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A ARTE DE NÃO AMARGAR A VIDA

Pensar bem para viver melhor


RAFAEL SANTANDREU

A ARTE DE NÃO AMARGAR A VIDA


Pensar bem para viver melhor

Tradução de
ISABEL HABER
Dedicado à minha mãe, M.a del Valle, uma mulher excecional
e a minha primeira professora de felicidade.
PRÓLOGO

Após mais de vinte anos de exercício profissional en-


quanto médico de família, durante os quais me apercebi de
uma fragilização do equilíbrio emocional da população ao
mesmo tempo que vi aumentar a prescrição de medicamen-
tos psicoativos, de benefícios duvidosos e eficácia contro-
versa, tive a oportunidade de conhecer Rafael Santandreu.
Indubitavelmente, a sua trajetória profissional, o seu
trabalho como professor, as suas contribuições e inovações
conceptuais tornam-no uma das referências atuais de maior
prestígio para os médicos que se ocupam do âmbito da saú-
de mental.
A sua perspetiva terapêutica é herdeira, em parte, de
Albert Ellis, o pai da Terapia Racional Emotiva Comporta-
mental. Contudo, a adaptação que dela faz vai mais além,
porque enfatiza a exploração dos pensamentos, convencio-
nalismos e crenças irracionais que adquirimos ao longo da
vida, que são causa de sofrimento e de frustração e que,
por sua vez, podem dar origem a mal-estar emocional e
transtornos psíquicos, como ansiedade e depressão. Ao
longo do livro, enriquecido por numerosos exemplos de ca-
sos reais testemunhados pelo próprio autor, é desenvolvido
o conceito de que a nossa perceção da realidade existe, pa-
radoxalmente, em função de como decidimos reagir, e que é

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igualmente suscetível de ser modificada através do nosso
pensamento, das nossas emoções e do comportamento que
decidimos exteriorizar. A particularidade de Santandreu
consiste no facto de nos oferecer os segredos para recome-
çarmos, sem necessariamente aprofundar o passado, e conse-
guirmos transformar-nos, aceitar os outros, desenvolver-nos
como pessoas e, em resumo, obter uma sensação prepon-
derante de felicidade.
Como o autor indica, a vida não é fácil e está repleta
de desafios e de acontecimentos adversos que precisam de
ser resolvidos. A leitura deste livro impele-nos não apenas à
reflexão, mas também a passarmos à ação, mesmo se com
esforço, ao mesmo tempo que nos prepara para uma vida
futura mais plena e gratificante.
Espero que o leitor experimente o mesmo entusiasmo
que eu senti ao ler este livro, em cuja essência acredito en-
contrarem-se as bases de uma nova era no que respeita o
tratamento dos transtornos emocionais e adaptativos.

DOUTOR MANUEL BORRELL MUÑOZ


Especialista em Medicina Familiar e Comunitária
Prémio de Excelência Profissional do
Colégio de Médicos de Barcelona 2009

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PARTE UM

AS BASES
CAPÍTULO

1
É POSSÍVEL TRANSFORMARMO-NOS

Uma grande aposta!


Certa manhã fria de inverno de 1940, um jovem cha-
mado Robert Capa guardou na mala a sua pequena máqui-
na fotográfica compacta Leica, inúmeros rolos de filme no-
vos e alguma roupa. No bolso direito do casaco, levava um
bilhete para embarcar num navio em direção à Segunda
Guerra Mundial. Capa foi um dos primeiros fotógrafos de
guerra da história do jornalismo e uma personagem fantás-
tica. Bem-parecido, simpático, amigo de beber, corajoso e,
por vezes, mesmo romântico, este nova-iorquino nascido
em Praga partia à aventura.
No Dia D, centenas de milhares de jovens norte-
-americanos apinhavam-se nas lanchas anfíbias a caminho
das praias da Normandia. O terror acompanhava-os ao
som do ribombar das bombas das defesas alemãs. Muitos
deles vomitavam o pequeno-almoço no interior das barca-
ças geladas, mas ninguém se queixava do facto. As suas
mentes não tinham tempo para se ocupar dessas ninharias.
Entre esses jovens, Capa inspecionava temeroso as suas
máquinas fotográficas, uma e outra vez, como se o ritual de
trabalho conseguisse emudecer o ruído ensurdecedor dos
canhões inimigos.

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De repente, um golpe seco fez tremer a lancha, indi-
cando que tinham chegado à margem. Nessa altura, o ruído
das bombas era ensurdecedor, mas a voz do sargento que
tinha a seu cargo aquele pelotão conseguiu sobrepor-se-lhe,
dizendo: «Saiam, depressa! Agrupamento a vinte metros!
Já!», e saltou para a água, espingarda erguida, correndo com
o coração a bater a toda a brida.
Os rapazes saíram, tropeçando nas próprias pernas,
mas mantendo o olhar fixo nas costas do seu superior.
O pior que poderia acontecer seria perderem o sargento, o
único guia em quem podiam confiar naquele inferno.
A confusão era imensa: pelotões a correr por toda a parte,
gritos, explosões... Capa seguiu-os e fez como eles, atiran-
do-se para o solo a cerca de vinte metros, cravando o olhar
na nuca do sargento. O «veterano» de bigode com 25 anos
ergueu novamente a voz para dizer: «Outra vez, corrida de
vinte metros e agrupamento! Agora! Já!» E como que im-
pulsionado por uma mola, lançou-se duna acima.
Dos vinte jovens que acompanharam Capa naquela
manhã, só dois sobreviveram. O fotógrafo só teve tempo
para tirar algumas fotografias naqueles primeiros metros de
batalha antes de o obrigarem a voltar numa lancha anfíbia
para um dos navios aliados. Mas aquelas fotografias ligeira-
mente desfocadas foram os primeiros testemunhos da li-
bertação da Europa. No dia seguinte, encontravam-se já nas
rotativas da Grã-Bretanha e o mundo podia ver a imagem
da marcha final da guerra pela libertação do mundo.
Quando chegou a Londres, Capa desfrutou de dois dias
de licença que aproveitou para passar com a sua nova namo-
rada inglesa. Várias garrafas de scotch depois, encontrava-se
já a bordo de um avião do qual iria saltar de paraquedas de

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máquina fotográfica em punho para seguir o avanço de
exército americano na Europa.
Qual a ligação da história de Capa com um livro sobre
psicologia, perguntará o leitor. Apenas uma: Capa aprovei-
tou os dias, viveu intensamente. Apostou em jogar forte,
sem medo, e abraçou o seu destino e a sua vida. Foi o me-
lhor repórter fotográfico da História, casado com Gerda
Toro, namorado de Ingrid Bergman e amigo íntimo de
Hemingway. O seu espírito indomável levou a que tivesse
uma vida digna de um filme, antes de morrer na guerra da
Indochina, aos 41 anos.

Uma mente em forma, uma vida emocionante


Capa representa, a meu ver, um mestre da vida. Exis-
tem muitos outros: o explorador Ernest Shackleton, o mú-
sico e escritor Boris Vian, o físico Stephen Hawking, o «su-
per-herói» Christopher Reeve... Falarei de alguns deles ao
longo deste livro, pois são bons exemplos a seguir. Para o
psicólogo cognitivo representam o contrário daquilo que
combatemos, o oposto de viver mal.
O principal inimigo dos psicólogos é o denominado
neuroticismo, isto é, a arte de se afligir através da tortura
mental. A depressão, a ansiedade e a obsessão constituem
os nossos principais inimigos e quando nos deixamos apa-
nhar por eles, perdemos a capacidade de viver a vida em
plenitude. A vida é para desfrutar: amar, aprender, desco-
brir... O que só pode ser feito quando tivermos superado as
nossas neuroses (ou o medo, o seu sintoma principal).
Um dos meus primeiros pacientes, há já muito tempo,
foi um homem com 40 anos, Raúl, que veio ver-me porque

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sofria de ataques de pânico. Chegou ao meu consultório de
táxi, acompanhado pela mãe. Raúl vivia aterrorizado com
ideia de, a qualquer momento, poder ser acometido por um
ataque de ansiedade. Devido a esse medo, pouco saía de ca-
sa. Aos 20 anos, tinham-lhe dado baixa permanente do em-
prego e, desde então, vivia recluso em casa. Vinte anos fe-
chado por causa do medo!
O maior receio de Raúl era sofrer um ataque de ner-
vos no meio da rua, longe de casa ou de um hospital onde
o pudessem socorrer, mas ultimamente também tinha pa-
vor de ver os noticiários na televisão, porque certa vez ti-
nha sido acometido de um ataque de pânico ao assistir a
cenas de guerra. Por isso, já nem sequer via televisão.
É verdade que, ultimamente, a programação é muito fraca,
mas não poder ver televisão por sofrer de pânico, isso é de-
mais!
As vidas de Raúl e de Robert Capa são antitéticas: um
encontra-se na zona cinzenta da existência e o outro na de
tecnicolor mais brilhante.
Quão diferente é surfar a vida sobre as suas ondas ou
viver submerso, sempre meio afogado, fustigado pelas cor-
rentes marinhas! Desfrutar da vida ou sofrê-la, como se
fosse um mar hostil que nos domina!
Costumo dizer aos meus pacientes que me procuram
no consultório de Barcelona que o meu objetivo último é
torná-los fortes emocionalmente. Essa força permitir-lhes-á
desfrutar da vida em plenitude. «Aqui não ansiamos por vi-
das “normais”, cinzentas ou simplesmente estáveis», digo-
-lhes eu. «Queremos aprender a aproveitar todo o nosso
potencial.» A neurose é um travão à plenitude e a saúde
emocional um salvo-conduto para a paixão e para a verda-
deira diversão.

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É possível aprender!
Muitas pessoas são céticas em relação à possibilidade
de se tornarem pessoas fortes e emocionalmente estáveis.
Na consulta, frequentemente dizem-me: «Mas se sempre fui
assim toda a minha vida, como é possível que uma terapia
que vai durar apenas alguns meses logre mudar-me?»
A verdade é que fazer esta pergunta tem a sua lógica,
porque todos nós temos a impressão de que é impossível
mudar a personalidade. O meu avô, um homem duro que
tinha lutado na guerra civil, costumava dizer em tom grave:
«Se uma pessoa não atingiu a maturidade aos 20 anos, nun-
ca a atingirá!», e de certa forma tinha razão. Porque a ver-
dade é que não é comum mudar-se radicalmente, mas isso
não significa que seja impossível fazê-lo. Atualmente, sabe-
mos que, com as indicações adequadas, não só é possível,
como todos, até os mais vulneráveis, podem consegui-lo: a
psicologia de hoje desenvolveu métodos para tal.
Esse é, precisamente, um dos meus primeiros objeti-
vos: informar o leitor de que mudar, transformar-se a si
mesmo numa pessoa saudável a nível emocional é possível.
Claro que sim! Tenho inúmeras provas que o testemu-
nham. Entre elas, as mudanças que experimentaram milha-
res de pessoas que consultam psicólogos em todo o mun-
do. Na realidade, trata-se de milhares de provas, uma vez
que cada um destes homens e destas mulheres prova que
isso é possível. Sem ir mais longe, no meu blogue (www.ra-
faelsantandreu.wordpress.com), muitos dos meus pacientes
escrevem acerca de si próprios e sobre as suas histórias de
superação. Vejo inúmeros pacientes anualmente, centenas,
e posso afirmar perentoriamente que a mudança é possível.

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Como no caso que passo a narrar: María Luisa dirigia-
-se ao teatro todas as noites para representar uma comédia
de muito êxito em Madrid. Quando a cortina subia, ela sur-
gia em cena em todo o seu esplendor, com a graça e a ele-
gância que só os atores clássicos possuem. O final era sempre
o esperado: quase dez minutos de aplausos ininterruptos
por um trabalho genial. Que boa atriz, que simpática, que
dinâmica era María Luisa!
Mas o que o público desconhecia era que, de regresso a
casa, nessa mesma noite, o ânimo de María Luisa se transfor-
mava para afundá-la na mais negra das depressões e insegu-
ranças. Aos 50 anos, encontrava-se no seu pior momento pes-
soal, mesmo que sem um motivo em particular. O problema,
conforme lhe dissera o psiquiatra, encontrava-se na sua men-
te. Tinha tendência para a depressão e a ansiedade. Por isso,
durante longos períodos, ficava na cama praticamente o dia
inteiro, saindo apenas para fazer o trabalho que tanto amava,
mas do qual já nem conseguia desfrutar. Esta é a história real
de María Luisa Merlo, a grande atriz madrilena, conforme
narrada pela própria no seu livro Cómo Aprendí a Ser Feliz:

O período entre os 44 anos e os 50 anos foi o pior da minha vi-


da. Saía da cama para ir para o teatro e de lá regressava à cama e
mais nada. Assim, dia após dia. Temia os problemas económicos (que
na realidade não tinha), sentia medo da solidão, medo do «papão»,
medo de tudo. [...]
Na última depressão de que sofri, eu era um ser total e absolu-
tamente fechado sobre a minha própria mente. Quando alguma coisa
me preocupava, uma pequena desavença, algo de insignificante... era
capaz de remoê-lo vezes sem conta e esse turbilhão mental levava a
que por fim explodisse.

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*
Merlo confessa que nunca foi uma pessoa equilibrada.
Teve uma infância feliz, mas quando iniciou a sua vida
adulta, os transtornos emocionais começaram a fazer-se
sentir. Era verdade que tinha uma certa tendência para a
depressão (aquilo que denominamos por depressão endó-
gena), mas possuía igualmente uma personalidade, uma
perspetiva do mundo que a tornavam vulnerável. No seu
caso, o quadro complicou-se com o uso de drogas recreati-
vas e de medicamentos autoprescritos: «Quando tive a pri-
meira depressão começaram a receitar-me hipnóticos e cal-
mantes e comecei a habituar-me a eles. Comprimidos para
dormir, comprimidos para despertar, comprimidos para tu-
do. Havia dias em que era capaz de tomar dez ou quinze
comprimidos para coisas diferentes, porque tinha a tendên-
cia para depender de algo. Viciei-me igualmente em haxixe
e em cocaína.»
Por fim, aos 50 anos, a apreciada atriz tinha um mau
prognóstico. A sua mente peculiar tornava-lhe a vida muito
complicada e o problema ia-se agravando com o passar dos
anos. Mas a dada altura, a sua história teve uma reviravolta.
Um reduto de esperança, a inesgotável vontade de lutar por
si própria que lhe era característica fê-la procurar terapeutas
e guias que lhe apontassem a mudança: «E assim, passo a
passo, emergi da depressão, com a ajuda de Deus e de mim
mesma, porque o fosso onde estava enterrada era muito,
muito fundo — explica-nos. — Agora sinto-me melhor do
que nunca, apenas comparável a quando era uma criança
feliz. E sinto-me orgulhosa do trabalho que fiz comigo pró-
pria. Ter emergido das profundezas para onde mergulhara
faz-me sentir uma enorme segurança. Posso afirmar que
me sinto realizada pela primeira vez na minha vida.»

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María Luisa transformou-se a si mesma e saiba que to-
dos nós podemos fazê-lo. Precisamos de saber que é possível.
A personalidade é formada por uma série de características
inatas, mas também por toda uma série de aprendizagens ad-
quiridas na infância e na juventude, e é sobre essa estrutura
mental que podemos atuar.
Como veremos ao longo das páginas deste livro, po-
demos criar uma vida livre de medos, aberta à aventura,
plena de realizações. Quando tivermos transformado a nos-
sa mente, seremos mais capazes de desfrutar das pequenas
e grandes coisas da vida, seremos capazes de amar — e de
permitir que nos amem — com maior intensidade e tere-
mos uma imensa dose de serenidade interior. Seremos mais
como o fotógrafo aventureiro Robert Capa, grande amante
da vida, neste caso amantes da nossa própria vida.

A terapia mais científica


Em suma, aquilo que vamos ver em seguida é o á-bê-
-cê da teoria cognitiva, que partilha alguns princípios com a
filosofia antiga e que, ao longo da segunda metade do sécu-
lo XX, se foi desenvolvendo a partir de uma intensa investi-
gação em universidades de todo o mundo.
Atualmente, a terapia cognitiva constitui a escola de
psicologia com maior base científica e que melhor foi cor-
roborada por estudos de comprovada eficácia. Existem
mais de duas mil investigações independentes publicadas
em revistas especializadas que comprovam o seu valor.
Nenhuma outra forma de psicoterapia conseguiu igualar o
seu êxito terapêutico.
Este livro pretende ser um manual didático para o
grande público e contém histórias, relatos e metáforas para

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ajudar a compreender as diferentes mensagens, mas é preci-
so sublinhar que tem por base estudos e ensaios científicos
de primeira linha.
Milhares de psicólogos em todo o mundo trabalham
com a terapia cognitiva e testemunharam o poder dos seus
métodos. Centenas de milhares de pessoas transformaram
as suas vidas graças a ela, mas estou certo de que, no futu-
ro, ainda encontraremos formas melhores de administrar
estes princípios, uma vez que a terapia cognitiva é uma
ciência em constante evolução.
Como o leitor poderá comprovar, não cito autores ou
investigadores ao longo destas páginas para facilitar a flui-
dez da leitura, mas não gostaria de deixar de mencionar os
dois conceituados psicólogos cognitivos que deram grande
impulso a esta nossa disciplina: em primeiro lugar, Aaron
Beck, professor de Psiquiatria na Universidade da Pensilvâ-
nia e, naturalmente, o recentemente falecido doutor Albert
Ellis, fundador do Instituto Albert Ellis, em Nova Iorque.

Neste capítulo aprendemos que:


1. É possível mudar. É necessário um esforço conti-
nuado, mas pode ser conseguido.
2. Transformar-se em alguém positivo é essencial para
desfrutar da vida. A força emocional é o passaporte
principal para dar a volta ao mundo.

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CAPÍTULO

2
PENSE BEM E SENTIR-SE-Á MELHOR

O jovem Epicteto carregava vários embrulhos, tentando esqui-


var-se dos transeuntes que com ele se cruzavam sem cessar pela Via
Magna de Roma, a principal rua comercial da cidade. À sua frente, o
seu amo, Epafrodito, estugava o passo, indiferente às dificuldades do
seu escravo que era obrigado a segui-lo apesar de carregado.
Epafrodito gostava de Epicteto, o seu jovem criado, sobretudo
pela sua incrível inteligência. Quando o encontrou, ainda criança, na
sua cidade natal, Hierápolis, na Turquia, reparou que ele era sobre-
dotado e quis tê-lo entre os seus escravos. Este rapazinho, com apenas
quatro anos, lia e escrevia em grego e latim e ninguém o ensinara!
Aprendera simplesmente lendo os letreiros nas lojas e nos templos.
Anos mais tarde, mudaram-se ambos para o centro do mundo,
Roma, a capital do Império, onde Epafrodito começaria a prosperar
como comerciante de artigos de luxo.
Naquela manhã, amo e escravo dirigiam-se a casa de Amalia
Rulfa, uma viúva milionária que morava perto do Fórum. Levavam-
-lhe amostras de perfumes preciosos da Pérsia e tecidos do Oriente.
Com tantos embrulhos, Epicteto quase não conseguia ver por onde
ia e, nesse momento, dois rapazinhos cruzaram-se com ele na rua.
Um deles deu-lhe um encontrão, fê-lo perder o equilíbrio e cair. Como
em câmara lenta, Epicteto viu como o frasco do perfume mais caro dava

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uma volta no ar e descrevia uma curta parábola para acabar por ater-
rar no pavimento: crash, vidros partidos e salpicos de perfume sobre a
sua roupa.
O tempo deteve-se durante breves instantes. De repente, um ruí-
do seco e uma dor intensa na perna esquerda devolveram-no à realida-
de! O seu amo Epafrodito batia-lhe com o duro bastão de carvalho.
— Toma, bandido, assim vais aprender a ser mais cuidadoso!
— gritava-lhe ele, cego de cólera, enquanto lhe batia uma e outra vez
na mesma perna.
Epafrodito gostava verdadeiramente do criado — na verdade
pagava-lhe até uma dispendiosa educação numa escola de filosofia —,
mas possuía um lendário carácter irascível e impulsivo. Epicteto, com
o seu espírito razoável, servia-lhe de travão na maior parte das suas
discussões com fornecedores e clientes, contudo, quando a ira do amo
lhe era dirigida não havia ninguém que o protegesse. De qualquer mo-
do, na Roma antiga, não era invulgar que o amo batesse sadicamente
no seu escravo, que não passava de propriedade sua.
Naquela manhã, contudo, um grupo reuniu-se em redor dos
dois, mas por uma razão totalmente fora do comum. Para surpresa de
todos os que assistiam ao que acontecia, o jovem escravo não abria a
boca para se queixar ou para expressar qualquer dor. Limitava-se a
olhar para o amo com uma indiferença que o enfurecia ainda mais.
— Não te dói, insolente? Pois toma lá mais estas! — gritou o
comerciante, batendo-lhe com tanta força que transpirava abundante-
mente.
Epicteto continuava impassível, ate que finalmente abriu a boca
e disse:
— Cuidado, meu amo, porque se continuar a bater-me dessa
maneira vai acabar por partir o bastão.

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Epicteto, o protagonista desta história, viveu entre os
anos 55 e 135 da nossa era. Foi escravo durante toda a in-
fância e obteve a liberdade graças aos seus prodigiosos dons
para a filosofia. Na verdade, transformou-se num dos inte-
lectuais mais prestigiados da sua época, com uma fama que
ultrapassou a de Platão, tanto entre Romanos como entre
Gregos.
Mais tarde também a História lhe fez justiça e atual-
mente é considerado um dos maiores filósofos de todos os
tempos. As suas ideias deram origem a muitas das corren-
tes de pensamento que hoje conhecemos, cristianismo in-
cluído.
Epicteto não deixou testemunhos escritos, mas os
seus discípulos reuniram as suas palavras, que podemos en-
contrar em dois livros, o Enchiridion e os Discursos.
Muitas lendas foram tecidas em redor da vida deste fi-
lósofo e uma das mais conhecidas é esta que acabei de
contar. A fantasia popular explica assim a causa do seu co-
xear característico. Naturalmente que se trata de uma narra-
ção exagerada numa tentativa de resumir a filosofia de
Epicteto, ainda que não cumpra o seu objetivo principal.
A historieta leva-nos a pensar que o filósofo tinha conse-
guido controlar por completo as suas emoções, mas essa
não era de modo algum a sua intenção. Nem o pretendia,
nem isso tinha a mínima relação com os seus ensinamentos.
Epicteto ensinava a ter força emocional, o que não sig-
nifica «não sentir emoções negativas», mas antes «não sentir
emoções negativas exageradas», e é isso que vamos apren-
der neste manual. Através desse controlo mental, apesar de

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sentirem dor, pena ou irritação, os indivíduos adquirem
uma confiança em si mesmos que lhes permite desfrutar
das possibilidades maravilhosas que a vida oferece.
Se a principal mensagem deste livro é a de que todos
— sim, todos — podemos aprender a ser mais fortes e
equilibrados a nível emocional, a segunda é que a aprendi-
zagem acontece através da transformação da nossa maneira
de pensar — a nossa filosofia pessoal, o nosso diálogo in-
terno —, de uma maneira semelhante à que Epicteto intuiu
há vinte séculos.
Como o filósofo dizia: «Não é o que nos acontece que
nos afeta, mas aquilo que dizemos acerca do que nos acon-
tece.»
Milhares de anos mais tarde, em pleno século XX, a re-
volução cognitiva impulsionada por grandes psicólogos e
psiquiatras, como Aaron Beck e Albert Ellis, permitiu que
centenas de milhares de pessoas em todo o mundo trans-
formassem a sua mente. Também o leitor se pode juntar a
elas.
Vejamos mais pormenorizadamente.

A origem das emoções


Costumamos ter a impressão de que os acontecimen-
tos externos — aquilo que nos acontece — influenciam as
nossas vidas, dando origem a emoções: raiva ou satisfação,
alegria ou tristeza... Segundo essa ideia, existiria uma asso-
ciação direta entre êxito e emoção. Por exemplo, se a mi-
nha mulher me abandona, sinto-me triste. Se alguém me in-
sulta, sinto-me ofendido. Temos a impressão de que existe

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uma relação direta (de causa e efeito) entre acontecimentos
e emoções que poderá seguir o seguinte esquema:

Na realidade, a psicologia cognitiva, o nosso método


de transformação pessoal, diz-nos que isso não é verdade.
Entre os acontecimentos exteriores e os efeitos emocionais
existe uma força intermédia: os pensamentos. Se me sinto
deprimido pelo facto de a minha mulher me ter abandona-
do, isso não acontece pelo acontecimento em si, mas porque
digo a mim próprio algo como: «Meu Deus, estou sozinho,
que horror, vou ser um infeliz!», e estas ideias produzem
em mim a emoção correspondente, neste caso, medo, de-
sespero e depressão.
São as ideias, a interpretação do abandono, o meu diá-
logo interno, que me deprimem, e não o facto de a minha
mulher se ter ido embora. Na verdade, há homens que fa-
zem uma festa quando a mulher os abandona!
Deste modo, o esquema exato do nosso funciona-
mento mental será:

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É isto, exatamente, que Epicteto dizia: «Não é o que
nos acontece que nos afeta, mas aquilo que dizemos acerca
do que nos acontece.»
Todos nós temos a sensação de que os acontecimen-
tos dão origem — automaticamente — às emoções e este
erro é o principal inimigo do crescimento pessoal. Por
exemplo, dizemos frequentemente frases do estilo: «O Pepe
irrita-me», e aqui estamos já a cometer o erro que referi-
mos. O Pepe não me irrita, sou eu quem me irrita!
Se analisarmos cuidadosamente o nosso processo
mental, veremos que o Pepe leva a cabo determinadas
ações (supostamente inconvenientes) e eu manifesto no
meu interior ideias do estilo: «Isto é intolerável! Não consi-
go suportar!»
São essas ideias que têm o poder de me irritar, não a
forma de agir do Pepe que, no que diz respeito a emoções,
é neutra. A verdade é que nem todas as pessoas reagem da
mesma maneira quando estão com o Pepe: a umas ele irrita
mais do que a outras. Há mesmo pessoas às quais nem ori-
gina qualquer tipo de mal-estar. Tudo depende do diálogo
interno de cada um. É o diálogo interno o verdadeiro pro-
dutor — por vezes oculto — das emoções.

O estudante suicida
Para que o conceito seja mais facilmente compreendi-
do, passo a narrar o caso real de Jordi, um adolescente com
depressão. Lembro-me que foi a mãe quem o trouxe à con-
sulta, muito angustiada, porque o filho tentara suicidar-
-se há duas semanas. Tratara-se de uma tentativa real, não

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de uma chamada de atenção. Jordi cortara os pulsos dentro
da banheira enquanto os pais passavam o dia fora. Por aca-
so, regressaram a casa mais cedo e encontraram-no incons-
ciente. Quando ele se sentou à minha frente, perguntei-lhe
diretamente:
— Diz-me, por que razão desejavas acabar com a tua
vida?
— Porque tive três negativas na escola — respondeu,
ao mesmo tempo que escondia o rosto com as mãos,
olhando o vazio.
Jordi sentia-se infeliz, invadido por um profundo sen-
timento de fracasso que o impedia de desfrutar da vida.
Acordava diversas vezes durante a noite com uma imensa
sensação de angústia no peito. Segundo ele próprio dizia, o
problema eram as três negativas. Mas, como veremos mais
adiante, essa não era a verdadeira causa das suas emoções.
Falei com ele durante várias sessões e, aos poucos, fui
descobrindo a verdadeira causa do seu mal-estar, que con-
sistia na sua forma peculiar de pensar, o diálogo que habi-
tualmente mantinha consigo próprio.
— Compreendo, Jordi. Tiveste três negativas e isso é
aborrecido. Mas creio que dás demasiada importância a is-
so, não? — disse-lhe eu.
— Deixe-me explicar-lhe. O que você não sabe é que
na minha escola não permitem passar se no final do ano
nos faltarem mais do que duas disciplinas. Claro que pensei
que, se calhar, não vou conseguir recuperar as três negativas.
E se isso acontecer... tenho de repetir o ano! Compreende
agora? Do que eu tenho medo é de reprovar o ano! — res-
pondeu ele, irritado.

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