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Universidade Federal do Rio Grande

Instituto de Ciências Humanas e da Informação


Arqueologia – Bacharelado
10299 - Sociedades Pré-Coloniais Americanas II – 2/2022
Prof. Dr. Alex da Silva Martire - alexmartire@furg.br
Acadêmico: Luciano de Mello Silva / Matrícula: 151601

Resenha crítica do artigo “Considerações Sobre o Conceito de Civilização em Norbert Elias” de


Sílvia Lima de Aquino.
Referência da obra: Aquino, S. Lima. “Considerações sobre o conceito de civilização em Norbert
Elias”. Revista Espaço Acadêmico. Nº.138 (2012). 138-148p.
Silvia Lima de Aquino é socióloga e professora da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, tornou-se Doutora nos anos de 2009 a 2013 realizando parte de seu doutorado no Centro de
Investigação em Ciências Sociais da Universidade do Minho (Portugal), tornou-se Mestra nos anos
de 2006 a 2008, ambos os títulos obtidos na área de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade na UFRJ. Em ambos trabalhos tratou sobre temáticas associadas a reforma
agrária, abordando o uso de agrotóxicos e produção em escala de eucaliptos. Sua principal área
temática é reforma agrária e agricultura familiar, mas os artigos de Aquino abordam outras
temáticas sociais como o trabalho doméstico, migração entre área rural e urbana, inserção de
trabalhadores na produção de celulose, desenvolvimento rural, agroecologia e ecologia política.
Aquino se especializou em Literatura, Memória Cultural e Sociedade pelo Instituto de Educação,
Ciência e Tecnologia Fluminense, sendo graduada em Geografia pelo mesmo instituto onde se
especializou. Entre os anos 2009 e 2013, Aquino publicou capítulos de livros relacionados ao
trabalho da mulher do campo, tais como “Sociabilidade e Gênero: notas a partir de um grupo
produtivo de mulheres assentadas” (Bruno, et al., 2009); “Organizações produtivas das mulheres
assentadas da reforma agrária” (Bruno, et al., 2011); “Razões da participação de mulheres rurais em
grupos produtivos” (Bruno, et al., 2013). Entre os anos de 2018 e 2019, produziu capítulos de livros
relacionados ao desenvolvimento agrário, publicando “Políticas públicas para o campo: da
abordagem setorial à abordagem territorial” (Aquino & Mengel, 2018); “Dinâmicas regionais,
atores, instituições: interfaces do debate sobre o desenvolvimento” (Mengel, et al., 2019). Mais
recentemente, Aquino tem produzido capítulos relacionados a Reforma Agrária e Agricultura
Familiar, publicando os capítulos “O papel dos agricultores familiares na produção de soluções
tecnológicas para a agricultura familiar” (Mengel et al., 2021) e “Atores locais como criadores de
conhecimento: um método para reconhecer soluções tecnológicas criadas na agricultura familiar”
(Mengel & Aquino, 2021).
O artigo “Considerações Sobre o Conceito de Civilização em Norbert Elias” possui um
Resumo, uma Introdução, e os subtítulos “Como Surgem os Conceitos”, “O Conceito de
Civilização”, “Civilização versus Kultur”e “Considerações Finais”. Neste artigo, Aquino trata dos
conceitos desenvolvidos por Norbert Elias sobre “civilização” e suas delimitações, em suas
publicações em dois volumes sobre “O Processo Civilizador” e “Escritos e Ensaios 1 – Estado,
Processo e Opinião Pública”. Para a autora, é importante observar a perspectiva de Norbert Elias de
longo prazo das transformações que ocorrem na sociedade, mas também na personalidade dos
indivíduos, apontando para o fato de que Elias inclui o conceito de processo em suas teorias
sociológicas, método pelo qual Aquino busca analisar em suas reflexões. Em sua análise, Aquino
aponta o método processual aplicado à análise sociológica de Elias, que se distancia na busca de
definir o conceito de civilização em uma trajetória que o leva à sua gênese, evocando o conceito de
Kultur alemão, comparando ao longo do processo histórico o significado que estes conceitos
tiveram em países como França/Inglaterra e Alemanha, correlacionando com a ascensão burguesa e
a substituição da aristocracia de corte. Norbert Elias busca, segundo a autora, sua sociogênese e a
compreensão dos fenômenos e processos sociais que decorrem ao longo do desenvolvimento
histórico. Assim, a autora apresenta o foco de Elias no processo contínuo e histórico, inicialmente
definindo de onde surgem os conceitos na sociedade, apontando que estes são frutos de uma
experiência prolongada e assimilada pelos indivíduos, uma identificação social com a “cristalização
de experiências” que passam a fazer sentido. Portanto, Aquino aponta que para Elias, o conceito de
civilização pode estar relacionado ao conceito de cultura, no sentido de que “estruturas de
personalidade e da sociedade evoluem em uma interrelação indissolúvel”, e trata de um conjunto de
valores de um determinado povo que, embora para Elias haja a possibilidade de se encontrar povos
mais ou menos civilizados que outros, não há um juízo de valor que defina isso como um fato
positivo ou negativo, embora para ele este conceito seja particular e inerente à sociedades ocidentais
e sua percepção de si própria, “expressando tudo que estas sociedades nos últimos dois ou três
séculos julgam ter de superior à sociedades mais antigas ou contemporâneas consideradas mais
primitivas.” Para entender a sociogênese e psicogênese dessa construção do conceito de civilização,
Aquino aponta que Elias busca aprofundar o olhar sobre as sociedades de três nações europeias:
Alemanha por um lado e França e Inglaterra por outro, num recorte temporal a partir do século
XVIII, onde a passagem da Prússia ao Estado Nação Alemanha culmina com a transição e a
necessidade de aceitação da burguesia ascendente pautada em aspectos considerados constitutivos
da sociedade alemã, em substituição à aristocracia de corte espelhada nas práticas das sociedades
francesas e inglesas que denotavam orgulho e importância de suas contribuições enquanto nação ao
progresso do Ocidente e da humanidade como um todo. Segundo Aquino, Norbert Elias ressalta que
para esta classe alemã o conceito de civilização denotava um valor de segunda categoria, associado
apenas a aparência externa dos indivíduos como expressão de sua contraposição à sociedade de
corte. Os alemães buscaram no conceito de Kultur a afirmação de seus valores de classe pautados
em fatos intelectuais, artísticos e religiosos alemães, enfatizando as diferenças nacionais e as
identidades particulares de seus grupos, no processo de ascensão da classe burguesa e em
substituição aos valores da aristocracia de corte que imitava os manuais de etiqueta ingleses, hábitos
e língua franceses. Observando o recorte histórico situado no contexto francês, Aquino aponta que
Elias adentra a sociogênese do conceito de civilização para a burguesia francesa, que foi
incorporada aos meios cortesãos, acreditando que os conceitos que antecedem o sentido de
civilização são courtoisie (cortesia) e civilité (civilidade), conceitos que transitaram de cortesia na
Idade Média para civilidade nos séculos XVI e XVII, atingindo seu desuso no século XVIII e dando
lugar ao conceito de civilização, mas nesse período, utilizado como modo de distinção entre o
civilizado e a barbárie, sendo assimilado pela burguesia, ao mesmo tempo em que há um
refinamento do comportamento por parte dos cortesãos, acompanhado pela mimese burguesa. Este
refinamento comportamental está relacionado a uma série de mudanças de hábitos assimilados pela
sociedade como por exemplo com relação ao corpo e aos impulsos instintivos, no sentido de maior
controle dos impulsos corporais e aperfeiçoamento dos hábitos e gestos de forma ritualística.
Aquino aponta que para Elias não se pode afirmar que uma sociedade ou indivíduo seja civilizada,
mas sim vislumbrar o nível de civilização de cada sociedade, uma vez que o recorte apresentado
demonstra que o conceito foi criado dentro de uma sociedade cujos valores estabelecidos serviram
de parâmetro comparativo para afirmar suas posições em relação a outras sociedades consideradas
menos civilizadas. Assim, reconhece que condições de aprendizado em sociedade são os fatores que
impulsionam nossa disposição para nos tornarmos civilizados, dentro dos parâmetros aos quais cada
sociedade se inclui, tanto na esfera individual, quanto na esfera de grupo. Nesse sentido, aponto
que, na minha opinião, os conceitos apresentados de civilização, sua sociogênese e psicogênese,
nesse recorte específico, traz consigo a origem dos equívocos relacionados às sociedades originárias
em sua categorização como bárbaros ou pouco civilizados à época da colonização. A perspectiva
Ocidental claramente impõe o modelo de civilização ao qual outros grupos, considerados bárbaros
ou pouco civilizados, devem se submeter, e embora Aquino aponte a relativização feita por Elias
onde o conceito de civilização deva ser empregado ressalvando o nível de civilização de cada
sociedade, ainda assim, afirma que existe um nível de civilização a ser considerado, relativo aos
hábitos de cada sociedade especificamente. Nesse sentido, sociedades complexas, diversas, não
europeias, de culturas e hábitos peculiares poderiam ser consideradas civilizadas dentro de seus
próprios critérios de civilização. Transpondo o recorte territorial e histórico à realidade dos povos
americanos, aponto que, segundo Andrade Lima (1995, 1996, 1997) os hábitos da sociedade
burguesa brasileira acompanhou, a partir dos séculos XVII, XVIII e XIX os mesmos parâmetros
europeus e modelos de civilização, sendo imposto à sociedade escravista, uma transição para
hábitos considerados corteses e civilizados de controle dos impulsos instintivos por meio das
praticas corporais de saúde, por meio de mudanças sucessivas de hábitos e materiais de consumo e
também por meio da implementação de rituais que, para sociedades europeias faziam sentido, mas
que para o nosso contexto tropical não seriam adequados. A imposição de tais hábitos
acompanhadas de artefatos cada vez mais complexos, na verdade buscava a criação de novos
mercados de consumo à recente industrialização europeia que buscava o domínio e controle das
colônias no processo imperialista de expansão de mercados. A relativização de Boas (1922) sobre
antropólogos como Spencer, Tylor e Fraser, no intuito de desmascarar o conceito racista e
evolucionista de visão eurocêntrica (Castro, 2009; Rocha, 1991) que se apresentava no trato com os
povos nativos, também cabe, de uma maneira mais contundente que a relativização de Norbert
Elias, uma vez que o conceito de civilização foi amplamente utilizado para classificar povos
originários como bárbaros ou selvagens.
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