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SE DEUS É BOM, POR QUE EXISTE O SOFRIMENTO?

UMA
ANÁLISE DE TRÊS ABORDAGENS PASTORAIS POPULARES
PARA O PROBLEMA DO MAL
Jean Francesco A. L. Gomes1

RESUMO
O objetivo deste artigo é avaliar três abordagens pastorais de autores renomados
no meio popular e acadêmico, cada um representando uma linha teológica específica, no
que diz respeito ao problema do sofrimento. A primeira abordagem a ser analisada será
o universalismo de Rob Bell. A segunda é conhecida como Teísmo aberto endossada
por Gregory Boyd, e a terceira é uma versão evangélica pessoal de N. T. Wright. Para
tanto, serão consideradas as raízes teológicas das aplicações feitas pelos autores, suas
possíveis inconsistências e/ou má interpretação de textos bíblicos. Ao final deste artigo
será proposta uma abordagem pastoral da teodiceia a partir de uma perspectiva teológica
reformada.

PALAVRAS-CHAVE
Problema do sofrimento/mal; Rob Bell; Greg Boyd; N. T. Wright;
Universalismo; Teísmo Aberto; Teodiceia.

INTRODUÇÃO
Existem três possíveis perguntas inquietantes sobre o problema do sofrimento
humano. Primeira, se Deus é bom, por que ele permitiu a entrada do mal neste mundo?
Segunda, se Deus sabe todas as coisas, inclusive o futuro, por que ele não intervém
neste problema? Terceira, se Deus é Todo-Poderoso, por que ele não impede e acaba
com o mal de uma vez por todas? Para responder a essas perguntas, três autores serão
estudados nesta pesquisa: Rob Bell, Gregory Boyd e N. T. Wright.

1
O autor é pastor presbiteriano, bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul
(2009) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2016), mestre em Teologia Sistemática
pelo Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, CPAJ (2017). É professor visitante do
Seminário Teológico Servo de Cristo, em São Paulo.
Bell é um famoso pastor norte-americano que exerceu muita influência na igreja
que foi fundador, a Mars Hill Bible Church, situada em Grand Rapids, Michigan, e em
muitos lugares do mundo com sua série de curta-metragens “Nooma”. Atualmente Bell
não é mais pastor de sua igreja local. Hoje ele mora em Hollywood, tem se dedicado a
escrever livros e recentemente participou de uma turnê com a Oprah.2 Neste estudo será
analisado o seu livro Love Wins3, publicado nos Estados Unidos em Março de 2011 e
em português como O Amor Vence, em 2012, pela editora Sextante4. Embora essa obra
tenha um caráter predominantemente escatológico, ela também apresenta a abordagem
pastoral do autor para o problema do sofrimento.
Boyd também é um escritor e pastor evangélico norte-americano. Atualmente
pastoreia a Igreja em Woodland Hills St. Paul, Minnesota. Sua abordagem sobre o
problema do sofrimento está presente em três obras que formam uma trilogia, na
ordem5: God At War (Deus em guerra), publicada em 1997, Satan And The Problem Of
Evil (Satanás e o problema do mal), em 2001 e Is God to Blame? (Deus é culpado?) em
2003.
Wright é um dos mais renomados biblistas anglicanos da atualidade. Ele é
conhecido por suas publicações de teor erudito nas áreas de pesquisa do Novo
Testamento e também, como bispo anglicano, tem escrito muito material de cunho
pastoral. Sua abordagem sobre o problema do sofrimento encontra-se especificamente
no livro O Mal e A Justiça de Deus6, publicado pela editora Ultimato em 2009, entre
outras obras.

2
Apresentadora muito famosa dos Estados Unidos com programas sobre espiritualidade,
geralmente são voltados a Nova Era, misticismo e Autoajuda.
3
BELL, Rob. Love Wins: A book about Heaven, Hell and the Fate of Every Person Who Ever
Lived. New York: Harper One, 2011.
4
Na edição em português publicada pela Editora Sextante o livro é catalogado na categoria
Autoajuda. Os editores perceberam que mais do que uma obra teórica de teologia, o autor quer
influenciar as emoções dos leitores. Sem dúvidas, o livro carrega uma proposta pastoral na lida
com o problema do sofrimento humano.
5
BOYD, Gregory. God At War: The Bible and The Spiritual Conflict. Downers Grove, IL,
InterVarsity Press, 1997; ______. Satan and the Problem of Evil: Constructing a Trinitarian
Warfare Theodicy. Downers Grove, IL, InterVarsity Press, 2001. ______. Is God to Blame?
Beyond Pat Answers to the Problem of Suffering. Downers Grove, IL, InterVarsity Press, 2003.
6
WRIGHT. N.T. O Mal e a Justiça de Deus: Mundo injusto, Deus justo? Viçosa: Editora
Ultimato, 2009.
Este artigo se propõe a analisar as abordagens de cada autor, as raízes teológicas
de suas aplicações, possíveis inconsistências e a forma como interpretam os textos
bíblicos. Ao final de tais análises, será apresentada uma abordagem teológica para o
problema do sofrimento alinhada com a tradição reformada.

1. O universalismo de Rob Bell


Bell é um pastor preocupado em oferecer respostas sobre o sofrimento e, de
forma criativa, atraente, poética e pastoral, o objetivo dele neste livro é levar os leitores
para uma “nova” percepção sobre céu e inferno. Em sua visão, a ideia tradicional de que
os não cristãos sofrerão eternamente por seus pecados é “equivocada, tóxica e,
finalmente, subverte a divulgação contagiosa da mensagem de amor, paz, perdão e
alegria que nosso mundo precisa desesperadamente ouvir de Jesus.” (p. viii).
Em todo o livro ele tenta convencer seus leitores que a razão para o sofrimento
no mundo advém exclusivamente do querer humano, mas por causa do querer de Deus,
o amor vencerá no final. O sofrimento humano é uma forma de experimentar o inferno
aqui e agora, pois “o inferno é o triste sofrimento desta vida” (p.71). Na página seguinte
vem a razão para o inferno: “o inferno é Deus dando aquilo que nós queremos” (p.72).
O inferno após a morte na visão de Bell é aquilo que o ser humano cria para si mesmo
quando se recusa a acreditar na história de Deus e insistentemente resiste ao seu amor
(p.170-71).
Diferente do que algumas pessoas pensam, Bell acredita no inferno. Entretanto,
sua visão de inferno é totalmente diferente da posição tradicional dos cristãos
evangélicos. O subtítulo da obra é bem instigante: “um livro sobre o céu, inferno, e o
destino de qualquer pessoa que já existiu”. É, sem dúvidas, um livro provocador. Logo
nas primeiras páginas do livro, Bell questiona: “Gandhi está no inferno?” “Nós temos
alguma confirmação disso?” Durante o livro encontramos cerca de 350 perguntas
instigantes como essas. No entanto, mais que perguntas, Bell deseja oferecer respostas,
ele mesmo declara: “não é um livro de perguntas, mas de respostas a tais perguntas”
(p.19). Seu livro vendeu mais de 300 mil exemplares e mexeu com o pensamento
evangélico dos cristãos norte-americanos.
E a grande resposta do livro é que Deus nunca derrama sua ira sobre alguém
para sempre, o amor de Deus vence. De forma simples, esta é a atraente resposta
“cristã” para o problema do sofrimento de Bell: o amor futuro de Deus irá salvar todas
as pessoas. Em linhas gerais, quem não aproveita, vive a vida e escolhe o amor de Deus
agora, pode inicialmente perder algumas coisas boas da vida porvir, mas no final das
contas, o amor dele vencerá (p. 197-198).
Bell questiona: “Como podem os seus bons propósitos falharem? Todo pecador
vai voltar para Deus e perceber que já foi reconciliado com Deus, nesta vida ou na
próxima” (p.195). Para ele não haverá tormento eterno e consciente. Deus diz não à
injustiça no mundo por vir, mas certamente não punirá por os “resistentes” por toda a
eternidade, no final, o amor vence.
Esse é o “novo” universalismo do autor. Diferente de outros pensadores que
assumem uma posição universalista mais aberta - de que não existe inferno, nem
provisório, nem eterno - Bell defende um universalismo mais “justo”, que pune, de certa
maneira, todos os pecados humanos, mas nunca para sempre.
Bell salienta ainda que "uma punição sem fim não pode dar verdadeira glória a
Deus”, pois "o amor de Deus acabará por derreter até os corações mais duros" (p. 108).
O inferno eterno após a morte dos cristãos tradicionais não é uma criação de Deus, pois
ele quer que todos sejam salvos e, pelo seu amor vitorioso, sempre consegue aquilo que
quer. Essa é a resposta do autor para o problema do sofrimento: O sofrimento é algo
real, é algo puramente inerente ao querer humano, mas Deus com seu amor venceu o
mal em Jesus, e ainda que muitos não creiam nele, seus corações serão derretidos em
algum momento futuro.

1.2 Pressupostos e possíveis incoerências na abordagem de Rob Bell


De forma óbvia, Love Wins é um livro sem compromisso com o cristianismo
histórico. É impossível fazer uma crítica total do livro, pois demoraria muito tempo.
Não é possível apontar para dois ou três problemas principais ou três ou quatro erros
exegéticos. De forma ampla, o livro é um relato muito diferente do evangelho do início
ao fim. No entanto, é possível mencionar os fundamentos e prováveis inconsistências de
Bell nas seguintes proposições:
Primeira, este autor apresenta o conceito do amor de Deus em detrimento dos
seus demais atributos. Como o próprio título do livro já diz, a teologia de Love Wins é
centrada no amor de Deus. Todavia, esse amor pode ser questionado quanto as suas
raízes. O amor de Deus para Bell é muito mais enraizado na concepção sentimentalista
do mundo moderno do que na Bíblia. Esse amor sentimentalista que Bell atribui a Deus
faz necessariamente surgir uma bipolaridade no caráter de Deus, pois para salvar toda a
humanidade ele acaba por engolir principalmente sua própria justiça, e por
consequência sua soberania, sabedoria, poder, palavra e santidade.
Segunda, Bell defende que o ser humano possui uma liberdade autônoma capaz
de resistir a vontade de Deus. Bell defende em vários momentos que é possível resistir
ao amor de Deus, (p. 72, 103-4, 118-19). Por implicação, se o homem tem a faculdade
de resistir a vontade de Deus, é porque sua vontade é autônoma à de Deus. Deus não
pode exigir nada do ser humano que o ser humano não queira fazer. Bell defende tal
liberdade, mas ao mesmo tempo defende que no fim de todas as coisas o amor de Deus
vencerá. Aí está o problema, como Deus irá fazer isso? Se o amor de Deus vencerá no
final, ele precisará “desligar” em algum momento nossa liberdade de autonomia e
implantar seu amor de forma irresistível na humanidade. Portanto, a tese principal do
livro é totalmente incoerente com ela mesma.
Em várias partes do livro o autor assume que o inferno é algo que os pecadores
criam para si mesmos. Deus não aplica sua ira a ninguém, não julga ninguém; as
pessoas que se autocondenam. Embora haja alguma parte de verdade nisso – no sentido
de que o ser humano é responsável pelo que faz – o “deus” de Bell, por um lado, é
apenas um observador daquilo que acontece com os seres humanos, por outro, de forma
incoerente, Deus é soberano o suficiente para não deixar de ser amado por toda a raça
humana. Bell implanta um conceito soberano, coercivo e irresistível no amor de Deus,
pois no último dia ninguém será mais livre para resistir a ele.
Terceira, o autor alega que o universalismo está no centro da tradição cristã
primitiva. Bell assinala que "no centro da tradição cristã desde a primeira igreja tem
havido a insistência de que a história não é trágica, o inferno não é para sempre, e que o
amor, no final, vence" (p.109). Alguns pais da Igreja como Jerônimo, Basílio de
Cesaréia e Agostinho são citados como defensores de uma “restauração de todas as
coisas” no sentido amplo do universalismo. Até Martinho Lutero é citado como uma
referência para tal doutrina. A questão é que, embora não seja mentira que já haviam
cristãos primitivos com o pensamento universalista - Orígenes parece defender essa
ideia - o problema é que Bell constrói seu argumento como se essa teoria fosse algo
bem cristalizado no centro da tradição cristã. Longe do centro da tradição cristã, Bell se
coloca à margem, defendendo uma doutrina bem heterodoxa.
Em público, Bell geralmente se defende dizendo que não é universalista. De
fato, como um universalista pode acreditar no inferno? Ele faz do inferno uma espécie
de purgatório, é o que se deduz de suas palavras: “Inferno é um período temporário de
podas e uma experiência intensa de correção” (p.91). A única e real diferença com a
doutrina do purgatório é que ele é para todos e não somente para os cristãos batizados
na Igreja Católica Romana.
Quarta, Bell assume que a Escritura apregoa uma salvação final de toda a
humanidade. Bell utiliza argumentos a partir da Bíblia para defender a salvação final de
toda a humanidade. Em síntese o argumento dele é o seguinte:

E assim, a partir da igreja primitiva, há uma longa tradição de cristãos


que acreditam que Deus acabará por restaurar tudo e todos, porque
Jesus diz em Mateus 19 que haverá uma "renovação de todas as
coisas", Pedro diz em Atos 3 que Jesus irá "restaurar tudo", e Paulo
diz em Colossenses 1, que por meio de Cristo ‘Deus quis... reconciliar
consigo mesmo todas as coisas, tanto as coisas na terra ou as que estão
nos céus’ (p. 107).

Além dos textos citados acima, Bell utiliza uma quantidade impressionante de
textos bíblicos para defender essa suposta redenção universal (Sl 65, Ez 36, Is, Zc, Fp 2,
Sl 22 e muitos outros). Contudo, ele se esquece de mencionar que tais referências são
promessas feitas por Deus ao povo da aliança; elas não proclamam a salvação de toda a
humanidade, mas da restauração da criação, do mundo físico no qual habitarão os
cristãos salvos. Algumas delas estão conectadas às nações que virão até Deus (gentios)
e outras falam sobre o reconhecimento universal de crentes e incrédulos que haverá no
último dia, no retorno de Jesus.
As interpretações de Bell estão muito longe da realidade. Os textos foram
forçados a dizer o que ele quer que digam. A “boa intenção de Bell” é argumentar em
prol do seu desejo que todas as pessoas, sem exceção, sejam finalmente salvas. Um
exemplo deste exagero hermenêutico foi a interpretação de João 14.6, que claramente
afirma a exclusividade de Jesus para a salvação:
O que ele não está dizendo é como, ou quando, ou de qual maneira o
mecanismo funciona para trazer pessoas para Deus através de Jesus.
Ele nem mesmo estabelece que aqueles que vem até o Pai através de
Jesus saberão que vieram exclusivamente através dele. Ele
simplesmente afirma que o que Deus está fazendo no mundo para
conhecer, redimir, amar e restaurar o mundo está acontecendo através
dele (p. 154).

A interpretação acima foge completamente do sentido natural do texto. João está


falando sobre a singularidade da fé em Jesus para chegar até ao Pai. Aliás, esse é o
propósito de toda obra joanina (Jo 20.31). Ainda em João, Bell sustenta versos isolados
como João 3.17, “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo,
mas para que o mundo fosse salvo por ele”, sustentando a partir dele que “este Jesus é
um vasto, amplo e generoso mistério” levando-nos a conclusão de que “o céu é, depois
de tudo, cheio de surpresas” (p.160). Parece que ele se esqueceu do verso seguinte, 18:
“Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome
do unigênito Filho de Deus.”
Em outras palavras, Bell interpreta vários e vários textos de forma que o texto
fale o que ele quer que o texto fale e não o que o texto realmente está falando.
Comentando sobre Ap 22.25, que diz que na nova terra “as suas portas nunca jamais se
fecharão”, para ele obviamente isso se refere aos novos cidadãos que entrarão na cidade
à medida que forem sendo reconciliados com Deus (p.115). A exegese dele é realmente
problemática, pois a explicação de João na sequência se refere à segurança da cidade;
nada entra de mal ali, as nações podem viver em paz eternamente, pois os maus já
receberam a segunda morte no lago de fogo. Embora seu estilo de escrita seja
envolvente, suas análises bíblicas são muito perigosas e danosas a fé cristã.
Quinta, Bell sugere que Cristo assume faces salvíficas múltiplas ao redor do
mundo. Talvez, além do universalismo, a Cristologia de Bell seja um dos grandes
problemas do livro. No afã de querer dar uma resposta diante do sofrimento humano - e
não querer confrontar ninguém de outra religião - o autor apela para a tese de que Cristo
está oculto em várias culturas e até mesmo religiões de formas diferentes. Ele diz:
“algumas o chamam de Jesus; algumas tem muita bagagem de cristianismo, algumas o
chamam por um nome diferente” (p.159).
A interpretação de Bell para apoiar sua tese é absurda. Partindo de 1 Coríntios
10, texto no qual Paulo afirma que Jesus era a pedra nos dias de Moisés, Bell conclui
que existem pedras em todo lugar. Se Paulo consegue ver Cristo em uma pedra, quem
sabe em quais lugares nós poderemos encontrá-lo?” (p.144). Para Bell, Jesus nunca
deveria ter sido diminuído em uma só religião. Cristo está presente em todas as culturas
e pode ser encontrado em qualquer lugar. As vezes missionários viajam ao redor do
mundo apenas para encontrar que o Cristo que pregam já estava presente lá com um
nome diferente (p.152). Ele resume seu pensamento dizendo que onde nós acharmos
graça, paz, amor, aceitação, cura, perdão, nós acabamos de achar a fonte da vida que
chamamos de Jesus (p.156, 159).
Não há o verdadeiro Cristo que vence o mal em Love Wins, mas apenas o velho
liberalismo clássico que tenta reduzir o poder de Cristo aos clamores do existencialismo
moderno. De uma forma bem nítida, Bell dilui o Cristo do evangelho para qualquer
espiritualidade não cristã que tenha alguma semelhança com os ideais do cristianismo.
Na ânsia de oferecer esperança para as pessoas, Love Wins faz do evangelho uma graça
qualquer e tira todo o seu conteúdo missionário. O livro Amor vence, na verdade, põe a
perder toda a beleza e poder do evangelho de Cristo.

2. O Teísmo aberto de Greg Boyd


Diferente de Rob Bell, Boyd é muito mais claro em suas teses a respeito de Deus
e do sofrimento humano. Ele não é tão atraente, poético e popular quanto Bell, mas
fundamenta mais coerentemente as suas convicções. Boyd é um filósofo por excelência.
Ele constrói todos os seus argumentos com rigor matemático. É por isso que seu
racionalismo estrito pode ser um ponto positivo por um lado, pela sua coerência, mas
sua ruína por outro, pela infidelidade bíblica. O livro principal da sua trilogia a ser
analisado neste estudo será Satan And The Problem of Evil (Satanás e o problema do
mal).
Boyd questiona a coerência da soberania de Deus proposta pela escola
agostiniana e calvinista que moldou a visão da maioria dos cristãos durante os séculos.
Ele rejeita esse tipo de cosmovisão blueprint7, que tenta encaixar os propósitos de Deus
em todos os eventos da história. Para ele, é inconcebível pensar que "tudo de alguma

7
Blueprint é planta baixa de um edifício. Ele usa esta metáfora para criticar a visão de que a
vontade de Deus funciona dentro de um esquema fechado e previamente estabelecido.
forma se encaixe num esquema misterioso de Deus” (p.13). A crítica dele sobre a visão
reformada é resumida de forma simples:

Qualquer desígnio que intencionalmente inclua o sofrimento de


crianças inocentes por um propósito maior é intrinsecamente imoral.
A Escritura não sustenta que há um propósito por trás de todas as
coisas. A sugestão que Deus tem ‘uma razão maior’ para permitir que
crianças sejam sufocadas na lama ou serem sequestradas é um insulto
aqueles que experimentam este horror bem como o é para o caráter de
Deus. (p.14).

Na visão desse autor a explicação para o sofrimento não está em Deus, pois essa
visão de Deus ter decretado todas as coisas não faz sentido nem com a Bíblia, muito
menos com a realidade. Portanto, a proposta de Boyd é que o mal surgiu devido a uma
guerra cósmica envolvendo Deus e Satanás e, posteriormente a raça humana. Deus criou
os anjos e seres humanos de tal maneira que poderiam resistir abertamente a vontade de
Deus. Eles são agentes livres, podem resistir e em alguns casos até frustrar os
propósitos de Deus (Gn 6.6, Is 63.10, Lucas 7.30, Atos 7.51, etc.). Sua vontade geral
para o mundo não pode falhar, mas suas vontades particulares frequentemente falham
(p.15). Ele chama essa maneira de pensar de warfare worldview (cosmovisão de
guerra).
Boyd assume o dualismo filosófico como eminentemente bíblico. O sofrimento
e o mal não são culpa de Deus, mas especificamente de Satanás, o anjo mais poderoso
do cosmos, seguido por seus anjos aliados e, por fim, pelos seres humanos que agiram
de forma contrária a vontade de Deus. De quem é a culpa pelo sofrimento do mundo?
Em resumo, a culpa é de Satanás que iniciou o processo de rebelião contra a vontade de
Deus acompanhado de seus anjos e também da humanidade. Deus está, hoje, se
esforçando para derrotar Satanás. Na prática, isso significa que “não enxergamos mais
uma criança sequestrada como parte dos planos de Deus e sim como uma vítima de
guerra. Os culpados disso são os seres que estão em oposição à vontade de Deus”
(p.16).
Com muita coerência, Boyd admite a principal brecha de sua tese: fazer Deus
alguém incapaz de frear o mal no mundo. Para solucionar o problema, ele argumenta
que Deus não previne as tragédias do mundo por duas razões. Primeira, porque não
escolheu prevenir; segunda, porque não pode prevenir. Na opinião do autor Deus não
escolheu não prevenir o mal no mundo, ele simplesmente não é capaz de fazê-lo (p.16).
O livro todo - 456 páginas - foi escrito para resolver esse problema: Como reconciliar a
figura de um Deus Todo-Poderoso, mas que não é capaz de intervir em eventos da
história?
A resposta que ele encontrou foi a de tentar tornar filosoficamente coerente a
cosmovisão de guerra que “está na Bíblia” com a aparência destrutiva que o mundo
experimenta hoje. A resposta está em redefinir a natureza do amor. É impossível Deus
alcançar seu objetivo de que seus filhos o amem de forma livre sem que ele se arrisque
no processo. Deus, portanto, arriscou criar o mundo convidando outros para
compartilhar de seu amor Triúno, sabendo que poderia ser rejeitado (p.19). Boyd chega
a dizer: “o nosso consolo é saber que em algum dia essa guerra e o sofrimento irão
acabar, mas jamais podemos partir dessa esperança para afirmar que Deus tenha algum
envolvimento com o mal no mundo” (p.17).
A implicação pastoral de Boyd é que qualquer resposta que possamos oferecer
sobre o problema do sofrimento deve sempre se relacionar “às contingências da criação
e à guerra que estamos envolvidos e jamais a soberania arbitrária de Deus” (p.224).
Quando o sofrimento confronta a humanidade e a coloca em busca de explicações,
nunca é sábio duvidar do caráter de Deus, mas sim questionar o número infinito e
desconhecido de variáveis possíveis para tal evento. O autor escreveu este livro com o
desejo de trazer paz aqueles que experimentam o mal concretizado em suas vidas,
mostrando que Deus não é a causa de sua dor, pelo contrário, ele é totalmente amoroso
e confiável e está fazendo tudo o que pode neste momento para trazer o bem as suas
vidas. Quando o seu reino for consumado todos nós que ansiosamente o esperamos,
saberemos naquela hora que ter pensado assim valeu a pena (p.357).

2.1 Pressupostos e possíveis incoerências na abordagem de Greg Boyd


Tendo analisado a abordagem pastoral de Boyd em relação ao problema do
sofrimento, se faz necessário entender as custas de quais doutrinas bíblicas ele constrói
seu argumento. Para manter a coerência do argumento de que Deus não tem “propósito
maior” algum para o sofrimento humano, ele precisa redefinir três doutrinas da fé cristã:
1. Livre-arbítrio; 2. Onipotência de Deus; 3. Onisciência de Deus. Em suma, através de
uma visão libertária logicamente consistente, Boyd desconstrói a onisciência e
onipotência de Deus.
Primeiro, o autor sugere que a liberdade de independência dos seres humanos é
capaz de frustrar diretamente a soberania de Deus. De uma forma mais coerente que
Bell, Boyd defende a liberdade autônoma dos seres humanos até as últimas
consequências. A implicação direta de sua defesa é a frustração dos planos de Deus.
Como já foi dito, não apenas pode, mas frequentemente os planos de Deus são
frustrados pelo Diabo, seus anjos e pelos seres humanos. Para Boyd é impossível pensar
em um amor verdadeiro sem que a liberdade humana seja capaz de até mesmo
contrariar os planos de Deus.
Segundo, Boyd acredita que o futuro está em aberto para Deus. Com este
pressuposto Boyd redefine completamente o conceito tradicional de onisciência divina,
isto é, que Deus conhece todas os eventos do futuro perfeitamente. Boyd questiona: “Se
as pessoas agem livremente, como Deus sabe particularmente cada decisão humana
antes da escolha ser tomada?” E a resposta é: ele não sabe o futuro em si, porque
existem vários futuros possíveis - esses Deus pode prever - mas nada com a certeza
plena, pois isso invalidaria a liberdade de autonomia dos seres angélicos e humanos.
Essa é uma das razões pelas quais Deus não consegue impedir o mal, ele não sabe
perfeitamente que males sobrevirão a terra. A liberdade humana impede que Deus seja
soberano para conhecer perfeitamente os acontecimentos futuros. Obviamente a tese de
Boyd é insustentável debaixo do olhar mais simples das Escrituras, como no Salmo
139.16.
Terceiro, ele assume que Deus é simplesmente incapaz de impedir que o
sofrimento aconteça. Com este pressuposto Boyd redefine o conceito de onipotência de
Deus. Deus, na verdade, é impotente para algumas coisas. A doutrina da providencia,
por exemplo, precisa ser totalmente redefinida - ou desconstruída. Para Deus governar o
mundo ele precisa assumir riscos, mudar de ideia repetidas vezes, tentar prever as ações
humanas e angélicas até chegar ao fim que ele deseja. Deus, na verdade, tolera os atos
de agentes livres como um pai tolera os maus hábitos de uma filha (p.182). Ele baseia
tal argumento nas narrativas do “arrependimento de Deus” (Gn 6, Ex 32, 1Sm 15, Jr 18,
etc.), que na opinião dele evidenciam impotências na onisciência de Deus.
O “consolo” de Boyd para os seus leitores é que Deus está sempre trabalhando
para trazer o bem para todos não importam as circunstancias que nos encontramos. Ele
afirma: “eu não acredito que a Escritura nos ensine a buscar consolação acreditando que
todas as coisas que acontecem tem um propósito divino por trás delas” (p.162). Jesus e
os autores do Novo Testamento nos instruem a revoltar-nos contra o mal, como se ele
viesse dos inimigos de Deus, em vez de tentar achar alguma segurança e consolo na
esperança que Deus, de alguma forma, está por trás dele.
Para ele quem se apoia no mito de uma blueprint divina está, no fim das contas,
fechando os olhos para a realidade da guerra espiritual e se entregando a uma falsa
sensação de segurança. A intervenção de Deus no mundo é totalmente arbitrária. Para
agir no mundo Deus se faz dependente da oração dos agentes livres; mesmo assim,
Deus ainda pode ouvir as nossas orações e ser barrado pelos poderes do mal (p.241).
Deus, entretanto assegura que vencerá no final porque, até agora, ele já mostrou
que é mais poderoso que as demais forças dominadoras do mundo. “É difícil fazer
sentido a certeza bíblica que no eschaton Deus irá derrotar todos os inimigos que lhe
opõe a menos se assumirmos que Deus possui o poder de revogar a liberdade de seus
oponentes.” Essa é a segurança que os crentes podem ter na vitória de Deus sobre o mal.
Ele está tolerando tudo por causa da liberdade autônoma dos agentes da criação, mas
uma hora essa liberdade lhes será tirada. (p.184). Nada foi mais incoerente em toda a
argumentação de Boyd até agora. Ele sustenta o livro inteiro que para ser amado deve
haver total liberdade entre ele e suas criaturas, mas no fim, para se sagrar vitorioso,
Deus irá tirar a liberdade de suas criaturas, pois é o único jeito de vencer. No fim das
contas, para Boyd, Deus também precisa implantar o amor irresistível no coração das
suas criaturas.

3. A versão evangélica de N. T. Wright


O livro O Mal e a Justiça de Deus traz uma abordagem simples e bem pastoral
sobre o problema do mal e do sofrimento. Wright definitivamente não quer debater ou
“responder questões filosóficas complexas” (p.11), não é relevante para ele o que Deus
fala em relação ao mal e sim o que ele fez e faz. Em síntese, a estrutura do livro começa
com uma contextualização das formas concretas de mal no mundo contemporâneo, um
panorama do mal no Antigo Testamento, o mal e o papel de Cristo, o mal extinto na
nova criação e, por fim, como a Igreja pode agir para apressar e antecipar as realidades
da nova criação aqui e agora.

Diferente de Rob Bell, a ênfase essencial de Wright para o problema do


sofrimento não é o amor de Deus - embora também fale bastante -, mas a justiça de
Deus. O mesmo vale em relação a Greg Boyd que defende o surgimento do mal
protagonizado em Satanás, já para Wright, “a força personificada do mal, satanás, é
importante, mas não tanto. A origem do mal permanece um mistério, e, quando aparece,
satanás fica restrito a certos limites” (p.63).

De maneira geral o livro de Wright cumpre seus propósitos e chega a conclusão


que a melhor resposta para o mal está na ampliação da teologia da cruz. Para ele

A história que os Evangelhos tentam nos mostrar é a história de como


a morte de Jesus é a convergência de todas as formas do mal. Sua
morte resulta do maior mal político do mundo, dos jogos de poder que
o mundo disputava e ainda disputa, e também das forças sombrias e
acusadoras por trás dessas estruturas humanas e sociais; forças que
acusam a própria criação de ser má, e assim tentam destruí-la,
enquanto o próprio Criador anseia por redimi-la (p. 73).

Wright diz que os Evangelhos contam uma história que permanece única entre
toda a literatura do mundo, entre todas as teorias e visões religiosas do mundo: “a
história do Deus Criador assumindo a responsabilidade pelo que aconteceu com a
criação, carregando o peso dos problemas dela em seus ombros” (p.84). A chave para
entender o mal e como Deus lidou com ele está no tema do Christus Victor, “a crença
de que sobre a cruz Jesus venceu os poderes do mal” (p. 85).

A teologia da cruz é um desafio para todos aqueles que sofrem, pois o chamado
do evangelho é para “a Igreja implementar a vitória de Deus no mundo por meio do
amor sofredor. A cruz não é apenas um exemplo a ser seguido, é um feito a ser
exercitado, posto em prática” (p.88). A cruz leva a Igreja ao desafio de sofrer no mundo
seguindo o exemplo de Cristo, por outro lado, a ressurreição leva a Igreja ao consolo de
que o mundo será totalmente restaurado na nova criação. Em suas palavras, “o que
Jesus conquistou com sua morte e ressurreição é a base, o modelo e a garantia do
propósito final de Deus: livrar o mundo completamente do mal e estabelecer sua nova
criação de justiça, beleza e paz” (p.92).
A abordagem para o problema do sofrimento, em linhas gerais, é simples. Deus
lida com o mal em Jesus Cristo, o Deus encarnado que absorveu historicamente a queda
em sua vida e a venceu em sua morte. Por isso, aqueles que sofrem podem receber
esperança presente de livrar-se do mal pessoal - o pecado - e serem desafiados para lutar
contra o mal no mundo - a injustiça cósmica - aguardando e apressando o dia da nova
criação, um mundo sem a presença do mal e do sofrimento. Essa é uma posição
eminentemente cristã evangélica na abordagem do problema do sofrimento.

3.1 Pressupostos e possíveis incoerências de N.T. Wright


Em comparação com Rob Bell e Greg Boyd, Wright, certamente é o mais
bíblico e teologicamente embasado. Ele apresenta uma sadia interpretação das
Escrituras, reconhece o problema do mal, descarta meios humanos - como progresso e
evolução - para resolver esse problema e assume que apenas Deus, em Cristo, resolveu
definitivamente o problema do mal e do sofrimento do mundo. Além disso, a partir da
teologia da cruz ele desafia e consola o povo de Deus a crer na promessa de novo céu e
nova terra, o mundo restaurado. Neste sentido Wright é correto e direto ao ponto. No
entanto, em algumas partes do livro ele deixa a desejar e, alguns assuntos, por isso,
considerações quanto ao seu pensamento podem serão analisadas a seguir.
Primeiro, Wright advoga que a Escritura não apresenta nenhuma explicação para
a existência do mal, mas apenas como Deus lida com o mal. Embora realmente a Bíblia
não explique com detalhes o mistério de como surgiu o mal, ela nos oferece uma
explicação possível. Mesmo que Deus não pratique o mal, este só tem explicação na
soberania de Deus, pois Deus não é um observador do surgimento do mal; tudo o que
acontece na história humana estava em seu plano eterno. Wright claramente foge do
problema, rejeita o valor da apologética para discutir tais temas e parece se esquecer dos
textos bíblicos que podem ser utilizados para uma compreensão mais profunda do
surgimento e como Deus governa o mundo debaixo dos efeitos da queda.
Segundo, Wright não se pronuncia abertamente e claramente sobre o juízo final
e o inferno. Embora ele declare não ser universalista, nem aniquilacionista, Wright
definidamente não aceita a ideia de um sofrimento eterno para aqueles que rejeitam o
evangelho de Cristo. Relacionado com esse ponto, Wright não menciona que Cristo
morreu para satisfazer a ira de Deus. Temas como esses, mais ofensivos para a cultura
moderna, tais como inferno, ira de Deus e condenação são raros e sempre nebulosos nos
livros de Wright. Ele não diz o que pensa sobre o assunto embora a Bíblia fale
expressamente sobre ele. Em alguns casos, parece até um agnosticismo em relação ao
destino final dos incrédulos. O que acontece para aqueles que promovem o mal neste
mundo? Wright diz que serão julgados e sofrerão uma desumanização, mas não explica
o que isto significa.
Em seu livro Surpreendido pela esperança, que em vários momentos contribui
para uma interpretação adequada da natureza da nova criação, Wright parece deixar
uma lacuna estranha em seu pensamento. Embora ele não negue o juízo final e alguma
forma de condenação, faz um comentário confuso a respeito de quem supostamente
poderia entrar na nova Jerusalém:

Quando temos em mente duas categorias distintas, os de dentro e os


de fora, descobrimos que o rio da água da vida flui para fora da cidade
e que no meio dele, entre uma e outra margem, está a árvore da vida,
que produz doze frutos e cujas folhas são para a cura dos povos. Há
um grande mistério aqui, e tudo que foi dito sobre o futuro final de
Deus deve deixar espaço para ele. Isso não significa que devemos
lançar dúvida sobre a realidade do juízo final para aqueles que tem
resolutamente adorado e servido ídolos, que nos desumanizam e
desfiguram o mundo de Deus. Significa que Deus sempre nos
surpreende8

A qual surpresa da parte de Deus Wright teria em mente? Aparentemente, as


suas palavras sugerem que aqueles que foram finalmente julgados, um dia, poderão
fazer uma visita surpresa à nova Jerusalém. Em contraste com essa opinião, João
afirma: “Nela, nunca jamais penetrará coisa alguma contaminada, nem o que pratica
abominação e mentira, mas somente os inscritos no Livro da Vida do Cordeiro” (Ap
21.27). Para que a ideia ficasse clara, o termo nunca já seria o suficiente, mas João
adicionou jamais ao nunca. Em outras palavras, em hipótese alguma isso poderá
ocorrer. Deus tem muitas surpresas para apresentar ao seu povo em relação à nova
Jerusalém, mas certamente a salvação de incrédulos após o juízo final não faz parte
delas.

8
WRIGHT, N. T. Surpreendido pela esperança. Viçosa: Ultimato, 2009, p. 200.
Terceiro, Wright utiliza expressões estranhas quando analisa os propósitos de
Deus na história. Ao explicar como Deus agiu no Antigo Testamento para resolver o
problema do mal, o autor diz que “Deus segue um plano ousado e arriscado que o
envolve em tantas ambiguidades” (p. 68). Deus certamente usa contingências e fatos
inusitados para concretizar seus propósitos, mas eles nunca são arriscados, pois Deus é
todo sábio, seu plano é perfeito e nada do que ele decidiu pode ser frustrado.
Expressões deste nível colocam a destreza do autor em dúvida ao abordar o assunto.
Outra coisa que incomoda na leitura de Wright são duas digressões infrutíferas.
Por um lado ele apresenta um grande problema a ser resolvido, as teses e abordagens
erradas para solucioná-lo, e por fim, dá voltas e voltas para repetir o que já tinha
respondido no prefácio do livro. Além desses aspectos, poder-se-ia falar de alguns
equívocos de Wright quando ele confronta algumas “teorias da expiação” (p.67, 81-83).
Aqui claramente ele faz referência a superioridade da Nova Perspectiva de Paulo,
todavia, não será feita nenhuma análise de sua posição a esse respeito, já que esse
assunto foge totalmente do escopo temático deste estudo.

4. Uma proposta teológica e pastoral sob uma perspectiva reformada


Após uma análise de três abordagens diferentes sobre o problema do sofrimento,
uma universalista, outra do teísmo aberto e a última do evangelicalismo clássico, a
próxima abordagem pastoral para o problema do sofrimento se constituirá numa
perspectiva pessoal calcada nos princípios da fé reformada. Com o objetivo de oferecer
uma resposta bíblica e pastoral para o povo de Deus, seis elementos podem constituir tal
resposta:
Em primeiro lugar, a Escritura ensina que os crentes devem se indignar sempre
com a maldade, lutar e orar pela justiça no mundo. Jesus ensinou que felizes são aqueles
que tem fome e sede por justiça (Mt 5.6). Ele deu a missão de ser sal da terra, isto é,
impedir o apodrecimento da sociedade através das obras de justiça. Paulo ensina a orar
pelas autoridades para uma nação ter vida mansa e tranquila (1Tm 2.1-2). João, no livro
de Apocalipse, insere uma oração dos crentes mártires que quando vão para o céu
continuam pedindo a Deus para fazer justiça na terra (Ap 6.10). A Igreja deve orar
sempre a Deus como o profeta Habacuque: “Até quando, Senhor?” (Hc 1.2) para que
Deus faça justiça na terra. O mal é mau, e deve ser sempre encarado de modo sério pelo
seu povo.
Segundo, os autores bíblicos sugerem que Deus está misteriosamente por trás
dos atos bons e maus dos seres criados. Por um lado, o texto sagrado apresenta o mal
como uma categoria perversa a ser vencida e, por outro lado, o descreve como uma
coisa que jamais esteve fora de controle — Deus está no controle, inclusive do mal. Ele
nunca é pego de surpresa por nada, pois até a existência do mal faz parte de seu plano
misterioso para a história humana (Is 45.7). O poeta Davi diz figuradamente que Deus
não apenas sabe tudo o que acontece, mas que escreveu e determinou toda a história da
humanidade em um “livro” na eternidade (Sl 139.16). Deus está por trás de todas as
ações boas dos homens. Se ainda há bondade neste mundo marcado pelo sofrimento é
porque Deus continua fazendo sua luz brilhar sobre a terra.
Isso implica que até os atos maus dos seres criados estão debaixo do governo
soberano de Deus. Isso não significa que Deus pratica o mal, mas que até o mal foi
decretado por ele. Tudo o que acontece tem propósitos, até os maus e as calamidades
(Pv 16.4). O profeta Amós diz que nenhum mal acontece à cidade sem que Deus o tenha
feito (Am 3.6). Como Deus faz isso? Ele pode julgar nações rebeldes às vezes – nem
sempre é assim – com catástrofes e “solta” a humanidade para que viva de acordo com a
sua própria maldade (Rm 1.24,26). É certo que o ser humano já nasce atraído pela
“força gravitacional do mal”, num estado queda livre (Sl 51.5), porém, Deus muitas
vezes, como expressão de juízo, “solta” a humanidade para fazer o que ela
potencialmente pode fazer. Além disso, se até as contingências da vida como um pardal
caindo de uma árvore e o número dos nossos fios de cabelo estão sob o controle
soberano de Deus (Mt 10.29-30), que se dirá do sofrimento humano?
Deus nunca é pego de surpresa pelo mal, ele mesmo decidiu inserir,
misteriosamente, o mal na história humana. Da mesma forma que um escritor só pode
saber da sua história se antes ele escrevê-la, Deus só sabe todas as coisas porque ele
escreveu e planejou todas as coisas que acontecem (Sl 139.16). Em outras palavras, até
o mal faz parte do plano de Deus para a história humana. Isso significa que, no final das
contas, todos os atos bons e até os atos maus da humanidade são governados, de um
jeito difícil de entender, por Deus (Dt 8.17,18; Pv 16.4, 33; Am 3.6). Alguns, por isso,
podem contestar: “se Deus inseriu o mal na história, ele então, é essencialmente mal.”
Porém, mesmo a Bíblia afirmando que o mal faz parte do plano de Deus (Isaías 45.7)
ela também diz que Deus é bom (Sl 34.8). Como resolver este aparente problema?
Terceiro, os autores bíblicos descrevem Deus como um ser perfeitamente bom
apesar de o mal estar incluso da história humana. Embora o mal esteja misteriosamente
em seu plano para a história, Deus nunca força ninguém a ser mau, os seres humanos
praticam o mal porque agem de acordo com a sua própria natureza, a qual está inclinada
como a gravidade para a queda. Deus é sempre bom (Sl 34). Ele odeia o mal (Sl 5.4),
não pratica o mal (Jó 34.10), ama o bem (Sl 33.5). Todas as coisas cooperam de alguma
forma para o bem daqueles que o amam (Rm 8.28). Assumindo que Deus não é mau,
nem pode praticar o mal, ele faz com que o mal em seu plano seja praticado apenas
pelas suas criaturas – especialmente anjos e humanos. No entanto, as criaturas não são
robôs ou marionetes; nem são forçadas brutalmente por Deus, pelo contrário, elas
escolhem o mal livremente de acordo com as vontades do próprio coração. Existe algum
tipo de compatibilismo entre a determinação de Deus e a livre agência humana. Um
exemplo claro disso é o plano do próprio Deus de entregar seu filho à morte e ao
mesmo tempo sua execução ter sido praticada pela ação livre e perversa dos homens
(Atos 2.23 e Atos 4.27-28). Neste sentido, Deus não é mau, pois apenas suas criaturas
que caíram em pecado executam a maldade, desta maneira eles são os únicos culpados
pelos seus atos, pois obedeceram livremente os impulsos de sua própria natureza.
Quarto, a Escritura sagrada narra que Deus reverteu o problema do sofrimento
por meio de seu próprio sofrimento. Algumas pessoas perguntam: "Por que Deus
permite que coisas ruins aconteçam com pessoas boas?" Bem, ele permitiu isso uma
única vez, e Cristo ainda se ofereceu voluntariamente. Na maior parte das vezes Deus
permite que o mal recaia sobre seres maus. Portanto, o registro bíblico convida seus
leitores a um relacionamento com um Deus que escreveu a mais horrível história de dor
e sofrimento na própria história de Jesus. O apóstolo Pedro pontua que Deus, o Pai, já
havia planejado derramar o sangue de seu filho antes da criação do mundo, isto é, antes
do surgimento do mal (Pd 1.19-20).
De fato, Deus não tem um Plano B. Ele ama o seu povo e, por isso, não se
esquiva do mal, ele envia o remédio para curar o mal do mundo: seu próprio Filho.
Jesus assume o mal em sua própria carne, pois ele é a resposta de Deus para resolver o
problema do mal. Deus entrega seu próprio filho à morte para vencer o mal praticado
pelo mundo. Deus não tem prazer no sofrimento de ninguém, por isso ele vem em carne
e osso para vencê-lo. A cruz é a melhor explicação de como Deus resolveu o problema
do mal porque nela ele mesmo assume a injustiça, a dor humanas e pode, então, revelar
o seu maravilhoso amor a todas as nações. Ele tomou sobre os seus ombros as dores do
mundo, como diz Isaías “pelas suas pisaduras fomos curados” (Is 53.4-5).
Quinto, os autores bíblicos afirmam que Deus reverte até o mal em bênçãos para
a vida diária do seu povo. A dor, por pior e terrível que seja, também tem por detrás um
propósito pedagógico. O sofrimento, o pecado e a injustiça são maus, revoltantes e
tristes de lidar, porém, Deus os usa para ensinar o seu povo a ter paciência e
perseverança (Tiago 1.3-4), para capacitar, consolar e fortalecer pessoas (2Co 1.3-7),
para uma intimidade mais profunda com ele (Jó 42), para provar a verdadeira fé (1Pe
1.7), para disciplinar seus filhos (Hb 12.7-11), para julgar os maus durante a história (Dt
28.15-68), para fazer os eleitos pensarem mais na glória futura da vida com ele (Rm
8.18), para manifestar a sua beleza entre os seres humanos (Jo 9.1-3). Como diz um
poema anônimo: “Tragédias reúnem nações. Vitórias isolam vencedores. A saúde às
vezes me faz um deus, só a dor me torna mais eu.”
Sexto e último, a expectativa dos autores bíblicos é a de que Deus irá restaurar
esse mundo destruindo para sempre a presença do mal. Deus promete que um dia o seu
povo viverá com ele em pleno amor e totalmente livre de qualquer forma de mal. Deus
irá restaurar esta terra da sua atual corrupção (Rm 8.21). O mundo que hoje se vê será
um lugar esplendoroso, radiante e perfeito. Um mundo sem terremotos, tsunamis,
catástrofes, males, maldições e homens maus. Nunca mais se ouvirá falar de luto,
câncer, AIDS, pobreza, morte, dor ou guerra. Jesus já conquistou na sua morte e
ressurreição a vitória contra o sofrimento, por isso ele é digno e irá enxugará dos seus
todas as lágrimas (Ap 21.1-8).

Considerações finais
O objetivo deste artigo foi avaliar três abordagens pastorais de autores
renomados no meio popular e acadêmico no que diz respeito ao problema do
sofrimento. A partir das análises, foram apresentadas as conclusões teológicas e
pastorais dos referidos autores, seus pressupostos, possíveis inconsistências lógicas e
inadequadas apropriações do texto bíblico. Finalmente, foi proposta uma abordagem
para a teodiceia de acordo com os fundamentos da cosmovisão reformada.
Nunca é sábio julgar a obra do Criador antes dele mesmo dizer a última palavra.
A partir de uma ótica cristã e reformada, este artigo alega que Deus tem o mosaico da
história humana em suas mãos terminado. Embora aos olhares humanos a história
pareça ser um quebra-cabeças repleto de espaços vazios e peças aparentemente
deslocadas, a perspectiva bíblica continua insistindo que Deus segue os seus planos à
risca. Mesmo as peças mais escuras da história humana são parte do cenário da beleza e
infinita glória do eterno Deus.
Sem abrir concessões a respeito de seus atributos e de seu plano eterno para a
história, a mensagem bíblica propõe uma atraente e segura esperança de que este mundo
será finalmente restaurado e liberto das manifestações do mal que ainda atuam na
história. Por essa razão, os redimidos, a despeito das dores que ainda experimentam no
presente, podem desde já descansar nas promessas de Deus, na sua muita bondade e
amor inigualável.

Referências bibliográficas

BELL, Rob. Love Wins: A book about Heaven, Hell and the Fate of Every Person Who
Ever Lived. New York: Harper One, 2011.

BOYD, Gregory. God At War: The Bible and The Spiritual Conflict. Downers Grove,
IL, InterVarsity Press, 1997;

______. Is God to Blame? Beyond Pat Answers to the Problem of Suffering. Downers
Grove, IL, InterVarsity Press, 2003.

______. Satan and the Problem of Evil: Constructing a Trinitarian Warfare Theodicy.
Downers Grove, IL, InterVarsity Press, 2001.

WRIGHT. N.T. O Mal e a Justiça de Deus: Mundo injusto, Deus justo? Viçosa:
Editora Ultimato, 2009.
________. Surpreendido pela esperança. Viçosa: Ultimato, 2009.

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