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PORTUGUES 12o ANO PDF
PORTUGUES 12o ANO PDF
PORTEFÓLIO
FELIZMENTE HÁ LUAR!
TEXTO DRAMÁTICO
a) O tom de voz
O tom de voz ou entoação, coadjuvando a interpretação das diferentes falas,
poderá também ser revelador dos sentimentos que dominam as personagens ou da
relação afetiva existente entre elas.
Por exemplo, Manuel, "o mais consciente dos populares", utiliza nos monólogos
o seu tom de voz habitual (pp.16), mas adota um tom sarcástico (“Está a imitar, com
sarcasmo, alguém que se não sabe quem seja.”,p.16), "duro e ríspido" (p.78) quando
pretende imitar os poderosos; pede esmola "num tom de voz humilde e trémulo" (p.78);
torna-se irónico quando critica a situação política do país (“Fala com ironia...”, p. 79);
fala com ternura (p.105), tristeza (p.109) ou em tom de acusação com Matilde de Melo
d) O Som
Em Felizmente Há Luar!, há sons portadores de grande expressividade
dramática como é o caso do sons dos tambores que sugerem a repressão militar e
policial. O ruído dos tambores, "símbolo de uma autoridade sempre presente e sempre
pronta a interferir" (p.21) aterroriza e dispersa os populares (pp.18, 21). Quando é
pronunciado o nome do general Gomes de Andrade como cabecilha da revolução,
"começam a ouvir-se tambores ao longe, muito em surdina" (p.71), apontando o início
da repressão que há de culminar com a prisão do general. Cumprindo ordens de D.
Miguel, a repressão instala-se: "Os tambores tocam sem cessar" (p.73), "entram em
fanfarra e o palco enche-se de soldados" (p.74).
O som dos sinos mostra o envolvimento da Igreja na repressão que se abate
sobre o povo. A par do discurso do Principal Sousa que se serve do púlpito para atacar
os revolucionários, "começa a ouvir-se um sino tocar a rebate" (p.74). O som dos sinos
mistura-se com o dos tambores (p.74) adquirindo, assim, o mesmo sentido repressivo
que afeta a imagem da igreja envolvida com outros agentes da repressão popular. É o
caso do padre, seguido do sacristão que toca uma campainha e dos fiéis que, seguindo
o padre, colaboram nos serviços religiosos. "Ao longe, muito ao longe, começa a ouvir-
se o murmúrio da multidão, entrecortado, de quando em quando, por latim" (p.129);
O som da fanfarra que se ouve no final da peça "num crescendo de intensidade
até cair o pano" é ambíguo; se por um lado resulta do som opressivo dos tambores, é
também o som da festa da liberdade profetizada por Matilde.
Tal como os sons, os silêncios (ausências de som) marcados pelas pausas no
discurso podem sugerir o estado emotivo das personagens, o fluir dos seus
TÍTULO
«Felizmente Há Luar» é uma expressão utilizada por Raul Brandão, em Vida e
Morte Gomes Freire, o que nos mostra claramente que Sttau Monteiro recorreu a esta
narrativa histórica, onde pôde confirmar factos relacionados com a condenação do
herói da conspiração de 1817:
«Dezoito de Outubro. No Campo de Sant’Ana os operários tinham passado a
noite a montar a armação de madeira... Pelas duas da tarde saem enfim do Limoeiro,
mas vai-lhes levar tempo a morrer... O espetáculo quer-se moroso – “felizmente há
luar”- e aquilo desfila e sobe devagar e de espaço, justiça, frades, irmãos de
misericórdia com bandeiras, por entre a multidão silenciosa, por entre a tropa de linha,
sem um sinal compassivo... A tortura de Gomes Freire acaba no mesmo dia 18 de
outubro....»
A frase é apenas reticente (“felizmente há luar”), mas o dramaturgo Sttau
Monteiro acrescentou-lhe ponto de exclamação e utilizou habilmente a frase de tipo
exclamativo que dá o título à peça.
De facto, este elemento paratextual é extremamente relevante, associando-se a
diferentes conotações. Para além de título, a frase surge duas vezes ao longo de todo
o texto: a primeira vez é dita por D. Miguel e a segunda por Matilde de Meio,
evidentemente com objetivos antagónicos.
D. Miguel Forjaz Matilde de Melo
«Lisboa há de cheirar toda a noite a carne «Olhem bem! Limpem os olhos no clarão
assada, Excelência, e o cheiro há de Ihes daquela fogueira e abram as almas ao que
ficar na memória durante muitos anos... ela nos ensina! Até a noite foi feita para que a
Sempre que pensarem em discutir as nossas vísseis até ao fim...
ordens, lembrar-se-ão do cheiro... (Pausa)
(Com raiva) Felizmente - felizmente há luar!» (p. 140).
É verdade que a execução se prolongará
pela noite, mas felizmente há luar...»(p. 131) Para Matilde, pelo contrário, a morte do
marido serviria de lição a todos os que
Para D. Miguel, a morte de Gomes Freire observassem o crime hediondo. O seu
d'Andrade serviria de exemplo a todos os que discurso é manifestamente marcado por
intentassem contra a ordem instituída e, deste frases exclamativas que traduzem o apelo à
modo, a existência de luar permitiria que esperança e à coragem. Para a companheira
todos observassem a execução e tirassem as todas as horas de Gomes Freire, a luz
devidas ilações. A morte do presumível chefe sobrepor-se-ia às trevas e permitiria que a
da conjura facilitaria a afirmação do poder, morte desse lugar à vida. Seria o exemplo
ainda que fosse pela força e pela injustiça. O para pôr termo a um regime autoritário e
cheiro a carne queimada ficaria retido na injusto e, consequentemente, possibilitaria o
memória e intimidaria todos os que ousassem nascimento da justiça e da liberdade.
qualquer tipo de conspiração. As suspensões
frásicas manifestam a dúvida, a crueldade e a
ausência de emotividade.
ESTRUTURA
A. ESTRUTURA EXTERNA
B. ESTRUTURA INTERNA
Se nos centrarmos no texto principal, podemos constatar que ele
apresenta todo o processo que conduziu à condenação e execução do general
Gomes Freire de Andrade: no primeiro ato, trama-se a prisão e, no segundo,
verifica-se a sua execução. Em cada ato, podemos distinguir macro momentos (um
e dois, respetivamente) e diversos micro momentos.
- - Matilde tenta obter o apoio dos populares, mas Manuel e Rita SEGUNDO
A explicam-lhe as razões da indiferença do povo.
T
- - Matilde toma conhecimento, através de Sousa Falcão, das
O
condições desumanas a que o seu companheiro é submetido em S.
Julião da Barra.
II
- Matilde pede audiência a D. Miguel, mas este não lha concede.
b) Matilde de Melo
Matilde de Melo é "a companheira de todas as horas" do general. Personagem
individualizada, é a figura central do segundo ato, onde se mostra uma mulher
apaixonada e corajosa, à altura do marido: "Vou enfrentá-los. É o que ele faria se aqui
estivesse e - quem sabe? - talvez Deus me oiça. Ele há de ouvir alguém",p.91). Mesmo
depois do encontro com Beresford e a recusa de D. Miguel Forjaz em recebê-la,
Matilde não desanima, como informa a didascália, "Recupera parte da sua antiga
energia. Como que se adivinha nela a mulher que acompanhou Gomes Freire pelos
campos de batalha da Europa (p.121)) e resolve ir ter com Principal Sousa. Matilde
acaba por confessar que afinal também partilha dos mesmos ideais do general: "Um
dia encontramos o nosso homem a sonhar um outro mundo - sabemos que esse sonho
põe termo à paz que tanto desejamos, e mesmo assim, queremos dizer-lhe que siga o
seu caminho, que iremos com ele até ao fim, mas não sabemos por onde começar",
p.90. No diálogo com Beresford resume a sua vida, sublinhando as diferenças entre o
"antes" e o "depois" de ter conhecido Gomes Freire e orgulhando-se de tudo o que
aprendera com ele. O tom desafiador que emprega para se dirigir ao marechal acaba
por revelar todo o seu desespero, já que o volitivo se torna inútil: "Quero o meu
homem! Quero o meu homem aqui, ao meu lado! Quero acabar os meus dias em paz!",
d) O povo
Constitui “o pano de fundo permanente” da peça. Personagem coletiva,
consubstancia-se nos vários populares que espelham a miséria, a ignorância, a
exploração e a opressão. Vicente salienta as péssimas condições de subsistência
(p.21); o som dos tambores e a polícia provocam reações que denunciam o ambiente
de tristeza, de medo, de intimidação e de horizontes limitados que rodeia esta classe. À
exceção de Vicente, Manuel e Rita, os outros elementos populares não são referidos
pelos seus nomes próprios, pois ao dramaturgo interessava mostrar que o povo era
joguete nas mãos dos poderosos e que a miséria, o medo e a ignorância eram em
1817, como em 1961, os fatores que, bem manipulados, podiam dissuadir as
reivindicações coletivas.
☞ O Antigo soldado
Esta personagem popular é aqui objeto de destaque, porquanto combateu no
regimento do General, podendo assim testemunhar o percurso militar do herói da peça
e invocar o doce sabor da “liberdade” (p.18). Simboliza todos os homens que
combatem por um senhor ou ideal e que, quando já não servem, são votados ao
abandono, encarnando assim a crítica a um Regime político que ignora o povo que
serve nos exércitos. No 2º ato, personifica o desalento, o pessimismo e a deceção do
povo que, com a execução do General, vê mais uma vez adiada a possibilidade de
mudança.
☞ Manuel
Manuel, que abre os dois atos, simboliza a inteligência e a capacidade de
apreciação crítica de um povo que, apesar de ser mantido na ignorância pelas classes
dirigentes, consegue discernir a situação da sua classe e do país: "E enquanto eles
andam para trás e para a frente, para a esquerda e para a direita nós não passamos do
mesmo sítio" (p.16) ou "Vê-se a gente livre dos Franceses, e zás! cai nas mãos dos
Ingleses!" (p.16). Consciente da sua pouca importância, é bem visível a sua impotência
perante a eventual resolução dos problemas em causa: "Que posso eu fazer? Sim: que
posso eu fazer?" (pp.15, 77). Na voz de Manuel perpassa o desânimo, a falta de
energia para lutar contra o poder instituído: "Mas o general está em preso em S. Julião
da Barra e nós...estamos presos à nossa miséria, ao nosso medo, à nossa ignorância
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... (Pausa) Não a podemos ajudar, senhora. Deus não nos deu nozes e os homens
tiraram-nos os dentes" (p.109). No diálogo com Matilde, no segundo ato, Manuel
evidencia, mais uma vez, a sua profunda consciência das desigualdades sociais do seu
tempo: "Perguntou-nos, há pouco, o que íamos fazer para libertar o general...(...) Olhe
para nós, Sra D. Matilde. Abra bem os olhos e veja quem somos e ao que estamos
reduzidos." (pp.106). Mas acaba por revelar uma grande dignidade e um profundo
respeito pela dor alheia: "Desculpe o modo como a tratei. A senhora não merece as
palavras que proferi, mas eu também não mereço tê-Ias proferido..." (p.108). O instinto
de sobrevivência parece sobrepor-se a todos os sentimentos: "Amanhã quando
começarem a agradecer a Deus a prisão do general, estaremos à porta das igrejas
pedindo esmola (.. ) Não nos leve a mal, senhora, a culpa não é nossa..." (p.109).
“O mais consciente dos populares” assume algum protagonismo no início dos
dois atos, denunciando a opressão a que o povo português tem estado sujeito (as
Invasões Francesas, a “proteção “ inglesa, após a retirada do rei D. João VI para o
Brasil) e a incapacidade de conseguir a libertação e de sair da miséria reinante.
☞ Rita
Embora apareça logo no primeiro ato, é no segundo que Rita se individualiza,
adquirindo maior relevo. É ela que presencia a prisão e a violência exercida sobre
Gomes Freire: "Eu vi o general sair de casa. Arrombaram-lhe as portas e nem lhe
deram tempo de vestir-se. Só conseguiu calçar as botas à saída"(p.82). A solidariedade
para com Matilde é bem evidente, não apenas na comoção ("A mulher ficou a chorar
até de manhã. Passei-lhe à porta e ouvi-a a soluçar. Deu-me vontade de fugir, de largar
a correr por essas ruas fora e de me deitar ao Tejo! " -p.82), mas também no gesto
final: "Rita entrega a moeda a Matilde. Num gesto impulsivo, beija-a e corre a juntar-se
aos seus" (p.110). Essa solidariedade nasce da comunhão de sentimentos: ambas
sabem, enquanto guardiãs do lar, como o Regime pode afetar a vida familiar. Por isso,
ao contrário de Matilde que, embora contrariada (p.85), apoia as opções do marido,
Rita receia ver-se em tal situação e pede a Manuel "Não te metas nestas coisa,
Manuel! Haja o que houver, nunca te metas com eles. Prefiro ver-te com fome, a
perder-te" (p.82).
☞ Vicente
Vicente é a única personagem em cena que evolui, transitando de um grupo
social - o povo - ao qual pertence mas com o qual não se identifica minimamente.
Astuto, é pela denúncia que consegue ganhar um poste polícia, que lhe permitirá
ascender económica e socialmente. Personifica um dos "vendidos" de uma sociedade
corrupta. É um homem frustrado por nascido pobre, revoltado perante as diferenças
sociais: "É verdade que nasci aqui e que a fome desta gente é a minha fome, mas...é
igualmente verdade que os odeio, que sempre que olho para eles me vejo a mim
próprio: sujo, esfomeado, condenado à miséria por acidente de nascimento. Que
diferença há entre mim e um fidalgo qualquer?",p.27.
A traição é o meio a que recorre para ascender socialmente, pois sabe que só
compactuando com os poderosos e agindo como eles é que concretizará os seus
anseios – no 2º ato, tomamos conhecimento da sua promoção a chefe de polícia. É um
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homem ambicioso, esperto e perspicaz que vai modelando o seu tom de voz em função
das personagens com que interage de modo a não comprometer os seus objetivos; é
calculista e afirma sem escrúpulos que apenas acredita “no dinheiro e na força”.
A sua entrada em cena é marcada pela intenção de denegrir a imagem do
General e, assim, destruir o seu prestígio junto dos populares que o aclamam como
herói.
e) Os delatores
☞ Andrade Corvo e Morais Sarmento
Como Vicente, procuram aproveitar-se da situação. Morais Sarmento preocupa-
se com "o que vão dizer", enquanto Corvo se serve de um discurso argumentativo para
aliciar o colega não evidenciando quaisquer escrúpulos e vendendo-se facilmente: "Vê
como tudo é simples? Meu amigo: você desconhece o que se compra de
respeitabilidade com uma pensão anual de 800$00..." (p.47). Na ação da peça,
Andrade Corvo ocupa um lugar mais destacado que Morais Sarmento, que se limita a
ser testemunha (p.48). Morais Sarmento é um preguiçoso que se serve da denúncia
para não voltar a trabalhar: "Com 800$00 por ano, nunca mais punha os pés no
regimento...” (p.45). Beresford despreza-o e descreve-o como "mau oficial, ignorante, e
julgo, até, que pedreiro-livre" (p.43) ou como "dedicado à sua própria causa, como
todos os da sua laia ... Pretende ser promovido pela denúncia, já que o não pode ser
por mérito" (p.44). Também D. Miguel Forjaz o vota ao desprezo. Na entrevista com
este governante, Andrade Corvo mostra bem a sua ganância e o seu oportunismo
quando renega o seu passado de maçon, confessando ter andado "perdido". No fundo,
é um cobarde, pois aparece "embuçado" e um adulador pois aparece uma segunda vez
em cena para dizer "Cá ando, sempre fiel a el-rei, na missão que me incumbiram."
(p.64). A sua presença em palco acaba no final do primeiro ato quando finalmente
refere o nome que os governadores esperavam (p.71). Estas duas personagens
simbolizam o lado negativo do exército português, que precisava do marechal inglês
para "entrar na ordem", opondo-se ao general Freire de Andrade, reconhecido como
bom oficial.
f) D. Miguel Forjaz
Tal como o general Gomes Freire de Andrade, D. Miguel Pereira Forjaz não é
apenas uma personagem da peça; é uma figura do nosso panorama político dos
séculos XVIII e XIX (nasceu em 1769 e morreu em 1827). De ascendência fidalga,
seguiu a carreira das armas e participou na campanha do Rossilhão. Foi um dos
membros do Conselho de Regência a quem ficou entregue o país quando, após a
invasão de Junot, a corte partiu para o Brasil. D. João VI fê-lo Conde da Feira em
1820.
Enquanto personagem da peça, é o representante da nobreza e o primeiro a
proferir o "nome do general, quando interroga Vicente, e a manifestar o seu desagrado
em relação a essa figura, não respeitando sequer os laços familiares. É ele que incube
Vicente de espionar a casa de Gomes Freire (p.38) a troco da "chefia de um posto de
polícia". Absolutista convicto, o seu desejo é manter o estado de coisas, isto é uma
g) Principal Sousa
Esta personagem representa o poder da Igreja e a sua ingerência nos negócios
do Estado. Essa ingerência é, como lembra Beresford (p.42), um dos princípios mais
atacados pela Revolução Francesa que preconizará a separação de poderes, entre
outras ideias revolucionárias. Não é por acaso que afirma "Se a um ministro de Deus é
permitido odiar, que o Senhor, um dia, perdoe o ódio que tenho aos franceses..."
h) Marechal Beresford
William Carr Beresford nasceu em 1768 e faleceu em 1854. Este general
inglês foi escolhido, após pedido do rei D. João VI, para vir reorganizar o exército
português e discipliná-lo de modo a fazer frente às tropas francesas. Era um homem
ríspido e disciplinador que punia severamente qualquer tentativa de insubordinação.
Algumas das características conhecidas desta personalidade histórica são
perfeitamente detetáveis na peça de Sttau Monteiro. Despreza o nosso país e os
portugueses, procurando todas as ocasiões para ridicularizar a pequenez e o
provincianismo da nação e para enfatizar a sua superioridade: "Como a vida num país
pequeno acaba por atrofiar as almas!" (p.55). Afirma que vive "num país de intrigas e
traições" (p.63), despreza o clero que tratava por "seita" (p.63) e não se cansa de
"provocar" Principal Sousa, usando para tal um tom irónico; sorri da corrupção e da
denúncia que dominam a sociedade: "É aquilo que se chama aqui um bom rapaz: bem
vestido, amigo dos prazeres e com tão poucos " (p.44), mas serve-se dessas "armas"
para aniquilar Gomes Freire, agindo do mesmo modo daqueles que critica e, revelando
ser um homem prático, denuncia a situação socioeconómica e cultural portuguesa,
comparando-a à prosperidade da Inglaterra e com a tolerância religiosa que aí se vive.
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Acusado por D. Miguel de ser um "mercenário" (p.58), afirma várias vezes que o
seu único interesse é o dinheiro que recebe e que a sua estada é um "sacrifício",
pensando apenas no regresso ao seu país. O seu ódio por Gomes Freire nasce do
facto de este ser um dos poucos portugueses "capaz de (o) destronar": "Senhores,
temos de encontrar alguém que tenha prestígio no exército. Julgo que nos convém um
oficial de patente elevada, com um bom passado militar" (p.64).
Depois de Gomes Freire ser preso e quando Matilde o procura e lhe pede para
se imaginar no lugar do marido, Beresford revela todo o seu cinismo e falta de
sentimentos: "Parece-lhe verosímil tal hipótese?" (p.92), aproveitando a ocasião para
humilhar a mulher do general, procurando, deste modo, atingir Gomes Freire. A última
intervenção do marechal inglês é marcada pela arrogância e a insensibilidade que o
caracterizam: Matilde pergunta "Quanto vale, para vós, a vida dum homem?" e
Beresford riposta cruamente- "Depende do seu peso, da sua influência, das vantagens
ou dos inconvenientes que, para mim, resultem da sua morte." (p.99).
ESPAÇO
a) Espaço cénico
A ação desenrola-se em três espaços, interiores e exteriores, principais: a sede
do Conselho de Regência, a casa de Gomes Freire e o alto da serra (serra de Santo
António), de onde é possível ver-se o forte de S. Julião da Barra.
Ao longo do texto, são referenciados outros espaços: "No Cais do Sodré há um
café, Excelência, onde se reúnem todos os dias os defensores do sistema das
cortes...» (p. 37); «Senhor: há dois dias o meu amigo Morais entrou no botequim do
Marrare...» (p. 50), etc. Esses espaços ou são mencionados nas indicações didas-
cálicas e nos adereços cénicos ou através das falas das personagens, sendo que a
mudança de espaço é essencialmente indicada pelo autor, no texto secundário. O facto
de haver tão poucas referências diretas ao espaço leva-nos a depreender que a ação
apresentada pode ocorrer em qualquer espaço em que o ontem queira inviabilizar o
amanhã.
b) Espaço Social
As indicações didascálicas relativamente ao guarda-roupa e adereços, atitudes e
movimentação das personagens, as informações transmitidas pelas personagens e
registo de língua utilizado são fundamentais para a caracterização do espaço social de
Felizmente Há Luar!
Este espaço é um dos mais explorados pelo dramaturgo, dado que pretende
acentuar as diferenças que marcam a sociedade oitocentista. Assim, o povo é
caracterizado por um vestuário reduzido e por um cenário de doença, de miséria e
pobreza – dormindo no chão ou em cima de sacas, sentando-se em caixotes,
mendigando ou “catando piolhos”. Os poderosos, por seu lado, aparecem
caracterizados por um guarda-roupa cuidado de acordo com o seu estatuto social e
rodeados de um cenário de riqueza.
TEMPO
a) Tempo histórico
A ação de Felizmente Há Luar! representa a história do movimento liberal
oitocentista, no rescaldo das Invasões Francesas e a «proteção» britânica que se lhe
seguiu, revelando as condições da sociedade portuguesa no início do século XIX e a
ação de resistência dos mais esclarecidos, organizados frequentemente em
sociedades secretas. A conspiração, encabeçada por Gomes Freire d'Andrade,
manifestava-se contra a ausência da corte no Brasil, contra o poder absolutista e
tirânico dos governadores e contra a proteção/presença inglesa personificada pelo
generalíssimo Beresford.
Destaca-se, ao longo de todo o texto, a situação do povo oprimido e a falta de
perspetivas para o futuro.
Os acontecimentos históricos reveladores de um tempo de uma crise militar
(depois das Invasões Francesas, a organização do exército português é confiada aos
Ingleses que se instalam no país, em 1808), de uma crise política, económica,
ideológica e a data de execução do General Gomes Freire, são percetíveis através das
falas das personagens:
Manuel: «Vê-se a gente livre dos Franceses, e zás!, cai na mão dos
Ingleses!» (p. 16);
Vicente: «Querem saber porque vendo os meus irmãos? Pois vendo-os por
amor a N. S. Jesus Cristo e a el-rei D. João VI, que há tantos anos anda
pelos Brasis cuidando dos nossos interesses... " (pp. 27-28);
Principal Sousa: «Veja, Sr. D. Miguel, como eles transformaram esta terra de
gente pobre mas feliz num antro de revoltados!» (p. 40);
D. Miguel: «Sempre a Revolução Francesa ... » (p. 42);
Matilde: «Esta praga lhe rogo eu, Matilde de Meio, mulher de Gomes Freire
d'Andrade, hoje 18 de Outubro de 1817." (p. 129).
b) Tempo da ação
A peça tem como cenário o ambiente político do início do século XIX: em 1817,
uma conspiração, encabeçada por Gomes Freire de Andrade, que pretendia o regresso
do Brasil do rei D. João VI e que se manifestava contrária à presença inglesa, foi
descoberta e reprimida com muita severidade: os conspiradores, acusados de traição à
pátria, foram queimados publicamente e Lisboa foi convidada a assistir.
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As indicações temporais fornecidas pelo texto permitem-nos verificar que a
intriga se desenrola de forma linear e progressiva, embora não sejam muito precisas as
indicações sobre a duração da ação.
Historicamente, sabe-se que o general Gomes Freire foi preso a 25 de maio de
1817 e executado a 18 de outubro de 1817. Logo, a ação decorrerá entre estes dois
marcos temporais.
Assim, as expressões temporais do Ato I revelam uma duração de,
sensivelmente, dois dias:
«A Rita dorme. A que horas chegou ela?" (p. 16);
«Saiba, meu senhor, que a Senhora D. Rita chegou tarde.
Eram quase cinco horas pelo meu relógio de ouro." (p. 17);
«Temos ordens para te levar, ainda hoje, à presença...» (p. 29);
«Excelências: trago comigo um patriota que pode testemunhar o que ontem contei
ao Sr. Marechal." (p. 48);
«Não percam tempo, senhores. O momento é grave e a causa justa.» (p. 53);
«Ontem à noite entraram mais de dez pessoas em casa de...» (p. 60);
«Há dois dias que quase não durmo...» (p. 68).
c) Tempo da escrita
Felizmente Há Luar! foi publicado em 1961, em plena ditadura do regime de
Salazar. Sttau Monteiro viu na época de 1810-1820 grandes semelhanças com a
realidade portuguesa da década de 1950-1960 e marca uma posição, pelo
conteúdo fortemente ideológico, denunciando a opressão vivida na época em que
escreve a obra, em 1961, estabelecendo um paralelismo entre as duas épocas.
O recurso à distanciação histórica e à descrição das injustiças praticadas no
século XIX permitiu-lhe colocar em destaque as injustiças do seu tempo e a
urgência de lutar pela liberdade. Sttau Monteiro, testemunha e vítima da
perseguição da PIDE, encontra o meio para denunciar a situação portuguesa sob o
regime de Salazar, contribuindo para fortalecer a esperança que viria a tornar-se
realidade com a Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974.
À semelhança da conspiração de 1817, que serviu de gérmen para o triunfo
do liberalismo, também a oposição à ditadura do Estado Novo levou à implantação
da democracia.
LINGUAGEM
A linguagem das personagens, em Felizmente Há Luar!, é um modo de
entendermos a especificidade do seu carácter mas conduz-nos também à sua
integração num dos dois grandes núcleos da obra: o do poder e o do contrapoder.
Assim podemos verificar que a linguagem do contrapoder é uma linguagem
poética, logo transformadora relativamente ao seu referencial. Por outro lado, a
linguagem do poder remete para o domínio do material e move-se nas esferas
semânticas do exercício da política e desse mesmo poder. Se as palavras de Matilde
são dotadas de uma profunda sensibilidade e poder metafórico, as palavras de
Beresford, Principal Sousa e D. Miguel dão conta de um sentido prático, utilitário,
material.
Convém referir também o discurso do povo que nasce de vozes individuais que,
no entanto, não aparecem marcadas pela utilização de um nível popular da língua, pelo
contrário, frequentemente ganham sentido poético.
Ao longo da peça sucedem-se falas muito longas, excessivamente discursivas,
frequentemente as do poder mas também algumas de Matilde e de Vicente, e falas
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mais curtas e incisivas que aceleram o desenrolar da ação representada.
Frequentemente marcada pela utilização de suspensões frásicas, traduzindo pausas ou
contribuindo para uma prosódia viva e não monocórdica, a linguagem é algumas vezes
metafórica, centrada no valor poético da repetição anafórica e do paralelismo frásico,
marcada pela curva melódica da interrogação nos momentos interpelativos e pela da
exclamação nos momentos expressivos.
O discurso do autor/encenador, presente nas notações da didascália lateral, é
predominantemente um discurso de grande carga afetiva, logo valorativa, em que
pululam os substantivos abstratos e os adjetivos.
Finalmente, não nos podemos esquecer que a intenção de Sttau Monteiro é uma
intenção essencialmente crítica e que a atitude que exige do público é reflexiva, para
atingir estes objetivos é fácil de compreender quão adequado é o uso da ironia, sempre
tão presente não só nas falas das personagens como Beresford, que assim exprime a
sua crítica a Portugal e aos portugueses, mas também na atuação e palavras dessa
figura popular que é Manuel (por exemplo nos momentos iniciais de cada ato).
b) Fogueira
O facto do general Gomes Freire ter sido queimado depois de enforcado foi
duplamente aviltante, porque não era uma morte digna ou normalmente aplicada a um
militar. Contudo, em vez de ter funcionado como tal, assumiu um carácter redentor,
pois permitiu que o exemplo de ousadia e coragem do General se propagasse, fosse
visto e funcionasse como indício de que o bem haveria de triunfar e a justiça acabaria
por vencer. Esta fogueira, que representa o auge do terror, acaba por se tornar um
elemento criador, pois, como preconiza Matilde, os homens não poderão mais suportar
tal horror e repressão e lutarão por um mundo novo e diferente que destruirá a “velha
ordem”.
c) Saia verde
Se a luz está associada ao conhecimento e à esperança da vitória do bem,
também se inscreve nesta linha a saia verde que Matilde veste, em substituição do
negro, e com a qual fecha a peça. Mas o verde também simboliza a renovação da
natureza, a longevidade e a imortalidade, remetendo, assim, para o reencontro dos
amantes num outro mundo – a escolha daquela saia, comprada em Paris (terra da
liberdade), para esperar o seu amor após a morte, mostra precisamente a “alegria” de
Matilde ao pensar no reencontro. Com efeito, é esta saia verde que tem o dom de
transfigurar a fiel companheira de Gomes Freire, permitindo-lhe ultrapassar o seu
estado de desespero e revolta para assumir um discurso de esperança e tranquilidade.