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Psicoterapia e Seus Fundamentos Históricos

Dr. Pedro Carlos Primo

Psiquiatra, psicanalista e mestre em Saúde


Mental, Ciências Humanas e Sociais pela
Universidade de León, Espanha.

A psicoterapia é uma arte e ao mesmo tempo um método científico para tratamento psíquico das diversas patologias mentais. Como arte
se perde nas brumas do tempo, pois onde existe comunicação mediada pela palavra e uma relação humana bipessoal ou interpessoal
com objetivos de cura, ou ainda de ajuda ou compreensão se pode pensar em psicoterapia. Como arte, mas não ainda como ciência,
porém, já concebida como fazendo parte de uma prática de cura naturalista, a psicoterapia pode ser situada em Hipócrates, pai da
medicina, que tratou as doenças como tendo causas naturais e não como sendo decorrentes de forças demoníacas ou sagradas. Com
esse antecedente ilustre a psicoterapia chega até ao renascimento com “Vives (1492-1540), Paracelso (1493-1541) e Agripa (1486-
1535), iniciadores de uma grande renovação que culmina em Johann Weyer (1515-1588).
Esses grandes pensadores, no dizer de muitos, promovem a primeira revolução psiquiátrica, pois dão uma explicação natural para as
causas da enfermidade mental, embora não um tratamento psíquico concreto”. Frieda Fromm-Reichmann, citada por Horacio
Etchegoyen, atribui a Paracelso a paternidade da psicoterapia, afirmação que é refutada por Etchegoyen, ao dizer que o mesmo pode ser
considerado como um precursor, como são Vives, Agripa e Johann Weyer, mas não como o pai da psicoterapia, pois a mesma como
método científico deve ser situada no século XIX, a partir do hipnotismo, “ou melhor nas duas grandes escolas sobre sugestão que se
desenvolvem na França, em Nancy, com Liébeault e Bernheim e na Salpetrière, com Jean-Martin Charcot” (H.Etchegoyen). Nos albores
da psicoterapia podemos citar ainda a reforma psiquiátrica introduzida por Pinel, após a Revolução Francesa. Pinel introduziu um
enfoque humano e racional no trato com o enfermo, de grande valor terapêutico. Seu grande discípulo, Esquirol cria um tratamento moral,
ao qual se confluem vários vértices, psíquicos e ambientais, ou seja, um conjunto de medidas não físicas que preservam e levantam a
moral do doente. O tratamento moral, por seu caráter impessoal e anônimo não pode ser considerado como método científico. Pode-se
dizer, então, que todos esses pensadores acima referidos, de Hipócrates a Johann Weyer, entram para a história da psicoterapia, como
precursores da psicoterapia científica, ao lado de Mesmer, em outra categoria (evidentemente), mas, não podem ainda ser considerados
como psicoterapeutas.
Franz Anton Mesmer (1734-1815) é considerado o criador da moderna era do hipnotismo. Formado em medicina, em Viena (1766),
defendeu tese, segundo a qual um fluído magnético misterioso emanaria das estrelas enchendo todo o universo, influenciando todos os
organismos vivos. A má distribuição desse fluído causaria as doenças. Mesmer, inicialmente empregava magnetos, passando-os sobre o
corpo dos pacientes para produzir um estado semelhante ao sono. Posteriormente ele mesmo verificou que a simples imposição das
mãos produzia o mesmo efeito. O magnetismo animal substituiu o magnetismo mineral. O termo magnetismo foi introduzido em sua
homenagem.
Após a morte de Mesmer o magnetismo continuou vivo graças alguns dos seus discípulos, como o Marquês de Puysegur.
Em 1813, surge, em Paris, o Abade Farias, português de Goa, uma figura muito importante para o hipnotismo, porque trouxe novas
idéias, ao dizer que os transes magnéticos não derivam de qualquer fluído ou força especial, pois reside no próprio individuo e não no
hipnotizador. Ele usava somente a palavra durma...durma ... durma ... sem passes e nem gestos. Suas idéias caíram no esquecimento
até que outro português famoso, Egas Moniz, prêmio Nobel de medicina (1904) as trouxe de volta, ao publicar estudos sobre sua vida.
James Braid (1795-1860), um cirurgião inglês, publica em 1842, o seu primeiro trabalho para dizer que os chamados fenômenos
mesméricos nada mais eram do que um estado decorrente da fadiga sensorial, um fenômeno neurofisiológico. Foi ele quem usou pela
primeira vez a expressão neuro-hipnotismo.
A partir dos trabalhos de James Braid (1795-1860) o mesmerismo, agora batizado de hipnotismo se estende rapidamente, por vários
países. Na França, em Nancy, quando A.A. Liébeault (1823-1904) impressionado com os trabalhos de Braid converte, em 1854, seu
humilde consultório rural no mais importante centro do hipnotismo em todo o mundo, a nova técnica, que vinte anos antes havia recebido
de Braid, nome e respaldo, passa a ser aplicada, ao mesmo tempo, como instrumento de investigação e de assistência. Ele atende a
vários doentes, até que um dia faz desaparecer uma dor ciática de uma paciente tratada há vários meses por Hyppolite Bernheim (1837-
1919), professor da Faculdade de Medicina de Nancy, que, sentindo-se desprestigiado vai procurar à clínica de Liébeault, e acaba se
convencendo dos fatos. Depois disso Bernheim passa a se dedicar ao hipnotismo e se torna o responsável pela fama que essa escola de
hipnotismo adquiriu no mundo, tendo ficado conhecida como Escola de Nancy, rivalizando-se com a chamada Escola de Paris, de Jean
Martin Charcot (1825-1893).Charcot depois de assistir Richet hipnotizar um paciente, obtendo fenômenos de sonambulismo, sentiu-se
atraído pelo o hipnotismo e passou a desenvolver os seus próprios estudos. Com a experiência de Charcot a idéia de simulação foi
definitivamente excluída e o hipnotismo teve que ser aceito. Charcot foi o primeiro a demonstrar as etapas de profundidade hipnótica, as
quais classificou em três fases: a catalepsia, a letargia e o sonambulismo. No entanto, ele foi omisso na apreciação da sensibilidade à
hipnose na população em geral, e suas possibilidades terapêuticas, ao contrário de Liébeault e Bernheim que obtiveram uma rica
casuística, com numerosos pacientes atendidos. Para a Escola de Nancy a hipnose era uma função normal, já para charcot era
fundamentalmente uma neurose experimental. As discussões travadas entre as duas escolas atraíram à atenção do mundo científico
sobre o hipnotismo.
Liébeault usava sua técnica para mostrar “a influência da moral sobre o corpo” e curar o enfermo; e é tal a importância de seus trabalhos
que a já citada História da Psicologia Médica de Zilboorg e Henry não vacila em situar em Nancy o começo da psicoterapia.
Etchegoyen diz aceitar com objeção esta afirmação e acrescenta que “o tratamento hipnótico que inaugura Liébeault é pessoal e direto,
dirige-se ao enfermo. Todavia, falta-lhe algo para ser psicoterapia: o enfermo recebe a influência curativa do médico em atitude
totalmente passiva. Com este ponto de vista mais exigente, o tratamento de Liébeault é, pois, pessoal, mas não interpessoal”.
“Quando Hyppolyte Bernheim seguindo a investigação em Nancy, põe cada vez mais ênfase na sugestão como fonte do efeito hipnótico
e motor da conduta humana, perfila-se a interação médico-paciente, que é, a meu juízo, uma das características que definem a
psicoterapia. Em seus Nuevos Estúdios (1891), Bernheim se ocupa, efetivamente, da histeria, da sugestão e da psicoterapia”
(Etchegoyen).
Na seqüência desse desenvolvimento surge a figura de Josef Breuer (1841-1925) que desenvolveu um método de tratamento hipnótico,
baseado em entrevista. Conseguindo com o qual, em um caso de histeria, que a paciente falasse sob hipnose, verbalizando material que
havia sido reprimido. Essa descoberta de Breuer ficou conhecida como método catártico. Ele a levou ao jovem e amigo Sigmund Freud
(1856-1939), o qual se interessou profundamente pelo o caso que ficou conhecida na literatura psicanalítica como caso Anna O.
Freud esteve em Paris estudando com Charcot e posteriormente, em Nancy, para conhecer de perto a técnica hipnótica de Liébeault e
Bernheim. Ele dedicou especial atenção aos fenômenos de sugestão pós-hipnótica que vinham sendo estudados por Bernheim.
Observou também que o comportamento pode ser influenciado não só pelos conteúdos conscientes, como também pelos conteúdos
inconscientes. Freud, depois de seu contacto com Bernheim e Charcot passou a utilizar a técnica hipnótica para trazer à tona memórias
reprimidas. Mas, como ele próprio se dizia um mau hipnotizador e também porque (como afirmou em sua autobiografia) os resultados
terapêuticos obtidos com a hipnose desapareciam ante a menor perturbação da relação médico-paciente, abandonou a mesma e o
método catártico de Breuer, substituindo pela regra da Associação Livre, que pouco depois chamou de psicanálise. Para ele a relação
pessoal efetiva e emocional desenvolvida pelo o paciente era mais importante do que a hipnose. Freud abandonou o hipnotismo, mas
manteve diversos aspectos que envolviam o mesmo como o divâ, o ambiente tranqüilo do setting analítico, etc.
Em agosto 1889 se realizou, em Paris, o 1º Congresso Mundial sobre Hipnotismo Experimental e Terapêutico, sob a presidência de
Charcot. Nele estiveram presentes as maiores autoridades da época, no assunto, como Richet, Lombroso Liébeault, Bernheim, Freud,

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Bechterev, William James, entre muitos outros famosos. ((Mas, depois o hipnotismo foi perdendo força, segundo alguns por duas razões:
1º) pelo desenvolvimento da anestesia química e 2º) pelo desenvolvimento das técnicas psicotarápicas, advindas da descoberta de Freud
e também em função de sua atitude negativa em relação à hipnose. O que levou Babinski a afirmar, em 1910, que a hipnose como a
histeria era uma espécie de simulação.
Outra grande figura científica dessa época foi Pierre Janet, cuja obra fundamental: Automatismo Psicológico teve grande importância,
embora posteriormente foi quase esquecida na França, onde à medida que Freud se elevava Janet declinava. Mas, a verdade é que, os
dois no início da suas carreiras, partiram das mesmas bases, a Hipnose, e ambos ouviram os mesmos mestres: Charcot na Salpetrière e
Liébeault e Bernheim, em Nancy.
Para Pierre Janet, o importante era interpretar os fatos. Os efeitos das sugestões hipnóticas ficarão inexplicáveis se não admitirmos a
existência de uma segunda consciência que conserve a lembrança do transe hipnótico e que depois do indivíduo despertado imponha as
modificações no comportamento.
A utilização quase exclusiva das sugestões para remoção de sintomas não impedia que os mesmos ressurgissem e que outros sintomas
substitutivos aparecessem, isso fez com que a hipnose fosse sendo substituída pela psicanálise e outras técnicas de psicoterapia
dinâmica.

“Pouco depois, dos trabalhos de Janet em Paris e de Breuer e Freud em Viena, onde a relação interpessoal está patente, ressoa já a
primeira melodia da psicoterapia. Como veremos logo, é mérito de Sigmund Freud (1856-1939) alcançar nesses anos, com a introdução
da Psicanálise, o nível científico da psicoterapia. Desde aquele momento, e para não voltar atrás, será a psicoterapia um tratamento
dirigido à psique, em um marco de relação interpessoal e com respaldo em uma teoria científica da personalidade”.
“Repitamos os traços característicos que destacam a psicoterapia por seu suceder histórico. Por seu método, a psicoterapia se dirige à
psique pela única via praticável, a comunicação; seu instrumento de comunicação é a palavra (ou melhor dito, a linguagem verbal e pré-
verbal), “fármaco" e, ao mesmo tempo, mensagem; seu marco, a relação interpessoal médico-enfermo. Por último, a finalidade da
psicoterapia é curar, e todo o processo de comunicação que não tenha esse propósito (ensino, doutrinação, catequese) nunca será
psicoterapia.”
“Enquanto chegam ao máximo desenvolvimento os métodos científicos da psicoterapia sugestiva e hipnótica, inicia-se uma nova
investigação que haveria de operar um giro copernicano à teoria e práxis da psicoterapia. Por volta de 1880, Joseph Breuer (1842-
1925), ao aplicar a técnica hipnótica em uma paciente, que nos anais de nossa disciplina se chamou, desde então, Anna O. (e cujo
verdadeiro nome é Berta Pappenheim), praticava uma forma radicalmente distinta de psicoterapia··”(Etchegoyen)

2. O método catártico e as origens da Psicanálise


A evolução que se dá em poucos anos desde o método Breuer até a Psicanálise deve-se à genialidade e esforço de Freud. Na primeira
década de nosso século, a Psicanálise se apresenta já como um corpo de doutrina coerente e de amplo desenvolvimento. Nesses
anos, Freud escreveu dois artigos sobre a natureza e os métodos de psicoterapia: "El método psicoanalítico de Freud" (1904) e "Sobre
psicoterapia" (1905/a). Esses dois trabalhos são importantes do ponto de vista histórico e, se lidos com atenção, nos revelam aqui e ali
os germens das idéias técnicas que Freud vai desenvolver nos escritos da segunda década do século.
Vale a pena mencionar aqui uma mudança interessante em nossos conhecimentos sobre um terceiro artigo de Freud, intitulado
"Tratamento psíquico (tratamiento del alma)", que durante muito tempo foi datado de 1905, quando na realidade foi escrito em 1890. O
professor Saúl Rosenz-weig, da Washington University de Saint Louis descobriu em 1966 que este artigo, que se inclui na Gesamnielte
Werke e na Standard Edition como publicado em 1905, na realidade foi publicado em 1890, numa primeira edição de Die Gesundheit (A
saúde), um manual de medicina com artigos de diversos autores. Em 1905, foi publicada a terceira edição dessa enciclopédia.
Agora que sabemos a data real de sua aparição, não nos surpreende a grande diferença entre esse artigo e os dois que vamos
comentar a seguir.
O trabalho do ano quatro, escrito sem nome de autor para um livro de Loewenfeld sobre a [1] neurose obsessiva, deslinda clara e
decididamente a psicanálise do método catártico e este de todos os outros procedimentos da psicoterapia.
A partir do magno descobrimento da sugestão de Nancy e na Salpetrière, recortam-se três etapas no tratamento das neuroses. Na
primeira, utiliza-se a sugestão e, depois, outros procedimentos dela derivados, para induzir uma conduta sã no paciente. Breuer
renuncia a esta técnica e utiliza o hipnotismo, não para que o paciente esqueça, mas para que exponha seus pensamentos. Anna O., a
célebre enferma de Breuer, chamava a isso de a cura pela fala, "talking cure". Breuer deu, assim, um passo decisivo ao empregar a
hipnose (ou a sugestão hipnótica), não para que o paciente abandone seus sintomas ou se encaminhe para condutas mais sãs, mas para
dar-lhe a oportunidade de falar e recordar, base do método catártico, e o outro passo será dado pelo próprio Freud, quando
abandonará o hipnotismo.
Nos Estúdios sobre Ia Histeria de Breuer e Freud (1895), pode se seguir a bela história da Psicanálise, desde Emmy de N., onde Freud
opera com a hipnose, a eletroterapia e a massagem, até Isabel de R., à qual já trata sem hipnose e com quem estabelece um diálogo
verdadeiro, do qual aprende muito. A história clínica de Isabel mostra Freud utilizando um procedimento intermediário entre o método de
Breuer e a Psicanálise propriamente dita, e que consiste em estimular e pressionar o enfermo para a recordação.
Quando a história clínica de Isabel termina, está terminado também o método da coerção associativa, como passagem à Psicanálise —
esse diálogo singular entre duas pessoas que são, diz Freud, igualmente donas de si.
Em "Sobre psicoterapia" (1905/a), uma conferência pronunciada no Colégio Médico de Viena em 12 de dezembro de 1904, que foi
publicada na Wiener Medical Presse, do mês de janeiro seguinte, Freud estabelece uma convincente diferença entre Psicanálise (e o
método catártico) e as outras formas de psicoterapia que até esse momento existiam. Essa diferença introduz uma ruptura, que
provoca, como dizem Zilboorg e Henry (1941), a segunda revolução na história da psiquiatria. Para explicá-la, Freud se baseia no belo
modelo de Leonardo, que diferencia as artes plásticas que operam per via di porre e per via di levare. A pintura cobre de cores a tela
vazia, e assim a sugestão, a persuasão e os outros métodos que agregam algo para modificar a imagem da personalidade. Ao contrário,
a Psicanálise, como a escultura, retira o que está demais para que surja a estátua adormecida no mármore. Esta é a diferença
substancial entre os métodos anteriores e posteriores a Freud. Logo depois de Freud, e por sua influência, aparecem métodos como a
Neo-psicanálise ou a Ontoanálise que também atuam per via di levare, isto é, que tratam de liberar a personalidade do que a está
impedindo tomar sua forma autêntica. Entretanto, esta é uma revolução ulterior, que não nos importa discutir neste momento. O que
nos interessa, isso sim, é diferenciar entre o método da Psicanálise e as outras psicoterapias de inspiração sugestiva, que são
repressivas e atuam per via di porre.
Surge da discussão precedente que há uma relação muito grande entre a teoria e a técnica da psicoterapia a, um ponto que o próprio
Freud destaca em seu artigo de 1904 e que Heinz Hartmann estudou ao longo de sua obra, por exemplo, no começo de seu Technical
implicacions of ego psychology (1951). Em Psicanálise, o ponto fundamental é este: sempre há uma técnica que configura uma teoria
e uma teoria que fundamenta uma técnica. Esta interação permanente entre a teoria e a técnica é privativa da Psicanálise, porque,
como diz Hartmann, a técnica determina o método de observação da Psicanálise. Em algumas áreas das Ciências Sociais, dá-se um
fenômeno similar, porém não é inevitável como na Psicanálise e na Psicoterapia. Só na Psicanálise podemos ver como uma
determinada abordagem técnica conduz de forma inexorável a uma teoria (da cura, da interinidade, da personalidade, etc.), que, por
sua vez, gravita retroativamente sobre a técnica e a modifica para torná-la coerente com as novas descobertas, e assim indefinidamente.
Nisto baseia-se, talvez, a denominação, algo pretensiosa, de teoria da técnica, que tenta não só dar respaldo teórico à técnica, mas
também destacar a inextrincável união de ambas. Veremos ao longo desta exposição que, cada vez que se trata de entender a fundo um
problema técnico, se passa sem sentir para o terreno da teoria.
3. As teorias do método catártico
O que Breuer introduz, pois, é uma modificação técnica que leva a novas teorias da enfermidade e da cura. Estas teorias não só
podem ser comprovadas com a técnica, mas também, na medida que são refutadas ou confirmadas, incidem sobre ela.
A técnica catártica descobre um fato surpreendente a dissociação da consciência, que se torna visível a esse método quanto produz
uma ampliação da consciência. A dissociação da consciência cristaliza-se em duas teorias fundamentais — e em três, se for agregada
a de Janet.
Breuer postula que a causa do fenômeno de dissociação da consciência é o estado hipnóide, enquanto que Freud se inclina a atribuí-lo a

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um trauma2.
A explicação de Janet é a labilidade da síntese psíquica, um fato neurofisiológico, constitucional, que se apóia na teoria da
degeneração mental de Morel. Deste modo, a psicoterapia de Janet não chegar a ser científica, se, para que uma psicoterapia o seja,
exigimos que haja harmonia entre a teoria e a técnica. A explicação de Janet, enquanto sustenta que a dissociação de consciência se
deve a uma labilidade constitucional para obter a síntese dos fenômenos de consciência e a subscreve à doutrina da degenerescência
mental de Morel, ou seja, a uma causa biológica, orgânica, não abre caminho a nenhum procedimento psicológico científico, mas, no
máximo, a uma psicoterapia inspiracional (que de qualquer maneira, ao longo do tempo, atuará per via di porre), nunca uma psicoterapia
coerente com sua teoria e, portanto, etiológica.
A teoria de Breuer e, sobretudo, a de Freud, ao contrário, são psicológicas. A teoria dos estados hipnóides postula que a dissociação da
consciência se deve a que um determinado acontecimento ocorre ao indivíduo em uma situação especial, o estado hipnóide, e, por
isso, fica segregado da consciência. O estado hipnóide pode depender de uma razão neurofisiológica (a fadiga, por exemplo, de modo
que o córtex fica em estado refratário) e também de um acontecimento emotivo, psicológico. De acordo com essa teoria, que oscila entre
a psicologia e a biologia, o que se consegue com o método catártico é fazer com que o indivíduo retroceda ao ponto em que se havia
produzido a dissociação de consciência (pelo estado hipnóide), para que o acontecimento ingresse no curso associativo normal e,
conseqüentemente, possa ser “desgastado" e integrado à consciência.
A hipótese de Freud, a teoria do trauma, era já puramente psicológica e foi a que, em definitivo, os fatos empíricos apoiaram. Freud
defendia origem traumática da dissociação da consciência: era o próprio acontecimento que, por sua índole, se fazia rechaçável da
consciência e pela consciência. O estado hipnóide não havia intervido, ou havia intervido subsidiariamente. O decisivo era o fato
traumático que o indivíduo segregou de sua consciência.
De todo modo, e sem pretender discutir essas teorias3, o que importa para o raciocínio que estamos fazendo é que uma técnica, a
hipnose catártica, levou a uma descoberta, a dissociação de consciência, e a certas teorias (do trauma, dos estados hipnóides), as quais,
por sua vez, levaram à modificação da técnica.
Segundo a teoria traumática, o que a hipnose fazia era ampliar o campo da consciência para que o fato segregado tornasse a se lhe
incorporar; porém, isto poderia ser conseguido também por outros métodos, com outra técnica.
4. A nova técnica de Freud: a Psicanálise
Freud se declarou mal hipnotizador, talvez porque esse método não satisfizesse sua curiosidade científica; e foi assim que se decidiu a
abandonar a hipnose e a elaborar uma nova técnica para chegar ao trauma, mais de acordo com sua idéia de a razão psicológica
querer esquecer o acontecimento traumático. Pôde dar esse passo intrépido, quando recordou a famosa experiência de Bernheim da
sugestão pós-hipnótica4 e, sobre essa base, modifica sua técnica: em lugar de hipnotizar seus pacientes, começa a estimulá-los, a incitá-
los para a recordação. Assim opera Freud com Miss Lucy e, sobretudo com Isabel de R; e esta nova técnica, a coerção associativa, o
coloca frente a novos fatos que haverão de modificar outra vez suas teorias.
A coerção associativa confirma a Freud que as coisas são esquecidas quando não se as quer recordar, porque dolorosas, feias e
desagradáveis, contrárias à ética ou à estética. Esse processo, esse esquecimento, se reproduzia também ante seus olhos no
tratamento, e então via que Isabel não queria recordar, que havia uma força que se opunha à recordação. Assim faz Freud o
descobrimento resistência, pedra angular da Psicanálise. O que no momento do trauma condicionou o esquecimento é o que nesse
momento, no tratamento, condiciona a resistência: há um jogo de forças, um conflito entre o desejo de recordar e esquecer. Então, se
isto é assim, já não se justifica exercer a coerção, porque sempre se vai tropeçar com a resistência. Melhor será deixar que o paciente
fale, que fale livremente. Assim, uma nova teoria, a teoria da resistência, leva a uma nova técnica, a associação livre, própria da
Psicanálise, que se introduz como um preceito técnico, a regra fundamental.
Como vocês sabem, com o instrumento técnico recém-criado, a associação livre, descobre-se outros fatos, frente aos quais a teoria
do trauma e da recordação cedem gradualmente seu lugar à teoria sexual. O conflito não é mais somente entre recordar e esquecer,
mas também entre forças instintivas e forças repressoras.
A partir daqui, os descobrimentos se multiplicam: a sexualidade infantil, o complexo de Édipo, o inconsciente com suas leis e seus
conteúdos, a teoria da transferência, etc. Neste novo contexto de descobertas, aparece a interpretação como instrumento técnico
fundamental e em tudo de acordo com as novas hipóteses. Enquanto só se propunham a recuperar uma lembrança, nem o método
catártico. nem a coerção associativa necessitavam da interpretação. Agora é diferente, agora há que dar ao indivíduo informes precisos
sobre ele mesmo e sobre o que se passa com ele, e que ele, entretanto, ignora, para que possa compreender sua realidade
psicológica: a isto chamamos interpretar.
Em outras palavras, na primeira década do século, a teoria da resistência se amplia vigorosamente em dois sentidos: descobre-se
por uma parte o inconsciente (o resistido) com suas leis (condensação, deslocamento) e surge, por outro lado, a teoria da transferência,
uma forma precisa de definir a relação médico-paciente, já que a resistência se dá sempre em termos da relação com o médico.
As primeiras observações sobre o descobrimento da transferência, como veremos no capítulo 7, se encontram nos Estúdios sobre Ia
Histeria (1895) e, no "Epílogo de Dora" escrito em janeiro de 1901 e publicado em 19055, Freud já compreende o fenômeno da
transferência praticamente em sua totalidade. É justamente a partir desse momento que a nova teoria começa a incidir na técnica e
imprime seu selo aos Consejos al médico (1912) e a La iniciación del tratamiento (1913), trabalhos contemporâneos de La dinâmica de Ia
transferência (1912).
A imediata repercussão da teoria da transferência sobre a técnica é uma reformulação da relação analítica, que fica definida em termos
precisos e rigorosos. O enquadre, já veremos, não é mais que a resposta técnica do que Freud havia compreendido na clínica sobre a
peculiar relação do analista e seu analisado. Para que a transferência surja claramente e possa ser analisada, dizia Freud em 1912, o
analista deve ocupar o lugar de um espelho quem só reflete o que lhe é mostrado — hoje diríamos, o que o paciente projeta. Quando
Freud formula seus "Consejos", la belle époque da técnica em que convidada com chá e arenques a El hombre de Ias Ratas (Freud,
1909) se fechou definitivamente.
Compreende-se a coerência que há neste ponto entre a teoria e a técnica: o médico não deve mostrar nada de si; sem se deixar
envolver nas redes de transferência, se limitará a devolver ao paciente o que este colocou sobre o terso espelho de sua técnica. Por isso,
quando diz Freud (1915), ao estudar o amor de transferência, que a análise deve se desenvolver em abstinência, isso sanciona a
modificação substancial da técnica na segunda década do século. Se não existisse uma teoria da transferência, não teriam razão de ser
esses conselhos, de todo desnecessários no método catártico ou na primitiva Psicanálise de coerção associativa. Vemos aqui, pois,
novamente, esta singular interação entre a teoria e a técnica, que destacamos como específica da Psicanálise.
Tomemos com certo detalhe a teoria da transferência, porque ilustra muito claramente a tese que estamos defendendo. À medida que
Freud toma consciência da transferência, de sua intensidade, complexidade e espontaneidade (ainda que esta seja discutível) impõem-se
uma mudança radical no enfoque. O enquadre frouxo de El Hombre de Ias Ratas poderá incluir chá, sanduíches e arenques, porque
Freud não sabe, todavia, até que ponto podem chegar a rebeldia e a rivalidade na transferência paterna6.
A modificação do enquadre, que se torna mais rigoroso em virtude da teoria da transferência, permite, por sua vez, uma precisão
maior para apreciar o fenômeno; e, por ser um enquadre mais estrito e estável, evita sua contaminação e o torna mais nítido mais
prístino.
Esse processo não foi lento e continuou depois de Freud. Basta reler a história de Ricardito, analisado em 1941, para ver Melanie
Klein depurando sua técnica, e a de todos nós, quando chega com um pacote para seu neto e se dá conta que seu paciente responde
com inveja, ciúmes e sentimento de perseguição (sessão 76). Compreende que cometeu um erro, que isso não deve ser feito (Melanie
Klein, 1961). Somente um longo processo de interação entre a prática e a teoria permitiu que o enquadre se tornasse cada vez mais
estrito e, conseqüentemente, mais idôneo e confiável.
Detivemo-nos na interação entre a teoria e a técnica, porque isso nos permite compreender a importância de estudar simultaneamente
ambos os campos e afirmar que uma boa formação psicanalítica deve respeitar esta valiosa qualidade de nossa disciplina, na qual se
integram harmoniosamente a especulação e a praxis.
5. Teoria, técnica e ética
Freud disse muitas vezes que a Psicanálise é uma teoria da personalidade, um método de psicoterapia e um instrumento de investigação
científica, querendo destacar que, por uma condição especial, intrínseca desta disciplina, o método de investigação coincide com o

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procedimento de cura, porque, à medida que a pessoa conhece a si própria, pode modificar sua personalidade, isto é, curar-se. Esta
circunstância não vale só como princípio filosófico, mas é também um fato empírico da investigação freudiana. Poderia não ter sido
assim; contudo, de fato, o grande achado de Freud consiste em que, descobrindo determinadas situações (traumas, lembranças ou
conflitos), os sintomas da enfermidade se modificam e a personalidade se enriquece, se amplia e se reorganiza. Esta curiosa
circunstância unifica em uma só atitude o tratamento e a investigação, como expôs lucidamente Hanna Segal (1962) no Simpósio de
Factores Curativos do Congresso de Edimburgo. Também Bleger abordou esse ponto, ao falar sobre a entrevista psicológica, em 1971.
Assim como há uma correlação estrita entre a teoria psicanalítica, a técnica e a investigação, também se dá, na Psicanálise, de forma
singular, a relação entre a técnica e a ética. Até se pode dizer que a ética é uma parte da técnica ou, de outra forma, que o que dá
coerência e sentido às normas técnicas de Psicanálise é sua raiz ética. A ética se integra na teoria científica da Psicanálise (não como
uma simples aspiração moral, mas sim como uma necessidade de sua praxis).
As falhas de ética do psicanalista revertem ineludivelmente em falências da técnica, já que seus princípios básicos, especialmente os que
configuram o enquadre, se sustentam na concepção ética de uma relação de igualdade, respeito e busca da verdade. A dissociação
entre a teoria e a praxis, sempre lamentável, na Psicanálise é dupla, porque danifica nosso instrumento de trabalho. Em outras
disciplinas, é até certo ponto possível manter uma dissociação entre a profissão e a vida; entretanto, para o analista, isso não é possível.
Ninguém vai pretender que o analista não tenha falhas, debilidades, ambigüidades ou dissociações, mas sim que possa aceitá-las em
seu íntimo, por consideração ao método, à verdade e ao enfermo. É que o analista tem como instrumento de trabalho seu próprio
inconsciente, sua própria personalidade; e, por isso, a relação entre a técnica e a ética se faz tão necessária e indissolúvel.
Um dos princípios que Freud nos propôs, e que é ao mesmo tempo, técnico, teórico e ético, é que não devemos ceder ao furor curandis;
e hoje sabemos, sem lugar a dúvida, que o furor curandis é um problema de contratransferência. Este princípio, todavia, não vem
modificar o que acabo de dizer, porque não há que se perder de vista que Freud nos previne ao furor curandis, diferente do desejo de
curar, enquanto significa cumprir com nossa tarefa.7
O tema ao furor curandis nos faz retornar ao da ética, porque a prevenção de Freud não é mais que uma aplicação de um princípio mais
geral, a regra da abstinência. A análise, afirma Freud no Congresso de Nurenberg (1910/a) e o reitera muitas vezes (1915/a, 1919, etc.),
tem que transcorrer em privação, em frustração, em abstinência. Esta regra pode ser entendida de muitas formas; porém, de toda
maneira, ninguém duvidará que Freud quis dizer que o analista não pode dar ao paciente satisfações diretas, porque, enquanto o
paciente as obtém, o processo detém-se. desvia-se, perverte-se. Em outros termos, poder-se-ia dizer que a satisfação direta tira do
paciente a capacidade de simbolizar. Agora, a regra de abstinência, que para a análise é um recurso técnico, para o analista é uma
nova ética. Porque, evidentemente, o princípio ético de não dar ao paciente satisfações diretas tem seu corolário no princípio ético de
não aceitar as que o paciente possa oferecer-nos. Assim como nós não podemos satisfazer a curiosidade do paciente, por exemplo,
tampouco podemos satisfazer as nossas. Do ponto de vista do analista, o que o paciente diz são apenas associações, cumprem a regra
fundamental, e o que associa só pode ser considerado como um informe pertinente a seu caso.
O que acabamos de dizer abarca o problema do segredo profissional e o redefine de uma forma mais estrita e rigorosa, enquanto passa a ser para o analista um
aspecto da regra de abstinência. Na medida que o analista não pode tomar o que diz o analisado, a não ser como material na realidade este nunca lhe informa nada; nada
que o paciente disse pode ser dito pelo analista como tendo sido dito, porque o analisado só deu seu material. E material é, por definição, o que nos informa sobre o
mundo interior do paciente.
A atenção flutuante implica receber da mesma forma todas as associações do enfermo; e, quando o analista pretende obter delas alguma informação que não seja
pertinente à situação analítica, está funcionando mal, transformou-se em uma criança (quando não em um perverso) escoptofílica. A experiência mostra, além disso, que,
quando a atenção flutuante se perturba, é que está operando, em geral, alguma projeção do analisado. Portanto, o transtorno do analista deve ser considerado um
problema de contratransferência ou de contra-identificação projetiva se seguirmos a Grinberg (1963) etc.
O que acabo de expor não é só um princípio técnico e ético, mas também, uma saudável medida de higiene mental, de proteção para o
analista. Como diz Freud em Psicoanálisis Silvestre (1910), não temos direito de julgar nossos colegas e, em geral, a terceiros, através
das afirmações dos pacientes, que devemos escutar sempre com uma benevolente dúvida crítica. Em outras palavras, e isso é
rigorosamente lógico, tudo o que o paciente diz são suas opiniões e não os fatos. Não se me oculta quão difícil é estabelecer e manter
essa atitude na prática. Todavia, penso que, na medida em que o compreendemos, nos é mais fácil cumpri-lo. A norma fundamental é
outra vez a regra da abstinência: enquanto uma informação não viola a regra da abstinência, é pertinente e é simplesmente material; se
não é assim, a regra da abstinência foi transgredida. Às vezes, é somente o sentimento do analista e, em última instância, sua
contratransferência, o que pode ajudá-lo nessa difícil discriminação.
O princípio que acabo de enunciar nunca deve ser tomado de maneira rígida e sem plasticidade. Alguma informação geral pode ser
aceita como tal sem violar as normas de nosso trabalho8, do mesmo modo que podem haver desvios que não configurem uma falta,
enquanto estejam dentro dos costumes culturais e se dêem ou se recebam sem perder de vista o movimento geral do processo.
Entretanto, fica de pé a norma básica de que nenhuma intervenção do analista é válida se viola a regra da abstinência “(R. Horacio
Echegoyen)”.
2 Para maior detalhe veja-se a "Comunicación preliminar" que Breuer e Freud publicaram em 1893 e que foi

incorporada como primeiro capítulo aos Estúdios sobre Ia Histeria.

3 Gregor o Klimovsky utilizou as teorias dos Estúdios sobre Ia Histeria para analisar a estrutura das teorias

psicanalíticas.

4 Quando Bernheim dava a uma pessoa em transe hipnótico a ordem de fazer algo logo após o despertar, a ordem

se cumpria exatamente, sem que seu autor pudesse dar-se conta de seus atos ou tratava de se justificar com razões
banais. Entretanto; e Bernheim não se conformasse com essas racionalizações (como as chamaria Jones muitos
anos depois), o sujeito terminava por recordar-se da ordem recebida em transe.

5 Análisis fragmentário de una histeria

6 Veja-se a respeito o trabalho de David Rosenfeld no Congresso de Nova Iorque, de 1979, publicado no International

Journal de l )SO.

7 Sobre a proposta de Bion (1967) de que o analista trabalhe sem menu e sem desejo, teremos algo a

dizer mais adiante, o mesmo que o desejo do analista de Lacan (1958).

8 Por exemplo, que o analisado nos informa que o elevador não funciona.

http://www.institutotelepsi.med.br/Links_imagens/psicoterapia.htm[03/04/2018 13:51:47]

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