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Cadernos de Paleografia
Cadernos de Paleografia
ao público este audacioso projeto, que revela os enlaces entre três diferentes dimensões — manuscrito,
transcrição e narrativa histórica — caminhos estes que nem sempre estão claros no fazer historiográfico.
O principal objetivo da Oficina é reunir subsídios para a leitura de fontes manuscritas pertinentes à História
luso-brasileira. Pretendemos, então, consolidar um espaço permanente de estudo, discussão, exercício e troca de
experiências no trabalho em arquivos e na leitura e transcrição dessas fontes. Todos(as) os(as) interessados(as) são
ramente, pelo seu caráter propedêutico: o de possibilitar o acesso direto a fontes de pesquisa, sem depender da
publicação de transcrições e/ou comentários. Além disso, a leitura e transcrição paleográfica podem se constituir
como campo de atuação profissional e como fonte de renda para aqueles que as dominam.
Nossas atividades se iniciaram com uma aula inaugural em 9 de abril de 2012. No dia 16 de abril, iniciamos
os nossos encontros semanais, ao longo dos quais pudemos repensar e aprimorar nossa metodologia de trabalho.
UFMG partilhando suas experiências de pesquisa em fontes manuscritas. Essa metodologia, consolidada a partir
do 2º semestre de 2012 e em constante revisão, tem por objetivo, ainda, promover a integração entre os diferentes
Desde a nossa fundação, realizamos quatro aulas inaugurais, com público de até 80 participantes, dois
Seminários interdisciplinares e mais de 60 encontros semanais, contando com uma média de 30 participantes de
Paleografia - UFOP. Contamos com o apoio do Centro Acadêmico de História (CAHIS - UFMG), do Colegiado de
Humanas da UFMG.
A presente obra conta com os textos de André Cabral Honor, Carmem Marques Rodrigues, Mateus
Frizzone, Emilly J. O. Lopes Silva, Marileide Lázara Cassoli, Carlos O. Malaquias, Gusthavo Lemos, Cássio Bruno
de Araujo Rocha e Marcus Vinícius Duque Neves e prefácio do professor do Departamento de História da UFMG
Essa realização não seria possível sem o inestimável apoio da Imprensa Oficial de Minas Gerais, que gene-
rosamente acolheu nossa proposta de publicação, inserindo-a como mais uma iniciativa de democratização da
informação e difusão da história e cultura de Minas Gerais, projetos levados a cabo por esse órgão desde a sua
fundação, em 1891. A equipe da Oficina agradece imensamente pela grandiosa oportunidade viabilizada por essa
parceria.
Cadernos de
Paleografia
Número I
Organizadores:
Cadernos de
Paleografia
Número I
iª edição
[versão eletrônica]
ISBN: 978-85-68687-01-7
ISBN da Edição Impressa: 978-85-68687-00-0
Diretor-Geral:
Eugênio Ferraz
Chefe de Gabinete:
Antonio Carlos Teixeira Naback
Os textos e transcrições paleográficas contidos nesta obra estão licenciados sob uma Licença Creative Commons Atribuição - Não
Comercial - Sem Derivações 4.0 Internacional. É permitido copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato para
uso não-comercial, desde que se atribua explicitamente a autoria e se indique os termos desta licença. Para ver uma cópia da
licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/.
Os direitos de uso das imagens aqui reproduzidas devem ser verificados junto às respectivas instituições de guarda.
ISBN: 978-85-68687-01-7
Vários autores.
CDD 417.7
“Sonho que se sonha só
É só um sonho que se sonha só
Mas sonho que se sonha junto é realidade”
Raul Seixas
Agradecer é uma tarefa difícil, especialmente quando podemos contar com con-
tribuições de tantas pessoas e em tão variadas formas.
Primeiramente, gostaríamos de agradecer àqueles que nos apoiaram desde o
engatinhar do nosso projeto, quando tínhamos mais sonhos do que realidades:
Centro Acadêmico de História (CaHis), Colegiado de Graduação, Programa de
Pós-Graduação e Departamento de História e Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas (FaFiCH) da Universidade Federal de Minas Gerais, bem como o seu
corpo docente, discente e técnico-administrativo.
Fundamentais na gestação dessa iniciativa foram o Prof. Dr. Eduardo França
Paiva e os colegas Douglas Lima e Felipe Damasceno (in memoriam), que no segundo
semestre de 2009 iniciaram o grupo de estudos então denominado Paleografia e
Análise Crítica de Documentos Manuscritos, que tanto nos inspirou.
Foram também muito importantes no decorrer de nossa caminhada o Prof. Dr.
José Newton Coelho Meneses, que coordenou o PPGHis durante a maior parte
desse tempo e tanto nos estimulou em todos os nossos anseios e até no que nem
ousávamos imaginar, de modo que não poderia ser outra pessoa a prefaciar este
livro, o Prof. João Euripedes Franklin Leal e a Prof.ª Dr.ª Maria Helena Ochi Flexor,
referências no campo da Paleografia no Brasil, que tão carinhosamente nos acolhe-
ram e encorajaram a voar mais alto. Não podemos nos esquecer da equipe que orga-
nizou o II Congresso Brasileiro de Paleografia e Diplomática — CBPD, momento a
partir do qual a Oficina teve a oportunidade de ser conhecida para além do que nós,
coordenadores, poderíamos imaginar naquela tarde de verão numa mesa da cantina
em que nos reconhecemos como samideanos.
Foram imprescindíveis no dia-a-dia da Oficina os frequentadores das nossas
atividades, razão da nossa existência, bem como os convidados a partilhar suas
experiências nos nossos encontros, alguns dos quais nos brindaram com as reflexões
encontradas neste livro. Somos igualmente gratos aos convidados e participantes
dos eventos que promovemos e que tanto enriqueceram nosso aprendizado, assim
como aos que nos proporcionaram a possibilidade de estender nossos diálogos na
academia e fora dela.
Muito nos alegra, ainda, ver florescerem e darem frutos outras iniciativas discen-
tes com quem compartilhamos um ideal de construção solidária do conhecimento,
dentre elas as Oficinas de Paleografia da UFJF e da UFOP, a Revista Temporalidades,
o Encontro de Pesquisa em História da UFMG — EPHIS e o Núcleo Interdisciplinar
de Estudos Teóricos — NIET, aos quais desejamos sempre sucesso e longa vida.
Não seria possível concretizar este e outros sonhos sem a amistosa sintonia
entre os membros da coordenação, sem nos esquecermos daqueles que nos deixa-
ram para alçar outros voos. É muito recompensador o trabalho coletivo em todas
as suas dimensões, aprendendo com cada tropeço e comemorando cada pequena
conquista como se fosse a conquista do mundo.
Ao nosso diagramador, que fraterna e generosamente nos presenteou com este
belíssimo projeto gráfico, só nos resta desejar que ao longo de seu caminho não lhe
faltem mãos amigas como as que ele nos estendeu.
Registramos nosso agradecimento, ainda, aos arquivos que guardam a docu-
mentação aqui reproduzida em fac-símile, a saber: Arquivo Histórico Ultramarino,
Arquivo Público Mineiro, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Casa Setecentista
de Mariana, Arquivo do IPHAN — São João del-Rei e Arquivo Municipal de
Santa Bárbara.
Finalmente, nosso muito obrigado à Imprensa Oficial de Minas Gerais e seu
dedicado corpo de funcionários, que deram forma e matéria ao sonho da nossa
primeira publicação. Muito nos honra o reconhecimento e apoio de tão prestimosa
instituição, pioneira na difusão cultural em nosso estado.
Apresentação
Petição do carcereiro de Villa Rica para que nomeie Trechos do Livro de Registros Paroquiais de Terra.
um médico para pestar assistência aos presos. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Registros
Disponível no Arquivo Público Mineiro, Fundo Paroquiais de Terra, 1854-1861. TP-1-159. Piranga,
Câmara Municipal de Ouro Preto, CMOP Cx. 07 Doc. Nossa Senhora da Conceição do (Vila de). 1855-1856.
25 Data: 1855-1856, página 189
Data: 31 de setembro de 1734., página 87
Trecho (Sentença) do Processo do Padre Frutuoso
Censura por Antônio Pereira de Figueiredo. Alvares. Disponível no Arquivo Nacional da Torre
Disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de
Real Mesa Censória, caixa 5, censura nº 55A. Lisboa, processo 5846. Código de referência: PT/TT/
Data: 12 de junho de 1770, página 105 TSO-IL/028/05846.
Data: 7 de julho a 7 de agosto de 1593, página 215
Trechos do processo de liberdade de Antonio Avelar,
escravo de Affonso Augusto de Oliveira. Disponível Trechos da Ação sobre o direito de posse da Lavra
no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Ação da Tartaruga entre Capitão José de Aguiar Leite
Cível. Códice: 448. Auto: 9680. Ano: 1883. Iº Ofício. Mendonça Vasconcellos e sua mulher versus Eufrázio
Data: 15 a 25 de maio de 1883, página 131 Pereira da Silva e outros. Disponível no Arquivo
Municipal de Santa Bárbara/MG. Cx. 63, 1849 —
Embargos — Caethé — Santa Bárbara.
Data: 6 de Junho de 1849, página 249
José Newton Coelho Meneses
Professor Associado do Departamento de História da UFMG
Prefácio
Prefaciar este livro é antes de tudo uma alegria, além de uma honra dada a mim
pelos alunos da Oficina de Paleografia do Curso de História da FaFiCH-UFMG.
Alegria porque a edição é produto denotativo de uma experiência acadêmica dis-
cente concreta e rica, em um tempo em que tais iniciativas são pouco estimuladas
e, em decorrência, pouco concretizadas. A honra me faz sentir ainda mais feliz, des-
tacado que fui entre meus colegas docentes para fazer essa apresentação, mas com
a plena consciência de que outros o fariam melhor. No entanto, fui eu, dentre os
incentivadores da iniciativa, o premiado com a escolha dos alunos. É, então, como
um presente ganho, que assumo essa responsabilidade. A retribuição a ele é meu
compromisso com a continuidade de meu estímulo ao trabalho da Oficina.
O meu texto será curto. Os que lhe seguem são os que, verdadeiramente, mere-
cem e precisam ser lidos.
As iniciativas acadêmicas dos discentes são atividades que merecem maior valo-
rização no meio universitário. O que dizer, então, de iniciativa discente integradora
que se amplia no espectro dos vários cursos (Graduação, Mestrado e Doutorado),
incorpora a experiência docente, dialogando com ela e, ainda mais, se estabelece
como interdisciplinar? Esse tipo de ação universitária, que integra níveis pouco dis-
postos à conjunção do ato cotidiano é, ainda, mais louvável e é dele que falamos
nessa apresentação e que este livro apresenta como produto, de forma, a meu ver,
original e inédita.
É comum em nosso momento, no espaço da Universidade brasileira, uma cor-
rida produtivista e, às vezes, tecnicista e competitiva que vem dificultando a valori-
zação e a dedicação às iniciativas mais formadoras que, necessariamente, impõem
Prefácio
[16]
necessidades de dedicação mais atentas ao cômputo amplo das partes que fazem a
Universidade, seus corpos docente, discente e técnico-administrativo. Vivemos com-
partimentadamente esse nosso cotidiano na Universidade e discutir essa questão é,
aliás, proposta que não ganha muitos adeptos na academia.
Como historiador, tento compreender esse momento e o entendo. Como profes-
sor, busco aquilatar as propostas e os caminhos da formação universitária. Como
pesquisador, quero dar ênfase às buscas instrumentais da pesquisa. Como cidadão,
penso que a Universidade desempenha papel fundamental de aliar teoria e apreen-
são do real. Mas não sou um indivíduo partilhado de forma estanque nessas instân-
cias e faço escolhas que as tentam conciliar em uma complexa unidade intelectual e
em uma difícil ação corriqueira na Escola. É a partir dessa tentativa de compreensão
do nosso mundo e do nosso meio que avalio a experiência da Oficina de Paleografia
dos estudantes do Curso de História da UFMG (Graduação e Pós-Graduação).
Adiantando uma síntese, ela é, para mim, atividade rica para a formação disciplinar,
e é ação acadêmica integradora.
A Paleografia tem importância fundamental para a pesquisa histórica e, neste
sentido, serve a várias disciplinas para além da História. É hoje, penso eu, mais fun-
cional e pragmática, sem perder seu caráter teórico e compreensivo acerca da escrita
e de sua inserção temporal nos processos sócio-históricos. A função pragmática de
avaliação da autenticidade documental e da interpretação-tradução da linguagem
antiga constituíram o lugar do paleógrafo e da Paleografia no mundo moderno. Ela,
sobretudo, apresenta-se, para os estudiosos que fazem dela uma prática no pro-
cesso de compreensão dos escritos antigos e de sua transcrição, um instrumento de
memória poderoso e eficaz na guarda do feito original da escrita. Eficaz porque se
presta, em sua essência, como instrumento analítico do documento histórico, atento
à sua datação, sua procedência, à sua autenticidade e aos aspectos gráficos de sua
construção.
A leitura paleográfica é prática plena e exemplar de uma sabedoria que carac-
teriza o saber científico da modernidade. Como ele, é umbilicalmente ligada a uma
utilidade humanista precípua: desvelar o mundo através da manipulação cria-
tiva e criadora desse próprio mundo, conhecer o homem pelos feitos do próprio
homem. Desvendar o humano pela escrita do homem é a raiz da Paleografia. Ela é
um dos instrumentos mais poderosos da ciência moderna, ciência essa que trata o
aporte instrumental como elemento primordial do próprio saber teórico da ciência.
Instrumentalizar para investigar e investigar a instrumentalização são ações distin-
tas e diversas, mas se igualam em importância no processo do saber.
Prefácio
[17]
[18]
seguiram seus passos. Um deles, o padre holandês Daniele Van Papenbroek (1628-
1714) fez pesquisas em vários mosteiros pela Europa e, preocupado com a auten-
ticidade de documentos, publicou, em 1675, como prefácio do segundo volume
dos Acta Sanctorum, o texto Propylaeum antiquarium circa verí ac falsi discrimen
in vetustis membranis (Princípios introdutórios para a discriminação entre o ver-
dadeiro e o falso nos documentos antigos). Essa crítica diplomática colocou em
evidência dúvidas sobre a autenticidade de documentos de alguns mosteiros benedi-
tinos na França, principalmente os da Abadia de Saint-Germain-des-Près, nos arre-
dores de Paris, pondo sob dúvida uma tradição secular beneditina. A resposta desta
ordem vem por um de seus membros, Jean Mabillon (1632-1707). Ele publicou,
em 1681, De re diplomatica. Tal obra propugna princípios e refuta argumentos
de Papenbroek, sendo muito bem aceita e elogiada até pelo próprio padre jesuíta
criticado. São princípios básicos da Diplomática que, na sua parte final propõe
uma classificação sistemática das escritas, considerado como um primeiro tratado
de Paleografia, sem, no entanto, utilizar essa palavra. Ela é introduzida na obra
de outro beneditino, Bernard Montfaucon (1655-1741), em seu livro Paleographia
Graeca sive de ortu et progressu Litterarum, de1708. Apesar disso, tem-se Mabillon
como o pai da Diplomática e da Paleografia modernas. Tal atribuição vem do fato
de que sua obra estimulou o aparecimento de vários outros textos que dialogaram
com ele e aprimoraram as regras paleográficas na Inglaterra, Espanha, Alemanha
e Itália. Na Itália, afinal, é que Scipione Maffei (1675-1755), a partir do estudo de
códices de várias épocas da Biblioteca de Verona, publica, em Mântua, em 1727,
o livro Istória Diplomática che serve d’introduzione all arte critica en tal matéria,
base de uma nova classificação de textos antigos.
O final do século XVII e o início do XVIII foi um tempo, portanto, onde se pode
sediar o início da Paleografia disciplinar moderna. A partir daí, estudos paleográ-
ficos foram feitos e refeitos com uma frequência constante e rica em proposições
disciplinares, começando, inclusive, a comporem cátedras nas universidades euro-
peias. Em Gottingen, na Alemanha, por exemplo, em 1765, o professor Johann
Christophe Gatterer (1727-1799), construiu uma classificação das escritas, inspi-
rada em Lineu, onde dispunha uma hierarquia de escritas em regna, classes, ordines,
series, partitiones, genera e species.
É ao final do século XVIII, ainda, que surgem as Escolas Superiores de Paleografia.
São exemplos delas, na Itália (Bolonha, Florença e Milão, em 1765), na França (École
Royale des Chartes), na Espanha (Escuela Superior de Paleografia y Diplomática, em
1838), na Áustria (Instituto de Paleografia, em 1854) e na Inglaterra (Paleographical
Spciety, em 1873). Neste tempo, assim, a Paleografia é vista como uma ciência.
Prefácio
[19]
[20]
a Oficina de Paleografia
— UFMG: a construção de
uma experiência discente 2
1. ANDRADE, M. R.; CAMILO ROCHA, Igor Tadeu; CHAGAS, G. A. V.; COSTA, R. P. A.;
FERREIRA, Maria Clara C. S.; FRIZZONE, M. F. R.; LÉO, Fabiana; LIMA, Douglas; PARREIRA, L.
R.; PINTO, G. G. D.; REZENDE, L. G.; TORRES, L. M. P. O..
2. Uma versão estendida deste texto foi submetida ao II Congresso Brasileiro de Paleografia e
Diplomática, ocorrido em junho de 2013, pelos coordenadores Douglas Lima de Jesus, Fabiana Léo
Pereira Nascimento, Gabriel Afonso Vieira Chagas, Igor Tadeu Camilo Rocha, Leandro Gonçalves
de Rezende e Mateus Freitas Ribeiro Frizzone, com o título “O ensino da leitura paleográfica na
Oficina de Paleografia — UFMG: relatos de uma experiência discente”.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente
[22]
3. Foram pesquisados os currículos dos cursos de História das seguintes instituições: PUC MG,
Uni-BH, Estácio de Sá BH, UFJF, UFSJ, UFV, UFU, UFTM, UNIMONTES, UNIFAL, UFVJM e
UFOP. Vale ressaltar que o currículo do curso de História da Uni-BH prevê uma disciplina de
paleografia, porém, segundo informações de docentes, tal disciplina já não é ofertada há algum
tempo.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente
[23]
corrobora com essa dimensão reduzida que fora planejada: Oficina Permanente
de Paleografia. O fato de a palavra “permanente” estar presente na denominação
aponta para uma vontade de consolidar o projeto de maneira duradoura — ven-
cendo os primeiros encontros e tentando superar a efemeridade de parte conside-
rável dos grupos de estudo criados até então — mais do que para o projeto, que
acabou se realizando preterintencionalmente, de ampliação do público-alvo e diver-
sificação das atividades.
É importante ressaltar aqui que o público recebido extrapolou muito as expec-
tativas iniciais, não só na quantidade, mas também em sua variedade. Inicialmente
essa variedade se deu dentro do próprio curso de História, com participantes de
diversos períodos, muitos sem nenhum contato com documentação manuscrita. A
grande procura das atividades da Oficina por indivíduos cuja experiência na lei-
tura documental e paleográfica tendia a zero exigiu uma contínua reelaboração de
metodologia e objetivos. Essa reestruturação ainda não chegava ao oferecimento
de um curso de paleografia propriamente dito, mas na inserção desses interessados
nos debates do grupo — ainda compreendido como de ajuda mútua, apesar dessa
primeira ampliação — dispensando uma parte do tempo das reuniões para discu-
tir e trabalhar questões muitas vezes já tidas como conhecimento comum para o
grupo fundador. Rediscutir esses aspectos de forma diluída ao logo dos encontros
não foi, entretanto, penoso e enfadonho, e sim muito enriquecedor. Resultado disso
foi a incorporação, de maneira permanente, dos componentes historiográficos e
contextuais relacionados aos manuscritos trabalhados, que foram ganhando, como
veremos adiante, um espaço maior nas discussões semanais.
A Oficina passou, gradualmente, a se consolidar como um algo a mais do que
um grupo de estudos, tornando-se um projeto de atuação cada vez mais multiface-
tada e plástica e, talvez por isso, não definível por nenhuma das nomenclaturas tra-
dicionais para iniciativas extracurriculares no âmbito da universidade. A coordena-
ção se estabeleceu propriamente como um grupo de estudos que planeja, estrutura
e oferece um curso com componentes teóricos, historiográficos e práticos, visando
promover com seu público treinamento na leitura elementar e crítica e na transcri-
ção de fontes manuscritas modernas em língua portuguesa. Ao ampliar as ativida-
des de modo a incluir público externo à universidade, de uma maneira inicialmente
tímida, mas mais sistemática nos projetos futuros, é possível dizer que a Oficina
vem se tornando uma espécie de guarda-chuva de projetos menores, atuando, assim,
tanto no nível da pesquisa como do ensino e da extensão4 .
4. As atividades semanais da Oficina são gratuitas e abertas a todo o público interessado. O grupo
também oferece minicursos em eventos acadêmicos, buscando sempre novas parcerias para ofertá-
los à comunidade em geral. Atendendo à solicitação de alguns professores do Departamento de
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente
[24]
Vale acrescentar ainda que o alto índice de interessados se deu pelo sucesso da
divulgação oral, sendo importantíssima a contribuição de alguns professores do
Departamento de História da UFMG. Além disso, a coordenação da Oficina utilizou
extensamente as mídias sociais, começando pela internet, com a criação do site e da
página na rede social Facebook5 e a maciça divulgação nesses meios, assim como a
utilização das mídias institucionais da Universidade Federal de Minas Gerais. Para
maximizar o alcance, era necessário simplificar o nome do projeto, buscando o
seu enraizamento entre o público alvo. Dessa forma, chegamos à nossa terceira e
última designação, Oficina de Paleografia — UFMG. A supressão do termo “per-
manente” refletiu a constatação de que a iniciativa havia extrapolado seus objetivos
e desafios iniciais, gerando mais confiança quanto à superação do antigo risco de
desintegração.
A respeito da explicitação do recorte linguístico-temporal da atuação da Oficina
(do termo genérico “paleografia”, contido na denominação do projeto, ao um pouco
mais específico “paleografia portuguesa moderna”, que passou a constar na descri-
ção da iniciativa tanto nos documentos de apresentação do projeto à universidade
e seus interlocutores como nos canais de comunicação com o público-alvo) cabe
ressaltar que ela é resultado de pelo menos 3 processos: (a) a consciência, cada
vez mais clara, da extensão do campo do conhecimento que pode ser denominado
Paleografia, em sua abrangência espaço-temporal e cultural, em seu caráter cien-
tífico e teórico-metodológico próprio e em seus múltiplos diálogos e interinfluên-
cias com os mais variados campos do saber humano; (b) a percepção cada vez
mais nítida da limitação da capacitação adquirida até então pelos coordenadores
(baseada, como discutiremos adiante, no autodidatismo) combinada a uma limita-
ção também da disponibilidade de tempo e materiais de estudo para acelerar essa
capacitação, o que levou a definir objetivos diferenciados para o curto, o médio e
o longo prazo e (c) a necessidade, diante do aumento e diversificação exponenciais
do público interessado, de recortar e explicitar melhor a atuação possível, dentro da
disponibilidade de materiais e capacitação da coordenação, no curto e médio prazo.
[25]
História e documentos6
Pensando a História como uma narrativa que se pretende ao real por uma repre-
sentação do acontecido, construída a partir de vestígios do passado7, consideramos
então que o “documento” — em uma perspectiva alargada — é fundamental na
produção dessa narrativa. A pesquisa documental fornece ao historiador elementos
imprescindíveis de fundamentação empírica necessários para que sua pesquisa seja
conduzida sem que se perca uma noção do real, separando, dessa forma, a História
da narrativa literária. Como nos diz Certeau8, muito além de uma narrativa, a ope-
ração historiográfica é também uma prática e uma instituição. O passado não é
um dado, mas um produto da História, que depende de uma prática, dos arquivos,
da documentação, da fabricação desses documentos e sua constante reorganização,
que, por sua vez, possui técnicas específicas e bem definidas.
Essa necessidade da prova, de uma ligação com o real, com o acontecido —
que, mesmo sendo um objetivo inalcançável, é um objetivo eterno — é suprida
pelos vestígios do tempo passado que chegaram ao presente. No entanto, é sabido
e muito discutido que se deve considerar todo documento como ao mesmo tempo
verdadeiro e falso: verdadeiro enquanto produto de uma época, falso enquanto por-
tador de uma intencionalidade que não pode ser deixada de lado. Segundo Carlo
Ginzburg, “os historiadores [...] têm como ofício alguma coisa que é parte da vida
de todos: destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício, que é a trama
do nosso estar no mundo”9.
[26]
[27]
13. Ver o ensaio de Renato Janine Ribeiro, “Lorenzo Valla e os inícios da análise de texto”in.: A
última razão dos reis: Ensaios sobre filosofia e política. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Retomando a questão da “doação de Constantino”, refutada por Lorenzo Valla, ver Carlo Ginzburg
em History, rhetoric, and proof. Lebanon: University Press of New England, 1999.
14. REIS, José Carlos. A história metódica dita positivista. In: História: entre a filosofia e a ciência. 3.
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 15-32.
15. Ocorre uma incorporação dos documentos não escritos, assim como os não oficiais no fazer
historiográfico, assim como uma mudança de enfoque do historiador que passa do fato ao contexto,
abrindo campos antes não explorados de análises e de objetos de estudo, assim como novas fontes
que incluem cartas, crônicas, literatura, entre outros, assim como a possibilidade de serialização das
fontes históricas. Ver em REIS, José Carlos. O programa (paradigma?) dos Analles ‘Face aos Eventos’
da História. In: ______. História: entre a filosofia e a ciência. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004,
p. 67-106.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente
[28]
16. GINZBURG, Carlo. Representar o inimigo — Sobre a pré-história francesa dos Protocolos. In:
______. O fio e os rastros: o verdadeiro, o falso e o fictício, p. 202.
17. GINZBURG, Carlo. Representar o inimigo, p. 202-6.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente
[29]
18. ARIÈS, Philippe. O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. p. 213.
19. LE GOFF, Jacques. História e Memória. p. 537.
20. Informações disponíveis em: <http://www.brepols.net/publishers/pdf/Brepolis_MGH_EN.pdf>.
Acesso em: 28 de abril de 2013.
21. GUIZOT, François. Rapports au Roi et pièces: Collection de documents inédits sur l’histoire
de France. Paris: Imprimerie Royale, 1835, p. 3-9. Disponível em: <http://archive.org/details/
collectiondedocu00franuoft>. Acesso em: 28 de abril de 2013..
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente
[30]
Outra coleção que não leva o nome de Monumenta, mas que também se norteia
pelo ideal de reunir uma ampla gama de documentos relativos a um período his-
tórico e a uma determinada região, foi publicada na Inglaterra entre 1858 e 1911.
Os 251 volumes das Chronicles and memorials of Great Britain and Ireland during
the Middle Ages (Crônicas e memoriais da Grã Bretanha e Irlanda durante a Idade
Média) são frutos do trabalho de arquivistas e historiadores reunidos no Public
Record Office. A obra acabou por extrapolar os limites temporais registrados no
título e divulgou documentos produzidos durante a Idade Moderna22.
Em Portugal, foi publicada a partir de 1856 a Portugaliae Monumenta Historica,
dirigida por Alexandre Herculano como representante da Academia das Ciências de
Lisboa. A obra seguiu o modelo da Monumenta Germaniae Historica, que foi a
grande referência para todos os empreendimentos semelhantes ao longo do século
XIX. Na apresentação, Herculano constatou que a preocupação em inventariar e
publicar documentos históricos era um esforço perceptível nos ambientes acadêmi-
cos de vários países da Europa na época. Ao demonstrar a importância desse tipo
de publicação, o organizador da coleção, com uma argumentação que lembra a de
Guizot, afirmou que todos os dias eram desenterrados do “pó das bibliothecas e
dos archivos monumentos desconhecidos”23. A visão do historiador como um cien-
tista que resgata das estantes do esquecimento vestígios do passado e estabelece sua
interpretação crítica de modo a modificar, corrigir ou confirmar versões historiográ-
ficas foi um elemento presente em quase todas as iniciativas que se dedicaram a levar
a cabo as Monumentae. O ponto de vista de Herculano serve ainda para confirmar
o quanto era comum o referencial que igualava os documentos aos monumentos.
A organização de Monumentae prosseguiu ao longo do século XX. A partir
de 1952 foi publicada em Lisboa por António Brásio a Monumenta Missionaria
Africana, conjunto de fontes considerado referencial para a pesquisa sobre a atua-
ção de missionários católicos nas possessões portuguesas na África entre os sécu-
los XV e XVIII. Apesar de se dedicar principalmente a assuntos religiosos, essa
Monumenta também possui transcrições de documentos administrativos, relatos de
viagem e correspondências24. Em 1960, por ocasião do quinto centenário de morte
22. SCHELLENBERG, Theodore R. Arquivos modernos: princípios e técnicas. 4. ed. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2004, p. 335-336.
23. COELHO, Maria Helena da Cruz. Alexandre Herculano: a história, os documentos e os arquivos
no século XIX. Revista Portuguesa de História, 42, Coimbra, 2011, p. 78-80. Disponível em:
<http://www.uc.pt/chsc/recursos/mhcc/mhcc_rph42.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2013. Toda a
trajetória que levou à publicação da Portugaliae Monumenta Historica, assim como o panorama
historiográfico da época em Portugal, são muito bem detalhados nesse artigo.
24. CORREIA, Stéphanie Caroline Boechat. O reino do Congo e os miseráveis do mar: O Congo, o
sonho e os holandeses no Atlântico (1600-1650). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente
[31]
[32]
27. O curso de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis foi criado como o primeiro
curso do Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais - Reuni na UFMG.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente
[33]
[34]
28. LIMA, Pablo L. O (Org.). Fontes e reflexões para o ensino de História indígena e afrobrasileira:
uma contribuição da área de História do PIBID/FAE/UFMG. Belo Horizonte: UFMG , p. 67.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente
[35]
uma leitura crítica e contextual. Para conseguir trabalhar esses aspectos foi sendo
desenvolvida uma metodologia, uma maneira mais ou menos estruturada para que,
no desenrolar dos semestres, os encontros semanais refletissem na prática os objeti-
vos supracitados.
A atual metodologia da Oficina consiste, em um primeiro momento, numa
breve exposição de introdução à paleografia, e mais especificamente à paleografia
utilizando documentos modernos em língua portuguesa, seguida de atividades ini-
ciais de transcrição. A partir de então, os encontros acontecem com a participação
de convidados, em sua maioria alunos e egressos do Programa de Pós-Graduação
em História da própria UFMG. Essa metodologia foi construída ao longo do tempo,
de acordo com os problemas e as soluções que surgiam e com as opiniões e suges-
tões dos participantes durante os semestres.
Os gabaritos dessas transcrições, quando necessário, são elaborados pela pró-
pria coordenação e disponibilizados no site para conferência pelos participantes.
[36]
da escrita e os arquétipos caligráficos, depois se passa para uma listagem das prin-
cipais dificuldades encontradas na leitura dos manuscritos, a apresentação das nor-
mas técnicas e então para exemplos práticos de documentos.
A obra de referência em todos esses matériais é certamente Noções de Paleografia
e de Diplomática29 de autoria de Ana Regina Berwanger e João Eurípedes Franklin
Leal, arquivista e historiador respectivamente, em sua terceira edição revista
e ampliada e publicada pela Editora da UFSM. O texto explora os conceitos de
paleografia e de diplomática, mostrando características dos documentos tanto na
forma quanto na técnica e nos materiais, tipos de escrita, de números e as dificul-
dades ao se lidar com manuscritos antigos. Há também as Normas Técnicas de
Transcrição e Edição de Documentos Manuscritos, conforme a reformulação feita
em 1993 durante o II Encontro Nacional de Normatização Paleográfica e de Ensino
de Paleografia, realizado em São Paulo. Por fim, apresentam-se alguns documen-
tos transcritos. Como não podia deixar de ser, tanto as aulas introdutórias como
as reflexões ao longo dos encontros da Oficina também se basearam fortemente
nesse manual, que em muito facilitou o processo de ensino-aprendizagem da leitura
paleográfica entre os participantes, melhorou a capacidade de leitura dos próprios
coordenadores a partir de um contato mais sistemático com as características dos
materiais, suportes e técnicas caligráficas e do desenho dos caracteres ao longo do
tempo e enriqueceu bastante as discussões. Considera-se, no entanto, que o incre-
mento do acervo de obras de referência é um obstáculo a ser superado pelo menos
no médio prazo.
Também a elucidação das normas técnicas constitui um momento de desafio.
Na experiência da Oficina, elas significam mais do que um simples modo de forma-
tação do texto transcrito: são compreendidas como um conjunto de diretrizes para
dotar ao máximo possível da lógica do texto manuscrito as informações transferidas
a um novo suporte. Embora seja notável a maior adequação das normas brasileiras
a esse propósito — uma vez que, ao contrário das portuguesas, elas determinam
que se sinalizem todas as interferências do transcritor, incluído aí, por exemplo, o
desenvolvimento de abreviações — não deixa de haver situações em que não se sabe
ao certo como formatar, na transcrição, uma peculiaridade daquele manuscrito. As
soluções encontradas nesse sentido são de natureza inventiva e provisória; embora
funcionem no contexto da Oficina, não podem ser empregadas formalmente sem o
risco de comprometimento da sua compreensão.
29. BERWANGER, Ana Regina e LEAL, João Eurípedes Franklin. Noções de paleografia e
de diplomática. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2008.
a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente
[37]
[38]
30. FEBVRE apud LIMA, Pablo L. O. (Coord.). Fontes e reflexões para o ensino de História indígena
e afrobrasileira, p. 62.
André Cabral Honor
Doutor em História pela UFMG e professor da Prefeitura Municipal de João Pessoa — PB
Não se enganem com o título deste ensaio. O objetivo principal não é adentrar
nas minúcias sobre a presença da Ordem de Nossa Senhora do Carmo nas capi-
tanias do norte do Estado do Brasil. A presente análise documental que envolve a
Ordem Carmelita na vila de Goiana em Pernambuco é apenas o pretexto usado para
alcançar um objetivo maior: demonstrar as potencialidades de Histórias que uma
peça documental pode fornecer ao pesquisador bem preparado.
Já conhecia o louvável empreendimento daqueles alunos em trabalhar e compar-
tilhar o conhecimento da transcrição paleográfica antes mesmo de ser gentilmente
convidado para palestrar na Oficina Permanente de Paleografia da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Uma iniciativa que se diferencia por ter sido ini-
ciada por alunos, para alunos. Assim como Dr. Jekyll e Mr. Hyde, eles próprios são
o criador e a criatura nesse exercício de circulação do saber acadêmico. Então, com
muita honra, e certo receio de não ser bom o suficiente, disse sim ao gentil convite.
A paleografia é parte intrínseca do leque de conhecimentos de um historiador
que se arrisca em estudar as desventuras da América portuguesa e do Império do
Brasil. Desconhecer os mecanismos de transcrição e decodificação da escrita cali-
gráfica antiga não inviabiliza uma pesquisa nessa área, mas definitivamente torna o
trabalho mais árduo, por vezes, desanimador. Uma palavra não compreendida ou
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas
[40]
[41]
[42]
4. No final do século XVII, os conventos carmelitas de Goiana, Cidade da Paraíba e Recife adotaram
a Reforma Turônica por meio da Constituição da Estrita Observância. O Convento de Olinda
permaneceu com a Constituição da Antiga Observância, atrelado ao Convento da Bahia que
tomaria da casa olindense o posto de cabeça da Província.
5. A partir desse ponto todas as citações documentais não referenciadas remetem ao documento
AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3164.
6. Sobre a querela entre o Marquês de Cascais e seus herdeiros com o reino português para reaver
a capitania após a expulsão dos holandeses ver: ANDRADE, Manuel Correia de. Itamaracá, uma
capitania frustrada. Coleção Tempo Municipal 20, Recife: Centro de Estudos de História e Cultura
Municipal — CEHM, 1999; BARBALHO, Luciana de Carvalho. Capitania de Itamaracá poder local
e conflito: Goiana e Nossa Senhora da Conceição (1685-1742). 126 f. Dissertação (Mestrado em
História) — Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2009. Captado em: <http://www.cchla.
ufpb.br/ppgh/2009_mest_luciana_barbalho.pdf>. Acesso em: 02 mar. 2012.
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas
[43]
Essa aferição é o pontapé inicial para pesquisas que busquem responder com maior
precisão como funcionava a relação entre donatários, administradores e coroa por-
tuguesa no século XVIII, já que José Fernandes peticiona diretamente ao rei sem
recorrer aos donatários.
No mesmo parágrafo, o capitão-mor denuncia que “Frey Miguel da Assunção e
Frey Manoel de São Gonçalo que há mais de 28 annos se perpetuaõ prelados alter-
nativamente neste convento do Carmo da Reforma desta Villa de goyanna residên-
cia dos capitoens mores della”. Uma questão interna como a alternância nos cargos
não deveria afligir o capitão. Mais desnecessário ainda seria levar isso ao rei, que só
interferia em questões internas dos regulares quando era extremamente necessário.
Todavia, o convento carmelita era o coração da vila de Goiana, abrigava o cofre da
capitania e servia de residência ao capitão-mor. Será que aqui temos uma tentativa
de isolar o governante da capitania do contato com a população, como ocorria com
os ouvidores no México7, para que o mesmo não pudesse ser influenciado pela elite
local? Uma pesquisa sobre essa questão é cabível. Sobre a reclamação do capitão, já
é possível vislumbrar motivos: a convivência diária com os religiosos no convento
não deveria ser amistosa e, provavelmente, o capitão não estava satisfeito em ter de
se submeter às regras estabelecidas pelo prior que regia a casa.
Para agravar a relação, Frei Miguel da Assunção era afeito a querelas políticas.
Em 1708 abrigou no convento os membros camaristas que estavam sendo persegui-
dos pelo capitão-mor de Pernambuco, Sebastião de Castro e Caldas8. Em retaliação
às atitudes do frade, em 1710 Castro e Caldas mandou retirar do Convento o cofre
da Capitania e instalou-o na vila de Nossa Senhora da Conceição, Ilha de Itamaracá.
Atitude tomada à revelia do monarca, o cofre foi devolvido ao Convento Carmelita
de Santo Alberto em Goiana por meio de uma ordem régia de 17139.
7. PARRY, John Horace. The spanish seaborne empire. Berkeley: University of California, 1990.
8. O polêmico governo de Sebastião Castro e Caldas à frente da Capitania de Pernambuco foi
responsável pelas chamadas “Sublevações em Pernambuco”, evento mais conhecido na historiografia
como “Guerra dos Mascates”. Sobre esse assunto ver: MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos
mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2003.
9. “Registro de hua carta de El Rey escripta ao provedor desta capitania aserqua de se restituir o
cofre das sobras dos sucidios ao convento de Goyana” — Ordens Régias — Registro de Ordens
Régias da Provedoria da Fazenda de Itamaracá nos anos de 1680-1760. Fl. 64. Encontrada em:
BARBALHO, Luciana de Carvalho. Capitania de Itamaracá poder local e conflito: Goiana e Nossa
Senhora da Conceição (1685-1742). 126 f. Dissertação (Mestrado em História) — Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, 2009, p. 83. Captado em: <http://www.cchla.ufpb.br/ppgh/2009_
mest_luciana_barbalho.pdf>. Acesso em: 2 mar. 2012.
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas
[44]
10. Portugal seria o reino cristão por excelência, pois teria sido fundado por meio de uma intervenção
divina durante a batalha de Ouriques, portanto, estaria fadado a levar o cristianismo aos quatro
cantos do mundo. Para saber mais sobre a formação do reino português e a intercessão do Anjo
Custódio de Portugal ver: PALACIN, Luís. Vieira e a visão trágica do Barroco. São Paulo: Hucitec,
1986. Para entender melhor a construção dessa ideia e de como serviu para interesses políticos na
formação de Portugal ver: BARBOZA FILHO, Rubem. Tradição e artifício: Iberismo e Barroco na
formação americana. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2000.
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas
[45]
Quem elaborou a defesa dos carmelitas foi o então prior do Convento de Goiana,
Frei Manoel de São Gonçalo. Rebateu um a um os argumentos do governador, e
ressaltou que tudo aquilo ocorria devido a inimizade declarada entre os carmelitas
e o vigário de Goiana, Manoel de Araújo Dadim. O religioso, possuidor do hábito
de São Pedro, era rendeiro dos reformados em um partido de cana no engenho
Mariuna desde 1714, com validade de dezesseis anos. Para Frei Manoel de São
Gonçalo, se as terras estavam abandonadas, a culpa era do vigário e não dos fra-
des13. Explicava também que o engenho Jacaré se encontrava arrendado ao tenente
e coronel Manoel Dias de Carvalho desde 1723 por vinte anos, mas que o abando-
nou devido à esterilidade, e por isso o prior designou um frade para viver naquele
local e cuidar do patrimônio, sendo mentira a afirmação de que foram vendidos os
cobres e que os moradores daquelas terras haviam fugido. Importante lembrar que
a venda dos cobres era considerada uma falta grave, nem tanto pelo valor das peças,
mas pelo seus formatos e tamanhos fundamentais para a fabricação de um açúcar
de qualidade. Essa tecnologia deveria ser protegida de estrangeiros que, caso apren-
dessem o funcionamento do maquinário, poderiam fazer concorrência ao açúcar da
América portuguesa, produzindo-o em outro lugar. Daí o problema que poderia ser
causado caso esse material fosse vendido a esmo.
Para manter seu projeto doutrinário na América, os carmelitas, assim como as
demais ordens religiosas, adentraram nos assuntos temporais estabelecendo ativida-
des que pudessem prover o sustento de suas casas conventuais, dentre as quais estava
11. O governador também reclamava do abandono de uma partida de cana no engenho Mariuna.
12. AHU_ACL_CU_015, Cx. 31, D. 2826.
13. O prior acusa o vigário de ter “conveniências” com o provedor da fazenda de Itamaracá, desafeto
declarado do Convento de Goiana devido à acusação que os frades lhe faziam de há mais de cinco
anos não pagar a ordinária devida a essa casa.
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas
[46]
[47]
perspectiva de uma longa duração, a resposta seria não, vários frades nascidos no
Brasil conseguiram altos cargos nas Províncias Carmelitas na América, entretanto,
não se descarta a possibilidade de que em determinados períodos houvesse maio-
res dificuldades para a ascensão desses mestiços, pois a obtenção de cargos era um
delicado jogo político que dependia das peças colocadas no tabuleiro, ou seja, da
influência que o religioso tivesse sobre seus demais irmãos.
Como se não bastassem essas acusações, o capitão-mor direcionou seu ataque à
honra dos frades que agiriam em oposição ao seus votos de celibato.
Sam tam escandalozos estes dous religiozos que o dito Frey Miguel
conserva nas suas terras do Acahu huma escrava do convento para
seos uzos mundanos donde continuamente asiste alem de outras mui-
tas que para esse effeito se guardão e padecem imquietaçoens pello
não consentirem impudicamente. Com o mesmo escadallo vive o dito
Frey Manoel de São Gonçalo pois tem nesta vila ajuntamento com
muitas molheres e filha de certa mulher cazada com Benedito Soares
natural do reyno de quem a apartou alem de outros ajuntamentos que
conservam vizinhos do seo convento: (...).
17. LE GOFF, Jacques. Prefácio. In: BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador.
Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 30. Com essa frase, Marc Bloch não prega
uma atitude de passividade do historiador perante os fatos, “Compreender, no entanto, nada tem
de uma atitude passividade. Para fazer uma ciência, será sempre preciso duas coisas: uma realidade,
mas também um homem. A realidade humana, como a do mundo físico, é enorme e variegada. (...)
Assim como todo cientista, como todo cérebro que, simplesmente, percebe, o historiador escolhe e
tria. Em uma palavra, analisa”. BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Trad.
André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 128.
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas
[48]
O que tentei fazer neste livro foi demonstrar que no mundo ibérico,
esfera cultural onde, devido às políticas oficias de intolerância, não
seria de se esperar tal tipo de ideia, era comum a dissidência em ques-
tões de fé, e de longa data existia uma atitude de tolerância, pelo
menos alguns elementos da população.18
18. SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico
ibérico. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras; Bauru: EDUSC, 2009, p. 365.
19. FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 51 ed. São Paulo: Global, 2010.
20. MONTEIRO, Lívia Nascimento. Distinção social nos trópicos: as eleições na câmara
de São João Del Rey em meados do século XVIII. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA DA
ANPUH — RIO, XXIII, 2008, Niteroi. Anais do XXIII Encontro de História da Anpuh — Rio.
Niteroi: ANPUH, 2008. Captado em: <http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/
A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas
[49]
Data
24 de setembro de 1726
Resumo
Carta do capitão-mor de Itamaracá, José Fernandes da Silva,
ao rei D. João V, sobre o procedimento dos freis Miguel da
Assunção e Manoel de São Gonçalo, do Convento do Carmo
Reformado da dita vila, contra alguns religiosos e contra o
ajudante de ordens Antônio Gonçalves Pereira. O dito capitão
se queixa das condutas dos freis, tanto morais quanto no que
se refere às interferências políticas na administração de Goiana.
O documento foi digitalizado a partir do microfilme e apresenta
muitas manchas e transferências de tinta.
1. Nota dos Transcritores: Esta transcrição, bem como todas as demais contidas nesta obra, foi
elaborada para utilização nos encontros semanais da Oficina de Paleografia — UFMG e está de
acordo com as Normas Técnicas para Transcrição e Edição de Documentos Manuscritos. Disponível
em: <http://www.arquivonacional.gov.br/Media/Transcreve.pdf>. Acesso em: 19 de agosto de 2014.
[fl. 1]
<Pernambuco 1 Senhor
24 setembro
1726>
<[ilegível: 2 linhas]
[3 sinais públicos]>
3. Nota dos Transcritores: Utiliza-se o grifo duplo quando o trecho está grifado
no original (critério nosso), e o grifo simples para indicar o desenvolvimento
de abreviaturas, como recomendam as Normas Técnicas.
4. Provavelmente corruptela de “advertir”.
5. Arrependimento na quarta sílaba.
[fl. 1v]
1 De 1726
Os Portugueses e os Mapas:
relações histórico-cartográficas
1. Ver em: CORTESÃO, Jaime. História da expansão portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa
da Moeda, 1993; RUSSELL-WOOD, A.J.R. Um mundo em movimento: os portugueses na África,
Ásia e América (1415-1808). Lisboa: Difel, 1992.
2. LESTER, Toby. A quarta parte do mundo. A corrida aos confins da Terra e a épica história do
mapa que deu nome à América. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.137.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas
[62]
3. A expansão do mundo europeu e suas transformações podem ser vistas nas obras: COWAN,
James. O sonho do cartógrafo. Meditações de Fra Mauro na corte de Veneza do século XVI. Rio
de Janeiro: Rocco, 1999. HARLEY, John & WOODWARD, David. (Orgs.) History of Cartography:
Cartography in Pre-historic, Ancient, and Medieval Europe and Mediterranean; JACOB, Christian.
The Sovereign Map: theoretical approaches in cartography throughout history; LESTER, Toby. A
quarta parte do mundo. A corrida aos confins da Terra e a épica história do mapa que deu nome à
América; LESTRINGANT, Frank. A oficina do cosmógrafo ou a imagem do mundo no Renascimento.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
4. LESTER, Toby. A quarta parte do mundo, p. 150-168.
5. KLINGHOFFER, Arthur J. The power of projections: how maps reflect global politics and history.
Westport, Conn.: Preager Publischers, 2006, p.55.
6. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O início da expansão ultramarina (século XV). In: RAMOS, Rui
(coord.), VASCONCELOS E SOUSA, Bernardo e MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História de Portugal.
4ªed. Lisboa: Círculo de Leitores, 2010, p. 172-196.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas
[63]
This knowledge that one could travel around Africa to Asia was secu-
red from the Muslims by the Venetian cartographer Fra Mauro of
San Michele, who had been hired by Afonso V of Portugal to produce
a world map. Fra Mauro’s 1459 work, submitted to the Portuguese
crown, depicted the sea passage to Asia and a rather accurate shape
for Africa. Portugal therefore has a distinct advantage over Spain,
which did not possess this information7.
[64]
10. MARQUES, Alfredo Pinheiro. Origem e desenvolvimento da cartografia portuguesa na época dos
descobrimentos. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987.
11. Pedro Nunes (1502-1578) foi matemático, cosmógrafo-mor e professor da Universidade de
Coimbra. Como homem de gabinete, traduziu alguns textos clássicos da época como O Tratado
da Esfera, de Sacrobosco e o livro primeiro da Geografia de Ptolomeu. Também publicou obras
originais como o Tratado de Certas Dúvidas de Navegação (1547), e o Tratado em Defensão da Carta
de Marear (1539).
12. Luís Serrão Pimentel (1613-1679) ocupou os cargos de Cosmógrafo-mor (1644) e de Engenheiro-
mor do reino (1671). No contexto da Guerra da Restauração da independência portuguesa
trabalhou nas obras de fortificação das praças-fortes de Évora, Estremoz, Mourão, Portalegre, entre
outras no Alentejo. A partir de 1647, foi professor da “Aula da Matemática” ou Aula de Fortificação
e Arquitetura Militar na Ribeira das Naus, onde lecionou Matemática, Navegação e Arquitetura
militar. Considerado uma das figuras mais importantes do meio técnico português do século XVII,
foi autor da obra Methodo Lusitanico de Desenhar as fortificaçoens das Praças Regulares e Irregulares
(1680).
13. Manuel Pimentel (1650-1719), graduado em Direito Civil e Canônico pela Universidade de
Coimbra, foi cosmógrafo-mor e autor de Arte de Navegar (1712). Ver em: FERREIRA, Nuno A.
M. Luís Serrão Pimentel (1612-1679). Cosmógrafo mor e Engenheiro mor de Portugal. Lisboa:
Universidade de Lisboa, 2009. (Dissertação em História)
14. Segundo Armando Cortesão, os Reineis foram a primeira família importante de cartógrafos
de Portugal, Pedro Reinel e seu filho Jorge construíram várias cartas onde registraram os avanços
científicos dos portugueses no além-mar. Juntamente como a família Homem, formada por Lopo
Homem, e seus filhos André e Diogo, foram os principais cartógrafos portugueses do século XVI.
Os Albernaz formam uma importante família de cartógrafos que produziu diversos mapas e atlas ao
longo do século XVII. João Teixeira Albernaz I era filho do cartógrafo Luís Teixeira, a ele é atribuído
o atlas Razão do Estado do Brasil datado de 1616 que tem várias cópias feitas em anos posteriores. Seu
irmão Pedro Teixeira optou pela carreira na Espanha. João Albernaz II era neto de Albernaz I, ficou
conhecido pelas atualizações que fez no Atlas do Brasil, mas principalmente pelo seu Atlas da África
de 1665. Uma de suas cartas foi utilizada pelos diplomatas portugueses durante a Conferência de
Badajoz (1681). Ver em: CORTESÃO, Armando. Cartografia portuguesa antiga. Lisboa: Comissão
Executiva das Comemorações do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960 e ___.
Cartografia e cartógrafos portugueses dos séculos XV e XVI. Lisboa: Edição da Seara Nova, 1935;
CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos velhos mapas. Rio de Janeiro: Ministério das Relações
Exteriores, Instituto Rio Branco. 1965-1971.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas
[65]
15. PEDLEY, Mary S. The commerce of cartography, p. 19-98; ALPERS, Svetlana. A arte de descrever:
a arte holandesa do século XVII. São Paulo: Edusp, 1999, p. 241-318.
16. Entre os mitos geográficos mais famosos e duradouros do Brasil, está o mito da Ilha-Brasil
que esteve diretamente ligado com a definição das fronteiras entre Espanha e Portugal na América.
CORTESÃO, J. História do Brasil nos velhos mapas, p.115-160; HOLANDA, Sérgio B. Um mito
geopolítico: a Ilha Brasil. In: Tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 61-84;
KANTOR, Iris. Usos diplomáticos da Ilha-Brasil: polêmicas cartográficas e historiográficas. In:
Varia História: Belo Horizonte. v.23. n.37. p. 70-80, 2007.
17. FURTADO, Júnia F. Oráculos da Geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste
Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil, p. 152.
18. MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste (1641-
1669). São Paulo: Cia. das Letras, 2010; BOXER, C. Salvador Correa de Sá e a luta por Angola, 1602-
1686. São Paulo: Cia. Editora Nacional, Editora da Universidade de São Paulo, 1973; MONTEIRO,
Nuno Gonçalo. A Guerra no império. In: RAMOS, Rui (coord.), SOUSA, Bernardo e V. e
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História de Portugal, p. 316-322.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas
[66]
o geógrafo francês, Delisle, publicou sobre a posição dos meridianos, que interferiu
diretamente no posicionamento das conquistas portuguesas e espanholas19. Vejamos.
As notícias das descobertas de ouro, por volta de 1696, e dos diamantes, em
1729, foram recebidas com alívio e, ao mesmo tempo, apreensão no reino20. Todavia
marcaram a ascensão de Portugal na Europa pela opulência e pelo fausto das rique-
zas coloniais.
19. Cf. FURTADO, Júnia F. Paris 1720-1740. In: Oráculos da Geografia iluminista: Dom Luís da
Cunha e Jean Baptiste Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil, p. 301-351.
20. ROMEIRO, Adriana. O negócio das Minas. In: Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias,
práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, p. 35-80, esp.
30-39.
21. FURTADO, Júnia F. Chica da Silva e o contratador dos diamantes, p.28.
22. FURTADO, Júnia F. O paraíso e seus mitos. In: O mapa que inventou o Brasil. São Paulo/Rio de
Janeiro: Odebrecht/Versal, 2013, p.244-285; DELVAUX, Marcelo Motta. As Minas imaginárias: o
maravilhoso geográfico nas representações sobre o sertão da América Portuguesa — séculos XVI a
XIX, p. 71-132.
23. ALMEIDA, L.F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América portuguesa,
p.80.
24. GUEDES, Max Justo. Os limites territoriais do Brasil a norte e nordeste. In: ALBUQUERQUE,
Luis de (org.). In: Portugal no mundo. Lisboa: Publicações Alfa, 1989, v.5, p. 202-22.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas
[67]
25. Ver em: ALMEIDA, L. F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América
portuguesa, p. 47-66; FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista: dom Luís da Cunha e
Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil, p. 239-504.
26. FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista, p. 241.
27. Guillaume Delisle (1675-1726) foi um renomado cartógrafo francês, além de membro da
Academia Real de Ciências de Paris, foi escolhido como Primeiro Geógrafo do Rei em 1718. Era
um típico geógrafo de gabinete que contava com o mecenato real para a produção de seus mapas.
DAWSON, Nelson Martin. L’atelier Delisle: l’Amérique du nord sur la table à dessin. Sillery, Quèbec:
Editions du Septentrion, 2000; PELLETIER, Monique. Cartographie de la France et du monde de la
Renaissance au siècle des lumiéres. Paris: Bibliotèque Nationale de France, 2001.
28. Ver em: FURTADO, J. Oráculos da geografia iluminista, p. 304-311.
29. DELISLE, M. Determination geographique de la situation et de l’etendue des diferentes parties
de la terre. Des Sciences. Paris: Academie des Sciences de Paris, 1722. p. 365-384.
30. FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista, p. 304.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas
[68]
portuguesas pelo globo, pois, assim como o Mares Liberum, de Hugo Grotius
(1609), o trabalho de Delisle jogava por terra os limites impostos pelo Tratado de
Tordesilhas ao avanço das demais potências europeias em direção às suas colônias.
Diante dos fatos, Dom Luís da Cunha ressaltou a importância de concentrar esfor-
ços no desenvolvimento científico da cartografia em Portugal e no levantamento da
geografia do Brasil, e defendeu que era essencial fazer “observações astronômicas
recentes, uma vez que sem elas não era possível contestar a opinião de um geógrafo
consagrado como Delisle”31.
Diante de todos esses fatores, Dom João V deu início a uma verdadeira febre
cartográfica, já que a produção de mapas tornou-se prioridade para a manutenção
do Império português32. No reino, Manoel de Azevedo Fortes33, engenheiro-mor, foi
o grande responsável pela reforma e incentivo ao ensino da engenharia-militar.
Em outra frente de trabalho, Dom João V foi buscar na Itália dois estudiosos
jesuítas. Seu objetivo era que eles trabalhassem, em conjunto com jesuítas portu-
gueses, no projeto do Novo Atlas da América portuguesa35. Assim os padres João
31. ALMEIDA, L. F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América portuguesa,
p. 68.
32. BUENO, Beatriz P. S. Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822), p.
101-37.
33. Manuel de Azevedo Fortes (1660-1749) teve sólida formação letrada e entrou em contato com
os tratados de matemática e engenharia que circulavam pela Europa, levou esse conhecimento para
Portugal onde teve importante atuação. Publicou os manuais: Tratado do modo o mais fácil e o mais
exacto de fazer as cartas geográficas assim na terra como no mar, e tirar as plantas das praças (1722)
e o Engenheiro português (1729) e iniciou o projeto de construção da grande carta topográfica de
Portugal. Ver em: BUENO, Beatriz P. S. Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares
(1500-1822), p. 101-37; RIBEIRO, Dulcyene Maria. A formação dos engenheiros militares: Azevedo
Fortes, Matemática e ensino da Engenharia Militar no século XVIII em Portugal e no Brasil. São
Paulo: USP, 2009. (Tese, doutoramento em Educação).
34. BUENO, Beatriz P. Decifrando mapas: sobre o conceito de ‘território’ e suas vinculações com a
cartografia, p. 207.
35. ALMEIDA, L. F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América portuguesa,
p. 73-142; BUENO, Beatriz P. S. Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822),
p. 311-17; COSTA, Antônio G. (Org.), RENGER, Friedrich E. FURTADO, Júnia F. SANTOS, Márcia
M D. Cartografia das Minas Gerais: da capitania à província, p. 139-45.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas
[69]
36. João Baptista Carbone (1694-1750). Entrou para a Companhia de Jesus em 1709 onde teve sólida
formação letrada. Natural da Itália veio para Portugal em 1722, onde permaneceu até sua morte.
Realizou diversos trabalhos de observação, foi nomeado matemático régio, reitor do Colégio de
Santo Antão e conselheiro de Dom João V.
37. Domingos Capassi (1694-1736). Entrou para a companhia de Jesus em 1710, atuou como
professor em Nápoles, sua terra natal, e veio para Portugal junto com Carbone. Foi enviado para a
missão no Brasil em 1729, ao lado do padre português Diogo Soares.
38. Sobre a biblioteca de Dom João V ver em: FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista,
p.211-238 e FURTADO, Júnia F. Bosque de Minerva. In: O mapa que inventou o Brasil, p. 94-130.
39. FURTADO, Júnia F. O mapa que inventou o Brasil, p. 96.
40. ______. O mapa que inventou o Brasil, p. 105-19.
41. ______. Oráculos da geografia iluminista, p. 211-2.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas
[70]
Em 1729, Domingos Capassi partiu para o Brasil com Diogo Soares42. Os dois
deveriam seguir as vastas instruções do Rei43, que também foram encaminhadas ao
vice-rei do Brasil, Vasco Fernandes César de Meneses, com o objetivo de repassá-las
aos governadores das Capitanias. Na chegada ao Rio de Janeiro, o primeiro traba-
lho foi o de medição do meridiano do Rio de Janeiro, que serviu de base para todos
os mapas construídos a seguir. Com os insistentes pedidos dos governadores do Rio
de Janeiro e da Colônia do Sacramento, os padres se dirigiram para o extremo Sul
do Brasil, onde fizeram diversas cartas e plantas de fortificações militares com o
intuito de fornecer dados para guarnições militares da região. Dali seguiram para
outra Capitania crítica, as Minas Gerais, onde fizeram medições e mapas principal-
mente do eixo minerador44. Capassi morreu de febres malignas, em 1736. Soares,
sozinho, continuou na hercúlea tarefa até falecer, em 1748, na Capitania de Goiás.
42. Diogo Soares (1684-1748), jesuíta, foi professor de Humanidades e Filosofia na Universidade de
Évora e de matemática no Colégio de Santo Antão.
43. O decreto de nomeação dos padres de 19 de outubro de 1729 e a provisão real com as instruções,
de 18 de novembro de 1729 foram publicados por Jaime Cortesão em História do Brasil nos
Velhos Mapas, tomo II, p.213-216. Segundo Luís Ferrand de Almeida estes documentos estão,
respectivamente, no AHU, Docs. Avulsos, Bahia, 1729 e em AHU, Docs. Avulsos, Rio de Janeiro,
1729.
44. COSTA, Antônio G. (org.), RENGER, Friedrich E. FURTADO, Júnia F. SANTOS, Márcia M D.
Cartografia da conquista do território das Minas, p. 139-45.
45. ALMEIDA, L. F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América portuguesa,
p. 104.
Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas
[71]
fossem retratos fiéis e fidedignos da realidade. Dessa forma, poderiam ser utilizados
pelo Estado como instrumentos diretos, norteando sua ação.
Durante o século XVIII, a geografia de gabinete passou a depender cada vez
mais dos levantamentos topográficos realizados pelos engenheiros-militares, basea-
dos em novas técnicas e instrumentos matemáticos mais precisos. A partir da
segunda metade desse século, a geografia de gabinete entrou em decadência com
a crescente importância dos mapas construídos a partir de medições topográficas
in loco. O conhecimento de campo ocupava, lentamente, o lugar do conhecimento
do gabinete46.
[72]
Os presos, os carcereiros e as
péssimas condições da cadeia
velha de Vila Rica (1734)
1. REIS, Liana Maria. Crimes e escravos na capitania de todos os negros (Minas Gerais, 1720 -1800).
São Paulo: Editora HUCITEC, 2008. p. 99.
Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da cadeia velha de Vila Rica (1734)
[74]
punição pela justiça divina. Portanto, a função primeira do monarca era a aplicação
Justiça, sendo ela equivalente à manutenção da ordem, o conhecimento e reconheci-
mento do justo de cada situação,
2. XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer” — Razões da política no Portugal
seiscentista. Lisboa: Edições Colibri, 1998. p. 124.
3. As Ordenações Filipinas são divididas em cinco livros, sendo o último deles (Livro V) totalmente
dedicado ao direito penal. Ele vigorou na América Portuguesa e posteriormente no Brasil entre
1603 e 1830 sendo o que teve menor duração de todos os cinco por ser considerado “bárbaro” e
“monstruoso”.
4. MOTTA, Manuel Barros da. Crítica da Razão Punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 14.
5. LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: Livro V. São Paulo, SP: Companhia Das Letras,
1999, p. 21.
Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da cadeia velha de Vila Rica (1734)
[75]
havia gente viva em Portugal6. Portanto, o cumprimento à risca dessas leis poderia
gerar diversos problemas, desde questões de viabilização da execução até possíveis
revoltas contra os excessos reais. Além do esvaziamento populacional pelas mortes
e degredos, a incapacitação das mãos trabalhadoras, afinal, era aos peões que se
destinavam às penas mais cruéis, ao mesmo tempo, também eram eles indispensá-
veis em uma sociedade em que o trabalho manual era desonroso. A pena de degredo
ainda acarretava em possíveis meses de espera por uma embarcação que fosse ao
destino desejado, ficando o condenado nas geralmente precárias cadeias7.
É possível considerar, então, que o rei consistia em um dispensador de uma
justiça virtual, muito mais do que da justiça quotidiana, esta última baseava-se em
mecanismos mais periféricos: família, Igreja, pequena comunidade — o que não
retira a importância e nem esvazia a centralidade do rei. Era preciso agir na tênue
linha do reconhecimento do seu poder pela força, mas também por sua magnanimi-
dade. “À justiça real bastava intervir o suficiente para ser lembrar a todos que, lá no
alto, meio adormecida, mas sempre latente, estava a suprema punitiva potestas do
rei”8. Como aquele que deve manter a ordem na casa, castigar e afagar, ser temido
e amado, senhor da justiça e mediador da graça, o monarca aproxima-se ao papel
do pai.
Portanto, leis tão severas e punições tão “bárbaras” e “monstruosas”, como
eram descritas por alguns, faziam parte de um sistema equilibrado em que, como
afirma Hespanha:
[76]
10. O trabalho forçado também era conhecido como pena de galés. As galés eram uma embarcação
muito utilizada no Mediterrâneo desde a Antiguidade Clássica, utilizadas em Portugal entre os
séculos XIII e XVII. Eram embarcações a remo, que, normalmente, utilizavam criminosos
como remadores. Mesmo após entrarem em desuso, o nome da pena para trabalho forçado
(independentemente do trabalho, geralmente trabalhos para o setor públicos) se manteve como
“galé”. Também era a denominação dos condenados a essa pena.
11. SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de
Janeiro: Graal, 1986. p. 118.
12. APM CMOP Cx. 07 Doc. 05.
13. Trechos de documentos transcritos neste texto seguem as Normas Técnicas para Edição e
Transcrição de Documentos Manuscritos (1993).
Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da cadeia velha de Vila Rica (1734)
[77]
14. Lembrando que estavam nas cadeias homens de diversos grupos (de escravos a clérigos),
entretanto a maioria esmagadora era de homens pobres, sobretudo negros.
15. REIS, Liana. Crimes e escravos. p. 100-101.
16. APM CMOP Cx. 07 Doc. 25.
Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da cadeia velha de Vila Rica (1734)
[78]
17. ARAÚJO, Carlos Eduardo M. de. Entre dois cativeiros: Escravidão urbana e sistema prisional
no Rio de Janeiro, 1790 — 1821. In: MAIA, Clarissa Nunes. NETO, Flávio de Sá. COSTA, Marcos.
BRETAS, Marcos Luiz. (org.). História das prisões no Brasil. Vol.1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p.
226.
18. APM CMOP Cx. 06 Doc. 06.
Documento
Requerimento de José da Silva solicitando liberdade. Disponível
no Arquivo Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de
Ouro Preto, CMOP Cx. 06 Doc. 06
Data
23 de janeiro de 1734
Resumo
Requerimento de José da Silva solicitando liberdade, pois alega
estar sendo injustiçado, pois atesta ser inocente e não tem
quem o sustente na cadeia. Documento digitalizado a partir do
microfilme. A caligrafia é tendencialmente humanística, com
pouca ou nenhuma presença de enlaces e ligaduras e existem
pouquíssimas abreviaturas.
[fl. 1]
Data
31 de julho de 1734
Resumo
Representação da Câmara de Villa Rica informando a
dificuldade em conseguir carcereiros, devido a fuga de presos e
a falta de segurança da cadeia. Documento digitalizado a partir
do microfilme, com pequenas perdas no suporte. A caligrafia é
tendencialmente humanística, com pouca ou nenhuma presença
de enlaces e ligaduras e existem pouquíssimas abreviaturas.
[fl.1]
Data
31 de setembro de 1734.
Resumo
Petição do carcereiro da cadeia de Vila Rica, João Correia
Madris, ao Governador, Conde das Galveias, para que
nomeio um médico para prestar assistência aos presos.
Documento digitalizado a partir do microfilme. A caligrafia é
tendencialmente humanística, com pouca ou nenhuma presença
de enlaces e ligaduras e existem pouquíssimas abreviaturas.
[fl.1]
9 [5 sinais públicos]
Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva
Mestre em História pela UFMG
[94]
3. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na
América Portuguesa. Tese (Doutorado em História) São Paulo: FFLCH-USP, 1999, p. 148.
4. MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII,
p. 13-14.
5. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura:, p. 149.
6. ______. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura, p. 154.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino
[95]
seus domínios. Além disso, a substituição do modelo tríplice buscou coibir, de forma
definitiva, a circulação de obras de autoria de jesuítas no reino português. De acordo
com Maria Adelaide Salvador Marques, a lei que funda a Real Mesa Censória apre-
sentou uma série de razões para a secularização da censura. A principal delas diz
respeito à ineficácia do modelo tripartido. A autora também destaca a importância
de se convencer a elite culta — profundamente influenciada pelo estrangeiro e pelas
ideias esclarecidas. Para esse grupo, a criação da Real Mesa representou a moderni-
zação da cultura, que aproximaria Portugal dos países do centro da Europa7.
De fato, a lei de 5 de abril de 1768 traz uma série de motivos para a redefinição
da censura em Portugal. A princípio, o documento defende o direito do monarca
de controlar a censura de livros, indo ao encontro das teorias regalistas preconi-
zadas pelo reformismo pombalino. O texto revela também o caráter anti-jesuítico
do pombalismo, ao afirmar que os membros da Companhia de Jesus “conseguiram
com as suas costumadas intrigas confundirem a inspeção de Livros, e Papeis entre o
Ordinario, entre o Santo Officio, e entre a Meza do Desembargo do Paço”. Segundo
a lei, os inacianos também impediram a circulação de obras de “famosos ilumina-
dos, e pios Auctores”, que foram substituídas por “Livros perniciosos” escritos pelos
próprios jesuítas. Outro argumento — e talvez o principal deles — para a criação da
Real Mesa é a impotência da censura compartilhada por três tribunais. A nomeação
de “censores externos” para exame dos livros é a prova final do não funcionamento
do modelo vigente até então, pois mostraria o despreparo dos censores e falta de
critérios nas decisões tomadas pela censura tríplice. Por fim, o documento trata
das críticas feitas pelas “Naçõens mais polidas, e cultas da Europa” ao Tribunal da
Inquisição. Esse ponto revela a vontade de alinhar Portugal com os países europeus
mais modernos8. Nas palavras de Maria Adelaide:
Vê-se que a lei [de 5 de abril], apesar das considerações iniciais acerca
da Autoridade Régia e a separação da Igreja, apresenta como verda-
deiros motivos para a remodelação da Censura o pouco rigor com
que esta era praticada, por motivo da separação em três tribunais:
visava igualmente à quebra da patente influência jesuítica, prejudicial
ao desenvolvimento cultural do país e contrária à boa “impressão”
que as outras Nações poderiam ter de Portugal. Foram assim apresen-
tadas razões essencialmente culturais e em parte religiosas.9
7. MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a cultura nacional. Coimbra:
Universidade de Coimbra, [s. d.], p. 24-29.
8. BASTOS, José Timóteo da Silva. História da Censura Intelectual em Portugal: ensaio sobre a
compressão do pensamento português. Lisboa: Moraes Editores, 1983. p. 69-72.
9. MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a cultura nacional, p. 24-25.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino
[96]
10. SILVA, Antônio Delgado da. Colleção da Legislaçao Portugueza: Legislação de 1763 a 1774.
Lisboa: Typografia Maigrense, 1829, p. 161.
11. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura, p. 155.
12. ABREU, Márcia. A liberdade e o erro. Fênix (UFU. Online), v. 6, 2009, p. 2.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino
[97]
13. MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a cultura nacional, p. 27-28.
14. SILVA, Antônio Delgado da. Colleção da Legislaçao Portugueza, p. 162.
15. ABREU, Márcia. O controle à publicação de livros nos séculos XVIII e XIX: uma outra visão da
censura. Revista Fênix, Uberlândia, v. 4, n. 4, p. 2-3, dez. 2007, p. 3.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino
[98]
Assim, a análise criteriosa feita pelos deputados favoreceria a decisão dos mes-
mos a respeito da circulação das obras examinadas.
De um modo geral, as decisões dos deputados da Real Mesa dividiam-se em três
diferentes tipos: algumas obras eram totalmente proibidas, outras eram liberadas e,
em alguns casos, os censores sugeriam a supressão ou alteração de alguns trechos
do livro para que pudessem circular. Para se ler uma obra proibida pela Real Mesa
Censória, era necessário portar uma licença autorizando a leitura. Antes da censura
pombalina, as licenças para posse e leitura de livros proibidos eram obtidas por
meio de breves apostólicos emitidos pela Santa Sé. Com a renovação do órgão de
censura português, esses breves perderam a validade, e as licenças passaram a ser
concedidas pela Real Mesa17. Assim, a concessão de licenças se tornou outro ponto
de disputa entre a Igreja e a monarquia. Em defesa dos interesses da coroa, o regi-
mento da Real Mesa põe fim ao uso dos breves romanos, colocando nas mãos do
órgão a jurisdição sobre a concessão das licenças:
[99]
No caso dos breves já emitidos, era necessário que passassem pelo crivo da Real
Mesa Censória para que tivessem validade. O regimento recomenda ainda que a
concessão e inspeção das licenças fossem feitas com moderação e cautela, “infor-
mando-se primeiro das qualidades das pessoas, que as pedem; e facultando somente
ás doutas, e prudentes, e em quem cesse moralmente todo o receio de perigo”. É
importante salientar que essas autorizações distinguiam a posse e a leitura de livros:
algumas pessoas estariam autorizadas a possuir e ler obras proibidas, enquanto
outras obtinham licença apenas para ler livros defesos. A grande preocupação, no
que diz respeito à posse, está na possibilidade de que essas obras circulassem por
um público muito mais amplo. Por essa razão, os mercadores de livros, livreiros e
impressores que detivessem a referida licença, deveriam manter as obras proibidas
fechadas em estantes com chave e, caso infringissem essa condição, poderiam perder
a autorização da Real Mesa19. Dessa forma, as licenças eram concedidas somente a
um público muito pequeno, mas, ainda assim, criavam uma brecha nos critérios da
censura para proibição de livros, facilitando, em certa medida, a difusão clandestina
de obras proibidas.
Além da censura prévia dos livros a serem publicados e/ou postos em circulação
e da emissão de licenças para leitura de livros proibidos, outras funções foram dadas
aos deputados da Real Mesa Censória. Os funcionários do órgão também eram
responsáveis por inspecionar bibliotecas públicas e privadas, oficinas de imprensa
e armazéns, bem como os mercadores de livros, livreiros e impressores do reino. A
fim de realizarem essas tarefas, os deputados poderiam visitar esses estabelecimen-
tos e realizar buscas para impedir a venda, impressão ou posse de livros suspeitos.
A partir de 1771, o órgão passou a se responsabilizar também pela administração
e direção dos estudos menores em Portugal e seus domínios20. Com essa medida, a
Real Mesa se tornou o principal braço do Estado no que se refere às reformas edu-
cacionais, atuando não só no controle dos livros e, consequentemente, das ideias
em circulação, mas também na formação dos súditos portugueses. Por essa razão,
faz-se necessário pensar a censura para além de sua função repressiva. Mais do que
coibir a circulação de livros proibidos, a Real Mesa procurou promover uma men-
talidade afinada com o espírito reformista.
[100]
21. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura, p. 190.
22. O parecer foi coletado pelo professor Luiz Carlos Villalta, a quem agradecemos muitíssimo, e
transcrito pela autora.
23. TAVARES, Rui. Antônio Pereira de Figueiredo: o ideólogo. Capítulo de obra não publicada, s/d.,
p. 33.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino
[101]
[102]
Pelo que e por tudo o mais que tenho até aqui apontado, concluo que
todas as Obras de Mr. de Voltaire se devem prohibir, mais ainda que
as de Lutero ou Calvino, por serem uma Colleção de tudo quanto
ha de impio e blasfemo nos Autores heterodoxos mais atrevidos e
mais detestaveis: e por ser a sua liçao tanto mais perigoza, quanto he
maior a hypocrisia com que elle a cada passo se estâ inculcando por
26. O tolerantismo ou defesa da tolerância religiosa foi tido durante o século XVIII como heresia
teológica. De acordo com Stuart Schwartz: “apesar da pressão sistemática e da definição da tolerância
como heresia teológica e calamidade política existia uma antiga herança de liberdade de consciência
e relativismo religioso que extraía sua força de diferentes fontes: as ideias católicas sobre a caridade
e a lei natural, e também a indiferença religiosa que brotava da dúvida intrínseca às visões céticas
e materialistas” in: SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no
mundo atlântico ibérico. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
A censura literária em Portugal no Período Pombalino
[103]
A decisão de Antônio Pereira mostra que, se houve uma faceta ilustrada na cen-
sura pombalina, ela certamente não esteve alinhada com as ideias defendidas por
Voltaire. No entanto, há um ponto do parecer que nos chama a atenção. Trata-se de
um dos trechos da obra de Voltaire, transcrito pelo parecerista, no qual ele critica a
monarquia portuguesa:
Portugal por isso mesmo que ainda não recebeo as luzes que fazem
brilhar outros muitos Estados da Europa, vive mais sogeito ao Papa
que outro algum Estado. Não permitte a El Rey fazer condenar à
morte pelos seus juizes hum regular parricida, porque lhe falta o con-
sentimento de Roma. Os outros Povos estao do seculo decimo sep-
timo: mas Portugal parece estar no duodécimo [grifos nossos].28
Data
12 de junho de 1770
Resumo
Censura de autores libertinos e obras consideradas obscenas
por Antonio Pereira de Figueiredo, membro da Real Mesa
Censória.
[fl .1]
1 de bom espirito.
<5.º>
23 L’Espion Turc, que eu ha pou-
24 co tempo Censurei.
[fl .2]
1 Juizo e observaçoens de
2 Antonio Pereira de Figueiredo, sob[r]e
3 os Authores Libertinos ou
4 Livros obscenos, que devem ser
5 Condenados pelo Edital desta
6 Real Meza Censoria.
[118]
O caminho das intenções, das leis e dos meandros jurídicos mostrava-se tor-
tuoso, ainda em meados da década de 1870, não apenas para os leigos. As leis, arti-
gos, parágrafos, decretos e avisos tinham por objetivo final estabelecer uma ordem
naquele que era considerado o “mais difícil problema” da segunda metade do século
XIX, o fim gradual do trabalho escravo, sem que o caos econômico ou social se
estabelecesse no país.
A orientação acima, encaminhada ao Senhor Juiz Municipal e de Órfãos do
Termo de Mariana, ganha luz ao ser inserida na lógica da “Ordem” ou, melhor
dizendo, da “Razão de Estado”2. Facilitar o acesso à justiça “das partes” interessadas
1. Arquivo Público Mineiro (APM), Secretaria de Governo (SG), 150, p. 160. Grifos do documento.
A transcrição dos documentos respeita a gramática e a pontuação original e atualiza a ortografia.
2. Segundo Silvia H. Lara, em uma sociedade onde todos possuíam, em diferentes graus, direitos
e privilégios, mas também deveres e obrigações, a finalidade do monarca era garantir a harmonia
entre esses diferentes poderes e assim alcançar o bem comum. A vontade do monarca, porém,
era limitada pela doutrina jurídica que privilegiava o bem comum e por diversas práticas e usos
jurídicos locais e senhoriais. LARA, Silvia Hunold. Senhores da régia jurisdição: o particular e o
público na Vila de São Salvador dos Campos dos Goitacazes na segunda metade do século XVIII.
In: LARA, Sílvia H. & MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (Orgs.). Direitos e justiças no Brasil.
São Paulo: Editora UNICAMP, 2006. p. 60. A nosso ver, a diferença fundamental entre a noção
de “Bem Comum” e “Razão de Estado” residiria exatamente na construção de um aparato jurídico
que eliminasse os costumes e os localismos, mesmo que isso significasse transformá-los em direito
positivo. Para o Brasil da segunda metade do século XIX, essa racionalização dos costumes e a
eliminação dos localismos pode ser considerada fundamental no processo de construção de um
Estado centralizador. Segundo BOBBIO, Norberto. et al. Dicionário de política. Brasília: Editora
Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. Vol.2. p. 1067, a Razão de
Estado aparece atrelada ao próprio desenvolvimento de momentos cruciais na história do Estado
moderno na Europa como a progressiva concentração do poder, ou seja o monopólio da força
física na autoridade suprema do Estado, que o subtrai às autoridades feudais, nobreza e livres
comuns. Tal monopólio da força “permitiu à autoridade suprema do Estado impor coercivamente
à população que lhe estava sujeita as regras indispensáveis à convivência pacífica, isto é, permitiu-
lhe impor um ordenamento jurídico, universalmente válido e eficaz dentro do Estado, que obstasse
a que as controvérsias entre os súditos fossem decididas pela mera lei da força”. O Estado visava
assim, à progressiva interiorização de suas normas, à rejeição da violência privada na tutela dos
próprios interesses, e o progresso econômico tornado possível com a certeza do direito. No caso
do encaminhamento da questão escrava no Brasil, as “Razões de Estado” permearam as discussões
políticas e foram utilizadas tanto pelos políticos defensores de uma reforma imediata da escravidão,
encarada como problema de Estado, colocando o mundo privado da escravidão sob o domínio da
lei, como pelos seus opositores, que acreditavam que a interferência exagerada do Estado provocaria
a própria desordem. As “Razões de Estado” seriam definidas pela tranquilidade e segurança pública
do país e o reconhecimento da importância econômica da propriedade escravista. PENA, Eduardo
Spiller. Pajens da Casa Imperial. Campinas: Editora Unicamp, 2005. p. 271-272.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888
[119]
3. Apesar das variações territoriais sofridas pelo Termo de Mariana entre 1850-1888, em função da
criação ou da transferência de Freguesias que a ele pertenciam originalmente para outros Termos,
no decorrer do período, algumas localidades permaneceram vinculadas à sede municipal ao longo
dos anos referidos, a saber: Nossa Senhora da Assunção de Mariana, sede do município, Nossa
Senhora da Conceição de Camargos, Nossa Senhora de Nazareth do Inficcionado, Nossa Senhora
do Rosário do Sumidouro, Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do Brumado, São Caetano do
Ribeirão Abaixo, Senhor Bom Jesus do Monte do Furquim, Nossa Senhora da Saúde, Nossa Senhora
do Rosário de Paulo Moreira, São José da Barra Longa e o distrito de Passagem de Mariana.
4. Daqui para frente: ACSM.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888
[120]
ACSM, assim como pela definição das autoridades da época que as diferenciavam
das demais ações que envolviam escravos, mas que não se referiam à “sagrada causa
da liberdade”5.
As ações cíveis envolvendo escravos, excluídas as “de liberdade”, versavam sobre
as disputas senhoriais em partilhas de inventário, solicitação à justiça de devolução
de escravo preso (por fuga ou por crime, cuja pena já havia sido cumprida), recurso
para troca de depositários6 (seja por senhores ou por escravos) ou para a efetivação
do depósito (de pecúlio de escravos ou do próprio escravo), cobranças de quarta-
mento, trocas ou devoluções de escravos entre senhores por questões de partilhas ou
transações comerciais, protestos contra a atuação do Fundo de Emancipação, entre
outros. Nessas ações o escravo tem uma participação passiva já que, na maioria dos
casos, o próprio senhor é o demandante. Nos autos de liberdade, ao contrário, o
escravo assume papel ativo, sendo o responsável pelo início do processo.
Este corpo documental presta-se aqui como um rico informante das relações
escravistas em sua dinâmica cotidiana, e, principalmente, em seu aspecto externa-
lizado, ou seja, os arranjos rompidos, de forma violenta ou não, e tornados públi-
cos através das demandas judiciais. Ao dar visibilidade aos desarranjos da socie-
dade escravista, indiretamente, estes autos judiciais trazem também à visibilidade
os mandos e os desmandos na aplicação da justiça e da lei, e o impacto das leis
relacionadas à escravidão pós 1850. Embora muitos destes processos, como vere-
mos adiante, não apresentem a sentença conclusiva, acreditamos que tal fator não
5. Em função da periodização determinada para este trabalho, não foi feita uma comparação entre
o número de ações cíveis envolvendo escravos e ações cíveis envolvendo apenas livres. O número
de ações cíveis, somente para o IIº Ofício do ACSM, corresponde a 20.000 processos. Os dados de
RODRIGUES, Tiago de Godoy. Sentença de uma vida: escravos nos tribunais de Mariana (1830-
1840). Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura) — Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004. p. 81, referentes somente à
década de 1830, são um indicativo do volume de ações cíveis de “livres”, o autor aponta a existência
de 492 processos contra 40 processos envolvendo escravos (7,5% dos processos). Optamos por não
calcular a relação entre as ações e o número da população escrava. Se analisado desta forma, o
peso quantitativo das ações torna-se pouco significativo. Acreditamos que vislumbrar a evolução do
número de ações durante todo o período torne a exploração quantitativa e qualitativa deste corpo
documental mais pertinente à proposta deste trabalho de analisar os impactos do aparato jurídico
relativo à escravidão, da segunda metade dos oitocentos, nas relações escravistas e na justiça como
uma ampliação do espaço de negociação, entre os senhores e os seus cativos, para além do âmbito
da casa.
6. Depositário: designa a pessoa a quem se entrega ou a quem se confia alguma coisa em depósito.
Pelo contrato, o depositário assume a obrigação de conservar a coisa com a devida diligência, para
o que será reembolsado das despesas necessárias tidas, e a restituição tão logo lhe seja exigida, sob
pena de ser requerida, pelo depositante, sua prisão (...). Entretanto, casos há em que o depositário
se investe no direito de reter a coisa depositada, tais sejam, se há embargo sobre ela, se há suspeita
de ter sido furtada, ou se tem direito a indenizações por despesas ou prejuízos. SILVA, De Plácido e.
Vocabulário jurídico. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P. 37. II vol.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888
[121]
7. Curador: derivado do latim curator, de curare, possui o sentido etimológico de indicar a pessoa
que cuida, que cura ou que trata de pessoa estranha e de seus negócios. Na técnica jurídica, outra não
é sua acepção, desde que é tido para designar a pessoa a quem é dada a comissão ou o encargo com
os poderes de vigiar (cuidar, tratar, administrar) os interesses de outra pessoa, que tal não pode fazer
por si mesma. A autoridade do curador, ou seja, os poderes de administração que lhe são conferidos,
em virtude dos quais se apresenta como mandatário ou representante do incapaz, encontram-se
outorgados na própria lei, em que também se inscrevem os casos sujeitos à curatela. O curador se
difere do tutor, visto que pode ser dado aos próprios maiores, desde que declarados interditos, aos
não nascidos (nascituros), e referir-se somente à administração dos bens dos curatelados, enquanto
o tutor é nomeado para representante legal do menor, durante a menoridade. Curador legítimo:
assim se designa a pessoa, que, por lei, é indicada como o curador natural do interdito. SILVA, De
Plácido e. Vocabulário jurídico. p. 593. I vol.
8. O libelo civil constitui a dedução articulada constante do pedido do autor, para que se inicie
a ação ou se promova a demanda. Em matéria penal, constitui a exposição articulada do fato ou
fatos criminosos, narrados circunstancialmente, para que se evidenciem os elementos especiais da
composição da figura delituosa, com a indicação do agente ou agentes a quem são imputados e o
pedido de sua condenação, na forma da regra instituída a lei. ______. Vocabulário jurídico. p. 83.
III vol.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888
[122]
[123]
Fonte: Ações de Liberdade Iº e IIº Ofícios — ACSM — 1850-1888. *AL=Ações de Liberdade. **AC=Ações Cíveis
envolvendo escravos. Excluídas as ações de liberdade.
11. GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 109
12. O Decreto Nº 2342 de 6 de Agosto de 1873, criou mais sete Relações no Império em função do
crescimento populacional de algumas províncias e, consequentemente, para diminuir o número de
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888
[124]
para a década de 1880, conforme indicado no Quadro 1, não atribuímos esta queda
a uma possível descrença, por parte dos escravos, nas soluções legais.
Fatores como o Art. 32 §3 do decreto 5.135 da Regulamentação de 187213, que
favorecia a classificação de escravos não envolvidos em demandas pela liberdade,
a regularização do pecúlio escravo como meio legítimo de obtenção da alforria14,
e, posteriormente, a permissão para a liberalidade direta de terceiros para a obten-
ção da alforria15, certamente contribuíram para que a liberdade fosse alcançada
por outros trajetos legais, distintos das ações de liberdade. A evolução das senten-
ças obtidas pelos demandantes das ações cíveis envolvendo escravos demonstram
alguns dos aspectos colocados acima. Vejamos o gráfico que se segue.
Fonte: Ações Cíveis envolvendo escravos Iº e IIº Ofícios — ACSM — 1850-1888. Não foram contabilizados os processos
inconclusos ou incompletos. *A partir de 1873 as apelações foram direcionadas para o Tribunal da Relação de Ouro Preto.
**Incluem os acertos de alforria onerada e de aceitação de proposta do Fundo de Emancipação após 1872. ***Tratam
basicamente de processos que envolviam disputas entre senhores.
processos que chegavam ao Rio de Janeiro. Coleção das leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1831, 1850, 1871, 1872, 1885.
13. O Artigo 32º, § 3º, estabelecia que “O escravo que estiver litigando pela sua liberdade, não será
contemplado na execução do artigo 42; mas ser-lhes-há mantida a preferência, que entretanto
tiver adquirido até a decisão do pleito”. O Artigo 42 do mesmo Decreto era referente à liberdade
dos escravos classificados pelo Fundo de Emancipação. Ou seja, o escravo demandante de ação
de liberdade contra seu senhor não teria direito aos benefícios estabelecidos pelos critérios
de classificação para alforria, definidos pelo Fundo de Emancipação. Não descartamos aqui a
possibilidade de outras vias, para além do caminho jurídico ou dos acordos pessoais, na busca
pela liberdade. As fugas, os assassinatos, entre outros recursos, perpassaram as relações entre
senhores e seus cativos durante toda a vigência da instituição escravista. Contudo, esses embates
não constituem objeto deste estudo.
14. Lei de 28 de setembro de 1871, Art. 4º § 1 e 2. Leis do Império, 1871.
15. Lei de 28 de setembro de 1885, Art. 3º § 9. MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os
anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp,
1999. p. 413.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888
[125]
16. Segundo o parágrafo 9º, artigo 3º da Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885, conhecida como
Lei dos Sexagenários: “É permitida a liberalidade direta de terceiros para a alforria do escravo, uma
vez que exiba preço deste”. Ou seja, a “intervenção” de terceiros, certamente possibilitou que as redes
sociais fossem mobilizadas pelos cativos em prol da obtenção da liberdade. Leis do Império, 1885.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888
[126]
No mesmo ano, Dona Anna Maria Benedita de Macedo demanda contra a Junta.
Sua escrava Delfina e dois filhos menores, Marcelino, cativo, e Paulino, nascidos de
ventre livre, haviam sido preteridos em favor de Leonor, outra de suas escravas,
porém solteira. Segundo a proprietária, havia muitos outros escravos classificados
indevidamente pela Junta “(...) só por que manifestava pecúlio (...)”18. Ainda em
1877, João Damasceno Correia, tutor dos filhos órfãos do falecido Francisco de
Paula e Silva e de sua mulher, reclama a não classificação da escrava Josepha e seu
filho Raymundo com mais ou menos oito anos e um outro, ingênuo, encontrando-
-se retirar: a ela grávida. Segundo o tutor, Josepha e seu filho possuíam, cada um,
pecúlio de 50$000 réis.
Tais denúncias e reclamações trazem em si uma dubiedade inerente. Quais os
interesses realmente defendidos? Dos cativos? Dos senhores? Afinal, ao se recla-
mar contra as incongruências da Junta de Classificação, o benefício da liberdade a
ser obtida torna-se também o benefício da indenização. As relações entre a Junta
Classificatória e os senhores teriam sido pautadas não apenas pelas definições legais
para a classificação dos cativos, mas também pelas redes de relações pessoais acio-
nadas e os interesses financeiros do Fundo de Emancipação. Seriam estes aspectos
os responsáveis pela emergência dos conflitos relatados acima.
Afinal, para o Fundo, libertar Leonora, possuidora de pecúlio, era mais vanta-
joso, em função da indenização a ser paga pela própria escrava, que libertar Delfina,
sem pecúlio registrado. Para Dona Anna Maria, certamente a liberdade indenizada
de uma escrava e de seu filho menor garantia, pelo menos em parte, o retorno de
seus investimentos antes que a possibilidade da abolição se concretizasse. Somado
a isso, escravas que não mais “produziam” filhos escravos — após a Lei do Ventre
Livre em 1871 — certamente diminuíram o interesse senhorial em mantê-las sob
cativeiro. Fato é que, mesmo quando as insatisfações com o Fundo eram manifesta-
das, os arbitramentos para preço de escravo eram acordados.
No caso da escrava Adriana e de sua filha Maria, ambas pertencentes a Joaquim
Martins da Silva, o Coletor aceitou pagar o valor determinado pelo senhor, “por
17. APM, SG, 152. Para que a ação de libertação dos escravos fosse realizada através do Fundo de
Emancipação, deveria ser constituída uma Junta Classificadora, que funcionaria localmente, e daria
conta do controle dos cativos que seriam libertados. A composição dessa Junta variava, podendo
ser encontradas autoridades civis e militares. De maneira geral, pelos documentos encontrados,
o número de componentes era de duas pessoas, sendo na maior parte das vezes, formada pelo
Promotor Público e pelo Coletor Estadual.
18. ACSM, ação cível, códice 389, auto 8497, ano 1877, Iº Ofício.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888
[127]
tê-las visto e julgar razoável o preço pedido”19. Os acertos entre Joaquim Martins da
Silva e o Fundo incluíram ainda a cessão, por parte deste, em benefício das escravas,
da quantia de trezentos e cinquenta mil réis, logo, receberia por indenização um
conto quatrocentos e cinquenta mil réis. Aparentemente sem incidentes que justifi-
cassem o arbitramento da justiça, a insatisfação senhorial acabava por se revelar em
sua afirmação de que “(...) se não fora para a liberdade, não as vendia [mãe e filha]
por preço algum (...)”20.
Assim as histórias de Dona Anna Maria Benedita de Macedo e Joaquim Martins
da Silva convergem para o mesmo ponto, a mediação do Estado, via aparato jurí-
dico, nas relações escravistas. Jogar dentro das novas regras e beneficiar-se destas
era um novo aprendizado para ambos os lados. Vale ressaltar ainda que, para a
década de 1880, os acertos com o Fundo de Emancipação foram predominantes.
Os acordos entre senhores e escravos corresponderam a 83,3% dos firmados via o
Fundo. Os outros 16,6 % foram fruto da compra de alforria pelo próprio escravo.
A alforria por terceiros, por sua vez, em nossa amostragem, aparece relacio-
nada às relações familiares e às relações sociais. As relações sociais com certeza
possibilitaram que a Irmã Martha Laverssiere [sic], Madre Superiora do Colégio da
Providência da cidade de Mariana, tivesse sucesso na ação de liberdade movida em
favor da escrava Catharina, de menor idade, pertencente a D. Maria Francisca do
Carmo. A Superiora do referido Colégio amealhou, por meio da doação de pessoas
“(...) desta Cidade a benefício da liberdade daquela menor, afim de ter ela uma edu-
cação mais conveniente para a sociedade e que como escrava não pode ter (...)”21,
não apenas os 300$000 réis iniciais, como os 500$000 réis necessários para o fecha-
mento do acordo com a senhora da escrava e a consequente alforria.
A evolução das sentenças aponta nitidamente o crescimento das sentenças de
liberdade, principalmente a partir de 1870, conforme dito acima22. Embora os acor-
dos constituam também sentença de liberdade, afinal foram arbitrados em juízo,
optamos por separar os resultados com o intuito de apontar as demandas envol-
19. ACSM, ação cível, códice 446, auto 9637, ano 1877, Iº Ofício.
20. ACSM, ação cível, códice 446, auto 9637, ano 1877, Iº Ofício.
21. ACSM, ação de liberdade, códice 316, auto 7557, ano 1881, IIº Ofício. Curiosamente, a ação
transcorre em 1881, período anterior à Lei dos Sexagenários de 1885 que regulamentou a alforria
por terceiros.
22. Mesmo considerando a impossibilidade de conhecer o resultado final de todas as ações
componentes de nosso corpo documental, os números do GRÁFICO 1 apontam uma tendência
que, acreditamos, manter-se-ia se as demandas incompletas ou inconclusas, hipoteticamente,
apresentassem sentença final. Essa classificação foi feita por serem autos sem finalização, ou por
terem sido enviados ao juiz para avaliação e sentença ou por estar faltando parte do documento, e
não pelo abandono do processo pelos contendores.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888
[128]
23. De acordo com os dados de MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, Século XIX: tráfico
e apego à escravidão numa economia não-exportadora. In: Estudos Econômicos, São Paulo, v. 13,
n. 1, jan.-abr. 1983. p. 203, o Fundo de Emancipação teria sido responsável pela liberdade de 629
escravos na província de Minas Gerais, no período de 1875 a 1880. Segue-se a distribuição, por
região, dos escravos libertados: Metalúrgica 167, Mata 165, Sul 157 e Outras Regiões 140. Para
Mariana e seu Termo, o corpo documental analisado aponta uma recorrência maior ao Fundo de
Emancipação para a década de 1880.
24. Para o mesmo período, décadas de 1870 e 1880, as sentenças de não liberdade corresponderiam
a 7,6% e 6,6% respectivamente. Os cálculos foram feitos a partir da somatória das sentenças por
década, excluídos os processos classificados como Inconclusos ou Incompletos.
Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888
[129]
Data
15 a 25 de maio de 1883
Resumo
Em maio de 1883, Antonio Avelar, africano, estava preso por
ordem de seu senhor, Affonso Augusto de Oliveira. Intenta-se
uma ação de liberdade argumentando não poder ser ele escravo
por ter sido importado posteriormente à lei de 1831, que
extinguiu o tráfico atlântico. Pelo que se pode depreender dos
trechos, no decorrer do processo se alega que a sua verdadeira
idade é 56 anos, e não 35, como informado no termo de
abertura. Durante o interrogatório, Antonio fala de sua família
na África, da travessia do Atlântico e dos sucessivos senhores
por que teria passado até aquela data. Informa também,
estando o seu senhor presente no interrogatório, reconhecer ser
escravo e nunca ter requerido a pessoa alguma que requisitasse
sua liberdade.
[fl. 1]
1 1883
2 Autor
5 Reo
7 Accaõ de Liberdade
21 A rogo do Supplicante
22 José Francisco do Couto
<Juro suspeição, aprezente a quem competir.
Marianna 16 de Maio de 1883.
Godoÿ>1
Americano>
1. Mudança na tinta.
[...]
[fl. 5]
1 Auto de Interrogatorio
1. “Moços”.
[fl.7v]
24 Perguntado
25 se o Navio em que vinhaõ naõ foi perseguido
26 no alto mâr ou mesmo a Costa por alguma
27 embarcaçaõ estrangeira. Respondeo que nunca
28 foraõ perceguido por embarcacaõ alguma.
29 Sendo assim como disse qual a razaõ que prezu
30 me ter a dizer que ê livre por ser Affricano?
31 Respondeo que nunca disse coiza nenhuma por
12 Americano.
13 Manoel Bazilio do Espirito Santo
14 O Curador Joaquim da Silva Braga Breyner
15 Antonio Ferreira Ermelindo
16 Affonso Augusto de Oliveira
18 Vista
26 Ao dito Curador
Carlos de Oliveira Malaquias 1
Doutor em História pela UFMG
Os processos-crimes: uma
janela para o cotidiano do
trabalho em Minas Gerais na
primeira metade do séc. XIX
O uso de processos criminais como fontes para a História não é nenhuma novi-
dade. No âmbito acadêmico brasileiro, podemos encontrar estudos que se valem
desse corpus, pelos menos, desde a década de 19602. Desde então, os processos-
-crimes serviram para estudos sobre a criminalidade, a manutenção da ordem e o
funcionamento do aparato judicial. Mais recentemente, a leitura cuidadosa desses
documentos tem revelado detalhes importantes sobre as sociabilidades dos grupos
subalternos, permitindo recuperar o cotidiano de escravos, pobres e trabalhadores3.
1. O autor deseja registrar seu agradecimento à Oficina de Paleografia - UFMG pelo convite para a
conferência que originou este artigo, em especial reconhecer a dedicação de Mateus Frizzone e a
paciência de Fabiana Léo.
2. As referências seminais são FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem
escravocrata. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, originalmente defendido como tese
em 1964 e publicado em 1969; FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo: DIFEL,
1977 e FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: A Criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo:
Editora Brasiliense, 1984.
3. Sem a pretensão de esgotar os exemplos, uma pequena lista trabalhos de referência no uso
desta documentação incluiria CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos
trabalhadores no Rio de Janeiro na Belle Epoque. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986; MACHADO,
Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888.
São Paulo: Brasiliense, 1987 e da mesma autora MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico:
movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editoria da UFRJ/ Editora
da Universidade de São Paulo, 1994; MATTOS, Hebe M. Das Cores do Silêncio. Os significados
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX
[146]
da liberdade no sudeste escravista (Brasil, séc. XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995;
WISSENBACH, Maria Cristina C. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São
Paulo, 1850-1880. São Paulo: Hucitec, 1998.
4. Dois trabalhos fundamentais para entender como a escravidão constituía-se em uma relação de
dominação baseada no poder pessoal do senhor sobre o escravos são LARA, Sílvia Hunold. Campos
da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750 — 1808. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1988; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na Corte (7ª. impressão: 2009). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
5. RODARTE, Mario Marcos Sampaio. O trabalho do fogo: domicílios ou famílias do passado - Minas
Gerais, 1830. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012 é uma referência atual que recupera os sentidos
múltiplos dos domicílios do passado. A obra discute a principal bibliografia que trata do tema.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX
[147]
dos sujeitos históricos sobre o trabalho que de outra forma restariam insondáveis
ou só tangenciadas por outras fontes documentais.
As fontes que apresentamos neste artigo são dois excertos de processos-crimes
abertos na antiga Comarca do Rio das Mortes da Província de Minas Gerais na
primeira metade do século XIX. No primeiro fragmento, apresentamos a queixa
que fez Ana Joaquina de Faria contra o assédio, invasão e furto praticados por um
vizinho; no segundo, discutimos o depoimento prestado por Jacinta Maria de Jesus
sobre o assassinato da escrava Felicidade cabra6. Os processos-crimes eram maiores
e mais informativos do que estes excertos. Nossa seleção visa oferecer uma amostra
das diferentes partes constitutivas dessa fonte que é, na verdade, um maço de docu-
mentos gerados por vários atos jurídicos, cada um com regras próprias para sua
construção. Para entender em que momento dos processos cada um desses excertos
aparece e que interesses presidem a sua feitura, convém atentar para alguns aspectos
da produção desses documentos.
A estrutura do documento
6. Arquivo do Escritório Técnico II, Iphan, 13ª Superintendência, São João del Rei (MG). Processos
Crimes. PC.28-05 e PC.04-09.
7. Lei do Império de 29 de novembro de 1832 - Promulga o Código do Processo Criminal de
primeira instancia com disposição provisória acerca da administração da Justiça Civil. Coleção
das Leis do Brasil. 1832. V. 1, p. 186. Captado em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/
lim-29-11-1832.htm. Acesso em 01 nov. 2013. Lei Nº 261, de 3 de dezembro de 1841. Reforma do
Codigo do Processo Criminal. Coleção das Leis do Brasil. 1841. V. 1, p. 75. Captado em https://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM261.htm. Acesso em 01 nov. 2013.
8. Uma explicação didática e sintética da estrutura desses documentos pode ser vista em FERREIRA,
Ricardo Alexandre. Senhores de poucos escravos: cativeiro e criminalidade num ambiente rural, 1830
— 1888. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p.25-26.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX
[148]
[149]
[150]
13. Como no processo dos escravos envolvidos na Revolta de Carrancas ocorrida em Minas Gerais
em 1833 conforme ANDRADE, Marcos Ferreira. Elites regionais e a formação do estado imperial
brasileiro - Minas Gerais - Campanha da Princesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008. Ou
dos sete cativos que mataram seu senhor em Campos em 1871. PIROLA, Ricardo F. Escravos e
rebeldes nos tribunais do Império: assassinatos de senhores em Campos dos Goytacazes (1873).
In: VI Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2013, Florianópolis. Anais do VI
Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Florianópolis: Universidade Federal de
Santa Catarina, 2013. v. 1. pp. 1-14.
14. Uma referência útil para quem manipula documentação jurídica é GINZBURG, Carlo. “O
inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações”. In: ______. A micro-história
e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991, pp.203-14. Ver também a discussão proposta por
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX
[151]
15. FIGUEIREDO, Luciano R. A. Barrocas Famílias: vida familiar em Minas colonial. São Paulo:
HUCITEC, 1997. RAMOS, Donald. A mulher e a família em Vila Rica do Ouro Preto: 1754 — 1838.
In: Congresso sobre a História da População na América Latina, 1989, Ouro Preto. Anais... São
Paulo: Fundação SEADE, 1990. Ver também SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a
família: São Paulo, século XIX. São Paulo: Editora Marco Zero/Secretaria do Estado da Cultura de
São Paulo, 1989.
16. RODARTE, Mário M. S. O trabalho do fogo, p.183, tabela 24.
17. ______. O trabalho do fogo, pp. 181-224.
18. GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista
brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio.
19. Segundo o levantamento realizado por Douglas Libby, até 85% das mulheres livres e 55% das
escravas ocupavam-se de atividades têxteis, seja a produção de fios, a tecelagem ou a confecção.
LIBBY, Douglas C. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século
XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.200, figura 20 e p.202. Conforme Bergad, os tecidos de algodão
foram muito significativos na pauta das exportações mineiras durante a primeira metade do século
XIX, alcançando um auge de 2,37 milhões de varas (ou 6,18 milhões de metros) exportadas em 1828.
BERGAD, Laird. Escravidão e história econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-1888. Bauru:
EDUSC, 2004, p.93, tabela 2.3.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX
[152]
20. Sobre aspectos da violência nas relações de gênero, ver DIAS, Maria Odila. Quotidiano e poder.
São Paulo: Brasiliense, 1984.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX
[153]
[154]
aparentemente, tinha boas relações com o mesmo. Felicidade cabra era escrava do
alferes, tinha apenas 13 anos e foi mandada à casa de Joaquim para aprender a fiar
com sua mulher. Novamente a fiação, uma ocupação feminina, aparece como ativi-
dade nos domicílios dos pequenos produtores. E dos grandes também, pois o alferes
Antônio de Miranda Magro desejava que Felicidade aprendesse o ofício e, logica-
mente, trabalhasse para ele. Enquanto a escrava era treinada, Joaquim e sua mulher
poderiam valer-se do seu trabalho, possivelmente para ajuda doméstica. No entanto,
esse casal ou não carecia de traquejo para administrar disciplina a um escravo ou
era um caso de sadismo. Em uma surra extrema acabaram matando a jovem escrava.
Os acusados tentaram desincumbir-se da responsabilidade noticiando a morte ao
senhor da escrava e justificando que ela estava doente. Mas as marcas de pancadas
denunciavam um destino diferente e o exame de corpo de delito, bem como todos
os depoimentos acusavam o espancamento de Felicidade cabra pelo casal Joaquim
Luiz e Margarida de tal.
O depoimento que selecionamos é de Jacinta Maria de Jesus, uma mulher parda
e solteira que esteve em contato com a vítima pouco antes do seu passamento.
Jacinta e sua irmã, ambas fiandeiras, foram chamadas a fiar em casa de Águida
Maria de Jesus, uma vizinha “íntima de porta” dos réus. Além disso, Jacinta devia
dinheiro a Joaquim Luiz procedente da compra de umas peneiras e, por isso, entrou
na casa do mesmo e presenciou a agonia de Felicidade cabra.
O breve relato de Jacinta Maria traz à cena um sentido comunitário que se
engendrava em torno da atividade de fiação. É muito provável que ela e sua irmã se
dirigissem à casa de Águida, outra mulher solteira que vivia do artesanato, para aju-
dar numa época de muito algodão para fiar, ou auxiliar na entrega de uma grande
encomenda, certamente contando que quando precisasse poderia contar com seme-
lhante auxílio. O registro desse tipo de trabalho extra-domiciliar e colaborativo não
é frequente, embora acredite-se que ele fosse comum. Na obra pioneira de Maria
Sylvia de Carvalho Franco os mutirões aparecem como momentos privilegiados de
extravasamento de tensões. Os penosos trabalhos na construção ou colheita eram,
muitas vezes, recompensados com álcool e à embriaguez seguia-se a violência25. No
nosso caso, o depoimento de Jacinta Maria sugere a existência de relações de soli-
dariedade que ultrapassavam os limites do domicílio e da família e ajudavam a
sustentar a vida de mulheres solteiras no mundo rural oitocentista.
O trivial pagamento das peneiras, por sua vez, aponta para o comércio e as rela-
ções de crédito no âmbito rural. Deve-se recordar que Joaquim Luiz era um agregado
do alferes Antônio Magro, informação contida em outra parte do processo-crime. A
25. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata, p.31-33.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX
[155]
Considerações Finais
26. SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira, Trabalho Livre e Cotidiano. Itu, 1780-1830. São
Paulo: Edusp, 2005, p.108; MOTTA, Márcia Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito de terra e
direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura: Arquivo Público do Estado
do Rio de Janeiro, 1998, ver capítulo 02; BACELLAR, Carlos A. P. Agregados em casa, agregados
na roça: uma discussão. In: Maria Beatriz Nizza da Silva. (Org.). Sexualidade, família e religião na
colonização do Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 2001, pp.187-199.
Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX
[156]
casas, a gestação do sustento era obra feminina. Como ambos os excertos revelam,
a fiação era uma atividade essencialmente feminina, praticada em várias unidades
domésticas e capaz de gerar renda.
Os processos-crimes são fontes importantes para desvendar a atuação pública
das mulheres. Afastadas da política, consideradas dependentes do chefe do fogo, as
mulheres teriam, na visão dominante, sua ação reservada ao âmbito doméstico27.
Mas as muitas chefes de fogo solteiras, várias delas descendentes de escravas ou
ex-escravas, desafiavam essas concepções. Muitas delas se valiam da fiação e do
trabalho em tecidos para viver sobre si, fora da órbita da autoridade de um homem.
Longe do poder de um esposo ou pai, as mulheres, no entanto, ficavam à mercê
da violência de outros homens. No entanto, redes de solidariedade nos pequenos
arraiais semi-rurais poderiam fornecer amparo e ajuda e o acesso à Justiça no século
XIX franqueou outro campo de defesa aos grupos subordinados.
Vale lembrar que a autoridade do chefe do fogo se estendia sobre todos os mora-
dores do domicílio, assim livres como escravos. Uma das expressões desse domínio
era a aplicação de castigos. No que se refere à situação dos escravos, os castigos
físicos visavam punir um desvio e prevenir uma novo erro28. O espancamento de
Felicidade cabra e sua consequente morte foi um sinal do exercício desmesurado de
poder de um chefe de fogo que não era senhor de Felicidade, mas usava a força para
garantir a disciplina da cativa.
Casos como os trazidos pelas fontes em apreço destacam a centralidade do
trabalho no universo das relações sociais nas Minas Oitocentistas. Os excertos aqui
discutidos, no entanto, demonstram que a reprodução da existência não estava “des-
colada” das demais dimensões da vida. Pelo contrário, os processos-crimes mostram
os laços sutis entre diferentes campos do fazer. Sua leitura cuidadosa é uma janela
para o cotidiano mineiro do passado.
27. Como na França do século XVIII, as mulheres tomavam parte da vida econômica das cidades,
embora estivessem afastadas dos conselhos ou assembleias. DAVIS, Natalie Zenon. Cultura dos
povos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 67-68.
28. LARA, Silvia H. Campos da violência, p.96.
Documento
Trechos do processo-crime de Joaquim Luís do Nascimento
e Antônio de Miranda Magro. Disponível no Arquivo do
Escritório Técnico II, Iphan, 13ª Superintendência, São João
del Rei. PC 28-05, 1835
Data
6 de maio de 1835
Resumo
A testemunha Jacinta Maria de Jesus relata que a escrava
Felicidade estava havia pouco tempo na casa de Joaquim Luís
do Nascimento e sua mulher para aprender a fiar. Aos 6 de
abril de 1835, Jacinta ouvira gemidos vindos de dentro da casa
de Joaquim Luís do Nascimento, e ao procurar saber o que
ocorrera os donos da casa alegaram que a jovem Felicidade
estava doente. No dia seguinte, constatou-se que a escravinha
estava com muitos ferimentos, provavelmente por ter sido
espancada, e veio a falecer.
[...]
[fl. 8v]
1 Aos seis dias do més de Maio de mil
2 Oitocentos e trinta e Cinco, neste Curato de Saõ
3 Francisco da Onça Termo da Villa de São João d-
4 El Rey, em Cazas de Rezidencia de Joaquim Alves
5 Moreira, honde foi vindo o Forriel Jozé Ferrei
6 ra Baptista, Iuis de Pás, Suplente deste mesmo Cu-
7 rato e Commigo Escrivão do Seu Cargo Vim para
8 efeito de serem Inquiridas as ttestemunhas que
9 por parte da Devaça foraô notificadas na pre-
10 zente devaça dos quais Seus ditos digo nomes, e
11 pronomes, idade naturalidades, estados, mo-
12 radias Viveres, ditos e Custumes hé o que adi-
13 ante SeSegue de que para Constar faço este
14 Termo de ASentada e eu Joze Moreira da
15 Costa Escrivão que oesCrevi.
Data
1843
Resumo
Queixa de Ana Joaquina de Faria sobre a destruição de roupas,
móveis, pertences e outros bens de sua casa, no distrito do
Bichinho, por José Antônio Marcelhas. Segundo a queixante,
o dito destruiu seus bens após ter negada a sua tentativa de
consumar atos libidinosos com ela.
[fl. 1]
<Delegado da Vila de
São Joze>
1 1843
4 Queixa Crime
5 Escrivam
6 Pinto Junior
1. Mudança de mão.
Gusthavo Lemos
Doutorando em História pela UFMG
Fragmentos da paisagem
rural brasileira: os Registros
Paroquiais de Terra
[174]
1. Para uma discussão mais aprofundada da relação entre a questão agrária e a construção do Estado
Nacional, ver: COSTA, Wilma Peres. A Economia Mercantil Escravista Nacional e o Processo de
Construção do Estado no Brasil (1808-1850). In: SZMRECSÁNYI, Tamás; LAPA, José R. do Amaral.
(orgs.). História Econômica da Independência e do Império. São Paulo: Edusp/HUCITEC/ Imprensa
Oficial de São Paulo, 2002.
2. Ver, por exemplo, MOTTA, M. M. M. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil
do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura/Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998.
3. A discussão deste primeiro tópico está amplamente baseada em: CARVALHO, José Murilo. A
política de Terras: o veto dos Barões. In: Teatro de Sombras: a política Imperial. Rio de Janeiro: Iuperj,
1998. p. 84-106.
Fragmentos da paisagem rural brasileira: os Registros Paroquiais de Terra
[175]
O RPT é uma fonte de inegável relevância, antes de tudo porque se impõe como
o único cadastramento nacional de terras do Brasil até a década de 19704. Para
cada localidade (podendo ser vila, cidade, ou mesmo um distrito), o RPT apresenta
registros individuais de cada proprietário que se mobilizou para regulamentar suas
terras. Idealmente, cada registro deveria apresentar: 1) nome do proprietário; 2)
tipo da propriedade (exemplo: “terras de cultura”, “porção de terras”, “fazenda”);
3) nome da propriedade; 4) nome da região na qual se situa; 5) extensão da proprie-
dade; 6) formas de aquisição da propriedade; 7) descrição das divisas e dos nomes
dos vizinhos.
Como a maioria dos documentos públicos, o RPT segue, assim, uma fórmula
padrão, que prima pela brevidade e funcionalidade do registro. Do ponto de vista
da leitura paleográfica, temos aqui um ponto positivo, pois se torna possível “meca-
nizar” a leitura e transcrição do documento, seguindo a fórmula acima apresentada.
Por outro lado, a fonte apresenta diversos complicadores, a começar pelo fato de ela
ter sido elaborada por um corpo de agentes que não fora treinado metodicamente
para essa tarefa. Como resultado, há uma enorme variação na precisão das infor-
mações e na organização da composição de cada registro, variação essa que se dá
de acordo com o julgamento dos párocos de cada localidade e em razão do tipo de
taxação a que era submetido o registrante. Isso reflete negativamente na pesquisa
histórica — seja em investigações de caráter micro, que buscam o levantamento de
dados qualitativos, seja em investigações mais abrangentes, que buscam na docu-
mentação informações passíveis de seriação.
Ainda assim, o RPT lança luz sobre determinados fragmentos do passado rural
brasileiro que são raramente detectados em outras fontes. Voltemos aos diferentes
campos componentes do registro acima apresentados para traçar alguns caminhos
de pesquisa histórica. Como seria tarefa muito dispendiosa explorar cada um dos
campos minuciosamente, focarei em alguns deles e discutirei as aberturas e as limi-
tações que apresentam.
Em primeiro lugar, o fato de o registro ser nominal permite, por exemplo, o ras-
treamento de determinada família e, a partir do cruzamento de fontes, o seu acom-
panhamento intergeracional. Esse é um procedimento interessante para pesquisas
de história da família cujos problemas giram em torno da formação/transmissão/
manutenção da riqueza. É interessante notar também que este primeiro campo do
[176]
[177]
[178]
Fonte: Baseado em MENDES, Fábio Faria. Agrarian Change and Inheritance in Nineteenth Century Minas Gerais: a view
from the 1855 Land Parish Registers. Guelph (CA.): Workingpaper, Rural History Workshop, 2010.
Muito se pode discutir a partir da análise do gráfico acima. Para não entrar em
detalhes mais específicos da pesquisa, restrinjamo-nos a apontar a variedade das
formas de acesso à terra e o papel predominante da herança e da compra. Tudo isso
mostra um quadro fundiário complexo, permeado por interesses econômicos, pelo
forte papel da família na cadência do mundo rural, por formas de solidariedade e
por tensões inerentes à estrutura fundiária.
Cabe lembrar, por fim, que o RPT, a despeito de sua importância, é uma fonte
ainda pouco explorada. Apenas recentemente passou por um exame metodológico
geral referente à província de Minas Gerais6, o que dá mais segurança ao pesquisa-
dor que quer se enveredar nos caminhos da história agrária ou agrícola. Há ainda
alguns estudos monográficos cuja fonte-base foram os RPT. Muitos desses estudos
estão vinculados à linha de pesquisa inaugurada por Maria Yeda Linhares, que tem
como representante, hoje, a historiadora Marcia Menendes Motta. Essa linha de
pesquisa foca muito mais em questões agrárias do que em problemas relacionados
[179]
7. Os RPT da Província de Minas Gerais estão integralmente disponíveis online no site do Arquivo
Público Mineiro. http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fundos_colecoes/brtacervo.
php?cid=26.
Documento
Trechos do Livro de Registros Paroquiais de Terra. Disponível
no Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra,
1854-1861. TP-1-160.Piranga, Nossa Senhora da Conceição
do (Vila de), Distrito de Calambau. 1856.
Data
1856
Resumo
Trechos do Livro Paroquial de Registros de Terras. Os registros
contêm o nome do proprietário, os limites e o tamanho — a partir
da unidade “plantas de milho” — da propriedade, passadas em
duplicata devido ao artigo 93 do regulamento de 30 de janeiro
de 1854. As folhas foram numeradas e rubricadas pelo Vigário
Francisco de Paula Homem. Documento digitalizado a partir
do microfilme. Encontramos o termo de abertura na folha
de guarda. A caligrafia é tendencialmente humanística, com
pouca ou nenhuma presença de enlaces e ligaduras e existem
pouquíssimas abreviaturas.
1 Livro 2º
1 Número 308
2 Digo eu Manoel Gomes Chaves, que sou Senhor, e
<Distrito do 3 possuidor de huma Fazenda de terras de cultu=
Calambáu> 4 ra situada nas Margens do Rio Ch[o]potó no Dis=
5 tricto de Calambaú Freguezia, e Municicio da
6 Villa do Piranga: as quaes possuo por herança
7 de meus Paes, Joaquim Gomes Chaves, e Rhaquel
8 Maria de Jesus: e partem ou dev[i]zaõ com terras
9 de Antonio Alv[e]s [?] Pereira, e Antonio José
10 da Silva: servindo de limites o rio Chopotão calcu =
11 landose levar de planta de milho doze alqueres po
12 co mais, ou menos, e por verdade ser mandei pas-
13 sar o presente em duplicata em virtude do artigo
14 noventa, e tres do regulamento de trinta de
15 Janeiro de mil oittocentos, e cincoenta, e quatro:
16 e por eu não saber ler, e nem escrever pedi a
17 Humbelino José de Magalhães, que este por
18 mim fesesse, e assignasse. Calambaú deza=
19 sette de Abril de mil oitocentos, e cincoenta=
20 enta [sic], e seis. Humbelino José de Magalhaes
21 He o que continha o dito exemplar, e outro
22 que fica archivado, ao qual me reporto, e[u]
23 Mathias Homem da Costa, Escrivão dos
24 registros, que o escrevi. Vila do Piranga 22
25 de Abril de 1856 //. O Vigário Paula Homem
26 Número 309
Data
1855-1856
Resumo
Trechos do Livro Paroquial de Registros de Terras. Os registros
contêm o nome do proprietário, os limites e o tamanho — a partir
da unidade “plantas de milho” - da propriedade, passadas em
duplicata devido ao artigo 93 do regulamento de 30 de janeiro
de 1854. As folhas foram numeradas e rubricadas pelo Vigário
Francisco de Paula Homem. Documento digitalizado a partir
do microfilme. A caligrafia é tendencialmente humanística, com
pouco ou nenhuma presença de enlaces e ligaduras e existem
pouquíssimas abreviaturas.
[fl. 1]
1 Número 1º
20 Número 2º
21 Digo eu Antonio Anacleto Varella, que sendo Senhor, e possuidor
22 com pleno domínio de huma Chacara, que levará oito alqueires
23 de planta de milho pouco mais, ou menos, sita no lu=
24 gar denominado = Bom Jardim, — a qual comprei á Dona
< Distrito da Villa > 25 Ritta Ferreira Campos, e divisa por ũm lado com Fran=
26 cisco Ferreira Monteiro, por outro com o Alferes Antonio
27 Homem da Costa, por outro com Dona Francisca de
28 Paula Carneira, e com quem mais haja, e deva devizar, e por
29 ser verdade mandei passar a prezente em duplicata em
30 virtude do Artigo noventa e trez do Regulamento de trinta
31 de Janeiro de mil oitocentos, e cincoenta, e quatro, que vaõ
32 por mim taõ somente assignados, tendo sido escriptos á meu
33 pedido por Manoel da Rocha Soares Machado. Piranga
34 vinte, e dous de Abril de mil oitocentos, e cincoenta, e cinco.
35 Antonio Anacleto Varella. He o que continha o dito exem=
36 plar, e outro que fica archivado, ao qual me reporto, e eu=
[fl. 1v ]
O estranho sodomita 1
[196]
[197]
pelo réu e confessante, carícia que não resultou em ejaculação de nenhuma das
partes9.
Sendo um homem de práticas sodomíticas notórias10, Frutuoso Álvares, mesmo
assim, conseguiu cultivar amizades duradouras com os pais ou senhores de seus
parceiros eróticos. Tal fato põem em questão a performance de gênero encenada
cotidianamente pelo réu. Teriam homens ciosos de sua virilidade — como eram
os homens da América portuguesa no período — estreitado amizade, recebendo
em sua casa e permitindo que seus dependentes frequentassem a casa do padre, se
a apresentação pública do mesmo — se sua performatividade de gênero — não se
conformasse ao ideal hegemônico de masculinidade corrente?
Tendo em vista o pesado estigma social associado ao feminino (matriz do
pecado na tradição cristã), percebe-se que a identidade de gênero do padre Frutuoso
Álvares, não obstante suas práticas homoeróticas, pautava-se pelos padrões cultu-
ralmente estabelecidos para a masculinidade. Por sua posição de vigário da paró-
quia do Matoim, o padre exercia funções de patriarca espiritual da comunidade,
papel reforçado por sua idade avançada e aparência física. Como tal, foi capaz de
articular uma rede de sociabilidade masculina que lhe angariava vantagens explíci-
tas — como usar da hospitalidade dos amigos homens — e implícitas — ganhar a
confiança de adolescentes e atraí-los para os prazeres nefandos.
Se os prazeres carnais com rapazes não parecem informar a composição da
identidade de gênero do padre Frutuoso, que lugar ocupavam tais práticas em sua
visão de mundo? Nas suas palavras — conforme traduzidas pelo notário a mando
do visitador: “(...) sabia muito bem quão grandes pecados sejam estes que tem
cometido, e deles está muito arrependido e pede perdão”11. Suas experiências eró-
ticas com jovens, traduzia-nas o padre Frutuoso Álvares como ações pecaminosas,
as quais, devido à fraqueza da Carne, ele não deixava de cometer a despeito das
sucessivas sanções sofridas ao longo da vida.
[198]
12. Monique Witting, nos marcos do feminismo materialista francês, desenvolveu o conceito da
heterossexualidade compulsória para descrever a ação normalizadora exercida pelo conjunto de
ciências e disciplinas (entre elas o campo das humanidades, em que se localiza a História) que
formam o chamado Pensamento Heterossexual. Este conjunto de saberes científicos, na descrição
da autora, é conformado por conceitos primitivos que instauram e mascaram a dominação de
grupos sociais (as mulheres, as lésbicas, os gays e certos grupos de homens, por exemplo, os negros
ou indígenas) a partir da construção dialética do Outro/diferente. Desse modo, ser homem e ser
mulher são categorias cujos sentidos somente existem dentro do sistema totalizador do Pensamento
Heterossexual — instaurador da heterossexualidade compulsória. Formas de relações de gênero e
sexuais desviantes da ordem patriarcal não podem ser pensadas segundo os termos do Pensamento
Heterossexual, exigem, portanto, um esforço de deslocamento e ruptura dos signos deste pensamento.
Esforço empreendido já pelo feminismo materialista, mas que foi redimensionado pela teoria queer,
ao reinserir as identidades desviantes no sistema heterossexual e mostrando como elas podem
subvertê-lo a partir das relações de poder que, por meio da repetição performativa dos gêneros,
as instauram. WITTING, Monique. El pensamiento heterosexual. IN: WITTING, Monique. El
pensamiento heterosexual y otros ensayos. Tradução: Javier Sáez, Paco Vidarte. Barcelona: Editorial
Egales, 2006. p. 49-57.
O estranho sodomita
[199]
13. BARBO, Daniel. O Triunfo do Falo: Homoerotismo, Dominação, Ética e Política na Atenas
Clássica. Rio de Janeiro: E-Papers, 2008. p .22.
14. GARCIA, David Córdoba. Teoría queer: reflexiones sobre sexo, sexualidad e identidad. Hacia
uma politización de la sexualidad. IN: GARCIA, David Córdoba; SÁEZ, Javier; VIDARTE, Paco.
Teoría Queer. Políticas bolleras, maricas, trans, mestizas. Barcelona, Madrid: Editorial Egales, 2007.
p. 33-34.
15. BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and homosexuality. The University of Chicago
Press: Chicago; London, 1980. p. 43.
16. ______. Christianity, social tolerance and homosexuality p. 3-39.
O estranho sodomita
[200]
17. BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and homosexuality. p. 43, nota 6.
18. MOTT, Luiz. Escravidão, Homossexualidade e Demonologia. São Paulo: Ícone, 1988. p. 42, nota 6.
19. BARBO, Daniel. A emergência da homossexualidade: cultura grega, cientificismo e engajamento.
IN: COSTA, Adriane Vidal; BARBO, Daniel. História, literatura e homossexualidade. Belo Horizonte:
Fino Traço, 2013. p. 11-42.
20. Na mitologia grega, Ganimedes foi um herói troiano considerado o mais belo dos mortais.
Enquanto pastoreava os rebanhos do pai, foi avistado por Zeus que, encantado com a beleza do
jovem, raptou-o e levou-o ao Olimpo. Na morada dos deuses, Ganimedes recebeu a imortalidade
e recebeu a incumbência de servir o néctar às divindades em suas assembleias, substituindo Hebe,
deusa da juventude, nesta tarefa. Ao mesmo tempo, era amante de Zeus, senhor do Olimpo. Ver
Dicionário de Mitologia Greco-Romana. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 80.
O estranho sodomita
[201]
ousa dizer o nome” refere-se ao escritor, dramaturgo e poeta inglês Oscar Wilde
que, além de ter escrito diversas obras em que o homoerotismo tem presença fun-
damental (como O Retrato de Dorian Grey), foi processado e condenado à prisão
e à trabalhos forçados na Inglaterra vitoriana por crime de sodomia. Oscar Wilde,
por suas obras e por sua vida, tornou-se referência importante na cultura gay que se
articulou no Ocidente a partir do século XX21.
Duas críticas podem ser feitas à corrente essencialista. Em primeiro lugar, por
tomar como pressuposto a existência de uma essência transhistórica para as iden-
tidades de gênero e eróticas, ela tece uma história marcada pela linearidade e pela
teleologia. Em várias passagens, Luiz Mott explicita seu interesse em construir uma
história para os homossexuais, articulando (como fundamentalmente semelhantes)
dispositivos distintos de repressão ao homoerotismo. Um exemplo é a implícita
comparação entre a perseguição inquisitorial aos sodomitas e ao extermínio de
homossexuais promovido pelo nazismo:
Uma história articulada deste modo corre o risco de gerar simplificações e ana-
cronismos, pois as experiências de gays do século XX e de sodomitas dos séculos
XVI ao XVIII guardam significativas diferenças — a começar pelos termos com que
cada grupo significava suas práticas homoeróticas; os primeiros como condição
mais fundamental de sua identidade de sujeitos humanos, os segundos como pesado
e prazeroso pecado da Carne.
A segunda crítica refere-se à construção de mitos engendrada pela essencializa-
ção da história da homossexualidade. Uma vez que a homossexualidade é um dado
natural que atravessa épocas, culturas e continentes, recebendo diversos nomes, mas
21. Conforme Didier Eribon, “a condenação de Oscar Wilde provocou um verdadeiro abalo das
consciências, e seu nome bem rapidamente vai se tornar, para muitos homossexuais — masculinos,
pelo menos -, símbolo, a um só tempo, da cultura gay e da repressão que ela inevitavelmente suscita
tão logo procura aparecer à luz do dia”. ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Tradução
Procopio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008. p. 175.
22. MOTT, Luiz. O sexo proibido: Virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição, Campinas, SP,
Papirus, 1988. p. 114-115.
O estranho sodomita
[202]
23. Não se trata aqui de criticar-se o entrelaçamento da política e da militância com a historiografia.
Conforme demonstrou Joan Scott, a oposição entre teoria e política é falsa e produtora de
violências, pois silencia debates necessários acerca de qual teoria pode apresentar maior utilidade
para determinada política, fazendo com que, em um movimento excludente, uma única teoria seja
alçada ao posto de aceitável como política. Assim, não se critica a militância do historiador, apenas
possíveis anacronismos que dela podem derivar sem a correlata reflexão teórica a respeito dos
conceitos importados da práxis política. SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter
(org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. p. 87-98.
24. MOTT, Luiz. Escravidão, Homossexualidade e Demonologia. p. 9..
O estranho sodomita
[203]
25. MOTT, Luiz. Pagode português: a subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais. Ciência
e Cultura. Vol. 40.1988. p.127-137.
26. ______. Pagode português. p .137-138.
27. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de
Janeiro: Campus, 1989. p.50.
28. ______.. Trópico dos Pecados. p. 143-144.
O estranho sodomita
[204]
tudo um conjunto de atos que não caracterizam a cerne da identidade dos sujeitos
é logo posta de lado pelo autor.
[205]
objetos sobre os quais o poder pode exercer-se, criando, e disciplinando, corpos que
justificam sua mera existência. Esta operação é, pois, um mecanismo de classifica-
ção dos indivíduos, transformados em novos personagens (perversos), uma nova
realidade analítica, visível e permanente, semeando-a no real e incorporando-a nos
indivíduos31.
A categoria da homossexualidade é usada por Foucault como exemplar do fun-
cionamento desta operação das relações de poder dentro do dispositivo da sexuali-
dade. O momento de criação desta categoria seria, de acordo com Daniel Barbo, a
década de 1860, em que começaram a ser produzidas as primeiras nomenclaturas
que objetivavam classificar tipos específicos dentro da nebulosa de inversões sexuais.
As duas principais categorias produzidas com este sentido foram a de urninge, em
1862, criada por Karl Heinrich Ulrichs, e a de homossexual, criada em 1869 por
Karorly Maria Kertbeny. Se a categoria urninge de Ulrichs foi a princípio mais
divulgada, a partir do início do século XX, o termo homossexual se consolidaria
como o mais adequado para se referir aos amantes do mesmo sexo na estruturação
da esfera axiológica da sexualidade32. Com estas categorias (que, não obstante, em
suas formulações originais não eram totalmente sinônimas)33 que o tipo social do
homossexual foi primeiramente caracterizado, não tanto com base em suas práticas
sexuais, mas como alguém que invertia, em si, o masculino e o feminino.
O homossexual passou a ser visto como aquela pessoa que apresentasse algo
como um hermafroditismo da alma, em que a mentalidade e corpo tinham gêne-
ros divergentes. Qualidade que o marcaria por inteiro em todas as suas ações, em
toda a sua história de vida, em todos os seus gestos e palavras. Foucault diferencia
o homossexual do sodomita argumentando que este era apenas um homem que
[206]
cometia certos atos pecaminosos (gravíssimos, mas que não diziam da sua natureza
como um todo), enquanto o homossexual era definido enquanto sujeito prioritaria-
mente por suas experiências (homo)eróticas, nas palavras de Foucault, “o sodomita
era um relapso, o homossexual é agora uma espécie”34.
O grande impacto do primeiro volume da História da Sexualidade de Foucault
nos campos dos estudos de gênero e da sexualidade deve-se, também, a sua inova-
dora narrativa da história da homossexualidade. Ao deslocá-la para a posição de
efeito discursivo das relações de poder, e não um dado da natureza a que o poder
dedicar-se-ia infinitamente a reprimir, o filósofo o francês abriu espaço para que
contra-discursos sobre a categoria pudessem ser analisados dentro dos próprios
mecanismos da sexualidade, abordando esse dispositivo como uma dimensão da
natureza proliferativa do poder — suas teorias sobre o funcionamento do disposi-
tivo da sexualidade compõem sua famosa crítica à hipótese repressiva da sexuali-
dade. Para ele, as sociedades ocidentais industriais e burguesas não se caracterizam
por uma repressão sempre maior do sexo; ao contrário, são marcadas por um falar
incessante deste sexo, que passou a compor a chave das identidades de todos os
indivíduos nestas sociedades35.
A corrente construcionista segue de perto a narrativa foucaultiana, trabalhando
a partir da ideia de que a homossexualidade é mesmo uma invenção do século XIX
burguês e industrial. Segundo David Halperin, importante antropólogo estaduni-
dense da Teoria Queer, os processos que levaram ao surgimento da sexualidade
foram dois. Um foi a separação do domínio erótico na vida dos indivíduos dos
outros domínios culturais (como a religião, a moral e o direito) a que estava ligado
antes, e sua conseguinte definição como um aspecto específico da natureza psicofí-
sica dos indivíduos. O segundo processo foi a construção da ideia de que há uma
essência interior do sexo dos indivíduos, a construção da ilusão da interioridade do
sexo, que seria a raiz das identidades (performativas) de todos e de todas36. Deste
ponto de vista, a corrente essencialista seria uma reiteração do mecanismo de poder
de criação de identidades sexuais estáveis ao longo da história — cujo funciona-
mento autônomo seria natural, portanto dispensando intervenções políticas ou teó-
ricas sobre as violências que engendram.
Tendo em vista o complexo debate entre estas duas correntes, um nível de pru-
dência na utilização das categorias homossexual e homossexualidade em contextos
[207]
37. COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício: estudos sobre homoerotismo. Rio de Janeiro:
Relume Dumara, 1992. p. 13-40.
38. ______. A inocência e o vício. p. 21-24.
39. FIGARI, Carlos. @s outr@s cariocas. Interpelações, experiências e identidades homoeróticas no
Rio de Janeiro. Séculos XVII ao XX. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007.
p. 19..
O estranho sodomita
[208]
40. Na historiografia brasileira, este debate foi protagonizado, como se verá a seguir, por Luiz Mott
e Ronaldo Vainfas em artigos componentes da coletânea A Inquisição em xeque. Neste momento,
acho válido destacar que a leitura dos textos dos autores revela exemplos de elegância e civilidade
acadêmicas que deveriam ser emulados por qualquer estudioso. VAINFAS, Ronaldo; FEITLER,
Bruno; LAGE, Lana. (org.). A Inquisição em xeque. Temas, controvérsias, estudos de caso, Rio de
Janeiro, EdUERJ, 2006.
41. As condenações de S. Paulo ao homoerotismo encontram-se em suas epístolas, como em
Romanos 1:24-31, I Coríntios 6:9-10 e I Timóteo 1: 10. Bíblia Sagrada. Rio de Janeiro: Catholic
Press, 1967. (Barsa).
42. BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and homosexuality. p. 96-97.
43. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. p. 145.
44. ______ . Trópico dos Pecados. p. 145-146.
O estranho sodomita
[209]
entre homens e entre mulheres)45. São Tomás de Aquino a considerou uma dos qua-
tro clamantia peccata (pecados que clamam ao céu), definindo-a como a cópula
entre pessoas do mesmo sexo e considerando o sexo anal entre dois homens com
ejaculação interior sua forma mais perfeita — logo mais grave46. Segundo Ronaldo
Vainfas, “Os saberes eruditos não limitaram sua concepção de sodomia à cópula
anal, mas, prisioneiros desta última, ficaram a meio caminho da posterior definição
de homossexualidade”47.
Luiz Mott argumenta que debalde as mudanças sofridas pelo conceito de sodo-
mia ao longo da Era Cristã, ele jamais foi identificado como heresia. Para o autor, a
perseguição aos sodomitas empreendida pelo Tribunal do Santo Ofício na moder-
nidade foi, mais que um combate a uma seita herética, uma tática de repressão
à ameaça ao patriarcado, aos valores da família, da superioridade masculina e à
autoridade da Igreja, representada pelo grupo — cujos membros seriam portado-
res de uma contracultura imoral e revolucionária48. Com isso concorda obliqua-
mente Ronaldo Vainfas, que considera ter sido o movimento teórico empreendido
por alguns tribunais do Santo Ofício para legitimar sua jurisdição sobre a sodomia
mais sutil do que a simples identificação entre sodomia e heresia49.
Diante da oscilação constatada pelo autor na definição de sodomia pelos sabe-
res eruditos, Ronaldo Vainfas enfatiza que os inquisidores tinham mais dúvidas
do que ninguém acerca deste pecado — tendo certeza apenas sobre sua enorme
gravidade, que o tornava nefando, do qual não se deveria sequer falar. O historia-
dor entende que sodomia e heresia não foram identificadas, mas assimiladas, isto é,
deveriam ser tratadas de modo semelhante no cotidiano dos tribunais. A inclusão
da sodomia na jurisdição inquisitorial (que, no caso português, ocorreu em 1553
por provisão do Cardeal e inquisidor-geral D. Henrique) fez parte de um processo
mais amplo de consolidação e expansão do Santo Ofício em Portugal. Para tanto,
a Inquisição operou a transformação, algo arbitrária, de vários pecados em diver-
gências em matérias de fé que poderiam esconder doutrinas heréticas50. No caso da
[210]
sodomia, as dúvidas sobre o caráter herético ou não dos pecadores eram somadas
às dúvidas sobre o que constituía o pecado em si, uma vez que a ambiguidade do
termo (entre a condenação ao sexo anal ou ao homoerotismo) não fora tampouco
sanada51.
Destarte, no momento da vinda do visitador Heitor Furtado de Mendonça à
América Portuguesa, o Santo Ofício tinha mais dúvidas do que certezas em se tra-
tando da sodomia. Embora sua forma mais perfeita, grave e abjeta fosse a pene-
tração anal entre dois homens com ejaculação interna, ela também envolvia, de
um lado, a cópula anal entre homem e mulher, a sodomia dita imperfeita, e o sexo
entre duas mulheres, chamada sodomia foeminarum. De fato, Heitor Furtado ouviu
denúncias, confissões e instaurou processos contra réus das três modalidades de
sodomia.
Neste contexto, torna-se difícil julgar que alguém como padre Frutuoso Álvares
pudesse ter construído para si uma identidade centrada nos furtivos encontros
homoeróticos que manteve, ao longo de várias décadas, com inúmeros rapazes. Se
o conceito de sodomia era impreciso para os eruditos inquisidores, para o entendi-
mento popular, não o era menos. Se para os moralistas herdeiros da tradição esco-
lástica a cópula anal era a marca maior da sodomia, para as pessoas comuns, os
sodomitas eram identificados principalmente por assumirem comportamentos atri-
buídos mais frequentemente às mulheres52. Ou seja, na cultura popular, a sodomia
era caracterizada pela inversão performativa das marcas de gênero, confundindo
a masculinidade e a feminilidade, desestabilizando-nas. Todavia, os contatos entre
a cultura popular e a tradição escolástica — promovidos pela própria Inquisição
por meio dos autos-de-fé, das leituras públicas das sentenças e pela publicação dos
éditos e dos monitórios — fizeram com que o sexo anal também fosse reconhecido
popularmente como símbolo da sodomia53.
O padre Frutuoso Álvares fez longa confissão no período da Graça, porém, por
não ter confessado todos as cópulas sodomíticas mantidas com o jovem Jerônimo
Parada, foi instaurado processo contra ele pelo visitador. Jeronimo era estudante
e contava 17 anos quando se apresentou, sem ser chamado, a Heitor Furtado de
Mendonça para confessar suas culpas. O jovem baiano era filho de Domingos Lopez,
carpinteiro de ofício, e de Lianor Viegas, todos moradores na cidade da Bahia54.
51. VAINFAS, Ronaldo. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção? p. 275-279.
52. ______. Trópico dos Pecados. p. 147-151.
53. ______. Trópico dos Pecados. p.148-149.
54. Processo do Padre Frutuoso Álvares, PT-TT-TSO/IL/28/5846, páginas 11-12.
O estranho sodomita
[211]
[212]
Sobre todosllos peccados bem parece Seer mais torpe, çujo, e deso-
nesto o peccado da Sodomia, e nom he achado outro tam avorre-
cido ante DEOS, e o mundo, (...) E Segundo diSSerom os naturaes,
Soomente fallando os homees em elle Sem outro algum auto, tam
grande he o Seu avorrecimento, que o aar ho nom pode Soffrer, mais
naturalmente, he corrumpido, e perde sua natural virtude. E ainda
Se lee, que por eSte peccado lançou DEOS o deluvio Sobre a terra,
quando mando a Noé fazer huã Arca, em que eScapaSSe el, e toda Sua
geeraçom, per que reformou o mundo de novo; e por eSte peccado
Soverteo as Cidades de Sodoma, e Gomorra, (...); e por este peccado
foi estroida a Hordem do Templo per toda a ChriStandade em hum
dia. E porque Segundo a qualidade do peccado, aSSy deve gravemente
Seer punido: porem Mandamos, e poemos por Ley geral, que todo
homem, que tal peccado fezes, per qualquer guiSa que Seer poSSa,
Seja queimado, e feito per fogo em poo, e por tal que já nunca de Seu
corpo, e Sepultura poSSa Seer ouvida memoria.61
O padre Frutuoso Álvares estava, portanto, diante da fogueira quando sua sen-
tença foi emitida — aliás, como estavam todos os sodomitas portugueses62. No texto
[213]
de sua sentença foi recapitulada sua confissão no Tempo da Graça, expondo suas
várias culpas e, ao mesmo tempo, sua trajetória de vida63. Caso ocorresse leitura
pública da sentença (o que não foi o caso), a humilhação do réu seria maior e o
povo teria a oportunidade de saber quais crimes conduziram-no àquela situação de
opróbio — e quais condutas deveriam ser evitadas, pois, para não ocupar futura-
mente o lugar de réu estigmatizado. Ainda que sua confissão na Graça tenha sido
considerada diminuta64, o padre Frutuoso Álvares gozou da misericórdia e da com-
placência do visitador, no que pesaram sua idade avançada, sua condição de clérigo
e cura das almas e ter feito longa, ainda que não inteira, confissão no período da
graça. Foi, pois, condenado no modo seguinte.
Condenado à suspensão das ordens sacras por cinco meses, a pagar 20 cruza-
dos como custas do processo, a penitências espirituais e à confissão geral, o padre
Frutuoso Álvares logo tratou de realizar a confissão, o que fez no dia 7 de agosto
de 1593 (sendo que sua sentença foi publicada apenas no dia 2 do mesmo mês)
ao padre frei Damião Cordeiro, indicado pelo visitador66. Estava o pároco talvez
ansioso por livrar sua consciência e salvar sua alma, ou quem sabe apenas queria
demonstrar ao visitador sua obediência e submissão ao tribunal? Não é possível
saber, embora as opções não sejam excludentes.
Essas são as últimas informações presente no documento sobre o aventuroso
padre Frutuoso Álvares. Ao historiador fica a dúvida se ele terá acatado a adver-
tência de Heitor Furtado de Mendonça de se afastar das práticas torpes que tantas
vezes o conduziram às barras dos tribunais (no Reino, em Cabo Verde e na Bahia)
foram executados entre 1444 e 1789 e, na Holanda, somente em um julgamento entre 1730 e 1732,
70 sodomitas foram executados. MOTT, Luiz. Pagode português: A subcultura gay em Portugal nos
tempos inquisitoriais. p. 122-123.
63. PT-TT-TSO/IL/28/5846, páginas 31-34.
64. PT-TT-TSO/IL/28/5846, página 35.
65. PT-TT-TSO/IL/28/5846, páginas 38-39.
66. PT-TT-TSO/IL/28/5846, página 41.
O estranho sodomita
[214]
ou se, tão logo embarcou o visitador para Pernambuco, respirou aliviado o sacer-
dote e reiniciou a trocar tocamentos, abraços, beijos com os jovens de sua freguesia,
deleitando-se ao permitir que eles o sodomizassem. A história de vida de Frutuoso
talvez reforce a segunda opção, pois até seus 68 anos, nenhum juiz ou confessor
conseguira salvar sua alma, retirando-lhe o gosto pelo pecado nefando.
A dúvida do historiador é ainda mais profunda. Pode ser dito que o padre era
homossexual? Em nenhum momento de suas confissões pareceu ele dar mais sen-
tido aos seus atos com tantos jovens que não lhes sabia mais os nomes que não o
prazer sentido por sua Carne e a culpa por sua alma e consciência. Em seu cotidiano,
tampouco, e pelo que se pode vislumbrar por seus relatos, vivia ele de modo que
seu gênero, perfomativamente reiterado em cada ato e em cada momento de sua
existência, destoasse daqueles de outros homens em condições análogas — daí suas
amizades duradouras com vários homens, eles próprios senhores viris em suas casas.
As práticas eróticas do padre Frutuoso Álvares parecem surgir mais como desvios
morais que, pesando-lhe na consciência como pecados que ele sabia que eram, não
os podia evitar, pois fraca era a Carne perante os artifícios do mal. O vigário do
Matoim, destarte, parecia antes assumir seus pecados do que uma identidade sexual
que, aliás, dificilmente existia cultural e socialmente para tal.
Não se pretende aqui que o caso do Padre Frutuoso Álvares imponha uma regra
à complexa questão que envolve a sodomia e ao debate aberto entre essencialistas e
construcionistas. O objetivo levado aqui a cabo foi não mais que demonstrar como
o instrumental da Teoria Queer, notadamente o conceito de performatividade de
gênero, pode lançar novas luzes sobre o problema, ao cruzar sua dimensão eró-
tica com a problemática da constituição discursiva e performativa dos gêneros na
Época Moderna. O vasto universo das fontes estimula a continuidade da discussão
já milenar acerca da sodomia. A única conclusão necessária, neste momento, é a
recusa da persistência do nefando silenciamento a que eram condenados os sodo-
mitas pelos inquisidores e pelo braço secular. Considerando-os integrantes de uma
essência universal da homossexualidade ou amantes homoeróticos obstinados em
pecar contra a natureza, a pesquisa histórica tem o dever ético e político de, a partir
dos documentos, recuperar amores, toques e penetrações que o calor das fogueiras
não pode mais reduzir a pó.
Documento
Trecho (Sentença) do Processo do Padre Frutuoso Alvares.
Disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal
do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo 5846. Código
de referência: PT/TT/TSO-IL/028/05846.
Data
7 de julho a 7 de agosto de 1593
Resumo
Sentença do processo do padre Frutuoso Alvarez, condenado
por sodomia pelo Tribunal do Santo Ofício em visitação na
Bahia. O documento, além de descrever a sentença, faz uma
breve síntese da acusação, mostrando que o dito padre é
reincidente no pecado de sodomia, tendo sido condenado
não só no Brasil, mas também em Portugal e Cabo Verde
por sodomia e “tocamentos torpes” com inúmeros “moços e
mancebos”.
[fl. 16]
1 Sentença
1. É frequente neste documento a troca das letras ramistas, sobretudo “v” por
“b”, “i” por ”j” e “u” por “v”. Como exemplo temos “bisitador” e não “visitador”,
“offjcjo” e não “ofício” e “ujgario” e não vigário.
2. Não raras vezes o notário utiliza a letra ß (eszett) com função de “z”.
[fl. 16v]
1. Elemento interlinear
[fl.20]
Peculiaridades da documentação
sobre exploração mineral em
Minas Gerais no séc. XIX
1. APMSB — Arquivo Público Municipal de Santa Bárbara — MG. Ação de Embargos. Autor:
Capitão José de Aguiar Leite Mendonça Vasconcellos e sua mulher. Réus: Eufrázio Pereira da Silva
e outros. Cx. 63.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX
[238]
maior que o segundo; “erres” (“rr”) inclinados parecidos com os “esses” das cali-
grafias do século XX; maiúsculas estilizadas; voltas largas em letras como o “g” e
o “j”; letra “t” com corte pequeno, por vezes quase imperceptível; letras maiúsculas
por vezes separadas do resto da palavra, enquanto algumas palavras que deveriam
estar separadas foram escritas em continuidade, sem a retirada da pena ou caneta do
suporte; grafia de algumas palavras com consoantes como o “l”, dobradas; diversas
palavras escritas da forma antiga usual para o século XIX; conjugação verbal do
“ão” e do “am” de forma usual para o mesmo período (ao contrário da regra atual);
abreviaturas de uso jurídico, padrão do período em questão: estas são, em linhas
gerais, as principais características da caligrafia presente.
Esse padrão caligráfico não apresenta grande dificuldade ao paleógrafo prin-
cipiante, já que o documento se apresentou bem conservado e conseguimos uma
boa qualidade das fotografias. Porém, apresenta maiores desafios pelos estilos da
escrita, pelos termos técnicos e pela compreensão do conjunto, exigindo, em diver-
sos trechos, leituras e releituras atentas, apresentando ao paleógrafo a oportunidade
de exercitar e desenvolver sua visão de conjunto e síntese na prática paleográfica,
para além da mera observação atenta das palavras isoladas. A redação formal e
apropriada ao exercício peticional junto ao Judiciário, conforme as regras e estilos
de época, pode causar alguma dificuldade com abreviaturas, termos específicos e a
intercalação de citação das folhas de outras peças juntas ao mesmo processo (fls).
Entre os termos específicos da atividade jurídica que se apresentam nas qua-
tro páginas iniciais do documento estão os seguintes: Embargos; esbulhados;
efeito devolutivo; extravagantes (embargos); impugnados; apelação; Juízo da
Superintendência; Guarda-mor; adjutório. Entre as abreviações temos as que se
apresentam com sobrescrito de algumas letras finais de palavras compridas ou de
uso reiterado, entre as quais se sobressaem duas que se assemelham e devem ser
alvo de atenção: “Suppes” e “Suppdos”, que significam Suplicantes e Suplicados res-
pectivamente, termos que designam as partes de uma apelação ou recurso. Apesar
dessas palavras e abreviações serem facilmente reconhecíveis por historiadores com
experiência em documentos cartoriais, não o são para o paleógrafo iniciante. Para o
paleógrafo que irá trabalhar com esse tipo de documentação reiteradamente, o ideal
é que se acostume com termos técnicos pelo uso constante de dicionários comuns
e jurídicos durante o processo de transcrição, para evitar possíveis enganos, já que
muitos termos jurídicos se parecem com outras palavras de uso mais comum na
língua portuguesa.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX
[239]
[240]
3. FREYRE, Gilberto. Vida Social no Brasil nos meados do século XIX. 4ª ed. São Paulo: Editora
Global, 2008. SILVA, Lígia Osório. Terras Devolutas e Latifúndio: efeitos da lei de 1850. 2ª edição.
Campinas: Editora Unicamp, 2008. pp. 181 e ss. MOTTA, Márcia Maria Menendes. Direito à terra
no Brasil: a gestação do conflito, 1795-1824. São Paulo: Alameda, 2009.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX
[241]
4. ALMEIDA, Candido Mendes de. Codigo Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal
recopiladas por mandado D’El Rey D. Philippe I. Tomo II. 14ª ed. Rio de Janeiro: Typographia
do Instituto Philomathico, 1870. FERREIRA, Francisco Ignácio. Repertório Jurídico Mineiro:
Consolidação alfabética e cronológica de todas as disposições sobre minas, compreendendo a
legislação antiga e moderna de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1884.
5. HESPANHA, Antonio Manuel, História de Portugal Moderno — político e institucional. Lisboa:
Universidade Aberta, 1995.
6. ANDRADE, Francisco Eduardo de. Com pés sobre as minas se devem decidir: poderes dos
oficiais da minas do ouro, sul da América portuguesa. 87-108. In: ANTUNES, Álvaro de Araújo
& SILVEIRA, Marco Antonio. (orgs.) Dimensões do poder em Minas (séculos XVIII e XIX). Belo
Horizonte: Fino Traço Editora, 2012.
7. ARQUIVO NACIONAL. Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil Colonial. Coordenação
Graça Salgado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX
[242]
[243]
[244]
12. ESCHWEGE, Wilhelm L. von. Pluto Brasiliensis. Trad. de Domício de Figueiredo Murta. Vols. I.
Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1979.
13. _____. Pluto Brasiliensis, p. 47.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX
[245]
14. NEVES, Marcus Vinícius Duque. Modernizações, projetos econômicos e percepções locais.
15. SILVA, Lígia Osório. Terras Devolutas e Latifúndio, p. 181 e ss.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX
[246]
16. MANUAL do Guarda-Mor composto por Manuel José Pires da Silva Pontes G. M. Geral. Revista
do Arquivo Público Mineiro, Ouro Preto, v. 7, p. 357-370, 1902.
17. NEVES, Marcus Vinícius Duque. Modernizações, projetos econômicos e percepções locais:
Mineração e siderurgia em Minas Gerais (1850-1921). Dissertação. (Mestrado em História).
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo, PPGHIS/FAFICH, Horizonte, 2010.
Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX
[247]
[248]
forma podem ser pensados alguns periódicos especializados das décadas iniciais do
século XX.
Também devemos lembrar que muitos exploradores e proprietários de mine-
rações foram longevos, falecendo apenas nas primeiras décadas do século XX. Em
seus inventários e testamentos podem aparecer informações interessantíssimas e cla-
rificadoras de dúvidas e lacunas históricas. A aceleração econômica do setor minera-
dor, provocada pelas esperanças da reabertura das lavras e do início da extração de
minérios industriais para exportação produziu farta documentação sobre as posses
e propriedades pretéritas, ao necessitar da regularização legal das propriedades e
sua delimitação.
Documento
Trechos da Ação sobre o direito de posse da Lavra da Tartaruga
entre Capitão José de Aguiar Leite Mendonça Vasconcellos e
sua mulher versus Eufrázio Pereira da Silva e outros. Disponível
no Arquivo Municipal de Santa Bárbara/MG. Cx. 63, 1849 —
Embargos — Caethé — Santa Bárbara.
Data
6 de Junho de 1849
Resumo
José de Aguiar Leite de Mendonça Vasconcellos, e sua Mulher
Dona Emerenciana Claudemila Flávia afirmam serem donos
por mais de vinte anos de uma lavra de minerar na Fazenda
da Barra. Entretanto, em Eufrázio Pereira da Silva e outros
invadiram a lavra, libertaram os trabalhadores e tomaram, à
força, os serviços dos antigos donos como seus e passaram a
desfrutar deles. Entrando então com uma ação para readquirir
a posse da lavra, os antigos donos se queixam da demora do
processo.
[fl. 69]
2 Os Supplicantes
3 suportão desde então os prejuizos resultan-
4 tes do expollio, que soffrerão, da cessa-
5 ção de seos trabalhos, e da ruina de su-
6 as Maquinas. etc.
12 Os Embargados embargarão
13 a Sentença a f14: os embargos forão im-
14 pugnados a f20 e f35v, sustentados a
15 f40 e f45, desprezados por segunda
16 sentença de f46 datada de 29 de novembro
17 de 1848, e intimada aos Supplicados em 4
18 de Desembro do mesmo anno, como
19 se vê nos ditos Autos a f48: os Supplicados
20 apellarão da segunda sentença em
21 7 de Desembro (f49): a appellação foi
22 recebida no effeito devolutivo somente
23 por Despacho de f57 e f57v, intimado
24 aos Supplicados, a f58: os Supplicados desistiraõ
25 da Appellação a f59 e f59v: a desistên-
26 cia foi julgada por sentença a f62:
27 os Supplicados vierão com segundos extra-
28 vagantes embargos de f64, desattendi-
29 dos a f66.
23 Os prejudicados com
24 a demora são os Supplicantes, que se achaõ
25 privados de sua propriedade, vendo
26 arruinar se as maquinas, e utensio
27 da Mineração, entretanto os Supplicados,
28 que aliás nunca requererão uma ha-
29 bilitação, das que tem sido necessa-
30 rias, que nunca promoverão o an-
[fl. 70v]
,
e patrimônio — UFMG”, liderado pelo professor José Newton Coelho Meneses. É coordenador da
Oficina de Paleografia — UFMG desde a sua fundação.
,
do II Encontro de Pesquisa em História — EPHIS (junho de 2013). Fez parte da fundação da Oficina
de Paleografia — UFMG e atua desde o primeiro semestre de 2012 como coordenadora da iniciativa.
Gabriel Afonso Vieira Chagas é graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
(2014). Pesquisa história de Minas Colonial, com ênfase em história da família, das elites e dos
casamentos endogâmicos. Foi bolsista de Iniciação Científica pelo CNPQ, e participa do grupo de
pesquisa “História de Minas Gerais no Império luso-brasileiro no século XVIII: espaço cultura e
sociedade”; também tem interesse por pesquisas na área de ensino de história, tendo desenvolvido
,
projeto de extensão na área. Possui bom conhecimento de paleografia, tendo participado como
ouvinte e coordenador da Oficina de Paleografia — UFMG desde março de 2012.
Gislaine Gonçalves Dias Pinto é graduada e mestranda em História (UFMG), cujo trabalho tem
como tema a Inquisição e os cristãos-novos. Iniciou essa pesquisa durante intercâmbio em Portugal
(Universidade de Porto), em 2012. Atuou como pesquisadora do Instituto Histórico Israelita Mineiro,
,
entre 2011 e 2014. Atualmente é bolsista CAPES pelo programa de Pós-Graduação em História da
UFMG. É coordenadora da Oficina de Paleografia — UFMG desde 2013.
Igor Tadeu Camilo Rocha é graduado e mestrando em História (UFMG), cujo trabalho tem como
tema as ideias sobre tolerância religiosa investigadas a partir das fontes inquisitoriais do contexto do
Iluminismo, trabalho iniciado na pesquisa de iniciação científica em 2009. Atuou como pesquisador
no Arquivo Público Mineiro (2009) e participou como organizador do projeto História 50 anos
(2007) e do Encontro de Pesquisa em História (EPHIS) 2014. Atualmente é bolsista FAPEMIG pelo
programa de Pós-Graduação em História da UFMG. É coordenador da Oficina de Paleografia —
UFMG desde a sua criação, em 2012.
,
Leandro Gonçalves de Rezende é graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), em 2011. Atualmente é mestrando em História Social da Cultura no Programa de Pós
Graduação em História da UFMG, com apoio da CAPES/Reuni. Em sua pesquisa analisa o repertório
iconográfico das Ordens Terceiras do Carmo em Minas Gerais no século XVIII. Tem experiência na
área de História, com ênfase em História da Arte, iconografia religiosa e ritos católicos, em especial
,
irmandades e ordens terceiras mineiras nos séculos XVIII e XIX. Faz parte da coordenação da Oficina
de Paleografia — UFMG desde seu primeiro semestre de atividade.
Ludmila Machado Pereira de Oliveira Torres é graduada em História Bacharelado pela UFMG (2014).
,
Foi estagiária do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG. Tem experiência em leitura paleográ-
fica e é coordenadora da Oficina de Paleografia — UFMG desde o segundo semestre de 2013.
Luíza Rabelo Parreira é aluna do sexto período do Bacharelado em História da UFMG. Foi bolsista
de iniciação científica FAPEMIG no projeto “Produção e uso de documentos manuscritos adornados
no século XVIII em Minas Gerais”, da Profª. Drª. Márcia Almada. Atualmente, é bolsista de iniciação
científica FAPEMIG no projeto “Manifestações Culturais, Escatologia e Culto Santoral no Universo
Luso-brasileiro”, sob orientação da Profª. Drª. Adalgisa Arantes Campos. Possui experiência em lei-
tura paleográfica e na área de História, com ênfase em Arte e Cultura. Frequentou a Oficina de
,
Paleografia como ouvinte desde a sua criação, em 2012. Ingressou como coordenadora da mesma no
primeiro semestre de 2014
Maria Clara Caldas Soares Ferreira é mestre em História Social da Cultura pela Universidade Federal
de Minas Gerais (2013). Especialista em Cultura e Arte Barroca pela Universidade Federal de Ouro
Preto (2009). Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (2006).
Técnica em Conservação e Restauração de Bens Culturais pela Fundação de Arte de Ouro Preto
(2006). Possui experiência em docência nos ensinos fundamental, médio e técnico, bem como em
restauro de papel e digitalização de acervo. Atualmente, leciona as disciplinas “Iconografia Religiosa”
e “História das Artes Plásticas no Brasil” no Curso Técnico de Conservação e Restauração de Bens
Culturais do Pronatec-Coltec/UFMG. Faz parte da coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG
desde o primeiro semestre de 2014.
,
Mateus Freitas Ribeiro Frizzone é licenciado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
e é coordenador da Oficina de Paleografia - UFMG desde o início de 2012. Tem experiência em lei-
tura paleográfica e trabalhos sobre ensino de História e de Paleografia e sobre administração, justiça
,
e punição na América portuguesa (Minas Gerais, séc. XVIII), sendo este último seu tema atual de
pesquisa.
Mateus Rezende de Andrade é Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal de Viçosa.
Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutorando em História pela mesma
instituição. Passou a integrar a coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG no segundo semes-
tre de 2014.
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Rodrigo Paulinelli de Almeida Costa é graduado em História pela Universidade Federal de Viçosa.
É mestrando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde desenvolve pesquisas
relacionadas às relações interpessoais realizadas a partir do crédito na freguesia de Guarapiranga
(1830-1865), com o fomento da FAPEMIG. Coordena a Oficina de Paleografia — UFMG desde o
segundo semestre de 2014.
Composto em Sabon, Minion, Trajan,
Helvetica e Andrade, na primavera de
2014