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DEPARTAMENTO CURRICULAR DE LÍNGUAS

PORTUGUÊS – 12º ANO

PORTEFÓLIO

Luís de Sttau Monteiro,

FELIZMENTE HÁ LUAR!
TEXTO DRAMÁTICO

A palavra teatro significa literalmente “O lugar de onde se olha”. O teatro é


um espetáculo: como tal, requer a presença física de atores, representando para
um público, dando vida a um texto através de palavras proferidas em cena. O texto
de teatro é concebido para ser representado: ler uma obra de teatro impõe ter em conta
como será representada. A peça de teatro não se reduz à linguagem verbal; comunica
informações e produz efeitos através de todas as componentes do espetáculo. Ao texto
dramático (que fixa o discurso das personagens) juntam-se, no momento da
representação, elementos visuais (gestos, objetos, cenários, luzes,...) e sonoros
(intonações, sons, música). O autor dramático escreve um texto com vista à
representação, deixando sempre uma margem de liberdade ao encenador e aos
atores que se apropriam do texto para o fazer reviver em cena.
Por isso, ler um texto de teatro não é o mesmo que vê-lo representado,
sendo essencial para a sua leitura descodificar as informações contidas nas
didascálias, que fazem parte integrante do texto dramático, e interpretar os
sentidos múltiplos ou ambíguos atribuídos às diferentes personagens, bem como
as relações que estas mantêm entre si.
Assim, podemos concluir que o texto dramático é composto por dois tipos de
textos:
1. o texto principal, constituído pelas falas das personagens;
2. o texto secundário ou didascálico, que fornece ao leitor a listagem inicial
das personagens, a distribuição das falas pelas diferentes personagens, a
divisão do texto em atos e cenas, as indicações sobre a posição que cada
personagem deve assumir em palco, os seus gestos, o tom de voz, a
expressão do rosto, o cenário, o guarda-roupa, a iluminação, os adereços de
cena, enfim, todas as informações e indicações pensadas pelo autor para a
leitura/representação da peça.

A linguagem dramática procura eficácia, concentrando os efeitos, a


densidade e a precisão e destacando o essencial.
Na senda do teatro épico, de Bertolt Brecht, o dramaturgo…
 deseja provocar uma atitude socialmente empenhada, visando a
transformação da sociedade;
 rejeita a catarse;
 cria o efeito de distanciação – o espetador deve estar desligado da ação
(substitui-se o terror e a compaixão pelo espanto e a admiração);
 valoriza a narrativa (o ator demonstra a ação)– o espetador ouve a narração
dos acontecimentos e deve refletir, ser crítico (reflexão com intenção
pedagógica); deve recordar para sempre a mensagem da peça.

O teatro moderno, em que Felizmente Há Luar! se insere, tem assim como


objetivo principal levar espectadores a pensar, a refletir sobre o que ouvem e sobre
o que lhes é «mostrado» e a tomar posição no lugar em que se encontram. A sua
compreensão exige leitura integral, tendo em conta:
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1. o texto - as componentes do texto dramático; observar e interpretar a dupla
enunciação teatral, a linguagem não verbal; as fases da ação dramática;
2. a representação - a ilusão teatral, os elementos visuais e sonoros, a
encenação;
3. o contexto político, social e cultural da época histórica em que se desenrola
a ação, comparando-o com a situação política, sociaI e cultural da época em o
texto foi produzido.

Luís de Sttau Monteiro enriqueceu o seu texto com imensos elementos de


texto secundário. Se nos perguntarmos porquê, teremos que responder que o
dramaturgo, não obstante ter situado a ação no século XIX, sabia perfeitamente
que não conseguiria enganar a censura e que a sua peça não seria representada;
por isso, através do texto “da margem esquerda”, fez ouvir a sua voz, propondo
uma determinada interpretação.
Estas indicações em Felizmente Há Luar! são bastante minuciosas no que
respeita ao tom de voz das personagens, aos gestos e à movimentação dos atores, à
iluminação, aos trajes, aos acessórios e aos adereços de cena, ao som. Estes signos
não linguísticos revestem-se de particular importância, conforme se lê no texto
didascálico que abre a peça: "O público tem de entender, logo de entrada, que tudo o
que se vai passar no palco tem um significado preciso. Mais: que os gestos, as
palavras e o cenário são apenas elementos de uma linguagem a que tem de adaptar-
-se" (p.15).
Sendo assim, parece-nos pertinente procurar interpretar o valor dos diferentes
signos, linguísticos e não linguísticos, que concorrem para a significação da peça que
se alarga, pela metáfora, para além da ação representada, levando-nos a transpor a
trindade da Regência constituída por D. Miguel, Beresford e Principal Sousa para o
tempo da ditadura salazarista que sobreviveu com a ajuda da PIDE e mercê da aliança
entre o governo, a Igreja, os grandes monopólios e as forças estrangeiras,
especialmente as da NATO. É também a confluência de todos os signos teatrais que
nos leva a compreender a miséria, a opressão e a consequente revolta do povo como
indiciadores da realidade do tempo da escrita e das tentativas de libertação,
violentamente reprimidas, como foram as greves de operários, a revolta dos mineiros e
camponeses, as manifestações do 1º de Maio, o apoio popular aos generais Norton de
Matos e Humberto Delgado.

a) O tom de voz
O tom de voz ou entoação, coadjuvando a interpretação das diferentes falas,
poderá também ser revelador dos sentimentos que dominam as personagens ou da
relação afetiva existente entre elas.
Por exemplo, Manuel, "o mais consciente dos populares", utiliza nos monólogos
o seu tom de voz habitual (pp.16), mas adota um tom sarcástico (“Está a imitar, com
sarcasmo, alguém que se não sabe quem seja.”,p.16), "duro e ríspido" (p.78) quando
pretende imitar os poderosos; pede esmola "num tom de voz humilde e trémulo" (p.78);
torna-se irónico quando critica a situação política do país (“Fala com ironia...”, p. 79);
fala com ternura (p.105), tristeza (p.109) ou em tom de acusação com Matilde de Melo

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(pp.1 05-1 06). As suas reflexões são entrecortadas por pausas que sugerem o fluir do
pensamento, mas também a sua própria impotência para mudar a situação política do
país.
O Antigo Soldado "fala com entusiasmo" (p.20) do general Gomes Freire e
refere-se "com escárnio" (p.22) aos outros generais; por isso, aparece "visivelmente
acabrunhado" (p.80) depois da prisão do seu herói.
Vicente, com o objetivo de persuadir o grupo de populares a quem se dirige,
"fala muito depressa. Está cada vez mais excitado" (p.21), "fala alto em tom de triunfo”,
“com sarcasmo” e " à medida que fala vai-se excitando cada vez mais” (p.22), quando
se refere a Gomes Freire. Explica aos polícias, "com certa tristeza" (p.25), a hipocrisia
que utiliza para convencer o povo ou "fala como um alucinado, com frequentes pausas"
(p.27) quando tenta justificar as suas posições. Depois de se dominar, assume a
traição ao povo com um "sarcasmo triste" (p.28) ou antevê a sua promoção a chefe da
polícia em “tom galhofeiro" (p.31) e "paternal" (p.32). De acordo com o seu carácter,
"fala com segurança e convicção" (p.33) perante os governadores ou finge um tom
humilde (p.36) e é "francamente adulador" (p.34). Parceiro do jogo do poder denuncia-
-o, no entanto, em tom irónico (p.37), quando se dirige aos governadores.
O tom de voz de D. Miguel varia de acordo com as circunstâncias e com os
destinatários do seu discurso. Perante as insinuações de Vicente sobre o envolvimento
do general Gomes Freire no movimento revolucionário, fala, primeiro, "irritado", depois
"com esperança" e, finalmente, "com escárnio" (p.35). Quando se dirige ao Principal
Sousa usa "um tom de confidência. Fala como um homem desiludido que, depois de
ter dado o melhor do seu trabalho, se vê incompreendido e desacreditado" (p 40).
Revela, pelo tom de voz, a sua frieza perante a possibilidade de ser morto pelos
revolucionários: "Não há receio nem ironia na voz de D. Miguel" (p.42) quando é
informado, por Beresford, dessa possibilidade. Fala, no entanto "com raiva" (p.131) da
execução dos conspiradores. Fala com ironia (p. 48) e autoridade a Andrade Corvo e a
Morais Sarmento: "Não percam tempo, senhores...Vão." (p.53). O seu carácter
autoritário ressalta também na maneira como põe termo às discussões entre Beresford
e o Principal Sousa ( “Senhores! A paz deste reino e a missão que el-rei nos confiou
não permitem que percamos tempo com conversas fúteis.”, p.55).
A antipatia do Principal Sousa por Beresford é notória quando ele (lhe) "fala
sem sorrir" (p.41) ou o critica "com fúria" (p.57); de acordo com a sua hipocrisia,
pretende consolar Matilde com um "tom paternal" ou, como se esclarece ironicamente
na didascália, "no tom de voz de quem está habituado às fraquezas humanas e sabe -
pela graça de Deus - dar-lhes o necessário desconto" (p.121); daí o "tom moderador"
ou "exaltado" que utiliza (p.122). Redimido pelo sofrimento e pelas palavras de Matilde,
dirige-se-Ihe com sinceridade no final da peça: "Trata-se duma confissão de impotência
e, simultaneamente, duma crise de honestidade" (p.134).
"Beresford é um homem prático, que encara objetivamente a realidade. O seu
tom de voz está de acordo com a sua maneira de ser." (p. 42). Não perde, no entanto,
ocasião de provocar o Principal Sousa, falando-lhe "como quem fala a uma criança"
(p.41) ou dirigindo-se a ele num "tom trocista" (p.53). "O tom do marechal é sempre
jocoso. Sente-se que não toma os Portugueses a sério." (p.55); o seu desprezo por
Portugal é evidenciado "pelo sarcasmo violento que reduz os presentes, a cidade e o

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país a uma insignificância provinciana e total" (p.58), por contraponto ao seu país natal.
Embora interessado na prisão de Gomes Freire, "fala com desprezo" (p.44) com os
denunciantes. Dirige-se a Matilde em tom "trocista" (p.93).
Denunciando o seu sofrimento, o discurso de Matilde é, frequentemente,
cortado por pausas. "Fala com rancor", "com determinação" (p.84), com violência
(p.86), com tristeza (pp.90, 115), "com simplicidade" (p.91), "com orgulho" (p.91),
"rapidamente, com entusiasmo" (p.92), "em tom de desafio" (p.94), "exaltada"
(p.95),"com amargura" (p.96), "com desespero" (p.97), "exaltadíssima" (p.97), "com
grande ansiedade" (p.111), grita (p.112), com "voz angustiada" (p.112), fala em voz
baixa (p.113), "com alegria" (p.114), "muito lentamente, com a voz embargada pela
comoção" (p.119), "com escárnio crescente" (p.123), "com amargura" (p.124), "com
autoridade" (p.124), "com lentidão, pesando bem as palavras" (p.128), "com
arrogância" (p.129), "com intensidade dramática" (p.132); "com amizade" (p.136)
quando se dirige a Sousa Falcão; no final, o seu discurso “é quase um grito” de revolta
e de esperança. Todas estas inflexões de voz dão conta da agitação dos sentimentos
que dominam a personagem.
Finalmente, Sousa Falcão, o melhor amigo do General Gomes Freire,
acompanha a dor de Matilde e fala "com desânimo" (pp.86, 118), "com tristeza" (pp.88,
131), "com ternura" (p.89), "em tom monótono" (p.111) quando relata os momentos
vividos pelo general em S. Julião da Barra, "em voz muito baixa" (p.113), "com voz
tremente" (p.115), "com azedume" (p.117), grita para exprimir a sua fúria (p.119).

b) A linguagem gestual e a movimentação das personagens


Entendemos como linguagem gestual não só os gestos, propriamente ditos, mas
a mímica, os jogos fisionómicos, a posição e a postura, isto é, todos os signos
corporais que interagem com as palavras proferidas pelas personagens, conjunto de
elementos a que alguns teóricos chamam "gestus".
O movimento como signo teatral relaciona-se com a utilização, pelas
personagens, do espaço cénico, incluindo o ritmo de entrada e saída dos diferentes
atores. Em Felizmente Há Luar!, além da movimentação para dentro e fora do palco,
os movimentos de entrada e saída de entrada e saída sujeitam-se também à
iluminação, como veremos mais adiante. Do mesmo modo há gestos indicativos da
simultaneidade de ações, como é o caso de a personagem aparecer de braços
cruzados, mostrando o tempo de espera. É nessa posição que D. Miguel aguarda
Vicente (p.32); o mesmo se passa com Beresford quando recebe Matilde, mostrando
que já esperava a sua visita (p.91) ou com Manuel que também aguarda de braços
cruzados e de costas voltadas para Matilde, disfarçando o seu envolvimento com a
mulher do general (p.1 07). É também o medo que o faz comentar a morte indigna do
general" Sentado de costas para o público e quase em surdina" (p.135).
Manuel abre os dois atos de Felizmente Há Luar!, exprimindo a sua
impotência. Enquanto fala, a personagem anda e detém-se (pp.15-16, 77), "levanta os
braços ao alto” deixa-os cair “num gesto de desânimo” (p.77). Inserido no grupo dos
populares, também foge da polícia no primeiro ato ou a enfrenta, no segundo. "Estende
a mão" e "faz uma vénia" ao pedir esmola ou manifesta a sua revolta, imitando, com

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gestos bruscos, as atitudes dos mais ricos que pensam resolver o problema dos pobres
dando-lhes uma moeda. Disfarça a sua solidariedade com Matilde falando com ela,
"sem voltar a cabeça e limpando a faca" (p.104). Depois, levado pela emoção, pede a
Rita que vá buscar um caixote para Matilde (p.104) e dirige-se-Ihe diretamente,
desencadeando, à sua volta, gestos de solidariedade que se sobrepõem ao medo,
como o do popular que oferece uma maçã a Matilde (p.105). Manuel revela, pelos
gestos, a ternura que sente pelas pessoas que vai apresentando a Matilde (p.106).
"Gesticula a falar" quando acusa. "Cala-se, visivelmente cansado, e deixa cair a
cabeça sobre o peito" (p.107). Mais calmo, "respira fundo, enchendo os pulmões de ar"
para expressar o seu sonho de liberdade (p.108).
Vicente, para exercer o seu poder junto dos populares, "sobe a um caixote"
(p.21), aponta sucessivamente cada um dos presentes ou fala ao grupo;
simultaneamente, intimida e ridiculariza os que defendem o general, fazendo "com as
mãos o gesto de quem toca tambor" (p.21), "abre os braços num gesto que abrange os
presentes, o fundo do palco, a miséria" (p.24); marcado também pela miséria, "senta-
se, descalça um sapato e começa a consertá-lo" (p.25). Perante os polícias, ao
contrário dos outros que fogem, imita, como Manuel e o 1º Popular, os gestos dos
fidalgos (p.27) mas a intenção que preside a essa imitação é diferente: ele não quer
ridicularizá-los, gostaria de ser como eles. A intenção de subir na vida é marcada pelo
prazer com que antevê a sua promoção a chefe quando "começa a passear em frente
dos polícias" (p.26), gesto que mima a revista às tropas, pela determinação com que
acompanha os polícias ao palácio dos governadores (p.32). Adota um comportamento
de quem sabe agradar: faz vénias (pp.33, 38-39), "cospe com repugnância" quando se
refere a estrangeirados (p.33), estuda os gestos do governador antes de falar (p.35).
Interessado em mostrar a competência dos seus serviços, entra depois,
intempestivamente, no palácio exagerando a iminência da revolução (p.60). Chamado
à atenção para o carácter confidencial das notícias, rapidamente corrige a situação,
mostrando-se cauteloso perante D. Miguel (p.60).
As sucessivas entradas em cena dos três denunciantes, Vicente, Andrade Corvo
e Morais Sarmento, contribuem para o adensar da situação sobretudo porque, como se
lê na didascália, "Os denunciadores valorizam os se serviços exagerando a gravidade
da conjura." (p.66).
D. Miguel Forjaz revela, pelos gestos, o seu carácter autoritário e arrogante.
Utilizando frases curtas, dá ordens ou faz perguntas diretas. Interrompe, com um gesto,
o discurso do polícia que lhe apresenta Vicente (p.33), fala "com autoridade" com os
outros governadores (p.55). Apesar do seu carácter decidido, indicia, pela sua
agitação, algum nervosismo (pp.52, 70, 73).
O Principal Sousa é ridicularizado pela hipocrisia dos seus gestos. Apadrinha
com um gesto de bênção a denúncia de Vicente (p.38), "aponta para o teto" quando
fala do Céu (p.40), recebe Matilde desvalorizando os motivos que a levam a procurá-lo:
"Faz um gesto convidativo. Depreende-se desse gesto, que o principal está convidando
Matilde a entrar num lugar sagrado" (p.121). Perante as acusações que ela lhe faz,
"permanece em silêncio, com os olhos postos no chão" (p.126). Embora não goste de
Beresford, a sua cobardia impede-o de o enfrentar. "Fala para D. Miguel mas vê-se que
se refere a Beresford, para quem olha ao falar no Conselho de Regência" (p.41); "O
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Principal Sousa nunca conseguiu discutir com o marechal. Defende-se dele negando-
lhe a seriedade necessária a uma discussão" (p.56).
Matilde de Melo exprime, pelos seus gestos e movimentos, a dor e a revolta.
Logo após a prisão do marido, aparece sozinha procurando consolo nas recordações e
nos objetos pessoais do general. A didascália dá conta do aumento gradual do seu
sofrimento. "Levanta-se... Encaminha-se para uma cómoda velha ...Abre uma gaveta
da cómoda e tira dela um uniforme velho de Gomes Freire...Coloca o uniforme de
Gomes Freire sobre a cadeira ...Acaricia o uniforme... Passa a mão pelo uniforme com
ternura ...Faz o gesto que fecha uma janela...Começa a chorar...Endireita-se. Parece
crescer no palco...Cai de joelhos, com os braços em torno da cadeira e, soluçando,
enterra a cabeça no uniforme de Gomes Freire" (pp.83-86).
O sofrimento e a revolta tornam-se dinâmicos depois da chegada de Sousa
Falcão em quem Matilde encontra apoio e que a acompanha a casa de Beresford e de
D. Miguel com a intenção de interceder pelo general Gomes Freire. A decisão de sair
de casa é indiciada pela movimentação da personagem em cena: " Matilde dirige-se à
cómoda e, enquanto fala, tira duma gaveta um xaile que põe à volta dos ombros"
(p.88). Orgulhosa do marido e aparentemente segura da razão que lhe assiste,
apresenta a Beresford razões justificativas da libertação do general, acabando o seu
discurso humilhada e a suplicar pela vida de Gomes Freire (pp.97-98).
"O amor intenso que unia Matilde a Gomes Freire explica todas as suas reações.
Para Matilde o mundo não passava de um inimigo que os perseguia a ambos. Só
adiante, no decorrer da conversa que tem com o principal Sousa, começa a tomar
consciência da posição do general em relação ao que se passa no país. Tudo isto se
deve depreender dos seus gestos e do seu tom de voz" (p.120). Efetivamente é nesta
conversa que o discurso da personagem ganha intensidade dramática. A observação
da moeda que lhe deu Manuel (pp.120-121) desencadeia a imagem da traição de
Judas, que vendeu Cristo "por trinta dinheiros". Os gestos de Matilde, que interpela o
Principal Sousa, com a moeda na mão (p.121) ou que, depois de o acusar de
desvirtuar a mensagem cristã, lhe atira a moeda aos pés (p.134) são, só por si, uma
acusação de traição aos valores da Igreja, que ele representa. A impotência de salvar o
homem que ama dá a Matilde uma calma, aparentemente resignada; os gestos
alucinados que transfiguram o real, indiciam, no entanto, a loucura desencadeada pela
dor: "Avança e abraça um ser imaginário...faz o gesto de quem abotoa o casaco de
Gomes Freire...estende o pescoço e levanta a cabeça para receber um beijo...Por um
instante segue-o com os olhos. Depois, com dignidade volta para ao pé de Sousa
Falcão" (pp.138-140).

c) Cenário, iluminação, trajes, adereços de cena


No teatro tradicional o cenário mudava em função dos atos. O mesmo não
acontece em Felizmente Há Luar! em que os dois atos são constituídos por quadros
que não respeitam a unidade de tempo ou de lugar e que obedecem a uma técnica de
encenação simultânea. Num palco simultâneo, os diferentes quadros são desvendados
pela iluminação que incide sobre estas ou aquelas personagens.
No início de cada um dos atos, "a cena está às escuras" incidindo a luz sobre

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Manuel que aparece sozinho. Só depois se ilumina o fundo do palco e surgem as
outras figuras populares. Após a chegada da polícia que dispersa o grupo de
populares, "a luz do fundo vai diminuindo de intensidade até desaparecer
completamente. Os polícias aproximam-se de Vicente, que desce do caixote e
acamarada com eles. Ficam os três, iluminados, no palco" (p.24). Quando Vicente e os
polícias se dirigem ao palácio de D. Miguel, "viram as costas ao público e encaminham-
se para o fundo do palco com determinação. A meio caminho, o fundo ilumina-se. De
pé, à direita, D. Miguel aguarda-os de braços cruzados" (p.32). Vicente, acompanhado
dos dois polícias, sai do palácio avançando "para o centro do palco enquanto a luz do
fundo se apaga" (p.39). Após a saída destas personagens, os governadores "avançam
até se encontrarem no centro e à frente do palco" (p.39), lugar que continua iluminado.
"Viram as costas ao público e encaminham-se para o fundo do palco enquanto, pela
esquerda, entram Andrade Corvo e Morais Sarmento" (p.45) que se dirigem para o
palácio dos governadores, tornado visível quando as luzes do fundo se voltam a
acender (p.47). No final do 1º ato "apagam-se todas as luzes. As personagens ficam na
penumbra agitando os braços e erguendo bandeiras no ar." (p.74).
No 2º ato que, como já vimos, começa como o primeiro, depois da saída dos
populares e dos polícias, "surge, a meio do palco, intensamente iluminada,(...)Matilde
de Meio. Quando Matilde e Sousa Falcão saem de casa, "avançam para a frente do
palco enquanto desaparece gradualmente a luz que ilumina a cómoda e a cadeira. A
meio caminho, António de Sousa Falcão afasta-se e sai pela esquerda. Matilde fica
isolada ao centro, e à frente do palco" (p.89). Chamado por Matilde, William Beresford
"surge, de braços cruzados, ao fundo e à direita do palco" (p.91) e, antes da saída de
Beresford que continua a falar com Matilde "já de fora do palco" (p.99), entra o grupo
de populares a quem ela se dirigirá depois, sugerindo assim a simultaneidade de
quadros. "A luz que iluminava o povo apaga-se gradualmente e apenas Matilde
permanece iluminada. António de Sousa Falcão surge pela direita do palco.” (p.11 O).
Os dois amigos vão a casa de D. Miguel e "dirigem-se ambos para o centro do palco.
Vindo do fundo, surge um criado, de libré, que se coloca à frente deles" (p.118),
sugerindo assim a localização do palácio na parte não iluminada do palco. (...)
O momento em que Matilde avança ao encontro do ser imaginário em quem ela
vê Gomes Freire coincide com o aparecimento do clarão da fogueira (p.138) onde ardia
o corpo do general. Vista de Lisboa, a fogueira ateada em S. Julião da Barra, ilhota
situada em frente a Oeiras, aparecia "distante", como um clarão que vai gradualmente
desaparecendo.

Em Felizmente Há Luar! os trajes das personagens e os objetos que aparecem


funcionam como adereços de cena, isto é, são elementos da decoração do cenário que
nos permitem localizar a ação dramática. As várias figuras populares compõem o
cenário da miséria onde se move Manuel que aparece andrajosamente vestido. A
ausência absoluta de qualidade de vida explica a revolta de um povo que dorme e
come na rua, que se senta em caixotes, que não tem condições de higiene. Os objetos
pessoais das personagens constituem também adereços de cena: "cestos, mantas
esfarrapadas, uma abóbora, etc." (p.18), "o sapato estragado de Vicente” (p.25), "uma
boneca esfarrapada" (p.25). O cenário de miséria é completado pelas próprias

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personagens: "uma velha, sentada num caixote, cata piolhos a uma rapariga nova"
(p.16), Manuel aparece como pedinte no segundo ato e chama a atenção de Matilde
para a galeria de homens minados pela pobreza e, sobretudo pela velhice, a doença, a
deficiência física e mental (pp.105-106).
Contrastando com a pobreza dos populares, o Principal Sousa surge
"imponentemente vestido" (p.36); aparece "vestido de gala" e sentado numa cadeira
pesada e rica, com aparência de trono (p.121), quando recebe Matilde que depois é por
si encaminhada para a Igreja (p.121), lugar revelado também pela cruz iluminada que
surge a meia altura do palco (p.132).
"Beresford vem fardado. A farda, ainda que regulamentar, não é espaventosa e
está um pouco usada" (p.41), roupa que o identifica como militar, que está de acordo
com o seu espírito prático mas indicia também o seu desprezo pelos portugueses junto
dos quais ele não tem a preocupação de vestir uma farda melhor.
Matilde surge em cena, "vestida de negro e desgrenhada" (p.83) manifestando a
dor que vive. Mais tarde, enquanto observa o clarão da fogueira de S. Julião da Barra,
ao lado de Sousa Falcão que "está inteiramente vestido de negro", traz uma saia verde,
roupa que tem um duplo significado: é a oportunidade última de aparecer, no encontro
imaginário com o general, com a saia que ele lhe ofereceu e que ela nunca tinha
vestido e é também a forma de manifestar, pela cor, a sua esperança na vitória das
ideias defendidas pelo marido.

d) O Som
Em Felizmente Há Luar!, há sons portadores de grande expressividade
dramática como é o caso do sons dos tambores que sugerem a repressão militar e
policial. O ruído dos tambores, "símbolo de uma autoridade sempre presente e sempre
pronta a interferir" (p.21) aterroriza e dispersa os populares (pp.18, 21). Quando é
pronunciado o nome do general Gomes de Andrade como cabecilha da revolução,
"começam a ouvir-se tambores ao longe, muito em surdina" (p.71), apontando o início
da repressão que há de culminar com a prisão do general. Cumprindo ordens de D.
Miguel, a repressão instala-se: "Os tambores tocam sem cessar" (p.73), "entram em
fanfarra e o palco enche-se de soldados" (p.74).
O som dos sinos mostra o envolvimento da Igreja na repressão que se abate
sobre o povo. A par do discurso do Principal Sousa que se serve do púlpito para atacar
os revolucionários, "começa a ouvir-se um sino tocar a rebate" (p.74). O som dos sinos
mistura-se com o dos tambores (p.74) adquirindo, assim, o mesmo sentido repressivo
que afeta a imagem da igreja envolvida com outros agentes da repressão popular. É o
caso do padre, seguido do sacristão que toca uma campainha e dos fiéis que, seguindo
o padre, colaboram nos serviços religiosos. "Ao longe, muito ao longe, começa a ouvir-
se o murmúrio da multidão, entrecortado, de quando em quando, por latim" (p.129);
O som da fanfarra que se ouve no final da peça "num crescendo de intensidade
até cair o pano" é ambíguo; se por um lado resulta do som opressivo dos tambores, é
também o som da festa da liberdade profetizada por Matilde.
Tal como os sons, os silêncios (ausências de som) marcados pelas pausas no
discurso podem sugerir o estado emotivo das personagens, o fluir dos seus

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pensamentos ou sublinharem um momento de grande tensão emocional como é o caso
do silêncio "pesado" que se segue à primeira conversa dos populares sobre o general
Gomes Freire de Andrade (p.21) ou dos instantes que precedem a execução dos
conspiradores, em que "o palco fica às escuras e em silêncio" (p.135).

A riqueza das didascálias é tal que ordem que a representação dispensa


grandes artificialismos ou expedientes visuais para captar a atenção do público. Esta
foi a intenção de Sttau Monteiro que, sobre a encenação da sua peça, diz:
«Resolvi, assim, encená-la com a maior simplicidade possível, assentando a
minha encenação unicamente no texto que escrevi e na interpretação dos atores. Foi o
que fiz. Esta encenação não tem, portanto, surpresas para os espectadores. Desejo-os,
efetivamente surpreendidos, mas por ficarem a entender melhor o papel que
desempenham na vida e não por brilhantismos cénicos.»

Português-12º - Professora Ana Amaral 10


FELIZMENTE HÁ LUAR! – ELEMENTOS PARATEXTUAIS

TÍTULO
«Felizmente Há Luar» é uma expressão utilizada por Raul Brandão, em Vida e
Morte Gomes Freire, o que nos mostra claramente que Sttau Monteiro recorreu a esta
narrativa histórica, onde pôde confirmar factos relacionados com a condenação do
herói da conspiração de 1817:
«Dezoito de Outubro. No Campo de Sant’Ana os operários tinham passado a
noite a montar a armação de madeira... Pelas duas da tarde saem enfim do Limoeiro,
mas vai-lhes levar tempo a morrer... O espetáculo quer-se moroso – “felizmente há
luar”- e aquilo desfila e sobe devagar e de espaço, justiça, frades, irmãos de
misericórdia com bandeiras, por entre a multidão silenciosa, por entre a tropa de linha,
sem um sinal compassivo... A tortura de Gomes Freire acaba no mesmo dia 18 de
outubro....»
A frase é apenas reticente (“felizmente há luar”), mas o dramaturgo Sttau
Monteiro acrescentou-lhe ponto de exclamação e utilizou habilmente a frase de tipo
exclamativo que dá o título à peça.
De facto, este elemento paratextual é extremamente relevante, associando-se a
diferentes conotações. Para além de título, a frase surge duas vezes ao longo de todo
o texto: a primeira vez é dita por D. Miguel e a segunda por Matilde de Meio,
evidentemente com objetivos antagónicos.
D. Miguel Forjaz Matilde de Melo
«Lisboa há de cheirar toda a noite a carne «Olhem bem! Limpem os olhos no clarão
assada, Excelência, e o cheiro há de Ihes daquela fogueira e abram as almas ao que
ficar na memória durante muitos anos... ela nos ensina! Até a noite foi feita para que a
Sempre que pensarem em discutir as nossas vísseis até ao fim...
ordens, lembrar-se-ão do cheiro... (Pausa)
(Com raiva) Felizmente - felizmente há luar!» (p. 140).
É verdade que a execução se prolongará
pela noite, mas felizmente há luar...»(p. 131) Para Matilde, pelo contrário, a morte do
marido serviria de lição a todos os que
Para D. Miguel, a morte de Gomes Freire observassem o crime hediondo. O seu
d'Andrade serviria de exemplo a todos os que discurso é manifestamente marcado por
intentassem contra a ordem instituída e, deste frases exclamativas que traduzem o apelo à
modo, a existência de luar permitiria que esperança e à coragem. Para a companheira
todos observassem a execução e tirassem as todas as horas de Gomes Freire, a luz
devidas ilações. A morte do presumível chefe sobrepor-se-ia às trevas e permitiria que a
da conjura facilitaria a afirmação do poder, morte desse lugar à vida. Seria o exemplo
ainda que fosse pela força e pela injustiça. O para pôr termo a um regime autoritário e
cheiro a carne queimada ficaria retido na injusto e, consequentemente, possibilitaria o
memória e intimidaria todos os que ousassem nascimento da justiça e da liberdade.
qualquer tipo de conspiração. As suspensões
frásicas manifestam a dúvida, a crueldade e a
ausência de emotividade.

Português-12º - Professora Ana Amaral 11


DEDICATÓRIA

A dedicatória a Fernando Abranches Ferrão, ilustre advogado de processos


políticos durante o período do Estado Novo, denota a influência que os amigos do
autor, intelectuais que se opunham ao regime salazarista, exerceram para que este
escrevesse e denunciasse, de forma velada, os erros do regime.

A CITAÇÃO DE JOHN OSBORNE

Um outro elemento paratextual de significado relevante é a transcrição de


um excerto da autoria do dramaturgo inglês John Osborne, elemento dos
chamados Angry Young Men, cujas peças marcaram uma viragem no teatro em
Inglaterra, sobretudo a partir de 1957. Apesar de Luís de Sttau Monteiro não estar
diretamente ligado a nenhum grupo literário, o tempo que viveu em Londres
permitiu-lhe o contacto com a cultura inglesa e com tudo o que de mais inovador se
fazia pela Europa. De facto, em Felizmente Há Luar!, à semelhança do teatro de
Osborne, evidencia-se a crítica social e a fúria de um jovem homem que não aceita
as condições do Estado, mas que está consciente das limitações impostas pela
censura. O excerto selecionado por Sttau Monteiro para epígrafe do seu livro
denuncia o papel da censura, em 1961, sobre a liberdade de expressão.

ESTRUTURA

A. ESTRUTURA EXTERNA

Na página que serve de frontispício à obra, encontramos logo a indicação


sobre a estrutura externa:
«Teatro – Peça em 2 atos»
Folheando o livro, apercebemo-nos de que não há divisão em cenas,
apesar de se verificar e entrada e a saída de personagens.

B. ESTRUTURA INTERNA
Se nos centrarmos no texto principal, podemos constatar que ele
apresenta todo o processo que conduziu à condenação e execução do general
Gomes Freire de Andrade: no primeiro ato, trama-se a prisão e, no segundo,
verifica-se a sua execução. Em cada ato, podemos distinguir macro momentos (um
e dois, respetivamente) e diversos micro momentos.

Português-12º - Professora Ana Amaral 12


Macro
Atos Micro momentos
momentos

- Manuel caracteriza a situação do país (monólogo).


- Outros elementos do povo (1º Popular, Rita, O Antigo Soldado, 2º
Popular, 3º Popular, Uma Velha, Uma Voz, Outra Voz, Vicente)
dialogam sobre o mesmo tema - o nome de Gomes Freire é
referenciado como esperança, mas Vicente manifesta-se contra os
generais, nomeadamente contra Gomes Freire de Andrade.

- Dois polícias dispersam os populares, à exceção de Vicente que se


mostra disposto a trair o povo, pois ele apenas acredita “no dinheiro
e na força”.

- Os dois polícias conduzem Vicente ao palácio do Conselho de


Regência por ordem de D. Miguel. Aqui, aceita vigiar a casa de
Gomes Freire, em troca da promessa de um posto de chefia na
polícia.

- D. Miguel, Beresford e Principal Sousa falam sobre o clima de


conspiração, mostrando medo de perderem o poder; ressalta a
animosidade entre Beresford e Principal Sousa.
A
- - D. Miguel prenuncia o julgamento secreto e arbitrário do chefe da
T
conspiração, seguido da execução. PRIMEIRO
O
- - Andrade Corvo e Morais Sarmento encaminham-se para o palácio
I
conjeturando o que lhes poderá render a sua denúncia. Os dois
delatores são recebidos friamente pela Junta de Regência.

- - Os Governadores continuam a sua conversa sobre a conspiração e


Beresford critica Portugal, revelando-se um mercenário. D. Miguel
afirma que o nome do chefe da conspiração será escolhido de
acordo com as conveniências da Junta de Regência.

- - Vicente traz notícias sobre os frequentadores da casa de Gomes


Freire. A conversa dos governadores sobre a pessoa que mais
convém condenar continua.

- -Vicente, Morais Sarmento e Corvo interrompem a conversa e dão a


conhecer à Junta o nome que anda na boca do povo: Gomes Freire
de Andrade.

- - Beresford e D. Miguel revelam as razões, de natureza pessoal, para


designar Gomes Freire como chefe da conspiração.

- - D. Miguel e Principal Sousa manipulam a opinião pública e clamam


morte a Gomes Freire.

Português-12º - Professora Ana Amaral 13


-
- - Manuel reitera a impotência do povo perante o poder político
(monólogo). Outros populares comentam o ambiente de repressão
que se vive na cidade e Rita conta as circunstâncias da prisão de
Gomes Freire.
- Matilde, em monólogo, revela sofrimento e revolta pela prisão do
seu companheiro.

- Matilde encontra em Sousa Falcão, amigo de longa data, apoio


para lutar pela libertação do marido.

- Matilde evoca o seu passado ao lado de Gomes Freire e decide


tomar uma atitude mais drástica para tentar libertá-lo.

- - Matilde, primeiro argumentando superiormente, depois suplicando,


pede a libertação do companheiro junto de Beresford, mas em vão.

- - Matilde tenta obter o apoio dos populares, mas Manuel e Rita SEGUNDO
A explicam-lhe as razões da indiferença do povo.
T
- - Matilde toma conhecimento, através de Sousa Falcão, das
O
condições desumanas a que o seu companheiro é submetido em S.
Julião da Barra.
II
- Matilde pede audiência a D. Miguel, mas este não lha concede.

- - Matilde enfrenta Principal Sousa, acusando-o de ser injusto,


hipócrita e materialista. Esta crítica é dirigida aos homens que
representam a Igreja de modo errado. Entrada de Frei Diogo que
refere ter confessado Gomes Freire na prisão.

- Prepara-se a execução dos prisioneiros. D. Miguel afirma:


«...felizmente há luar...» e Matilde insurge-se contra a justiça divina.

- Manuel dá a conhecer o desejo de Gomes Freire: morrer fuzilado


como soldado. Tal desejo é-lhe negado.
- - Matilde e Sousa Falcão veem do cimo da serra a fogueira que
queimará o corpo de Gomes Freire, condenado à morte por
enforcamento, em S. Julião da Barra. TERCEIRO

- Matilde pronuncia as palavras: «Felizmente - felizmente há luar!».

Português-12º - Professora Ana Amaral 14


PERSONAGENS

a) General Gomes Freire de Andrade


O general Gomes Freire de Andrade não é apenas uma personagem da peça
Felizmente Há Luar!; é uma figura importante do panorama político do início do
século XIX (nasceu em 1757 e morreu em 1817). A referência a esta personalidade
histórica poderá ser consultada no Manual, pág. 207)
Enquanto personagem central da peça de Sttau Monteiro, o retrato do General é
delineado pelas outras personagens, pois ele nunca aparece em cena. A primeira
referência aparece na boca do Antigo Soldado que combatera no seu regimento e que
faz dele a personificação da liberdade (p.18) e da justiça, mostrando sentimentos de
respeito e admiração: "Um amigo do povo! Um homem às direitas! Quem fez aquele
não fez outro igual." (p.20). Freire de Andrade aparece, desde logo, como uma figura
ímpar, única, que se destaca do contexto onde se move. Mesmo depois das acusações
de Vicente, o Antigo Soldado ainda protesta destacando a sua singularidade: "O
Gomes Freire não é desses." (p.22). Nas palavras de Manuel, pressentimos a
esperança de que só Freire de Andrade poderá libertá-los da opressão e do terror em
que estão mergulhados e edificar uma sociedade mais justa e mais livre - "Se ele
quisesse..."(p.21). O tom optativo desta frase deixa também entrever, desde os
primeiros momentos da peça, que Freire de Andrade não se terá verdadeiramente
empenhado, como querem fazer crer os seus perseguidores, na" revolta e, portanto,
está inocente. Revela ainda o desejo de colaboração com o General, a vontade de se
confiar nas suas mãos a fim de se atingir uma causa comum, pois só ele "é capaz de
se bater com os senhores do Rossio" (p.23).
Vicente é a voz do contra ao provocar os companheiros dizendo que Freire de
Andrade é um estrangeirado (p.23) e que pertence a um outro grupo social que é,
apesar de tudo, mais favorecido: "Tens sete filhos com fome e com frio e vais para
casa com as mãos a abanar. Julgas que o Gomes Freire os vai vestir?" (p.21). Para os
governadores, é um homem "incómodo" (pp.95-96) que convém, por diferentes razões,
eliminar: D. Miguel está dominado por um profundo ódio ("Se eu fosse a falar do ódio
que lhe tenho...",p.72); o Principal Sousa receia as influências da Revolução Francesa
e o espírito anticlericalista que a animou ("São muitos os inimigos do Senhor, nos dias
que vão correndo. Fala-se de Deus com ironia e da sua Igreja como se de letra morta
se tratasse...Os piores, Srs. Governantes, são os pedreiros-livres... Quem será o chefe
da Maçonaria?", p.67; Beresford teme perder o seu lugar e os seus privilégios: "É
também meu inimigo quem me possa substituir na organização do exército...ou lá se
vão os meus 16.000$00...Basta que surja um oficial com um passado brilhante para me
destronar", p.63). Enfim, Gomes Freire parece reunir todos os "requisitos", como
resume D. Miguel: "Notai que lhe não falta nada: é lúcido, é inteligente, é idolatrado
pelo povo, é um soldado brilhante, é grão-mestre da Maçonaria e é, senhores, um
estrangeirado...",p.71). A ironia da peça reside precisamente na ideia de que o acusado
de ser conspirador acaba por ser vítima de uma conspiração.
No segundo ato, o retrato do General completa-se. Com a entrada em cena de
Matilde, sua mulher, e de Sousa Falcão, o inseparável amigo, bem como de Frei Diogo
de Meio, o único representante da Igreja que é "um homem sério" e merecedor de
Português-12º - Professora Ana Amaral 15
confiança, ficamos a conhecer Gomes Freire na intimidade a partir do testemunho de
quem com ele privou de perto. Para Matilde, ele é um homem lúcido e inteligente, que
"vê para além da cortina de hipocrisia com que os poderosos escondem a defesa dos
seus interesses",p.95); corajoso pois "enfrenta" os perigos (p.91) e "olha para vós de
frente, e sorri", p.96) e, acima de tudo, discreto já que nunca se serviu do seu estatuto
para influenciar o povo -"Olhe que nem saía de casa, com medo que o povo o
aclamasse. Juro-lhe que nunca conspirou!",p.87). Para Sousa Falcão, Gomes Freire é
"franco, aberto, leal" precisamente o oposto de D. Miguel Forjaz. Considera-o corajoso
pois morre pelos seus ideais, sem se "vender": "Há homens que obrigam todos os
outros a reverem-se por dentro",p.137). Frei Diogo de Meio resume a sua opinião do
General numa frase lapidar, um pouco exagerada talvez, mas reabilitadora: "Se há
santos, Gomes Freire é um deles...", p.126.
É interessante verificar que existe ao longo da peça uma proximidade entre a
figura do General e a de Cristo: logo no primeiro ato, emprega-se o termo "crucificar"
(p.70) para designar a sua morte; no segundo ato, Manuel e Matilde invocam as trinta
moedas "com que se compram e vendem as almas" (pp.110-120), quantia pela qual
Cristo foi entregue por Judas; é o apego ao dinheiro que leva à denúncia de Gomes
Freire. Matilde protesta contra o principal Sousa dizendo: "Conheço esse argumento.
Foi com ele que justificaram a condenação de Cristo!",p.122. Aquando da execução do
general, Matilde refere a relação íntima do marido com o Criador: "Não reza porque
viveu tão perto de Deus que nem precisa de se lhe dirigir..." (p.130). Esta comparação
entre as duas figuras remete para a inocência de Gomes Freire.
Esta caracterização revela um homem que se assumiu como símbolo da luta
pela liberdade, da defesa intransigente dos ideais, daí que a sua presença se torne tão
incómoda não só para “os reis do Rossio”, mas também para os senhores do regime
fascista dos anos 60.

b) Matilde de Melo
Matilde de Melo é "a companheira de todas as horas" do general. Personagem
individualizada, é a figura central do segundo ato, onde se mostra uma mulher
apaixonada e corajosa, à altura do marido: "Vou enfrentá-los. É o que ele faria se aqui
estivesse e - quem sabe? - talvez Deus me oiça. Ele há de ouvir alguém",p.91). Mesmo
depois do encontro com Beresford e a recusa de D. Miguel Forjaz em recebê-la,
Matilde não desanima, como informa a didascália, "Recupera parte da sua antiga
energia. Como que se adivinha nela a mulher que acompanhou Gomes Freire pelos
campos de batalha da Europa (p.121)) e resolve ir ter com Principal Sousa. Matilde
acaba por confessar que afinal também partilha dos mesmos ideais do general: "Um
dia encontramos o nosso homem a sonhar um outro mundo - sabemos que esse sonho
põe termo à paz que tanto desejamos, e mesmo assim, queremos dizer-lhe que siga o
seu caminho, que iremos com ele até ao fim, mas não sabemos por onde começar",
p.90. No diálogo com Beresford resume a sua vida, sublinhando as diferenças entre o
"antes" e o "depois" de ter conhecido Gomes Freire e orgulhando-se de tudo o que
aprendera com ele. O tom desafiador que emprega para se dirigir ao marechal acaba
por revelar todo o seu desespero, já que o volitivo se torna inútil: "Quero o meu
homem! Quero o meu homem aqui, ao meu lado! Quero acabar os meus dias em paz!",

Português-12º - Professora Ana Amaral 16


p.94. Ela é a personificação de todos os sacrifícios que as mulheres fazem para manter
a família unida: "As mulheres, Sr. Marechal, estão sempre dispostas a colaborar com a
tirania para conservarem os maridos em casa..”, p.94. Ela será a voz da consciência
junto dos governantes (p.88), obrigando-os a confrontar-se com a sua presença e a
assumir os seus atos: "É preciso que os homens se definam para que possam ser
julgados. É preciso que ele nos receba - é a nossa oportunidade de o obrigar a definir-
se, de o colocar no banco dos réus, para que o juiz o possa julgar...",p.118. O seu dedo
acusador acabará por se levantar também contra a cobardia do povo: "Sabem o que
lhe aconteceu?... Não sabem? Pois deviam sabê-lo! Eram vocês que o aplaudiam, na
rua, quando ele passava...», p.1 01, acabando, porém, por compreender as razões
deste. Na entrevista com o principal Sousa, Matilde revela grande inteligência e poder
de argumentação já que consegue, através de inúmeros exemplos bíblicos, "confundir"
o prelado e fazer-lhe ver os verdadeiros ensinamentos da doutrina cristã (pp. 124-126).
A sua raiva chega ao ponto de rogar-lhe uma praga para o atormentar até ao fim dos
seus dias (p.129).
Surge em palco a falar sozinha, "vestida de negro e desgrenhada', é a imagem
viva da dor e da alucinação. De notar, porém, que esta personagem, à medida que o
tempo passa e as circunstâncias lhe são adversas, mesmo depois de ter perdido o
controle, vai ganhando força, "crescendo em palco': como refere o autor, acabando
mesmo por aparecer na última cena vestida de "verde", símbolo da esperança, ao
contrário de Sousa Falcão que está de luto. Juntamente com o marido, Matilde
destaca-se dos que a rodeiam; é um ser excecional que vive num mundo dominado
pela hipocrisia, pela ganância e pela falta de solidariedade, onde valores como a
dignidade e a justiça nada valem. É ela que encerra a peça. São dela as palavras
finais: despede-se do marido, convicta da sua inocência e consequente salvação,
recolhe a derradeira vontade de Gomes Freire e grita: "Felizmente - felizmente há luar!"
Afinal, a morte do general não é o "fim mas o princípio" porque a fogueira "há de
incendiar esta terra!". Estes momentos, quase surreais, são também a denúncia do
absurdo a que a intolerância e a violência dos homens conduzem.

c) António de Sousa Falcão


Forma, com Matilde, o grupo de amigos de Gomes de Andrade. Parece estar
constantemente presente na vida do casal já que acompanhara a morte do filho
(p.115), aconselhara-os a não voltar a Portugal e, por fim, não abandona Matilde. É,
reconhece Matilde, "o amigo das coisas importantes e das pequenas coisas - essas
pequenas coisas que só m verdadeiros amigos compreendem",p.115.
Nutre uma grande admiração pelo General mas, ao contrário de Matilde, está
constantemente dominado pela cobardia e pelo desânimo, pois tem consciência do
modo como a sociedade funciona ("Neste Reino, os homens fizeram Deus sua
semelhança e, depois, fizeram-se à imagem e semelhança desse Deus.”,p.88), pelo
que procura convencer Matilde da inutilidade da sua luta. Decidido a estar ao lado de
Matilde, toma consciência do seu dever- "Todos somos chamados, pelo menos, uma
vez, a desempenhar um papel que nos supera. É nesse momento que justificamos o
resto da vida perdida no desempenho de pequenos papéis indignos do que somos.
Chegou a nossa hora, Matilde. Vamos",p.89. É grande a sua revolta perante as

Português-12º - Professora Ana Amaral 17


palavras ofensivas de D. Miguel Forjaz; não se conseguindo conter, exterioriza a sua
fúria numa tripla imprecação e arrisca-se mesmo a desafiar o nobre: "Cão! Covarde!
Assassino!...”,p.119.
É uma das personagens com maior densidade psicológica já que o destino do
amigo lhe permite encontrar-se consigo próprio, o obriga a "rever-se por dentro”, como
afirma, descobrindo que é um cobarde porque não tem força para lutar pelas suas
ideias. Calar-se é o preço que tem de pagar para permanecer vivo e "livre". O ato de se
repensar altera a sua conceção do mundo e das coisas mas dá-lhe também, informa a
didascália, "uma calma e uma paz interior que nunca tivera" (p.136), talvez porque só
nesse momento seja verdadeiro consigo próprio.

d) O povo
Constitui “o pano de fundo permanente” da peça. Personagem coletiva,
consubstancia-se nos vários populares que espelham a miséria, a ignorância, a
exploração e a opressão. Vicente salienta as péssimas condições de subsistência
(p.21); o som dos tambores e a polícia provocam reações que denunciam o ambiente
de tristeza, de medo, de intimidação e de horizontes limitados que rodeia esta classe. À
exceção de Vicente, Manuel e Rita, os outros elementos populares não são referidos
pelos seus nomes próprios, pois ao dramaturgo interessava mostrar que o povo era
joguete nas mãos dos poderosos e que a miséria, o medo e a ignorância eram em
1817, como em 1961, os fatores que, bem manipulados, podiam dissuadir as
reivindicações coletivas.

☞ O Antigo soldado
Esta personagem popular é aqui objeto de destaque, porquanto combateu no
regimento do General, podendo assim testemunhar o percurso militar do herói da peça
e invocar o doce sabor da “liberdade” (p.18). Simboliza todos os homens que
combatem por um senhor ou ideal e que, quando já não servem, são votados ao
abandono, encarnando assim a crítica a um Regime político que ignora o povo que
serve nos exércitos. No 2º ato, personifica o desalento, o pessimismo e a deceção do
povo que, com a execução do General, vê mais uma vez adiada a possibilidade de
mudança.

☞ Manuel
Manuel, que abre os dois atos, simboliza a inteligência e a capacidade de
apreciação crítica de um povo que, apesar de ser mantido na ignorância pelas classes
dirigentes, consegue discernir a situação da sua classe e do país: "E enquanto eles
andam para trás e para a frente, para a esquerda e para a direita nós não passamos do
mesmo sítio" (p.16) ou "Vê-se a gente livre dos Franceses, e zás! cai nas mãos dos
Ingleses!" (p.16). Consciente da sua pouca importância, é bem visível a sua impotência
perante a eventual resolução dos problemas em causa: "Que posso eu fazer? Sim: que
posso eu fazer?" (pp.15, 77). Na voz de Manuel perpassa o desânimo, a falta de
energia para lutar contra o poder instituído: "Mas o general está em preso em S. Julião
da Barra e nós...estamos presos à nossa miséria, ao nosso medo, à nossa ignorância
Português-12º - Professora Ana Amaral 18
... (Pausa) Não a podemos ajudar, senhora. Deus não nos deu nozes e os homens
tiraram-nos os dentes" (p.109). No diálogo com Matilde, no segundo ato, Manuel
evidencia, mais uma vez, a sua profunda consciência das desigualdades sociais do seu
tempo: "Perguntou-nos, há pouco, o que íamos fazer para libertar o general...(...) Olhe
para nós, Sra D. Matilde. Abra bem os olhos e veja quem somos e ao que estamos
reduzidos." (pp.106). Mas acaba por revelar uma grande dignidade e um profundo
respeito pela dor alheia: "Desculpe o modo como a tratei. A senhora não merece as
palavras que proferi, mas eu também não mereço tê-Ias proferido..." (p.108). O instinto
de sobrevivência parece sobrepor-se a todos os sentimentos: "Amanhã quando
começarem a agradecer a Deus a prisão do general, estaremos à porta das igrejas
pedindo esmola (.. ) Não nos leve a mal, senhora, a culpa não é nossa..." (p.109).
“O mais consciente dos populares” assume algum protagonismo no início dos
dois atos, denunciando a opressão a que o povo português tem estado sujeito (as
Invasões Francesas, a “proteção “ inglesa, após a retirada do rei D. João VI para o
Brasil) e a incapacidade de conseguir a libertação e de sair da miséria reinante.

☞ Rita
Embora apareça logo no primeiro ato, é no segundo que Rita se individualiza,
adquirindo maior relevo. É ela que presencia a prisão e a violência exercida sobre
Gomes Freire: "Eu vi o general sair de casa. Arrombaram-lhe as portas e nem lhe
deram tempo de vestir-se. Só conseguiu calçar as botas à saída"(p.82). A solidariedade
para com Matilde é bem evidente, não apenas na comoção ("A mulher ficou a chorar
até de manhã. Passei-lhe à porta e ouvi-a a soluçar. Deu-me vontade de fugir, de largar
a correr por essas ruas fora e de me deitar ao Tejo! " -p.82), mas também no gesto
final: "Rita entrega a moeda a Matilde. Num gesto impulsivo, beija-a e corre a juntar-se
aos seus" (p.110). Essa solidariedade nasce da comunhão de sentimentos: ambas
sabem, enquanto guardiãs do lar, como o Regime pode afetar a vida familiar. Por isso,
ao contrário de Matilde que, embora contrariada (p.85), apoia as opções do marido,
Rita receia ver-se em tal situação e pede a Manuel "Não te metas nestas coisa,
Manuel! Haja o que houver, nunca te metas com eles. Prefiro ver-te com fome, a
perder-te" (p.82).

☞ Vicente
Vicente é a única personagem em cena que evolui, transitando de um grupo
social - o povo - ao qual pertence mas com o qual não se identifica minimamente.
Astuto, é pela denúncia que consegue ganhar um poste polícia, que lhe permitirá
ascender económica e socialmente. Personifica um dos "vendidos" de uma sociedade
corrupta. É um homem frustrado por nascido pobre, revoltado perante as diferenças
sociais: "É verdade que nasci aqui e que a fome desta gente é a minha fome, mas...é
igualmente verdade que os odeio, que sempre que olho para eles me vejo a mim
próprio: sujo, esfomeado, condenado à miséria por acidente de nascimento. Que
diferença há entre mim e um fidalgo qualquer?",p.27.
A traição é o meio a que recorre para ascender socialmente, pois sabe que só
compactuando com os poderosos e agindo como eles é que concretizará os seus
anseios – no 2º ato, tomamos conhecimento da sua promoção a chefe de polícia. É um
Português-12º - Professora Ana Amaral 19
homem ambicioso, esperto e perspicaz que vai modelando o seu tom de voz em função
das personagens com que interage de modo a não comprometer os seus objetivos; é
calculista e afirma sem escrúpulos que apenas acredita “no dinheiro e na força”.
A sua entrada em cena é marcada pela intenção de denegrir a imagem do
General e, assim, destruir o seu prestígio junto dos populares que o aclamam como
herói.

e) Os delatores
☞ Andrade Corvo e Morais Sarmento
Como Vicente, procuram aproveitar-se da situação. Morais Sarmento preocupa-
se com "o que vão dizer", enquanto Corvo se serve de um discurso argumentativo para
aliciar o colega não evidenciando quaisquer escrúpulos e vendendo-se facilmente: "Vê
como tudo é simples? Meu amigo: você desconhece o que se compra de
respeitabilidade com uma pensão anual de 800$00..." (p.47). Na ação da peça,
Andrade Corvo ocupa um lugar mais destacado que Morais Sarmento, que se limita a
ser testemunha (p.48). Morais Sarmento é um preguiçoso que se serve da denúncia
para não voltar a trabalhar: "Com 800$00 por ano, nunca mais punha os pés no
regimento...” (p.45). Beresford despreza-o e descreve-o como "mau oficial, ignorante, e
julgo, até, que pedreiro-livre" (p.43) ou como "dedicado à sua própria causa, como
todos os da sua laia ... Pretende ser promovido pela denúncia, já que o não pode ser
por mérito" (p.44). Também D. Miguel Forjaz o vota ao desprezo. Na entrevista com
este governante, Andrade Corvo mostra bem a sua ganância e o seu oportunismo
quando renega o seu passado de maçon, confessando ter andado "perdido". No fundo,
é um cobarde, pois aparece "embuçado" e um adulador pois aparece uma segunda vez
em cena para dizer "Cá ando, sempre fiel a el-rei, na missão que me incumbiram."
(p.64). A sua presença em palco acaba no final do primeiro ato quando finalmente
refere o nome que os governadores esperavam (p.71). Estas duas personagens
simbolizam o lado negativo do exército português, que precisava do marechal inglês
para "entrar na ordem", opondo-se ao general Freire de Andrade, reconhecido como
bom oficial.

f) D. Miguel Forjaz
Tal como o general Gomes Freire de Andrade, D. Miguel Pereira Forjaz não é
apenas uma personagem da peça; é uma figura do nosso panorama político dos
séculos XVIII e XIX (nasceu em 1769 e morreu em 1827). De ascendência fidalga,
seguiu a carreira das armas e participou na campanha do Rossilhão. Foi um dos
membros do Conselho de Regência a quem ficou entregue o país quando, após a
invasão de Junot, a corte partiu para o Brasil. D. João VI fê-lo Conde da Feira em
1820.
Enquanto personagem da peça, é o representante da nobreza e o primeiro a
proferir o "nome do general, quando interroga Vicente, e a manifestar o seu desagrado
em relação a essa figura, não respeitando sequer os laços familiares. É ele que incube
Vicente de espionar a casa de Gomes Freire (p.38) a troco da "chefia de um posto de
polícia". Absolutista convicto, o seu desejo é manter o estado de coisas, isto é uma

Português-12º - Professora Ana Amaral 20


sociedade perfeitamente estratificada: "O meu sonho é de não morrer sem exterminar
de vez as sementes da anarquia e do jacobinismo...Sonho com um Portugal próspero e
feliz, com um povo simples, bom e confiante, que viva lavrando e defendendo a terra,
com os olhos postos no Senhor. Sonho com uma nobreza orgulhosa, que, das suas
casas, dirija esta terra privilegiada. Vejo um clero, uma nobreza e um povo conscientes
da sua missão, integrados na estrutura tradicional do Reino...Não lhes nego,
Excelências, que não sou um homem do meu tempo" (p.69). Receia uma eventual
revolta do povo por influência não só da Revolução Francesa e dos seus ideais de
"liberdade, igualdade e fraternidade mas também da revolta de Pernambuco, no Brasil,
já mais perto de si. Defende acaloradamente a distinção de classes pois acredita que
cada indivíduo está sujeito a um determinismo de ordem social e que as aparências
definem os homens, existindo inevitavelmente uma barreira a separar as classes
dominantes das dominadas: "Um mundo em que não se distinga, a olho nu, um prelado
dum nobre, ou um nobre dum popular, não é um mundo em que eu deseje viver.
Pergunto-vos, senhores: que crédito, que honras, que posições seriam as nossas, se
ao povo fosse dado escolher os seus chefes?" (p.69).
É um homem prepotente, afastado do povo, e, por isso, teme a popularidade do
general que o pode vir a afastar do seu cargo. É cruel e exerce o poder de forma
violenta e incorreta: "Perante uma conjura, o estadista esfrega as mãos, Reverência, e
agradece ao Senhor a oportunidade de aniquilar alguns inimigos de Deus e do Estado.
(...)Em política, quem não é por nós é contra nós" (p.60). Mesmo quando o principal
Sousa parece hesitar, D. Miguel permanece impassível, utilizando um discurso
argumentativo e planeando a condenação de Gomes Freire sem quaisquer escrúpulos
e fugindo às mais elementares regras da Justiça. Sabe manipular as pessoas e
situações, não olhando a meios para atingir os seus objetivos. Assim, serve-se da
religião para emocionar o povo e da corrupção para "comprar" a denúncia. É um ser
insensível pois recusa-se a receber Matilde, ofendendo-a na resposta que lhe envia:
"Sua Exª não recebe amantes de traidores e amigos dos inimigos d'el-rei" (p.119). É
um falso cristão, desses "sepulcros caiados" que Cristo tanto condenou.
A sua frieza e crueldade são bem evidentes ao longo da peça, mas é no final
que mais se acentua quando profere a célebre frase que dá título ao livro: "Lisboa há
de cheirar toda a noite a carne assada, Excelência, e o cheiro há-de-Ihes ficar na
memória durante muitos anos...Sempre que pensarem discutir as nossas ordens,
lembrar-se-ão do cheiro...(...) É verdade que a execução se prolongará pela noite, mas
felizmente há luar... " (p.131). A sua intenção era que a execução pública servisse de
exemplo para eliminar eventuais revoltas mas, como sabemos, revelou-se um sacrifício
inútil pois três anos mais tarde, a Revolução Liberal triunfava no nosso país afastando
D. Miguel do poder.

g) Principal Sousa
Esta personagem representa o poder da Igreja e a sua ingerência nos negócios
do Estado. Essa ingerência é, como lembra Beresford (p.42), um dos princípios mais
atacados pela Revolução Francesa que preconizará a separação de poderes, entre
outras ideias revolucionárias. Não é por acaso que afirma "Se a um ministro de Deus é
permitido odiar, que o Senhor, um dia, perdoe o ódio que tenho aos franceses..."

Português-12º - Professora Ana Amaral 21


(p.39). É um prelado hipócrita que parece hesitar quando pretendem condenar Gomes
Freire sem quaisquer provas mas é apenas uma maneira de mostrar que foi
convencido por outros para poder ter a sua "consciência tranquila, acabando ele
próprio por encontrar razões pessoais ínfimas que o parecem tranquilizar: "Agora me
lembro de que há anos, em campo d'Ourique, Gomes Freire prejudicou muito a meu
irmão Rodrigo!" (p.72).
Serve-se de um discurso de eclesiástico, recorrendo quer a citações bíblicas que
deturpa em função dos seus interesses, quer a metáforas, bem como a um tom
falsamente paternalista e compreensivo, como se constata nesta fala dirigida a Vicente:
"Vá meu filho, e ajude-nos a cuidar do rebanho, indicando-nos as ovelhas
tresmalhadas antes que elas contagiem as restantes. Que Deus o proteja na sua
missão." (p.38). Convém-lhe manter o status quo e crê-se investido de uma missão
salvífica: " Temos uma missão a cumprir, uma missão sagrada e penosa: a de
conservar no jardim do Senhor este pequeno canteiro português." (p.40). É um
demagogo pois tem consciência de que o poder dos reis é injusto, mas teme que o
povo saia da ignorância, o que poderá implicar a sua própria condenação: "A sabedoria
é tão perigosa como a ignorância!..." (p.36).
Detesta Beresford, mas é incapaz de manter uma discussão séria e frontal com
ele, conseguindo ultrapassar as divergências pessoais e solicitar a colaboração deste
para abafar a revolução emergente. Quando Matilde o procura, para interceder pelo
marido, desmascara-o. As acusações de falsidade e infâmia dirigem-se não apenas ao
prelado mas a toda a Instituição que ele representa e que se tendo afastado das
palavras e do exemplo de Cristo, vive mergulhada em vícios e se atreve a condenar os
outros. O gesto de Matilde - "tira do bolso a moeda que lhe deu Manuel e lança-a aos
pés do principal Sousa" - simboliza a sua condenação e acentua o único valor pelo qual
este homem da igreja parece ter regido a sua vida, os bens materiais.

h) Marechal Beresford
William Carr Beresford nasceu em 1768 e faleceu em 1854. Este general
inglês foi escolhido, após pedido do rei D. João VI, para vir reorganizar o exército
português e discipliná-lo de modo a fazer frente às tropas francesas. Era um homem
ríspido e disciplinador que punia severamente qualquer tentativa de insubordinação.
Algumas das características conhecidas desta personalidade histórica são
perfeitamente detetáveis na peça de Sttau Monteiro. Despreza o nosso país e os
portugueses, procurando todas as ocasiões para ridicularizar a pequenez e o
provincianismo da nação e para enfatizar a sua superioridade: "Como a vida num país
pequeno acaba por atrofiar as almas!" (p.55). Afirma que vive "num país de intrigas e
traições" (p.63), despreza o clero que tratava por "seita" (p.63) e não se cansa de
"provocar" Principal Sousa, usando para tal um tom irónico; sorri da corrupção e da
denúncia que dominam a sociedade: "É aquilo que se chama aqui um bom rapaz: bem
vestido, amigo dos prazeres e com tão poucos " (p.44), mas serve-se dessas "armas"
para aniquilar Gomes Freire, agindo do mesmo modo daqueles que critica e, revelando
ser um homem prático, denuncia a situação socioeconómica e cultural portuguesa,
comparando-a à prosperidade da Inglaterra e com a tolerância religiosa que aí se vive.
Português-12º - Professora Ana Amaral 22
Acusado por D. Miguel de ser um "mercenário" (p.58), afirma várias vezes que o
seu único interesse é o dinheiro que recebe e que a sua estada é um "sacrifício",
pensando apenas no regresso ao seu país. O seu ódio por Gomes Freire nasce do
facto de este ser um dos poucos portugueses "capaz de (o) destronar": "Senhores,
temos de encontrar alguém que tenha prestígio no exército. Julgo que nos convém um
oficial de patente elevada, com um bom passado militar" (p.64).
Depois de Gomes Freire ser preso e quando Matilde o procura e lhe pede para
se imaginar no lugar do marido, Beresford revela todo o seu cinismo e falta de
sentimentos: "Parece-lhe verosímil tal hipótese?" (p.92), aproveitando a ocasião para
humilhar a mulher do general, procurando, deste modo, atingir Gomes Freire. A última
intervenção do marechal inglês é marcada pela arrogância e a insensibilidade que o
caracterizam: Matilde pergunta "Quanto vale, para vós, a vida dum homem?" e
Beresford riposta cruamente- "Depende do seu peso, da sua influência, das vantagens
ou dos inconvenientes que, para mim, resultem da sua morte." (p.99).

ESPAÇO

a) Espaço cénico
A ação desenrola-se em três espaços, interiores e exteriores, principais: a sede
do Conselho de Regência, a casa de Gomes Freire e o alto da serra (serra de Santo
António), de onde é possível ver-se o forte de S. Julião da Barra.
Ao longo do texto, são referenciados outros espaços: "No Cais do Sodré há um
café, Excelência, onde se reúnem todos os dias os defensores do sistema das
cortes...» (p. 37); «Senhor: há dois dias o meu amigo Morais entrou no botequim do
Marrare...» (p. 50), etc. Esses espaços ou são mencionados nas indicações didas-
cálicas e nos adereços cénicos ou através das falas das personagens, sendo que a
mudança de espaço é essencialmente indicada pelo autor, no texto secundário. O facto
de haver tão poucas referências diretas ao espaço leva-nos a depreender que a ação
apresentada pode ocorrer em qualquer espaço em que o ontem queira inviabilizar o
amanhã.

b) Espaço Social
As indicações didascálicas relativamente ao guarda-roupa e adereços, atitudes e
movimentação das personagens, as informações transmitidas pelas personagens e
registo de língua utilizado são fundamentais para a caracterização do espaço social de
Felizmente Há Luar!
Este espaço é um dos mais explorados pelo dramaturgo, dado que pretende
acentuar as diferenças que marcam a sociedade oitocentista. Assim, o povo é
caracterizado por um vestuário reduzido e por um cenário de doença, de miséria e
pobreza – dormindo no chão ou em cima de sacas, sentando-se em caixotes,
mendigando ou “catando piolhos”. Os poderosos, por seu lado, aparecem
caracterizados por um guarda-roupa cuidado de acordo com o seu estatuto social e
rodeados de um cenário de riqueza.

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c) Espaço Psicológico
Caracteriza-se pela relação afetiva que algumas personagens mantêm com
determinados espaços que, evocados pela memória, sugerem características
psicológicas das personagens que lhes fazem referência. Este aparece concentrado na
personagem Matilde que recorda a intimidade do seu lar, um lar construído e vivido
com o general Gomes Freire, um espaço banido do presente da representação, mas
que a personagem sabiamente presentifica pela memória, uma memória de amor dada
a conhecer ao leitor/ espectador através das suas tiradas monologais (pp. 83-92, por
exemplo).

TEMPO

a) Tempo histórico
A ação de Felizmente Há Luar! representa a história do movimento liberal
oitocentista, no rescaldo das Invasões Francesas e a «proteção» britânica que se lhe
seguiu, revelando as condições da sociedade portuguesa no início do século XIX e a
ação de resistência dos mais esclarecidos, organizados frequentemente em
sociedades secretas. A conspiração, encabeçada por Gomes Freire d'Andrade,
manifestava-se contra a ausência da corte no Brasil, contra o poder absolutista e
tirânico dos governadores e contra a proteção/presença inglesa personificada pelo
generalíssimo Beresford.
Destaca-se, ao longo de todo o texto, a situação do povo oprimido e a falta de
perspetivas para o futuro.
Os acontecimentos históricos reveladores de um tempo de uma crise militar
(depois das Invasões Francesas, a organização do exército português é confiada aos
Ingleses que se instalam no país, em 1808), de uma crise política, económica,
ideológica e a data de execução do General Gomes Freire, são percetíveis através das
falas das personagens:
 Manuel: «Vê-se a gente livre dos Franceses, e zás!, cai na mão dos
Ingleses!» (p. 16);
 Vicente: «Querem saber porque vendo os meus irmãos? Pois vendo-os por
amor a N. S. Jesus Cristo e a el-rei D. João VI, que há tantos anos anda
pelos Brasis cuidando dos nossos interesses... " (pp. 27-28);
 Principal Sousa: «Veja, Sr. D. Miguel, como eles transformaram esta terra de
gente pobre mas feliz num antro de revoltados!» (p. 40);
 D. Miguel: «Sempre a Revolução Francesa ... » (p. 42);
 Matilde: «Esta praga lhe rogo eu, Matilde de Meio, mulher de Gomes Freire
d'Andrade, hoje 18 de Outubro de 1817." (p. 129).

b) Tempo da ação
A peça tem como cenário o ambiente político do início do século XIX: em 1817,
uma conspiração, encabeçada por Gomes Freire de Andrade, que pretendia o regresso
do Brasil do rei D. João VI e que se manifestava contrária à presença inglesa, foi
descoberta e reprimida com muita severidade: os conspiradores, acusados de traição à
pátria, foram queimados publicamente e Lisboa foi convidada a assistir.
Português-12º - Professora Ana Amaral 24
As indicações temporais fornecidas pelo texto permitem-nos verificar que a
intriga se desenrola de forma linear e progressiva, embora não sejam muito precisas as
indicações sobre a duração da ação.
Historicamente, sabe-se que o general Gomes Freire foi preso a 25 de maio de
1817 e executado a 18 de outubro de 1817. Logo, a ação decorrerá entre estes dois
marcos temporais.
Assim, as expressões temporais do Ato I revelam uma duração de,
sensivelmente, dois dias:
 «A Rita dorme. A que horas chegou ela?" (p. 16);
 «Saiba, meu senhor, que a Senhora D. Rita chegou tarde.
Eram quase cinco horas pelo meu relógio de ouro." (p. 17);
 «Temos ordens para te levar, ainda hoje, à presença...» (p. 29);
 «Excelências: trago comigo um patriota que pode testemunhar o que ontem contei
ao Sr. Marechal." (p. 48);
 «Não percam tempo, senhores. O momento é grave e a causa justa.» (p. 53);
 «Ontem à noite entraram mais de dez pessoas em casa de...» (p. 60);
 «Há dois dias que quase não durmo...» (p. 68).

O Ato II pressupõe uma duração de 150 dias:


 «Esta madrugada prenderam Gomes Freire...» (p. 79);
 «E eu na descarga das barcaças, todo o dia sem saber de nada.» (p. 82);
 «Ao chegar a S. Julião da Barra, meteram-no logo numa masmorra e aí ficou
todo o dia...Só ao fim de seis dias lhe abonaram dinheiro para comer.» (p. 111);
 «Esta praga lhe rogo eu ... hoje dia 18 de outubro de 181 7." (p. 129);
 «É verdade que a execução se prolongará pela noite, mas felizmente há luar...»
(p. 131)
Pelo levantamento de expressões se verifica que, no Ato I, o tempo parece
desenrolar-se muito rapidamente, contrariamente ao Ato II, em que a passagem do
tempo parece ser mais lenta, intensificando o drama íntimo vivido pelas diferentes
personagens:
 a tortura, degradação e humilhação de Gomes Freire;
 o desespero e impotência de Matilde a contrastar com a indiferença dos
representantes do poder;
 a desesperança de um povo miserável e sem perspetivas de futuro é
personificada na voz do antigo soldado que profere desalentado: “Prenderam o
general... Para nós a noite ainda ficou mais escura...” (p. 80).
Perante o drama histórico evocado, o leitor/espectador é confrontado com a
prepotência e arrogância de um poder repressivo e arbitrário, sendo solicitado a
tomar uma posição face ao que se passou, o que funciona como um espelho,
refletindo as imagens de um presente também ele doloroso, de repressão e
arbitrariedade, de censura e de totalitarismo. O dramaturgo pretenderá que o
espectador se comova, se revolte, se indigne, fique do lado de Gomes Freire e
partilhe da dor de Matilde. Sendo assim, e na esteira de Brecht, Luís de Sttau
Monteiro, com Felizmente Há Luar!, visa despertar o leitor/espectador para, de

Português-12º - Professora Ana Amaral 25


forma distanciada, analisar de forma crítica os acontecimentos representados e
questionar-se sobre o presente.
Gomes Freire e os seus companheiros são sacrificados em nome dos seus
ideais, mas as suas mortes, em vez de amedrontar, tornam-se esperança. A
fogueira acesa na noite de luar para queimar Gomes Freire, com o objetivo de
dissuadir outros revoltosos, torna-se farol para todos quantos se sentem oprimidos
e anseiam pela liberdade. As últimas palavras de Matilde, «Olhem bem! Limpem os
olhos no clarão daquela fogueira e abram as almas ao que ela nos ensina! Até a
noite foi feita para que a vísseis até ao fim... Felizmente - felizmente há luar!» são
de incentivo e de estímulo para que a chama de esperança e de luz que se acendeu
nos corações de cada um não se apague, apelando simultaneamente à revolta
contra a tirania dos governantes.

c) Tempo da escrita
Felizmente Há Luar! foi publicado em 1961, em plena ditadura do regime de
Salazar. Sttau Monteiro viu na época de 1810-1820 grandes semelhanças com a
realidade portuguesa da década de 1950-1960 e marca uma posição, pelo
conteúdo fortemente ideológico, denunciando a opressão vivida na época em que
escreve a obra, em 1961, estabelecendo um paralelismo entre as duas épocas.
O recurso à distanciação histórica e à descrição das injustiças praticadas no
século XIX permitiu-lhe colocar em destaque as injustiças do seu tempo e a
urgência de lutar pela liberdade. Sttau Monteiro, testemunha e vítima da
perseguição da PIDE, encontra o meio para denunciar a situação portuguesa sob o
regime de Salazar, contribuindo para fortalecer a esperança que viria a tornar-se
realidade com a Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974.
À semelhança da conspiração de 1817, que serviu de gérmen para o triunfo
do liberalismo, também a oposição à ditadura do Estado Novo levou à implantação
da democracia.

LINGUAGEM
A linguagem das personagens, em Felizmente Há Luar!, é um modo de
entendermos a especificidade do seu carácter mas conduz-nos também à sua
integração num dos dois grandes núcleos da obra: o do poder e o do contrapoder.
Assim podemos verificar que a linguagem do contrapoder é uma linguagem
poética, logo transformadora relativamente ao seu referencial. Por outro lado, a
linguagem do poder remete para o domínio do material e move-se nas esferas
semânticas do exercício da política e desse mesmo poder. Se as palavras de Matilde
são dotadas de uma profunda sensibilidade e poder metafórico, as palavras de
Beresford, Principal Sousa e D. Miguel dão conta de um sentido prático, utilitário,
material.
Convém referir também o discurso do povo que nasce de vozes individuais que,
no entanto, não aparecem marcadas pela utilização de um nível popular da língua, pelo
contrário, frequentemente ganham sentido poético.
Ao longo da peça sucedem-se falas muito longas, excessivamente discursivas,
frequentemente as do poder mas também algumas de Matilde e de Vicente, e falas
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mais curtas e incisivas que aceleram o desenrolar da ação representada.
Frequentemente marcada pela utilização de suspensões frásicas, traduzindo pausas ou
contribuindo para uma prosódia viva e não monocórdica, a linguagem é algumas vezes
metafórica, centrada no valor poético da repetição anafórica e do paralelismo frásico,
marcada pela curva melódica da interrogação nos momentos interpelativos e pela da
exclamação nos momentos expressivos.
O discurso do autor/encenador, presente nas notações da didascália lateral, é
predominantemente um discurso de grande carga afetiva, logo valorativa, em que
pululam os substantivos abstratos e os adjetivos.
Finalmente, não nos podemos esquecer que a intenção de Sttau Monteiro é uma
intenção essencialmente crítica e que a atitude que exige do público é reflexiva, para
atingir estes objetivos é fácil de compreender quão adequado é o uso da ironia, sempre
tão presente não só nas falas das personagens como Beresford, que assim exprime a
sua crítica a Portugal e aos portugueses, mas também na atuação e palavras dessa
figura popular que é Manuel (por exemplo nos momentos iniciais de cada ato).

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APOTEOSE TRÁGICA
Designa-se por teatro épico o teatro de influência brechtiana que teve, para além
de Luís de Sttau Monteiro, outros cultores em Portugal, como é o caso de Bernardo
Santareno, com a peça O Judeu ou Cardoso Pires, com O Render dos Heróis.
Podemos dizer que esta designação surge por oposição a teatro clássico e
evidencia uma performance teatral mais virada para a narração e negando o princípio
da ilusão. O que se pretende não é que o ator viva a ação mas sim que a demonstre,
cumprindo deste modo uma das intenções deste tipo de teatro: a sua vocação
pedagógica. Os elementos catárticos que caracterizavam o drama clássico e de
teorização aristotélica foram, portanto, totalmente banidos do universo brechtiano.
Trata-se, agora, de refletir sobre as características da peça Felizmente Há Luar!
que a podem inserir no teatro épico. Pensamos que o primeiro ponto, como já foi dito
anteriormente, é sua intenção didática: o que se pretende é que o leitor ou o
espectador saia da sala consciente de que há algo a mudar lá fora e essa consciência
crítica conduzi-lo-á a uma atitude socialmente empenhada e modificadora. Este tipo de
teatro apela, portanto, a um certo pragmatismo.
Em Felizmente Há Luar!, este apelo está sobretudo bem patente na
personagem Matilde, mas também é notório em certas notações do autor relativas à
movimentação das personagens e à sua colocação em cena, bem como no discurso
de Manuel e no modo como este se move em cena possibilitando uma relação
diferente com o espectador.
A designação «apoteose trágica» é uma expressão utilizada por Sttau Monteiro
para se referir ao tom da sua obra, inserindo-a evidentemente numa esfera diferente da
tragédia clássica, querendo com isso colocar em destaque o desfecho trágico, mas ao
mesmo tempo o tom apoteótico, verdadeiramente transfigurador, quase de
homenagem à figura heroica de Gomes Freire de Andrade que surge supliciado e
transformado em herói capaz de dar esperança a um povo, num final verdadeiramente
apologético. Esta designação vem confirmar a classificação da peça como uma obra de
teatro épico.
A apoteose trágica faz-se sobretudo anunciar nas palavras finais de Matilde que
ganham sentido novo: FELIZMENTE HÁ LUAR! Surge como um apelo de esperança
para que a luz suplante a noite, entendendo-se uma e outra no seu sentido simbólico -
a noite como opressão, a falta de conhecimento, o obscurantismo; a luz como o
conhecimento, o esclarecimento, a liberdade de opinião e de expressão. A contribuir
para o carácter apoteótico está o próprio cenário em si: o grupo de populares, as
figuras do poder, a mulher e o amigo, a luz da Lua e da fogueira que criam um
ambiente mágico e ao mesmo tempo espectral, a notação final de esperança, que faz
com que a trágica morte do General ganhe um sentido novo. No final, leitor e
espectador perceberam certamente que o que acabaram de ler ou ver não tem data
nem espaço geográfico. É de todos os tempos e de qualquer espaço, afinal é o próprio
homem que está em causa: o herói individual ultrapassou qualquer tipo de fronteira
geográfica ou cronológica e instalou-se como épico. Disto se faz prova através das
palavras de Matilde: «julguei que isto era o fim e afinal é o princípio.»

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ASPETOS SIMBÓLICOS
a) Título
Como já foi explorado atrás, o título reproduz uma expressão que encontramos
duas vezes na peça: primeiro é proferida por D. Miguel, símbolo do poder, e, no final,
por Matilde, símbolo da resistência à opressão e tirania. Assim, o luar, na perspetiva
das duas personagens, permitirá que as pessoas possam sair de suas casas,
vencendo o medo e a insegurança da noite, para assistirem à execução dos
condenados. Contudo, enquanto, para D. Miguel, o luar permitirá que o clarão da
fogueira atemorize todos aqueles que ousem afrontar as forças políticas reinantes, para
Matilde, o luar sublinhará a intensidade do fogo que simboliza a coragem e a força de
um homem que morreu para defender a liberdade, incentivando outros a seguirem essa
luz e a lutarem pelos mesmos ideais.
A luz da lua é a metáfora do conhecimento que permitirá o progresso do mundo
e a vitória da liberdade, igualdade e fraternidade.

b) Fogueira
O facto do general Gomes Freire ter sido queimado depois de enforcado foi
duplamente aviltante, porque não era uma morte digna ou normalmente aplicada a um
militar. Contudo, em vez de ter funcionado como tal, assumiu um carácter redentor,
pois permitiu que o exemplo de ousadia e coragem do General se propagasse, fosse
visto e funcionasse como indício de que o bem haveria de triunfar e a justiça acabaria
por vencer. Esta fogueira, que representa o auge do terror, acaba por se tornar um
elemento criador, pois, como preconiza Matilde, os homens não poderão mais suportar
tal horror e repressão e lutarão por um mundo novo e diferente que destruirá a “velha
ordem”.
c) Saia verde
Se a luz está associada ao conhecimento e à esperança da vitória do bem,
também se inscreve nesta linha a saia verde que Matilde veste, em substituição do
negro, e com a qual fecha a peça. Mas o verde também simboliza a renovação da
natureza, a longevidade e a imortalidade, remetendo, assim, para o reencontro dos
amantes num outro mundo – a escolha daquela saia, comprada em Paris (terra da
liberdade), para esperar o seu amor após a morte, mostra precisamente a “alegria” de
Matilde ao pensar no reencontro. Com efeito, é esta saia verde que tem o dom de
transfigurar a fiel companheira de Gomes Freire, permitindo-lhe ultrapassar o seu
estado de desespero e revolta para assumir um discurso de esperança e tranquilidade.

d) Moeda de cinco réis


A moeda que Manuel dá a Matilde servirá para ela a atirar a Principal Sousa
que, à semelhança de Judas, trai Cristo todos os dias, na medida em “todos somos
Cristo”. Matilde denuncia assim o papel de alguns membros do Clero que compactuam
diariamente para a morte de inocentes, como Gomes Freire, só porque eles levantam a
sua voz em defesa da liberdade e da justiça, tal como fez Cristo. Como Cristo, o
General sofreu uma morte vergonhosa – foi enforcado, queimado e as suas cinzas
deitadas ao mar, juntamente com as de outros 12 condenados: o número treze é o
número do ciclo concluído que proporcionará a renovação, neste caso, os treze
prisioneiros conduzirão à mudança da situação do país.
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e) Sons

Tambores: são símbolos da repressão militar e policial que desagrega e


aniquila, traduzem a morte, a violência e a intimidante perseguição a que o povo era
sujeito para não pôr em causa a autoridade tirânica dos governadores, «sempre
presente e sempre pronta a intervir».
Traduzem também a hipocrisia e a corrupção de todos os que traem para obter
favores do regime, como Vicente, «um provocador em vias de promoção» (p.21).

Sinos: traduzem o perverso envolvimento da Igreja nos assuntos do Estado,


contribuindo para a repressão imposta sobre o povo. Anunciam a morte do General
Gomes Freire, intensificando assim o terror que se gera no povo e levando à dispersão
de todos aqueles que alimentam a esperança da mudança (p.95). Contribuem para a
denúncia da deturpação da mensagem evangélica ao serviço de interesses
mesquinhos e materiais do Principal Sousa.

Fanfarra: o som crescente da fanfarra (p.140) simboliza a festa da liberdade,


profetizada por Matilde, no seu discurso final, funcionando como um apelo à esperança
no nascimento de um novo tempo, justo e fraterno. Escolhido como o som que ecoa
enquanto cai o pano, ele representa o alento para todos os que lutam e que não ficarão
indiferentes à morte macabra do General e dos outros condenados.

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