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“Há muito tempo, Arthur Rimbaud sintetizaria essas paradoxos numa frase que
se tornou famosa, e ao mesmo tempo de diáfana e enigmática: “eu é um outro.”
(SIBILA, 2016, p. 58-59).
“Anne Frank: “o melhor de tudo é que o que penso e sinto, pelo menos
posso anotá-lo; se não, iria me asfixiar completamente”. Eis o segredo revelado
do relato autobiográfico: é preciso escrever para ser, além de ser para
escrever.” (SIBILA, 2016, p. 59).
““A arte da conversação está morta, e logo estarão mortos quase todos
os que sabem falar”, metralhou Guy Debord em 1967, nas páginas de seu
livro-manifesto intitulado A sociedade do espetáculo. Isso pode soar estranho
numa época como a nossa, quando os telefones celulares proliferam por toda
parte e, junto com eles, as conversas se multiplicam sem limites e acontecem
em qualquer lugar.” (SIBILA, 2016, p. 67).
“ “ Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas
devem ser contadas?”, perguntava então Benjamin com certo pesar, e ainda
mais: “quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua
experiência?”. (SIBILA, 2016, p. 69-70).
“Eis uma rápida contagem, para sintetizar o fenômeno: informação,
eliminação das distâncias e forte dependência da veracidade; ou seja,
necessidade de uma ancoragem verificável na vida real. Assim, nesse turbilhão
de narrativas cotidianas em que todos participamos, constata-se algo
paradoxal: a morte do narrador – pelo menos nesses sentidos benjaminianos –
seria mais do que confirmada. Ela paira sobre os relatos autobiográficos que
proliferam não apenas nas redes informáticas mas também em muitos outros
meios de comunicação e numa grande variedade de expressões artísticas
contemporâneas.” (SIBILA, 2016, p. 71).
“... Richard Sennett também pintou um quadro do século XVIII como uma
época de apogeu do homem público e das belas artes da palavra naqueles
palcos urbanos em plena gestação; todas potências, enfim, que teriam decaído
nos umbrais do intimista século XIX. Não se tratava, porém, para todos esses
estudiosos, de enaltecer um livre fluir da espontaneidade individual nas
interações entre quatro paredes. Longe disso, aliás: naquelas longínquas
paisagens europeias em que foi parida a modernidade, a oratória emergia
como uma técnica complexa e potente, na qual primava o artifício teatral que
convertia cada palavra numa valiosa arma política.” (SIBILA, 2016, p. 75).
“Seja como for, num ponto todos parecem concordar: nesse novo
contexto, além de mais interativos e dispostos a compartilhar suas
experiências, os sujeitos estão se tornando “mais visuais do que verbais”.
No compasso de uma cultura que se ancora crescentemente em
imagens, desmonta-se o velho império da palavra e proliferam fenômenos
como os aqui examinados, nos quais as lógicas da visibilidade e da conexão
constante desempenham papéis primordiais na construção de si e da própria
vida como um relato. Isso ocorre, porém, em meio a um grau de
espetacularização cotidiana que talvez nem o próprio Guy Debord teria usado
imaginar. Um contemporâneo do pensador situacionista francês escreveu a
seguinte frase em 1968: “daqui a uns poucos anos, o homem será capaz de se
comunicar de forma mais efetiva através de uma máquina do que face a face.”
(SIBILA, 2016, p. 78-79).
“... Debord denunciava as tiranias de uma formação social que então estava
apenas assomando seus tentáculos, porém já tendia a cercear o campo do
possível. Ao mesmo tempo que abria novas possibilidades e outras portas da
percepção, evidentemente mas a sua crítica apontava para o seu lado mais
sombrio: a padronização das trocas subjetivas. O ativista francês lamentava a
asfixia de certas regiões da sensibilidade, a estimulação exclusivas de algumas
zonas e a hipertrofia de umas poucas, enquanto todas as demais
possibilidades vitais eram sufocadas na escuridão do invisível. Assim, ele
descreveu a imposição de um regime de audiovisualidade obrigatório, muito
colorido e tentador, porém tirânico em sua capacidade de silenciar as possíveis
margens, os reveses e as lacunas que também poderiam estar repletos de
sentido. Esse regime hoje ainda se expande, as interfaces gráficas
desenvolvidas por Licklider desempenham um papel fundamental nessa
conquista.” (SIBILA, 2016, p. 79-80)
“... como insinua Neal Gabler em seu provocador estudo sobre os avanços do
entretenimento e da lógica do espetáculo. Valorizamos a própria vida em
função da sua capacidade de se tornar, de fato, um verdadeiro filme – ou
melhor, um atraente produto transmídia.
Por isso não surpreende que os sujeitos contemporâneos adaptem os
principais eventos de suas vidas às exigências da câmera, seja de vídeo ou de
fotografia, mesmo que o aparelho concreto não esteja presente – inclusive
porque, como poderia adicionar um observador mordaz, nunca se sabe se
você está sendo filmado. Assim, a espetacularização da intimidade cotidiana
tornou-se habitual, com todo um arsenal de técnicas de estilização das
experiências de vida e da própria personalidade para ficar bem na foto ou na
fita. As receitas mais efetivas emulam os moldes narrativos e estéticos da
tradição cinematográfica, televisiva e publicitária, cujos códigos têm sido
apropriados e realimentados pelos novos gêneros que proliferam na internet.
Nesse contexto, o eu não se apresenta apenas ou principalmente como
um narrador – poeta, romancista, cineasta – de sua própria vida, mesmo que
seja a trilhada e cada vez mais festejada epopeia das pessoas comuns, do
anti-herói ou do “homem ordinário”. (SIBILA, 2016, p. 80-81)
“Ao passar do clássico suporte de papel e tinta para as mais novas telas
eletrônicas, não é apenas o meio que muda: transforma-se também a
subjetividade que se constrói nesses gêneros autobiográficos. Muda
precisamente aquele eu que narra, assina e protagoniza os relatos de si.
Altera-se o narrador, muda o autor, transforma-se o personagem.
Contudo, em princípio, nota-se que essas novas narrativas
autorreferentes não parecem enfatizar a função do narrador, e nem a do autor,
mas a do seu protagonista. O acento recai naquele prezado personagem que
se chama eu.” (SIBILA, 2016, p. 82).