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A CIVILIZAÇÃO DAS IDEOLOGIAS CAVALHEIRESCAS:

MUDANÇA DO CONCEITO DE NOBREZA NA FRANÇA ENTRE


OS SÉCULOS XVI E XVII A PARTIR DE UMA TEORIA DO
PROCESSO CIVILIZACIONAL

Fernando Ferreira1

Resumo: O objetivo dessa pesquisa é estabelecer uma reflexão sobre como o


conceito de nobreza, analisado em seus diversos sentidos e significados dentro do
contexto Europeu. Compreendidos por diversas categorias nobiliárquicas
construíram uma categoria cortesã e uma Civilité equivalente dentro do Estado
Moderno. Há limites naturais em relação a amplitude do tema e a dificuldade de
compreender categorias e os fenômenos históricos que condicionaram a mudança
social do conceito de uma nobreza guerreira para uma aristocracia cortesã, dentro
1
do contexto europeu durante vários séculos subsequentes. No entanto,
buscaremos compreender como os conceitos históricos revelam diversos
significados em determinados contextos sociais, dessa forma podemos pensar em
algumas possibilidades e mecanismos que condicionaram a mudança do conceito
da nobreza na França, através das analises de Elias a partir da teoria de um
“processo” civilizacional, entre os séculos XVI e XVII.

Palavras-chaves: Nobreza, O Processo Civilizador, Conceito, Civilité.


As análises da obra O Processo Civilizador de Norbert Elias,
serão preponderantes para compreender como as mudanças sociais do
processo civilizacional são constituídas em longo prazo, por
fenômenos históricos que se articulam entre si e seguem para um
ponto específico, rumo à civilidade. Resgatando a teoria de um
processo histórico em que os fenômenos dialogam entre sim,
construindo uma nova moralidade e etiqueta social. Esse grau de
civilização é constituído por demandas sociais que são criadas por
homens e mulheres em seu cotidiano. Essas demandas foram
articuladas principalmente pelo Estado Moderno, pela conjuntura de
mudanças que ordenavam novos padrões sociais, em seus contextos
históricos para os grupos que estavam inseridos dentro desta
sociedade. Dentro dessa ordem em transformação, também são móveis
seus papéis, status e condições, se adequando aos novos padrões que
vão se construindo e se efetivando. Essa dinâmica é um dos 2
importantes pontos de análise de Elias, pois compreender como a
teoria do processo se desenvolve nos permite compreendermos sua
estrutura. Os padrões de comportamentos e costumes, que se
evidenciam, vistos como naturais, mudam ao mesmo tempo em que a
sociedade se desenvolve.

Em sua obra Elias nos mostra como se construíram


diferentemente os conceitos de civilização e cultura entre as nações.
Historicamente os franceses e Ingleses entendem que o conceito de
civilização está ligado há várias esferas da sociedade. Para os alemães
há uma clara separação sobre o que o conceito de civilização abrange,
fazendo uma divisão dos aspectos estruturais políticos, econômicos e
religiosos, diferenciando-se da intelectualidade e de questões artístico
culturais. Por outro lado, os ingleses e franceses entendem que a
construção da noção de civilização está ligada aos comportamentos
humanos; moral e virtude, não relevando tanto as realizações humanas
como parte característica desse processo. Para os alemães a civilização
(Kultur) está tanto ligada às virtudes de cada indivíduo, quanto as suas
realizações perante a sociedade. Porém o conceito de Kultur na
Alemanha refletiu a segmentação sócio-cultural de época, reforçando
as distinções sociais como espaço de construção identitário. De certa
forma, o modelo de desenvolvimento alemão em sua caracterização
construiu e oscilou dois grandes grupos, segmentando os espaços
sociais entre aristocracia e a burguesia, caracterizando formas de
civilité especificas, que somente passam por um processo de unificação,
construindo uma noção de civilização, posteriormente a Primeira
Guerra Mundial.

Em seguida Elias demonstra como as mudanças nos costumes e


comportamentos são efeitos de um condicionamento social, em direção
à civilidade. Dessa forma, alguns comportamentos como escarrar a 3
mesa, limpar o nariz com as mãos ou molhar o pão na travessa
comunitária, são tidos como incivilizados. Num momento posterior a
mudança comportamental, sua aceitação e a transformação da etiqueta
e seu refinamento são fruto de um processo de longo prazo, em que as
restrições ou proibições desses comportamentos são reproduzidas
cotidianamente, assimiladas psicologicamente durante várias gerações,
constituindo-se naturalmente como prática, tornando-se “naturais”.
Por exemplo, o ato de “flatular” atualmente, n~o é considerado de bom
tom, sabemos disso quase de forma natural. Mas em certo momento
histórico, “flatular” era algo recomendado, fruto de boa saúde e
educaç~o, eliminando segundo a tradiç~o Galênica dos “corpos e dos
humores” gases nocivos ao corpo. Dessa forma, a restriç~o sobre o
“fl|tulo” n~o ocorreu naturalmente, mas desenvolveu-se a partir de
uma nova civilité como condição das práticas sociais, que percebiam o
comportamento como não adequado ou até repugnante para uma
sociedade civilizada.
A esta altura, porem, teria sido útil! Suprimir a
sensação de embaraço de modo ou acalmar o corpo
ou, seguindo o conselho de todos os médicos,
apertar bem juntas as nadegas e agir de acordo com
as sugestões do epigramade Aethon: Fazia de tudo
para não peidar explosivamente em Lugar sagrado,
e orou a Zeus, embora com as nadegas
comprimidas. O som do peido, especialmente das
pessoas que se encontram em lugar elevado, e
horrível. Sacrifícios devem ser feitos, com as
nadegas fortemente comprimidas. (Genebra, 1609
in: ELIAS, 1990, p.36)

4
Para fazer tais análises, Elias utiliza; manuais de
comportamentos de época, “manuais de civilité” como os organizados
por Eramos de Roterdã, que evidência as mudanças comportamentais
desejáveis e as aspirações de uma sociedade refinada. Obras como as
de Shakespeare, destacam novos hábitos sociais desejáveis, também
percebidos em pinturas e cartas pessoais. Segundo Elias as novas
normas sociais ampliaram a sociedade civilizada, ao mesmo tempo em
que aumentam os mecanismos de controle. Nessa direção, salienta
Nietzsche, acerca do sofrimento que nasce junto à sociedade e sua
civilização, o homem civilizado é refém de sua vontade.

Antes de partimos propriamente para compreendermos


algumas concepções sobre a gênese do Estado Moderno e a formação
das sociedades de corte. Torna-se importante percebemos os vários
sentidos que o conceito de nobreza modela no contexto da Europa
Moderna, durante os séculos XVII e XVIII. Nessa tentativa buscaremos
a partir das concepções de Reinhardt Kosseleck perceber a construção
do conceito histórico, refletido a partir de uma comunidade histórico
linguística. Dessa forma buscamos demonstrar que o conceito de
nobreza também se caracteriza como um problema histórico. A falta de
compreensão de uma categoria histórico-conceitual articulada a um
contexto social, muitas vezes gera abordagens históricas anacrônicas.
O problema surge, não fora de sua época, pois os conceitos ou
categorias por possuírem um contexto sócio linguístico operam de
forma adequada em seu tempo e seu significado. Diferentemente
quando na tentativa de compreendermos contextos sociolinguísticos
distintos, incorremos em um anacronismo, fruto de uma inadequação
entre o conceito-categoria, sua carga representativa ou simbólica e sua
estrutura semântica. Segundo as indagações de Koselleck sobre a
história dos conceitos:
5

Constitui objeto da história social a investigação das


formações das sociedades ou as estruturas
constitucionais, assim como as relações entre
grupos, camadas sociais; ela investiga as
circunstâncias nas quais ocorreram determinados
eventos, focalizando as estruturas de médio em
longo prazo, bem como suas alterações, a história
social ainda pode investigar teoremas econômicos,
por força dos quais se podem questionar os eventos
singulares e os desenvolvimentos políticos dos
fatos. (KOSELLECK, 2006, p.98)
Quanto { história conceitual; “Os métodos da história dos
conceitos, por sua vez, provém da história da termologia filosófica, da
semasiologia, e da onomasiologia, seus resultados podem ser
comprovados pela retomada de exegese textual, remontando sempre
de volta a ela.” (KOSELLECK, 2006, p. 98) No entanto, Koselleck nos
mostra que o diálogo entre essas ciências linguísticas e históricas não
estão restritas em suas definições metodológicas, uma com abordagem
na formação histórica da sociedade e a outra na comunidade
linguística. Suas proximidades são complementares e não estão
distintas em si, pois não pode existir uma sociedade sem conceitos, ou
seja, as palavras ou categorias conceituais exprimem e representam
uma realidade histórica e propriamente não podemos compreender os
conceitos sem propriedade contextual histórica, percebendo apenas
suas especificidades linguísticas. Como exemplo dessa proximidade,
podemos referenciar o momento em que os estudos levaram a 6
compreender o conceito de revolução, possuindo inerentemente um
significado de ação política. Dessa forma, as interpretações dos
fenômenos históricos do passado, que remetem ao conceito de
revolução, podem ser vistos como indicadores de uma mudança
estrutural. (KOSELLECK, 2006)

A interpretação do passado necessita da compreensão dos


conceitos em seu contexto e tempo histórico. Um conceito é formado
por uma palavra, e mesmo que tal palavra continue escrita da mesma
forma, seu significado pode remeter à outros sentidos durante o
desenvolvimento do processo de mudança da sociedade. Dessa forma,
para termos uma leitura do passado procurando retratar a realidade
histórica, sem distorções ou anacronismo, precisamos ter uma
preocupação em compreender os conceitos históricos em suas
transformações que o compõe.
ALGUMAS INDAGAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE NOBREZA NO SÉCULO
IX

A partir dessa lógica, na Sociedade Feudal, Marc Bloch descreve


que a gênese da atribuição do conceito de nobreza, que expressa suas
primeiras aparições ainda nas constituições de grupos “b|rbaros”,
anterior ao próprio processo de fixação do feudalismo, que se inicia na
França, com o declínio do império Carolíngio, por volta do século IX no
ocidente.

Entre muitos dos povos germânicos, tinham


existido certas famílias qualificadas, oficialmente,
como nobres: em língua vulgar, edelinge, que os 7
textos latinos traduzem por nobiles e que, em
franco-borgonhês, sobreviveu muito tempo sob a
forma adelenc. A este título, gozavam de vantagens
precisas, nomeadamente de um preço de sangue
mais elevado; os seus membros, como dizem os
documentos anglo-saxões, tinham nascido mais
caros do que os outros homens. (BLOCH, 1979,
p.331)

Para Bloch o conceito de nobreza é um equivalente de


hereditariedade (sangue e bens) e a condição de uma superioridade
social, construída por meio da legitimação e do reconhecimento desta
condição, entretanto, não figurou antes do século XII. Anterior a esse
período a nobreza francesa, possuía uma significação menor, e sua
linhagem apenas aludia ao fato de não possuírem antepassados
escravos, sem dignificação:

Todavia, encontraram-se, mesmo entre os humildes,


indivíduos que, súbditos de um senhor quanto às
suas terras, mesmo assim, tinham conservado a sua
liberdade pessoal. Inevitavelmente, a uma qualidade
que se tornara tão rara, ligava-se o sentimento
duma honorabilidade especial, que, sem contrariar
os hábitos do tempo, podia chamar-se nobreza.
(BLOCH, 1979, p.334)

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George Duby em seu livro intitulado “A sociedade
cavalheiresca” dedica uma grande parcela de seus estudos, analisando
as origens das famílias nobres francesas através de fontes primarias
existentes em pequenas regiões da França, encontradas
especificamente em abadias. Duby percebe, assim como Bloch, que as
primeiras designações para nobreza apenas expressavam uma situação
maior de posses e bens e a sua condiç~o de homem “livre”,
notadamente a evolução das estruturas sociais garante aos nobres
ricos, concessões de terras e títulos hereditários. No entanto essa
aristocracia não prezava suas posses e sim sua fidalguia, conceito que
ultrapassa sua eventual riqueza, ou seja, glorificam-se pelas conquistas
de seus antepassados. A glória militar era para a sociedade feudal,
prova de sua nobreza e assim, a legitimidade de seu orgulho, reside na
sua capacidade militar traduzida numa condição social distintiva.
A nobreza guerreira distingue dois qualitativos que
representam grupos em posições diversificadas dentro do feudalismo,
entretanto, com o tempo as categorias poderiam designar o mesmo
indivíduo, nobreza de sangue e de espada. Nem todo nobre era
cavaleiro, e vice versa, mas pelo contexto do feudalismo em que as
guerras eram frequentes e a principal atividade da nobreza se pautava
em sua função guerreira, era comum, nobres serem investidos como
cavaleiros, acumulando as distinções. A caracterização de um grupo
específico para atuar na condição de uma milícia guerreira, sugere uma
distinção social, já que se tratava de um grupo especializado voltado
para as atividades militares. No entanto desde o momento de sua
origem no contexto do feudalismo, esse conceito sofre um processo de
mudança com o desenvolvimento da sociedade em questão, em que o
estabelecimento de grupos especializados para as funções ligadas às
guerras, articulavam a nobreza como parte desse processo, por várias 9
questões, que envolvem desde o processo de vassalagem até a
glorificação das atividades militares, que passam a ser um qualitativo
cada vez mais difuso entre os nobres.

Atas estudadas por Georges Duby na região de Maconnais,


província da França, nos cartulários da abadia de Cluby por volta do
ano de 971 exprimem as primeiras aparições da palavra “Miles” 2 como
dignificante de uma superioridade social, sendo atribuída
individualmente para expressar um título ou ao coletivo de um grupo
específico. Nas fontes relativas às cartas de senhores o emprego da
express~o “cavaleiro” torna-se mais frequente a partir do século XII e
na maioria dos casos descreve um grupo familiar especifico, o que
sustentava a distinção de tal titulo por hereditariedade. Os “nobres”
que exerciam funções militares eram referenciados como “guerreiros”,
e nem sempre faziam parte de uma nobreza com concessões de títulos
e status propriamente dito, nesses lugares o processo de mudança do
termo guerreiro para “miles” pode ser percebido como fator de um
desenvolvimento das instituições militares.

Marc Bloch define que na primeira era feudal. Um cavaleiro era


aquele que combatia a cavalo e possuía um feudo para proteger, esse
conceito inicial equivalente, combater a cavalo, evidencia uma grande
evolução militar, passando da infantaria para a cavalaria, já que
outrora os Carolíngios só guerreavam a pé. Segundo os germanos um
cavalo valia seis vezes mais que um boi, e se analisarmos o extenso
período medieval, um cavalo era privilégio de poucos e custava um
preço elevado. Outro ponto que podemos analisar é a perícia militar
que desenvolveu-se em anos de treinamento para um cavaleiro já
investido, treinamento que não ocorria na fase adulta, mas ainda
quando “criança”. Dessa forma, podemos perceber que as condições
próprias para arma-se cavaleiro como indicativo de uma milícia 10
especializada, exigindo recurso e tempo em grande monta. Essas
transformações históricas criam novas palavras/categorias que
demonstram a mudança do conceito de “cavaleiro”, acompanhado e
institucionalizado por princípios e ideologias cavalheirescas e sociais
distintivas, torna-se qualitativo cada vez mais característico da
aristocracia.

Na região da Normandia (Ducado da França) esse pensamento


cavalheiresco, difundiu-se tanto que dizer que um filho de nobre não
era um cavaleiro, significava que o mesmo não tinha atingido a
“maioridade”. No entanto o sentido de “Miles’” por volta do ano mil n~o
era propriamente uma designação militar superior, mais uma função
militar de servir um patrono. Deste modo, o uso dessa atribuição não
poderia ser aplicado a todos da nobreza, pois nem todo nobre era
vassalo, o que deixava claro a compreensão do porque nas cartas de
Maconnais, “Miles” era usado no lugar de termos como sinônimo a
vassalo, os “escribas” da época tinham o cuidado de n~o usar o termo
“Miles” para descrever um suserano na mesma condiç~o que seus
vassalos, mas teriam que utilizar um termo, que ressaltasse também
sua condição militar de cavaleiro. Nesse sentido “escribas” posteriores
aos séculos XII, n~o mais usavam a designaç~o “Miles” para mencionar
a alta nobreza, mais uma categorização ligada a divinização de sua
função militar e refletindo as ideologias cavalheirescas expressas entre
a aristocracia, “Bellatores”.

A partir de uma história conceitual, podemos analisar essa


abordagem histórica interpretada por Marc Bloch e George Duby.
Ambos os autores se preocupam com os vários sentidos que um
conceito pode atribuir em seu contexto histórico.

11
Para os primeiros escritores que deram o nome ao
feudalismo, para os homens da Revolução, que
trabalharam para o destruir, a noção de nobreza
parecia inseparável dele. No entanto, não há
associação de ideias mais redondamente errada.
Mesmo por pouco que nos interessemos por
conservar alguma exactidão ao vocabulário
histórico. Decerto que as sociedades da era feudal
nada tiveram de igualitário. (BLOCH, 1976 , p.330)

A preocupação de Bloch demonstra que as primeiras


concepções a respeito da formação do feudalismo, compreendiam que
a nobreza era um grupo dominante e lhe atribuíam características que
apenas posteriormente, (século XII) se fixariam em definitivo. Esse tipo
de abordagem anacrônica, que Bloch evidencia, é também uma crítica a
história dos conceitos, em relação a analises das fontes, onde as
categorias conceituais representam uma realidade histórica, nesse
sentido não podemos compreender os conceitos sem propriedade
contextual histórica, pautando-se apenas em suas especificidades
linguísticas.

Refletindo a teoria do “Processo Civilizador” podemos


compreender como a mudança comportamental, de uma sociedade que
procurava expressar sua civilidade como distinção entre grupos, gerou
novas realidades históricas, condicionando várias mudanças sociais e
criando ou gerando outros significados para conceitos que estão
presos a essas sociedades. Sem a crítica histórico-conceitual não
podemos entendê-los, bem como os antecedentes que levaram a 12
nobreza de corte a ser identificada como uma aristocracia cortesã.
Dessa forma procuramos compreender como que a origem do Estado
Moderno gerou mudanças nos padrões e demandas sociais, assim
como, um condicionamento ordenado por um governo “centralizado”.
Portanto, o contexto social da formação do Estado Moderno, gerou
categorias nobiliárquicas que estavam dispostas de acordo com sua
vinculação a essa conjuntura. Para nos situarmos sob como a nobreza
estava dividida em categorias, vamos novamente a Bloch:

Apesar das características comuns da vocação


militar e do gênero de vida, o grupo dos nobres de
facto, e depois, de direito, esteve sempre muito
longe de constituir uma sociedade de iguais.
Profundas diferenças de fortuna, de poder e,
consequentemente, de prestígio estabeleciam entre
eles uma verdadeira hierarquia, mais ou menos
habilmente expressa, primeira pela opinião e, mais
tarde, pelo direito consuetudinário ou pela lei.
(BLOCH, 1979, p. 386)

A partir dessa indagação de Bloch, podemos perceber que


mesmo algumas características comuns aos padrões de vida
nobiliárquicos, não se constituem em uma homogeneização categórica,
pois são diversos os qualitativos e indicadores que podem ser
expressos para diferenciar os grupos entre as camadas da nobreza,
exemplo; suseranos e vassalos, primogênitos ou segundo filho
(refletindo as condições individualmente). Dessa forma as categorias 13
cada vez mais são reconhecidas por direitos e por legislações que
muitas vezes se apresentam por seus costumes e práticas exclusivas.

Antes de Guilherme o Conquistador, invadir a Inglaterra em


1066, e ser designado com esse título, ele era o duque da Normandia,
ou também, Guilherme o Bastardo, filho logicamente bastardo do
duque Roberto I o Magnífico. A Normandia era um ducado da França,
conquistado pelos povos vindos do norte, os dinamarqueses que
invadiram sobre a liderança do futuro conde Rolo. Como podemos
perceber nessa pequena genealogia de duques e condes, os títulos
nobiliárquicos expressam uma categoria distinta, mas análoga a
nobreza, como no caso referenciado a cima, o domínio de um condado
repassado por sua genealogia nobre alterando a dignificação no nome,
na categoria e na distinção. Mesmo Guilherme o Conquistador sendo
bastardo, filho de uma camponesa, a nobreza herdada do pai Roberto I
assim como o título com suas honrarias davam-lhe a concessão de um
ducado, sua condição e reconhecimento tornou-se efetiva através de
suas conquistas.

No entanto, a expressão duque que referencia o poder sobre um


domínio “exclusivo”, foi {s poucos perdendo esse significado e
consequentemente o caráter do título vai se evidenciando apenas em
honrarias e status, não se limitando propriamente a chefia de um
ducado. “À época das formações nobili|rquicas espont}neas sucedia
aquela em que o do cimo ao fundo da escala social, o Estado
futuramente teria o poder de fixar e modificar as categorias” (BLOCH,
1979, p. 389)

ALGUMAS PERCEPÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO DO ESTADO MODERNO 14


NA FRANÇA

O sociólogo Norbert Elias, atribui como fator de várias


mudanças conjunturais na sociedade, o estabelecimento do Estado
Moderno, que se constitui através de vários antecedentes e fenômenos
históricos como; grandes guerras, crises, fatores econômicos, dentre
outros, que levaram ao desenvolvimento de instituições políticas e
certamente reordenaram o condicionamento do poder real ao um
desenvolvimento de um Estado centralizado.

A formação do Estado Moderno é um dos indicativos de


mudanças históricas que passam a refletir as alterações de sentidos no
conceito de nobreza no contexto europeu. Nesse sentido, Elias
procurava evidenciar que não são somente reis e príncipes que
ampliam seus poderes nesse contexto histórico, mas instituições são
estabelecidas e adquirem novas importâncias no processo de
transformação da sociedade, gerando novas possibilidades aos grupos
que oscilam no corpo social.

As estruturas feudais de nobres autônomos que se dedicavam


{s guerras “tribais” e seus comportamentos e costumes, estavam
ligados a características próprias de uma sociedade dita “feudal”, que
passa por uma transformação em que o enraizamento do Estado e suas
instituições impõem limites, controlando os conflitos internos e as
armas de uma sociedade cavalheiresca. Esse processo ocorreu em uma
centralização crescente dos poderes através de mecanismos
restritivos, onde a violência que outrora era parte privada e direito da
sociedade dita “feudal” se transforma deslocada pelo poder crescente e
interventivo do Estado. Como salienta Elias “o livre emprego de armas
em combate é vedado ao indivíduo e reservado a um autoridade
central, qualquer que seja seu tipo” (1993, p. 98) Com monopólio da 15
força militar, o Estado viabiliza também o monopólio da tributação.
Dessa forma, a máquina administrativa do Estado, compreende e
modifica gradualmente novas formas e modelos com respectivos
impactos nas camadas sociais, gerando um complexo sistema de
mudanças. Os conflitos inerentes às questões de poder envolvem
também concessões de privilégios e benefícios a essa organização
social transitória. O Estado gerou novas possibilidades, fruto dessa
mudança estrutural, em que a ascensão de grupos pode ser manejada
por outros mecanismos e condições, outrora conquistados pelas armas.
“Graças { centralizaç~o e a monopolizaç~o, oportunidades que antes
tinham que ser conquistadas por indivíduos com emprego da força
militar... tornou-se possível de planejamento” (ELIAS, 1993, p. 100)
A express~o muito citada, “Nenhuma terra sem um
senhor”, n~o constituía apenas uma princípio
jurídico básico. Era também o lema da classe
guerreira. Traduzia a necessidade dos cavaleiros de
se apossarem de todos os pedaços de terra
utilizável. Cedo ou tarde, isso acontecera em todas
as regiões da Cristandade latina. (ELIAS, 1993, p.
45)

Como Salienta Elias, podemos pensar em agentes individuais e


seus atos que puncionaram o desenvolvimento de uma forma
centralizada de poder, com mecanismos complexos de controle social e
enraizamento de instituições duradoras que geriam esse sistema. Não 16
é menos verdade que Luís VI, o gordo da família dos Capetos lutou
durante toda sua vida para ampliar suas posses e subjugar os senhores
feudais no ducado da Francia. Durante quase cinco séculos os Capetos
expandiram seus poderes militares e financeiros, por toda área do seu
reino. Em longo prazo os alicerces lançados por Luís o gordo,
contribuíram fortemente para a ascensão dos Capetos e para a
centralização do poder do Estado. Segundo Elias, em uma sociedade
guerreira, comumente uma família conseguia ascender militarmente e
conquistar a hegemonia de um território conflituoso, subjugando os
nobres menores e de médio porte, sendo que quase ou todos os
poderes do feudalismo demandavam da posse da terra. Até mesmo a
coroa necessitava partilhar de campanhas de conquistas territoriais
para ampliar ou manter seu poder na regi~o. ”Se os Capetos n~o
tivessem conseguido a preponderância na região da Frância, cedo ou
tarde - tal como acontecia com outras províncias na França -, ela teria
passado a outra Casa.” (ELIAS, 1993, p.90) Dessa forma, Luís o gordo
não planejava consolidar mecanismo de poderes que engendraram a
formação de uma forma de governo centralizada, entretanto, precisava
subjugar e conquistas apoio das famílias mais poderosas da região
para manter a comunicação entre seu território, e para seu poder não
desaparecer em alguns lugares.

Um dos mecanismos efetivos de poder do monarca sobre seu


território, era o controle da tributação, que não poderia ter se
efetivado fortemente em um contexto social onde predominava a
economia de escambo3. A partir do século XI no ocidente a mudança
estrutural da sociedade gerava demandas econômicas que
necessitavam de uma forma de troca econômica uniforme para se
movimentar; a moeda. As relações monetárias ampliam as trocas à
longa distancias e impulsionavam outras mudanças consequentes a
esse processo. Dessa forma, o monopólio das armas, garantido pelas 17
instituições militares do Estado, eram financiados pelo controle da
tributação, mas não somente o Estado se fortalecia nesse contexto,
como também a circulação monetária ao mesmo tempo em se
ampliavam os valores nos cofres dos monarcas e sua autonomia.
Riqueza que era utilizada para manter concessões individuais e
privilégios próprios da nobreza, numa condição de negociação ativa.

A monetarização foi aumentando gradualmente por diversos


fatores e dinâmicas históricas sociais, entre estes; a expansão
demográfica que ampliava e formava várias camadas de
interdependências na sociedade, nesse aspecto podemos citar o
número de artesãos e comerciantes que cresciam de forma
significativa nas cidades contribuindo com o estabelecimento de um
grande mercado em expansão, gerando demandas de trocas moveis e
também a formação de estradas e meios de transportes que
movimentassem esse mercado. A moeda passou a circular de forma
intensa nas grandes cidades, consolidando e ampliando o crescimento
da burguesia e seus equivalentes politicos. Em parte o monopólio das
atividades comerciais nas cidades, tencionaram às relações entre as
classes dominantes, e forçam o sistema social numa nova direção,
acabando por garantir a burguesia em ascensão novos espaços e
direitos sociais em um processo longo e conflituoso, forjando uma nova
“civilité”. Através de um determinado desenvolvimento estrutural do
comércio no sistema feudal, a burguesia se legitima como uma classe
média de profissionais livres, exercendo um papel marginal nas
relações de dominação. Nesse sentido, podemos pensar em duas
formas de dominação criadas pela aristocracia no sistema feudal; a
gerada sobre { terra (servid~o), e a “dominaç~o sobre o homem”. Nesse
aspecto um dos capítulos da obra de Marc Bloch4, capítulo intitulado O
homem de outro homem retrata as relações de laços de fidelidades e
interdependências. 18
No entanto, os monopólios fiscais, militares e tributários não se
constituem em exclusividade de classe, como salienta Elias, não
dependem essencialmente de um único individuo ou grupo. Em uma
sociedade as interdependências e a divisão das funções de trabalhos
são amplas, aumentando a necessidade de uma grande teia de relações
para gerir esse sistema. Da mesma forma, quanto mais às instituições
monopolistas tornam-se duradouras e amplas, maior é a “dependência
dos dependentes” para explorar efetivamente as dimensões dos
poderes. Nesse sentido, quanto maior se torna a abrangência do poder,
maior é a necessidade de fiscalizá-lo e estruturá-lo. Portanto, quando o
poder atinge dimensões monopolistas o controle e a fiscalização
compreende esferas de poderes que são controladas cada vez mais por
uma “teia humana” com v|rias divisões de funções e trabalhos
específicos, onde os poderes privados aos poucos se transformam em
públicos. Esse processo gradual e lento se apresenta perceptível ao
longo de séculos:

Características estruturais particulares da


sociedade podem levantar obstáculos infindáveis no
decorrer do processo, mas, ainda assim, seu
mecanismo e tendência são inequívocos. Quanto
mais abrangente o potencial de poder
monopolizado, maior a rede de funcionário que o
administra e maior a divisão de trabalho entre eles,
em suma, quanto maior o número de pessoas de
cujo trabalho ou função o monopólio depende de
qualquer maneira, mais fortemente esse campo 19
controlado pelo monopolista faz valer se próprio
peso e suas regularidades internas. (ELIAS, 1993, p.
100)

Uma das formas físicas de manter esses monopólios, eram as


cortes privadas dos aristocratas, surgindo como resultado e causa da
transformação da sociedade. Emergem dentro de um contexto
histórico de crise do sistema feudal, seja pelas crises alimentares, falta
de terras, ao aumento demográfico ou próprio limite do sistema. As
cortes, além de serem a morada do senhor feudal, soberano de uma
vasta região, eram também um centro administrativo responsável pelo
controle da produção de subsistência, assim como o controle da
entrada e saída de produtos (não podemos pensar que o comércio
nesse período século XIV tinha atingido grandes amplitudes, o feudo
produzia grande parte dos alimentos que eram usados pela sua
subsistência, o excedente era comerciado). Para gerir essa
administração dentro das cortes, o soberano precisava de pessoas
educadas para tais fins, como resultado dessas novas demandas
surgem os magistrados. Dessa forma, podemos perceber que a
construç~o de uma nova sociedade e uma nova “civilité,” s~o resultado
de uma desestruturação e crise que força os sistemas sociais e suas
normalizações a reconstruir a partir dessa crise uma nova realidade,
um processo civilizador.

AS CORTES ARISTOCRÁTICAS E AS NORMAS DE CIVILIDADES

A formação de centros privados evidencia um grande número 20


de relações de interdependências, como salienta Elias, é por
consequência uma “desintegraç~o” do sistema feudal. Mas aos poucos
esse movimento começa a estabilizar-se e se reintegrar através de
mecanismos de centralização. Um dos modelos explicativos para esse
processo é a comercialização que aos poucos beneficia os aristocratas
mais poderosos, pois os mesmos tinham condições de gerir dentro das
suas cortes, atividades comerciais do excedente produzido em seu
feudo, oferecendo novas oportunidades e funções próprias, dentro de
um complexo sistema econômico. A corte não possuía apenas fins
administrativos, ela era a morada dos homens mais ricos e poderosos,
um lugar luxuoso e por sua vez, importante centro cultural, reunia
dentro delas; escribas responsáveis por escrever as crônicas dos
soberanos, escritores de livros que contavam com o patrocínio dos
senhores aos quais serviam, pois nesse período não existia mercado
para o livro, e quem possuía esse oficio fiava-se na aristocracia.
As cortes atraiam poetas, músicos, pintores, artistas de vários
gêneros. Nesse sentido as cortes ganharam uma importância cultural
maior que as próprias cidades, elas eram o reflexo do poder e riquezas
do senhor, e com o passar do tempo, essa estrutura se amplia entre os
nobres, um nobre tinha que possuir uma morada digna de sua nobreza,
um equivalente categórico. A representação torna-se muito importante
para organização social da nobreza nessa época (séculos XV e XVI) e
gradativamente com maior força, a ponto de muitos nobres, venderem
tudo que possuíam para se manter em uma vida luxuosa e de acordo
com as novas representações e estilos de vida que se conformavam.
Dentro das cortes esses grupos operam funções diversificadas e
preservam um estilo de vida nobiliárquico e podem conquistar
benefícios com suas funções, terras, títulos, patrocínios. Essas
categorias anteriormente equivaliam a nobres menores que não
tinham condições de manterem atividades e custos próprios da 21
nobreza, e acabam por realizar funções paralelas, suplementares,
nesses grandes centros. Mas com a difusão desses ofícios, dependiam
eles cada vez mais de um soberano para financiar sua arte, um
mecenas. Por exemplo, o “bardo” para manter sua “carreira musical”,
deveria ir a lugares onde sua música fosse apreciada, lugares onde
pessoas fossem educadas para apreciar culturalmente sua música. As
oportunidades nesse caso se davam nas cortes, principalmente de
grandes aristocratas, que tinham a condição de financiar um crescente
mecenato. Assim como o poeta, que se inspiravam na vida cotidiana do
nobre para dedicar sua poesia, por isso alguns temas são sugestivos, se
pensarmos as artes liberais dentro das cortes aristocráticas. Mas não
podemos imaginar que somente o nobre menor fosse educado para
desempenhar essa arte, a alta nobreza também possuía essa condição
artística, pois tinha que parecer culturalmente superior a outros
aristocratas, assim como seu status social o indicava. Evidenciando
isso, apenas nas cortes os trovadores tinham a possibilidade de
arrebatar serviço de alguma duração e servir a uma dama (ELIAS,
1995, p.76)

A vida na sociedade de corte não estava isenta de


percalços... Os nobres colidiam entre si, lutavam por
prestígio, pela posição na hierarquia da corte. Os
escândalos, as intrigas, as disputas por favores não
tinham fim. Todos dependiam uns dos outros e
todos dependiam do rei... Quem detinha um cargo
elevado poderia perdê-lo no dia seguinte. Não havia
segurança. Cada um era obrigado a fazer alianças
com pessoas de nível mais elevado, a evitar
inimizades inúteis, a planejar rigorosamente a sua 22
estratégia contra rivais irredutíveis, a dosear cada
gesto de aproximação ou distanciamento em função
da própria posição de força. (ELIAS, 1995, p.78)

Essa passagem de Elias, referenciada da obra, A Sociedade de


Corte. Indica as relações sociais nos círculos das cortes aristocráticas,
onde o convívio dos indivíduos era ordenado por regras
comportamentais, que os legitimavam e também os distinguiam entre
os mesmos, sendo que cada movimento teria que ser planejado em
relação a si e para com os outros. Tanto a ascensão social e o acesso
aos cargos como no declínio dos mesmos, eram uma situação
momentânea que poderia transformar-se pelo renovado contexto
social. Dessa forma, cada gesto, cada atitude era potencialmente
percebido como condição de exposição, tanto de fragilidade como de
superioridade. Portanto se manter próximo ao rei ou aos príncipes e
sua benevolência eram fundamentais e desejados por todos os
aristocratas dentro das cortes, seus favores exigiam novas etiquetas.

A busca pela “civilidade”, privando comportamentos e paixões,


em direção a uma mentalidade difundida a respeito da violência e do
comportamento desejável, era fruto de uma sociedade cortesã em
transformação. A violência na forma individual, não era mais um
atributo dos senhores feudais, não se adequava mais dentro da nova
sociedade de corte. Portanto, segundo Elias, a centralização do Estado
e as mudanças nos mecanismos de controle social são por
consequência, parte e resultado de um processo civilizacional lento, em
que a sociedade estabelece complexos modelos psicológicos de longa
duração. É como se dentro dos limites da corte/cidade se
desenvolvesse uma consciência de privações e interdições. Resultado 23
disso, a violência não era entendida como um meio para conseguir algo
dentro dessa sociedade, por essa razão se estabelecem outros
mecanismos sociais para tais fins, esses meios são parte de um
processo de civilidade que a sociedade aos poucos passa a legitimar.

Erasmo de Roterdã5 foi um dos primeiros do seu tempo a


propor um manual de civilidade, evidenciando um tema que estava
“amadurecido para discuss~o” assimilado ou em processo de
assimilação social, refletindo costumes/comportamentos como parte
de normas de civilidade. O sucesso de sua obra, publicada em vários
países, adaptadas sobre a forma de literatura, contos, poemas é um
forte indicativo de como a sociedade europeia estava “madura”, em
termos comportamentais para um novo “salto dentro da civilidade”.
Dessa forma, o contexto social em transformação influencia e amplia os
resultados de suas ideias, circunscritas dentro da Civilité ou Civilité
Puérile publicadas até o século XVIII. Pela didática de suas obras e
certamente por escrever algo que expressava uma necessidade social,
propõem normas e regras comportamentais de grande alcançe. Elias
salienta que à obra de Erasmo, em grande parte, é forjada por
observações aos costumes e modelos comportamentais que operavam
na sociedade. Dessa forma os costumes adotados pela influência do
pensamento de Erasmo, eram algo inerente a sociedade, expressando
desejos e anseios que já estavam mais ou menos dispostos entre os
grupos. Os manuais nesse sentido contribuíram para uma
compreensão mais concreta da inteligibilidade das representações das
práticas e dos costumes e comportamentos:

O conceito civilitas, daí em diante, ficou gravado na


consciência do povo com o sentido especial que 24
recebeu no tratado de Erasmo. Palavras
correspondentes surgiram várias línguas; a francesa
civilité, a inglesa civility, a italiana civilitá, e alemã
Zivilität, que reconhecidamente nunca alcançou a
mesma extensão que as palavras correspondentes
nas outras culturas. (ELIAS, 1996, p.65)

Assim como autores clássicos (na Grécia, Roma etc.) Erasmo


propõem um tratado sobre o comportamento das pessoas em
sociedade em que; expressões corporais, faciais, gestos que evidenciam
a natureza do humano. A leitura que pode ser feita dos olhares,
expressões da face, e outros comportamentos, podem identificar o
interior do homem, ou seja, “grosseiramente falando”, sua bondade ou
maldade. O contexto social em que Erasmo publica sua obra, parte de
uma compreensão dos comportamentos humanos, aos quais se
julgavam civilizados ou incivilizados, em que é possível mapear essas
expressões, mesmo que com intenções diversas, as mesmas expressões
podem ser controladas e restringidas, limitando e extinguindo as
poucos os excessos, que eram compreendidos nesse contexto,
posterior ao século XVI, como uma característica do Medievo, na forma
de expressar o “amor cortes~o”, nos duelos e propriamente na
violência física, e para a nova sociedade de corte tais excessos não
eram próprios do comportamento civilizado.

A mudança das “Civilites” é condição e reflexo do processo


civilizador, e a importância da construção histórica de categorias ou
conceitos remete a necessidade de ampliarmos nossas perspectivas de
an|lise, abandonando uma definiç~o de “termo” ora confort|vel e
construirmos modelos de análise metodológicos que evidenciem a 25
construção histórica das palavras, conceitos e categorias, não como
expressão linguística restrita, mas como um processo histórico
contextualizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seria limitado citar algumas ciências sociais que receberam


significativas contribuições diretamente ou indiretamente pela obra
inovadora de Elias, “O Processo Civilizador”. Elias resgata a teoria de
processos civilizacionais analisados a partir das experiências
históricas, onde fenômenos sociais que eram percebidos isolados entre
si, na verdade revelam sentidos e nexos singulares, possibilitando
compreensões de “forças que só se manifestam na vertente de séculos”
6. Por exemplo, Elias diverge das várias formas explicativas que
compreendem determinados comportamentos, como naturais dos
indivíduos. Pois não podemos separar a constituição psicológica dos
indivíduos do processo de transformação social, ambos estão ligados e
seguem a um condicionamento específico, a civilização. Com a teoria
do processo civilizador, Elias abre as portas para que várias pesquisas
sociais sejam produzidas a partir da noç~o de “processo”, pois sua
aplicabilidade é significativa em diversos contextos históricos e áreas
do conhecimento social, tanto que sua obra aborda costumes e
comportamentos de diversificadas “nações” (França, Alemanha e
Inglaterra) em diferentes tempos históricos, mostrando que as origens
de uma “civilizaç~o dos costumes” é um processo lento, que sob v|rias
hipóteses n~o é linear. Determinados indivíduos se portam “de uma
forma específica” porque durante sua existência eles estavam inseridos
numa sociedade em movimento, que condicionava e refletia seus
comportamentos a partir das mudanças históricas que a sociedade 26
criava:

Serão necessárias a reflexão de muitas pessoas e a


cooperação de diferentes ramos do conhecimento,
hoje frequentemente divididos por barreiras
artificiais, para que gradualmente sejam
respondidas as questões levantadas no curso deste
estudo. Dizem elas respeito à psicologia, filologia,
etnologia e antropologia, não menos que à
sociologia ou aos diferentes ramos da pesquisa
histórica. (ELIAS, 1990, p.19)
Elias não só realiza umas das obras mais respeitáveis nos
estudos sociais, como também lança uma teoria inovadora para ser
refletida em vários trabalhos decorrentes. A aplicabilidade do
“processo” se faz sob v|rios sentidos e contextos históricos como s~o
mostrado por Elias em vários momentos de sua obra. Pois toda
sociedade passa por processos civilizacionais. Não estamos atualmente
passando por uma globalização? O capitalismo é puramente um
processo econômico? Ambas são perspectivas de analise amplas, que
podem ser pensadas a partir de uma origem e mudança social, em
an|logo com a pesquisa de Norbert Elias sobre a “civilizaç~o dos
costumes”.

Dessa forma, tanto a teoria do processo civilizacional, como a


compreensão dos conceitos históricos nós formam auxiliados por
Reinhardt Koselleck que salienta que quando as ciências sociais se 27
propõem a analisar estruturas de longo prazo, mudanças, durações,
apenas podem fazer reflexões significativas da realidade histórica sem
levarem em considerações os conceitos ali expressos, pois todo
sociedade é formada por conceitos que são gerados a partir do seu
“movimento histórico”, que contribuem para perceber de forma
teórica, as relações cronológicas entre os acontecimentos, ou sua
justaposição de permanência e alteração (2006). Como podemos
observar nessa pesquisa, foram vários os fatores que condicionam a
mudança do conceito de nobreza e seu significado em diferentes
contextos históricos, percebemos que já no inicio do feudalismo,
apenas se tratava de uma condição social mais elevada, uma
categorizaç~o de homem “livre” que n~o possuía antepassados
escravos. Em resumo; o desenvolvimento da sociedade em questão
elevou ao passo do processo de mudança social, as condições de
nobres e cavaleiros, esse segundo conceito chegou a prevalecer sobre o
primeiro, mas no momento em que o Estado Moderno cristaliza os
meios de monopolização sob a violência e as guerras, nova condições
sociais passam a serem estabelecidas, e ao passo do processo
civilizacional, as ideologias cavalheirescas transformam-se em regras
de cortesias e civilidade. Mas dizer que nobres autônomos perdem a
preponderância sobre a guerra, não é o mesmo que dizer que a
sociedade se torna menos bélica, pelo contrario. Essa é uma condição
d| import}ncia de perceber o “processo”, e n~o a linearidade
cronológica dos fatos, que são limitadas para refletir determinadas
circunstâncias históricas.

REFERÊNCIAS

BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1979. 28


DUBY, G. A sociedade cavalheiresca. São Paulo. Martins Fontes, 1989.
ELIAS, Nobert. A Sociedade de Corte. Lisboa: Estampa, 1995.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1990, volume 1.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1993, volume 2.
FLORI, Jean. Cavalaria. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude.
Dicionário do Ocidente medieval. Vol. I. Bauru/São Paulo:
EDUSC/Imprensa Oficial, 2002, pp. 185-199
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Idade Média: nascimento do ocidente. 3
ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
GUERREAU, Alain. Feudalismo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-
Claude. Dicionário do Ocidente medieval. Vol. I. Bauru/São Paulo:
EDUSC/Imprensa Oficial, 2002, pp. 185-199
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica
dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio,2006.
PEDRO, Antonio. História Moderna e Contemporânea. São Paulo:
Moderna, 1985.

NOTAS

1. Graduando do 4º ano de História FAFIUV- Campus UNESPAR.


Orientador: Ms Everton Carlos Crema – UNESPAR-FAFIUV

2. Miles (plural milites) utilizado em diferentes contextos históricos,


podendo atribuir diferentes significados , mas referencia atividades
ligadas à combates; guerras, serviços militares. Na Idade Média sobre 29
uma influência dos monges que se designavam soldados de Deus
(milites Dei) as vocações militares sobre vários aspectos se
assemelham a servir a Deus, nesse sentido as palavras milites, militare,
milites recebem também um significado elevado além de sua condição
mundana. Miles, pode atribuir o sentido de servir, dessa forma algumas
vezes eram utilizados para transcrever termo como vassalo.

3. Economia por troca de mercadorias

4. Obra, A sociedade Feudal

5. Tratado de Erasmo; De civitate morum puerilium (Da civilidade em


crianças) em 1534

6. Ribeiro, J., Apresentação a Norbert Elias in: ELIAS, Norbert. O


Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p.15. volume 1

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