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O sino da minha aldeia

Ó sino da minha aldeia,


Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,


Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto,


Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,


Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

Questões:

1. Um sino toca: o sino da aldeia do poeta. Mas cada badalada do sino "Soa dentro da
minha alma". Que diferença pode existir entre um sino que toca fora da minha alma e
um sino que toca dentro da minha alma?
 Sino que toca dentro da alma, é um toque que lembra a Pessoa memórias de
infância, portanto um toque que não o deixa indiferente, como qualquer outro toque
de outra igreja.

2. O verso "Tão como triste da vida" tem uma construção pouco habitual. Explique o
que se passa.
 "Tão como triste da vida": o poeta quer dizer "Tão lento como triste da vida", no
entanto retira essa palavra. Parece-me o uso de uma figura de estilo chamada
"elipse". Tira-se uma palavra, que, no entanto se subentende.
3. Na segunda quadra o poeta diz uma coisa muito estranha: este sino toca a primeira
pancada, porque a primeira parece sempre a repetição de outra. Pode dizer-se que
isso tem que ver com o fato de o sino soar dentro da alma do poeta? Justifique a
resposta.
 Sim. Porque é um sino metafórico: representa outra coisa, as suas memórias de
infância.

4. Poeta que passa "sempre errante"; que significa esse adjectivo? Que motivos
levarão o poeta a considerar-se errante?
 Errante é aqui "sem destino", sem futuro, sem esperança. Isto porque ele apenas na
sua infância encontra conforto e sentido para a vida.

5. Na terceira quadra há dois “me” muito curiosos: "por mais que me tanjas" e "soas-
me na alma". Que efeito produzem eles no texto?
 "Tanjas perto" e "tocas-me na alma distante" é uma contraposição, quase ironia. Pois
que "tanjas" é um tocar de instrumento e "tocas-me" é um tocar quase físico, de
influência.

7. Haverá diferença entre ouvir um sino na aldeia e ouvir um sino na cidade? Quais as
palavras que dão esse ambiente tranquilo da aldeia?
 "aldeia" é no poema um eufemismo para o espaço onde Pessoa nasceu e cresceu,
entre uma igreja e um teatro lírico. Pequena aldeia é no sentido de ter sido a sua
aldeia dentro da grande cidade, o seu espaço dentro do espaço indefinido que era de
todos.
Aranha

Aranha do meu destino


Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir.
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte.

A aranha do meu destino / Fez teias de eu não pensar. Quer Pessoa dizer que, por
nunca ter pensado no seu futuro, teias de aranha ocuparam o espaço que na maioria
dos homens é ocupado pela prevenção, pelo planeamento. Pessoa nunca planeou o
seu futuro, só se preocupava pelo presente e - em certa medida - pelo passado.

Pessoa diz que a aranha (as deusas) não se preocupou em tecer o seu destino. Por
duas razões: por ele em criança já "ser adulto sem o achar", ou seja, ter crescido de
repente contra a sua vontade; a segunda razão Pessoa diz ser a rede ter-lhe apanhado
"o querer ir", ou seja, o próprio presente (agora já passado) impediu que ele tivesse o
destino - o destino ficou preso por causa do que lhe aconteceu quando era criança.

Assim ficou Pessoa, "uma vida baloiçada", como uma mosca presa numa rede, viva e
só à espera da morte para desaparecer. O estar preso na rede, com a "consciência de
existir". E é sua pena pelo que lhe aconteceu.
Não sei ser triste a valer

Não sei ser triste a valer

Nem ser alegre deveras.


Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma


E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.


Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,


Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E ambos nos vêm calcar.

'Stá bem, enquanto não vêm


Vamos florir ou pensar.

O poema que inicia-se com "Não sei ser triste a valer..." é um poema ortónimo de
Fernando Pessoa que toca um tema querido à vertente Ortónima da sua poesia - a
oposição entre pensar e sentir, ou mais exactamente entre pensar e viver.

A temática é desenvolvida pela análise dialéctica e comparativa, entre o acto de


pensar (humano) e o acto de florir (natural). Pessoa tenta, na comparação, estabelecer
uma linha condutora entre o absurdo de pensar perante o absurdo de florir - ambas as
acções serão afinal naturais e semelhantes? Dizendo isto, Pessoa tira o conteúdo
revolucionário do pensar e assemelha-o ao acto simples do florir. Assim pensar, como
florir, não tem um significa intrínseco, uma finalidade lógica superior. Pensar é, como
florir, uma acção sem significado além do significado que encerra em si mesma -
esgota-se portanto no seu próprio acto, não tem um seguimento e uma conclusão e ai
resido o seu absurdo.

A mudança entre o tom interrogativo (1ª estrofe) e exclamativo (2ª estrofe), que passa
depois para um tom declarativo é de simples análise. É claro que Pessoa tenta nas duas
primeiras estrofes estabelecer a sua comparação - a linha condutora, pelas evidências
e semelhantes entre pensar e florir. Por isso ele primeiro interroga e depois afirma
para si mesmo a realidade. As restantes estrofes são já produto de uma conclusão do
poeta - são, à sua maneira, um acto de pensar que também se extingue em si mesmo e
em que "se pensa o pensamento". Por isso o tom declarativo, final, de conclusão, que
dá lógica continuação às duas primeiras estrofes.

O significado da quarta estrofe é quanto a nós o seguinte: para reforçar a sua ideia que
o pensar, tal como o florir, é um acto absurdo, sem final definitivo, Pessoa recorre a
uma imagem forte - o espezinhar da flor pelos pés de alguém é o mesmo que acontece
com o pensar. Ou seja, quem pensa (Pessoa ele mesmo) é esmagado pela vida, porque
a vida não é para aqueles que pensam, é precisamente para aqueles que ignoram o
pensamento e apenas vivem. Pensar é sofrer. Todas as análises e conclusões são
infrutíferas, porque no final são espezinhadas pelo destino, pelos deuses.
Abdicação

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços


E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,


Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,


Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,


E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

O soneto abdicação é um soneto particular na obra de Pessoa, pois temos um relato


exacto de como foi escrito e em que estado de espírito Pessoa se encontrava quando o
escreveu.

Numa carta escrita a Mário Beirão, em Fevereiro de 1913, Pessoa descreve como,
chegando a casa sentiu a proximidade de uma tempestade - ele tinha um medo
pavoroso dos relâmpagos, não tanto dos trovões - e isso o colocou num estranho
estado de ansiedade, em que, paradoxalmente lhe deu para criar um soneto de calma
inusitada.

Veja-se desde já como é curioso o que Pessoa diz, sem se aperceber. Embora ele na
mesma carta fale de como o " fenómeno curioso do desdobramento é a coisa que
habitualmente tenho", mas lhe escapa que esse desdobramento lhe permitia fugir ao
seu medo - neste caso um medo concreto e mundano, o medo das trovoadas.

Não chegava ao génio que era Pessoa a reza simples a Santa Bárbara. Teve neste caso
de se refugiar na musa poética. Calíope substitui-se, pagã, ao símbolo religioso e assim
se criou mais um momento de solene beleza na língua portuguesa.
"Abdicação" é também um poema que aborda um tema querido a Pessoa - a noite e a
solidão. Neste caso a noite é simbólica de um estado de solidão que Pessoa bem
conhecia - era a sua realidade quotidiana. Tão triste e simultaneamente calmo é o
poema... isto porque a tristeza que Pessoa sente, é uma tristeza de abandono, de
quem deixa de resistir: eis o porquê do título do poema, abdicação. Quem abdica, é
por desistir voluntariamente, não por ser forçado. Pessoa abdica da vida para que a
noite o aceite - para ser plenamente nada na noite, já que foi nada em vida. Pelo
menos que seja plenamente nada - e o que há mais pleno de nada do que a noite?"
Tudo o que eu faço

Tudo o que faço ou medito


Fica sempre pela metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada e' verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma e' lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço ---
Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de alem...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.

O sujeito poético neste poema procura auto-analisar-se com a sua lucidez aguda, a sua
alma “lúcida e rica”, na tentativa de se auto conhecer. No entanto, aquilo que
encontra é um espelho sem reflexo, “um mar de sargaço” que impede o encontro
consigo mesmo.
Este poema revela a tentativa da descoberta de si mesmo, que lhe revela a
impossibilidade de se conhecer.

Análise do poema:

Tudo que faço ou medito


Fica sempre na metade
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.

Na primeira quadra, Pessoa fala sobre os seus sonhos e desejos. Dono de uma
imaginação delirante e febril, Pessoa tinha sempre mil projectos a correr
simultaneamente. Mas ele diz-nos que "Tudo o que faço ou medito / Fica sempre na
metade" - ou seja, dos seus projectos nada se realiza por inteiro, por a realidade nunca
se encontrar com os seus desejos. "Querendo quero o infinito / Fazendo, nada é
verdade" - os seus projectos não se realizam, confirma-se o que dissemos antes.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúdica e rica,
E eu sou um mar de sargaço...

A segunda quadra é a mais emocional. Perante o desespero de não conseguir nunca


realizar os seus projectos, fica-lhe um sentimento de vazio e de inutilidade. Veja-se
como, usando uma linguagem simples, mas expressiva, Pessoa passa o que lhe vai na
alma. "Que nojo de mim me fica / Ao olhar para o que faço!". "Minha alma é lúdica e
rica / E eu sou um mar de sargaço" - ou seja, ele sente a sua grande imaginação, a
quantidade infinita de ideias e de pensamentos que nele abundam, mas ele próprio, a
sua vida real, é um mar de sargaço, ou seja, um mar de algas espessas, que prendem o
movimento, que impedem que ele caminha e avance. É uma metáfora de grande
beleza que dá a entender ao leitor o estado de desespero do poeta.

Um mar onde bóiam lentos


Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.

É o mar de sargaços um mar onde bóiam pedaços de um mar de além. Que mar é
este? Trata-se porventura de um mar distante e diáfano, um mar irreal, mas livre e
desimpedido, onde os sonhos de Pessoa não o prenderiam, mas antes o fariam seguir
em frente, onde tudo o que ele imagina podia ser real. Mas ele questiona-se -
"vontades ou pensamentos? / Não o sei e sei-o bem". É muito Fernando Pessoa este
final, paradoxal e intrigante. O que ele nos diz é que mesmo esse mar de além, esse
futuro irreal, pode ser uma ilusão, só a sua vontade de querer ter os seus sonhos. Ele
diz saber a resposta ao mesmo tempo que a desconhece, isto porque confia no
Destino. Sabe que será impossível que se realizem todos os seus projectos, mas ao
mesmo tempo essa impossibilidade é humana, é dentro dele, e fora dele ele não sabe
o que poderá acontecer - um milagre, um imprevisto, um plano superior? Pessoa deixa
ao futuro a resposta para a sua angústia presente.

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