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Cap.

“A fim de compreender esse fenômeno tão contemporâneo de exibição


da intimidade (ou de produção de extimidade), uma primeira pergunta se
impõe: essas novas formas de expressão e comunicação que hoje proliferam –
blogs, perfis pessoais das redes de relacionamento, selfies e vídeos caseiros –
devem ser consideradas vidas ou obras? Todas essas cenas da vida privada,
essa infinidades de versões de você e eu que agitam as telas interconectadas
pela rede mundial de computadores, mostram a vida de seus autores ou são
obras da arte produzidas pelos novos artistas da era digital? É possível que
sejam, ao mesmo tempo, vidas e obras? Ou talvez se trate de algo
completamente novo, que levaria a ultrapassar a clássica diferenciação entre
essas duas noções?” (SIBILA, 2016, p. 55).

“Aproveitando vantagens como os diversos graus de anonimato e a


facilidade de recursos que oferecem as mídias interativas, por exemplo, os
habitantes desses espaços monitoram espetáculos de si mesmos para exibir
uma intimidade inventada. Seus testemunhos seriam, a rigor, falsos ou
hipócritas: em suma, não autênticos. Ou seja, enganosas autoficções, meras
mentiras que se fazem passar por pretensas realidades, ou então relatos não-
fictícios que preferem explorar a ambiguidade entre um e outro campo. Apesar
do pantanoso que parece esse terreno, ainda assim cabe indagar se todas
essas palavras e essa enxurrada de imagens não fazem nada mais – e nada
menos – do que exibir fielmente a realidade de uma vida nua e crua. Ou se, ao
contrário, esses relatos criam expõe diante do público um personagem fictício.
Em síntese: são obras produzidas por artistas que encarnam uma nova forma
de arte e um novo gênero de ficção ou se trata de documentos verídicos acerca
de vidas reais de pessoas como você, eu e todos nós?” (SIBILA, 2016, p.55-
56).

“Em suma: se o leitor – ou, em sentido mais amplo, o espectador –


acredita que o autor, o narrador e o personagem principal de um relato são a
mesma pessoa, então se trata de uma obra uma obra autobiográfica. Trata-se
de uma definição pouco sólida porém funcional, que desde então se tem
utilizado para identificar essas modalidades discursivas.” (SIBILA, 2016, p. 56).

“O eu que fala e se mostra incansavelmente nas telas da rede costuma


ser tríplice: é ao mesmo tempo autor, narrador e personagem. Além disso, e
pelo menos em certa medida, não deixa de ser uma ficção; pois apesar de sua
contundente autoevidência, é sempre frágil o estatuto do eu. Embora se
apresente como “o mais e insubstituível dos seres” e a “mais real, em
aparência, das realidades”, como diz Pierre Bourdieu em seu artigo intitulado “A
ilusão biográfica”, o eu de cada um de nós é uma entidade complexa e
vacilante. Uma unidade do ilusória construída na linguagem, a partir do fluxo
caótico e múltiplo de cada experiência individual.” (SIBILA, 2016, p.57).

“ nada menos que eu, um efeito-sujeito. É uma ficção necessária, portanto, já


que somos feitos desses relatos: eles são a matéria que nos constitui enquanto
indivíduos com o nome, uma trajetória e uma identidade. Nesse sentido,
somente a linguagem nos dá consistência e relevos próprios, pessoais,
singulares, e a substância que resulta desse cruzamento de narrativas se
(auto)denomina eu.” (SIBILA, 2016, p. 57).

“A experiência de si como um eu se deve, em primeiro lugar, à condição


de narrador do sujeito: alguém que é capaz de organizar a sua experiência na
primeira pessoa do singular. Mas este não se expressa unívoca e linearmente
através de suas palavras, traduzindo em texto alguma entidade que precederia
o relato e que, por tal motivo, seria mais real ou verdadeira do que a mera
história contada. Em vez disso, cabe admitir que a subjetividade se constitui na
vertigem desse córrego discursivo, pois é nesse fluxo narrativo que o eu de fato
se realiza. Usar palavras e imagens constitui uma forma de agir: graças a elas
podemos criar universo e com elas construímos nossas subjetividades,
nutrindo o mundo com um rico acervo de significações. A linguagem não só
ajuda a organizar o tumultuado o fluir da própria experiência e a dar sentido à
vida mas também estabiliza o espaço e ordena o tempo, em diálogo constante
com a multidão de outras vozes que nos modelam, coloreiam e recheiam.”
(SIBILA, 2016, p. 58).

“Há muito tempo, Arthur Rimbaud sintetizaria essas paradoxos numa frase que
se tornou famosa, e ao mesmo tempo de diáfana e enigmática: “eu é um outro.”
(SIBILA, 2016, p. 58-59).

“Mas se o eu é um narrador que se constitui enquanto se narra e (também) é


um outro, o que seria aquilo que está no cerne de tais relatos: a vida de cada
um? Assim como o seu protagonista, essa trajetória existencial possui um
caráter eminentemente narrativo. A experiência vital de cada sujeito é um relato
que só pode ser pensado e estruturado como tal se, de algum modo, for
cristalizado na linguagem. Contudo, aqui tampouco se trata de dar um formato
discursivo a uma realidade prévia: assim como ocorre com seu personagem
principal, esse relato não representa simplesmente a história que se tem vivido,
mas ele a apresenta. E, de alguma maneira, também a realiza, concede-lhe
consistência e sentido, delineia seus contornos e a constitui.” (SIBILA, 2016, p.
59).

“Anne Frank: “o melhor de tudo é que o que penso e sinto, pelo menos
posso anotá-lo; se não, iria me asfixiar completamente”. Eis o segredo revelado
do relato autobiográfico: é preciso escrever para ser, além de ser para
escrever.” (SIBILA, 2016, p. 59).

“Algo semelhante – e com uma intensidade crescente – parece ocorrer


no caso das fotografias que registram certos acontecimentos da vida cotidiana
para, deste modo, recortá-los do fluxo e congelá-los numa imagem estática.
Não é raro que a foto termine engolindo o referente, para ganhar ainda mais
realidade do que aquilo que em algum momento deveras aconteceu e foi
fotografado. Com a facilidade técnica que esse dispositivo proporciona na
captação mimética do instante, ainda mais após a popularização dos telefones
portáteis munidos dessa função, a câmera serve para documentar o que somos
de um modo extremamente realista.” (SIBILA, 2016, p. 60).

“A própria fotógrafa estadunidense confessou que, quando era jovem,


costumava escrever diários a fim de “reter sua própria versão das coisas”. Isso
aconteceu até o momento em que ela descobriu as potências da câmera, uma
ferramenta que lhe ofereceria a inédita possibilidade de se “manter viva, sã e
centrada”, já que essa inscrição fotográfica de sua memória voluntária lhe
permitia “confiar na própria experiência” à medida que as coisas iam
acontecendo.” (SIBILA, 2016, p. 60).

“...Nan Goldin o achou no registro da lente que ele concedera o dom de


“salvar-se pela imagem”. Assim como Virginia Woolf sedimentava sua vida
assentando-a nas folhas de seu diário íntimo, esta outra artista construiu uma
sorte de “equivalência entre viver e fotografar”. Em todos os casos, recorrendo
às diversas técnicas de criação de si, tanto as palavras como as imagens que
tricotam o minucioso relato autobiográfico cotidiano parecem exalar um poder
mágico: não só testemunham, mas também organizam e inclusive concedem
realidade à própria experiência. Essas narrativas tecem a vida que o eu vai
vivendo e, de alguma maneira, a realizam.” (SIBILA, 2016, p. 60-61).
“Por um lado, o foco tem se desviado das figuras ilustres: foram
abandonadas as vidas exemplares ou heroicas que antes atraíram a atenção
de biógrafos e leitores, para se debruçar sobre as pessoas consideradas
comuns. Isso, é claro, sem desprezar uma busca pertinaz por aquilo que toda
figura extraordinária também tem (ou teve) de comum, banal, trivial. Pois há um
evidente deslocamento em direção à intimidade; isto é, uma curiosidade ainda
crescente por aqueles âmbitos da existência que costumavam ser catalogados
de maneira inequívoca como privados, tanto no que se refere às celebridades
de todos os tipos e épocas como a qualquer um.
Enquanto vão se alargando os limites do que se pode dizer e mostrar
ante um público que se deseja infinito, a esfera da intimidade continua sendo
muito valiosa para cada um – sobretudo, parece ser cada vez mais importante
na hora de definir quem se é e quanto se vale –, mas agora ela transborda os
limites do espaço privado e se exacerba sob a luz de uma visibilidade quase
total. É preciso que os outros tenham acesso a esse universo antes preservado
por sólidas paredes e rígidos pudores, pois o olhar alheio deve legitimar a
existência disso que se mostra, quantificando seu valor com as diversas
manifestações interativas”. (SIBILA, 2016, p. 61-62).

“Seria vão menosprezar a influência que esses novos artefatos – cada


vez mais utilizados para escrever, ler, pensar e comunicar – estão exercendo
na maneira com que escrevemos, lemos, pensamos e nos comunicamos. Os
textos eletrônicos, que se deslizam pelas telas dos computadores, muitas
vezes pontilhados de sons e imagens fixas ou em movimento, instauram novos
hábitos e práticas; e isso tanto para os autores quanto para os leitores.
Portanto, é nesse suporte tecnológico que reside a primeira e mais óbvia
diferença entre a reluzente interatividade digital e as velhas artes manuscritas
da autoexploração.” (SIBILA, 2016, p. 65).

“Deixando esse importante assunto em suspensão, agora convém nos


distanciarmos um pouco do polo subjetivo destes relatos – o autor, narrador e
personagem – para observarmos algumas características do seu polo objetivo:
os textos, os sons e as imagens; ou seja, as obras por eles criadas. De um
modo geral, nos novos espaços da internet se cultiva um tipo de escrita com
fortes marcas de oralidade. É habitual o recurso à transcrição literal da fonética
e a um tom coloquial que evoca as conversas cotidianas. O estilo desses
escritos não costuma remeter a outros textos, nem que seja para se sublevar
contra eles ou para fundar ativamente uma nova linguagem. Sua feitura não se
apoia em parâmetros tipicamente literários ou letrados, nem de maneira
explícita nem tampouco implícita nas entrelinhas ou no sentido do gesto
escritural. Além disso, impera certo descuido com relação às formalidades da
linguagem e às regras da escrita.” (SIBILA, 2016, p. 66).

““A arte da conversação está morta, e logo estarão mortos quase todos
os que sabem falar”, metralhou Guy Debord em 1967, nas páginas de seu
livro-manifesto intitulado A sociedade do espetáculo. Isso pode soar estranho
numa época como a nossa, quando os telefones celulares proliferam por toda
parte e, junto com eles, as conversas se multiplicam sem limites e acontecem
em qualquer lugar.” (SIBILA, 2016, p. 67).

“A voracidade industrialista teria atropelado as condições que permitiam


a narratividade no mundo pré-moderno, um universo arrasado no frenesi das
novidades, com uma enxurrada de dados que em sua rapidez incessante não
se deixam digerir pela memória nem recriar pela lembrança. Toda essa
agitação teria suscitado uma perda das possibilidades de refletir sobre o
mundo, bem como um inevitável distanciamento com relação às próprias
vivências e uma impossibilidade de transformá-las em experiência.
Antes, bem antes, era diferente. O fluxo narrativo das velhas artes de
recitar, entrelaçadas aos modos de vida rurais e às atividades artesanais
partilhadas, constituía um “fazer junto”. Os ouvintes participavam do relato
narrado, e este possuía uma instabilidade vivente: era aberto por definição e se
metamorfoseava ao sabor das diversas experiências enunciativas. Tratava-se
de uma gestualidade irmanada às distâncias, tanto no sentido espacial quanto
temporal: as estórias vinham de longe, trazidas por marinheiros e forasteiros;
ou então procediam de antigamente, da noite mítica dos tempos. Além disso,
essas artes narrativas exigiram uma entrega total e uma distensão na escuta:
um “dom de ouvir” intimamente associado ao dom de narrar, um grau de calma
e sossego aparentado com o sono, no qual flutuava certo “esquecimento de si
mesmo.” Algo que naquele universo pré-moderno era perfeitamente possível,
porém hoje se torna cada vez mais raro: uma disposição do corpo (e do
espírito) que se localiza no extremo oposto da tensão, da ansiedade e da
aceleração que nos turbinam na contemporaneidade. Como poderia sobreviver,
então, esse fluxo vivo e grupal que evoca uma multiplicidade de
Scheherazades anônimas, à compressão das distâncias e à condensação dos
horários que marcaram a fogo os tempos modernos?” (SIBILA, 2016, p. 68-69).

“ “ Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas
devem ser contadas?”, perguntava então Benjamin com certo pesar, e ainda
mais: “quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua
experiência?”. (SIBILA, 2016, p. 69-70).
“Eis uma rápida contagem, para sintetizar o fenômeno: informação,
eliminação das distâncias e forte dependência da veracidade; ou seja,
necessidade de uma ancoragem verificável na vida real. Assim, nesse turbilhão
de narrativas cotidianas em que todos participamos, constata-se algo
paradoxal: a morte do narrador – pelo menos nesses sentidos benjaminianos –
seria mais do que confirmada. Ela paira sobre os relatos autobiográficos que
proliferam não apenas nas redes informáticas mas também em muitos outros
meios de comunicação e numa grande variedade de expressões artísticas
contemporâneas.” (SIBILA, 2016, p. 71).

“ “Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo e, no entanto, somos


pobres em histórias surpreendentes”, constata Benjamin. “A razão é que os
fatos já nos chegam acompanhados de explicações; em outras palavras: quase
nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço
da informação.” Eis que a elegância dos relatos consiste, precisamente, em
evitar as explicações. E essa é uma grande diferença entre as velhas artes do
narrador tradicional e as fofocas em que nos enredamos hoje em dia: antes, o
leitor era “livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio
narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.” (SIBILA, 2016, p.
72).

“... Richard Sennett também pintou um quadro do século XVIII como uma
época de apogeu do homem público e das belas artes da palavra naqueles
palcos urbanos em plena gestação; todas potências, enfim, que teriam decaído
nos umbrais do intimista século XIX. Não se tratava, porém, para todos esses
estudiosos, de enaltecer um livre fluir da espontaneidade individual nas
interações entre quatro paredes. Longe disso, aliás: naquelas longínquas
paisagens europeias em que foi parida a modernidade, a oratória emergia
como uma técnica complexa e potente, na qual primava o artifício teatral que
convertia cada palavra numa valiosa arma política.” (SIBILA, 2016, p. 75).

“Acompanhando todas essas novidades que ainda estão em pleno


processo de sedimentação, acentuou-se a preeminência das linguagens
audiovisuais, que também tendem a estimular mais uma certa exteriorização do
que aquela velha interiorização da leitura solitária. Por outro lado, a antiga
experiência coletiva do narrador vai ficando ainda mais distante, visto que não
apenas os aparelhos de rádio e televisão foram abandonados a sala familiar
para se instalarem nos quartos particulares, mas também costumavam sair
para as ruas plugados nos corpos, nos ouvidos e nos olhos dos seus donos.
Nos últimos anos, ampliou-se o catálogo de artefatos que já não são de uso
público nem familiar, mas estritamente pessoal: computadores, internet,
reprodutores de MP3, notebooks, tablets, telefones celulares. Até o cinema
abandona a exclusividade dos grandiosos teatro do centro da cidade – e
inclusive as salas acolchoadas dos shoppings – para se instalar frente ao sofá
ou em cima da cama de cada espectador, primeiro no formato da fita cassete
analógica e logo nos diversos discos digitais; agora, nos ilimitados fluxos
interativos das redes on-demand.” (SIBILA, 2016, p. 77).

“Seja como for, num ponto todos parecem concordar: nesse novo
contexto, além de mais interativos e dispostos a compartilhar suas
experiências, os sujeitos estão se tornando “mais visuais do que verbais”.
No compasso de uma cultura que se ancora crescentemente em
imagens, desmonta-se o velho império da palavra e proliferam fenômenos
como os aqui examinados, nos quais as lógicas da visibilidade e da conexão
constante desempenham papéis primordiais na construção de si e da própria
vida como um relato. Isso ocorre, porém, em meio a um grau de
espetacularização cotidiana que talvez nem o próprio Guy Debord teria usado
imaginar. Um contemporâneo do pensador situacionista francês escreveu a
seguinte frase em 1968: “daqui a uns poucos anos, o homem será capaz de se
comunicar de forma mais efetiva através de uma máquina do que face a face.”
(SIBILA, 2016, p. 78-79).

“Quem estava certo, nesses diagnósticos tão opostos proferidos há


quatro décadas? Debord, com sua sombria sociedade do espetáculo e a morte
da conversação? Ou Licklider, com suas luminosas interfaces para uma eficaz
comunicação e Informática?” (SIBILA, 2016, p. 79).

“... Debord denunciava as tiranias de uma formação social que então estava
apenas assomando seus tentáculos, porém já tendia a cercear o campo do
possível. Ao mesmo tempo que abria novas possibilidades e outras portas da
percepção, evidentemente mas a sua crítica apontava para o seu lado mais
sombrio: a padronização das trocas subjetivas. O ativista francês lamentava a
asfixia de certas regiões da sensibilidade, a estimulação exclusivas de algumas
zonas e a hipertrofia de umas poucas, enquanto todas as demais
possibilidades vitais eram sufocadas na escuridão do invisível. Assim, ele
descreveu a imposição de um regime de audiovisualidade obrigatório, muito
colorido e tentador, porém tirânico em sua capacidade de silenciar as possíveis
margens, os reveses e as lacunas que também poderiam estar repletos de
sentido. Esse regime hoje ainda se expande, as interfaces gráficas
desenvolvidas por Licklider desempenham um papel fundamental nessa
conquista.” (SIBILA, 2016, p. 79-80)

“Em vez disso, nossas narrativas vitais ganharam contornos audivisuais,


inclusive multiplataforma, ou transmidiáticos; e, de modo crescente, também
demandam uma interatividade imediata. Episódios triviais ou demoníacos são
adestrados dessa forma; assim, os gestos cotidianos mais insignificantes
revelam certo parentesco com as cenas dos videoclipes e das publicidades.”
(SIBILA, 2016, p. 80).

“... como insinua Neal Gabler em seu provocador estudo sobre os avanços do
entretenimento e da lógica do espetáculo. Valorizamos a própria vida em
função da sua capacidade de se tornar, de fato, um verdadeiro filme – ou
melhor, um atraente produto transmídia.
Por isso não surpreende que os sujeitos contemporâneos adaptem os
principais eventos de suas vidas às exigências da câmera, seja de vídeo ou de
fotografia, mesmo que o aparelho concreto não esteja presente – inclusive
porque, como poderia adicionar um observador mordaz, nunca se sabe se
você está sendo filmado. Assim, a espetacularização da intimidade cotidiana
tornou-se habitual, com todo um arsenal de técnicas de estilização das
experiências de vida e da própria personalidade para ficar bem na foto ou na
fita. As receitas mais efetivas emulam os moldes narrativos e estéticos da
tradição cinematográfica, televisiva e publicitária, cujos códigos têm sido
apropriados e realimentados pelos novos gêneros que proliferam na internet.
Nesse contexto, o eu não se apresenta apenas ou principalmente como
um narrador – poeta, romancista, cineasta – de sua própria vida, mesmo que
seja a trilhada e cada vez mais festejada epopeia das pessoas comuns, do
anti-herói ou do “homem ordinário”. (SIBILA, 2016, p. 80-81)

“Em todos os casos, porém, essa subjetividade deverá se estilizar como


um personagem das mídias audiovisuais em suas mais ágeis versões
interativas, curando e editando sua imagem com a ajuda de uma bateria de
habilidades e recursos. Esse personagem tende a atuar como se estivesse
sempre diante de uma câmera, disposto a se exibir em qualquer tela, mesmo
que seja nos planos mais banais da vida real.” (SIBILA, 2016, p. 81).

“Ao passar do clássico suporte de papel e tinta para as mais novas telas
eletrônicas, não é apenas o meio que muda: transforma-se também a
subjetividade que se constrói nesses gêneros autobiográficos. Muda
precisamente aquele eu que narra, assina e protagoniza os relatos de si.
Altera-se o narrador, muda o autor, transforma-se o personagem.
Contudo, em princípio, nota-se que essas novas narrativas
autorreferentes não parecem enfatizar a função do narrador, e nem a do autor,
mas a do seu protagonista. O acento recai naquele prezado personagem que
se chama eu.” (SIBILA, 2016, p. 82).

“Essa tendência aponta para a autoconstrução como personagens reais


porém ao mesmo tempo ficcionalizados, frutos da competência midiática que
casa um adquiriu em contato com a linguagem altamente codificada dos meios
de comunicação, que leva a administrar as diversas táticas audiovisuais e
interativas para gerenciar a própria exposição aos olhares alheios.
O que significa tudo isso? Haveria uma espécie de falsidade, uma
deplorável falta de autenticidade nas construções subjetivas contemporâneas?
Teria se generalizado o uso de máscaras espetaculares que ocultam alguma
verdade fundamental, algo mais real que estaria por trás dessa imagem bem
construída e literalmente narrada, porém fatalmente falsa ou fictícia? Ou, ao
contrário, será que essa multiplicação de autoficções estaria indicando o
advento de uma subjetividade plástica e mutante, liberada enfim das velhas
tiranias da identidade? Essa saturação atual que supõe a exposição de
qualquer um anunciaria, de maneira paradoxal, a definitiva exibição naquele
velho eu sempre unificador e supostamente estável? Ou, antes, tratar-se-ia de
um paroxismo de identidades efêmeras produzidas em série, todas tão
autênticas quanto falsas, porém fundamentalmente visíveis?” (SIBILA, 2016, p.
83).

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