Pedro Nunes (1502-1578) foi matemático, cosmógrafo-mor e professor da Universidade de
Coimbra. Como homem de gabinete, traduziu alguns textos clássicos da época como O Tratado
da Esfera, de Sacrobosco e o livro primeiro da Geografia de Ptolomeu. Também publicou obras
originais como o Tratado de Certas Dúvidas de Navegação (1547), e o Tratado em Defensão da Carta
de Marear (1539).
12. Luís Serrão Pimentel (1613-1679) ocupou os cargos de Cosmógrafo-mor (1644) e de Engenheiro-
mor do reino (1671). No contexto da Guerra da Restauração da independência portuguesa
trabalhou nas obras de fortificação das praças-fortes de Évora, Estremoz, Mourão, Portalegre, entre
outras no Alentejo. A partir de 1647, foi professor da “Aula da Matemática” ou Aula de Fortificação
e Arquitetura Militar na Ribeira das Naus, onde lecionou Matemática, Navegação e Arquitetura
militar. Considerado uma das figuras mais importantes do meio técnico português do século XVII,
foi autor da obra Methodo Lusitanico de Desenhar as fortificaçoens das Praças Regulares e Irregulares
(1680).
13. Manuel Pimentel (1650-1719), graduado em Direito Civil e Canônico pela Universidade de
Coimbra, foi cosmógrafo-mor e autor de Arte de Navegar (1712). Ver em: FERREIRA, Nuno A.
M. Luís Serrão Pimentel (1612-1679). Cosmógrafo mor e Engenheiro mor de Portugal. Lisboa:
Universidade de Lisboa, 2009. (Dissertação em História)
14. Segundo Armando Cortesão, os Reineis foram a primeira família importante de cartógrafos
de Portugal, Pedro Reinel e seu filho Jorge construíram várias cartas onde registraram os avanços
científicos dos portugueses no além-mar. Juntamente como a família Homem, formada por Lopo
Homem, e seus filhos André e Diogo, foram os principais cartógrafos portugueses do século XVI.
Os Albernaz formam uma importante família de cartógrafos que produziu diversos mapas e atlas ao
longo do século XVII. João Teixeira Albernaz I era filho do cartógrafo Luís Teixeira, a ele é atribuído
o atlas Razão do Estado do Brasil datado de 1616 que tem várias cópias feitas em anos posteriores. Seu
irmão Pedro Teixeira optou pela carreira na Espanha. João Albernaz II era neto de Albernaz I, ficou
conhecido pelas atualizações que fez no Atlas do Brasil, mas principalmente pelo seu Atlas da África
de 1665. Uma de suas cartas foi utilizada pelos diplomatas portugueses durante a Conferência de
Badajoz (1681). Ver em: CORTESÃO, Armando. Cartografia portuguesa antiga. Lisboa: Comissão
Executiva das Comemorações do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960 e ___.
Cartografia e cartógrafos portugueses dos séculos XV e XVI. Lisboa: Edição da Seara Nova, 1935;
CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos velhos mapas. Rio de Janeiro: Ministério das Relações
Exteriores, Instituto Rio Branco. 1965-1971.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas

[65]

nas Províncias Unidas, na França, na Inglaterra e em algumas regiões da Itália e da


Alemanha.15 Grande parte dessa produção se alimentava não só dos manuscritos
portugueses, mas também de relatos de viajantes. Por isso, quanto ao Brasil, os
mapas muitas vezes reproduziam vários mitos geográficos16. Pelo pouco conheci-
mento que se tinha do interior, o maior número de informações fidedignas se con-
centrava na costa e ao interior ficava reservada a imaginação dos cartógrafos.

A política de segredo empreendida pelos monarcas inibiu o apare-


cimento em Portugal de uma cartografia impressa voltada para o
consumo, produzida na França por geógrafos como D’Anville, que
sintetizavam os mapas de grandes extensões de terra as informações
levantadas no terreno por terceiros. Em Portugal, mapas eram produ-
zidos principalmente para municiar o Estado e, em geral, permane-
ciam como manuscritos, desenhados pelos engenheiros-militares que
realizavam seus próprios levantamentos topográficos.17

A febre cartográfica do século XVIII:


o desenvolvimento da cartografia portuguesa

A partir do final da União Ibérica, em 1640, Portugal deu início a um processo


de articulação internacional para legitimar a nova casa reinante. Além de apaziguar
os ânimos internos e consolidar a nova dinastia, também era preciso resguardar
a posse das colônias que lhe restaram no Império, bem como recuperar algumas
perdidas para os holandeses18. Mas foi a partir virada do século XVII para o XVIII
que Portugal enfrentou três fatores que interferiram diretamente nos rumos políti-
cos, econômicos e tecnológicos do Império ultramarino: a descoberta do ouro e dos
diamantes no sertão brasileiro, a Guerra de Sucessão Espanhola e a Dissertação que

15. PEDLEY, Mary S. The commerce of cartography, p. 19-98; ALPERS, Svetlana. A arte de descrever:
a arte holandesa do século XVII. São Paulo: Edusp, 1999, p. 241-318.
16. Entre os mitos geográficos mais famosos e duradouros do Brasil, está o mito da Ilha-Brasil
que esteve diretamente ligado com a definição das fronteiras entre Espanha e Portugal na América.
CORTESÃO, J. História do Brasil nos velhos mapas, p.115-160; HOLANDA, Sérgio B. Um mito
geopolítico: a Ilha Brasil. In: Tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 61-84;
KANTOR, Iris. Usos diplomáticos da Ilha-Brasil: polêmicas cartográficas e historiográficas. In:
Varia História: Belo Horizonte. v.23. n.37. p. 70-80, 2007.
17. FURTADO, Júnia F. Oráculos da Geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste
Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil, p. 152.
18. MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste (1641-
1669). São Paulo: Cia. das Letras, 2010; BOXER, C. Salvador Correa de Sá e a luta por Angola, 1602-
1686. São Paulo: Cia. Editora Nacional, Editora da Universidade de São Paulo, 1973; MONTEIRO,
Nuno Gonçalo. A Guerra no império. In: RAMOS, Rui (coord.), SOUSA, Bernardo e V. e
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História de Portugal, p. 316-322.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas

[66]

o geógrafo francês, Delisle, publicou sobre a posição dos meridianos, que interferiu
diretamente no posicionamento das conquistas portuguesas e espanholas19. Vejamos.
As notícias das descobertas de ouro, por volta de 1696, e dos diamantes, em
1729, foram recebidas com alívio e, ao mesmo tempo, apreensão no reino20. Todavia
marcaram a ascensão de Portugal na Europa pela opulência e pelo fausto das rique-
zas coloniais.

Em Portugal, os Setecentos foram marcados pelo esplendor das rique-


zas oriundas das minas brasileiras. Se Luís XIV foi o Rei-Sol, dom
João V foi o Imperador-Sol, pois o ouro brasileiro fez resplandecer
seu império transoceânico. (...) Em Lisboa, a descoberta das tão alme-
jadas gemas foi motivo de festa e procissões que mobilizaram o povo
português. Felicitações chegavam de toda a Europa21.

O que antes era o incógnito sertão recebeu um verdadeiro rush de aventureiros


de toda sorte. Rapidamente o interior do Brasil, antes espaço do maravilhoso, das
lendas, dos índios ou mesmo do vazio22, se tornou importante para a sobrevivên-
cia do Império português. Era urgente a necessidade de traduzir aquela extensão
territorial em mapas, para auxiliar a Coroa no processo de implantação de uma
administração racional e eficaz. “Ou seja, era necessário organizar espacialmente
o Brasil de uma forma lógica, o que não era possível fazer-se sem possuir mapas
detalhados”23.
A necessidade de conhecer e confirmar a posse das terras na América, que inun-
davam Portugal de ouro e pedras brilhantes, ficou ainda mais latente durante os
conflitos da Guerra de Sucessão Espanhola. O conflito europeu se estendeu para
as colônias, tendo claros reflexos nas bandas setentrional e austral do Brasil24.

19. Cf. FURTADO, Júnia F. Paris 1720-1740. In: Oráculos da Geografia iluminista: Dom Luís da
Cunha e Jean Baptiste Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil, p. 301-351.
20. ROMEIRO, Adriana. O negócio das Minas. In: Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias,
práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, p. 35-80, esp.
30-39.
21. FURTADO, Júnia F. Chica da Silva e o contratador dos diamantes, p.28.
22. FURTADO, Júnia F. O paraíso e seus mitos. In: O mapa que inventou o Brasil. São Paulo/Rio de
Janeiro: Odebrecht/Versal, 2013, p.244-285; DELVAUX, Marcelo Motta. As Minas imaginárias: o
maravilhoso geográfico nas representações sobre o sertão da América Portuguesa — séculos XVI a
XIX, p. 71-132.
23. ALMEIDA, L.F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América portuguesa,
p.80.
24. GUEDES, Max Justo. Os limites territoriais do Brasil a norte e nordeste. In: ALBUQUERQUE,
Luis de (org.). In: Portugal no mundo. Lisboa: Publicações Alfa, 1989, v.5, p. 202-22.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas

[67]

Portanto era essencial salvaguardar de invasões as fronteiras brasileiras para evi-


tar que o interior, repleto de riquezas, fosse tomado. Tal constatação ficou ainda
mais evidente durante as negociações do Tratado de Utrecht. Sofrendo com a falta
de informações sobre a região amazônica, principalmente pela ausência de mapas,
os diplomatas portugueses se desdobraram para anular os argumentos franceses e
assegurar a navegação exclusiva do rio Amazonas, confirmando, assim, a fronteira
entre as colônias no rio Oiapoque25. As negociações ficaram ainda mais difíceis
quando o assunto girou em torno da Colônia do Sacramento. Nesse caso, os mapas
tornaram-se ainda mais importantes, na medida em que constituiriam a fonte de
legitimidade necessária para os portugueses na mesa de negociação. “Para tanto, o
conhecimento geográfico deveria ser aprimorado e expresso numa cartografia mais
aperfeiçoada, que representasse particularmente as regiões consideradas mais sensí-
veis e estratégicas para a coroa”26.
O projeto de incentivar e revigorar a produção cartográfica portuguesa já era
latente quando Guillaume Delisle27 apresentou um novo trabalho para a Academia
Real das Ciências de Paris. Para piorar a situação portuguesa, Delisle contestava,
com informações científicas — pois utilizou as recentes medidas de longitudes a
partir dos eclipses dos satélites de Júpiter —, a posição da linha demarcatória do
Tratado de Tordesilhas28. De acordo com a Détermination géographique de la situa-
tion et de l’étendue des différente parties de la Terre29, as áreas de pretensão fran-
cesa no Cabo Norte situavam-se foram da linha de Tordesilhas, portanto estavam
indevidamente em posse dos portugueses. A mesma situação ocorria, ao sul, em
relação à Colônia do Sacramento. “Seu impacto foi muito além das paredes da ins-
tituição, transformando, a partir de então, toda a arte da cartografia, pois provocou
uma reorientação das terras pelo globo”30. Foi mais um golpe fatal às conquistas

25. Ver em: ALMEIDA, L. F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América
portuguesa, p. 47-66; FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista: dom Luís da Cunha e
Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil, p. 239-504.
26. FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista, p. 241.
27. Guillaume Delisle (1675-1726) foi um renomado cartógrafo francês, além de membro da
Academia Real de Ciências de Paris, foi escolhido como Primeiro Geógrafo do Rei em 1718. Era
um típico geógrafo de gabinete que contava com o mecenato real para a produção de seus mapas.
DAWSON, Nelson Martin. L’atelier Delisle: l’Amérique du nord sur la table à dessin. Sillery, Quèbec:
Editions du Septentrion, 2000; PELLETIER, Monique. Cartographie de la France et du monde de la
Renaissance au siècle des lumiéres. Paris: Bibliotèque Nationale de France, 2001.
28. Ver em: FURTADO, J. Oráculos da geografia iluminista, p. 304-311.
29. DELISLE, M. Determination geographique de la situation et de l’etendue des diferentes parties
de la terre. Des Sciences. Paris: Academie des Sciences de Paris, 1722. p. 365-384.
30. FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista, p. 304.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas

[68]

portuguesas pelo globo, pois, assim como o Mares Liberum, de Hugo Grotius
(1609), o trabalho de Delisle jogava por terra os limites impostos pelo Tratado de
Tordesilhas ao avanço das demais potências europeias em direção às suas colônias.
Diante dos fatos, Dom Luís da Cunha ressaltou a importância de concentrar esfor-
ços no desenvolvimento científico da cartografia em Portugal e no levantamento da
geografia do Brasil, e defendeu que era essencial fazer “observações astronômicas
recentes, uma vez que sem elas não era possível contestar a opinião de um geógrafo
consagrado como Delisle”31.
Diante de todos esses fatores, Dom João V deu início a uma verdadeira febre
cartográfica, já que a produção de mapas tornou-se prioridade para a manutenção
do Império português32. No reino, Manoel de Azevedo Fortes33, engenheiro-mor, foi
o grande responsável pela reforma e incentivo ao ensino da engenharia-militar.

Os tratados publicados por Azevedo Fortes foram o resultado con-


creto do impulso de renascimento da ciência do desenho geográfico
promovido por D. João V e basicamente são uma síntese dos con-
gêneres (...). A novidade dos seus tratados residiu na didática com
que expôs o método mais prático de proceder aos levantamentos de
campo e à maneira de transpô-los para o papel, fruto da sua experiên-
cia pessoas e da síntese dos manuais franceses.34

Em outra frente de trabalho, Dom João V foi buscar na Itália dois estudiosos
jesuítas. Seu objetivo era que eles trabalhassem, em conjunto com jesuítas portu-
gueses, no projeto do Novo Atlas da América portuguesa35. Assim os padres João

31. ALMEIDA, L. F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América portuguesa,
p. 68.
32. BUENO, Beatriz P. S. Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822), p.
101-37.
33. Manuel de Azevedo Fortes (1660-1749) teve sólida formação letrada e entrou em contato com
os tratados de matemática e engenharia que circulavam pela Europa, levou esse conhecimento para
Portugal onde teve importante atuação. Publicou os manuais: Tratado do modo o mais fácil e o mais
exacto de fazer as cartas geográficas assim na terra como no mar, e tirar as plantas das praças (1722)
e o Engenheiro português (1729) e iniciou o projeto de construção da grande carta topográfica de
Portugal. Ver em: BUENO, Beatriz P. S. Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares
(1500-1822), p. 101-37; RIBEIRO, Dulcyene Maria. A formação dos engenheiros militares: Azevedo
Fortes, Matemática e ensino da Engenharia Militar no século XVIII em Portugal e no Brasil. São
Paulo: USP, 2009. (Tese, doutoramento em Educação).
34. BUENO, Beatriz P. Decifrando mapas: sobre o conceito de ‘território’ e suas vinculações com a
cartografia, p. 207.
35. ALMEIDA, L. F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América portuguesa,
p. 73-142; BUENO, Beatriz P. S. Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822),
p. 311-17; COSTA, Antônio G. (Org.), RENGER, Friedrich E. FURTADO, Júnia F. SANTOS, Márcia
M D. Cartografia das Minas Gerais: da capitania à província, p. 139-45.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas

[69]

Baptista Carbone36 e Domingos Capassi37 foram contratados. Domingos Capassi e o


jesuíta português, Diogo Soares, seguiram para o Brasil com o objetivo de estabele-
cer o meridiano do Rio de Janeiro e, a partir dele, fazer o levantamento cartográfico
do Brasil.
Por essa mesma época, o monarca intensificou a formação de uma Biblioteca
Real e mandava comprar, em toda a Europa, instrumentos, livros, Atlas, estampas e
todo o tipo de material necessário ao desenvolvimento científico38.

A biblioteca real, no entanto, não era apenas um “lugar onde estão


muitos livros em estantes”. Ela se constituiu como um espaço irra-
diador do programa científico joanino, aberto às Luzes, caracterizado
pela renovação e abertura do conhecimento. (…) Desse ponto de vista,
pode-se dizer que a livraria régia era a consolidação de um projeto
científico mais amplo, de viés enciclopédico e iluminista39.

A instalação do observatório no Paço da Ribeira e a chegada dos padres mate-


máticos intensificaram ainda mais o trabalho dos diplomatas responsáveis pela
compra e envio dos instrumentos matemáticos, necessários para realizar o levanta-
mento cartográfico do Reino e do Brasil40.

Para demonstrar publicamente a importância que o monarca dedi-


cava ao conhecimento e à cultura das Luzes, bem como para equipar
a elite pensante portuguesa com os livros, estampas, gravuras e mapas
necessários à sua formação, dom João V organizou volumosas biblio-
tecas e ampliou outras já existentes, com vistas à modernização e o
progresso do reino. (...) Essas livrarias deveriam ostentar as obras
clássicas, mas também o que de melhor e mais novo estivesse sendo
produzido tanto em Portugal quanto no exterior41.

36. João Baptista Carbone (1694-1750). Entrou para a Companhia de Jesus em 1709 onde teve sólida
formação letrada. Natural da Itália veio para Portugal em 1722, onde permaneceu até sua morte.
Realizou diversos trabalhos de observação, foi nomeado matemático régio, reitor do Colégio de
Santo Antão e conselheiro de Dom João V.
37. Domingos Capassi (1694-1736). Entrou para a companhia de Jesus em 1710, atuou como
professor em Nápoles, sua terra natal, e veio para Portugal junto com Carbone. Foi enviado para a
missão no Brasil em 1729, ao lado do padre português Diogo Soares.
38. Sobre a biblioteca de Dom João V ver em: FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista,
p.211-238 e FURTADO, Júnia F. Bosque de Minerva. In: O mapa que inventou o Brasil, p. 94-130.
39. FURTADO, Júnia F. O mapa que inventou o Brasil, p. 96.
40. ______. O mapa que inventou o Brasil, p. 105-19.
41. ______. Oráculos da geografia iluminista, p. 211-2.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas

[70]

Em 1729, Domingos Capassi partiu para o Brasil com Diogo Soares42. Os dois
deveriam seguir as vastas instruções do Rei43, que também foram encaminhadas ao
vice-rei do Brasil, Vasco Fernandes César de Meneses, com o objetivo de repassá-las
aos governadores das Capitanias. Na chegada ao Rio de Janeiro, o primeiro traba-
lho foi o de medição do meridiano do Rio de Janeiro, que serviu de base para todos
os mapas construídos a seguir. Com os insistentes pedidos dos governadores do Rio
de Janeiro e da Colônia do Sacramento, os padres se dirigiram para o extremo Sul
do Brasil, onde fizeram diversas cartas e plantas de fortificações militares com o
intuito de fornecer dados para guarnições militares da região. Dali seguiram para
outra Capitania crítica, as Minas Gerais, onde fizeram medições e mapas principal-
mente do eixo minerador44. Capassi morreu de febres malignas, em 1736. Soares,
sozinho, continuou na hercúlea tarefa até falecer, em 1748, na Capitania de Goiás.

Os objetivos da missão dos jesuítas ficavam agora verdadeiramente


explicitados: os mapas do Brasil eram necessários, não apenas por
razões de segurança, devido ao conflito latente com a Espanha e aos
potenciais interesses de outras nações estrangeiras, mas também para
permitir uma melhor exploração dos recursos do território e a sua
administração mais eficaz45.

O trabalho dos padres foi importantíssimo para o conhecimento da geogra-


fia do interior, principalmente das áreas críticas do Sul e do interior minerador. A
preocupação de construir mapas precisos sobre o Brasil era enorme, pois os diplo-
matas portugueses sabiam que uma grande rodada de definições de fronteiras entre
Portugal e Espanha na América estava próxima de acontecer e, para isso, deveriam
estar bem preparados.
O incentivo joanino à cartografia representou a mudança do domínio da arte de
fazer mapas dos cosmógrafos (geógrafos de gabinete) para os engenheiros-militares.
O objetivo dos cartógrafos era produzir mapas com base científica, ou seja, que

42. Diogo Soares (1684-1748), jesuíta, foi professor de Humanidades e Filosofia na Universidade de
Évora e de matemática no Colégio de Santo Antão.
43. O decreto de nomeação dos padres de 19 de outubro de 1729 e a provisão real com as instruções,
de 18 de novembro de 1729 foram publicados por Jaime Cortesão em História do Brasil nos
Velhos Mapas, tomo II, p.213-216. Segundo Luís Ferrand de Almeida estes documentos estão,
respectivamente, no AHU, Docs. Avulsos, Bahia, 1729 e em AHU, Docs. Avulsos, Rio de Janeiro,
1729.
44. COSTA, Antônio G. (org.), RENGER, Friedrich E. FURTADO, Júnia F. SANTOS, Márcia M D.
Cartografia da conquista do território das Minas, p. 139-45.
45. ALMEIDA, L. F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América portuguesa,
p. 104.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas

[71]

fossem retratos fiéis e fidedignos da realidade. Dessa forma, poderiam ser utilizados
pelo Estado como instrumentos diretos, norteando sua ação.
Durante o século XVIII, a geografia de gabinete passou a depender cada vez
mais dos levantamentos topográficos realizados pelos engenheiros-militares, basea-
dos em novas técnicas e instrumentos matemáticos mais precisos. A partir da
segunda metade desse século, a geografia de gabinete entrou em decadência com
a crescente importância dos mapas construídos a partir de medições topográficas
in loco. O conhecimento de campo ocupava, lentamente, o lugar do conhecimento
do gabinete46.

Terra Brasilis. Atlas Miller, Lopo Homem, Reineis, 1519.

46. FURTADO, Júnia Ferreira. Oráculos da geografia iluminista, p. 176-177.


Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas

[72]

Planisfério de Cantino, 1502

Sextans Astronomicus pro Distantiis Rimandis. J. Blaeu, 1664.


Mateus Freitas Ribeiro Frizzone
Graduado em História pela UFMG

Os presos, os carcereiros e as
péssimas condições da cadeia
velha de Vila Rica (1734)

O sistema punitivo e, principalmente, o sistema prisional brasileiro atual são


motivos de calorosas discussões. A contemporânea ideia de punição através da res-
trição da liberdade, que ainda prevalece — apesar de constantemente rediscutida
— mostra-se cada vez mais esgotada. Os debates em pauta nos dias de hoje fomen-
tam a curiosidade sobre o passado. Então, busca-se, neste texto, discutir as cadeias
num período em que não eram as principais peças do sistema punitivo e em um
espaço distante do centro emanador de justiça — o rei —, em que tais prédios eram
utilizados tanto como símbolo do poder real quanto das peripécias dos poderes
locais. Destacam-se aqui as constantes reclamações sobre a precariedade das cadeias
nas comunicações político administrativas das câmaras. Liana Reis afirma que, no
século XVIII, na fundação das primeiras vilas da Capitania de Minas Gerais “as
cadeias públicas parece terem constituído mais um problema para as autoridades
coloniais”1.
Para tentar situar as cadeias na América Portuguesa é preciso entender duas
características importantes do Antigo Regime no que toca à justiça e à punição. Em
primeiro lugar, a justiça era tida como o maior atributo do governo, acreditava-se
que a aplicação imparcial da lei pelo soberano junto com a honestidade nos deveres
públicos implicaria no bem estar e no progresso do reino, caso contrário haveria

1. REIS, Liana Maria. Crimes e escravos na capitania de todos os negros (Minas Gerais, 1720 -1800).
São Paulo: Editora HUCITEC, 2008. p. 99.
Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da cadeia velha de Vila Rica (1734)

[74]

punição pela justiça divina. Portanto, a função primeira do monarca era a aplicação
Justiça, sendo ela equivalente à manutenção da ordem, o conhecimento e reconheci-
mento do justo de cada situação,

À justiça correspondia à possibilidade que cada coisa tinha para rea-


lizar os fins para que fora criada (sufficientia corporalim bonorum) e,
por outro, o respeito que cada coisa devia ter pelas criaturas que lhe
eram vizinhas, não pretendendo mais do que lhe era devido2.

Em segundo, diferentemente da ideia contemporânea de punição individual, vol-


tada para a reinserção do infrator na sociedade e baseada, sobretudo, na restrição
da liberdade, a punição no Antigo Regime era corporal e pública, espetacularizada.
A anunciação e a execução pública de penas como açoites, mutilação ou corte das
mãos, língua, queimadura com tenazes ardentes, capela de chifre na cabeça, polaina
ou enxaravia vermelha na cabeça e algumas das diversas formas de morte faziam
parte de uma lógica de coerção e de purificação do corpo — que deveria sofrer para
expurgar os crimes. Além disso, multas, confiscos, trabalho forçado e degredos eram
outras penas recorrentes no Livro V das Ordenações Filipinas3, “trata-se de uma
sociedade que ao mesmo tempo trata o corpo e exila”4.
Considerando a punição parte significativa na atribuição real de ser justo e
aplicar a justiça corretamente e sendo ela — a punição — intrínseca ao poder do
soberano, é possível apontá-la como eficiente meio de afirmação desse poder. Como
escreve Silvia Lara, “Punir, controlar os comportamentos e instituir uma ordem
social, castigar as violações a essa ordem e afirmar o poder do soberano constituíam
elementos inerentes ao poder real”5. A punição funcionava como forma de coagir os
súditos, conquistando o respeito através do temor ao rei, muito mais do que punir,
o espetáculo serve como exemplo.
No entanto, com penas tão cruéis e a pena de morte prevista tantas vezes, conta-
-se que ao ler o Livro V, Frederico o Grande da Prússia havia perguntado se ainda

2. XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer” — Razões da política no Portugal
seiscentista. Lisboa: Edições Colibri, 1998. p. 124.
3. As Ordenações Filipinas são divididas em cinco livros, sendo o último deles (Livro V) totalmente
dedicado ao direito penal. Ele vigorou na América Portuguesa e posteriormente no Brasil entre
1603 e 1830 sendo o que teve menor duração de todos os cinco por ser considerado “bárbaro” e
“monstruoso”.
4. MOTTA, Manuel Barros da. Crítica da Razão Punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 14.
5. LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: Livro V. São Paulo, SP: Companhia Das Letras,
1999, p. 21.
Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da cadeia velha de Vila Rica (1734)

[75]

havia gente viva em Portugal6. Portanto, o cumprimento à risca dessas leis poderia
gerar diversos problemas, desde questões de viabilização da execução até possíveis
revoltas contra os excessos reais. Além do esvaziamento populacional pelas mortes
e degredos, a incapacitação das mãos trabalhadoras, afinal, era aos peões que se
destinavam às penas mais cruéis, ao mesmo tempo, também eram eles indispensá-
veis em uma sociedade em que o trabalho manual era desonroso. A pena de degredo
ainda acarretava em possíveis meses de espera por uma embarcação que fosse ao
destino desejado, ficando o condenado nas geralmente precárias cadeias7.
É possível considerar, então, que o rei consistia em um dispensador de uma
justiça virtual, muito mais do que da justiça quotidiana, esta última baseava-se em
mecanismos mais periféricos: família, Igreja, pequena comunidade — o que não
retira a importância e nem esvazia a centralidade do rei. Era preciso agir na tênue
linha do reconhecimento do seu poder pela força, mas também por sua magnanimi-
dade. “À justiça real bastava intervir o suficiente para ser lembrar a todos que, lá no
alto, meio adormecida, mas sempre latente, estava a suprema punitiva potestas do
rei”8. Como aquele que deve manter a ordem na casa, castigar e afagar, ser temido
e amado, senhor da justiça e mediador da graça, o monarca aproxima-se ao papel
do pai.
Portanto, leis tão severas e punições tão “bárbaras” e “monstruosas”, como
eram descritas por alguns, faziam parte de um sistema equilibrado em que, como
afirma Hespanha:

o segredo da específica eficácia do sistema penal do Antigo regime


estava justamente nesta ‘inconsequência’ de ameaçar sem cumprir. De
se fazer temer, ameaçando; de se fazer amar, não cumprindo. Ora,
para que este duplo efeito se produza, é preciso que a ameaça se man-
tenha e que a sua não concretização resulte da apreciação concreta e
particular de cada caso, da benevolência e compaixão suscitadas ao
aplicar a norma geral a uma pessoa em particular9.

6. HESPANHA, A. M. Da “Iustitia” à “Disciplina” textos, poder e política penal no Antigo Regime.


In: HESPANHA, A. M. (org.). Justiça e Litigiosidade — História e Prospectiva. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1993, p. 299.
7. As cadeias, comumente, ficavam no mesmo prédio que a Câmara, mas no primeiro andar, sendo
uns dos maiores prédios das vilas e ocupando locais centrais das mesmas.
8. HESPANHA, A. M. Da “Iustitia” à “Disciplina”, p. 318.
9. ______. Da “Iustitia” à “Disciplina”, p. 311.
Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da cadeia velha de Vila Rica (1734)

[76]

Muito além de ser um local da Justiça Real, ou um simples depósito de condena-


dos à espera do cumprimento da pena — seja ela o trabalho forçado10, ou o degredo
— ou de escravos fugidos “aguardando o resgate” de seus proprietários, as cadeias
funcionavam também como ferramenta do poder local. Eram parte importante des-
ses mecanismos quotidianos de fazer justiça, distantes do rei e de sua lei. Nelas esta-
vam, geralmente, pretos, brancos, homens, mulheres, homens bons e aventureiros. O
respeito às hierarquias sociais, marcante na justiça do Antigo Regime, a priori, tam-
bém estava presente nas prisões, os criminosos comuns eram destinados às cadeias
das câmaras, os presos do bispo iam para o aljube e os presos do rei para as cadeias
do rei. Porém, quando havia apenas uma cadeia na vila, o que não era raro, todos
os prisioneiros iam para o mesmo prédio11.
Voltemo-nos agora para Vila Rica, em 1734, mais especificamente para a cadeia
velha. A única cadeia de uma das vilas mais importantes do Império Português
estava povoada de homens e mulheres de todas as qualidades, que se dividiam
em enxovias separadas, uma para brancos, uma pra mulheres e outra para negros,
todas em péssimas condições. Já de antemão, é importante saber que a dita cadeia
era alvo de controvérsias, sobretudo por sua fragilidade física. Aqui serão discutidos
os três documentos que foram trabalhados na Oficina de Paleografia — UFMG, e
que estão intimamente relacionados a essa precariedade do prédio, além disso, ao
trabalho do carcereiro e sua relação com presos e camarários e à assistência, sobre-
tudo médica, aos presos.
Em representação ao Ouvidor da Comarca12, o Senado da Câmara de Vila Rica
reclama da dificuldade de conseguir carcereiros, principalmente pela falta de segu-
rança da cadeia e pelas constantes fugas de presos. Os carcereiros eram nomeados
por designação dos vereadores e juízes ordinários, mas nem sempre estavam de
acordo com as exigências do cargo, e como na dita representação se diz: “[...]por
esta Razaõ nomeavamos a Joao Correa Madris que como Seja unico que que[ria]
servir”13.

10. O trabalho forçado também era conhecido como pena de galés. As galés eram uma embarcação
muito utilizada no Mediterrâneo desde a Antiguidade Clássica, utilizadas em Portugal entre os
séculos XIII e XVII. Eram embarcações a remo, que, normalmente, utilizavam criminosos
como remadores. Mesmo após entrarem em desuso, o nome da pena para trabalho forçado
(independentemente do trabalho, geralmente trabalhos para o setor públicos) se manteve como
“galé”. Também era a denominação dos condenados a essa pena.
11. SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de
Janeiro: Graal, 1986. p. 118.
12. APM CMOP Cx. 07 Doc. 05.
13. Trechos de documentos transcritos neste texto seguem as Normas Técnicas para Edição e
Transcrição de Documentos Manuscritos (1993).
Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da cadeia velha de Vila Rica (1734)

[77]

Ligados a patamares mais altos da hierarquia administrativa local, já que eram


indicados e, ao mesmo tempo, próximos aos presos pelo convívio diário e por serem
alguns dos funcionários menos graduados dessa administração, esses indivíduos
transitavam entre ambos os grupos, administradores e presos14. Muitas vezes se
envolviam em episódios de corrupção, liberação de presos e outros crimes, atos
compreendidos por algumas autoridades da época como relacionados à proximi-
dade diária com os transgressores. Liana Reis aponta para inúmeras peripécias em
que se envolviam os carcereiros, como usufruir dos serviços de cativos presos em
benefício próprio, e destaca um alvará régio de 1758 que impõe aos carcereiros
envolvidos em determinadas falcatruas, suspensões e até a privação do ofício e a
inabilitação para quaisquer outros serviços de Fazenda ou da Justiça15.
Todavia os carcereiros, responsáveis pelo cuidado e manutenção dos presos
comuns, eram, também, autores de muitas reclamações e pedidos de obras e de
outras melhorias nas cadeias destinados às Câmaras. Como exemplo temos a peti-
ção do próprio João Madris16, na qual solicita ao governador a nomeação de um
médico ou cirurgião para tratar os presos da cadeia porque

estão os prezos que Seachaõ na Cadeya della [da Vila] experimen-


tando muita mizeria, por que a Sua pobreza lhe deficulta os Meyos
da aSistencia de Serurgiaõ ou medico, vendosse em maior dezemparo,
a multidaõ de negros, que Seachão nesta cadeya: e Como os beñs do
conselho devão aplicarce para as vtelidades publicas.

Segundo Madris, em todas as vilas e cidades existem médicos ou cirurgiões


providos pela câmara para o “bom regimem do bem publico e remedio dos pobres”.
Dessa forma, não se pode pintá-los apenas como corruptos e degenerados, em
diversos casos fizeram pedidos que claramente visavam melhorar suas condições de
trabalho, e também de permanência dos encarcerados. Acrescenta-se aqui que os
carcereiros nem sempre eram pagos, muitas vezes tinham outras funções dentro da
própria câmara.

A principal reclamação [dos carcereiros, feitas ao Senado da Câmara


do Rio de Janeiro] era a falta de pagamento e o pretenso caráter
provisório do exercício da função que se tornava definitivo, pois as

14. Lembrando que estavam nas cadeias homens de diversos grupos (de escravos a clérigos),
entretanto a maioria esmagadora era de homens pobres, sobretudo negros.
15. REIS, Liana. Crimes e escravos. p. 100-101.
16. APM CMOP Cx. 07 Doc. 25.
Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da cadeia velha de Vila Rica (1734)

[78]

autoridades não destacavam outros carcereiros para assumir a admi-


nistração das cadeias17.

O terceiro documento trabalhado é um requerimento de José da Silva18 solici-


tando liberdade, pois alega estar sendo injustiçado, atesta ser inocente e não tem
quem o sustente na cadeia. Os homens livres eram responsáveis pelo seu sustento
enquanto presos, em alguns casos as Santas Casas de Misericórdia ajudavam nesse
sustento e em muitas cadeias — talvez as que mais se aproximavam de um tipo ideal
— as grades eram voltadas para a rua, para que, além do efeito exemplar destinado
aos transeuntes, os presos pudessem pedir esmolas para o seu sustento. Ainda assim
as perspectivas de sobrevivência por muito tempo nos cárceres não eram muito
grandes.
Considerando que Vila Rica era um dos principais centros econômicos da
América Portuguesa no século XVIII e, portanto, deveria ter — mas não tinha — uma
cadeia minimamente segura não é improvável que a situação das cadeias no resto
do território fosse tão ruim, ou ainda pior. A não centralidade do encarceramento
no sistema punitivo e jogos políticos locais aparecem como caminhos importantes
para o entendimento dessa precariedade, mas decerto não são os únicos. Pensar as
cadeias, os carcereiros e os presos no Antigo Regime e, especialmente na América
Portuguesa, aponta ainda para um longo caminho de pesquisas e debates.

17. ARAÚJO, Carlos Eduardo M. de. Entre dois cativeiros: Escravidão urbana e sistema prisional
no Rio de Janeiro, 1790 — 1821. In: MAIA, Clarissa Nunes. NETO, Flávio de Sá. COSTA, Marcos.
BRETAS, Marcos Luiz. (org.). História das prisões no Brasil. Vol.1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p.
226.
18. APM CMOP Cx. 06 Doc. 06.
Documento
Requerimento de José da Silva solicitando liberdade. Disponível
no Arquivo Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de
Ouro Preto, CMOP Cx. 06 Doc. 06

Data
23 de janeiro de 1734

Resumo
Requerimento de José da Silva solicitando liberdade, pois alega
estar sendo injustiçado, pois atesta ser inocente e não tem
quem o sustente na cadeia. Documento digitalizado a partir do
microfilme. A caligrafia é tendencialmente humanística, com
pouca ou nenhuma presença de enlaces e ligaduras e existem
pouquíssimas abreviaturas.
[fl. 1]

< Visto Constar estar [p]or pecoas


fidedignas estar o Suplicante ignocente 1 Senhores Do Senado
na culpa que Refere o Alcaide
desta Villa o Solta pacandoselhe
para isso Alvara de Soltura pagando < pacousse Alva[rá]
as deligências aos officiaes. Villa Rica de Soltura >
em Camara
de 23 de janeiro
de 1734
[4 sinais públicos] >

2 Dis Jozeph da Silva morador no aRaal do Padre


3 faria que elle Suplicante Seacha prezo nesta Villa
4 a ordem Vossas Merces Sem que lhepareça ter Culpa al
5 gua esse Sim foj prezo Jnocente pois a mesma
6 pobreza em que viue a desculpa para naõ ter Lugar
7 de agracear a paçoa algua Coanto mais as ordêns
8 ou despachos de Vossas Merces quanto que[?].

9 Pede a Vossas Merces Sejaõ Servidos man


10 dallo Soltar pois não tem que gas
11 tar e menos quem oSustente
12 na Cadea

13 Espera Real Mercê


Documento
Representação da Câmara de Villa Rica informando a
dificuldade em conseguir carcereiros. Disponível no Arquivo
Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de Ouro Preto,
CMOP Cx. 07 Doc. 05

Data
31 de julho de 1734

Resumo
Representação da Câmara de Villa Rica informando a
dificuldade em conseguir carcereiros, devido a fuga de presos e
a falta de segurança da cadeia. Documento digitalizado a partir
do microfilme, com pequenas perdas no suporte. A caligrafia é
tendencialmente humanística, com pouca ou nenhuma presença
de enlaces e ligaduras e existem pouquíssimas abreviaturas.
[fl.1]

1 Por Reprezentacaõ que fes a Este Senado Antonio Ferreira


2 de que Seachava prezo a ordem de Vossa Mercê por cujo Motivo
3 naõ Estava apto para Exercer o dito Offício de Carcereiro E
4 nos pedia fizecemos Escolha se dava[?] que nomeava para [es]
5 ta Serventia cujas pecoas abonavaõ os fiadores A[tonio]
6 da Torre E Ventura da Costa por esta Razaõ nomeava
7 mos a Joao Correa Madris que como Seja unico que que[ria]
8 servir e assim os fiadores abonaõ justamente comviem nell[e]

9 Nenhuma obrigaçaõ tem Este Senado para Resp[onder]


10 pella fugida dos prezos aSsim pella graduaçaõ deste tri[bu]
11 nal como também por competir Esta deligêcia aos carcereiros
12 E quando estes achaõ pouca Seguranca na Cadea Recor[rem]
13 aos Menistros para que os mandem segurar cuja
14 deligencia pode Vossa Mercê fazer quando entender he percis[o]
15 o lho Requererem Desembargo a Vossa Mercê Villa Rica em Camara de
16 31 de Julho de 1734

17 [Assinatura ilegível] Domingos Francisco dos Reys

18 Martinho Ribeiro Diaz Niculao[?] de Siqueira

19 Senhor Doutor Fernando Leite Lobo ouvidor


20 geral da Comarca
Documento
Petição do carcereiro de Villa Rica para que nomeie um médico
para presta assistência aos presos. Disponível no Arquivo
Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de Ouro Preto,
CMOP Cx. 07 Doc. 25

Data
31 de setembro de 1734.

Resumo
Petição do carcereiro da cadeia de Vila Rica, João Correia
Madris, ao Governador, Conde das Galveias, para que
nomeio um médico para prestar assistência aos presos.
Documento digitalizado a partir do microfilme. A caligrafia é
tendencialmente humanística, com pouca ou nenhuma presença
de enlaces e ligaduras e existem pouquíssimas abreviaturas.
[fl.1]

< O Senado da Camera veja


o que Se Expoem nesta petiçaõ e lhe
deffira comolhe parecer Justiça. Villa Rica 1Exelentíssimo Senhor
16 de Settembro de 1734

[sinal público] >

2 Reprezenta a Vossa Exelência o carcereiro da cadeya desta Villa


3 Joáo Correya Madris que avendo em todas as cidades e Villas Serurgions
4 e medicos justos pelas camaras para bom Regimen do bem publico e Remedio
5 dos pobres: Nesta Villa o náo hâ; por cujo Motivo estão os prezos que Seachaõ na
6 Cadeya della experimentando muita mizeria, por que a Sua pobreza lhe deficulta os
7 Meyos da aSistencia de Serurgiaõ ou medico, vendosse em maior dezemparo, a mul —
8 tidaõ de negros, que Seachão nesta cadeya: e Como os beñs do conselho devão a
9 plicarce para as vtelidades publicas, E o animo de Vossa Exelência Seja táo Pio
10 que todo Seemcaminha a dar providencia nas mais extremas nessecidades, Selhe
11 fas percizo expor a Vossa Exelência a justa carencia que hâ de que a camara Nomeé Serur
12 gião, que aSista aos doentes desta cadeya ordenando’o Vossa Exelência aSim por Ser
13 visso de Deos e esmolla aos pobrez

14 O Carcereiro João Correya Madrice


[fl. 1v]

1 Vista a justa Suplica do Carce


2 reiro despacho do Senhor Governador e Senado
3 Obra tão pia nomeamos ao Lecen
4 ciado Antonio Labidrene com cento e vinte e Seis
5 mil réis de Ordenado em cada hum anno cuja quantia
6 cobra dos bens do Conselho, Levandoo o corregedor
7 da Comarca em conta. Villa Rica em Camara de 9 de
8 Outubro de 1734

9 [5 sinais públicos]
Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva
Mestre em História pela UFMG

A censura literária em Portugal


no Período Pombalino 1

Em Portugal, o surgimento da prensa móvel no século XV e, consequentemente,


a maior circulação de informações, representou uma ameaça para o poder vigente,
tanto no que diz respeito à política, quanto em matérias religiosas. De acordo com
Maria Teresa Payan Martins:

A invenção da imprensa de caracteres móveis, multiplicando até


ao infinito a possibilidade de veicular informações, foi sentida em
Portugal, tal como no resto da Europa, como uma ameaça ao poder
instituído. O poder político, sempre em uma relação instável com o
poder intelectual, só a partir do século XVI sentiu a necessidade de
organizar oficialmente um aparelho de repressivo. Até a revolução
tipográfica, coube à Igreja, em nome da Religião e da salvação das
almas, exercer a compreensão ideológica.2

A organização do aparelho repressivo se deu ao longo do século XVI, sob a


influência da Reforma Católica, principalmente do Concílio de Trento, visando à
“aculturação do rebanho católico”, bem como à “repressão a tudo que cheirasse

1. O texto é parte da dissertação de mestrado intitulada No Caminho do Paradoxo: as contribuições de


Antônio Pereira de Figueiredo para o Reformismo Ilustrado, defendida pela autora no Departamento
de História da UFMG 2012, sob orientação do professor Luiz Carlos Villalta.
2. MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2005, p. 12.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino

[94]

à heresia”3. Em 1515, o decreto V do Concílio de Latrão determinou a censura


prévia de todos os livros e, dois anos depois, o Ordinário — juízes eclesiásticos
ligados às dioceses — assumiu a função de controlar as práticas de leitura. O Santo
Ofício, criado em 1536, também se tornou responsável pelo exame de livros. Dessa
forma, a tarefa esteve nas mãos da Igreja até 1576, quando o alvará assinado por D.
Sebastião encarregou o Desembargo do Paço de representar o Estado na censura de
livros. Assim, foi instituído o sistema tríplice de censura, no qual os livros passavam
pelo crivo dos membros dos três órgãos supracitados e necessitavam de três licenças
para circular. Nesse modelo, a Igreja detinha o controle sobre a circulação de livros,
uma vez que o Santo Ofício e o Ordinário estavam sob sua jurisdição e apenas o
Desembargo do Paço representava o poder régio4.
A primazia dos clérigos no controle sobre as práticas de leitura não significou
um abandono das questões políticas. Em muitos casos, “heresia e contestação de
ordem política se misturavam numa mesma obra, com que a censura, primordial-
mente religiosa, assumiu um conteúdo político”5. Assim, o modelo tríplice represen-
tava a intervenção da Igreja em questões de cunho civil. Mais de dois séculos depois,
o reformismo pombalino buscou centralizar e secularizar a censura. Pombal

desenvolveu uma ofensiva absolutista, regalista e reformista, atacando


tudo o que ameaçava a preeminência do trono e que entendia ser obs-
táculo à modernização que almejava. A domesticação da Inquisição,
a subordinação da nobreza, as reformas econômicas, sociais e edu-
cacionais, o combate aos jesuítas e o ataque às teorias corporativas
de poder foram episódios interligados dessa ofensiva, assim como a
criação da Real Mesa Censória. A existência desses alvos e o caráter
interligado dos mesmos encontram-se por demais evidentes na docu-
mentação relativa ao novo tribunal censório. 6

A partir da análise de Luiz Carlos Villalta, é possível verificar que a criação da


Real Mesa Censória, em 1768, correlacionou-se aos princípios que guiaram o refor-
mismo ilustrado português, dentre eles o objetivo de reduzir o poder dos clérigos no
que diz respeito às questões do Estado. Isso não quer dizer que os critérios religio-
sos para proibição foram deixados em segundo plano, mas que o Estado passou a
definir quais seriam os critérios adotados para o controle dos livros em Portugal e

3. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na
América Portuguesa. Tese (Doutorado em História) São Paulo: FFLCH-USP, 1999, p. 148.
4. MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII,
p. 13-14.
5. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura:, p. 149.
6. ______. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura, p. 154.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino

[95]

seus domínios. Além disso, a substituição do modelo tríplice buscou coibir, de forma
definitiva, a circulação de obras de autoria de jesuítas no reino português. De acordo
com Maria Adelaide Salvador Marques, a lei que funda a Real Mesa Censória apre-
sentou uma série de razões para a secularização da censura. A principal delas diz
respeito à ineficácia do modelo tripartido. A autora também destaca a importância
de se convencer a elite culta — profundamente influenciada pelo estrangeiro e pelas
ideias esclarecidas. Para esse grupo, a criação da Real Mesa representou a moderni-
zação da cultura, que aproximaria Portugal dos países do centro da Europa7.
De fato, a lei de 5 de abril de 1768 traz uma série de motivos para a redefinição
da censura em Portugal. A princípio, o documento defende o direito do monarca
de controlar a censura de livros, indo ao encontro das teorias regalistas preconi-
zadas pelo reformismo pombalino. O texto revela também o caráter anti-jesuítico
do pombalismo, ao afirmar que os membros da Companhia de Jesus “conseguiram
com as suas costumadas intrigas confundirem a inspeção de Livros, e Papeis entre o
Ordinario, entre o Santo Officio, e entre a Meza do Desembargo do Paço”. Segundo
a lei, os inacianos também impediram a circulação de obras de “famosos ilumina-
dos, e pios Auctores”, que foram substituídas por “Livros perniciosos” escritos pelos
próprios jesuítas. Outro argumento — e talvez o principal deles — para a criação da
Real Mesa é a impotência da censura compartilhada por três tribunais. A nomeação
de “censores externos” para exame dos livros é a prova final do não funcionamento
do modelo vigente até então, pois mostraria o despreparo dos censores e falta de
critérios nas decisões tomadas pela censura tríplice. Por fim, o documento trata
das críticas feitas pelas “Naçõens mais polidas, e cultas da Europa” ao Tribunal da
Inquisição. Esse ponto revela a vontade de alinhar Portugal com os países europeus
mais modernos8. Nas palavras de Maria Adelaide:

Vê-se que a lei [de 5 de abril], apesar das considerações iniciais acerca
da Autoridade Régia e a separação da Igreja, apresenta como verda-
deiros motivos para a remodelação da Censura o pouco rigor com
que esta era praticada, por motivo da separação em três tribunais:
visava igualmente à quebra da patente influência jesuítica, prejudicial
ao desenvolvimento cultural do país e contrária à boa “impressão”
que as outras Nações poderiam ter de Portugal. Foram assim apresen-
tadas razões essencialmente culturais e em parte religiosas.9

7. MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a cultura nacional. Coimbra:
Universidade de Coimbra, [s. d.], p. 24-29.
8. BASTOS, José Timóteo da Silva. História da Censura Intelectual em Portugal: ensaio sobre a
compressão do pensamento português. Lisboa: Moraes Editores, 1983. p. 69-72.
9. MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a cultura nacional, p. 24-25.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino

[96]

O surgimento da Real Mesa Censória representou uma tomada de controle da


censura por parte da monarquia lusitana, mas também a tentativa de otimização da
eficácia dos setores administrativos da Coroa. Com a centralização da censura em
um único órgão, acreditava-se que o processo de avaliação poderia se tornar mais
rápido e eficaz. Nessa tentativa, definiram-se, no Regimento da Real Mesa Censória,
dezessete regras que deveriam ser observadas no exame de livros. Analisando breve-
mente essas regras, podemos notar que: sete tratam das obras contrárias à religião;
seis, dos livros que se opõem à monarquia portuguesa; três, referem-se à cultura
de um modo geral; e duas preocupam-se com as questões morais. Todavia, é difícil
separar esses critérios em categorias bem definidas, uma vez que eles estiveram pro-
fundamente relacionados no contexto político da época. Em resumo, a Real Mesa
Censória deveria se ater a todos os livros que pudessem ir de encontro aos costumes,
à política e à religião. O órgão também deveria representar os interesses do Estado
no que concerne a esses assuntos, seguindo definições alinhadas com as políticas
reformistas.
Prova disso é a criação de um novo Índex Expurgatório. De acordo com o regi-
mento da Real Mesa, a concepção do novo índice se amparava em diversos motivos:

A falta que nos Meus Reinos ha de hum Index Expurgatório impar-


cial, e iluminado, que determine os Livros, que devem ser proibidos; a
necessidade delle para tranquilizar as consciencias dos Meus Vassalos;
o muito que a nossa Santa Fé, e o Estado Político, e Civil interessarão
no facil, e exacto conhecimento dos Livros perniciosos, os exemplos
dos Principes Christãos mais zelosos da Doutrina Evangelica, que
com grande desvélo mandarão formar semelhantes Indices para o
Governo dos seus Povos; e a estreita obrigação que Me incube de
imita-los em hum ponto de tanta importancia para o bem Espiritual
e Temporal dos Meus Reinos; não podião deixar de excitar em Mim
o mais serio cuidado.10

No entanto, o documento não mostra que o novo Índex “deixava de se con-


fundir com o proposto pelo Papa, pois a introdução do Índex pontifício no Reino
de Portugal e seus domínios ficou condicionada à concessão do beneplácito real”11.
Além disso, a partir de 1768, os índices emitidos pela cúria romana deveriam ser
submetidos à aprovação da monarquia12. Dessa forma, a elaboração de um Índex de
obras proibidas pela Real Mesa foi também uma forma de ampliar os poderes do rei

10. SILVA, Antônio Delgado da. Colleção da Legislaçao Portugueza: Legislação de 1763 a 1774.
Lisboa: Typografia Maigrense, 1829, p. 161.
11. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura, p. 155.
12. ABREU, Márcia. A liberdade e o erro. Fênix (UFU. Online), v. 6, 2009, p. 2.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino

[97]

em relação à Igreja, mantendo-se, assim, a postura regalista que permeou a criação


do referido órgão de censura.
O surgimento da Real Mesa deu-se de forma a defender os interesses da Coroa,
em uma perspectiva secularizante do poder, sem, contudo, abandonar as questões
religiosas no que diz respeito à leitura e à cultura de um modo geral. A nomeação
dos deputados do novo órgão de censura representou bem esse caráter concilia-
dor. Dos vinte homens escolhidos, dez pertenciam a ordens religiosas e os outros
dez eram funcionários da Coroa. Apesar dessa aparente paridade, os deputados
ordinários, responsáveis por grande parte das decisões, eram seis laicos e quatro
religiosos, enquanto os deputados extraordinários, que seriam convocados apenas
em algumas ocasiões, eram seis religiosos e quatro laicos13. Assim, a monarquia con-
seguiria um maior controle sobre as deliberações da Real Mesa Censória. É preciso
destacar ainda que esses censores, independentemente de suas origens, deveriam
ser homens de grande erudição. De acordo com o regimento do órgão, eles preci-
sariam saber perfeitamente “a Historia Sagrada, Ecclesiastica, Civil, e Literatura
universal, e a particular da Nação Portugueza”, além de terem conhecimento sobre
Direito, Filosofia, Lógica, Hermenêutica e das línguas mortas e vivas14. Com toda
essa bagagem, os deputados teriam mais afinidade com o reformismo empreendido
pela Coroa, principalmente no que concerne à modernização cultural. Além disso,
poderiam julgar com mais propriedade o merecimento dos livros, em diálogo com a
República das Letras e com as ideias em circulação no restante da Europa.
No que diz respeito ao exame das obras, a Real Mesa Censória buscou agilizar o
processo e torná-lo mais eficiente. Segundo Márcia Abreu, “os censores reuniam-se
periodicamente a fim de apresentar sua opinião sobre manuscritos (que buscavam
licença para impressão), sobre livros importados (que esperavam autorização para
entrar em Portugal) e sobre obras impressas (que aguardavam o confronto com o
respectivo manuscrito, previamente aprovado, para que pudessem circular)”15. Para
analisar essas obras, foram definidos dois tipos diferentes de exame, a saber: exame
simples e exame formal. O exame simples, também chamado de conferência, pode-
ria ser utilizado em duas situações: a primeira delas, quando os livros em questão já
tivessem passado pelo crivo da censura; a segunda, nos casos em que as obras fos-
sem previamente avaliadas como inúteis para os leitores ou ofensivas à reputação
nacional. O exame formal, por sua vez, era aquele voltado para as obras de “maior

13. MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a cultura nacional, p. 27-28.
14. SILVA, Antônio Delgado da. Colleção da Legislaçao Portugueza, p. 162.
15. ABREU, Márcia. O controle à publicação de livros nos séculos XVIII e XIX: uma outra visão da
censura. Revista Fênix, Uberlândia, v. 4, n. 4, p. 2-3, dez. 2007, p. 3.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino

[98]

consequência”, ou seja, todos os impressos e manuscritos que não foram analisados


pelo exame simples. De acordo com o regimento, o objetivo do exame formal era
a exacta averiguação dos merecimentos, utilidade, e pureza da
Doutrina dos Livros. E por ser este objeto verdadeiramente o mais
delicado, e digno de maior consideração: Devemos fazer-se com a
devida formalidade, e com aquelle methodo, que mais possa segurar,
e afiançar a sua exactidão.16

Assim, a análise criteriosa feita pelos deputados favoreceria a decisão dos mes-
mos a respeito da circulação das obras examinadas.
De um modo geral, as decisões dos deputados da Real Mesa dividiam-se em três
diferentes tipos: algumas obras eram totalmente proibidas, outras eram liberadas e,
em alguns casos, os censores sugeriam a supressão ou alteração de alguns trechos
do livro para que pudessem circular. Para se ler uma obra proibida pela Real Mesa
Censória, era necessário portar uma licença autorizando a leitura. Antes da censura
pombalina, as licenças para posse e leitura de livros proibidos eram obtidas por
meio de breves apostólicos emitidos pela Santa Sé. Com a renovação do órgão de
censura português, esses breves perderam a validade, e as licenças passaram a ser
concedidas pela Real Mesa17. Assim, a concessão de licenças se tornou outro ponto
de disputa entre a Igreja e a monarquia. Em defesa dos interesses da coroa, o regi-
mento da Real Mesa põe fim ao uso dos breves romanos, colocando nas mãos do
órgão a jurisdição sobre a concessão das licenças:

Havendo grande numero de Pessoas, que com ob-repção, obrepção,


e engano impetrarão Breves de Roma para poderem lêr livros prohi-
bidos, não sendo verdadeiramente dignas de os terem por lhes falta-
rem os requisitos necessários; e tendo os injustamente impetrado por
meio preces importunas, e alegações falsas, inaveriguaves, na Curia
Romana: Não sendo justo, nem conforme á Santa intenção, e prudên-
cia dos Summos Pontifices, em cujos nomes se concederão, que eles
valhão, e tenham execução no caso de se não verificarem as permissas,
e haver perigo no efeito das graças: E devendo Eu [isto é, El-Rei]
outro sim, como Protector da Religião, e dos Canones, e como Pai
Commum dos Meus fieis Vassallos, impedir as prejudiciaes conse-
quencias do abuso de semelhantes Licenças: Sou servido ordenar, que
todos, e cada hum dos Meus Vassallos, que no tempo da qualificação
das suas Livrarias apresentarem os referidos Breves, sejão qualificados,
de sorte, que constando da verdade das alegações, e da idoneidade

16. SILVA, Antônio Delgado da. Colleção da Legislaçao Portugueza. , p. 168.


17. MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a cultura nacional, p. 46.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino

[99]

dos Impetrantes; se lhes não embarace o uso das sobreditas Graças; e


conhecendo-se o contrario, fiquem na Meza suprimidas.18

No caso dos breves já emitidos, era necessário que passassem pelo crivo da Real
Mesa Censória para que tivessem validade. O regimento recomenda ainda que a
concessão e inspeção das licenças fossem feitas com moderação e cautela, “infor-
mando-se primeiro das qualidades das pessoas, que as pedem; e facultando somente
ás doutas, e prudentes, e em quem cesse moralmente todo o receio de perigo”. É
importante salientar que essas autorizações distinguiam a posse e a leitura de livros:
algumas pessoas estariam autorizadas a possuir e ler obras proibidas, enquanto
outras obtinham licença apenas para ler livros defesos. A grande preocupação, no
que diz respeito à posse, está na possibilidade de que essas obras circulassem por
um público muito mais amplo. Por essa razão, os mercadores de livros, livreiros e
impressores que detivessem a referida licença, deveriam manter as obras proibidas
fechadas em estantes com chave e, caso infringissem essa condição, poderiam perder
a autorização da Real Mesa19. Dessa forma, as licenças eram concedidas somente a
um público muito pequeno, mas, ainda assim, criavam uma brecha nos critérios da
censura para proibição de livros, facilitando, em certa medida, a difusão clandestina
de obras proibidas.
Além da censura prévia dos livros a serem publicados e/ou postos em circulação
e da emissão de licenças para leitura de livros proibidos, outras funções foram dadas
aos deputados da Real Mesa Censória. Os funcionários do órgão também eram
responsáveis por inspecionar bibliotecas públicas e privadas, oficinas de imprensa
e armazéns, bem como os mercadores de livros, livreiros e impressores do reino. A
fim de realizarem essas tarefas, os deputados poderiam visitar esses estabelecimen-
tos e realizar buscas para impedir a venda, impressão ou posse de livros suspeitos.
A partir de 1771, o órgão passou a se responsabilizar também pela administração
e direção dos estudos menores em Portugal e seus domínios20. Com essa medida, a
Real Mesa se tornou o principal braço do Estado no que se refere às reformas edu-
cacionais, atuando não só no controle dos livros e, consequentemente, das ideias
em circulação, mas também na formação dos súditos portugueses. Por essa razão,
faz-se necessário pensar a censura para além de sua função repressiva. Mais do que
coibir a circulação de livros proibidos, a Real Mesa procurou promover uma men-
talidade afinada com o espírito reformista.

18. SILVA, Antônio Delgado da. Colleção da Legislaçao Portugueza, p. 171.


19. ______. Colleção da Legislaçao Portugueza, p. 171-172.
20. ARAÚJO, Ana Cristina (coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 2000, p. 19.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino

[100]

Em resumo, a censura pombalina buscou, a um só tempo, regular a entrada do


pensamento das Luzes no reino português, assegurar a manutenção dos princípios
do catolicismo e defender a monarquia absoluta, criando um equilíbrio delicado.
Conciliar a Razão com os interesses do Estado e da Igreja exigiu um “malabarismo”
constante, não só no âmbito da censura, mas em diversos aspectos da vida polí-
tica lusitana. Na verdade, “a censura portuguesa chegou ora a perder de vista os
interesses da monarquia, ora exorbitou-os ao ponto de colocar as Luzes que eram
sua referência na penumbra da interdição, oscilando entre concessões excessivas e
severidade demasiada”21.
Tomando como base esse aspecto, e também as regras para funcionamento da
Real Mesa Censória, analisaremos, a partir de agora, um dos documentos produ-
zidos pelo órgão. Trata-se do emblemático parecer redigido por Antônio Pereira
de Figueiredo para as Obras Completas de Voltaire22. O autor foi, certamente, um
dos mais importantes censores portugueses. Durante todo o período em que atuou
como deputado da Real Mesa Censória, examinou 316 títulos, permitindo a circu-
lação de 161, proibindo 127 e optando por alterar 26 das obras analisadas23. Os
números chamam a atenção, assim como a detença com que Pereira de Figueiredo
realizava seu trabalho. Não são raros os casos de censuras que se desenrolam por
várias páginas, com citações longas dos textos originais, diálogo com outros autores
e argumentações minuciosas que justificassem a decisão da Real Mesa. No parecer
selecionado, o censor não poupa um dos mais relevantes pensadores das Luzes, exa-
minando suas obras com cautela e conhecimento de causa. O documento, redigido
apenas para leitura de seus pares, conta com quase quarenta páginas manuscritas,
nas quais ele confronta vários pontos da filosofia de Voltaire, decidindo, ao final,
pela supressão da obra no reino português.
Por que proibir a leitura de Voltaire? Essa parece ser a pergunta que guiou a
escrita da censura. Ao final dos dois meses de leitura, Antônio Pereira de Figueiredo
provavelmente estava convencido de que a obra não deveria circular entre os súdi-
tos da coroa portuguesa. Talvez por isso, inicie seu parecer com elogios e, ao mesmo
tempo, com críticas contundentes ao trabalho do filósofo, afirmando, logo no pri-
meiro parágrafo, que se trata de

21. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura, p. 190.
22. O parecer foi coletado pelo professor Luiz Carlos Villalta, a quem agradecemos muitíssimo, e
transcrito pela autora.
23. TAVARES, Rui. Antônio Pereira de Figueiredo: o ideólogo. Capítulo de obra não publicada, s/d.,
p. 33.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino

[101]

hum homem de humma imaginação vivissima, e fertilissima, mas ao


mesmo tempo sobre maneira extravagante e sobre maneira corupta:
hum homem que não possuindo a fundo sciencia alguma, de todas
quis tratar como mestre: hum homem que por esta ou aquella refle-
xão judicioza e solida que nelle se encontra, oferece um cento dellas
vanissimas, exoticas e oppostas ao sentido comum dos sabios: hum
homem finalmente, que parece que faz tymbre de mofar da Religião
em que nasceo e em que foi educado, e de inverter todas as ideias que
da virtude costumamos ter, todos os que nos prezamos cathólicos.24

Assim, as primeiras palavras de Antônio Pereira parecem antever sua decisão


pela proibição. Ainda que reconheça alguma qualidade nos escritos de Voltaire, o
censor se preocupa com a circulação das ideias perniciosas defendidas pelo autor e
esforça-se por mostrar os motivos para que se suprima a obra.
A partir da leitura do parecer, é possível constatar que o censor possui uma
acentuada preocupação em justificar, com argumentação bem fundamentada, sua
decisão de proibir a circulação dos escritos do grande filósofo francês. Ao fazê-lo, o
deputado não só imprimiu um juízo sobre a obra de Voltaire, mas também dialogou
com o que leu, confrontando o seu próprio pensamento com as ideias apresentadas
pelo autor. Trata-se de uma clara reflexão literária e intelectual, sem a qual não seria
possível julgar e definir o que chegaria às mãos dos leitores do Reino. Antes de tudo,
o censor voltava sua atenção justamente para os possíveis leitores da obra, mos-
trando que era necessário protegê-los das ideias perniciosas contidas nos escritos
de Voltaire. Não é raro encontrar em outras censuras a mesma preocupação, o que
revela o principal objetivo da instituição de censura, a saber: delimitar o universo
de leituras, a partir de uma ótica política, mas também moral e religiosa. Nesse
sentido, a argumentação de Antônio Pereira servia para mostrar aos seus colegas
de Real Mesa Censória a importância de conter a circulação de ideias, tais como as
defendidas pelo polêmico filósofo. De acordo com o censor:

O que desta applicação e discussão tirei [o censor se refere à leitura


da obra] foi admmirarme de que estando as Obras de Mr. de Voltaire
cheias de tanto veneno e de doutrinas tão perniciozas, como logo vere-
mos seja ainda este Autor, o que ordinariamente anda nas mãos da
mocidade Portugueza, e que forma o gosto e a base dos seus primeiros
Estudos: quando eu pelo contrario em toda a extensão de Livros que
tenho lido (e he notorio que tenho lido muitos e de diversas materias)
posso e devo affirmar, que ainda não achei outros mais impios, mais
capciozos, mais nocivos, que os de Mr. de Voltaire.25

24. IANTT, 1768, cx4, nº 123.


25. IANTT, 1768, cx4, nº 123.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino

[102]

Portanto, Antônio Pereira de Figueiredo revelava sua preocupação com o público


leitor, principalmente a “mocidade” que, em sua visão, podia ter seu gosto moldado
pelas “doutrinas perniciosas” defendidas pelo autor, quanto mais que obras de sua
autoria eram encontradas muito frequentemente entre ela.
Na tentativa de mostrar que o seu juízo não se baseava em censuras vagas, o
deputado da Real Mesa Censória buscou ordenar seus argumentos contra a circu-
lação da obra de Voltaire ao longo das várias páginas do parecer por ele escrito.
Com esse intuito, a censura se divide em cinco demonstrações principais, nas quais
apresenta seus argumentos: “Demonstração Primeira: Mr. de Voltaire Panegyrista e
Defensor de todas as Seitas perversas, Gentilicas, como Hereticas”; “Demonstração
Segunda: Mr. de Voltaire não somente Tolerantista, mas tãobem Indifferencista de
todas as Religioens”; “Demonstração Terceira: Mr. de Voltaire tratando de baga-
telas e metendo a ridiculo os Dogmas mais Sagrados e mais Capitaes de nossa
Religiao”; “Demonstração Quarta: Mr. de Voltaire negando ou pondo em duvida
tudo quanto he vantajozo para o christianismo”; e “Demonstração Quinta e ultima:
Mr. de Voltaire escrevendo indecorosamente do Ministerio de Portugal”.
As quatro primeiras demonstrações apresentadas por Figueiredo são de caráter
religioso, enquanto a última diz respeito a questões políticas. Entre os equívocos
de Voltaire, figuram a defesa das religiões orientais e, portanto, o tolerantismo26, a
crítica aos dogmas do catolicismo, o desrespeito à Sagrada Escritura, a contestação
do inferno e o possível deísmo — chamado pelo censor de ateísmo. Esses motivos
já seriam suficientes para suprimir a obra, mas o filósofo ousa ainda criticar o reino
português e, indo além, a fazer elogios aos jesuítas. Com a censura, Antônio Pereira
de Figueiredo consegue enquadrar os escritos de Voltaire em praticamente todos os
critérios para proibição de livros da Real Mesa Censória. Conclui o censor:

Pelo que e por tudo o mais que tenho até aqui apontado, concluo que
todas as Obras de Mr. de Voltaire se devem prohibir, mais ainda que
as de Lutero ou Calvino, por serem uma Colleção de tudo quanto
ha de impio e blasfemo nos Autores heterodoxos mais atrevidos e
mais detestaveis: e por ser a sua liçao tanto mais perigoza, quanto he
maior a hypocrisia com que elle a cada passo se estâ inculcando por

26. O tolerantismo ou defesa da tolerância religiosa foi tido durante o século XVIII como heresia
teológica. De acordo com Stuart Schwartz: “apesar da pressão sistemática e da definição da tolerância
como heresia teológica e calamidade política existia uma antiga herança de liberdade de consciência
e relativismo religioso que extraía sua força de diferentes fontes: as ideias católicas sobre a caridade
e a lei natural, e também a indiferença religiosa que brotava da dúvida intrínseca às visões céticas
e materialistas” in: SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no
mundo atlântico ibérico. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino

[103]

hum homem bom e irreprehensivel Filho da Igreja Catholica [grifos


nossos].27

A decisão de Antônio Pereira mostra que, se houve uma faceta ilustrada na cen-
sura pombalina, ela certamente não esteve alinhada com as ideias defendidas por
Voltaire. No entanto, há um ponto do parecer que nos chama a atenção. Trata-se de
um dos trechos da obra de Voltaire, transcrito pelo parecerista, no qual ele critica a
monarquia portuguesa:

Portugal por isso mesmo que ainda não recebeo as luzes que fazem
brilhar outros muitos Estados da Europa, vive mais sogeito ao Papa
que outro algum Estado. Não permitte a El Rey fazer condenar à
morte pelos seus juizes hum regular parricida, porque lhe falta o con-
sentimento de Roma. Os outros Povos estao do seculo decimo sep-
timo: mas Portugal parece estar no duodécimo [grifos nossos].28

No trecho citado por Antônio Pereira, o filósofo acusa o Estado português de


ser completamente sujeito ao poder do papa. Segundo Voltaire, a relação de depen-
dência existente entre a monarquia portuguesa e a Igreja romana era responsável
pela situação de atraso vivida por Portugal. O trecho deixa transparecer que, para
o autor, a ingerência papal, vista no reino lusitano, era típica do período medieval
e não do século das luzes. É interessante observar que essas ideias se assemelham,
e muito, ao projeto regalista e secularizante que guiou as reformas pombalinas. O
próprio Antônio Pereira de Figueiredo foi um dos maiores advogados dessa sepa-
ração, defendendo uma maior independência do Estado em relação à cúria romana.
Mais ainda, o censor e, de resto, o governo pombalino, viram no passado português,
em que houvera uma submissão da coroa à cúria romana e, em particular, às injun-
ções dos jesuítas, um fator determinante para o “atraso” contra o qual se voltavam.
Na visão do censor, as acusações de Voltaire não procediam, pois o reformismo
ilustrado rompeu com a ingerência romana. Ainda que o deputado em nada concor-
dasse com os escritos do filósofo esclarecido, parece haver, mesmo que em um único
ponto, uma coincidência entre o que defendiam os dois pensadores.

27. IANTT, 1768, cx4, nº 123.


28. IANTT, 1768, cx4, nº 123.
Documento
Censura por Antônio Pereira de Figueiredo. Disponível no
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Real Mesa Censória,
caixa 5, censura nº 55A.

Data
12 de junho de 1770

Resumo
Censura de autores libertinos e obras consideradas obscenas
por Antonio Pereira de Figueiredo, membro da Real Mesa
Censória.
[fl .1]

1 Os Livros de Autores Libertinos, que


2 por hora me ocorrem, e que devem
3 hir declarados no Edital prohibitivo,
4 que se está preparando por esta
5 Real Meza Censoria, são os seguintes.

<1.º> 6 A Encyclopedia. A Censura que a este


7 famozo Diccionario fes em prezença
8 de todo o Parlamento de Paris o
9 doutissimo e zelozissimo Procurador Geral,
10 Monsieur Joly1 de Fleury; reflectindo es-
11 pecialmente nos Artigos, Adorer, Di-
12 manche, Christianisme, Ame, Cons-
13 cience, Aius Locutius, Autorité, Athée,
14 Encyclopédie. E a que seguindo e pa-
15 rafrazeando o Discurso de Joly de
16 Fleury, publicou há onze annos o
17 Anonymo Abbade de quem corre
19 hum excelente Tratado impresso em A-
20 vinhaõ no anno 1759 e dedicado ao
21 Conde Passionei, com este titulo: L’Ame
22 ou Le Systeme des Materialistes, 8 volumes.
23 Estas duas Censuras, digo, pelas quais
24 vim no conhecimento, de que a Encyclo-
25 pedia he igualmente prejudicial à Religi-
26 ão que ao Estado: me obrigaõ a
27 votar, que este Diccionario se prohiba,
28 e que a sua lição e Retenção se
29 naõ permitta, senaõ a mui poucas
30 Pessoas, e estas de muita erudiçaõ e

1. Arrependimento na letra “o”.


[fl .1v]

1 de bom espirito.

<2.º> 2 L’Esprit. Segundo as ideias que


3 desta obra me daõ os mesmos dois
4 Escritores acima indicados, he ella huã
5 das mais pestillentes que athe agora
6 se hiraõ[?], por causa dos impios e es-
7 candalozos Principios, que estabelece,
8 tendentes todos a introduzir o Materi-
9 alismo, e o desprezo de tudo o que
10 he virtude e religiaõ. A Assembleia
11 do Clero Gallicano de 1765 a meteo
12 no catalogo dos muitos Livros, que
13 entaõ prohibio.

<3.º> 14 Theses Theologico Abbatis de Prades.


15 Contem pontos impiissimos contra a
16 verdadeira religiaõ e moral christaã. Foraõ
17 condenadas por Benedicto XIV, pelo Ar-
18 cebispo de Paris Beaumont, e pelo
19 Bispo de Auxerre Caylus, e pela
20 mesma Sorbona.

<4.º> 21 Apologia [e]arundem Thelium, pelo


22 mesmo Abbade de Prades.

<5.º>
23 L’Espion Turc, que eu ha pou-
24 co tempo Censurei.
[fl .2]

<6.º> 1 Todas as obras de Monsieur Voltaire,


2 que eu por ordem desta Real Meza
3 censurei o anno passado, sem exceptuar
4 as suas Poeticas. Porque a Henriade
5 está cheia de impiedades, e de he-
6 rezias, contra os dogmas mais capi-
7 taes do christianismo. As Tragedias
8 porem podem se permittir, a quem
9 tiver licença da Meza.

<7.º> 10 O Poema de Pope Sobre o Homem.


11 Elle já se imprimio em Lisboa tradu-
12 zido em Portuguez com permissaõ
13 desta Meza. Mas eu pelo que tenho
14 lido da substancia e artificio deste
15 Poema, nelle estabeleceo o Autor com
16 muita reserva e dissimulaçaõ o veneno
17 da libertinagem mais refinado; [1 palavra rasurada] <veneno>
18 tanto mais prejudicial, quanto mais encûberto.
19 Para o que basta advertir, que hú Principio
20 capital de Pope he, que quando as paixo-
21 ens humanas chegaõ a hú tal excesso, que
22 neste estado naõ attende o homem nem
23 as liçoens nem as Leys da Rezaõ; devese
24 entaõ abandonar de todo a mesma Rezaõ,
25 por seguir o excessivo pezo das mesmas
26 paixoens, o qual se deve reputar huã ley
27 da Natureza, que por isso mesmo que he
28 da Natureza, he huã Ley boa, e Ley
29 por onde nos devemos governar. Outro1

1. A palavra inteira foi escrita em forma de arrependimento.


[fl .2v]

1 Principio he, que todo o uzo das paixoens


2 he conforme a boa Rezaõ, todas as vezes
3 que para conseguirmos o deleite, naõ
4 offendemos algum terceiro. Ambos mostra
5 das mesmas passagens de Pope o citado
6 Anonymo de Avinhaõ, pagina 219 até
7 pagina 222.

< 8.º > 8 Les Pensées et Les Essais


9 de Montagne: se bem que eu naõ
10 tenho delles o devido e inteiro conhecimento.

11 Tratado de Witby, Author Ju[g]ler,


< 9º >
12 publicado em 1713. Contra a existen-
<* 13 cia do peccado original. Journal
14 des Sçavans, anno 17131 pagina 155.
Pelo meo 15 e no Jndex, ver Peché Originel,
voto se deviaõ 16 pagina 619.
també meter
No Catalogo
dos que favo-
recem a Liber-
tinagem, o No
dus Praedesti 17 Ad visto, que [a]pelas Actas da Assem-
nationis disso- 18 bleia de Paris de 1765 que o Senhor
lutus de Celes 19 Frei Joaõ Baptista de São Caetano
tino Sfondrati: 20 tem em seo poder; e pelas do
Apologia Caluni- 21 Synodo de Utrech de 1763. Se <favorecem
ta[r]em de Moya: 22 podem apontar outros Authores o Pyrrho-
as Obras de Rerruyer[?] e 23 Libertinos, que me lembra foraõ nismo em
Hardoin 24 alli condenados, e cujas obras que entra
[rasurado: e todas as que] 25 alli se exprimem. * o Diccionario
todas as que 26 18 de Mayo, de de Bayle,
ensinaõ a 27 1770 que só se
doutrina do
devia permit-
peccado filo-
tir a pou-
zofico: e todas as que>
quissimos
28 Antonio Pereira de Figueiredo sugeitos.>2

1. Arrependimento nos algarismos “1” e “7”. 2. Continuação da anotação


anterior.
[fl .3]

1 Juizo e observaçoens de
2 Antonio Pereira de Figueiredo, sob[r]e
3 os Authores Libertinos ou
4 Livros obscenos, que devem ser
5 Condenados pelo Edital desta
6 Real Meza Censoria.

7 Escrito a 12 de junho de 1770.

8 Sou de parecer, que sabendose


9 de certo o Author do Livro censu-
10 rado, se declare no Edital o seo
11 nome.

12 O lugar e o anno da impressaõ


13 naõ he necessário declararse: mas
14 se o titulo da mesma obra
15 variar, he rezaõ que a mesma
16 obra se exprima, segundo todos
17 os titulos, em que se acha impressa.
18 Como succedera com L’ Espion
19 Turc, que corre com diversos
20 titulos.
Marileide Lázara Cassoli
Doutoranda em História pela UFMG

Nos campos de Têmis:


senhores, escravos e ações
cíveis. Mariana, 1850-1888

Campo jurídico, campo de batalha: o tortuoso


caminho das intenções e das leis

Palácio (...) 30 de Julho de 1875.


Em resposta ao seu ofício de 27 do corrente mês, em que Vosmecê
consulta qual a providência digo inteligência que deve dar ao § 3º do
artigo 81 do Dec. nº 5:135 de 13 de Novembro de 1872, visto que
uns entendem que essa disposição diz respeito unicamente aos liber-
tandos e não aos senhores que defendem o seu direito de propriedade,
porquanto estes, como partes, que são, estão sujeitos ao pagamento
das custas, quer sejam vencedores ou vencidos, exigindo-se-lhes selo
e preparo para todos os atos requeridos, cabe-me dizer-lhe que, sendo
expresso n’aquele § que os processos de liberdade propriamente
tais são isentos de custas, e não fazendo a lei distinção alguma, tam-
bém não o tem distinguido na prática os Tribunais da Relação desta
Capital e São Paulo, e é a melhor doutrina, segundo o Direito, Vol V;
pág. 67; mas como não há esta Presidência dar uma decisão sobre o
assunto, e em verdade tem havido opinião discordes, como se vê no
do Aviso nº 40 de 8 de Junho finado, de que lhe remeto cópia, con-
vém que Vosmecê de à citada disposição a inteligência que lhe parecer
mais de acordo com o direito e prática dos Tribunais, facilitando às
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888

[118]

partes o uso de seus legítimos recursos para as entrâncias superiores


na ordem da jurisdição da mesma natureza. Deus Guarde a Vosmecê.
Pedro Vicente de Azevedo — Senhor Juiz Municipal e de Órfãos do
Termo de Mariana.1

O caminho das intenções, das leis e dos meandros jurídicos mostrava-se tor-
tuoso, ainda em meados da década de 1870, não apenas para os leigos. As leis, arti-
gos, parágrafos, decretos e avisos tinham por objetivo final estabelecer uma ordem
naquele que era considerado o “mais difícil problema” da segunda metade do século
XIX, o fim gradual do trabalho escravo, sem que o caos econômico ou social se
estabelecesse no país.
A orientação acima, encaminhada ao Senhor Juiz Municipal e de Órfãos do
Termo de Mariana, ganha luz ao ser inserida na lógica da “Ordem” ou, melhor
dizendo, da “Razão de Estado”2. Facilitar o acesso à justiça “das partes” interessadas

1. Arquivo Público Mineiro (APM), Secretaria de Governo (SG), 150, p. 160. Grifos do documento.
A transcrição dos documentos respeita a gramática e a pontuação original e atualiza a ortografia.
2. Segundo Silvia H. Lara, em uma sociedade onde todos possuíam, em diferentes graus, direitos
e privilégios, mas também deveres e obrigações, a finalidade do monarca era garantir a harmonia
entre esses diferentes poderes e assim alcançar o bem comum. A vontade do monarca, porém,
era limitada pela doutrina jurídica que privilegiava o bem comum e por diversas práticas e usos
jurídicos locais e senhoriais. LARA, Silvia Hunold. Senhores da régia jurisdição: o particular e o
público na Vila de São Salvador dos Campos dos Goitacazes na segunda metade do século XVIII.
In: LARA, Sílvia H. & MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (Orgs.). Direitos e justiças no Brasil.
São Paulo: Editora UNICAMP, 2006. p. 60. A nosso ver, a diferença fundamental entre a noção
de “Bem Comum” e “Razão de Estado” residiria exatamente na construção de um aparato jurídico
que eliminasse os costumes e os localismos, mesmo que isso significasse transformá-los em direito
positivo. Para o Brasil da segunda metade do século XIX, essa racionalização dos costumes e a
eliminação dos localismos pode ser considerada fundamental no processo de construção de um
Estado centralizador. Segundo BOBBIO, Norberto. et al. Dicionário de política. Brasília: Editora
Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. Vol.2. p. 1067, a Razão de
Estado aparece atrelada ao próprio desenvolvimento de momentos cruciais na história do Estado
moderno na Europa como a progressiva concentração do poder, ou seja o monopólio da força
física na autoridade suprema do Estado, que o subtrai às autoridades feudais, nobreza e livres
comuns. Tal monopólio da força “permitiu à autoridade suprema do Estado impor coercivamente
à população que lhe estava sujeita as regras indispensáveis à convivência pacífica, isto é, permitiu-
lhe impor um ordenamento jurídico, universalmente válido e eficaz dentro do Estado, que obstasse
a que as controvérsias entre os súditos fossem decididas pela mera lei da força”. O Estado visava
assim, à progressiva interiorização de suas normas, à rejeição da violência privada na tutela dos
próprios interesses, e o progresso econômico tornado possível com a certeza do direito. No caso
do encaminhamento da questão escrava no Brasil, as “Razões de Estado” permearam as discussões
políticas e foram utilizadas tanto pelos políticos defensores de uma reforma imediata da escravidão,
encarada como problema de Estado, colocando o mundo privado da escravidão sob o domínio da
lei, como pelos seus opositores, que acreditavam que a interferência exagerada do Estado provocaria
a própria desordem. As “Razões de Estado” seriam definidas pela tranquilidade e segurança pública
do país e o reconhecimento da importância econômica da propriedade escravista. PENA, Eduardo
Spiller. Pajens da Casa Imperial. Campinas: Editora Unicamp, 2005. p. 271-272.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888

[119]

nos processos de liberdade significava reforçar o papel do aparato jurídico e, em


última instância, do Estado como mantenedor da ordem social e regulamentador
das relações entre os senhores e os seus cativos. Temos por objetivo, neste artigo, por
meio das ações cíveis envolvendo escravos, referentes ao Termo de Mariana3, entre
1850-1888, indicar os dados quantitativos e qualitativos que possibilitam analisar a
atuação e a presença da justiça na administração dos conflitos cotidianos referentes
aos senhores e aos seus cativos.
Embora a delimitação espacial tenha, inicialmente, sido pensada estritamente
para o Termo de Mariana, a própria dinâmica dos registros cartoriais acabaram por
torná-la mais flexível. Chegavam aos registros cartoriais do município de Mariana
processos, criminais ou cíveis, oriundos de Freguesias pertencentes a outros muni-
cípios. Em alguns casos tratava-se de escravos alegadamente fugidos que se refu-
giavam na circunscrição do Termo de Mariana, ou ainda, herdeiros de cativos,
cujos inventariados eram residentes no referido Termo. Há casos, ainda, em que
a demanda não é aceita por ter sido iniciada fora de sua jurisdição correta. As
ações cíveis envolvendo escravos incluem as ações de liberdade. Considerando-se
o período, 1850-1888, foram arroladas 107 ações cíveis envolvendo escravos que
estavam registrados nos cartórios de Iº e IIº Ofícios do Termo de Mariana e que se
encontram depositadas no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana4. Gostaríamos
ainda de ressaltar que algumas ações de liberdade encontram-se catalogadas nos
livros de registros de processos criminais, embora sejam causas cíveis.
A amostragem utilizada foi contabilizada considerando os cartórios do Iº e o
do IIº ofícios conjuntamente. Em primeiro lugar, porque foram vãos os esforços
de definir qual o critério utilizado pela justiça para que os processos cíveis fossem
encaminhados para um ou outro ofício; em segundo lugar, porque acreditamos que
contabilizar os dados conjuntamente conferirá mais sentido à análise, principal-
mente no aspecto quantitativo, o que possibilita uma visão mais ampla das infor-
mações oferecidas pelo corpo documental. No universo de 107 ações cíveis, foram
classificadas como “ações de liberdade” um total de 64. Optamos por essa distinção
em função da própria classificação estabelecida pelos registros de documentação do

3. Apesar das variações territoriais sofridas pelo Termo de Mariana entre 1850-1888, em função da
criação ou da transferência de Freguesias que a ele pertenciam originalmente para outros Termos,
no decorrer do período, algumas localidades permaneceram vinculadas à sede municipal ao longo
dos anos referidos, a saber: Nossa Senhora da Assunção de Mariana, sede do município, Nossa
Senhora da Conceição de Camargos, Nossa Senhora de Nazareth do Inficcionado, Nossa Senhora
do Rosário do Sumidouro, Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do Brumado, São Caetano do
Ribeirão Abaixo, Senhor Bom Jesus do Monte do Furquim, Nossa Senhora da Saúde, Nossa Senhora
do Rosário de Paulo Moreira, São José da Barra Longa e o distrito de Passagem de Mariana.
4. Daqui para frente: ACSM.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888

[120]

ACSM, assim como pela definição das autoridades da época que as diferenciavam
das demais ações que envolviam escravos, mas que não se referiam à “sagrada causa
da liberdade”5.
As ações cíveis envolvendo escravos, excluídas as “de liberdade”, versavam sobre
as disputas senhoriais em partilhas de inventário, solicitação à justiça de devolução
de escravo preso (por fuga ou por crime, cuja pena já havia sido cumprida), recurso
para troca de depositários6 (seja por senhores ou por escravos) ou para a efetivação
do depósito (de pecúlio de escravos ou do próprio escravo), cobranças de quarta-
mento, trocas ou devoluções de escravos entre senhores por questões de partilhas ou
transações comerciais, protestos contra a atuação do Fundo de Emancipação, entre
outros. Nessas ações o escravo tem uma participação passiva já que, na maioria dos
casos, o próprio senhor é o demandante. Nos autos de liberdade, ao contrário, o
escravo assume papel ativo, sendo o responsável pelo início do processo.
Este corpo documental presta-se aqui como um rico informante das relações
escravistas em sua dinâmica cotidiana, e, principalmente, em seu aspecto externa-
lizado, ou seja, os arranjos rompidos, de forma violenta ou não, e tornados públi-
cos através das demandas judiciais. Ao dar visibilidade aos desarranjos da socie-
dade escravista, indiretamente, estes autos judiciais trazem também à visibilidade
os mandos e os desmandos na aplicação da justiça e da lei, e o impacto das leis
relacionadas à escravidão pós 1850. Embora muitos destes processos, como vere-
mos adiante, não apresentem a sentença conclusiva, acreditamos que tal fator não

5. Em função da periodização determinada para este trabalho, não foi feita uma comparação entre
o número de ações cíveis envolvendo escravos e ações cíveis envolvendo apenas livres. O número
de ações cíveis, somente para o IIº Ofício do ACSM, corresponde a 20.000 processos. Os dados de
RODRIGUES, Tiago de Godoy. Sentença de uma vida: escravos nos tribunais de Mariana (1830-
1840). Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura) — Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004. p. 81, referentes somente à
década de 1830, são um indicativo do volume de ações cíveis de “livres”, o autor aponta a existência
de 492 processos contra 40 processos envolvendo escravos (7,5% dos processos). Optamos por não
calcular a relação entre as ações e o número da população escrava. Se analisado desta forma, o
peso quantitativo das ações torna-se pouco significativo. Acreditamos que vislumbrar a evolução do
número de ações durante todo o período torne a exploração quantitativa e qualitativa deste corpo
documental mais pertinente à proposta deste trabalho de analisar os impactos do aparato jurídico
relativo à escravidão, da segunda metade dos oitocentos, nas relações escravistas e na justiça como
uma ampliação do espaço de negociação, entre os senhores e os seus cativos, para além do âmbito
da casa.
6. Depositário: designa a pessoa a quem se entrega ou a quem se confia alguma coisa em depósito.
Pelo contrato, o depositário assume a obrigação de conservar a coisa com a devida diligência, para
o que será reembolsado das despesas necessárias tidas, e a restituição tão logo lhe seja exigida, sob
pena de ser requerida, pelo depositante, sua prisão (...). Entretanto, casos há em que o depositário
se investe no direito de reter a coisa depositada, tais sejam, se há embargo sobre ela, se há suspeita
de ter sido furtada, ou se tem direito a indenizações por despesas ou prejuízos. SILVA, De Plácido e.
Vocabulário jurídico. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P. 37. II vol.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888

[121]

constitua obstáculo ou prejudique a análise a que nos propusemos. Mesmo desco-


nhecendo o resultado final de várias demandas, a presença das falas dos Curadores7
dos escravos, dos advogados dos senhores, das testemunhas, e dos cativos envolvi-
dos nas situações de crime ou cíveis, como as causas de liberdade, compõem um rico
mosaico explicativo dos fatos que justificam a demanda e os processos nos tribunais.
O libelo8, crime ou cível, constitui-se uma peça preciosa ao misturar a fala jurí-
dica e culta do curador ou advogado à descrição da dinâmica cotidiana e dos fatos
limites que transferiram o campo de batalha das relações sociais da “casa” para
a “rua”. O depoimento das testemunhas coloca em cena as verdades possíveis e
os códigos de comportamento definidos para os diversos agentes sociais. Mesmo
filtrados pela pena do escrivão e correndo-se o risco de uma “visão oficial” dos
acontecimentos, as entrelinhas, as falas, ou os silêncios acabam por “denunciar” os
contornos, as vivências, os anseios e os rumos que a instituição escravista vai adqui-
rindo no decorrer da segunda metade do século XIX.
Ao abordar a criminalidade em São Paulo, entre 1880 e 1924, Boris Fausto,
analisa os processos penais como uma fonte “cheia de peculiaridades”, merecendo
então uma referência mais detida, ressaltando que, nos meios forenses, a introdu-
ção da datilografia de depoimentos sofreu resistências pelo risco que, se acreditava,
acarretaria a perda de autenticidade do processo. Embora os recortes temporais,
espaciais e de objeto do autor estejam distantes de nossa proposta, suas considera-
ções acerca do processo penal como peça artesanal e informante indireto da dinâ-
mica social são extremamente valiosas. Consideramos a fala do autor, que se segue,
essencial para a compreensão valorativa da documentação de caráter jurídico e
tomamos a liberdade de estendê-las às ações cíveis envolvendo escravos.

7. Curador: derivado do latim curator, de curare, possui o sentido etimológico de indicar a pessoa
que cuida, que cura ou que trata de pessoa estranha e de seus negócios. Na técnica jurídica, outra não
é sua acepção, desde que é tido para designar a pessoa a quem é dada a comissão ou o encargo com
os poderes de vigiar (cuidar, tratar, administrar) os interesses de outra pessoa, que tal não pode fazer
por si mesma. A autoridade do curador, ou seja, os poderes de administração que lhe são conferidos,
em virtude dos quais se apresenta como mandatário ou representante do incapaz, encontram-se
outorgados na própria lei, em que também se inscrevem os casos sujeitos à curatela. O curador se
difere do tutor, visto que pode ser dado aos próprios maiores, desde que declarados interditos, aos
não nascidos (nascituros), e referir-se somente à administração dos bens dos curatelados, enquanto
o tutor é nomeado para representante legal do menor, durante a menoridade. Curador legítimo:
assim se designa a pessoa, que, por lei, é indicada como o curador natural do interdito. SILVA, De
Plácido e. Vocabulário jurídico. p. 593. I vol.
8. O libelo civil constitui a dedução articulada constante do pedido do autor, para que se inicie
a ação ou se promova a demanda. Em matéria penal, constitui a exposição articulada do fato ou
fatos criminosos, narrados circunstancialmente, para que se evidenciem os elementos especiais da
composição da figura delituosa, com a indicação do agente ou agentes a quem são imputados e o
pedido de sua condenação, na forma da regra instituída a lei. ______. Vocabulário jurídico. p. 83.
III vol.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888

[122]

A peça artesanal contém uma rede de signos que se impõem à pri-


meira vista, antes mesmo de uma leitura mais cuidadosa do discurso.
Distinções espaciais expressam-se nos erros de grafia, na transcrição
em conjunto dos depoimentos de várias testemunhas, indicando que
um processo foi instaurado em um bairro distante, com marcas for-
temente rurais. Pobreza e riqueza deixam por vezes nítidas pegadas
distintivas. Em um extremo, a relativa uniformidade relativa da suces-
são de declarações, que não é cortada pelas petições de advogado;
os requerimentos em letra vacilante, ou assinados a rogo, onde os
requerentes esclarecem que deixam de selar por falta de recursos. No
outro, as transcrições dos diferentes atos processuais entremeados de
petições de advogado, em papel linho timbrado; os memoriais impres-
sos, distribuídos aos desembargadores; a peça de defesa datilografada
que, sobretudo em épocas mais remotas, revela o prestígio do próprio
defensor. Isoladamente, talvez o texto mais carregado de significações
seja o documento de antecedentes, juntado em regra, pelo réu, valendo-
-se de sua rede de relações — vizinhos, patrões, colegas, compatriotas
conterrâneos, fregueses. Ele serve para demonstrar, conforme o caso,
a conformidade do acusado com o modelo sócio-familiar, sua origem
respeitável etc. etc. Toda uma gradação da eficácia do documento se
insinua, segundo quem o emite, a força do seu conteúdo verbal, os
signos formais de que está revestido. “Papeluchos de favor”, escri-
tos a mão, em papel ordinário, onde se enfileiram frágeis assinaturas
anônimas contrastam com documentos na solene expressão do termo,
em papel timbrado, datilografados, contendo a assinatura de pessoas
influentes ou representantes de grandes empresas”. (FAUSTO, 1984:
20-21)9

Como afirmamos anteriormente, apesar de tempo, espaço e objetos diversos,


as “pegadas distintivas” apontadas acima pelo autor são facilmente visualizadas
em nosso corpo documental. O número de Juntadas10, os papéis timbrados e dati-
lografados que aparecem mais ao final dos Oitocentos anexados por advogados de
senhores, os “papeluchos sem valor” de subscrições arrecadadas para a compra da
liberdade, os depoimentos fruto das redes de relações sociais, os códigos de compor-
tamento esperados e os papéis atribuídos traçam não apenas o mapa das “verdades
opostas” que se imbricam como também podem significar a diferença entre a liber-
dade e a escravidão, a absolvição e a condenação.

9. FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924).


10. Juntada: derivado de juntar, jungere (unir, ligar), entende-se na técnica forense, o ato pelo qual
se faz unir ao processo um documento ou uma peça, que lhe era estranha e passa a fazer parte dele
e integrando-se em seus atos. Este ato é mencionado nos autos, pelo assento ou termo de juntada,
escrito em que se menciona o que se fez, com a indicação do que se juntou ou uniu ao processo e da
data em que se executou. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. p. 20. III vol.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888

[123]

As distinções sociais aparecem nitidamente nos registros dos escrivães.


Antecedendo o nome das testemunhas ou dos depositários, as qualificações distinti-
vas possibilitam vislumbrarmos os locais de trânsito social, e, também “geográfico”
de senhores e escravos: “cidadão’, “negociante”,“inglês de Nação grande, capita-
lista”, “fazendeiro abastado”, ou “vive de roças”, “vive de lavoura”, “vive de suas
costuras”. Urbano ou rural, o local de “pertencimento” dos contendores delineava-
-se por meio das referências aos recursos utilizados para a sobrevivência de cada
ator social envolvido nos autos.

QUADRO 1: AÇÕES DE LIBERDADE E AÇÕES CÍVEIS


DÉCADAS NÚMERO DE AL* NÚMERO DE AC** % de AL
1850-1859 7 9 43,7
1860-1869 12 5 70,5
1870-1879 23 10 69,6
1880-1888 22 19 53,6
TOTAL 64 43 59,8

Fonte: Ações de Liberdade Iº e IIº Ofícios — ACSM — 1850-1888. *AL=Ações de Liberdade. **AC=Ações Cíveis
envolvendo escravos. Excluídas as ações de liberdade.

O crescimento do número de ações cíveis corrobora para o Termo de Mariana


os dados apontados por Grinberg11 apontando o crescimento das ações de liberdade,
para o período de 1851 a 1870, que chegavam ao Tribunal da Relação do Rio de
Janeiro. Por outro lado, a autora aponta a queda das ações propostas a partir do
ano de promulgação da Lei de 1871, o que não ocorre para o Termo de Mariana,
quando as ações de liberdade atingem o índice de 69,6% das demandas envolvendo
escravos.
Por corresponder a ações demandadas em primeira instância, nossa amostra-
gem possibilita que observemos a evolução das causas da liberdade num quadro
de maior regularidade, já que não se refere apenas às sentenças apeladas e encami-
nhadas ao Tribunal da Relação, que, para a província de Minas Gerais, passou a ser
na cidade de Ouro Preto, a partir de 1873. A Lei de 1871 estabelecia ainda que os
processos de liberdade deveriam ser julgados sumariamente, resolvendo-se as pen-
dências nos tribunais de primeira instância. A soma destes dois aspectos certamente
contribuiu para que o número desses processos apresentasse queda no Tribunal da
Relação do Rio de Janeiro12. Mesmo quando consideramos a queda dessas ações

11. GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 109
12. O Decreto Nº 2342 de 6 de Agosto de 1873, criou mais sete Relações no Império em função do
crescimento populacional de algumas províncias e, consequentemente, para diminuir o número de
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888

[124]

para a década de 1880, conforme indicado no Quadro 1, não atribuímos esta queda
a uma possível descrença, por parte dos escravos, nas soluções legais.
Fatores como o Art. 32 §3 do decreto 5.135 da Regulamentação de 187213, que
favorecia a classificação de escravos não envolvidos em demandas pela liberdade,
a regularização do pecúlio escravo como meio legítimo de obtenção da alforria14,
e, posteriormente, a permissão para a liberalidade direta de terceiros para a obten-
ção da alforria15, certamente contribuíram para que a liberdade fosse alcançada
por outros trajetos legais, distintos das ações de liberdade. A evolução das senten-
ças obtidas pelos demandantes das ações cíveis envolvendo escravos demonstram
alguns dos aspectos colocados acima. Vejamos o gráfico que se segue.

EVOLUÇÃO DAS SENTENÇAS DAS AÇÕES CÍVEIS

Fonte: Ações Cíveis envolvendo escravos Iº e IIº Ofícios — ACSM — 1850-1888. Não foram contabilizados os processos
inconclusos ou incompletos. *A partir de 1873 as apelações foram direcionadas para o Tribunal da Relação de Ouro Preto.
**Incluem os acertos de alforria onerada e de aceitação de proposta do Fundo de Emancipação após 1872. ***Tratam
basicamente de processos que envolviam disputas entre senhores.

processos que chegavam ao Rio de Janeiro. Coleção das leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1831, 1850, 1871, 1872, 1885.
13. O Artigo 32º, § 3º, estabelecia que “O escravo que estiver litigando pela sua liberdade, não será
contemplado na execução do artigo 42; mas ser-lhes-há mantida a preferência, que entretanto
tiver adquirido até a decisão do pleito”. O Artigo 42 do mesmo Decreto era referente à liberdade
dos escravos classificados pelo Fundo de Emancipação. Ou seja, o escravo demandante de ação
de liberdade contra seu senhor não teria direito aos benefícios estabelecidos pelos critérios
de classificação para alforria, definidos pelo Fundo de Emancipação. Não descartamos aqui a
possibilidade de outras vias, para além do caminho jurídico ou dos acordos pessoais, na busca
pela liberdade. As fugas, os assassinatos, entre outros recursos, perpassaram as relações entre
senhores e seus cativos durante toda a vigência da instituição escravista. Contudo, esses embates
não constituem objeto deste estudo.
14. Lei de 28 de setembro de 1871, Art. 4º § 1 e 2. Leis do Império, 1871.
15. Lei de 28 de setembro de 1885, Art. 3º § 9. MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os
anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp,
1999. p. 413.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888

[125]

Consideramos as sentenças conjuntamente, ou seja, o resultado apresentado é


fruto da somatória das ações cíveis e das ações de liberdade. Embora contabilizadas
em conjunto, o multiplicação das sentenças de liberdade e de acordos aponta clara-
mente o crescente favorecimento à liberdade imediata ou à alforria onerada, a partir
da década de 1870. Tal fato certamente se vincula à maior clareza dos requisitos e
procedimentos para a obtenção da liberdade, acumulação de pecúlio, a liberalidade
da alforria por terceiros e os consequentes acordos pela liberdade.
Na década de 1880, os acordos pela liberdade ganharam força não apenas pelos
acertos via Fundo de Emancipação, mas pela maior liberalidade da alforria por ter-
ceiros16. Em ambos os casos, acreditamos que esse crescimento dos acordos tenha
sido influenciado pela crença na fatalidade do final da escravidão sem que houvesse
qualquer tipo de indenização. Certamente os proprietários estariam mais propen-
sos aos acordos indenizatórios, via Fundo de Emancipação, por pecúlio acumulado
pelos cativos ou pela liberalidade de terceiros. Por outro lado, quanto à atuação da
Junta Classificatória para o Fundo de Emancipação, escravos e senhores se mostra-
vam atentos quanto à sua eficiência. Aqueles, pelo receio de serem preteridos em sua
liberdade, estes, pelo receio das perdas financeiras.
Em 1877, o advogado Egydio Antonio do Espírito Santo Saragoça representava
a escrava Sebastiana e seus cinco filhos menores, em demanda contra a classificação
realizada pela Junta, em que sua ‘curada’ teria preferência em relação a outros cati-
vos que constavam da referida classificação. Além disso, o Curador denuncia, em
correspondência ao presidente da província, que:

A Junta Classificadora de Mariana é defeituosa em sua organização e


em seus trabalhos (...) no começo de seus trabalhos figurou um mem-
bro incompatível (...) o Coletor era parente de senhores cujos escra-
vos estavam sendo avaliados e classificados [assim como o Promotor
Público] [o que o colocava] num círculo de ferro e de pressão dos mais
imprecisos sentimentos de natureza, que o tornam incompatível até
de ser Promotor Público da Comarca e Delegado de Instrução Pública
(...) [Quanto aos trabalhos da Junta] não devia convidar aos Senhores
para dar a lista ou a sua proposta dos valores, como se emancipação
não fosse um benefício aos escravos e sim uma atribuição aos senho-
res para libertar aqueles que lhes parecessem nas condições de suas
vontades (...) havendo no Município centenas de famílias para serem

16. Segundo o parágrafo 9º, artigo 3º da Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885, conhecida como
Lei dos Sexagenários: “É permitida a liberalidade direta de terceiros para a alforria do escravo, uma
vez que exiba preço deste”. Ou seja, a “intervenção” de terceiros, certamente possibilitou que as redes
sociais fossem mobilizadas pelos cativos em prol da obtenção da liberdade. Leis do Império, 1885.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888

[126]

alforriadas, não devia preteri-las para classificar indivíduos, e alguns


deles pertencendo aos parentes [do Promotor].17

No mesmo ano, Dona Anna Maria Benedita de Macedo demanda contra a Junta.
Sua escrava Delfina e dois filhos menores, Marcelino, cativo, e Paulino, nascidos de
ventre livre, haviam sido preteridos em favor de Leonor, outra de suas escravas,
porém solteira. Segundo a proprietária, havia muitos outros escravos classificados
indevidamente pela Junta “(...) só por que manifestava pecúlio (...)”18. Ainda em
1877, João Damasceno Correia, tutor dos filhos órfãos do falecido Francisco de
Paula e Silva e de sua mulher, reclama a não classificação da escrava Josepha e seu
filho Raymundo com mais ou menos oito anos e um outro, ingênuo, encontrando-
-se retirar: a ela grávida. Segundo o tutor, Josepha e seu filho possuíam, cada um,
pecúlio de 50$000 réis.
Tais denúncias e reclamações trazem em si uma dubiedade inerente. Quais os
interesses realmente defendidos? Dos cativos? Dos senhores? Afinal, ao se recla-
mar contra as incongruências da Junta de Classificação, o benefício da liberdade a
ser obtida torna-se também o benefício da indenização. As relações entre a Junta
Classificatória e os senhores teriam sido pautadas não apenas pelas definições legais
para a classificação dos cativos, mas também pelas redes de relações pessoais acio-
nadas e os interesses financeiros do Fundo de Emancipação. Seriam estes aspectos
os responsáveis pela emergência dos conflitos relatados acima.
Afinal, para o Fundo, libertar Leonora, possuidora de pecúlio, era mais vanta-
joso, em função da indenização a ser paga pela própria escrava, que libertar Delfina,
sem pecúlio registrado. Para Dona Anna Maria, certamente a liberdade indenizada
de uma escrava e de seu filho menor garantia, pelo menos em parte, o retorno de
seus investimentos antes que a possibilidade da abolição se concretizasse. Somado
a isso, escravas que não mais “produziam” filhos escravos — após a Lei do Ventre
Livre em 1871 — certamente diminuíram o interesse senhorial em mantê-las sob
cativeiro. Fato é que, mesmo quando as insatisfações com o Fundo eram manifesta-
das, os arbitramentos para preço de escravo eram acordados.
No caso da escrava Adriana e de sua filha Maria, ambas pertencentes a Joaquim
Martins da Silva, o Coletor aceitou pagar o valor determinado pelo senhor, “por

17. APM, SG, 152. Para que a ação de libertação dos escravos fosse realizada através do Fundo de
Emancipação, deveria ser constituída uma Junta Classificadora, que funcionaria localmente, e daria
conta do controle dos cativos que seriam libertados. A composição dessa Junta variava, podendo
ser encontradas autoridades civis e militares. De maneira geral, pelos documentos encontrados,
o número de componentes era de duas pessoas, sendo na maior parte das vezes, formada pelo
Promotor Público e pelo Coletor Estadual.
18. ACSM, ação cível, códice 389, auto 8497, ano 1877, Iº Ofício.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888

[127]

tê-las visto e julgar razoável o preço pedido”19. Os acertos entre Joaquim Martins da
Silva e o Fundo incluíram ainda a cessão, por parte deste, em benefício das escravas,
da quantia de trezentos e cinquenta mil réis, logo, receberia por indenização um
conto quatrocentos e cinquenta mil réis. Aparentemente sem incidentes que justifi-
cassem o arbitramento da justiça, a insatisfação senhorial acabava por se revelar em
sua afirmação de que “(...) se não fora para a liberdade, não as vendia [mãe e filha]
por preço algum (...)”20.
Assim as histórias de Dona Anna Maria Benedita de Macedo e Joaquim Martins
da Silva convergem para o mesmo ponto, a mediação do Estado, via aparato jurí-
dico, nas relações escravistas. Jogar dentro das novas regras e beneficiar-se destas
era um novo aprendizado para ambos os lados. Vale ressaltar ainda que, para a
década de 1880, os acertos com o Fundo de Emancipação foram predominantes.
Os acordos entre senhores e escravos corresponderam a 83,3% dos firmados via o
Fundo. Os outros 16,6 % foram fruto da compra de alforria pelo próprio escravo.
A alforria por terceiros, por sua vez, em nossa amostragem, aparece relacio-
nada às relações familiares e às relações sociais. As relações sociais com certeza
possibilitaram que a Irmã Martha Laverssiere [sic], Madre Superiora do Colégio da
Providência da cidade de Mariana, tivesse sucesso na ação de liberdade movida em
favor da escrava Catharina, de menor idade, pertencente a D. Maria Francisca do
Carmo. A Superiora do referido Colégio amealhou, por meio da doação de pessoas
“(...) desta Cidade a benefício da liberdade daquela menor, afim de ter ela uma edu-
cação mais conveniente para a sociedade e que como escrava não pode ter (...)”21,
não apenas os 300$000 réis iniciais, como os 500$000 réis necessários para o fecha-
mento do acordo com a senhora da escrava e a consequente alforria.
A evolução das sentenças aponta nitidamente o crescimento das sentenças de
liberdade, principalmente a partir de 1870, conforme dito acima22. Embora os acor-
dos constituam também sentença de liberdade, afinal foram arbitrados em juízo,
optamos por separar os resultados com o intuito de apontar as demandas envol-

19. ACSM, ação cível, códice 446, auto 9637, ano 1877, Iº Ofício.
20. ACSM, ação cível, códice 446, auto 9637, ano 1877, Iº Ofício.
21. ACSM, ação de liberdade, códice 316, auto 7557, ano 1881, IIº Ofício. Curiosamente, a ação
transcorre em 1881, período anterior à Lei dos Sexagenários de 1885 que regulamentou a alforria
por terceiros.
22. Mesmo considerando a impossibilidade de conhecer o resultado final de todas as ações
componentes de nosso corpo documental, os números do GRÁFICO 1 apontam uma tendência
que, acreditamos, manter-se-ia se as demandas incompletas ou inconclusas, hipoteticamente,
apresentassem sentença final. Essa classificação foi feita por serem autos sem finalização, ou por
terem sido enviados ao juiz para avaliação e sentença ou por estar faltando parte do documento, e
não pelo abandono do processo pelos contendores.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888

[128]

vendo o Fundo de Emancipação23. Excluídos os processos incompletos e as senten-


ças classificadas como “DEMAIS”, as ações com afirmação da liberdade correspon-
deriam a 30,7% das sentenças para a década de 1870 e 26,6% para a década de
1880. Porém, a pequena queda dessa afirmação apontada para a década de 1880
é compensada pelos acordos, que apresentaram um índice de 40% para o período,
contra 23% para a década de 1870. Considerando a somatória das sentenças, liber-
dade + acordo, teríamos para a década de 1870, 53,7% e para a década de 1880,
66,6% de confirmações para a liberdade24. Para as décadas anteriores, 1850 e 1860,
as sentenças de liberdade corresponderiam, respectivamente, a 25% e a 42,8%. Não
se configuraram acordos para este período.
Contudo, se avaliarmos a evolução das sentenças de liberdade, mesmo des-
considerando os acordos, da década de 1860 para as de 1870 e 1880, teríamos
um aumento de 166,6% nas confirmações pela liberdade. O peso dos acordos nas
sentenças de liberdade é evidente, principalmente via Fundo de Emancipação, o
que nos permite inferir que, mesmo com as reclamações e possíveis favorecimentos
pessoais, a opção pela aceitação dos valores arbitrados em juízo revelava a preocu-
pação senhorial com o recebimento de algum tipo de indenização pela propriedade
perdida. Como afirmamos acima, a Lei do Ventre Livre de 1871 e as suas regula-
mentações teriam levado senhores e escravos a se posicionarem diante de uma legis-
lação que não se prestava apenas a solucionar os conflitos surgidos dos desarranjos,
mas que normatizava procedimentos para a obtenção da liberdade. Sendo assim,
mesmo que tais regulamentações possibilitassem um efeito “perverso” da lei, ou
seja, o cerceamento da liberdade, pois, para obtê-la, o escravo deveria seguir todas
as especificações determinadas legalmente, sua contrapartida era igualmente válida,
ou seja, os senhores não cumpridores das regras que permitiam a manutenção da
escravidão se viam cerceados em sua prerrogativa maior: o controle da alforria do
escravo.
As ações de liberdade e ações cíveis envolvendo escravos possibilitam desvelar
muitas das estratégias, de senhores e escravos, que recorreram à justiça, seja para

23. De acordo com os dados de MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, Século XIX: tráfico
e apego à escravidão numa economia não-exportadora. In: Estudos Econômicos, São Paulo, v. 13,
n. 1, jan.-abr. 1983. p. 203, o Fundo de Emancipação teria sido responsável pela liberdade de 629
escravos na província de Minas Gerais, no período de 1875 a 1880. Segue-se a distribuição, por
região, dos escravos libertados: Metalúrgica 167, Mata 165, Sul 157 e Outras Regiões 140. Para
Mariana e seu Termo, o corpo documental analisado aponta uma recorrência maior ao Fundo de
Emancipação para a década de 1880.
24. Para o mesmo período, décadas de 1870 e 1880, as sentenças de não liberdade corresponderiam
a 7,6% e 6,6% respectivamente. Os cálculos foram feitos a partir da somatória das sentenças por
década, excluídos os processos classificados como Inconclusos ou Incompletos.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888

[129]

preservar a propriedade ou vivenciar, mesmo que temporariamente, no caso dos


cativos, situação diversa da qual se encontravam. O tempo prolongado das deman-
das jurídicas significou, para muitos escravos, a manutenção da unidade de famílias
que se achavam na iminência de serem separadas por venda, o afastamento de um
trabalho mais árduo ou de um senhor mais rigoroso. Mesmo sem caráter definitivo,
a liberdade usufruída por meio do depósito, durante o tempo em que a demanda
transcorria, foi certamente, a única experiência de liberdade provada por muitos
cativos antes de 1888.
Documento
Trechos do processo de liberdade de Antonio Avelar, escravo de
Affonso Augusto de Oliveira. Disponível no Arquivo da Casa
Setecentista de Mariana. Ação Cível. Códice: 448. Auto: 9680.
Ano: 1883. Iº Ofício.

Data
15 a 25 de maio de 1883

Resumo
Em maio de 1883, Antonio Avelar, africano, estava preso por
ordem de seu senhor, Affonso Augusto de Oliveira. Intenta-se
uma ação de liberdade argumentando não poder ser ele escravo
por ter sido importado posteriormente à lei de 1831, que
extinguiu o tráfico atlântico. Pelo que se pode depreender dos
trechos, no decorrer do processo se alega que a sua verdadeira
idade é 56 anos, e não 35, como informado no termo de
abertura. Durante o interrogatório, Antonio fala de sua família
na África, da travessia do Atlântico e dos sucessivos senhores
por que teria passado até aquela data. Informa também,
estando o seu senhor presente no interrogatório, reconhecer ser
escravo e nunca ter requerido a pessoa alguma que requisitasse
sua liberdade.
[fl. 1]

1 1883

2 Autor

3 Antonio Africano competencia de seo Cura


4 dor o Advogado Joaquim da Silva Braga Breyner

5 Reo

6 Affonso Augusto da Oliveira

7 Accaõ de Liberdade

8 Escrivao ___________________________________________ Bazilio

9 Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Chris


10 to de mil oitocentos e oitenta e tres aos dezaseis dias
11 do mes de Maio do dito anno nesta Leal Cidade
12 de Mariana em o meo Cartorio ahi por parte do
13 do [sic] Autor Joaqu digo Autor Antonio Affricano com
14 assistencia de seo Curador nomeado me foi apresenta
15 do huma sua petição com o despacho nella profe
16 rido pelo Coronel João Paulo de Faria primeiro
17 Supplente do Juis Municipal d’orfons[?] mefoi apre
18 sentado huma sua petição com o despacho nella
19 proferido pelo dito Juis para effeito do seo [ser]vicio
20 authoado, e proseguir nelles mais comforme o di
21 to despacho, a qual por bem do mesmo despacho
22 e a Distribuicão assim feita o aceitei e authoei e aqui
23 ajunto athé a que ao deante coregiu. E para constar
24 faço esta authoacão Eu Manoel Bazilio do Espi
25 rito Santo Tabelião que o escrevî e assigno.

26 Manoel Bazilio do Espirito Santo


[...]
[fl. 2]
<Despachado Ao 1º Officio
Marianna 16 de Maio de 1883
Rêis.>1
1 Ilustríssimo Senhor Coronel Juis Municipal
1. Mudança na tinta.
<Juro suspeiçaõ; seja presente ao meo imme-
diato. Marianna, 15 de Maio de 1883
Faria>1

2 Diz Antonio, Affricano, com a idade de 35


3 annos, preso na Cadeia desta Cidade á titulo
4 de escravo de Affonso Augusto de Oliveira,
5 que sendo livre por ter vindo de seu
6 paiz, ha muitos anos, depois da Lei que
7 abolio o trafico, naõ pode continuar
8 a soffrer injusta prisaõ, por naõ ter
9 commettido crime algum, e assim
10 requer á Vossa Senhoria que se sirva manda-
11 lo pôr em liberdade; e quando al-
12 guma suspeita paire a respeito da
13 condicçaõ do Supplicante, se sirva a
14 Vossa Senhoria nomear um Curador, que
1. Mudança na tinta. 15 requeira o deposito do supplicante
16 e defenda os seus direitos

<Juro suspeição; 17 Pede a Vossa Senhoria que destribuida


seja presente a quem 18 e Authoada esta prossiga em
competir 19 seus termos
Marianna.
15 de Maio de 1883 20 E Receberá Merce
Marques>2

2. Mudança na tinta e na caligrafia.

21 A rogo do Supplicante
22 José Francisco do Couto
<Juro suspeição, aprezente a quem competir.
Marianna 16 de Maio de 1883.

Godoÿ>1

<Junte-se a matriculla e volte


Marianna 16 de Maio de 1883.

Americano>

1. Mudança na tinta.
[...]

[fl. 5]

1 Ilustríssimo Senhor Juis Municipal

[2 selos: Imperio do Brazil, 100 réis]


<Nos autos, vistas ao Curador
Marianna 16 de Maio de 83
Americano>1

1. Por sobre os selos.


2 Dis o escravo Antonio de Avelar per-
3 tencente a Affonso2 Augusto de Oliveira
4 que constando-lhe que o Cidadaõ Jose
5 Francisco do Couto apresentara a Vossa Senhoria um
6 requerimento assignado a rogo do supplicante
7 pedindo deposito de sua pessoa, para
8 intentar uma accaõ de liberdade, sobre
9 o fundamento de que é o supplicante importado
10 posteriormente a lei de 1831, vem declarar
11 que nada pedio ao referido Cidadaõ que
12 a seu rogo assignou, porquanto reconhece
13 que de facto é captivo visto como tem a
14 idade de 56 annos.

15 E como naõ se quer prestar para vingan-


16 ças alheias fas a presente declaraçaõ em pre-
17 sença das testemunhas abaixo menciona-
18 das e pedio a Olympio Donato Corrêa
19 para ella escrever e a seo rogo assignar

20 A rogo de Antonio Avelar


21 Olympio Donato Corrêa
22 Como3 testemunha David da Silva Pereira Coelho
23 “ “ Francisco Gomes de Oliveira
24 “ “ Manuel Vinhaõ[?] Leite Junior que vi
25 o supplicante comfirmando a allegada, com excepção da
26 circunstancia da idade, que para enquanto perciste per

2. Arrependimento na letra “s”.


3. Mudança de caligrafia.
[…]
[fl. 7]

1 Auto de Interrogatorio

2 Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Chris


3 to de mil oitocentos e oitenta e tres aos vinte
4 cinco dias do mes de Maio do mesmo anno
5 nesta Leal Cidade de Mariana em a Salla das
6 audiencias aonde foi vindo o Cidadao Francisco Bap
7 tista Americano Presidente da Camara Mu
8 nicipal desta Cidade e seo Município servindo de
9 Juis Municipal no Impedimento de Juizes Muni
10 cipais Supplentes, comigo Tabeliao ao deante
11 nomeado corregnado[?] vim, para effeito de
12 proceder-se ao Interrogatorio ao escravo An
13 tonio pertencente a Affonço Augusto de Oliveira
14 comforme foi requerido pelo Curador do mes
15 mo, que tambem seacha presente, e apresen
16 ta o Senhor do escravo; Passando o Juiz em se-
17 guida a fazer as perguntas seguintes =

18 Qual o seo nome idade naturalidade e reziden


19 cia?
20 Respondeo chamar-se Antonio Avellar,
21 natural da Costa da Affrica e ter de idade mui
22 to mais de cincoenta annos não podendo pre
23 cizalla por ter vindo muito pequeno nesta Cida
24 de e he rezidente nesta Cidade.

25 Qual a sua proffis


26 saõ e meios de vida? Respondeo que ê jorna
27 leiro; Qual o seo estado. Respondeo que ê sol
28 teiro. Á quanto tempo seacha no Brasil e
29 quem foi o seo primeiro Senhor? Respondeo
30 que esta neste Paiz a muitos annos e serecorda que
31 quando estava ainda na Affrica na Naçaõ Con
32 go tinha Pay e May ainda mossos1 e que todos
33 os annos sua May tinha hum filho e que ao
34 todo já heraõ sette Irmaons sendo que hum
35 mais velho tiria oito para nove annos, e que sen
36 do elle o terceiro ca[ss]ula ter a defferenca de
37 dois a tres annos ficando ainda na Costa quatro
38 Irmaonszinhos sendo hum de peito ainda e elle
39 interrogado nesta Cidade veio para o Brazil

1. “Moços”.
[fl.7v]

1 Em companhia de seos dous Irmaons mais ve-


2 lhos, lembrandose de pertencerem como escra
3 vos ao defunto Joaõ Paulo de Carvalho ja falleci
4 do a muitos annos, e depois ao finado Luis Carva
5 lho, e ainda depois a finada Dona Antonia
6 Francisco de Carvalho, e o [ilegível] ês[?] escra
7 vo de Dona Maria da Conceiçaõ Maciel caza-
8 da com Affonco Augusto Maciel por heranca
9 que o mesmo ficou da finada sua viuva dita
10 Dona Antonia.

11 Perguntado quando veio da Costa


12 da Affrica se veio só ou se veio[?] com muitos compa
13 nheiros, se em Navio de Vella ou Vâpôr? Respon
14 deo que serecorda ter vindo em Navio de Vella
15 e que com elle vieraõ muitos mininos, e pessoas
16 maiores. Perguntado quando chegaraõ ao
17 Brazil, qual o logar ou Cidade em que se des
18 embarcaraõ? Respondeo que elle desembarca
19 ra em Macâẽ sendo que parte ahi ficou e elle
20 e outros embarcaraõ de novamente e vieraõ pa
21 ra o Rio de Janeiro desembarcando em Bota
22 fogo e dahi seguiraõ para o Mâr de Hespanha
23 ficando alguns no Rio de Janeiro.

24 Perguntado
25 se o Navio em que vinhaõ naõ foi perseguido
26 no alto mâr ou mesmo a Costa por alguma
27 embarcaçaõ estrangeira. Respondeo que nunca
28 foraõ perceguido por embarcacaõ alguma.
29 Sendo assim como disse qual a razaõ que prezu
30 me ter a dizer que ê livre por ser Affricano?
31 Respondeo que nunca disse coiza nenhuma por

32 que reconhece ser escravo. Perguntado como


33 ê que o Cidadaõ Joze Francisco do Couto ami
34 go delle respondente pedio hum Curador e hum
35 depozitario allegando ser affricano livre e em
36 vista de disso seacha elle depozitario? Respon
37 deo que nunca pedio a pessoa alguma para requerer
[fl.8]

1 Requerer por si a sua liberdade, môrmente agora


2 que seachava prezo por ordem de seo Senhor
3 que nunca vio e nam convercou ahi com o Senhor
4 Jozé Francisco do Couto; mas que ê verdade ter elle
5 vindo nesta Cadeia e procurado por elle respondente
6 naõ podendo converçar por estar o mesmo mui
7 to apressado. E mais naõ diz; como lhe foi pergun
8 tado, assigna elle Juis, e pelo respondente seassig
9 na a seo rogo Antonio Ferreira Ermelindo de
10 pois de tudo ser lido por mim Manoel Bazilio
11 do Espirito Santo Tabeliaõ que o escrevẏ

12 Americano.
13 Manoel Bazilio do Espirito Santo
14 O Curador Joaquim da Silva Braga Breyner
15 Antonio Ferreira Ermelindo
16 Affonso Augusto de Oliveira

18 Vista

19 Aos vinte nove dias do mes de Maio de mil oito


20 centos e oitenta e tres annos nesta Leal Cidade de
21 Mariana no meo Cartorio sendo ahi faco com
22 vista estes autos ao Advogado Joaquim da Silva
23 Braga Breyner Curador nomeado a Antonio Affri
24 cano. E para constar faço este termo. Eu Manoel Ba
25 zilio do Espirito Santo Tabeliaõ que os escrevÿ.

26 Ao dito Curador
Carlos de Oliveira Malaquias 1
Doutor em História pela UFMG

Os processos-crimes: uma
janela para o cotidiano do
trabalho em Minas Gerais na
primeira metade do séc. XIX

O uso de processos criminais como fontes para a História não é nenhuma novi-
dade. No âmbito acadêmico brasileiro, podemos encontrar estudos que se valem
desse corpus, pelos menos, desde a década de 19602. Desde então, os processos-
-crimes serviram para estudos sobre a criminalidade, a manutenção da ordem e o
funcionamento do aparato judicial. Mais recentemente, a leitura cuidadosa desses
documentos tem revelado detalhes importantes sobre as sociabilidades dos grupos
subalternos, permitindo recuperar o cotidiano de escravos, pobres e trabalhadores3.

1. O autor deseja registrar seu agradecimento à Oficina de Paleografia - UFMG pelo convite para a
conferência que originou este artigo, em especial reconhecer a dedicação de Mateus Frizzone e a
paciência de Fabiana Léo.
2. As referências seminais são FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem
escravocrata. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, originalmente defendido como tese
em 1964 e publicado em 1969; FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo: DIFEL,
1977 e FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: A Criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo:
Editora Brasiliense, 1984.
3. Sem a pretensão de esgotar os exemplos, uma pequena lista trabalhos de referência no uso
desta documentação incluiria CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos
trabalhadores no Rio de Janeiro na Belle Epoque. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986; MACHADO,
Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888.
São Paulo: Brasiliense, 1987 e da mesma autora MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico:
movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editoria da UFRJ/ Editora
da Universidade de São Paulo, 1994; MATTOS, Hebe M. Das Cores do Silêncio. Os significados
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX

[146]

Neste artigo, desejamos chamar atenção para as potencialidades desses documentos


para o estudo das relações produtivas. Na medida em que o cotidiano do trabalho
enfeixava uma larga diversidade de relações sociais, não é preciso muita perspicácia
para apreender o universo da produção econômica a partir das informações dos
processos criminais. Em muitos casos os ambientes de trabalho são cenários de
crimes, as ferramentas aparecem como armas e disputas pela posse e uso de recur-
sos surgem como motivações para agressões e furtos. Pode-se vislumbrar o quanto
as ocupações diferenciavam socialmente os envolvidos ou como gênero e ofício se
imbricavam.
Dois aspectos colocavam as necessidades laborais nos espaços mais importantes
do cotidiano mineiro oitocentista. Em primeiro lugar, a existência da escravidão,
afinal, o escravo é antes de tudo alguém submetido à autoridade de um senhor que
o coage ao trabalho. A escravidão engendrava uma lógica particular de controle
do trabalho, em que o domínio do produtor escravo acontecia no âmbito privado
sob a autoridade pessoal de um senhor4. Em segundo, deve-se recordar que nas
sociedades pré-industriais não havia a atual dissociação entre espaço doméstico e
espaço produtivo. Antes da industrialização e urbanização separarem a habitação e
o trabalho, a noção de ambiente doméstico recobria não só a casa de vivenda, mas
também os espaços produtivos onde labutavam escravos e outros dependentes do
chefe do domicílio, engendrando uma unidade espacial peculiar, tipicamente pré-
-capitalista, na qual as funções de produção econômica e reprodução social mescla-
vam-se5. Essa realidade tornava a concepção de trabalho fundamental, pois recobria
a maior parte da existência das pessoas e envolvia várias dimensões da vida — para
ficar com algumas mais evidentes: as normas familiares e a constituição dos domicí-
lios; os sistemas de herança e de transmissão de bens; as relações de parentesco e de
solidariedade; as regras de propriedade da terra e outros meios produtivos; as dívi-
das etc. É nesse ponto que os processos-crimes podem ajudar a captar lampejos do
cotidiano do trabalho: ao apresentar narrativas, explicações e/ou versões dos fatos
criminais do qual tratam, os processos-crimes permitem recuperar visões e atitudes

da liberdade no sudeste escravista (Brasil, séc. XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995;
WISSENBACH, Maria Cristina C. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São
Paulo, 1850-1880. São Paulo: Hucitec, 1998.
4. Dois trabalhos fundamentais para entender como a escravidão constituía-se em uma relação de
dominação baseada no poder pessoal do senhor sobre o escravos são LARA, Sílvia Hunold. Campos
da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750 — 1808. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1988; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na Corte (7ª. impressão: 2009). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
5. RODARTE, Mario Marcos Sampaio. O trabalho do fogo: domicílios ou famílias do passado - Minas
Gerais, 1830. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012 é uma referência atual que recupera os sentidos
múltiplos dos domicílios do passado. A obra discute a principal bibliografia que trata do tema.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX

[147]

dos sujeitos históricos sobre o trabalho que de outra forma restariam insondáveis
ou só tangenciadas por outras fontes documentais.
As fontes que apresentamos neste artigo são dois excertos de processos-crimes
abertos na antiga Comarca do Rio das Mortes da Província de Minas Gerais na
primeira metade do século XIX. No primeiro fragmento, apresentamos a queixa
que fez Ana Joaquina de Faria contra o assédio, invasão e furto praticados por um
vizinho; no segundo, discutimos o depoimento prestado por Jacinta Maria de Jesus
sobre o assassinato da escrava Felicidade cabra6. Os processos-crimes eram maiores
e mais informativos do que estes excertos. Nossa seleção visa oferecer uma amostra
das diferentes partes constitutivas dessa fonte que é, na verdade, um maço de docu-
mentos gerados por vários atos jurídicos, cada um com regras próprias para sua
construção. Para entender em que momento dos processos cada um desses excertos
aparece e que interesses presidem a sua feitura, convém atentar para alguns aspectos
da produção desses documentos.

A estrutura do documento

Os processos-crimes são uma documentação serial e normativa da justiça cri-


minal produzidos a partir da década de 1830. Antes dessa data, os fatos criminais
poderiam ser encaminhados à justiça régia sob a forma de querelas ou de devassas —
as primeiras tomavam lugar quando um súdito denunciava que estava sendo preju-
dicado pelas ações de outrem, enquanto as segundas eram investigações do governo
a partir de uma denúncia. Os processos crime ganharam forma com o Código
Criminal do Império de 16 de dez. de 1830 e o Código do Processo Criminal de
29 de nov. de 1832, com ligeiras mudanças com a Reforma do Código do Processo
Criminal de 3 de dez. de 18417. Esses documentos têm, normalmente, duas partes
principais: o Sumário de Culpa e o Julgamento, cada uma contendo subpartes8.

6. Arquivo do Escritório Técnico II, Iphan, 13ª Superintendência, São João del Rei (MG). Processos
Crimes. PC.28-05 e PC.04-09.
7. Lei do Império de 29 de novembro de 1832 - Promulga o Código do Processo Criminal de
primeira instancia com disposição provisória acerca da administração da Justiça Civil. Coleção
das Leis do Brasil. 1832. V. 1, p. 186. Captado em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/
lim-29-11-1832.htm. Acesso em 01 nov. 2013. Lei Nº 261, de 3 de dezembro de 1841. Reforma do
Codigo do Processo Criminal. Coleção das Leis do Brasil. 1841. V. 1, p. 75. Captado em https://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM261.htm. Acesso em 01 nov. 2013.
8. Uma explicação didática e sintética da estrutura desses documentos pode ser vista em FERREIRA,
Ricardo Alexandre. Senhores de poucos escravos: cativeiro e criminalidade num ambiente rural, 1830
— 1888. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p.25-26.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX

[148]

O Sumário de Culpa substituiu as antigas quereles e devassas dos processos


coloniais, sendo produzido a partir da queixa de um cidadão ou de uma denúncia a
ser investigada pelas autoridades judiciais. O responsável pela produção desta parte
do documento era o Juiz de Paz até 1841 e, depois, os Delegados e Subdelegados9.
Segundo o Código do Processo de 1832, em seu Art. 79, a queixa ou denúncia deve-
ria conter as informações fundamentais do crime — a descrição do fato criminoso
com suas circunstancias, o dano sofrido, a identificação do delinquente e sua moti-
vação. Essa parte serve como resumo do processo e sua leitura adianta vários dos
temas tratados no documento10. À queixa ou denúncia seguia-se o auto de corpo de
delito, em que os vestígios materiais do crime são apresentados, seja o exame do(s)
ofendido(s), no caso de agressão física, ou a perícia do local do crime. O processo
tem continuidade com a qualificação do acusado/réu e os depoimentos tomados às
partes envolvidas e às testemunhas, em número de cinco a oito.
Na parte final do Sumário de Culpa, o responsável pelo processo faz sua con-
clusão e delibera se existem motivos para citar criminalmente o(s) réu(s). Em caso
afirmativo, o processo sobe uma instância, sendo remetido ao Juiz Municipal que
deveria iniciar o Julgamento11. Essa é a parte mais burocrática do processo e onde
entram em ação os advogados e promotores e a aplicação da legislação. Os estudos
históricos que se preocupam com a atualização das leis, seu enfrentamento prá-
tico, e a realização da justiça usam essa parte dos processos privilegiadamente12. A

9. O Código do Processo de 1832 descentralizava a Justiça e dava maiores competências ao Juiz


de Paz. Em função do processo de centralização de fins do Período Regencial e início do Segundo
Reinado, no ano de 1841 a reforma do Código transferiu as principais atribuições dos Juízes de Paz
passaram para os Delegados, Subdelegados e Chefes de Polícia. VELLASCO, Ivan de Andrade. As
seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça: Minas Gerais — século 19.
Bauru/São Paulo: Edusc/ANPOCS, 2004, pp.121-122 e pp.145-146.
10. Infelizmente ainda são raras iniciativas como a do Laboratório de Pesquisa e Conservação
Documental (Labdoc) da UFSJ em catalogar e fornecer um resumo do acervo de processos-crimes
da antiga Comarca do Rio das Mortes. Graças a esse trabalho, os processos das antigas vilas de
São João e São José del Rei, Oliveira, Tamanduá (atual Itapecerica) e Queluz (atual Conselheiro
Lafaiete) podem ser facilmente localizados. Mais informações em http://www.documenta.ufsj.edu.
br//. Acesso em 01 nov. de 2013.
11. Até o ano de 1841, finalizado o sumário de culpa o processo seguia para o chamado 1º conselho
de jurados, ou Júri de Acusação, que decidia se havia no processo suficiente esclarecimento do
crime e seu autor para proceder a acusação. Essa instância foi abolida pela Reforma do Código
do Processo para fornecer agilidade aos procedimentos jurídicos. Sobre a implantação do Júri no
Brasil e sua atuação em Minas Gerais consultar o valioso trabalho de AMENO, Viviane Penha C. S.
Implementação do Júri no Brasil: debates legislativos e estudo de caso (1823-1841). 147f. Dissertação
(Mestrado em História) Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em
História, Belo Horizonte, 2011.
12. FERREIRA, Ricardo Alexandre. Crimes em comum: escravidão e liberdade sob a pena do Estado
Imperial brasileiro. (1830-1888). São Paulo: Editora da Unesp, 2011. AMENO, Viviane Penha C. S.
Implementação do Júri no Brasil.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX

[149]

primeira subparte do Julgamento é o libelo crime acusatório, em que o acusador


(promotor público, advogado ou mesmo o delegado) oferecia ao Júri uma descrição
do crime fundamentada na legislação que foi infringida. Nesse ponto, ocorria novo
interrogatório ao acusado sobre os pontos do libelo e nova inquirição das testemu-
nhas. A seguir, o defensor oferecia sua contrariedade ao libelo acusatório, sendo
ouvidas as testemunhas de defesa. O Art. 269 do Código do Processo rezava que
competia ao Júri decidir sobre o crime tendo em vista a ocorrência de ato criminoso,
a culpa do réu e se havia lugar à indenização. O Juiz de Direito decidia sobre a pena
e fixava o valor indenizatório.
Para o estudo do cotidiano do trabalho, essa fonte é valiosa sobretudo por que
oferece acesso às opiniões de homens pobres, mulheres, escravos e representantes de
outros grupos que normalmente não deixavam registros públicos da sua passagem.
Há, evidentemente, motivos para desconfiar do que se lê. A primeira, e mais óbvia, é
que as vozes dos queixosos, dos réus e das testemunhas eram registradas pela pena
do escrivão, que raras vezes indicava se o que seguia transcrito era a fala literal
das pessoas. O uso de aspas era muito raro. Um sinal típico de transcrição da fala
era o duplo travessão, que quase não aparece. Outra indicação da literalidade dos
depoimentos é a descrição do gestual do depoente. Mas, em geral, não nos é dado
saber se as palavras que aparecem nos depoimentos foram as mesmas usadas pelos
indivíduos. A repetição de certos termos e de construções semelhantes de frases nos
depoimentos de diferentes testemunhas sugere que o escrivão fazia também um
trabalho de tradução dos depoimentos, adaptando a fala dos depoentes ao jargão
jurídico. Outra questão sobre os depoimentos é quem nem todo mundo podia ser
testemunha, isto é, nem todos os relatos tinham valor de prova, embora pudessem
ser utilizados a títulos de informação. O Art. 89 do Código do Processo Criminal
estabelecia aqueles que só poderiam ser informantes nos processos: “o ascendente,
descendente, marido, ou mulher, parente até o segundo grau, o escravo, e o menor
de quatorze anos”; os menores e os escravos só poderiam prestar informações sob
um curador, o que coloca ainda mais um intermediário entre sua expressão e o
registro escrito no documento.
A segunda suspeita sobre as diversas vozes que o processo-crime apresenta é
que elas estabelecem narrativas de acordo com os interesses das partes envolvidas
e segundo a lógica dos interrogatórios. São muito comuns documentos em que os
testemunhos, tomados mais de uma vez, acrescentam detalhes, retificam declara-
ções e, até mesmo, mudam completamente de teor com o andamento do processo.
Normalmente, a inquirição de um réu tomada pelo delegado de polícia é diferente
daquela apresentada no julgamento, quando o réu já teve oportunidade de ter orien-
tação de um advogado. Exemplo muito significativo, são os processos sobre revoltas
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX

[150]

de escravos em que os réus assumem a responsabilidade no primeiro interrogató-


rio, mas num segundo momento afirmam que o líder/idealizador da revolta foi um
escravo morto no episódio13. Na prática, para o historiador, o que chama aten-
ção nas narrativas construídas nos processos é a forma como cada sujeito constrói
discursivamente sua versão, que categorias ele maneja, que imagens e representa-
ções ele utiliza para convencer e como esses elementos referem-se ao universo mais
amplo das relações produtivas14.

Ana Joaquina de Faria, solteira e chefe de domicílio

O primeiro excerto selecionado é a página inicial de um processo-crime acom-


panhado da queixa proposta pela vítima (ou suplicante) contra o acusado (supli-
cado). Nesse documento, datado de 1843, Ana Joaquina de Faria dava parte de
um seu vizinho, José Antônio Marcelhas, que lhe assediava — “para a consumação
de atos libidinosos” — e, não sendo admitido, acabou invadindo a casa de Ana
Joaquina, causando vários prejuízos e proferindo ameaças à sua vida. Embora a
queixa fosse proposta por Ana Joaquina, não foi ela quem a produziu: analfabeta,
a postulante rogou a Francisco de Souza Gaia que assinasse a queixa em seu nome.
Possivelmente Ana Joaquina contou com a ajuda de algum rábula ou solicitador de
causas para realizar sua demanda. Embora não seja a voz da personagem que esteja
gravada no documento — produzido segundo as normas judiciais e embasado nos
artigos do Código Criminal — ele apresenta elementos interessantes sobre a vida
e o trabalho de um domicílio feminino no ambiente rural mineiro de meados do
século XIX.
Segundo a queixa, Ana Joaquina de Faria vivia com a mãe, “velha e doente”, e
mais uma outra mulher não identificada. Domicílios de chefia feminina não eram
raros em Minas, muito pelo contrário. Durante o Século do Ouro eram comuns

13. Como no processo dos escravos envolvidos na Revolta de Carrancas ocorrida em Minas Gerais
em 1833 conforme ANDRADE, Marcos Ferreira. Elites regionais e a formação do estado imperial
brasileiro - Minas Gerais - Campanha da Princesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008. Ou
dos sete cativos que mataram seu senhor em Campos em 1871. PIROLA, Ricardo F. Escravos e
rebeldes nos tribunais do Império: assassinatos de senhores em Campos dos Goytacazes (1873).
In: VI Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2013, Florianópolis. Anais do VI
Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Florianópolis: Universidade Federal de
Santa Catarina, 2013. v. 1. pp. 1-14.
14. Uma referência útil para quem manipula documentação jurídica é GINZBURG, Carlo. “O
inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações”. In: ______. A micro-história
e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991, pp.203-14. Ver também a discussão proposta por
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX

[151]

mulheres forras que viviam de diversos tipos de comércio e se sustentavam sozinhas15.


Em Minas Gerais nos anos 1830 pouco mais de um quarto das unidades domésticas
eram comandadas por mulheres16. Esses domicílios, no entanto, não gozavam do
mesmo status. Em geral, os fogos chefiados por mulheres viúvas eram mais ricos do
que os chefiados por solteiras. Segundo um estudo recente, domicílios de mulheres
solteiras eram mais comuns nas vilas maiores e nas áreas semi-urbanizadas dos
arraiais, viviam de atividades artesanais, sobretudo a produção têxtil, enquanto os
fogos de mulheres viúvas ocupavam-se mais tipicamente da agricultura e possuíam
escravos mais frequentemente17. Outra questão é que as mulheres da elite, solteiras
ou viúvas, tinham com alguma frequência a tutela de um homem da família — filho,
irmão, genro — enquanto as mais pobres contavam com o amparo das relações de
vizinhança que teciam18.
O roubo e destruição perpetrados por José Antônio Marcelhas, narradas na
queixa, descortinam o ambiente material e econômico de um domicílio de peque-
nas produtoras. Vestidos, colchas, lenços, um espelho, um urinol, uma “chicola-
teira” e algumas gamelas eram itens da casa de Ana Joaquina que foram levados
por Marcelhas. Embora fossem artefatos simples, eram valiosos a ponto de serem
objeto de roubo. Ana Joaquina também teve levado um machado e uma enxada,
instrumentos de trabalho rural, nas plantações e na obtenção de lenha, o principal
combustível usado nas casas naquele tempo. O roubo de meadas de fios nos revela
a dedicação das mulheres do domicílio à fiação, uma atividade bastante dissemi-
nada na província de Minas, capaz de gerar rendas expressivas e participar do rol
de exportações mineiras19. Fora da casa, onde a destruição não parou, a queixa

15. FIGUEIREDO, Luciano R. A. Barrocas Famílias: vida familiar em Minas colonial. São Paulo:
HUCITEC, 1997. RAMOS, Donald. A mulher e a família em Vila Rica do Ouro Preto: 1754 — 1838.
In: Congresso sobre a História da População na América Latina, 1989, Ouro Preto. Anais... São
Paulo: Fundação SEADE, 1990. Ver também SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a
família: São Paulo, século XIX. São Paulo: Editora Marco Zero/Secretaria do Estado da Cultura de
São Paulo, 1989.
16. RODARTE, Mário M. S. O trabalho do fogo, p.183, tabela 24.
17. ______. O trabalho do fogo, pp. 181-224.
18. GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista
brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio.
19. Segundo o levantamento realizado por Douglas Libby, até 85% das mulheres livres e 55% das
escravas ocupavam-se de atividades têxteis, seja a produção de fios, a tecelagem ou a confecção.
LIBBY, Douglas C. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século
XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.200, figura 20 e p.202. Conforme Bergad, os tecidos de algodão
foram muito significativos na pauta das exportações mineiras durante a primeira metade do século
XIX, alcançando um auge de 2,37 milhões de varas (ou 6,18 milhões de metros) exportadas em 1828.
BERGAD, Laird. Escravidão e história econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-1888. Bauru:
EDUSC, 2004, p.93, tabela 2.3.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX

[152]

oferece outras boas indicações de como os domicílios mineiros se sustentavam. José


Marcelhas roubou galinhas, espalhou veneno misturado com fubá no entorno da
casa para matar outras criações, roçou as plantas do quintal, derrubou muros e
espargiu milho de engorda para chamar os porcos e concluir a depredação. Essa nar-
rativa revela que a agricultura e a criação de pequenos animais eram os principais
caminhos para manutenção da casa. Possivelmente, todo o alimento que a unidade
doméstica consumia era de produção própria. Galinhas e porcos eram animais de
trato descomplicado: eram criados soltos, buscavam sua própria comida ciscando
nos matos e reproduziam grande número de crias. Os suínos, além da carne, forne-
ciam a gordura que preparava outros alimentos e os conservava. As criações eram
mantidas longe dos canteiros de hortaliças e das plantações — possivelmente milho
e feijão — com os muros que Marcelhas derribou. Produzindo o próprio alimento,
o domicílio de Ana Joaquina evitava gastos e podia usar integralmente as rendas
da fiação para pequenas melhorias e itens de conforto — como os que Marcelhas
subtraiu.
Para concluir a análise deste excerto vale destacar algumas das concepções das
relações de gênero que lhe subjazem. Todo o processo se desenrola quando o assé-
dio de Antônio José Marcelhas não é admitido e ele se vê no direito de buscar Ana
Joaquina dentro de sua casa. Ela, uma mulher que vivia sob si, sem a tutela de um
homem, deveria, na visão do agressor, estar disponível ao avanço de um preten-
dente20. Não foi o caso e Marcelhas respondeu à frustração com violência e ameaças.
O caso de Ana Joaquina de Faria chama atenção para o fato de que a institucio-
nalização da Justiça no século XIX abriu uma oportunidade de defesa, um novo
campo de luta para mulheres como ela. Como o texto da queixa requer, a punição
do suplicado seria importante para “sua emenda e exemplo de outros”.
O leitor atual pode ficar com a sensação de que a Justiça não defenderia uma
mulher solteira e pobre contra um proprietário. Aqui vale uma observação sobre
o final do processo-crime. Talvez pela lógica patriarcal e machista da sociedade e
suas instituições, talvez para colocar “panos quentes” na situação, Ana Joaquina
foi demovida do seu interesse em prosseguir com o processo contra Marcelhas. O
Delegado Chefe de Polícia da vila aconselhou-a a tratar um termo de convenção em
que Marcelhas lhe pagaria Rs 18$960 (dezoito mil, novecentos e sessenta reis), “o
mais breve que puder”, em restituição aos prejuízos causados e se comprometeria
a não mais lhe procurar, nem lhe perseguir. Se quebrasse o termo de convenção,
Marcelhas pagaria multa de Rs 50$000 e sofreria oito dias de prisão. Segundo o
escrivão do processo, Ana Joaquina, “reflexionando maduramente”, decidiu-se à

20. Sobre aspectos da violência nas relações de gênero, ver DIAS, Maria Odila. Quotidiano e poder.
São Paulo: Brasiliense, 1984.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX

[153]

convenção e Marcelhas livrou-se de ir a julgamento. Estava dentro das prerroga-


tivas dos Juízes de Paz, Delegados e Subdelegados proceder a termo de bem viver
quando diante de altercações que ameaçasse a “tranqüilidade pública” e/ou a “paz
das famílias” e ofendessem os “bons costumes”21. Mas, no presente caso, o roubo
e a destruição causadas por Marcelhas, além das ameaças proferidas contra Ana
Joaquina, apresentavam conteúdo mais grave do que a perturbação ao sossego.
Estes atos atentavam contra a propriedade e a vida da ofendida22. No entanto, con-
forme os homens da Justiça, era mais maduro a uma mulher solteira acertar-se com
o agressor, sem levar o processo adiante.
Apesar disso, o acesso à Justiça garantiu um acordo legal que prometia a Ana
Joaquina a possível indenização dos prejuízos e, tão importante quanto, a promessa
de viver em tranquilidade sem o assédio do vizinho. A abertura da Justiça à parti-
cipação de pobres, mulheres e escravos era um instrumento de sedução, em que o
Estado aparecia como instância legítima na regulação da sociedade23. A extensão do
aparelho da Justiça imperial não visava equalizar os desníveis sociais — entre escra-
vos e senhores, homens e mulheres, pobres e ricos — mas criar previsibilidade nas
relações ao mesmo tempo em que interpunha o Estado como intermediário das rela-
ções sociais. Nem sempre os segmentos mais baixos viram seus desejos realizados,
mas a Justiça constituiu-se numa nova dimensão de luta em que as discordâncias
dos mais pobres puderam ser vocalizadas e paulatinamente construída a consciência
de que se possui direitos24.

O infortúnio de Felicidade cabra

Do processo que investiga o assassinato da escrava Felicidade cabra selecio-


namos o depoimento prestado por uma vizinha dos acusados Joaquim Luiz do
Nascimento e sua mulher Margarida de tal. Antes de comentar esse excerto, algu-
mas informações sobre o crime e os envolvidos podem esclarecer melhor a narrativa.
Joaquim Luiz do Nascimento e sua esposa eram agregados do alferes Antônio de
Miranda Magro, um imponente fazendeiro do distrito de São Francisco do Onça, na
vila de São João del Rei. Joaquim plantava em terras cedidas pelo alferes Magro e,

21. Lei do Império de 29 de novembro de 1832, Art. 12, §2º .


22. Lei do Império de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Código Criminal. Artigos 209,
266 e 269. Captado em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acesso
em 01 de nov. de 2013.
23. VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem.
24. THOMPSON, Edward P. Senhores & caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX

[154]

aparentemente, tinha boas relações com o mesmo. Felicidade cabra era escrava do
alferes, tinha apenas 13 anos e foi mandada à casa de Joaquim para aprender a fiar
com sua mulher. Novamente a fiação, uma ocupação feminina, aparece como ativi-
dade nos domicílios dos pequenos produtores. E dos grandes também, pois o alferes
Antônio de Miranda Magro desejava que Felicidade aprendesse o ofício e, logica-
mente, trabalhasse para ele. Enquanto a escrava era treinada, Joaquim e sua mulher
poderiam valer-se do seu trabalho, possivelmente para ajuda doméstica. No entanto,
esse casal ou não carecia de traquejo para administrar disciplina a um escravo ou
era um caso de sadismo. Em uma surra extrema acabaram matando a jovem escrava.
Os acusados tentaram desincumbir-se da responsabilidade noticiando a morte ao
senhor da escrava e justificando que ela estava doente. Mas as marcas de pancadas
denunciavam um destino diferente e o exame de corpo de delito, bem como todos
os depoimentos acusavam o espancamento de Felicidade cabra pelo casal Joaquim
Luiz e Margarida de tal.
O depoimento que selecionamos é de Jacinta Maria de Jesus, uma mulher parda
e solteira que esteve em contato com a vítima pouco antes do seu passamento.
Jacinta e sua irmã, ambas fiandeiras, foram chamadas a fiar em casa de Águida
Maria de Jesus, uma vizinha “íntima de porta” dos réus. Além disso, Jacinta devia
dinheiro a Joaquim Luiz procedente da compra de umas peneiras e, por isso, entrou
na casa do mesmo e presenciou a agonia de Felicidade cabra.
O breve relato de Jacinta Maria traz à cena um sentido comunitário que se
engendrava em torno da atividade de fiação. É muito provável que ela e sua irmã se
dirigissem à casa de Águida, outra mulher solteira que vivia do artesanato, para aju-
dar numa época de muito algodão para fiar, ou auxiliar na entrega de uma grande
encomenda, certamente contando que quando precisasse poderia contar com seme-
lhante auxílio. O registro desse tipo de trabalho extra-domiciliar e colaborativo não
é frequente, embora acredite-se que ele fosse comum. Na obra pioneira de Maria
Sylvia de Carvalho Franco os mutirões aparecem como momentos privilegiados de
extravasamento de tensões. Os penosos trabalhos na construção ou colheita eram,
muitas vezes, recompensados com álcool e à embriaguez seguia-se a violência25. No
nosso caso, o depoimento de Jacinta Maria sugere a existência de relações de soli-
dariedade que ultrapassavam os limites do domicílio e da família e ajudavam a
sustentar a vida de mulheres solteiras no mundo rural oitocentista.
O trivial pagamento das peneiras, por sua vez, aponta para o comércio e as rela-
ções de crédito no âmbito rural. Deve-se recordar que Joaquim Luiz era um agregado
do alferes Antônio Magro, informação contida em outra parte do processo-crime. A

25. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata, p.31-33.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX

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historiografia já apontou a complexidade do termo agregado e seu uso em diferen-


tes situações, servindo para designar tanto moradores não aparentados ao chefe do
domicílio que vivem sob sua tutela, quanto produtores que possuem seus próprios
domicílios, mas dependem das terras de outrem26. No caso do réu Joaquim Luiz era
complementado pelo artesanato em fibras, com a produção e venda de peneiras e a
fiação desempenhada pela mulher de Joaquim.
Outro aspecto importante sobre os depoimentos é que os depoentes tendem
a ambientar no tempo e no espaço seu testemunho valendo-se das atividades que
marcam a temporalidade e dos lugares que constituem o espaço. Assim, essas narra-
tivas costumam reproduzir com muitos detalhes o cotidiano dos agentes do passado.
Em poucas frases o depoimento de Jacinta Maria apresentou detalhes importantes
sobre diferentes setores do artesanato mineiro do século XIX: a fiação, a atividade
fora da agricultura que mais ocupava a força de trabalho feminina, era também
desempenhada com o auxilio de mão de obra externa ao domicílio, sob a forma de
mutirão; a produção de objetos de fibras (as peneiras) encontravam seu mercado
consumidor localmente. Pormenores como esses geralmente não eram fundamen-
tais para esclarecimento do crime, mas eram acessados como que para oferecer vera-
cidade ao depoimento e, para nossa sorte, acabam por iluminar partes do cotidiano.

Considerações Finais

Nas Minas Gerais da primeira metade do século XIX, quando predominavam


as pequenas unidades produtivas, com poucos ou sem nenhum escravo, o cotidiano
do trabalho era marcado pela diversificação das atividades, sendo a conjugação do
agropastoreio ao artesanato a estratégia mais comum. As atividades de transfor-
mação complementavam os rendimentos do fogo e evitavam gastos. Se o pequeno
comércio gerado pelo artesanato funcionava para expandir os ganhos do domicílio
no mercado ou era apenas uma forma de buscar a autossuficiência é uma polêmica
em aberto, que só será resolvida com vários estudos de caso que devem lançar mão
de um rol variado de fontes. Os processos-crimes aqui em vista nos ajudaram a per-
ceber alguns detalhes íntimos dessa economia. O trabalho nos domicílios mineiros
ocupava todos os seus membros, sem deixar de fora as mulheres e as crianças. As
mulheres desempenhavam papel fundamental no trabalho doméstico. Dentro das

26. SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira, Trabalho Livre e Cotidiano. Itu, 1780-1830. São
Paulo: Edusp, 2005, p.108; MOTTA, Márcia Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito de terra e
direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura: Arquivo Público do Estado
do Rio de Janeiro, 1998, ver capítulo 02; BACELLAR, Carlos A. P. Agregados em casa, agregados
na roça: uma discussão. In: Maria Beatriz Nizza da Silva. (Org.). Sexualidade, família e religião na
colonização do Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 2001, pp.187-199.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX

[156]

casas, a gestação do sustento era obra feminina. Como ambos os excertos revelam,
a fiação era uma atividade essencialmente feminina, praticada em várias unidades
domésticas e capaz de gerar renda.
Os processos-crimes são fontes importantes para desvendar a atuação pública
das mulheres. Afastadas da política, consideradas dependentes do chefe do fogo, as
mulheres teriam, na visão dominante, sua ação reservada ao âmbito doméstico27.
Mas as muitas chefes de fogo solteiras, várias delas descendentes de escravas ou
ex-escravas, desafiavam essas concepções. Muitas delas se valiam da fiação e do
trabalho em tecidos para viver sobre si, fora da órbita da autoridade de um homem.
Longe do poder de um esposo ou pai, as mulheres, no entanto, ficavam à mercê
da violência de outros homens. No entanto, redes de solidariedade nos pequenos
arraiais semi-rurais poderiam fornecer amparo e ajuda e o acesso à Justiça no século
XIX franqueou outro campo de defesa aos grupos subordinados.
Vale lembrar que a autoridade do chefe do fogo se estendia sobre todos os mora-
dores do domicílio, assim livres como escravos. Uma das expressões desse domínio
era a aplicação de castigos. No que se refere à situação dos escravos, os castigos
físicos visavam punir um desvio e prevenir uma novo erro28. O espancamento de
Felicidade cabra e sua consequente morte foi um sinal do exercício desmesurado de
poder de um chefe de fogo que não era senhor de Felicidade, mas usava a força para
garantir a disciplina da cativa.
Casos como os trazidos pelas fontes em apreço destacam a centralidade do
trabalho no universo das relações sociais nas Minas Oitocentistas. Os excertos aqui
discutidos, no entanto, demonstram que a reprodução da existência não estava “des-
colada” das demais dimensões da vida. Pelo contrário, os processos-crimes mostram
os laços sutis entre diferentes campos do fazer. Sua leitura cuidadosa é uma janela
para o cotidiano mineiro do passado.

27. Como na França do século XVIII, as mulheres tomavam parte da vida econômica das cidades,
embora estivessem afastadas dos conselhos ou assembleias. DAVIS, Natalie Zenon. Cultura dos
povos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 67-68.
28. LARA, Silvia H. Campos da violência, p.96.
Documento
Trechos do processo-crime de Joaquim Luís do Nascimento
e Antônio de Miranda Magro. Disponível no Arquivo do
Escritório Técnico II, Iphan, 13ª Superintendência, São João
del Rei. PC 28-05, 1835

Data
6 de maio de 1835

Resumo
A testemunha Jacinta Maria de Jesus relata que a escrava
Felicidade estava havia pouco tempo na casa de Joaquim Luís
do Nascimento e sua mulher para aprender a fiar. Aos 6 de
abril de 1835, Jacinta ouvira gemidos vindos de dentro da casa
de Joaquim Luís do Nascimento, e ao procurar saber o que
ocorrera os donos da casa alegaram que a jovem Felicidade
estava doente. No dia seguinte, constatou-se que a escravinha
estava com muitos ferimentos, provavelmente por ter sido
espancada, e veio a falecer.
[...]
[fl. 8v]
1 Aos seis dias do més de Maio de mil
2 Oitocentos e trinta e Cinco, neste Curato de Saõ
3 Francisco da Onça Termo da Villa de São João d-
4 El Rey, em Cazas de Rezidencia de Joaquim Alves
5 Moreira, honde foi vindo o Forriel Jozé Ferrei
6 ra Baptista, Iuis de Pás, Suplente deste mesmo Cu-
7 rato e Commigo Escrivão do Seu Cargo Vim para
8 efeito de serem Inquiridas as ttestemunhas que
9 por parte da Devaça foraô notificadas na pre-
10 zente devaça dos quais Seus ditos digo nomes, e
11 pronomes, idade naturalidades, estados, mo-
12 radias Viveres, ditos e Custumes hé o que adi-
13 ante SeSegue de que para Constar faço este
14 Termo de ASentada e eu Joze Moreira da
15 Costa Escrivão que oesCrevi.

<ttestemunha 4º> 16 Jaçinta Maria de Jezus, Parda Solteira natu-


17 ral e moradora deste mesmo Curato que Vive
18 de fiar de idade que diçe ter quarenta e tanto
19 Annos ttestemunha Jurada aos Santos eVan-
20 gelhos na forma da Leẏ; e prometeo dizer a Ver-
21 dade do que Soubeçe e perguntado lhe foçe =
22 e dos Custumes nada diçe = Diçe ella ttestemu-
23 nha que no dia Seis de Abril do Corrente
24 Anno, indo com a sua Jrmam Anna Maria
25 da Silva a Caza de Aguida Maria de Jezus,
26 a chamado da mesma para fiarem; e Como mo-
27 ra esta Aguida, Vizinha intima de porta com
28 Joaquim Luis do Naçimento, e Como esta ttes-
29 temunha e Sua Jrmam já Referida tiveçe
30 de dar hum dinheiro ao Sobredito Joaquim
[fl. 9]

1Joaquim Luis do Naçimento, de humas Penei-


2 ras que lhe tinha Comprado e por esse motivo
3 chegaçem primeiro a Caza de Joaquim Luis
4 do Naçimento e emtrando para dentro da Caza
5 houviraõ hum piqueno gemido e perguntan-
6 do estas a dona da Caza quem estava gemendo
7 esta lhes respondeo que hera a Feliçidade que
8 esta doente = pois o que hé que ella tem?
9 perguntou a ttestemunha = Respondeo a dona
10 da caza = hé dór de hovidos = e emtrando ella
11 ttestemunha Com sua Jrmam Anna já refe-
12 rida para o quarto ahonde estava gemendo
13 a Feliçidade, e lhe perguntou = que tens Felici-
14 dade? mal lhepode respondér em baxa e qua-
15 ze imperçetivel Vós tenho passado muito mál
16 neste mesmo momento foi fazendo o primei-
17 ro Termo de Morte esta ttestemunha lheme-
18 teo a Vella na maô e fês o segundo Termo e es-
19 pirou esta ttestemunha e sua Jrmam já
20 Referida fizeraô quarto essa noite ao Corpo
21 e de madrugada hindo o mesmo Joaquim Lu-
22 is do Naçimento, dár parte da morte desta Fe-
23 liçidade, a Seu Senhor o Sobredito Alferes
24 Miranda: E logo que amanheçeo lhe vio a testa
25 fontes muito pizadas e lançando huma agoa-
26 dilha de sangue pela boca: e como estas quan-
27 do chegaraô a essa caza naô achaçem mais pes-
28 soa alguma senaô os mesmos donos da caza Joa-
29 quim Luis do Naçimento, e sua molher Mar-
30 garida de tal, e estes naô deçem sofiçiente Ra-
31 zaô a prova de taô funesto cazo aContiçido jul
[fl. 9v]

1 Julgaraõ sertamente ter sido feito pellos donos


2 da Caza já referidos: deClaram mais que sabia que
3 esta faleçida Feliçidade hera inda de menor ida-
4 de e que naô tinha ainda de Rezidencia hum
5 més em caza deste Joaquim Luis do Naçimen
6 to a pretexto de hir aprender Com sua molher
7 Margarida de tal, a Teçer Linho esta manda-
8 da pello Seu Senhor e elles aConduziraõ: e depo
9 is de ter amanheçido o dia deixou sua Jrmam
10 aSistindo o corpo e foi para a caza de Agui-
11 da Maria de Jezus, de donde Vio e conheçeo
12 Chegarem Cinco Escravos e huma Escrava cri-
13 oula Esmeria todas Escravos do Sobredito
14 Alferes Miranda, e aSim mais o Preto Jo-
15 aô Liberto Marido da dita Esmeria, para
16 mortalharem e Conduzirem o Corpo para a
17 Capella. E perguntando o Juis a ttestemunha
18 Se Sabia Se o delincoente Joaquim Luis do
19 Naçimento, estava prezo, afiançado, ou Rezi-
20 dindo neste Curato e Suas Circunvizinhanças
21 diçe que naô e que só sabia que setinha
22 auzentado: e mais naô diçe por ter dito tudo quan-
23 to sabia e sendo-lhe Lido o seu Juramento pel-
24 lo oachar Comforme ao que tinha Jurado
25 e por naô saber escrever pedio a Forriel Joze
26 Ferreira Baptista, que por ella SeaSignaçe [E]
27 eu Joze Moreira da Costa o escrevi. Baptista
28 A rogo de Jacinta Maria de Jezus Joze Ferreira Baptista
Documento
Trechos do processo-crime de José Antônio Marcelhas e
Ana Joaquina de Faria. Disponível no Arquivo do Escritório
Técnico II, Iphan, 13ª Superintendência, São João del Rei. PC
04-09, 1843.

Data
1843

Resumo
Queixa de Ana Joaquina de Faria sobre a destruição de roupas,
móveis, pertences e outros bens de sua casa, no distrito do
Bichinho, por José Antônio Marcelhas. Segundo a queixante,
o dito destruiu seus bens após ter negada a sua tentativa de
consumar atos libidinosos com ela.
[fl. 1]

<Delegado da Vila de
São Joze>

1 1843

2 Anna Joaquina de Faria Queixadora

3Joze Antonio Marcelha Queixado

4 Queixa Crime

5 Escrivam
6 Pinto Junior

7 Anno do Nassimento de Nosso Se


8 nhor Jezus Christo de mil oitocen-
9 tos e quarenta e tres vigesimo se
10 gundo da Jndependencia do Jm-
11 perio do Brazil nesta Villa de Saõ
12 Joze Minas e Comarca do Rio das
13 Mortes aos dez dias do mez de Janei-
14 ro do dito anno em o Escriptorio
15 de mim Escrivam a diente no
16 meado e sendo ahy por Anna Jo
17 aquina de Faria me foi dada
18 humas sua Petiçam de Quei
19 xa contra Joze Antonio Mar-
20 celhas ambos moradores no Be
21 xinho deste Destrito e Termo,
22 desparada pelo Cidadam Bra-
23 zileiro o Alferes Joze Moreira
24 Coelho, o Delegado de Policia des
25 desta dita Villa e seu Termo,
26 pedindo me que eu Escrivaõ
27 aceitasse e authoasse para ter
28 os seus devidos termos e inteiro
29 comprimento; cuja Petiçam
30 aceitei, e faço o prezente ter
31 mo de Authoalam, e vai a di
32 ta Petiçam a diante juntar
[fl. 2]

1 Illustríssimo Senhor Dellagado

2 Diz Anna Joaquina de Faria moradora nos so-


4 burbios do Arraial do Bixinho do Districto desta Villa
5 de Saõ Joze, que sendo sollicitada por Jose Antonio Mar-
6 selhas, homem pardo cazado morador no mesmo Arraial, no
7 dia 23 de Dezembro de 1842, para consummaçaõ de actos li-
8 bidinozos, e naõ sendo admittido, foi elle no dia 28 do dito
9 mez e anno, com hum homem preto desconhecido armado de
10 pistolla a caza da Supplicante, e não na achando por ella haver
11 se ocultado delle, ficou desperado, e passou a dar hũa rigoro-
12 za busca por toda a caza, e athe por debaixo das camas, e
13 por caixas com huma vella aceza, por ser noite, sem at-
14 tençaõ a sua pobre Mâi velha e doente, e a outra mulher que
15 com ella seachava, comessou a revistar e a rasgar a sua roupa,
16 dizendo que assim faria a Supplicante se a encontrasse, e assim lhe
17 distruio, e carregou roupas e trastes como fossem vestidos, col-
18 xas, lenços, meadas de fio, espelho, ourinol, gamellas, chicolatei-
19 ra, enchada, machado, galinhas, e tudo quanto achou e pode a
20 panhar; naõ parando ainda aqui a sua maldade, e desespe-
21 raçaõ, espalhou veneno misturado com fubá em roda da ca-
22 za para lhe matar a mais creaçaõ, rossou-lhe as plantas do
23 quintal, derribou-lhe os muros com alabanca, espalhou mi-
24 lho para engodar, e chamar os porcos a acabar de o destruir.
25 E como similhante procedimento seja manifestamente con-
26 trario as terminantes e expressas despozições dos Artigos 257, e
27 266 do Codigo criminal, que o tornaõ crime de furto, e damno
28 pela Tirada e distruiçaõ da coiza alheia; vem a Supplicante delle
29 sequeixar a fim de ser punido o Supplicado para sua imenda
30 e exemplo de outros, e satisfaçaõ da Supplicante e da Justiça offen-
31 dida. Portanto requer a Vossa Senhoria se digne aceitar esta queixa
[fl. 2v]

1 Queixa, e sobre ella formar Auto de corpo de Dilito di-


2 reto no derribamento dos muros, rasgamento da roupa, no
3 mais que existir vistigios, perguntando testemunhas pelo dilicto
4 e pelo dilinguente quanto ao mais que naõ deixou signal,
5 sendo para este acto conduzido debaixo de vara o Supplicado
6 e procedendo-se em todos os mais the a pronuncia em confor-
7 midade das Leis, defferindo-se desde ja o juramento a-
8 Supplicante que protesta hir buscar ao respetivo Tribunal a
9 punição do Supplicado, e passando-se Mando para a condução do
10 Supplicado, e chamamento das testemunhas.

11 Pede a Vossa Senhoria seja servido


12 de assim o mandar

13 Espera Real Justiça

14 Nomeia por testemunhas

15 Antonio Ferreira Marques pardo cazado.


16 Joaõ de Souza Coimbra branco cazado.
17 Joaquim Joze de Miranda pardo cazado.
18 Anna Maria Faria Fernandez parda solteira, moradores todos
19 no mesmo lugar do Bixinho, Distrito desta Villa

20 Asino 1 a rogo da sobredita Anna Joaquina de


21 Faria, Francisco de Souza Gaӱa. Autuada.

1. Mudança de mão.
Gusthavo Lemos
Doutorando em História pela UFMG

Fragmentos da paisagem
rural brasileira: os Registros
Paroquiais de Terra

Tão logo declarada a Independência, José Bonifácio revogou o instituto de ses-


maria, que há muito não vinha sendo cumprido conforme prescrevia a lei. Sua ideia
era levar o tema à Assembleia, para que se arranjasse um novo sistema de regula-
mentação do acesso à terra. No entanto, o processo fora arquivado indeterminada-
mente e, assim, de 1822 a 1850, o Brasil ficou sem nenhum aparato que garantisse
a posse e a ocupação legal de terras.
Em 1850, após quase uma década de discussões e disputas parlamentares, entra
em vigor, no Brasil, a Lei de Terras. Levada a cabo por motivações externas à ques-
tão agrária, a Lei de Terras pode ser entendida como o produto final malogrado
de um projeto modernizador que a ala conservadora da política nacional queria
implantar. A primeira versão de tal projeto, apresentada à Câmara dos Deputados
em 1842, contava com medidas “radicais” como a introdução de um imposto ter-
ritorial, a venda de terras devolutas — tornadas propriedade estatal — somente
mediante pagamento em dinheiro à vista, e a proibição das datas de sesmarias e
posses.
Tais medidas propostas pelo gabinete conservador, cujos membros e simpatizan-
tes estavam concentrados na província do Rio de Janeiro, representam menos um
esforço direto para a construção e a centralização do Estado Nacional do que uma
preocupação imediata com a reorganização do panorama agrário das velhas zonas
agrícolas, que enfrentavam sérios problemas de produtividade e falta de mão de
Fragmentos da paisagem rural brasileira: os Registros Paroquiais de Terra

[174]

obra1. Baseado no modelo de Wakefield para a colonização da Austrália, o mote do


projeto seria a mercantilização das terras devolutas para, a uma só vez, gerar divisas
para o subsídio estatal da imigração europeia e cercear o acesso à terra a esses mes-
mos migrantes e, claro, ao corpo de trabalhadores nacionais que mais cedo ou mais
tarde seriam abolidos do regime de escravidão sob o qual viviam.
Transformado em lei, o projeto sofreu muitas alterações, as quais apontavam
para uma suavização das medidas propostas. Essas alterações foram propulsionadas
pelos membros liberais representantes da política/economia de Minas Gerais e São
Paulo, que viram no projeto uma espécie de socialização, entre a classe senhorial,
dos custos da imigração (cujos benefícios se restringiriam, num primeiro momento,
apenas às áreas cafeeiras fluminenses). Enfim, a Lei de Terras, por um lado, deixou
de contar com um imposto territorial e com medidas de expropriação e, por outro,
incorporou medidas benéficas à classe senhorial, como a legitimação de grandes
possessões e a venda de lotes a preços mínimos. No entanto, a premissa da lei — a
separação entre terras públicas e privadas — fora mantida. Assim, embora não fosse
suficiente para conter os apossamentos ilegais e os demais abusos, a Lei de Terras
se tornou um aporte legal para a resolução de conflitos agrários relativos ao direito
de posse e uso da terra2.
Com isso, todos os proprietários de terra no Brasil deveriam procurar os órgãos
competentes e registrar suas propriedades, provando sua posse mansa e pacífica.
Porém, enquanto os imigrantes europeus desembarcavam nos portos brasileiros e se
instalavam nas áreas que demandavam sua força de trabalho, muito pouco se avan-
çou na tarefa de regularização das posses rurais. O Estado então resolveu agir, dando
início, no ano de 1854, a um cadastramento nacional das terras. Desburocratizado
e sem recursos para estender seu braço pelos rincões dos quatro cantos do país, o
Estado repassa o trabalho de cadastramento para o corpo da Igreja Católica, que
já tinha agentes assentados por toda a parte. Nasce assim o Registro Paroquial de
Terras3.

1. Para uma discussão mais aprofundada da relação entre a questão agrária e a construção do Estado
Nacional, ver: COSTA, Wilma Peres. A Economia Mercantil Escravista Nacional e o Processo de
Construção do Estado no Brasil (1808-1850). In: SZMRECSÁNYI, Tamás; LAPA, José R. do Amaral.
(orgs.). História Econômica da Independência e do Império. São Paulo: Edusp/HUCITEC/ Imprensa
Oficial de São Paulo, 2002.
2. Ver, por exemplo, MOTTA, M. M. M. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil
do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura/Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998.
3. A discussão deste primeiro tópico está amplamente baseada em: CARVALHO, José Murilo. A
política de Terras: o veto dos Barões. In: Teatro de Sombras: a política Imperial. Rio de Janeiro: Iuperj,
1998. p. 84-106.
Fragmentos da paisagem rural brasileira: os Registros Paroquiais de Terra

[175]

O Registro Paroquial de Terras como fonte histórica

O RPT é uma fonte de inegável relevância, antes de tudo porque se impõe como
o único cadastramento nacional de terras do Brasil até a década de 19704. Para
cada localidade (podendo ser vila, cidade, ou mesmo um distrito), o RPT apresenta
registros individuais de cada proprietário que se mobilizou para regulamentar suas
terras. Idealmente, cada registro deveria apresentar: 1) nome do proprietário; 2)
tipo da propriedade (exemplo: “terras de cultura”, “porção de terras”, “fazenda”);
3) nome da propriedade; 4) nome da região na qual se situa; 5) extensão da proprie-
dade; 6) formas de aquisição da propriedade; 7) descrição das divisas e dos nomes
dos vizinhos.
Como a maioria dos documentos públicos, o RPT segue, assim, uma fórmula
padrão, que prima pela brevidade e funcionalidade do registro. Do ponto de vista
da leitura paleográfica, temos aqui um ponto positivo, pois se torna possível “meca-
nizar” a leitura e transcrição do documento, seguindo a fórmula acima apresentada.
Por outro lado, a fonte apresenta diversos complicadores, a começar pelo fato de ela
ter sido elaborada por um corpo de agentes que não fora treinado metodicamente
para essa tarefa. Como resultado, há uma enorme variação na precisão das infor-
mações e na organização da composição de cada registro, variação essa que se dá
de acordo com o julgamento dos párocos de cada localidade e em razão do tipo de
taxação a que era submetido o registrante. Isso reflete negativamente na pesquisa
histórica — seja em investigações de caráter micro, que buscam o levantamento de
dados qualitativos, seja em investigações mais abrangentes, que buscam na docu-
mentação informações passíveis de seriação.
Ainda assim, o RPT lança luz sobre determinados fragmentos do passado rural
brasileiro que são raramente detectados em outras fontes. Voltemos aos diferentes
campos componentes do registro acima apresentados para traçar alguns caminhos
de pesquisa histórica. Como seria tarefa muito dispendiosa explorar cada um dos
campos minuciosamente, focarei em alguns deles e discutirei as aberturas e as limi-
tações que apresentam.
Em primeiro lugar, o fato de o registro ser nominal permite, por exemplo, o ras-
treamento de determinada família e, a partir do cruzamento de fontes, o seu acom-
panhamento intergeracional. Esse é um procedimento interessante para pesquisas
de história da família cujos problemas giram em torno da formação/transmissão/
manutenção da riqueza. É interessante notar também que este primeiro campo do

4. LINHARES, M.Y.L; TEIXEIRA, F.C. História da Agricultura Brasileira: Combates e Controvérsias.


São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. p.93.
Fragmentos da paisagem rural brasileira: os Registros Paroquiais de Terra

[176]

registro pode apresentar mais de um nome, denotando sociedades na posse de uni-


dades agrícolas. Essas sociedades podem ser firmadas entre parceiros de trabalho,
vizinhos e parentes. Nesse último caso, trata-se, em boa parte dos casos, de socie-
dades “forçadas”, em que a posse comum entre parentes está ligada a processos de
transmissão patrimonial.
O segundo campo — tipos de propriedade — é um terreno fecundo para o
exame da paisagem rural. Através dele, o estudioso pode vislumbrar o mosaico
fundiário que se formava em determinada localidade ou comparar as estruturas
de diferentes áreas. Ver-se-á registros de fazendas — denotando unidades produ-
tivas aparelhadas e geralmente com extensas faixas de terra cultivada —, de sítios
e chácaras, de “porções” ou “sortes” de terras e de partes de terra de cultura —
novamente apontando posse em sociedade com parentes ou parceiros agrícolas. O
pesquisador que por aqui se enveredar também há de encontrar problemas. O mais
evidente deles seria o significado de cada categoria descrita pelo pároco. O próximo
problema seria a possível variação dessa classificação de acordo com cada pároco.
Para saná-los, o próprio RPT dá pistas. Se cruzarmos as informações deste campo
com as do quinto — extensão das propriedades —, o pesquisador pode formar um
entendimento da relação entre o tipo de classificação e o tamanho da propriedade.
Além disso, seria necessário recorrer a outras fontes, como dicionários históricos,
para que se tenha uma visão mais global de cada termo.
Em que pesem os problemas de representatividade, o quinto campo é de extrema
valia para se entender a distribuição da terra no Brasil imperial. Em minha pes-
quisa de mestrado, tomei como foco algumas famílias tradicionalmente envolvidas
com a produção da aguardente e procurei entender a sua ação sobre a organização
do mundo rural de Guarapiranga, freguesia fronteiriça ao núcleo minerador de
Mariana e Ouro Preto. Em capítulo dedicado ao entendimento da estrutura fundiá-
ria local, fiz um levantamento global da extensão das propriedades cadastradas no
RPT. O resultado está expresso no gráfico a seguir.
Fragmentos da paisagem rural brasileira: os Registros Paroquiais de Terra

[177]

Distribuição da propriedade fundiária — Vila da Piranga


Registro Paroquial de Terras de Piranga 1855-56 (alqueires)

Fonte: APM, Registro Paroquial de Terras de Piranga— 1855-56.

Temos aqui um exemplo gritante de desigualdade de distribuição da posse terri-


torial. Na Vila de Piranga, “apenas 3,22% de todos os indivíduos que cadastraram
suas terras detinham praticamente 50% das terras ocupadas. Em termos concretos,
isso significa que apenas seis famílias estavam no controle da maior parte da área
cultivável disponível”5.
O sexto campo, referente às formas de acesso à propriedade cadastrada, talvez
seja o mais profícuo ou, ao menos, o mais enfocado pela historiografia. Desde as
pesquisas pioneiras de Hebe Mattos, o RPT passou a ser visto como um indicador
do funcionamento do mercado de terras. Na condição de provar a legalidade de
seu título de posse, o declarante deveria informar a forma pela qual se fez “senhor
e possuidor” da propriedade declarada e, assim, sem saber, deixou um testemunho
muito importante da dinâmica das transações patrimoniais. Em muitas localidades,
como Guarapiranga, já era possível vislumbrar o funcionamento de um mercado de
terras. Confiramos o gráfico que se segue:

5. LEMOS, Gusthavo. Aguardenteiros do Piranga: família, produção da riqueza e dinâmica do espaço


em zona de fronteira agrícola. Minas Gerais, 1800-1856. Dissertação (Mestrado em História) —
Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em História, Belo Horizonte,
2012. p. 148.
Fragmentos da paisagem rural brasileira: os Registros Paroquiais de Terra

[178]

Regime de aquisição de terras na freguesia de


Piranga - Registro Paroquial de Terras, 1855-6

Fonte: Baseado em MENDES, Fábio Faria. Agrarian Change and Inheritance in Nineteenth Century Minas Gerais: a view
from the 1855 Land Parish Registers. Guelph (CA.): Workingpaper, Rural History Workshop, 2010.

Muito se pode discutir a partir da análise do gráfico acima. Para não entrar em
detalhes mais específicos da pesquisa, restrinjamo-nos a apontar a variedade das
formas de acesso à terra e o papel predominante da herança e da compra. Tudo isso
mostra um quadro fundiário complexo, permeado por interesses econômicos, pelo
forte papel da família na cadência do mundo rural, por formas de solidariedade e
por tensões inerentes à estrutura fundiária.
Cabe lembrar, por fim, que o RPT, a despeito de sua importância, é uma fonte
ainda pouco explorada. Apenas recentemente passou por um exame metodológico
geral referente à província de Minas Gerais6, o que dá mais segurança ao pesquisa-
dor que quer se enveredar nos caminhos da história agrária ou agrícola. Há ainda
alguns estudos monográficos cuja fonte-base foram os RPT. Muitos desses estudos
estão vinculados à linha de pesquisa inaugurada por Maria Yeda Linhares, que tem
como representante, hoje, a historiadora Marcia Menendes Motta. Essa linha de
pesquisa foca muito mais em questões agrárias do que em problemas relacionados

6. LOUREIRO, Pedro; GODOY, Marcelo. Os registros paroquiais de terras na história e na


historiografia — estudo da apropriação fundiária na província de minas gerais segundo uma outra
metodologia para o tratamento do primeiro cadastro geral de terras do Brasil. História econômica &
história de empresas. XIII.1 (2010), pp.95-132.
Fragmentos da paisagem rural brasileira: os Registros Paroquiais de Terra

[179]

à história agrícola, não apenas aqueles de ordem econômica, mas também os de


ordem social e cultural. Portanto, essa última vertente dos estudos rurais carece de
mais empenho por parte da historiografia brasileira. Os Registros Paroquiais de
Terra, por sua riqueza e abrangência (para Minas Gerais, por exemplo, são cober-
tas 238 localidades7), são uma janela para o passado rural brasileiro e convidam
jovens pesquisadores a se empenharem em analisá-los. Resta dizer que a este autor
soa estranho o quase silêncio da historiografia nacional em relação ao passado
rural, justamente em um país que gestou muitas de suas bases sociais, econômicas,
políticas e culturais no campo, onde o latifúndio e os latifundiários ainda são sím-
bolo e donos do poder, onde comunidades são dizimadas pela ganância por terras
cultiváveis, onde recursos naturais preciosos são substituídos, sem resistência, por
monoculturas.

7. Os RPT da Província de Minas Gerais estão integralmente disponíveis online no site do Arquivo
Público Mineiro. http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fundos_colecoes/brtacervo.
php?cid=26.
Documento
Trechos do Livro de Registros Paroquiais de Terra. Disponível
no Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra,
1854-1861. TP-1-160.Piranga, Nossa Senhora da Conceição
do (Vila de), Distrito de Calambau. 1856.

Data
1856

Resumo
Trechos do Livro Paroquial de Registros de Terras. Os registros
contêm o nome do proprietário, os limites e o tamanho — a partir
da unidade “plantas de milho” — da propriedade, passadas em
duplicata devido ao artigo 93 do regulamento de 30 de janeiro
de 1854. As folhas foram numeradas e rubricadas pelo Vigário
Francisco de Paula Homem. Documento digitalizado a partir
do microfilme. Encontramos o termo de abertura na folha
de guarda. A caligrafia é tendencialmente humanística, com
pouca ou nenhuma presença de enlaces e ligaduras e existem
pouquíssimas abreviaturas.
1 Livro 2º

2 Hade este livro servir para nelle faser-se os registros


3 das terras possuidas nesta Freguezia, o qual
4 vai numerado, e rubricado por mim com estas
5 letras P.H., que querem diser Paula Homem. E
6 no termo de encerramento, que vai no fim con-
7 terá o número de folhas. Piranga 1º de Abril
8 de 1856
9 O Vigário Francisco de Paula Homem
[fl.1]

1 Número 308
2 Digo eu Manoel Gomes Chaves, que sou Senhor, e
<Distrito do 3 possuidor de huma Fazenda de terras de cultu=
Calambáu> 4 ra situada nas Margens do Rio Ch[o]potó no Dis=
5 tricto de Calambaú Freguezia, e Municicio da
6 Villa do Piranga: as quaes possuo por herança
7 de meus Paes, Joaquim Gomes Chaves, e Rhaquel
8 Maria de Jesus: e partem ou dev[i]zaõ com terras
9 de Antonio Alv[e]s [?] Pereira, e Antonio José
10 da Silva: servindo de limites o rio Chopotão calcu =
11 landose levar de planta de milho doze alqueres po
12 co mais, ou menos, e por verdade ser mandei pas-
13 sar o presente em duplicata em virtude do artigo
14 noventa, e tres do regulamento de trinta de
15 Janeiro de mil oittocentos, e cincoenta, e quatro:
16 e por eu não saber ler, e nem escrever pedi a
17 Humbelino José de Magalhães, que este por
18 mim fesesse, e assignasse. Calambaú deza=
19 sette de Abril de mil oitocentos, e cincoenta=
20 enta [sic], e seis. Humbelino José de Magalhaes
21 He o que continha o dito exemplar, e outro
22 que fica archivado, ao qual me reporto, e[u]
23 Mathias Homem da Costa, Escrivão dos
24 registros, que o escrevi. Vila do Piranga 22
25 de Abril de 1856 //. O Vigário Paula Homem

26 Número 309

27 Digo eu Antonio Alves Pereira, que sou Senhor e


< Distrito do 28 e possuidor de huma Fazenda e terras de cultura
Calambaú > 29 situada nas margens do Rio Chopotó no Dis=
30 tricto do Calambaú, Freguezia, e Municipio
31 de Vila do Piranga: as quais possuo por com=
32 pra aos herdeiros do fallecido Antonio Al=
33 ves Pereira: e partem, ou devizaõ com Dona
34 Maria Joaquina da Silva, e com Lino Coelho
35 Duarte, e Antonio José da Silva; e servindo
36 o rio Chopotó: e calculando-se levar de planta
37 de milho cento, vinte alqueires, pouco mais, ou
38 menos, e por verdade mandei passar o presente
[fl. 1v]

1 em duplicata por Humbelino José de Maga=


2 lhaeñs, no qual só me assigno em verdade do
3 artigo noventa, e tres do regulamento de trinta
4 de Janeiro de mil oitocentos e cincoenta, e quatro
5 que vai por mim somente assignado. Calan=
6 baú dezessette de Abril de mil oitocentos, e cinco=
7 enta, e seis. Antônio Alves Pereira. Hé o que
8 continha o dito exemplar, e outro que fica ar=
9 chivado, ao qual me riporto, e eu Mathias Ho=
10 mem da Costa, Escrivaõ dos registros que o
11 escrevi. Piranga 22 de Abril de 1856.//

12 O Vigário Paula Homem


13 Número 310

14 Digo eu Antonio Martins Peres, que sou Senhor, e


15 possuidor com pleno dominio de hum sitio de terras
< Distrito da 16 de cultura no Disctrito de Mestre de Campos da
Villa > 17 Freguezia da Villa do Piranga denominado tres
18 cruzes: diviza por hum lado com Domingos da
19 Costa, e Anna da Costa, e Paracatú, e Maria
20 Clara; calcula levar seis alqueires mais, ou me=
21 nos; e por verdade passo o prezente em duplica=
22 ta em virtude do artigo noventa, e tres do regu=
23 lamento de trinta de Janeiro de mil oitocentos-
24 e cincoenta, e quatro: que vaõ a meo pedido
25 assignados o meu o nome por Jozé Bernar=
26 des de Souza. Mestre de Campos dezesseis de
27 Abril de mil oitocentos, e cincoenta, e seis. As-
28 signo, a pedido de Antonio Martins Peres, Jo-
29 zé Bernardes de Souza. He o que continha
30 o dito exemplar, e outro que fica archivado, ao
31 qual me reporto, e eu Mathias Homem
32 da Costa. Escrivão dos registro, que o escrevi
33 Villa do Piranga 22 de Abril de 1856.//

34 O Vigário Paula Homem


35 Número 311
36 Eu L[ino] Martins Teixeira possuo neste Distri -
< Distrito da 37 to da Oliveira Freguezia do Piranga dezeseis
Oliveira >
Documento
Trechos do Livro de Registros Paroquiais de Terra. Disponível
no Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra,
1854-1861. TP-1-159. Piranga, Nossa Senhora da Conceição
do (Vila de). 1855-1856.

Data
1855-1856

Resumo
Trechos do Livro Paroquial de Registros de Terras. Os registros
contêm o nome do proprietário, os limites e o tamanho — a partir
da unidade “plantas de milho” - da propriedade, passadas em
duplicata devido ao artigo 93 do regulamento de 30 de janeiro
de 1854. As folhas foram numeradas e rubricadas pelo Vigário
Francisco de Paula Homem. Documento digitalizado a partir
do microfilme. A caligrafia é tendencialmente humanística, com
pouco ou nenhuma presença de enlaces e ligaduras e existem
pouquíssimas abreviaturas.
[fl. 1]

1 Número 1º

2 Digo eu Antonio Anacleto Varella que sou Senhor, e possuidor


3 com pleno dominio de Úmas terras de cultura, no lugar denominado=
4 Corrigo do Catanho no Districto da Villa da Piranga, cujas terras
5 que levaráõ de planta de milho dezaceis alqueires pouco mais, ou me=
6 nos, comprei a Felippe Pereira da Silva, e divisaõ por hum lado
7 com terras de Jozé Pereira de Barcellos, por outro com terras
8 do finado Jozé Caetano, e por outro com terras de Manoel
9 Camêllo, e com quem mais haja, e devo partir, e divisar e por ver=
< Distrito da Villa > 10 dade mandei passar a presente em duplicata em virtude do Ar=
11 tigo noventa e trez do Regulamento de trinta de Janeiro de mil
12 oitocentos, e cincoenta, e quatro; que vaõ por mim taõ somente assig=
13 nados tendo sido escriptos á meu pedido por Manoel da Rocha
14 Soares Machado. Piranga vinte, e dous de Abril de mil oito=
15 centos, e cincoenta, e cinco. Antonio Anacleto Varella.
16 He o que continha o dito exemplar, e outro que fica archivado, ao
17 qual me reporto e eu Mathias Homem da Costa escrivaõ
18 dos Registros, que escrevi. Piranga 22 de Abril de 1855.

19 O Vigário Francisco de Paula Homem

20 Número 2º
21 Digo eu Antonio Anacleto Varella, que sendo Senhor, e possuidor
22 com pleno domínio de huma Chacara, que levará oito alqueires
23 de planta de milho pouco mais, ou menos, sita no lu=
24 gar denominado = Bom Jardim, — a qual comprei á Dona
< Distrito da Villa > 25 Ritta Ferreira Campos, e divisa por ũm lado com Fran=
26 cisco Ferreira Monteiro, por outro com o Alferes Antonio
27 Homem da Costa, por outro com Dona Francisca de
28 Paula Carneira, e com quem mais haja, e deva devizar, e por
29 ser verdade mandei passar a prezente em duplicata em
30 virtude do Artigo noventa e trez do Regulamento de trinta
31 de Janeiro de mil oitocentos, e cincoenta, e quatro, que vaõ
32 por mim taõ somente assignados, tendo sido escriptos á meu
33 pedido por Manoel da Rocha Soares Machado. Piranga
34 vinte, e dous de Abril de mil oitocentos, e cincoenta, e cinco.
35 Antonio Anacleto Varella. He o que continha o dito exem=
36 plar, e outro que fica archivado, ao qual me reporto, e eu=
[fl. 1v ]

1 Mathias Homem da Costa escrivaõ dos Registros que o es=


2 crivi Piranga 22 de Abril de 1855.

3 O Vigário Francisco de Paula Homem


4 Número 3º
5 Digo eu Antonio Anacleto Varella que sou Senhor, e possuidor com
6 pleno domínio de huma porçaõ de terras de culturas, que levará seten=
7 ta alqueires de planta de milho, no lugar denominado Perapitinga,
8 cujas terras comprei á Antonio Vieira, e divisaõ por um lado com
9 terras do mesmo vendedor, por outro, com as de Jacintho José
10 de Vargas, por outro com as de Antonio Diaz dos Anjos, José
11 Silvano, e Dona Thereza Altina Sandes de Barros, e com quem
12 mais haja de divizar, e por verdade mandei passar o prezente
13 em duplicata em vertude do Artigo noventa, e trez do Regu= < Distrito da Villa >
14 lamento de Trinta de Janeiro de mil oitocentos, e cincoenta,
15 e quatro, que vão por mim somente assignados, tendo sido escrip=
16 tas á eu pedido por Manuel da Rocha Soares Machado.
17 Piranga vinte dous de Abril de mil oitocentos, e cincoenta,
18 e cinco. Antonio Anacleto Varella. He o que conti=
19 nha o dito exemplar, e outro que fica archivado, ao qual
20 me reporto, e eu Mathias Homem da Costa escrivaõ dos
21 Registros, que o escrevi. Piranga 22 de Abril de 1855.

22 O Vigário Francisco de Paula Homem


23 Número 4º
24 Digo eu, o Padre Manoel Francisco do Carmo, que sou Senhor,
25 e possuidor com pleno domínio de huma Fazenda de terras de
26 cultura, situada no Arraial da Oliveira, Municipio da
27 Villa da Piranga, que as possuo por compra que fiz aos
28 herdeiros do finado Joaõ Soares Ferreira, e divizaõ com Anto=
29 nio Francisco de Paiva, com Claudio José de Miranda, e com
30 a Viuva do finado Manoel Coelho de Magalhaêns, e com
31 quem mais haja, e deva partir, e confrontar, calculando-se
32 levar cincoenta alqueires de planta de milho pouco mais, ou < Distrito da Oliveira >
33 menos, e por verdade passei este em duplicata, em virtude
34 do Artigo noventa e trez do Regulamento de trinta de Janei=
35 ro de mil oitocentos, e cincoenta e quatro, que vai por mim só feito,
36 e assignado. Piranga quatro de Maio de mil oitocentos, e cin=
37 coenta, e cinco. O Padre Manoel Francisco do Carmo.
38 Hé o que — continha — o dito exemplar, e outro que fica archiva
39 do, ao qual me reporto, e eu Mathias Homem da Costa
40 Escrivaõ dos Registros, que o escrevi: Piranga 4 de Maio de 1855

41 O Vigário Francisco de Paula Homem


Cássio Bruno de Araujo Rocha
Mestre em História pela UFMG

O estranho sodomita 1

Quando o visitador do Santo Ofício Heitor Furtado de Mendonça aportou,


adoentado, na cidade do Salvador da Bahia a 9 de julho de 15912, o padre Frutuoso
Álvares era um homem já velho, contando 65 anos e com barbas brancas3. Portando

1. Neste texto, será problematizada a questão da sodomia em relação às hierarquias eróticas e de


gênero vigentes na América portuguesa entre os séculos XVI e XVII. Todavia, como se verá ao
longo do artigo, a sodomia era um conceito marcado mais pelo seu caráter movediço e incerto que
por uma definição clara. Poderia significar tanto o homoerotismo entre homens e entre mulheres,
quanto a prática de sexo anal entre homem e mulher. Pensando a relação entre masculinidade e
homoerotismo no contexto e sobre o par conceitual sodomita/homossexual, o texto se centra, por
meio do processo instaurado contra o padre Frutuoso Álvares, vigário de Matoim, na sodomia
perfeita.
2. Segundo Rodolpho Garcia, em sua introdução à edição impressa das Denunciações de Pernambuco
na Primeira Visitação, recapitulando as informações oferecidas por Capistrano de Abreu nos
volumes anteriores dedicados às confissões e às denúncias feitas na Bahia, Heitor Furtado de
Mendonça, tendo sido nomeado visitador dos bispados de Cabo Verde, São Thomé e Brasil (inclusive
São Vicente e o Rio de Janeiro) por comissão especial do cardeal arquiduque e inquisidor-geral D.
Alberto a 26 de março de 1591, chegou a Salvador enfermo devido às atribulações da viagem pelo
Atlântico. GARCIA, Roddolpho. Introdução. IN: Primeira visitação do Santo Ofício às Partes do
Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça — Denunciações de Pernambuco — 1593-1595.
Introdução de Rodolfo Garcia. São Paulo, Paulo Padro, 1929. p. VII.
3. Ao longo deste capítulo, o estatuto erótico e de gênero da sodomia na Época Moderna será
problematizado a partir da confissão feita pelo padre Frutuoso Álvares na Primeira Visitação
e do processo instaurado contra ele pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça a partir da
denúncia de Jerônimo de Parada. O processo encontra-se digitalizado no site do Arquivo
Nacional da Torre do Tombo em Lisboa, sendo seu índice de referência PT-TT-TSO/IL/28/5846.
Disponível em: http://ttonline.dgarq.gov.pt/dserve.exe?dsqServer=calm6&dsqIni=Dserve.
ini&dsqApp=Archive&dsqCmd=show.tcl&dsqDb=Catalog&dsqPos=34&dsqSearch=(((text)=’frut
uoso’)AND((text)=’alvares’)). Último acesso em: 10 de outubro de 2013. A referência à barba branca
do padre está na página 13 do processo.
O estranho sodomita

[196]

um aspecto senhorial condizente com o ideal patriarcal que governava a masculini-


dade enquanto gênero performativo, o padre foi o primeiro a se confessar a Heitor
Furtado no período da graça concedido a Salvador. Todavia, qualquer impressão
que o semblante de Frutuoso Álvares possa ter causado no visitador, provavelmente
foi logo desfeita pelo teor de sua confissão4.
Em sua confissão, o padre Frutuoso Álvares narrou ao talvez pasmo visitador
sua vida de encontros eróticos ilícitos com “muitos moços e mancebos que não
conhece nem sabe os nomes”5. Nestes encontros, o padre trocava abraços, beijos,
tocamentos diversos nos sexos dos parceiros e praticava o sexo anal tanto pene-
trando, quanto sendo penetrado — ainda que tenha alegado, em sua primeira con-
fissão, que nunca efetuou o pecado da sodomia penetrando6. Seus parceiros parecem
ter sido sempre jovens adolescentes de idade entre 12 e 18 anos, a quem Frutuoso
Álvares atraía para a prática do nefando usando de vários subterfúgios, mas prin-
cipalmente sua posição a princípio insuspeita de velho vigário de Matoim e amigo
das famílias dos jovens.
Como vigário da paróquia de Matoim, Frutuoso Álvares estava bem inserido na
comunidade, conhecendo muitas pessoas e sendo por elas conhecido — o que já lhe
causara problemas, como será visto abaixo. Conhecia, por exemplo, Pero d’Aguiar,
morador em sua freguesia e pai de Cristóvão de Aguiar, mancebo que tinha 18 anos
em 1591. Dois ou três anos antes, segundo relato do padre, ele o jovem tiveram
tocamentos desonestos, abraçaram-se e beijaram-se, tendo polução7. Como padre,
Frutuoso Álvares também conhecia, ainda que superficialmente, o mercador Fuão8
Siqueira, cujo sobrinho e criado, um moço chamado Antônio, teve seu pênis tocado

4. A esse respeito, o historiador Rodolpho Garcia (1873-1949), discípulo de Capistrano de Abreu,


comentou que “logo a 29 ouvia a confissão do Padre Fructuoso Alvares, vigario de Matuim, (...)
por mais de um motivo penosa para um convalescente de grave doença”, GARCIA, Roddolpho.
Introdução. P.VII. O historiador demonstrou, nesta passagem, como o sentimento de abjeção
ao homoerotismo sentido pelo visitador perpetuou-se na cultura brasileira através dos séculos,
transformando-se de um horror ao pecado tão terrível que era nefando, do qual não se podia sequer
falar o nome, em um ódio à figura moderna do homossexual. Para rápida biografia de Rodolpho
Garcia, com índice de suas obras e seleção de textos, ver o site da Academia Brasileira de Letras,
disponível em: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=350. Último
acesso em: 10 de outubro de 2013.
5. VAINFAS, Ronaldo. (Org.). Confissões da Bahia: santo ofício da inquisição de Lisboa. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997. p. 47.
6. ______. Confissões da Bahia. p. 47-48.
7. ______. Confissões da Bahia. p. 46.
8. Nota dos Editores: corruptela de “Fulano” .
O estranho sodomita

[197]

pelo réu e confessante, carícia que não resultou em ejaculação de nenhuma das
partes9.
Sendo um homem de práticas sodomíticas notórias10, Frutuoso Álvares, mesmo
assim, conseguiu cultivar amizades duradouras com os pais ou senhores de seus
parceiros eróticos. Tal fato põem em questão a performance de gênero encenada
cotidianamente pelo réu. Teriam homens ciosos de sua virilidade — como eram
os homens da América portuguesa no período — estreitado amizade, recebendo
em sua casa e permitindo que seus dependentes frequentassem a casa do padre, se
a apresentação pública do mesmo — se sua performatividade de gênero — não se
conformasse ao ideal hegemônico de masculinidade corrente?
Tendo em vista o pesado estigma social associado ao feminino (matriz do
pecado na tradição cristã), percebe-se que a identidade de gênero do padre Frutuoso
Álvares, não obstante suas práticas homoeróticas, pautava-se pelos padrões cultu-
ralmente estabelecidos para a masculinidade. Por sua posição de vigário da paró-
quia do Matoim, o padre exercia funções de patriarca espiritual da comunidade,
papel reforçado por sua idade avançada e aparência física. Como tal, foi capaz de
articular uma rede de sociabilidade masculina que lhe angariava vantagens explíci-
tas — como usar da hospitalidade dos amigos homens — e implícitas — ganhar a
confiança de adolescentes e atraí-los para os prazeres nefandos.
Se os prazeres carnais com rapazes não parecem informar a composição da
identidade de gênero do padre Frutuoso, que lugar ocupavam tais práticas em sua
visão de mundo? Nas suas palavras — conforme traduzidas pelo notário a mando
do visitador: “(...) sabia muito bem quão grandes pecados sejam estes que tem
cometido, e deles está muito arrependido e pede perdão”11. Suas experiências eró-
ticas com jovens, traduzia-nas o padre Frutuoso Álvares como ações pecaminosas,
as quais, devido à fraqueza da Carne, ele não deixava de cometer a despeito das
sucessivas sanções sofridas ao longo da vida.

9. VAINFAS. Confissões da Bahia. p.46.


10. Além dos processos que sofrera ao longo de sua vida em Braga, Cabo Verde e Lisboa, o padre
Frutuoso Álvares fora processado pelo ordinário do bispado da Bahia em pelo menos duas
oportunidades, pelo ajuntamento carnal que mantivera com Diogo Martins (investigação que não
logrou condená-lo) e por trocar tocamentos desonestos com os irmãos Antônio Álvares e Manuel
Álvares — desta feita, a investigação, fundamentada em testemunhos de cinco pessoas, resultou em
sua condenação com multa e suspensão das ordens por certo tempo. Segundo o relato do padre, a
investigação mais recente fora realizada na visitação feita pelo provisor do bispo no ano de 1590, um
antes da chegada da Inquisição à Bahia. Confissões da Bahia. p. 48, 50-51.
11. VAINFAS. Confissões da Bahia. p.49.
O estranho sodomita

[198]

As experiências do padre Frutuoso Álvares e o discurso montado pelo Tribunal


do Santo Ofício a partir delas sugerem uma reflexão sobre as maneiras pelas quais
se articulavam comportamentos eróticos desviantes e identidades de gênero na
Época Moderna.
Propor questões dentro desta problemática é o objetivo deste artigo, usando
como pivô as (des)venturas do padre Frutuoso Álvares perante o Santo Ofício.
Assim, o estatuto de gênero e sexualidade da sodomia no mundo português entre os
séculos XVI e XVII será problematizado segundo os marcos da Teoria Queer, que
permitem o deslocamento do binarismo de gênero e da heterossexualidade compul-
sória12, abrindo espaço para a percepção de vivências eróticas que não se confor-
mem ao ordenamento direto e linear de sexo, gênero e desejo.
É importante frisar desde já que, diante do volume da documentação exis-
tente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo sobre a sodomia (notadamente os
Cadernos do Nefando, mas também uma vasta diversidade de processos, denúncias,
regimentos e outras formas de documentação), este texto não pretende oferecer
respostas definitivas (é isto possível na História?) acerca de como a sodomia era
significada e experimentada pelos diversos atores e instituições sociais. O que se
pretende é seguir o debate sobre como a sodomia se articulava a identidades de
gênero e eróticas das pessoas. Trocando em miúdos, a pergunta central é simples,
era o sodomita homossexual?
Esta pergunta tão simplesmente enunciada diz respeito ao debate acadêmico
transdicisplinar travado entre duas correntes de pensamento com visões antagô-
nicas a respeito do erotismo e das identidades de gênero. Trata-se do debate entre

12. Monique Witting, nos marcos do feminismo materialista francês, desenvolveu o conceito da
heterossexualidade compulsória para descrever a ação normalizadora exercida pelo conjunto de
ciências e disciplinas (entre elas o campo das humanidades, em que se localiza a História) que
formam o chamado Pensamento Heterossexual. Este conjunto de saberes científicos, na descrição
da autora, é conformado por conceitos primitivos que instauram e mascaram a dominação de
grupos sociais (as mulheres, as lésbicas, os gays e certos grupos de homens, por exemplo, os negros
ou indígenas) a partir da construção dialética do Outro/diferente. Desse modo, ser homem e ser
mulher são categorias cujos sentidos somente existem dentro do sistema totalizador do Pensamento
Heterossexual — instaurador da heterossexualidade compulsória. Formas de relações de gênero e
sexuais desviantes da ordem patriarcal não podem ser pensadas segundo os termos do Pensamento
Heterossexual, exigem, portanto, um esforço de deslocamento e ruptura dos signos deste pensamento.
Esforço empreendido já pelo feminismo materialista, mas que foi redimensionado pela teoria queer,
ao reinserir as identidades desviantes no sistema heterossexual e mostrando como elas podem
subvertê-lo a partir das relações de poder que, por meio da repetição performativa dos gêneros,
as instauram. WITTING, Monique. El pensamiento heterosexual. IN: WITTING, Monique. El
pensamiento heterosexual y otros ensayos. Tradução: Javier Sáez, Paco Vidarte. Barcelona: Editorial
Egales, 2006. p. 49-57.
O estranho sodomita

[199]

as correntes essencialista e construcionista, que divergem sobre a historicidade das


identidades eróticas e de gênero como as de sodomita e de homossexual.
De acordo com a interpretação essencialista da dimensão erótica da experiência
humana, existem essências humanas universais ou naturais subjacentes a qualquer
análise das expressões eróticas de qualquer cultura em diferentes tempos e espaços,
identidades que seriam dadas pela natureza13. Para a corrente essencialista, a homos-
sexualidade é um dado exterior à sua delimitação discursiva; o marco apresentado
por Foucault como seu começo nas sociedades industriais não seria mais do que
uma nova nomeação a elementos que já existiam mesmo antes de serem nomea-
dos14. Importante autor desta corrente de pensamento é o historiador estadunidense
John Boswell, cujo livro Christianity, social tolerance and homosexuality (em que
ele defende a equivalência entre sodomia e homossexualidade, postulando a possi-
bilidade do uso e circulação do termo gay no idioma catalão-provençal para pra-
ticantes do sexo homoerótico desde o século XIII15), cuja obra foi constantemente
citada por historiadores brasileiros entre a década de 1980 e 1990 para legitimar a
igualdade entre sodomitas dos séculos XVI ao XVIII e homossexuais do século XX.
Em seu texto, Boswell pretendeu desvendar as raízes culturais da intolerância
devotada a alguns grupos cujas práticas eróticas desviavam da moral hegemônica.
Intolerância que, usando de argumentos religiosos (cristãos), não se focava com a
mesma intensidade em todos os grupos condenados pelas escrituras sagradas do
cristianismo. Neste sentido, o autor comenta os diversos tratamentos dados pelos
Estados cristãos da Época Moderna às prostitutas e aos sodomitas (aos quais ele
sempre se refere como gays) — os dois grupos condenados com veemência seme-
lhante pela Bíblia16. Porém, para atingir este objetivo, o historiador postula a uni-
versalidade da experiência homoerótica na história, aproximando as experiências
gays do século XX com aquelas dos gais da região da Catalunha e da Provença entre
a Baixa Idade Média e a Modernidade. Este movimento teórico justificar-se-ia, no
entender de Boswell, pela circulação (que ele próprio reconhece como controversa
e cuja história é lacunar e duvidosa) do termo gai (que poderia se referir a poesia, a

13. BARBO, Daniel. O Triunfo do Falo: Homoerotismo, Dominação, Ética e Política na Atenas
Clássica. Rio de Janeiro: E-Papers, 2008. p .22.
14. GARCIA, David Córdoba. Teoría queer: reflexiones sobre sexo, sexualidad e identidad. Hacia
uma politización de la sexualidad. IN: GARCIA, David Córdoba; SÁEZ, Javier; VIDARTE, Paco.
Teoría Queer. Políticas bolleras, maricas, trans, mestizas. Barcelona, Madrid: Editorial Egales, 2007.
p. 33-34.
15. BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and homosexuality. The University of Chicago
Press: Chicago; London, 1980. p. 43.
16. ______. Christianity, social tolerance and homosexuality p. 3-39.
O estranho sodomita

[200]

amantes em geral e a amantes homoeróticos) desde o sul da França entre os séculos


XIII e XIV e a Inglaterra e os Estados Unidos no século XX17.
O antropólogo, historiador e decano do moderno movimento gay no Brasil,
Luiz Mott é talvez um dos maiores estudiosos da questão da sodomia no mundo
luso-brasileiro na Época Moderna, tendo pesquisado exaustivamente os documen-
tos inquisitoriais na Torre do Tombo em Lisboa. Defensor da perspectiva essencia-
lista, o historiador e antropólogo usou em vários textos o estudo de Boswell como
justificativa para o uso do termo gay como epíteto válido para se referir a sodomitas
entre os séculos XVI e XVIII, como no trecho seguinte:

Propositadamente emprego aqui a expressão “gay” pois de acordo


com Boswell (1980:43), desde o século XII que na língua catalã-
-provençal se emprega o termo “gai” para referir-se a uma pessoa
abertamente homossexual. Em seu livro sobre Cristandade, tolerância
social e homossexualidade, Boswell emprega este mesmo cognome
para referir-se aos sodomitas da Idade Média: “Gay people in Western
Europe from the beginning of the Christian Era to the fourteenth cen-
tury”. Para sermos mais fiéis a nossas raízes linguísticas, considero
melhor o termo “gay” do que “homossexual” este último vocábulo
somente tendo sido cunhado em 1869 por Benkert e divulgado em
1870 pelo médico alemão Westphal.18

Em seus muitos textos sobre a sodomia e os sodomitas, publicados desde a


década de 1980, o autor emprega variados termos para se referir aos homens com
práticas homoeróticas; tais como uranistas, pederastas, homófilos, terceiro sexo,
nefandistas, ganimedes (para sodomitas mais jovens e efeminados), vício de Veneza
ou vício italiano, amor socrático ou amor grego, amor sáfico, vício dos clérigos e
amor que não ousa dizer seu nome. Vários destes cognomes demonstram o que
Daniel Barbo considerou como sendo o forte peso dos estudos da cultura grega clás-
sica durante o período de gestação da moderna categoria da homossexualidade19,
como os amores socrático e sáfico, uranistas e ganimedes20. O termo “amor que não

17. BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and homosexuality. p. 43, nota 6.
18. MOTT, Luiz. Escravidão, Homossexualidade e Demonologia. São Paulo: Ícone, 1988. p. 42, nota 6.
19. BARBO, Daniel. A emergência da homossexualidade: cultura grega, cientificismo e engajamento.
IN: COSTA, Adriane Vidal; BARBO, Daniel. História, literatura e homossexualidade. Belo Horizonte:
Fino Traço, 2013. p. 11-42.
20. Na mitologia grega, Ganimedes foi um herói troiano considerado o mais belo dos mortais.
Enquanto pastoreava os rebanhos do pai, foi avistado por Zeus que, encantado com a beleza do
jovem, raptou-o e levou-o ao Olimpo. Na morada dos deuses, Ganimedes recebeu a imortalidade
e recebeu a incumbência de servir o néctar às divindades em suas assembleias, substituindo Hebe,
deusa da juventude, nesta tarefa. Ao mesmo tempo, era amante de Zeus, senhor do Olimpo. Ver
Dicionário de Mitologia Greco-Romana. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 80.
O estranho sodomita

[201]

ousa dizer o nome” refere-se ao escritor, dramaturgo e poeta inglês Oscar Wilde
que, além de ter escrito diversas obras em que o homoerotismo tem presença fun-
damental (como O Retrato de Dorian Grey), foi processado e condenado à prisão
e à trabalhos forçados na Inglaterra vitoriana por crime de sodomia. Oscar Wilde,
por suas obras e por sua vida, tornou-se referência importante na cultura gay que se
articulou no Ocidente a partir do século XX21.
Duas críticas podem ser feitas à corrente essencialista. Em primeiro lugar, por
tomar como pressuposto a existência de uma essência transhistórica para as iden-
tidades de gênero e eróticas, ela tece uma história marcada pela linearidade e pela
teleologia. Em várias passagens, Luiz Mott explicita seu interesse em construir uma
história para os homossexuais, articulando (como fundamentalmente semelhantes)
dispositivos distintos de repressão ao homoerotismo. Um exemplo é a implícita
comparação entre a perseguição inquisitorial aos sodomitas e ao extermínio de
homossexuais promovido pelo nazismo:

Se compararmos a legislação inquisitorial na caracterização do crime


de sodomia, com as leis dos países protestantes da mesma época, da
Holanda, Suíça ou mesmo Inglaterra, somos forçados a concluir que o
Terrível Tribunal de Lisboa foi muito mais tolerante com a homosse-
xualidade do que as justiças reformadas. Na Alemanha Nazista, sim-
ples pensamentos homoeróticos foram matéria suficiente para levar
aos campos de concentração supostos homossexuais, avaliando-se em
300 mil os “schwul” (gays) assassinados pelo Nazismo.22

Uma história articulada deste modo corre o risco de gerar simplificações e ana-
cronismos, pois as experiências de gays do século XX e de sodomitas dos séculos
XVI ao XVIII guardam significativas diferenças — a começar pelos termos com que
cada grupo significava suas práticas homoeróticas; os primeiros como condição
mais fundamental de sua identidade de sujeitos humanos, os segundos como pesado
e prazeroso pecado da Carne.
A segunda crítica refere-se à construção de mitos engendrada pela essencializa-
ção da história da homossexualidade. Uma vez que a homossexualidade é um dado
natural que atravessa épocas, culturas e continentes, recebendo diversos nomes, mas

21. Conforme Didier Eribon, “a condenação de Oscar Wilde provocou um verdadeiro abalo das
consciências, e seu nome bem rapidamente vai se tornar, para muitos homossexuais — masculinos,
pelo menos -, símbolo, a um só tempo, da cultura gay e da repressão que ela inevitavelmente suscita
tão logo procura aparecer à luz do dia”. ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Tradução
Procopio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008. p. 175.
22. MOTT, Luiz. O sexo proibido: Virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição, Campinas, SP,
Papirus, 1988. p. 114-115.
O estranho sodomita

[202]

conservando uma essência imutável, aqueles que praticaram o homoerotismo no


passado (e foram por isso perseguidos, muitos executados) surgem como heróis e
mártires da história e da causa homossexual23. Mais uma vez, Mott é explícito em
sua intenção política:

Alguns, modelos e paradigmas na luta contra o racismo, contra a into-


lerância inquisitorial, contestadores do machismo, os mesmos defeitos
de nossa civilização judaico-cristã que ainda hoje causam a desgraça
das minorias oprimidas. Que estes ilustres desconhecidos — agora
identificados — também tenham o direito à história. E os oprimidos,
seus heróis.24

A crítica ao essencialismo não significa desprezar as contribuições historiográ-


ficas dos seus autores — apenas pô-las em relação aos significados específicos das
identidades eróticas e de gênero em questão, no caso, as dos sodomitas. Essa ressalva
é de particular importância em relação ao artigo “Pagode português: A subcultura
gay em Portugal nos tempos inquisitoriais” de Luiz Mott. Neste texto, o autor tece
o panorama de uma Lisboa dos tempos inquisitoriais insuspeita, em que o homoe-
rotismo dos sodomitas se desenvolveu em códigos culturais próprios e dedicados a
permitir a continuidade de suas práticas nefandas mesmo contra os próprios muros
da Inquisição — como nas portas de Santo Antônio e os Arcos do Rocio, na vizi-
nhança das instalações do Santo Ofício em Lisboa. Entre lugares públicos e estala-
gens para encontros efêmeros, casas particulares que serviam de ponto de reunião
para círculos de amigos que tinham em comum experiências performativamente
subversivas de gênero (sodomitas efeminados que enfatizavam em suas vestes, falas
e gestos essa característica), vocabulário específico a estes grupos e mesmo sodo-
mitas intelectualizados capazes de se apropriarem dos discursos condenatórios da
sodomia para construir uma positividade para esta prática erótica, a cultura portu-
guesa dos séculos XVII e XVIII ganha novos traços que atestam a força de incitação
à discursificação do sexo era capaz, já na Época Moderna, de engendrar pontos de

23. Não se trata aqui de criticar-se o entrelaçamento da política e da militância com a historiografia.
Conforme demonstrou Joan Scott, a oposição entre teoria e política é falsa e produtora de
violências, pois silencia debates necessários acerca de qual teoria pode apresentar maior utilidade
para determinada política, fazendo com que, em um movimento excludente, uma única teoria seja
alçada ao posto de aceitável como política. Assim, não se critica a militância do historiador, apenas
possíveis anacronismos que dela podem derivar sem a correlata reflexão teórica a respeito dos
conceitos importados da práxis política. SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter
(org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. p. 87-98.
24. MOTT, Luiz. Escravidão, Homossexualidade e Demonologia. p. 9..
O estranho sodomita

[203]

resistência expressivos da capacidade de estilização da existência mesmo de sodomi-


tas ameaçados sempre pelo espectro da fogueira inquisitorial25.
É também neste texto que Luiz Mott torna mais evidente seu alinhamento à
corrente essencialista, apresentando um desafio ao construcionismo em geral e à
teoria de Michel Foucault em particular. A sofisticação dos códigos comunicativos
dos sodomitas em Portugal entre os séculos XVII e XVIII (interpretados pelo autor
como uma subcultura gay não muito diversa daquela existente nas grandes cidades
ocidentais durante o século XX) levou-o a concluir pela existência de uma condi-
ção homossexual única através dos séculos, colocando em xeque a proposição de
Foucault de que a homossexualidade seria uma invenção do dispositivo da sexuali-
dade nas décadas finais do século XIX. Nas palavras de Mott:

Portanto, cremos que essa nossa primeira reconstituição da estrutura


e dinâmica da subcultura gay em Portugal dos séculos XVI ao XVIII,
permite-nos avançar na discussão sobre a história da homossexua-
lidade, confirmando as teses dos essencialistas e realistas que defen-
dem ser o homossexual não apenas o portador de um estilo de vida
gay, mas detentor de uma verdadeira condição existencial suis gene-
ris. Os sodomitas em Portugal inquisitorial não eram apenas reinci-
dentes no homoerotismo, como pretendem M. Foucault e os teóricos
nominalistas-construtivistas.26

Diferentemente de Luiz Mott, o historiador Ronaldo Vainfas não rejeita tão


peremptoriamente a opção construcionista. Na medida em que a teoria do incita-
mento à discursificação do sexo (e o modelo de poder a ela subjacente) conformam
a interpretação do funcionamento do Tribunal do Santo Ofício em sua perseguição
aos delitos morais27. A incerteza sobre o estatuto da sodomia era, segundo um autor,
uma dúvida compartilhada entre os eruditos representantes dos poderes persecu-
tórios e os sodomitas que a praticavam28. Mais além, é uma dúvida que também
alimenta as pesquisas de estudiosos contemporâneos da questão.
Ronaldo Vainfas leva em consideração a posição construcionista acerca da
homossexualidade logo no início do capítulo quinto do seu Trópico dos Pecados,
em que analisa as condições de existência do pecado nefando, e seus praticantes, na
América portuguesa. Todavia, a ideia foucaultiana de que a sodomia seria antes de

25. MOTT, Luiz. Pagode português: a subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais. Ciência
e Cultura. Vol. 40.1988. p.127-137.
26. ______. Pagode português. p .137-138.
27. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de
Janeiro: Campus, 1989. p.50.
28. ______.. Trópico dos Pecados. p. 143-144.
O estranho sodomita

[204]

tudo um conjunto de atos que não caracterizam a cerne da identidade dos sujeitos
é logo posta de lado pelo autor.

A antiga sodomia, no entanto, embora designasse um ato ou um con-


junto de atos pecaminosos, ofensivos a Deus e à lei jamais se limitou
a esse significado, nem seus autores foram vistos simplesmente como
praticantes de um crime ou desvio moral.29

Para o autor, o ambíguo conceito de sodomia desenvolvido pelos saberes esco-


lástico e pelas percepções populares desde a Alta Idade Média invalida a tese de
que a sodomia não foi mais do que um conjunto de atos pecaminosos e criminais
praticados por algumas pessoas. No entanto, ainda que a sodomia não se resu-
misse a certos atos eróticos proibidos (mais ou menos graves se praticados com
determinados parceiros) e envolvesse também comportamentos de gênero diversos
que pudessem estar em desacordo com os padrões esperados de masculinidade e
feminilidade, a hipótese de Foucault não ficaria invalidada. A diferença profunda
entre homossexualidade e sodomia persiste, qual seja, de que a prática homoerótica
experimentada por inúmeros homens e mulheres, antes do final do século XIX, não
era percebida, sentida e experimentada como a verdade mais interna da identidade
daqueles indivíduos como sujeitos.
Michel Foucault aborda a questão da historicidade da homossexualidade a par-
tir de sua análise dos mecanismos de funcionamento do dispositivo da sexualidade,
postos em funcionamento a partir do século XVIII nas sociedades europeias em
que o capitalismo se desenvolveu primeiro e mais fortemente. A sexualidade, para
o autor, e, de modo correlato, a homossexualidade, não se destaca do sistema capi-
talista. A implementação perversa da sexualidade, ao longo do século XIX, se deu
por meio de quatro operações das relações de poder, que alimentam uma a outra de
modo contínuo e dinâmico, estando presentes ainda hoje nas sociedades ocidentais.
A que mais de perto concerne à história da homossexualidade é a segunda operação,
denominada especificação nova dos indivíduos30.
Esta operação do poder funcionou pela incorporação, progressivamente mais
profunda, das práticas eróticas periféricas aos indivíduos, ao ponto de tornarem-se
a parte mais essencial da sua identidade. Práticas eróticas que até então não foram
mais do que isso (práticas, atos) passaram a compor e a determinar a história, a
morfologia, a anatomia, a fisiologia de indivíduos que, a partir de então transfor-
maram-se em personagens de si mesmos. A função deste mecanismo é produzir

29. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. p. 144.


30. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Lisboa: Antropos, Relógios
d’água, 1977. p. 41-55.
O estranho sodomita

[205]

objetos sobre os quais o poder pode exercer-se, criando, e disciplinando, corpos que
justificam sua mera existência. Esta operação é, pois, um mecanismo de classifica-
ção dos indivíduos, transformados em novos personagens (perversos), uma nova
realidade analítica, visível e permanente, semeando-a no real e incorporando-a nos
indivíduos31.
A categoria da homossexualidade é usada por Foucault como exemplar do fun-
cionamento desta operação das relações de poder dentro do dispositivo da sexuali-
dade. O momento de criação desta categoria seria, de acordo com Daniel Barbo, a
década de 1860, em que começaram a ser produzidas as primeiras nomenclaturas
que objetivavam classificar tipos específicos dentro da nebulosa de inversões sexuais.
As duas principais categorias produzidas com este sentido foram a de urninge, em
1862, criada por Karl Heinrich Ulrichs, e a de homossexual, criada em 1869 por
Karorly Maria Kertbeny. Se a categoria urninge de Ulrichs foi a princípio mais
divulgada, a partir do início do século XX, o termo homossexual se consolidaria
como o mais adequado para se referir aos amantes do mesmo sexo na estruturação
da esfera axiológica da sexualidade32. Com estas categorias (que, não obstante, em
suas formulações originais não eram totalmente sinônimas)33 que o tipo social do
homossexual foi primeiramente caracterizado, não tanto com base em suas práticas
sexuais, mas como alguém que invertia, em si, o masculino e o feminino.
O homossexual passou a ser visto como aquela pessoa que apresentasse algo
como um hermafroditismo da alma, em que a mentalidade e corpo tinham gêne-
ros divergentes. Qualidade que o marcaria por inteiro em todas as suas ações, em
toda a sua história de vida, em todos os seus gestos e palavras. Foucault diferencia
o homossexual do sodomita argumentando que este era apenas um homem que

31. FOUCAULT, M. História da sexualidade 1. p. 46-48.


32. BARBO, Daniel. A emergência da homossexualidade: cultura grega, cientificismo e engajamento.
IN: COSTA, Adriane Vidal; BARBO, Daniel. História, literatura e homossexualidade. p. 12.
33. A categoria de homossexual, conforme definida por Kertbeny, tinha o objetivo de mostrar que
a homossexualidade era inata e imutável, não dizendo de um desvio moral dos homossexuais, que
seriam mais que meros praticantes. Sua definição tinha a meta de garantir a não intervenção estatal
(dentro de um entendimento liberal das funções do Estado) na vida privada dos homossexuais.
O objetivo central de Kertbeny era derrubar a legislação alemã repressora da sodomia (o
parágrafo 175 do código penal alemão). Finalmente, Kertbeny negava uma associação direta
entre homossexualidade e efeminação. A categoria de urninge de Ulrichs, por outro lado, tinha
como elemento central de sua definição a ideia de que a naturalidade do amor homoerótico era
devida ao hermafroditismo da alma típico de todos os urninges, que teriam uma alma feminina
confinada num corpo masculino. Sendo também militante dos direitos das minorias sexuais,
Ulrichs, diferentemente de Kertbeny, tornou pública sua homossexualidade e lutou abertamente
pela revogação da legislação anti-sodomia na Alemanha. BARBO, Daniel. A emergência da
homossexualidade: cultura grega, cientificismo e engajamento. IN: COSTA, Adriane Vidal; BARBO,
Daniel. História, literatura e homossexualidade. p .12-18.
O estranho sodomita

[206]

cometia certos atos pecaminosos (gravíssimos, mas que não diziam da sua natureza
como um todo), enquanto o homossexual era definido enquanto sujeito prioritaria-
mente por suas experiências (homo)eróticas, nas palavras de Foucault, “o sodomita
era um relapso, o homossexual é agora uma espécie”34.
O grande impacto do primeiro volume da História da Sexualidade de Foucault
nos campos dos estudos de gênero e da sexualidade deve-se, também, a sua inova-
dora narrativa da história da homossexualidade. Ao deslocá-la para a posição de
efeito discursivo das relações de poder, e não um dado da natureza a que o poder
dedicar-se-ia infinitamente a reprimir, o filósofo o francês abriu espaço para que
contra-discursos sobre a categoria pudessem ser analisados dentro dos próprios
mecanismos da sexualidade, abordando esse dispositivo como uma dimensão da
natureza proliferativa do poder — suas teorias sobre o funcionamento do disposi-
tivo da sexualidade compõem sua famosa crítica à hipótese repressiva da sexuali-
dade. Para ele, as sociedades ocidentais industriais e burguesas não se caracterizam
por uma repressão sempre maior do sexo; ao contrário, são marcadas por um falar
incessante deste sexo, que passou a compor a chave das identidades de todos os
indivíduos nestas sociedades35.
A corrente construcionista segue de perto a narrativa foucaultiana, trabalhando
a partir da ideia de que a homossexualidade é mesmo uma invenção do século XIX
burguês e industrial. Segundo David Halperin, importante antropólogo estaduni-
dense da Teoria Queer, os processos que levaram ao surgimento da sexualidade
foram dois. Um foi a separação do domínio erótico na vida dos indivíduos dos
outros domínios culturais (como a religião, a moral e o direito) a que estava ligado
antes, e sua conseguinte definição como um aspecto específico da natureza psicofí-
sica dos indivíduos. O segundo processo foi a construção da ideia de que há uma
essência interior do sexo dos indivíduos, a construção da ilusão da interioridade do
sexo, que seria a raiz das identidades (performativas) de todos e de todas36. Deste
ponto de vista, a corrente essencialista seria uma reiteração do mecanismo de poder
de criação de identidades sexuais estáveis ao longo da história — cujo funciona-
mento autônomo seria natural, portanto dispensando intervenções políticas ou teó-
ricas sobre as violências que engendram.
Tendo em vista o complexo debate entre estas duas correntes, um nível de pru-
dência na utilização das categorias homossexual e homossexualidade em contextos

34. FOUCAULT, M. História da sexualidade 1. p. 47.


35. ______. História da sexualidade 1. p. 19-53.
36. HALPERIN, David. One hundred years of homosexuality and other essays on Greek love. New
York: Routledge, 1980.
O estranho sodomita

[207]

diversos do mundo Ocidental a partir do fim do século XIX é recomendável. Por


essa razão, o termo homoerotismo ganha relevo na abordagem de comportamen-
tos eróticos entre pessoas do mesmo sexo em diferentes momentos no tempo e no
espaço. De acordo com psicanalista Jurandir Freire Costa, o emprego dos termos
homossexual e homossexualidade oferece insegurança teórica, uma vez que remete
ao vocabulário do século XIX37. O termo homoerotismo, por outro lado, contorna
este ponto enfraquecedor da análise por ser mais flexível e não estar desde já carre-
gada pelos investimentos de poder e pelos preconceitos sociais que saturam a cate-
goria de homossexualidade. O homoerotismo é um termo cuja flexibilidade é mais
adequada para descrever a pluralidade das práticas e desejos de pessoas por outras
do mesmo sexo. Ele afasta também as referências a patologização destas práticas
subjacente à categoria homossexualidade em seu contexto original de produção. O
termo homoerotismo mantém a possibilidade dos sujeitos se relacionarem erotica-
mente de diversas maneiras com pessoas de seu sexo ou não38.
O sociólogo argentino Carlo Figari igualmente defende o uso da categoria
homoerotismo no estudo de prazeres e relações eróticas entre pessoas do mesmo
sexo em sociedades que não o Ocidente ao fim do século XIX. Partindo também do
ponto de vista construcionista, o autor propõe que o homoerotismo funcione como
um elo significante entre os comportamentos eróticos envolvendo homens e mulhe-
res entre si no passado e o aparato da heterossexualidade compulsória que orienta,
no presente, a pesquisa a ser feita. Assim, a categoria, desprovida de significados,
tem espaço para a interpretação de fenômenos em pontos diferentes no tempo e no
espaço e que dizem respeito a práticas que, com sentidos muito diversos, coexistem
no passado histórico e no presente do analista — como o amor e o prazer entre
homens e entre mulheres39. Nesse deslocamento da categoria da homossexualidade
na Época Moderna, desloca-se também, implicitamente, a heterossexualidade com-
pulsória no presente.
Estabelecidos os pontos de vista divergentes em relação ao estatuto erótico e de
gênero da sodomia, há que se atentar também para o caráter ambíguo do conceito
na tradição cristã desde o início do cristianismo até a Época Moderna. Esta não
é uma discussão fácil ou encerrada. Ao contrário, desde os primórdios do cristia-
nismo, o conceito de sodomia sofreu inúmeras transformações e, hoje, seu caráter

37. COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício: estudos sobre homoerotismo. Rio de Janeiro:
Relume Dumara, 1992. p. 13-40.
38. ______. A inocência e o vício. p. 21-24.
39. FIGARI, Carlos. @s outr@s cariocas. Interpelações, experiências e identidades homoeróticas no
Rio de Janeiro. Séculos XVII ao XX. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007.
p. 19..
O estranho sodomita

[208]

mutante enseja discussões historiográficas a respeito de seu estatuto em relação ao


conceito de heresia e à ação inquisitorial40.
O termo refere-se originalmente ao episódio bíblico da destruição da cidade
de Sodoma pela ação da ira divina contra seus habitantes. Os primeiros teólogos
da Patrística e, especialmente, São Paulo assimilaram a condenação divina ao com-
portamento homoerótico dos habitantes em relação aos anjos hóspedes de Lot41.
Boswell argumenta que essa interpretação prevaleceu sobre outra que considerava
a ofensa dos sodomitas aos anjos apenas como quebra das regras de hospitalidade
— importantes na tradição hebraica42.
Até a Baixa Idade Média, o conceito teológico de sodomia careceu de defini-
ção estrita. Era apenas mais um no vasto rol de práticas eróticas condenadas pela
Igreja — que, a rigor, só permitia, e mesmo assim, com alguma dificuldade antes
dos séculos XI e XII, o sexo entre cônjuges com vistas à reprodução. A sodomia
confundia-se então com os conceitos mais amplos de luxúria e fornicação — ainda
que a abjeção ao sexo anal tivesse destaque na tradição católica, sendo este o ato
sodomítico principal43.
A partir dos séculos XI e XII, a sodomia começou um movimento de ascensão
na escala de gravidade dos pecados organizada pelos sábios da escolástica. Sua defi-
nição, ainda incerta, envolvia então todos os atos de desvio da genitalidade no sexo
tanto entre parceiros iguais como em diferentes — e o sexo anal continuava sendo
sua forma mais detestável. Entre os séculos XIII e XIV, assume a posição de pecado
mais grave, confundindo-se muitas vezes com o pecado da bestialidade — o copular
com animais44.
Deste período até o século XVIII, os significados da sodomia oscilaram, nos
saberes teológicos, entre uma definição centrada na morfologia do ato (a cópula
anal com ejaculação interna) ou no homoerotismo (sendo mais perfeita a relação

40. Na historiografia brasileira, este debate foi protagonizado, como se verá a seguir, por Luiz Mott
e Ronaldo Vainfas em artigos componentes da coletânea A Inquisição em xeque. Neste momento,
acho válido destacar que a leitura dos textos dos autores revela exemplos de elegância e civilidade
acadêmicas que deveriam ser emulados por qualquer estudioso. VAINFAS, Ronaldo; FEITLER,
Bruno; LAGE, Lana. (org.). A Inquisição em xeque. Temas, controvérsias, estudos de caso, Rio de
Janeiro, EdUERJ, 2006.
41. As condenações de S. Paulo ao homoerotismo encontram-se em suas epístolas, como em
Romanos 1:24-31, I Coríntios 6:9-10 e I Timóteo 1: 10. Bíblia Sagrada. Rio de Janeiro: Catholic
Press, 1967. (Barsa).
42. BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and homosexuality. p. 96-97.
43. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. p. 145.
44. ______ . Trópico dos Pecados. p. 145-146.
O estranho sodomita

[209]

entre homens e entre mulheres)45. São Tomás de Aquino a considerou uma dos qua-
tro clamantia peccata (pecados que clamam ao céu), definindo-a como a cópula
entre pessoas do mesmo sexo e considerando o sexo anal entre dois homens com
ejaculação interior sua forma mais perfeita — logo mais grave46. Segundo Ronaldo
Vainfas, “Os saberes eruditos não limitaram sua concepção de sodomia à cópula
anal, mas, prisioneiros desta última, ficaram a meio caminho da posterior definição
de homossexualidade”47.
Luiz Mott argumenta que debalde as mudanças sofridas pelo conceito de sodo-
mia ao longo da Era Cristã, ele jamais foi identificado como heresia. Para o autor, a
perseguição aos sodomitas empreendida pelo Tribunal do Santo Ofício na moder-
nidade foi, mais que um combate a uma seita herética, uma tática de repressão
à ameaça ao patriarcado, aos valores da família, da superioridade masculina e à
autoridade da Igreja, representada pelo grupo — cujos membros seriam portado-
res de uma contracultura imoral e revolucionária48. Com isso concorda obliqua-
mente Ronaldo Vainfas, que considera ter sido o movimento teórico empreendido
por alguns tribunais do Santo Ofício para legitimar sua jurisdição sobre a sodomia
mais sutil do que a simples identificação entre sodomia e heresia49.
Diante da oscilação constatada pelo autor na definição de sodomia pelos sabe-
res eruditos, Ronaldo Vainfas enfatiza que os inquisidores tinham mais dúvidas
do que ninguém acerca deste pecado — tendo certeza apenas sobre sua enorme
gravidade, que o tornava nefando, do qual não se deveria sequer falar. O historia-
dor entende que sodomia e heresia não foram identificadas, mas assimiladas, isto é,
deveriam ser tratadas de modo semelhante no cotidiano dos tribunais. A inclusão
da sodomia na jurisdição inquisitorial (que, no caso português, ocorreu em 1553
por provisão do Cardeal e inquisidor-geral D. Henrique) fez parte de um processo
mais amplo de consolidação e expansão do Santo Ofício em Portugal. Para tanto,
a Inquisição operou a transformação, algo arbitrária, de vários pecados em diver-
gências em matérias de fé que poderiam esconder doutrinas heréticas50. No caso da

45. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. p. 146-147.


46. FIGARI, Carlos. @s outr@s cariocas. p. 60. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. p. 146.
47. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. p. 147.
48. MOTT, Luiz. Sodomia não é heresia: dissidência moral e contracultura. In: VAINFAS, Ronaldo;
FEITLER, Bruno; LAGE, Lana. (Org.). A Inquisição em xeque: Temas, controvérsias, estudos de caso,
Rio de Janeiro, EdUERJ, 2006, p. 253-266.
49. VAINFAS, Ronaldo. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção?. In:
VAINFAS, Ronaldo; FEITLER, Bruno; LAGE, Lana. (Org.). A Inquisição em xeque: Temas,
controvérsias, estudos de caso, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2006, p. 267-280.
50. ______. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção? p. 269-270.
O estranho sodomita

[210]

sodomia, as dúvidas sobre o caráter herético ou não dos pecadores eram somadas
às dúvidas sobre o que constituía o pecado em si, uma vez que a ambiguidade do
termo (entre a condenação ao sexo anal ou ao homoerotismo) não fora tampouco
sanada51.
Destarte, no momento da vinda do visitador Heitor Furtado de Mendonça à
América Portuguesa, o Santo Ofício tinha mais dúvidas do que certezas em se tra-
tando da sodomia. Embora sua forma mais perfeita, grave e abjeta fosse a pene-
tração anal entre dois homens com ejaculação interna, ela também envolvia, de
um lado, a cópula anal entre homem e mulher, a sodomia dita imperfeita, e o sexo
entre duas mulheres, chamada sodomia foeminarum. De fato, Heitor Furtado ouviu
denúncias, confissões e instaurou processos contra réus das três modalidades de
sodomia.
Neste contexto, torna-se difícil julgar que alguém como padre Frutuoso Álvares
pudesse ter construído para si uma identidade centrada nos furtivos encontros
homoeróticos que manteve, ao longo de várias décadas, com inúmeros rapazes. Se
o conceito de sodomia era impreciso para os eruditos inquisidores, para o entendi-
mento popular, não o era menos. Se para os moralistas herdeiros da tradição esco-
lástica a cópula anal era a marca maior da sodomia, para as pessoas comuns, os
sodomitas eram identificados principalmente por assumirem comportamentos atri-
buídos mais frequentemente às mulheres52. Ou seja, na cultura popular, a sodomia
era caracterizada pela inversão performativa das marcas de gênero, confundindo
a masculinidade e a feminilidade, desestabilizando-nas. Todavia, os contatos entre
a cultura popular e a tradição escolástica — promovidos pela própria Inquisição
por meio dos autos-de-fé, das leituras públicas das sentenças e pela publicação dos
éditos e dos monitórios — fizeram com que o sexo anal também fosse reconhecido
popularmente como símbolo da sodomia53.
O padre Frutuoso Álvares fez longa confissão no período da Graça, porém, por
não ter confessado todos as cópulas sodomíticas mantidas com o jovem Jerônimo
Parada, foi instaurado processo contra ele pelo visitador. Jeronimo era estudante
e contava 17 anos quando se apresentou, sem ser chamado, a Heitor Furtado de
Mendonça para confessar suas culpas. O jovem baiano era filho de Domingos Lopez,
carpinteiro de ofício, e de Lianor Viegas, todos moradores na cidade da Bahia54.

51. VAINFAS, Ronaldo. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção? p. 275-279.
52. ______. Trópico dos Pecados. p. 147-151.
53. ______. Trópico dos Pecados. p.148-149.
54. Processo do Padre Frutuoso Álvares, PT-TT-TSO/IL/28/5846, páginas 11-12.
O estranho sodomita

[211]

Em sua confissão, feita a 17 de agosto de 1591, descreveu o início de seu rela-


cionamento com o padre Frutuoso, que logo evoluiu para trocas eróticas entre eles.
O primeiro encontro carnal entre eles se deu em um domingo de Páscoa dois ou três
anos antes — portanto em 1588 ou 1589 - em que Jeronimo foi a casa do padre. A
razão da visita não foi dita, apenas que o sacerdote era amigo do pai e do irmão (e,
como dirá a frente, de seu avô). Conversando os dois, logo o padre começou a dizer-
-lhe palavras meigas, elogiando-o como estava gordo (seria inadequado imaginar o
jovem enrubescendo com os elogios do velho vigário?). Das palavras, o sodomítico
padre passou à ação, logo procurando tocar o pênis do rapaz e tornando-o ereto
(“e lle meteo a maõ pelos calções e lle apalpou a sua natura alvoracandollo com
a maõ”55). Estando Jeronimo neste estado, não perdeu tempo Frutuoso em levá-
-lo para o quarto, onde deitaram-se na cama e, ajuntando suas naturas uma com
a outra, masturbou-as ambas o padre. No entanto, segundo Jeronimo, desta feita
nenhum deles tiveram polução — talvez por ter sido a primeira vez56.
O segundo encontro dos amantes também foi na casa do padre Frutuoso, em
uma ocasião em que Jeronimo precisou pernoitar em Matoim e para isso se abrigou
na casa do vigário. Repetiram-se as carícias da primeira vez e novamente não houve
ejaculação de nenhuma das partes57. Muitos dias depois, foi a vez de Frutuoso se
deslocar a cidade da Bahia, onde se hospedou na casa do avô de seu jovem amante.
Quando ficaram a sós, o sacerdote logo convidou Jeronimo a fazerem como das
outras vezes. Desta feita, contudo, o jovem se negou. Negativa logo contornada pelo
padre através da oferta de dois vinténs58. Vencida a resistência de Jeronimo, passa-
ram os amantes às carícias, e, desta vez, foram além de tocamentos desonestos, pois

o djtto clerygo Se dejtou cõ a barriga pera bayxo e djxe aelle cõfeS-


sante que Se pusesse Em cjma delle e aSsim o feZ E dormjo com
o djtto clerjgo carnal mente por detrás conSumando o peccado de
Sodomja metendo Seu membro deShonesto pello vaso traZejro do
clerigo Como hum home faZ com huã moller moller pello vaso natu-
ral por diante E este peccado consumou tendo polução.59

55. PT-TT-TSO/IL/28/5846, página 13.


56. PT-TT-TSO/IL/28/5846, página 13.
57. PT-TT-TSO/IL/28/5846, página 14.
58. Pode-se ver aqui a exploração da miséria, típica de sociedades de Antigo Regime, que Vainfas
identificou como característica das relações sodomíticas. VAINFAS, Ronaldo. Inquisição como
fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção? p. 121-122.
59. PT-TT-TSO/IL/28/5846, páginas 15-16.
O estranho sodomita

[212]

Estava consumado o nefando pecado da sodomia e, por força do demônio e


fraqueza da Carne, consumada perfeitamente com ejaculação intra vas por parte do
jovem Jeronimo da Parada.
Como foi dito, a confissão de Jeronimo da Parada dificultou a situação do padre
Frutuoso Álvares perante o Santo Ofício, pois esta cópula sodomítica não foi con-
fessada por ele no Tempo da Graça. Foi somente em seu segundo depoimento a
Heitor Furtado de Mendonça (feita a sete de julho de 1593) que o vigário assumiu
esta culpa, pedindo misericórdia ao visitador60.
Misericordiosa de fato foi a sentença emitida pelo visitador a 21 de julho de
1593. A sodomia era um crime gravíssimo nos regimentos da Inquisição e nas
Ordenações do Reino. Era equiparado ao crime de lesa-majestade e o condenado
poderia até mesmo ser relaxado ao braço secular para ser queimado vivo na fogueira.
De acordo com as Ordenações Afonsinas,

Sobre todosllos peccados bem parece Seer mais torpe, çujo, e deso-
nesto o peccado da Sodomia, e nom he achado outro tam avorre-
cido ante DEOS, e o mundo, (...) E Segundo diSSerom os naturaes,
Soomente fallando os homees em elle Sem outro algum auto, tam
grande he o Seu avorrecimento, que o aar ho nom pode Soffrer, mais
naturalmente, he corrumpido, e perde sua natural virtude. E ainda
Se lee, que por eSte peccado lançou DEOS o deluvio Sobre a terra,
quando mando a Noé fazer huã Arca, em que eScapaSSe el, e toda Sua
geeraçom, per que reformou o mundo de novo; e por eSte peccado
Soverteo as Cidades de Sodoma, e Gomorra, (...); e por este peccado
foi estroida a Hordem do Templo per toda a ChriStandade em hum
dia. E porque Segundo a qualidade do peccado, aSSy deve gravemente
Seer punido: porem Mandamos, e poemos por Ley geral, que todo
homem, que tal peccado fezes, per qualquer guiSa que Seer poSSa,
Seja queimado, e feito per fogo em poo, e por tal que já nunca de Seu
corpo, e Sepultura poSSa Seer ouvida memoria.61

O padre Frutuoso Álvares estava, portanto, diante da fogueira quando sua sen-
tença foi emitida — aliás, como estavam todos os sodomitas portugueses62. No texto

60. PT-TT-TSO/IL/28/5846, páginas 23-26.


61. Ordenações afonsinas, Livro V, título XVII, Dos que cometem peccado de Sodomia. Disponível
em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l5pg53.htm. Último acesso a 28 de setembro de
2013>.
62. Não obstante a severa legislação repressiva, Luiz Mott argumenta que a Inquisição portuguesa
foi bastante menos rigorosa com os sodomitas que suas congêneres espanholas e mesmo que
tribunais civis nos reinos protestantes. Enquanto a Inquisição portuguesa, entre os séculos XVI
e XVII, queimou por volta de 30 sodomitas (não tendo condenado nenhum à fogueira no século
XVIII), a Inquisição de Saragoça queimou 15 sodomitas só no século XVI, enquanto em Genebra 31
O estranho sodomita

[213]

de sua sentença foi recapitulada sua confissão no Tempo da Graça, expondo suas
várias culpas e, ao mesmo tempo, sua trajetória de vida63. Caso ocorresse leitura
pública da sentença (o que não foi o caso), a humilhação do réu seria maior e o
povo teria a oportunidade de saber quais crimes conduziram-no àquela situação de
opróbio — e quais condutas deveriam ser evitadas, pois, para não ocupar futura-
mente o lugar de réu estigmatizado. Ainda que sua confissão na Graça tenha sido
considerada diminuta64, o padre Frutuoso Álvares gozou da misericórdia e da com-
placência do visitador, no que pesaram sua idade avançada, sua condição de clérigo
e cura das almas e ter feito longa, ainda que não inteira, confissão no período da
graça. Foi, pois, condenado no modo seguinte.

O cõdenaõ Em Suspem Saçaõ das ordens por tempo de cjnquo meSes


Somente, et Em vjnte CruZados pera as despeSas dosanto offjcio e lle
maõdaõ que cupra mais as penjtencjas espirjtuais Segujntes prjme-
jramente ConfeSsar Se a de ConfiSsaõ geral de toda Sua vjda a hum
comfeSsor Letrado e docto que lle Sera nomeado nesta meSa pera lle
curar Sua alma E despois disto ConfeSsar Ses, e cõmungar a de cõ
Sello Sello de Seu cõfeSsor Em cada hum dos cjmquo meses de Sua
SuspenSasaõ e reZar a mais cjnquo VeZes os Psalmos penjtencyais cõ
Suas Ledajnhas e preÇes de Joellos (...).65

Condenado à suspensão das ordens sacras por cinco meses, a pagar 20 cruza-
dos como custas do processo, a penitências espirituais e à confissão geral, o padre
Frutuoso Álvares logo tratou de realizar a confissão, o que fez no dia 7 de agosto
de 1593 (sendo que sua sentença foi publicada apenas no dia 2 do mesmo mês)
ao padre frei Damião Cordeiro, indicado pelo visitador66. Estava o pároco talvez
ansioso por livrar sua consciência e salvar sua alma, ou quem sabe apenas queria
demonstrar ao visitador sua obediência e submissão ao tribunal? Não é possível
saber, embora as opções não sejam excludentes.
Essas são as últimas informações presente no documento sobre o aventuroso
padre Frutuoso Álvares. Ao historiador fica a dúvida se ele terá acatado a adver-
tência de Heitor Furtado de Mendonça de se afastar das práticas torpes que tantas
vezes o conduziram às barras dos tribunais (no Reino, em Cabo Verde e na Bahia)

foram executados entre 1444 e 1789 e, na Holanda, somente em um julgamento entre 1730 e 1732,
70 sodomitas foram executados. MOTT, Luiz. Pagode português: A subcultura gay em Portugal nos
tempos inquisitoriais. p. 122-123.
63. PT-TT-TSO/IL/28/5846, páginas 31-34.
64. PT-TT-TSO/IL/28/5846, página 35.
65. PT-TT-TSO/IL/28/5846, páginas 38-39.
66. PT-TT-TSO/IL/28/5846, página 41.
O estranho sodomita

[214]

ou se, tão logo embarcou o visitador para Pernambuco, respirou aliviado o sacer-
dote e reiniciou a trocar tocamentos, abraços, beijos com os jovens de sua freguesia,
deleitando-se ao permitir que eles o sodomizassem. A história de vida de Frutuoso
talvez reforce a segunda opção, pois até seus 68 anos, nenhum juiz ou confessor
conseguira salvar sua alma, retirando-lhe o gosto pelo pecado nefando.
A dúvida do historiador é ainda mais profunda. Pode ser dito que o padre era
homossexual? Em nenhum momento de suas confissões pareceu ele dar mais sen-
tido aos seus atos com tantos jovens que não lhes sabia mais os nomes que não o
prazer sentido por sua Carne e a culpa por sua alma e consciência. Em seu cotidiano,
tampouco, e pelo que se pode vislumbrar por seus relatos, vivia ele de modo que
seu gênero, perfomativamente reiterado em cada ato e em cada momento de sua
existência, destoasse daqueles de outros homens em condições análogas — daí suas
amizades duradouras com vários homens, eles próprios senhores viris em suas casas.
As práticas eróticas do padre Frutuoso Álvares parecem surgir mais como desvios
morais que, pesando-lhe na consciência como pecados que ele sabia que eram, não
os podia evitar, pois fraca era a Carne perante os artifícios do mal. O vigário do
Matoim, destarte, parecia antes assumir seus pecados do que uma identidade sexual
que, aliás, dificilmente existia cultural e socialmente para tal.
Não se pretende aqui que o caso do Padre Frutuoso Álvares imponha uma regra
à complexa questão que envolve a sodomia e ao debate aberto entre essencialistas e
construcionistas. O objetivo levado aqui a cabo foi não mais que demonstrar como
o instrumental da Teoria Queer, notadamente o conceito de performatividade de
gênero, pode lançar novas luzes sobre o problema, ao cruzar sua dimensão eró-
tica com a problemática da constituição discursiva e performativa dos gêneros na
Época Moderna. O vasto universo das fontes estimula a continuidade da discussão
já milenar acerca da sodomia. A única conclusão necessária, neste momento, é a
recusa da persistência do nefando silenciamento a que eram condenados os sodo-
mitas pelos inquisidores e pelo braço secular. Considerando-os integrantes de uma
essência universal da homossexualidade ou amantes homoeróticos obstinados em
pecar contra a natureza, a pesquisa histórica tem o dever ético e político de, a partir
dos documentos, recuperar amores, toques e penetrações que o calor das fogueiras
não pode mais reduzir a pó.
Documento
Trecho (Sentença) do Processo do Padre Frutuoso Alvares.
Disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal
do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo 5846. Código
de referência: PT/TT/TSO-IL/028/05846.

Data
7 de julho a 7 de agosto de 1593

Resumo
Sentença do processo do padre Frutuoso Alvarez, condenado
por sodomia pelo Tribunal do Santo Ofício em visitação na
Bahia. O documento, além de descrever a sentença, faz uma
breve síntese da acusação, mostrando que o dito padre é
reincidente no pecado de sodomia, tendo sido condenado
não só no Brasil, mas também em Portugal e Cabo Verde
por sodomia e “tocamentos torpes” com inúmeros “moços e
mancebos”.
[fl. 16]

1 Sentença

2 Acordaõ o bisitador1 Apostolico


3 do sancto offjcjo o Ordinarjo et
4 assessores que uistos estes Autos
5 e proua nelles dada contra
6 o Padre fructuosso Aluareß Cristaõ
7 belho natural de braga ujgario
8 de nossa Senhora da piedade de
9 matoim Reo que presente esta
10 Mostrase que no tempo da gra
11 ça, ueo a esta mesa e Reçebeo
12 Juramento sob cargo do qual Cõ
13 fessou suas culpas .§. que de qujnze
14 annos ate entaõ que auja que
15 estaua nesta Capitanja Come
16 teo as torpeßas2 dos tocamentos
17 torpes i deshonestos com al
18 guñs

1. É frequente neste documento a troca das letras ramistas, sobretudo “v” por
“b”, “i” por ”j” e “u” por “v”. Como exemplo temos “bisitador” e não “visitador”,
“offjcjo” e não “ofício” e “ujgario” e não vigário.
2. Não raras vezes o notário utiliza a letra ß (eszett) com função de “z”.
[fl. 16v]

1 guñs quarenta mançebos e moços


2 tocando com suas maõs suas
3 Naturas, et ajuntandoas com a sua
4 e auendo alguãs ueßes polucaõ
5 dos compliçes, e abraçandoos, et
6 bejjandoos, e tendo congresso por
7 djante, com alguñs, ajuntando
8 seus membros deshonestos, e dor
9 mjndo com alguñs delles na ca
10 ma alguãs ueßes, tendo com
11 elles cometimentos pelos seus
12 basos traßejros sendo ele o agente
13 e consentindo tambem que elles
14 ho temtassem no seu uaso traßejro
15 com seus membros deshonestos
16 sendo elle tambem pacjente fasen
17 do tambem da sua parte por efej
18 tuar
[fl. 17]

1 tuar ho horrendo e nefando pecca


2 do de sodomja posto que nunca
3 ho efejtuou penetrando e assim
4 Comfessou mais que em bragua
5 há mais de ujnte annos consumou
6 ho ditto peccado de sodomja com
7 hum moço e teue os dittos tocamẽ
8 tos torpes com outros pellos qua
9 is cassos foj na djtta Cjdade de
10 braga denuncjado perante o or
11 djnarjo e por elle foj condenado
12 em degredo pera as galles e sem
13 Comprir, o tal degredo se foj pera
14 a ylha do cabo uerde onde tambem
15 foj accusado por tocamentos
16 torpes que teue com dous man
17 cebos pellas quais Culpas e por
18 apresẽtar
[fl. 17v]

1 apresentar huã demjssorja falsa


2 foj emujado presso a Lixboa on
3 de foj condenado em degredo
4 perpetuo pera este brasil, e des
5 pois que esta nesta Capitanja
6 foj accusado e e denuncjado jaa
7 por estes mesmos peccados e toca
8 mentos torpes, e deshonestos, com
9 djfferentes moços, e mançebos,
10 perante o ordjnarjo tres ueßes
11 das quais, as prjmejras duas
12 ueßes que foj accusado, e denun
13 cjado, sahio absoluto por naõ
14 hauer porua bastante contra
15 elle e a tercejra ueß sahio con
16 denado em djnhejro, et em sus
17 pensasaõ das ordeñs por certo
18 tempo
[fl. 18]

1 tempo que ja lhe foj leuantado


2 A qual sobre ditta confissaõ que
3 ho ditto Reo feß nesta mesa no
4 tempo da graça he demjnuta
5 e naõ he Jntejra porque nella
6 dejxou de confessar a culpa ma
7 is prjncjpal e substancjal de
8 que elle foj delato nesta mesa
9 a qual he elle auera ora tres
10 ou quatro annos, ou cjnquo que
11 elle Reo selançou na cama com
12 hum mançebo e Lancandose elle
13 Reo com a barriga pera baẏxo se
14 pos en cjma delle — o ditto mançebo
15 e cõsumaraõ ho horrendo e nefan
16 do peccado de sodomja cõ efejto
17 sendo
[fl. 18v]

1 sendo elle Reo pacjente e posto que


2 o Reo djga na sua prjmejra sessaõ
3 sendo ja perguntado em juißo que
4 eh uerdade que feß o djtto pecca
5 do de sodomja a djtta ueß consuma
6 damente, mas que lhe esqueçeo de ho
7 confessar na djtta cõnfissaõ do tẽpo
8 da graça pareçelhe que lhe não de
9 uja esqueçer pois era acto de culpa
10 consumada tam graue e lhe lem
11 braraõ as outras torpeßas menos
12 graues e mais antiguas. Pello que
13 pois na ditta sua comfissaõ foj de
14 menuto e naõ confessou Jntejra
15 mente todas as culpas de que fez
16 delato mas dejxou ou a mais graue
17 e prjncjpal perdeo, o benefficjo da
18 graça
[fl.19]

1 graça que alcaçara se fißera con


2 fissaõ Jntejra. O que todo ujsto
3 e o mais que destes autos cõsta
4 e o Reo fez tam usejro, e costumej
5 ro a cometer os djttos peccados
6 sendo tantas ueßes Ja accusado
7 e condenado por elles em portu
8 gual, e no cabo uerde, e neste
9 brasil, e ser de ẏdade de seSenta
10 e ojto annos, e saçerdote e cura
11 de almas, e mostrar tam pouco
12 cujdado de sua saluaçaõ que ha
13 tam poucos annos que feß o djtto
14 peccado de sodomja desta bahia
15 porem respejtando a o Reo na
16 prjmejra sessaõ sendo pergũtado
17 confessar a djtta culpa ne
18 fanda
[fl.19v]

1 fanda de que foj dellato, e <a>1 fez uijdo


2 na graça comfessar as outras tor
3 peßas sen ser chamado e a outras
4 mais consideraçoĩs pias que se
5 tiueraõ querendo usar cõ elle de
6 mujta misericórdia o cõdenaõ em suspem
7 sação das ordeñs por tempo de
8 cjnquo meses somente et em ujnte
9 Crußados pera as despesas do santo offjcio
10 e lhe maõdão que cupra mais as
11 penjtencjas espirjtuais segujntes
12 prjmejramente confessarsea de
13 confissaõ geral de toda sua ujda
14 a hum comfessor letrado e docto que
15 lhe sera nomeado nesta mesa pera
16 lhe curar sua alma e despois disto
17 confessarsea, et cõmungara de cõ
18 selho

1. Elemento interlinear
[fl.20]

1 selho de seu cõfessor em cada hum dos


2 cjmquo meses de sua suspensasaõ
3 e reßara mais cjnquo ueßes os psal
4 mos penjtencjais cõ suas ledaynhas
5 e preçes de joelhos, e o amoestaõ que
6 naõ faça mais semelhantes peccados
7 e torpeßas, e se emmende faßendo
8 uida mujto exemplar pera tirar
9 o escandallo que tem dado porque
10 cahindo mais nas dittas culpas
11 sera mais asperamente castigado
12 com todo rjgor de justiça e pague
13 as custas dada nesta cjdade do
14 saluador na mesa da santa Jm
15 qujsiçam a ujnte e hum de julho de
16 mjl e qujnhẽtos e nouenta e tres
17 Heitor furtado de mendoça
[fl. 20v]

1 publicada foj a sentença atras ao Reo


2 nesta mesa estando nella o Senhor ujsitador
3 e o senhor bispo e os padres assessores e os offi
4 cjais foraõ testemunhas e asignara aquj cõ o Reo
5 aos dous djas de agosto de 93 na bahia
6 Manoel Francisco notario do santo offjcio nesta ujsitacaõ
7 o escreuj frutozo aluarez
8 Francisco deGouuea
9 Aluaro Lemos[?] boas[?] Barboza
10 gaspar de crasto [?]
11 publicada foj esta sentença na mesa
12 perante o senhor bisitador Bispo, e asseso
13 re e officjais aos dous djias do mes
14 de agosto de 93 Manoel francisco notario
15 do santo offjcio nesta ujsitaçaõ o escreuj.
Marcus Vinícius Duque Neves
Mestre em História pela UFMG

Peculiaridades da documentação
sobre exploração mineral em
Minas Gerais no séc. XIX

Considerações técnicas sobre o documento apresentado

O trecho de documento apresentado para o exercício de paleografia se compõe


das quatro primeiras páginas de uma réplica à apelação a um Embargo interposto,
no ano de 1849, ao juízo da Comarca de Santa Bárbara, versando sobre a inva-
são de uma lavra aurífera ativa, por grupo de mineradores, na Fazenda da Barra
- Lavra da Tartaruga — entre os municípios de Santa Bárbara e Caeté. Tal docu-
mento se encontra no Arquivo Municipal de Santa Bárbara, arquivado na caixa de
número 631.
O proprietário da lavra aurífera e da Fazenda da Barra, onde tal lavra se situava,
era o Capitão José de Aguiar Leite Mendonça Vasconcellos, de tradicional famí-
lia da região que as detinham desde meados do século XVIII. Os invasores foram
comandados por Eufrázio Pereira da Silva, que encabeça como réu, entre vários
outros seus comparsas, o pedido de reintegração de posse e o Embargo.
O documento é escrito em letra cursiva típica da caligrafia setecentista e oito-
centista, inclinada à direita, com “esses” dobrados (“ss”) diferenciados, o primeiro

1. APMSB — Arquivo Público Municipal de Santa Bárbara — MG. Ação de Embargos. Autor:
Capitão José de Aguiar Leite Mendonça Vasconcellos e sua mulher. Réus: Eufrázio Pereira da Silva
e outros. Cx. 63.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX

[238]

maior que o segundo; “erres” (“rr”) inclinados parecidos com os “esses” das cali-
grafias do século XX; maiúsculas estilizadas; voltas largas em letras como o “g” e
o “j”; letra “t” com corte pequeno, por vezes quase imperceptível; letras maiúsculas
por vezes separadas do resto da palavra, enquanto algumas palavras que deveriam
estar separadas foram escritas em continuidade, sem a retirada da pena ou caneta do
suporte; grafia de algumas palavras com consoantes como o “l”, dobradas; diversas
palavras escritas da forma antiga usual para o século XIX; conjugação verbal do
“ão” e do “am” de forma usual para o mesmo período (ao contrário da regra atual);
abreviaturas de uso jurídico, padrão do período em questão: estas são, em linhas
gerais, as principais características da caligrafia presente.
Esse padrão caligráfico não apresenta grande dificuldade ao paleógrafo prin-
cipiante, já que o documento se apresentou bem conservado e conseguimos uma
boa qualidade das fotografias. Porém, apresenta maiores desafios pelos estilos da
escrita, pelos termos técnicos e pela compreensão do conjunto, exigindo, em diver-
sos trechos, leituras e releituras atentas, apresentando ao paleógrafo a oportunidade
de exercitar e desenvolver sua visão de conjunto e síntese na prática paleográfica,
para além da mera observação atenta das palavras isoladas. A redação formal e
apropriada ao exercício peticional junto ao Judiciário, conforme as regras e estilos
de época, pode causar alguma dificuldade com abreviaturas, termos específicos e a
intercalação de citação das folhas de outras peças juntas ao mesmo processo (fls).
Entre os termos específicos da atividade jurídica que se apresentam nas qua-
tro páginas iniciais do documento estão os seguintes: Embargos; esbulhados;
efeito devolutivo; extravagantes (embargos); impugnados; apelação; Juízo da
Superintendência; Guarda-mor; adjutório. Entre as abreviações temos as que se
apresentam com sobrescrito de algumas letras finais de palavras compridas ou de
uso reiterado, entre as quais se sobressaem duas que se assemelham e devem ser
alvo de atenção: “Suppes” e “Suppdos”, que significam Suplicantes e Suplicados res-
pectivamente, termos que designam as partes de uma apelação ou recurso. Apesar
dessas palavras e abreviações serem facilmente reconhecíveis por historiadores com
experiência em documentos cartoriais, não o são para o paleógrafo iniciante. Para o
paleógrafo que irá trabalhar com esse tipo de documentação reiteradamente, o ideal
é que se acostume com termos técnicos pelo uso constante de dicionários comuns
e jurídicos durante o processo de transcrição, para evitar possíveis enganos, já que
muitos termos jurídicos se parecem com outras palavras de uso mais comum na
língua portuguesa.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX

[239]

Singularidade e importância do documento

O conflito em torno da propriedade de jazidas auríferas e de sua exploração


durante o século XIX é mais comum do que se supõe comumente, já que é da for-
mação geral dos historiadores de Minas Geris a leitura de inúmeros documentos
e obras históricas que salientam o fim da riqueza aurífera em Minas Gerais ainda
nos finais do século XVIII. Porém, para quem estuda os documentos sobre pro-
priedade e conflitos de mineração no século XIX se descortina um panorama um
pouco diverso: ainda que a abundância aurífera tenha terminado, com o virtual
esgotamento ou destruição de aluviões e jazidas, a mineração aurífera esteve longe
de desaparecer durante o século XIX, tanto como empreendimento de mineradores
em tempo integral, de fazendeiros (muitos mineradores em tempo parcial), quanto
de Companhias nacionais, mistas ou estrangeiras. Contudo, não é aqui o lugar, nem
o momento, para discutir esse problema historiográfico em detalhes.
Para entender a importância do documento apresentado é necessário compreen-
der que as lacunas documentais sobre as explorações auríferas do século XIX em
Minas Gerais são fruto de singularidades políticas e culturais, não da inexistência
de jazidas sendo exploradas ativamente. Entre essas singularidades estão duas prin-
cipais ocorrências: um acordo político entre os políticos mineiros (em sua grande
maioria grandes proprietários) e o Príncipe Regente Pedro — depois, Imperador
Pedro I — que em sua viagem às Minas em 1822 deu autonomia total aos proprie-
tários em troca de apoio político para a guerra de independência e a reafirmação
desse acordo sete anos depois, em um Decreto de 27 de janeiro de 1829; e em
segundo lugar, o absenteísmo e práticas administrativas “frouxas” ou arcaicas dos
fazendeiros do centro de Minas Gerais no século XIX, que em quase a totalidade
dos casos não mantiveram registros contábeis ou de qualquer outra natureza sobre
suas atividades, tanto por tradições sobre o entendimento da natureza das funções
das elites proprietárias como pelo medo de caírem nas mãos dos poderes públicos e
serem usados para fins tributários2.
Um conflito de mineração que chegue ao Judiciário da época, como o que se
apresenta no documento em questão, expõe à nossa análise mudanças e permanên-
cias entre os séculos XVIII e XIX para além de um conflito pontual. O documento
descortina conflitos de competências na fiscalização da mineração que existiam
no século XVIII e persistiram no século XIX; insinua redes clientelares e redes de

2. NEVES, Marcus Vinícius Duque. Modernizações, projetos econômicos e percepções locais:


Mineração e siderurgia em Minas Gerais (1850-1921). Dissertação. (Mestrado em História).
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo, PPGHIS/FAFICH, Horizonte, 2010. MAXWELL,
Kenneth. A devassa da devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750-1808. 5ª edição.
São Paulo: Paz e Terra, 2001.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX

[240]

sociabilidade divergentes em conflito, com uma família tradicional de proprietários


em oposição a um grupo de menor poder ligado, porém, a outra tradicional estru-
tura de trocas de favores; descortina que a queda da produção aurífera pode não
ter arrefecido as vontades em buscar essa riqueza muitas e muitas décadas depois,
mantendo latentes oposições que estouravam em conflitos sempre que uma explo-
ração antiga ou nova parecia dar lucros.
Outro aspecto que nos interessa é o contexto econômico de Minas Gerais em
meados do século XIX: ocorria então uma aceleração das dinâmicas econômicas
que se refletia em um otimismo aos empreendedores dos mais diversos tipos, com
aumento das exportações e grande frenesi legislativo com a produção de extensa
legislação, promulgada no ano seguinte de 1850, com o novo Código Comercial, a
Lei de Terras e diversas outras. A Lei de Terras, em particular, tinha como objetivo
impedir ou dificultar a aquisição de propriedades por trabalhadores livres, tendo em
vista a substituição gradual da força de trabalho escrava pelo trabalho livre. O tipo
de conflito narrado pode ter relação com a ascensão e maior ação desse segmento
de trabalhadores livres que aumentava em certos lugares da Província3.

Litígios de mineração, direito e práticas administrativas: precedentes

São das Ordenações Filipinas os primeiros dispositivos legais sobre mineração


no Portugal moderno, que lançaram, por meio de seus dispositivos, as bases cons-
titutivas dos privilégios e da organização administrativa e fiscal para essa atividade.
Porém, o fizeram em um momento anterior às grandes descobertas minerais na
América Portuguesa. Com a vinda dos ibéricos às Américas, e em momento posterior,
com a junção dos reinos espanhol e português sobre o Rei Felipe I (II na Espanha),
mas principalmente durante o reinado de seus sucessores, Felipe II (III na Espanha)
e Felipe III (IV na Espanha), a evolução dos acontecimentos nas colônias ibéricas fez
editar novas Ordenações e modificações graduais às Ordenações existentes. Com a
independência portuguesa sob a nova Casa Real de Bragança, a exploração mineral
no Brasil mostra novas realidades, provocando mudanças através de alvarás, regi-
mentos e bandos (modos de editar legislação de caráter regulamentar) que buscam
resolver problemas de diversos tipos apontados na mineração e sua fiscalização nas

3. FREYRE, Gilberto. Vida Social no Brasil nos meados do século XIX. 4ª ed. São Paulo: Editora
Global, 2008. SILVA, Lígia Osório. Terras Devolutas e Latifúndio: efeitos da lei de 1850. 2ª edição.
Campinas: Editora Unicamp, 2008. pp. 181 e ss. MOTTA, Márcia Maria Menendes. Direito à terra
no Brasil: a gestação do conflito, 1795-1824. São Paulo: Alameda, 2009.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX

[241]

terras luso-brasileiras, nos períodos dos reis portugueses D. Pedro II (12/09/1693 a


09/12/1706) e D. João V (1/1/1707 a 31/07/1750)4.
Nesse incerto período, devido às vicissitudes e problemas de um Império que se
expandiu e esgarçou seu tecido humano e institucional ao máximo, os alvarás, regi-
mentos e bandos são editados, de tempos em tempos, no intuito de dotar a atividade
de mineração de autonomia e também tendo em vista, por outro lado, lhe impor a
melhor fiscalização possível5.
Tal fiscalização era composta por linhas de confiança, fios de sociabilidade e fios
de sujeição que se cruzavam dentro desse tecido complexo, por vezes sujeito a rom-
per-se em pontos não visíveis ou nas bordas distantes. Pode parecer que à Coroa os
quintos estariam razoavelmente assegurados, desde que a fiscalização estivesse sob
a autoridade de Reinóis de confiança, mas ao longo do XVIII essa percepção sofreu
diversos impactos. A falta de indivíduos de formação, caráter e perfil para ocupar os
principais cargos fiscais torna cada vez mais clara a incapacidade de conter os des-
caminhos. Entre os boatos e notícias de ouro e diamantes brasileiros contrabandea-
dos que chegam a portos holandeses, ingleses e praças europeias, outros indícios dos
extravios e contrabandos são recolhidos pelas autoridades nos territórios coloniais6.
Portugal, com um Império construído desde o início em associação com gran-
des fortunas particulares, teve que ceder mais uma vez a aumentar a participação
dos seus “associados necessários” para institucionalizar o que já ocorria na prática:
dividir os lucros e prejuízos da exploração mineral de modo mais equitativo com
seus funcionários, especialistas ou nomeados ad hoc, que na prática eram quase
integralmente particulares interessados na mineração diretamente ou que a prati-
cavam por meio de outrem, usando de redes familiares e associativas, apesar das
proibições legais7.

4. ALMEIDA, Candido Mendes de. Codigo Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal
recopiladas por mandado D’El Rey D. Philippe I. Tomo II. 14ª ed. Rio de Janeiro: Typographia
do Instituto Philomathico, 1870. FERREIRA, Francisco Ignácio. Repertório Jurídico Mineiro:
Consolidação alfabética e cronológica de todas as disposições sobre minas, compreendendo a
legislação antiga e moderna de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1884.
5. HESPANHA, Antonio Manuel, História de Portugal Moderno — político e institucional. Lisboa:
Universidade Aberta, 1995.
6. ANDRADE, Francisco Eduardo de. Com pés sobre as minas se devem decidir: poderes dos
oficiais da minas do ouro, sul da América portuguesa. 87-108. In: ANTUNES, Álvaro de Araújo
& SILVEIRA, Marco Antonio. (orgs.) Dimensões do poder em Minas (séculos XVIII e XIX). Belo
Horizonte: Fino Traço Editora, 2012.
7. ARQUIVO NACIONAL. Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil Colonial. Coordenação
Graça Salgado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX

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Assim, os regimentos (a partir de 1702) obrigam aos fiscais e autoridades a


trocar seus proventos, pagos pela Coroa, por direitos de exploração, em todos os
cargos de fiscalização, menos o de Superintendente, este ainda remunerado na ten-
tativa de manter olhos e bocas isentas não dominados pela “febre do ouro” que
contaminava os fiscais mais próximos aos mineradores, que enriqueciam, por vezes,
de forma espetacular e repentina8.
A estrutura de fiscalização era muito ineficiente para apurar o real montante
do ouro que as lavras produziam, já que a maior parte dessa fiscalização se limi-
tava às “posses visíveis” dos mineradores, que eram as demarcações no terreno,
para que não houvesse o “jogo de empurra” comum entre os mineradores de lavras
confrontantes.
Até 1702 o cargo máximo da estrutura de fiscalização da mineração era o de
Administrador/Provedor das Minas, que foi substituído pelo de Superintendente
com funções similares. Outros cargos que já existiam ou que foram criados durante
a modernização da legislação foram: Tesoureiro; Escrivão/Provedor; Fiéis do tesou-
reiro (em número de dois); Mestres de Fundição; Oficial Mineiro Prático; Guardas
(do Provedor); Guarda-Mor; Guardas-Menores; Meirinho9.
Apenas alguns auxiliares técnicos: Mestres de Fundição; o Oficial Mineiro
Prático e o Meirinho não tinham até 1702 entre as atribuições dos cargos a proi-
bição explícita sobre a posse de lavras. Apenas o Superintendente ainda percebe
remuneração após 170210.
Independente dessa organização, a mineração era um foco de conflitos constan-
tes e assim o foi durante todo o século XVIII. Os inúmeros bandos, regulamentos e
alvarás demonstram isso, buscando regular todas as facetas do trabalho de minera-
ção, principalmente no tocante ao acesso aos recursos e à administração da justiça,
além de reiterarem diversas proibições no intuído de isolar as atividades minerado-
ras de tudo que a pudessem turvar.
A Coroa Portuguesa parece ter confiado que administradores bem escolhidos
para os cargos de Provedor, depois Superintendente, que soubessem explorar os
conflitos e interesses conflitantes entre os mineradores mantivessem os descaminhos

8. EXPOSIÇÃO do Governador D. Rodrigo José de Menezes sobre o estado de decadência da


Capitania de Minas Gerais e meios de remedia-lo — 1780. Revista do Arquivo Público Mineiro, Ouro
Preto, v. 2, 1897.
9. ARQUIVO NACIONAL. Fiscais e Meirinhos.
10. ______. Fiscais e Meirinhos.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX

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em níveis baixos, utilizando-se de exemplares punições quando pelas vias da dela-


ção ou da fiscalização dos caminhos, aprendia-se algum contrabandista.

Consequências no sistema de fiscalização, após


a diminuição da riqueza aurífera

Como já se instituíra o fim da remuneração de certos cargos para, em teoria,


instituir-se uma espécie de parceria forçada entre administradores e Coroa — que
reduz os lucros de parte significativa dos mineradores que constituem a elite colo-
nial, enquanto a Coroa insistiu em manter o nível de sua arrecadação — a primeira
consequência é o aumento da desconfiança mútua entre Coroa e seus próprios fis-
cais. Nessa leitura, a tentativa de introduzir o sistema de captação é uma tentativa
de passar a responsabilidade de grande parte do controle para os exploradores
(entre os quais os administradores), evidência da necessidade (para a Coroa) de
simplificar um sistema que se tornara de difícil fiscalização.
Em conflito com os interesses dos administradores, a tributação começa a sofrer
queda pela sonegação dos próprios administradores e abre-se mais uma rachadura
no sistema político metrópole-colônia. A Inconfidência Mineira, entre outras coisas,
pode ser considerada como um “termômetro” dessa oposição. A estrutura fiscal
parece ter sido gradualmente corrompida nas duas décadas finais do século XVIII e
na primeira década do século XIX, talvez pela própria autonomia e relações tecidas
entre as novas elites “mazombas”11.
A frouxidão e a leniência dos fiscais não podem ainda, porém, ser demonstradas
cabalmente, já que não parece haver livros de Guarda-moria conservados em quan-
tidade para um estudo aprofundado, nem dados fidedignos para estimar razoavel-
mente o número de lavras em atividade, com o detalhamento de suas atividades e
produções, ainda que sejam explorações de pouca monta. Tornara-se a mineração
do ouro uma atividade desinteressante?
Algumas décadas depois, tal atitude desleixada não se parecia com desinteresse
para o Barão de Eschwege que, ocupando o cargo de Superintendente das minas de
1812 até 1821, teve dificuldade de reunir dados sobre as explorações e colocou a
culpa disso nas relações próximas entre seus próprios encarregados e os mineradores.
Alguns desses subordinados de Eschwege, instados a levantar e entregar os dados
detalhados de questionários que deviam preencher após entrevistar os mineradores

11. MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa.


Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX

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ignoraram solenemente seu superior de origem alemã e de caráter metódico, se


negando a realizar a tarefa12.
Da mesma forma, ao atuar como organizador e sócio explorador de minerações,
entre a mais importante a Mina da Passagem no município de Mariana, teve expe-
riência similar:

O principal motivo de não haver conseguido auxílio algum para exe-


cução de meu plano, o principal motivo, repito, de ter sido contra-
riado e de ninguém interessar-se pelo meu projeto, nem mesmo pes-
soas que eu queria colocar na organização, logo que fosse instalada,
(somente de má vontade haviam aceito, foi a organização administra-
tiva da companhia. Com efeito, esta nem a uns deixava a esperança
de poderem pescar em águas turvas, nem a outros se esqueciam de
demonstrar que tudo seria feito de acordo com a lei, ao contrário do
que acontecia então em todas as pequenas sociedades particulares de
mineração e nos serviços em comum.13

Segundo Eschwege, a recusa em cumprir a lei, que significava informar dados


que os proprietários se viam no direito de sonegar, assim como o impedimento de
realizar negócios suspeitos independentemente de autorizações dos sócios, em nome
da Companhia, afastavam os possíveis investidores nacionais, que desejavam liber-
dades e possibilidades de se manterem livres dos olhos do fisco e abertos a saírem
da sociedade quando bem quisessem, além de negociar suas cotas da mesma forma.

Estruturas herdadas do período colonial,


novas ideias e a “nova” magistratura

As estruturas fiscais para a mineração no século XIX serão herdeiras daquelas


estabelecidas no século precedente, com modificações diversas que são pouco per-
ceptíveis na legislação, mas bem mais claras quando analisados os acordos políticos
e o panorama geral que levará à Independência do Brasil e à estruturação das rela-
ções de poder na criação das monarquias de Pedro I e Pedro II, intercaladas pelo
período conturbado das experiências regenciais descentralizadoras e liberais.
A aparência de concessão de mercês, fruto da “sociedade do dom”, presente na
repartição formal das lavras em datas que eram devidas ao descobridor, ao Rei e
aos outros mineradores, e que até certo ponto justificava a cobrança dos quintos,

12. ESCHWEGE, Wilhelm L. von. Pluto Brasiliensis. Trad. de Domício de Figueiredo Murta. Vols. I.
Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1979.
13. _____. Pluto Brasiliensis, p. 47.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX

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de forma indireta, desapareceu oficialmente no Primeiro Reinado, no que toca à


mineração em Minas Gerais, com o decreto de dezembro de 1829. Garantiu-se em
seguida pleno direito à propriedade, pelo inciso XXII do art. 179 da Constituição de
1824. Enquanto outras práticas foram desaparecendo durante o século XIX, após o
conturbado período das Regências, verdadeira experiência parlamentar, mantendo-
-se no Segundo Reinado, sem ameaças aos direitos adquiridos pelos proprietários
até o final da década de 1860, outras se mantinham, ainda que pouco utilizadas,
esperando momento mais propício. Em 1867, Dom Pedro II busca reafirmar seus
direitos com lei que tenta revogar tacitamente o dispositivo de 1829 — para não
afrontar diretamente os proprietários que eram o sustentáculo da monarquia em
Minas — mas, sem sucesso14.
Exemplo da resistência dos proprietários de terras contra os interesses régios foi
a implantação do registro paroquial das terras, previsto no regulamento da Lei de
Terras de 1850, e que ficou conhecido como o “Registro do Vigário”. Este poderia
ter surtido efeitos sobre as explorações auríferas, em tese, por estar vigorando o
Decreto de 1829 que dava o livre direito de explorá-las aos proprietários, portanto,
fazendo delas, em tese, acessórias da propriedade. Porém, tal lei foi interpretada
pelos juízes togados de forma muito diferente de sua intenção política: a Monarquia
considerava que o poder do Padroado, dado aos reis portugueses e confirmado aos
monarcas brasileiros, tornava regulares e legais os registros eclesiásticos cartoriais,
como no passado era aceito com os registros de nascimentos e óbitos. Tal estrutura
cartorial-eclesiástica também teria, assim, legitimidade para realizar e, portanto,
com a mesma fé-pública, os registros necessários à regulamentação da lei de terras.
Contudo, ao contrário, o entendimento maciço dos juristas era da sua improprie-
dade, ainda mais que a maior parte dos magistrados togados que tinham formação
jurídica completa e ideário mais inclinado às “modernidades”, eram cada vez mais
adeptos das ideias de uma estrutura cartorial e judicial leiga, escarnecendo do poder
dado à igreja católica, negando validade às suas funções cartoriais, consideradas
impróprias, ineptas e, com razão histórica, um resquício medieval15.
A negação, pela estrutura judiciária togada, do passado jurisdicional dos pode-
res monárquicos — consubstanciado nas atribuições nebulosas do Poder Moderador
— foi criando um movimento crescente de legalidade e legitimidade exterior aos
poderes monárquicos durante o correr do século XIX, na onda da disseminação das
modernas teorias políticas de substrato republicano, tornando cada vez mais contes-
tada a ideia de um Monarca que governa em parte por conceder privilégios e mercês,

14. NEVES, Marcus Vinícius Duque. Modernizações, projetos econômicos e percepções locais.
15. SILVA, Lígia Osório. Terras Devolutas e Latifúndio, p. 181 e ss.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX

[246]

ainda que na política os conservadores tivessem muito sucesso na manutenção do


poder. Ainda assim a estrutura legal oriunda das tradições monárquicas subsistia,
principalmente na aplicação prática de leis a contextos específicos. Na mineração a
comprovação disso é o documento Manual do Guarda-Mor composto por Manuel
José Pires da Silva Pontes G. M. Geral , manuscrito compilado e apresentado por
Afonso Pena ao Arquivo Publico Mineiro em 1902, mas cuja data aposta, de 1870,
comprova o uso dessas orientações e práticas antigas ainda nas décadas finais do
século XIX16.
Esse processo deve ser notado como algo de longo prazo, e a intervenção impró-
pria do Guarda-Mor Substituto, na lavra da tartaruga, nos anos finais da década
de 1840, tem algo a dizer de uma estrutura de divisão e demarcação das datas nas
lavras, cuja origem arcaica como as bases medievais do poder cartorial eclesiástico
— ambos com esteios na “sociedade do dom” — eram igualmente combatidas e
desautorizadas pelos magistrados togados.
Tanto o Decreto de dezembro de 1829, quanto o surgimento de um grupo de
magistrados de nova formação durante o século XIX, puseram em cheque as estru-
turas de concessão e fiscais de origem colonial e qualquer tentativa de retomada do
poder Real para conhecer e tributar as explorações minerais particulares de pro-
prietários nacionais. Porém, os cargos e a aparência dessas estruturas mantiveram
suas existências dentro do quadro de manutenção de favores políticos e coopta-
ção de grupos locais, como tradições sobreviventes da “sociedade do dom” que os
monarcas brasileiros e seus aliados conservadores, durante o Primeiro e o Segundo
Reinados, buscaram manter vivas ou trataram de reviver, como meio de manter-se
no poder frente à crescente oposição de novas ideias políticas que se insinuavam
entre grupos das elites. Entre estas coexistiam e se digladiavam o moderno e o
arcaico; a tradição e a novidade17.
Os direitos e costumes antigos conviviam de perto com os bacharéis que se
constituíam na nova classe política, muitos deles republicanos ou abolicionistas, e
que tinham como um dos naturais caminhos para a carreira política o ingresso nos
quadros da magistratura, que passou cada vez mais a confrontar-se com o governo
monárquico.

16. MANUAL do Guarda-Mor composto por Manuel José Pires da Silva Pontes G. M. Geral. Revista
do Arquivo Público Mineiro, Ouro Preto, v. 7, p. 357-370, 1902.
17. NEVES, Marcus Vinícius Duque. Modernizações, projetos econômicos e percepções locais:
Mineração e siderurgia em Minas Gerais (1850-1921). Dissertação. (Mestrado em História).
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo, PPGHIS/FAFICH, Horizonte, 2010.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX

[247]

Pesquisar a história da mineração no século XIX: como


processos históricos se refletem nas fontes e nos arquivos

Na apresentação oral para a Oficina de Paleografia — UFMG foram focaliza-


dos os caminhos e os tipos de documentos que poderiam ser úteis às pesquisas da
história das minerações do século XIX. Não citaremos aqui os fundos óbvios e mais
conhecidos, acessíveis imediatamente por uma simples busca na Internet ou através
de meia dúzia de obras de referência no assunto. Resumiremos aqui estas conside-
rações ao que extrapola esse universo mais imediato de pesquisa.
Em primeiro lugar, pesquisar minerações do século XIX pode se tornar uma
árdua tarefa por que suas histórias nem sempre se relacionam com informações
geradas dentro deste recorte temporal. Afirmamos que a manutenção de estruturas
coloniais baseadas na legislação Filipina e nos regulamentos, bandos e alvarás do
período colonial nos obriga a conhecê-los para entender como foram arguidos e
utilizados no período seguinte, já que não revogados. A isso se acrescenta o fato que
as minerações do século XIX em Minas Gerais, em grande parte, são reaberturas de
antigas minerações do período colonial, e é lá que podem ser encontrados os dados
iniciais que darão sentido aos acontecimentos e processos posteriores, ocorridos no
século XIX, tanto da parte social quanto da parte técnica.
Da mesma forma, ficou claro que as lacunas documentais sobre as minerações
do século XIX são produto, em grande parte, da negativa dos proprietários de pro-
duzir documentos que tivessem o potencial de serem empregados pelo fisco ou por
autoridades contra seus interesses e liberdades. Porém, se tais documentos não exis-
tem, a memória sobre muitas explorações sobreviveram algumas gerações e, em
alguns casos, geraram registros a partir da República, quando a legislação mudou
com a adoção do regime de acessão — onde o proprietário superficiário é o dono do
subsolo e o que ele contiver — na letra do artigo 72 da Constituição Republicana de
1891. As negociações, ações judiciais e registros posteriores muitas vezes guardam
linhas preciosas ditadas pelos descendentes aos advogados e funcionários públicos
que as registraram, onde por vezes aparecem informações preciosas de aconteci-
mentos, técnicas, duração das explorações, emprego de mão de obra, atividades e
sucessões de proprietários durante o século XIX. As ações de demarcação e divisão
de terras são especialmente ricas em informações do passado oitocentista dessas
explorações.
O Registro de Terras Públicas e os cartórios também são fontes muito impor-
tantes para nos apropriarmos da geografia das explorações e de informações sobre
os proprietários, lembrando que no caso dos cartórios existem muitas informa-
ções importantes em livros que adentram muitas décadas do século XX. Da mesma
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX

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forma podem ser pensados alguns periódicos especializados das décadas iniciais do
século XX.
Também devemos lembrar que muitos exploradores e proprietários de mine-
rações foram longevos, falecendo apenas nas primeiras décadas do século XX. Em
seus inventários e testamentos podem aparecer informações interessantíssimas e cla-
rificadoras de dúvidas e lacunas históricas. A aceleração econômica do setor minera-
dor, provocada pelas esperanças da reabertura das lavras e do início da extração de
minérios industriais para exportação produziu farta documentação sobre as posses
e propriedades pretéritas, ao necessitar da regularização legal das propriedades e
sua delimitação.
Documento
Trechos da Ação sobre o direito de posse da Lavra da Tartaruga
entre Capitão José de Aguiar Leite Mendonça Vasconcellos e
sua mulher versus Eufrázio Pereira da Silva e outros. Disponível
no Arquivo Municipal de Santa Bárbara/MG. Cx. 63, 1849 —
Embargos — Caethé — Santa Bárbara.

Data
6 de Junho de 1849

Resumo
José de Aguiar Leite de Mendonça Vasconcellos, e sua Mulher
Dona Emerenciana Claudemila Flávia afirmam serem donos
por mais de vinte anos de uma lavra de minerar na Fazenda
da Barra. Entretanto, em Eufrázio Pereira da Silva e outros
invadiram a lavra, libertaram os trabalhadores e tomaram, à
força, os serviços dos antigos donos como seus e passaram a
desfrutar deles. Entrando então com uma ação para readquirir
a posse da lavra, os antigos donos se queixam da demora do
processo.
[fl. 69]

1 Ilustríssimo Senhor Doutor Juiz Municipal

2 Dis José de Aguiar Leite de Mendonça


3 Vasconcellos, e sua Mulher Dona Emerenciana
4 Claudemila Flávia, que sendo senhores
5 e possuidores por si á mais de vinte an-
6 nos, e por seos antecessores á mais de
7 Cincoenta de úm Corte de terras mine-
8 raes da comprehensão das da sua Fazen-
9 da da Barra, desfructando-a mansa e
10 pacificamente, trabalhando de m[i]neração,
11 Construindo Engenho, e os mais miste-
12 res para ahi extrahir o oiro, enfim-
13 praticando todos os actos possessorios
14 avista e face de todos, sem a menor op-
15 posição, ou contradição de Pessõa alguã,
16 acontecêo que em 12 de Janeiro de 1848,
17 Eufrazio Pereira da Silva, ora fallecido,
18 e outros invadirão os serviços dos Supplicantes,
19 expellirão á força os trabalhadores, que
20 ali se achavão, assenhorearão-se dos ser-
21 viços dos Supplicantes, e passarão a desfructa-l-
22 os como seos.

23 A vista de tão inaudito procedimento,


24 os Supplicantes não querendo repellir a for-
25 ça com a força, recorrendo aos meios
26 judiciaes, embargarão os serviços dos
27 referidos intruzos, e posteriormente pro-
28 poserão contra os mesmos a compe-
29 tente Acção para rehaverem a sua
30 Propriedade, e posse, de que havião
[fl. 69v]

1 sido violentamente esbulhados.

2 Os Supplicantes
3 suportão desde então os prejuizos resultan-
4 tes do expollio, que soffrerão, da cessa-
5 ção de seos trabalhos, e da ruina de su-
6 as Maquinas. etc.

7 O Embargo foi julgado subsis-


8 tente em 17 de Maio de 1848, e os em-
9 bargados intimados da Sentença a 23
10 do mesmo mez e anno, como consta dos
11 Autos respectivos a f12 e f12v.

12 Os Embargados embargarão
13 a Sentença a f14: os embargos forão im-
14 pugnados a f20 e f35v, sustentados a
15 f40 e f45, desprezados por segunda
16 sentença de f46 datada de 29 de novembro
17 de 1848, e intimada aos Supplicados em 4
18 de Desembro do mesmo anno, como
19 se vê nos ditos Autos a f48: os Supplicados
20 apellarão da segunda sentença em
21 7 de Desembro (f49): a appellação foi
22 recebida no effeito devolutivo somente
23 por Despacho de f57 e f57v, intimado
24 aos Supplicados, a f58: os Supplicados desistiraõ
25 da Appellação a f59 e f59v: a desistên-
26 cia foi julgada por sentença a f62:
27 os Supplicados vierão com segundos extra-
28 vagantes embargos de f64, desattendi-
29 dos a f66.

30 Existem pois nos Autos trez, ou


[fl. 70]

1 ou mais sentenças passadas em julgado,


2 mandando subsistir o Embargo, de
3 que se trata.

4 Acresce, que como dito fica, os Supplicantes


5 proposerão contra os Supplicados Acção ordina-
6 ria para rehaverem a sua Propriedade,
7 e posse, de que havião sido violentamente
8 esbulhados.

9 Esta Acção foi proposta em 6 de


10 Junho de 1849, como se vê do[s] Autos
11 respectivos e pendentes, que teem corri-
12 do todos os seos trammites ordinarios
13 perante este Juizo, que he ao mesmo
14 tempo o da Superintendencia, mas
15 comquanto se ache descutida de parte
16 á parte, ainda não se proferio Sen-
17 tença final, por terem havido repe-
18 tidas interrupçoẽs provenientes da
19 mudança no Pessoal dos Supplicados, e por
20 conseguinte reiteradas habelitações,
21 que tem demorado involuntariamente
22 a decizão do Pleito.

23 Os prejudicados com
24 a demora são os Supplicantes, que se achaõ
25 privados de sua propriedade, vendo
26 arruinar se as maquinas, e utensio
27 da Mineração, entretanto os Supplicados,
28 que aliás nunca requererão uma ha-
29 bilitação, das que tem sido necessa-
30 rias, que nunca promoverão o an-
[fl. 70v]

1 andamento da causa, como o mostrão os


2 Autos, são os que se apresentão queixo-
3 zos, fingindo atribuir a demora á
4 prepotencia dos Supplicantes, sem se lem-
5 brarem, que a prepotencia em tal
6 Cazo exercida por semelhante modo,
7 redundaria somente em prejuízo
8 dos Supplicantes, que são os que precizão
9 da Sentença, mandando resttituir-
10 lhes a propriedade e posse de suas
11 terras attentatoriamente úzurpadas
12 pelos Supplicados, que para chegarem á
13 seos fins se inculcão de posses, e
14 piquenos, sendo aliás poderozos pelo
15 numero, e pela proteção occulta, de
16 que teem disposto, para perseguirem
17 e encomodarem aos Supplicantes á seo
18 bel prazer.

19 Estando as cousas neste


20 ponto, e a questaõ toda affecta á
21 este Juizo, que he ao mesmo tempo
22 o da Superintendencia á quem com-
23 pete proferir as desizoẽs sobre as
24 materias contenciozas, como a de que
25 se trata, que he da mais alta indaga-
26 ção, dependente de discussão plenaria,
27 os Supplicados com cӱnismo espantozo, re-
28 correrão á um individuo, que se diz
29 Guarda mor substituto do Districto
30 da Penha do Município de Caéte,
31 requerendo absurdamente, que este
32 as ratificasse, e empossasse das vin-
[fl. 71]

1 das vinte Datas, que dizem ter no lugar


2 da questão, e esse indivíduo prompta-
3 mente deferio em data de 19 de Junho
4 do corrente anno, e logo no dia 22 do
5 mesmo mez e anno se apresentou
6 no lugar, metia mãos á obra, que
7 concluía á 27 do dito mez e anno, em-
8 possando os Supplicados do terreno, sobre
9 que versa a questaõ, digo, sobre que
10 versa o litígio, com o maior escan-
11 dalo, ousadia, e desrespeito das Leis,
12 que possivel he imaginar-se.

13 Os Supplicantes logo que forão citados


14 apresentarão ao tal Guarda Mor substituto
15 os Embargos, que juntos offerecem, mas
16 este com a maior obstinação, e com
17 o mais revoltante atrevimento á
18 Lei lha desattendeo, e seguio por dian-
19 te nos seos attentados ate consuma-
20 l-os, como se vê do seo despacho ex-
21 arado na sobredita Petição dos Supplicantes
22 offerecida por Embargos á estratégica
23 ratificação.

24 Se os Supplicados fossem sem discrepancia


25 os mesmos outr’ora embargados, e
26 não tivesse havido a escandaloza in-
27 tervensão, e a inqualificável adju-
28 torio do Guarda Mor substituto para os
29 intrometer de novo no terreno
Sobre os Organizadores

Douglas Lima de Jesus é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade


Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduado em História pela mesma instituição (2011). Foi bolsista
de Iniciação Científica PIBIC/CNPq de fevereiro de 2008 a julho de 2011 e nesse período atuou nos
projetos “A mestiçagem e o universo cultural brasileiro: história, historiografia e representações” e
“Africanos, crioulos e mestiços nas Minas Gerais dos século XVIII e XIX”. Atua como voluntário
no CEPAMM — Centro de Estudos sobre a Presença Africana no Mundo Moderno. Faz parte dos
Grupos de Pesquisa “Escravidão, mestiçagem, trânsito de culturas e globalização — séculos XV a
XIX — UFMG”, liderado pelo professor Eduardo França Paiva, e “Elementos materiais da cultura

,
e patrimônio — UFMG”, liderado pelo professor José Newton Coelho Meneses. É coordenador da
Oficina de Paleografia — UFMG desde a sua fundação.

Fabiana Léo Pereira Nascimento cursa o mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da


UFMG, na linha de pesquisa em História Social da Cultura. É licenciada em História pela UFMG
(2010) e em Filosofia pela PUC-Minas (2005). Participou do Programa de Mobilidade do Atlas Digital
da América Lusa (LHS/UnB), projeto em que é colaboradora desde janeiro de 2012, do Conselho
Editorial da revista Temporalidades (abril de 2012 a setembro de 2013) e da Comissão Organizadora

,
do II Encontro de Pesquisa em História — EPHIS (junho de 2013). Fez parte da fundação da Oficina
de Paleografia — UFMG e atua desde o primeiro semestre de 2012 como coordenadora da iniciativa.

Gabriel Afonso Vieira Chagas é graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
(2014). Pesquisa história de Minas Colonial, com ênfase em história da família, das elites e dos
casamentos endogâmicos. Foi bolsista de Iniciação Científica pelo CNPQ, e participa do grupo de
pesquisa “História de Minas Gerais no Império luso-brasileiro no século XVIII: espaço cultura e
sociedade”; também tem interesse por pesquisas na área de ensino de história, tendo desenvolvido

,
projeto de extensão na área. Possui bom conhecimento de paleografia, tendo participado como
ouvinte e coordenador da Oficina de Paleografia — UFMG desde março de 2012.

Gislaine Gonçalves Dias Pinto é graduada e mestranda em História (UFMG), cujo trabalho tem
como tema a Inquisição e os cristãos-novos. Iniciou essa pesquisa durante intercâmbio em Portugal
(Universidade de Porto), em 2012. Atuou como pesquisadora do Instituto Histórico Israelita Mineiro,

,
entre 2011 e 2014. Atualmente é bolsista CAPES pelo programa de Pós-Graduação em História da
UFMG. É coordenadora da Oficina de Paleografia — UFMG desde 2013.

Igor Tadeu Camilo Rocha é graduado e mestrando em História (UFMG), cujo trabalho tem como
tema as ideias sobre tolerância religiosa investigadas a partir das fontes inquisitoriais do contexto do
Iluminismo, trabalho iniciado na pesquisa de iniciação científica em 2009. Atuou como pesquisador
no Arquivo Público Mineiro (2009) e participou como organizador do projeto História 50 anos
(2007) e do Encontro de Pesquisa em História (EPHIS) 2014. Atualmente é bolsista FAPEMIG pelo
programa de Pós-Graduação em História da UFMG. É coordenador da Oficina de Paleografia —
UFMG desde a sua criação, em 2012.

,
Leandro Gonçalves de Rezende é graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), em 2011. Atualmente é mestrando em História Social da Cultura no Programa de Pós
Graduação em História da UFMG, com apoio da CAPES/Reuni. Em sua pesquisa analisa o repertório
iconográfico das Ordens Terceiras do Carmo em Minas Gerais no século XVIII. Tem experiência na
área de História, com ênfase em História da Arte, iconografia religiosa e ritos católicos, em especial

,
irmandades e ordens terceiras mineiras nos séculos XVIII e XIX. Faz parte da coordenação da Oficina
de Paleografia — UFMG desde seu primeiro semestre de atividade.

Ludmila Machado Pereira de Oliveira Torres é graduada em História Bacharelado pela UFMG (2014).

,
Foi estagiária do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG. Tem experiência em leitura paleográ-
fica e é coordenadora da Oficina de Paleografia — UFMG desde o segundo semestre de 2013.

Luíza Rabelo Parreira é aluna do sexto período do Bacharelado em História da UFMG. Foi bolsista
de iniciação científica FAPEMIG no projeto “Produção e uso de documentos manuscritos adornados
no século XVIII em Minas Gerais”, da Profª. Drª. Márcia Almada. Atualmente, é bolsista de iniciação
científica FAPEMIG no projeto “Manifestações Culturais, Escatologia e Culto Santoral no Universo
Luso-brasileiro”, sob orientação da Profª. Drª. Adalgisa Arantes Campos. Possui experiência em lei-
tura paleográfica e na área de História, com ênfase em Arte e Cultura. Frequentou a Oficina de

,
Paleografia como ouvinte desde a sua criação, em 2012. Ingressou como coordenadora da mesma no
primeiro semestre de 2014

Maria Clara Caldas Soares Ferreira é mestre em História Social da Cultura pela Universidade Federal
de Minas Gerais (2013). Especialista em Cultura e Arte Barroca pela Universidade Federal de Ouro
Preto (2009). Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (2006).
Técnica em Conservação e Restauração de Bens Culturais pela Fundação de Arte de Ouro Preto
(2006). Possui experiência em docência nos ensinos fundamental, médio e técnico, bem como em
restauro de papel e digitalização de acervo. Atualmente, leciona as disciplinas “Iconografia Religiosa”
e “História das Artes Plásticas no Brasil” no Curso Técnico de Conservação e Restauração de Bens
Culturais do Pronatec-Coltec/UFMG. Faz parte da coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG
desde o primeiro semestre de 2014.

,
Mateus Freitas Ribeiro Frizzone é licenciado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
e é coordenador da Oficina de Paleografia - UFMG desde o início de 2012. Tem experiência em lei-
tura paleográfica e trabalhos sobre ensino de História e de Paleografia e sobre administração, justiça

,
e punição na América portuguesa (Minas Gerais, séc. XVIII), sendo este último seu tema atual de
pesquisa.

Mateus Rezende de Andrade é Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal de Viçosa.
Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutorando em História pela mesma
instituição. Passou a integrar a coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG no segundo semes-
tre de 2014.

,
Rodrigo Paulinelli de Almeida Costa é graduado em História pela Universidade Federal de Viçosa.
É mestrando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde desenvolve pesquisas
relacionadas às relações interpessoais realizadas a partir do crédito na freguesia de Guarapiranga
(1830-1865), com o fomento da FAPEMIG. Coordena a Oficina de Paleografia — UFMG desde o
segundo semestre de 2014.
Composto em Sabon, Minion, Trajan,
Helvetica e Andrade, na primavera de
2014

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