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Acerca do pensamento de

Giovanni Pico Della Mirandola

A Oratio de Giovanni Pico della Mirandola, Conte


di Concordia e della Mirandola, é talvez o mais
famoso e conhecido texto do primeiro momento do
Renascimento. O seu autor, figura verdadeiramente ex-
cepcional, considerado em Itália como o humanista mais
sábio, mais rico, jovem e belo do seu tempo e), tem sido
visto, de facto, como um dos mais notáveis representantes
do Humanismo Renascentista.
Com efeito, a sua figura aparece-nos envolta num halo,
misto de mistério e de admiração, de reverência e de
veneração. Para tal contribuiu certamente um conjunto
de circunstâncias de que podemos relevar a sua perso-
nalidade fascinante, o seu «charme», aliado a um génio
polifacetado, e uma vida curta e trágica, mas preenchida,
interrompida por uma morte prematura aos 31 anos.

e) Cf.José Vitorino de Pina Martins,jean Pie de la Mirandole. Un


portrait inconnu de l'humaniste. Une édition três rare de ses conc/usions.
Paris, P.V.F., 1976, p. 16.
DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM IX
VIII GIOVANNI PICO DELLA MIRANDO LA

Giovanni Pico foi um dos homens a quem os vindouros lhor compreensão da Oratio, de que damos a tradução
reconheceram a marca do génio, devido à profundidade da sua redacção. Hoje, com os nossos olhos de homens
das suas intuições e às circunstâncias de que colheu os contemporâneos, preocupados em êompreender a reali-
bons e os maus frutos. Tudo isto, no entanto, concorreu dade factual e espiritual das épocas que nos precederam,
para uma consolidação de uma sua imagem um pouco tão aproximativamente quanto possível, encontramo-nos
fantástica, trabalhada pela fantasia do tempo. Porém, perante este texto que em 1486 se constituía como um
se esta é uma visão que se impôs, forjada na lenda e desafio para a sua época e que nos aparece, em muitos
na tradição factual, a que não escapa a efeméride de aspectos, de plena actualidade.
uma cena de amor, envolvendo rapto e fuga seguida Giovanni Pico della Mirandola é uma figura exemplar
de arrependimento e vida austera, não deixa de ser do Humanismo renascentista e este seu discurso, que mais
verdadeira e mais real, decerto para os que se abeiram tarde passou a ser conhecido com o título de De Hominis
da sua obra, a sua imagem de homem extraordinário, Dignitate, é sem dúvida alguma um dos textos fundamentais
devido à sua precocidade, dedicado ao estudo, pensador para uma compreensão, quer do seu pensamento, quer
profundo e exigente, seguro quanto aos seus pontos de da época em que viveu. Se com P. Kristellerí") podemos
vista acerca da filosofia e disposto a defendê-los median- dizer que o Renascimento foi mais uma época de fermen-
te uma argumentação clara e franca. Muito claramente tos que de sínteses, então, a Oratio surge-nos como uma
assume-se, tal como Marsilio Ficino, filósofo de profissão, obra em que esses fermentos estão paradigmaticamente
para quem a verdade filosófica é, sem dúvida, um valor patentes. Como refere Eugenio Garin, esta obra é o ma-
a salvaguardar. nifesto do Renascimento í") mas, além disso, é também,
Numa leitura atenta dos textos, encontramo-nos peran- em nosso entender, e de um ponto de vista filosófico, um
te uma dupla imagem de Pico, onde não há contradição elegante discurso e elogio da filosofia, enquanto esta é
ou exclusão, mas complementaridade: com efeito, é só um discurso da razão, apontando, no seu estatuto, para
aparente a oposição entre uma sua faceta de homem certa autonomia, se bem que sempre a filosofia esteja
apostando numa filosofia da acção e uma atitude que o dependente da teologia, porque se abre a uma realida-
enquadra na mística, enquanto homem da contemplação. de que a supera no plano das fundamentações últimas.
Se o homem na sua dimensão terrena é dignificado e Relativamente à teologia, a filosofia é propedêutica, mas
se a busca da felicidade é o horizonte do seu agir, não já não é ancilla.
é menos verdade que dessa felicidade terrena faz parte
a relação do homem com Deus, e esta sua preocupação
resolve-se muitas vezes, no seu próprio itinerário, numa
adesão a uma mística da luz.
(2) Cf. Paul Oskar Kristeller, Concetti rinascimentali dell'uomo ed
Não é nossa intenção apresentar aqui um ensaio acerca
altri saggi. Florença. La Nuova ltalia, 1978, p. 132.
do seu pensamento, mas tão-só apontar aqueles aspectos e) C. Eugenio Garin, Opere. De hominis dignitate. Hectaplus. De
da sua reflexão, da sua biografia, por vezes do ambiente ente et uno. Adversus astrologiam divinatricem. Florença. Vallecchi,
e da época em que viveu, que podem ajudar a uma me- 1942, vol. I1I, p. 23.
x GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM XI

Neste texto, Giovanni Pico alude bastas vezes a uma ornamento em detrimento de questões mais fundamentais
ratio philosophica, a par de uma ratio theologica, sem que que a filosofia com toda a simplicidade coloca.
entre elas se estabeleça uma relação de dependência, Do mesmo modo que o Humanismo Renascentista pode
de subordinação uma à outra, mas antes de coopera- ser considerado um processo complexo, de aspectos muitas
ção, de harmo,nia, para usar a terminologia do autor de vezes contraditórios, difícil de reconduzir a um momento
«concórdia». E clara a preocupação em reivindicar um linear de explicação, também a problemática filosófica
lugar próprio para a filosofia, sendo esta um investigar que o nosso autor nos apresenta é complexa, trabalhada
as causas dos processos da natureza, a razão do universo a partir de uma multiplicidade de vias, de explorações,
e do homem, os conselhos de Deus, enfim, os mistérios que só em parte, no entanto, explicam o seu itinerário
do céu e da terra. Tal tematização está ligada ao novo filosófico. Seguindo Cesare Vasoli, somos levados a dizer
lugar conferido ao homem no universo, está ligada à que a unidade da época em que viveu reside na pertença
dignidade do homem, diferente da concepção de homem a uma única grande experiência cultural, muito variada
na Idade Média, de que se distancia conscientemente, e até mesmo contraditória nas suas saídas, quanto rica de
embora possua, assumidas ou não, muitas raízes desse influências decisivas para a história comum da civilização
mundo medieval. europeiaf"). Tal consideração aplica-se bastante aproxima-
A Oratio situa-se, contudo, de modo inequívoco no tivamente à figura do Conde della Mirandola, de quem
horizonte da modernidade, embora nela esteja implica- apresentamos em seguida breves traços biográficos.
do muito de conservador, a par de aspectos claramente
inovadores, no contexto do que foi a riqueza transbor-
dan~e da sua época, isto é, um aspecto não se podendo Traços biográficos
deshg~r do outro senão por um processo lógico, ou seja,
exclusivamenu- analítico. Assim sendo, a sua meditação Giovanni Pico della Mirandola, Conte di Concordia,
filosófic~ aparece-nos como um reflexo exemplar do nasce em Mirandola, Itália setentrional, em 24 de Feve-
Humamsmo Renascentista, não um Humanismo apenas reiro de 1463, e morre em Florença, em 17 de Novembro
preoc~pado com o cultivo das humanidades enquanto de 1496(5).
estas sao consideradas disciplinarmente, mas envolvendo Representante da nobreza do Norte da Itália, a sua
também o conceito de humanismo como valorização e formação de humanista não é toscana, mas desenvolve-
promoção dos valores do homem. Giovanni Pico não é um
humanista apenas preocupado com questões filológicas,
mas sobretudo com questões filosóficas; daí a sua polémi-
ca anti-retórica, mantida com Ermolao Barbaro e à qual (4) Cf. Cesare Vasoli, Imagini umanistiche. Nápoles, Morano,
f~remos adiante uma breve referência, para sublinhar a 1983, p. 5. .
(5) Cf. Eugenio Garin, Ritratti di umanisti. Florença, Sansom,
diferença que o nosso filósofo estabelece entre sapiência 1967, pp. 185-217,onde o autor nos apresenta a figura de Giovanni
e eloquê~cia, criticando num certo humanismo, de que Pico della Mirandola. Deste estudo colhemos alguns dados para
Barbaro e um dos representantes, o gosto excessivo pelo elaborar e traçar a sua biografia.
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XII GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA

-se nos grandes centros da região em que nasceu: Bo- o exemplo de uma cultura laica, que despontava agora,
lonha, Pádua, Ferrara, Mântua, Pavia, só mais tarde se que não punha em questão a cultura religiosa, mas a par
estendendo a Paris e Florença. desta desenvolvia outras áreas de interesses (6).
De condição nobre, sua mãe, senhora muito piedosa Entre 1480 e 1482, encontramo-lo em Pádua, onde
e muito ligada a este filho, destina-o à vida eclesiástica e estuda filosofia e teologia e onde entra em contacto
nesse sentido, segundo o costume da época, proporciona- com o pensamento escolástico - São Tomás de Aquino,
-lhe a formação necessária à obtenção de um alto cargo Escoto, etc. Aqui, num ambiente aristotélico contacta
na Igreja. Assim, com catorze anos, em 1477, é enviado com Nicoletto Vernia, peripatético averroísta, facto que
para Bolonha a fim de aí estudar Direito Canónico. É será importante para a sua posterior actuação filosófica.
desta estada bolonhesa e, após dois anos de estudo com A escola de Pádua, que se mantém fiel a Aristóteles, inter-
vista à sua preparação para jurista, que descobre que pretado segundo a tradição averroísta, sente, no entanto,
o seu caminho não é esse. Antes se sente atraído pela a necessidade de recuperar este filósofo, numa leitura já
filosofia, enquanto saber universal, fundamentador e não medieval mas humanista e como forma de contrapo-
fundante, que propicia a obtenção de um conhecimento sição ao cada vez maior impacto que a filosofia de Platão
mais aprofundado acerca da realidade humana e acerca vinha a adquirir nos círculos doutos da época.
das coisas do mundo. Esta atitude é assumida, por exemplo, por Ermolao
Tal entusiasmo pela filosofia leva-o a abandonar Bolo- Barbaro, que o nosso filósofo não encontra em Pádua
nha - centro universitário escolástico de grande tradição nesta sua estada, mas de quem foi discípulo e amigo e
no domínio das leis - e a dirigir-se a outros centros que com o qual manteve relações de concórdia-discórdia,
lhe permitissem adquirir certa formação neste seu outro não obstante a mútua admiração. Nesta cidade conhe-
e novo interesse. ce um outro humanista, Elia del Medigo, também seu
Encontramos Giovanni Pico em 1479, em Ferrara, onde mestre e amigo, douto hebreu, tradutor e comentador
durante dois anos, sob a orientação de Battista Guarino, de Averróis e que presidia à Escola Talmúdica de Itá-
grande humanista, lê os autores gregos e latinos. Ferrara lia, homem profundamente religioso, que traduziu e
era, nesta altura, uma cidade prestigiada pelo seu labor compendiou textos filosóficos para Pico, fornecendo-
endereçado para o estudo das humanidades. Nela se -lhe preciosos elementos acerca da filosofia da Cabala.
veiculava o interesse por uma nova forma de cultura. Nas É este, verdadeiramente, o momento de iniciação do
aulas de grego e de latim, entre muitos outros autores nosso autor na mística de Averróis, portanto, de apro-
antigos, liam-se os originais de Platão e Aristóteles. Battista fundamento do pensamento árabe. Foi também esta a
Guarino foi um dos que influíram efectivamente na reno-
vação do saber em Ferrara, mas tendo também, em termos
da Europa da época, contribuído para a constituição da
escola, tal como o Quattrocento italiano a concebeu, isto
é, diferente da escola medieval, porque não profissional (6) Acerca da figura de Battista Guarino cf. Idem, ibidem.
e não técnica. Guarino aparece-nos essencialmente como pp.69-106.
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altura em que mais se dedicou a um conhecimento da em veicular um estilo elegante e leve por oposição ao estilo
filosofia hebraica. pesado e um pouco rude, no seu entender, dos filósofos
Ferrara primeiro, Pádua em seguida, são os itinerários bárbaros, é uma referência obrigatória do itinerário filosó-
da sua primeira formação humanística e do seu conhe- fico do nosso autor. Porém, nem sempre entre os dois se
cimento do pensamento escolástico. manteve a concórdia. Pico, em nome da filosofia, sente a
Em 1484, dirige-se a Florença e entra em contacto necessidade de se distanciar do humanismo do professor
com o círculo platónico que tem como seu mecenas paduano, demasiadamente centrado no domínio do filo-
Lourenço, o Magnífico, um Medici, patrono de artistas lógico, depreciativo no que respeita ao discurso filosófico,
como Miguel Ângelo e de intelectuais como Marsilio privilegiando a mera erudição e eloquência, procu-
Ficino, Angelo Poliziano e amigo e defensor incansável rando mais a convicção mediante a arte da palavra do
do próprio Conde della Mirandola. Encontra, então, que a obtenção da verdade. Ora, a possibilidade de uma
Marsilio Ficino, neoplatónico, e tal acontecimento será demarcação do nosso filósofo relativamente a Barbaro é-
determinante na sua conversão ao platonismo florentino. lhe proporcionada por este último, ao escrever-lhe uma
Reencontra Angelo Poliziano, conhecimento e amizade carta na qual afirma: «Duos agnosco dominos, Christum et
nascidos numa sua breve estada em Mântua. Poliziano litteras». E com esta acção quer vincar a relevância e a
era na altura, em Florença, preceptor dos filhos de Lou- supremacia da elegância estilística, considerando-a quase
renço de Medici. A amizade entre os dois foi constante como um fim em si mesma, facto que o leva também a
e durou até à sua morte. dizer que não é homem quem não é literato.
A Academia, de que Marsilio Ficino é a alma, suscita a A esta carta Giovanni Pico responde com a referida
sua reflexão sobre Platão e leva-o a intuir algo que será um Carta a Ermolao Barbaro, onde, se bem que afirme não
dos tópicos centrais da sua meditação filosófica, ou seja, o desprezar as letras, antes pelo contrário, coloca-as no
acordo, ao limite, entre Platão e Aristóteles, aspecto que é entanto ao serviço de algo mais fundamental e que iden-
o vestíbulo de uma sua tese central, a saber: a questão so- tifica com a verdade, cabendo essa procura da verdade
bre a concórdia. Além disso, a sua frequência da Academia à filosofia, numa atitude de acordo com os dogmas do
despertou-o para toda a problemática acerca dos mistérios Cristianismo. Nesta Carta, a sua preocupação consiste,
platónicos e herméticos, de que Marsilio Ficino era o na essência, em fazer uma defesa do estatuto da filosofia
tenaz. estudioso. Tais temas atraíram-no de tal modo que e da dignidade do filósofo. Esta sua resposta, em 1485,
daqui resultou a sua convicção de que a verdade se oculta provoca o esfriamento e um pouco de tensão entre os
por trás dos véus dos enigmas. É desta estada florentina a dois homens.
redacção, em 1485, da célebre Carta a Ermolao Barbaro, de De 1485 a 1486, encontra-se em Paris e aí confirma
genere dicendi philosophorum, onde defende os filósofos e decididamente a sua vocação filosófica,já há tanto tempo
a filosofia escolásticos. entrevista em Bolonha e que o levou a desistir dos seus
Ermolao Barbaro, humanista de orientação aristotélica, estudos como jurista e atinentes à carreira eclesiástica.
professor na universidade de Pádua, subtil jurista e filólo- Bolonha, Ferrara, Pádua, Florença, Paris, são os mo-
go, isto é, defensor das belas letras e, portanto, interessado mentos necessários para a emergência, ao nível explicativo,
XVI GIOVANNI PICO DELLA MIRANDO LA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM XVII

do seu filosofar, são os itinerários de uma formação apu- A redacção da Oratio


rada que, para além de lhe proporcionarem um conhe-
cimento do mundo da escola, lhe vão desvelar também Vindo de Paris, de volta à Itália, em 1486, em Fratta,
o mundo do novo saber que se está a constituir, ou seja, perto de Peruggia, Giovanni Pico della Mirandola redige
o conhecimento veiculado pela cultura humanística que, a sua obra mais original, se tivermos em consideração os
como por exemplo em Florença, se desenvolvia e crescia contextos complexos da época em que viveu, e isto devido
à margem da Universidade. à sua concepção. Em tal trabalho, propõe-se reunir todos
O Conde della Mirandola finalmente é um huma- os conhecimentos que até então tinha adquirido. Estamos
nista, estudou grego, hebraico, árabe, é um defensor dos perante uma espécie de relatório, redigido segundo o
autores clássicos, sendo significativa no seu pensamento método escolástico parisiense, portanto, organizado em
a evocação dos autores antigos gregos e romanos, assim teses, justificativo do seu labor filosófico, e onde se ex-
como é relevante ter possuído uma das maiores biblio- prime mais um aspecto característico do Renascimento,
tecas do seu século, aspecto nitidamente renascentista, ou seja, a preocupação em veicular um conhecimento
conservando-se ainda duas cópias do seu inventário, enciclopédico. Deste modo, em novecentas teses, também
uma na Biblioteca Vaticana, outra no Arquivo de Mode- chamadas conclusões, apresenta quer o seu pensamento
na. Mas, se bem que receptivo relativamente ao novo, pessoal, quer o pensamento dos que antes dele deram
preocupou-se em recuperar não só esse passado grego e um contributo para a filosofia.
romano como também o medieval. Tal facto justifica-se Nas primeiras quatrocentas teses, que possuem um
a partir do seu convívio com os autores medievais que, carácter histórico-crítico, refere-se à filosofia dos pensa-
como refere a Ermolao Barbaro, na sua carta, durou seis dores que o precederam, como, por exemplo, Pitágoras,
dos seus melhores anos, tendo estudado Tomás, Escoto, Platão, Aristóteles, Duns Escoto, São Tomás de Aquino,
Alberto e Averróis, entre outros. Alexandre de Afrodísia, Averróis, Avicena, os Cabalistas,
Cerrou-se assim o ciclo de uma formação excepcional. Mercúrio Trimegisto. As outras quinhentas teses expri-
Adepto do orientale lumen, mas, simultaneamente, preocu- mem o seu pensamentot").
pado em salvar as conquistas do passado próximo, porque
a verdade nenhuma filosofia ou escola a possui, possuiu
ou possuirá, constituindo-se cada uma como um ponto de (') Giovanni di Napoli, Giovanni Pico delta Mirandola e la
vista sobre a verdade. Daí a necessidade de nada deixar problematica dottrinale dei suo tempo. Roma, Ed. Ponteficci, 1955.
Neste estudo, di Napoli chama a atenção de um modo muito
de fora, tudo analisar, tudo procurar compreender, nesse
interessante para o facto de verdadeiramente não se poder falar em
esforço permanente de aproximação a uma verdade que fontes acerca do pensamento do nosso filósofo, na medida em que,
onticamente se dá ao homem como parcelar, porque a ter de se considerar as fontes, estas seriam todos os documentos
metafisicamente transcendente. que constituíam a biblioteca do seu tempo. Isto não significa que
Pico não preferisse certos filósofos em detrimento de outros, mas
em geral estimava todos com certa reserva declarada relativamente
aos representantes da astrologia judiciária que considerava não
filósofos, mas charlatães.
XVIII I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM XIX

Ora, estas novecentas teses foram escritas com a in- espírito exaltado e nervoso, Inocêncio VIII condena em
tenção de promover, em Roma, em 1487, uma discussão bloco as novecentas teses. Devidoa este facto, o Conde
filosófica pública, tão alargada quanto possível, que devia de Concórdia foge para França, onde temporariamente
reunir os filósofos de todas as tendências, unidos num permanece prisioneiro, regressando em 1488 a Itália,
esforço comum de aproximação à verdade e de promoção sob a protecção de Lourenço, o Magnífico. Alexandre IV,
da concórdia entre todas as doutrinas. Pico propunha-se o papa que sucedeu a Inocêncio VIII, concede-lhe, em
discutir acerca de tudo, isto é, de omni scibili. 1493, a absolvição por heresia.
Tal propósito suscitou imediatamente opositores, que Desde 1488, até ao momento da sua morte em 1496,
viam num projecto como este um gesto extravagante, ou em Florença, talvez por influência do seu grande amigo
um sinal de orgulho desmedido, por parte de alguém Savonarola, que em 1489 foi chamado a Florença por
que era ainda muito jovem para poder sustentar uma Lourenço de Medici, por seu conselho, Giovanni Pico de-
disputa destas. Porém, as críticas mais contundentes e que dica-se a uma vida austera, meditando e alargando os seus
determinaram a sorte da disputa que nunca se chegou a conhecimentos religiosos. Já não é o homem impetuoso
realizar, foram as que apontaram como estando eivadas e irrequieto, suscitador de polémicas, as suas exigências
de heresia algumas das suas teses. De facto, algum sabor religiosas e morais provocam uma reflexão mais profunda,
heterodoxo estava contido em concepções como aquelas embora não lhe tivessem apagado a insaciável ãnsia de
em que fazia referência à defesa de Orígenes ou à negação saber. Em 1496, morre em Florença. Nesse mesmo ano,
da eternidade das penas do Inferno. Desagrado suscitou a Oratio é publicada pelo seu sobrinho Gian Francesco
também a sua defesa da magia e da Cabala. della Mirandola, postumamente, e precedida de um
Ermolao Barbaro, nesta oposição à disputa romana, assu- breve prólogo de apresentação onde procura reabilitar
me um papel de contraditor moderado, considerando-o um a figura do tio.
sofista e comparando-o a Górgias, pronunciando-se contra
este estilo de discussões públicas, inúteis e vãs, porque não o sentido da Oratio
conduzem a uma obtenção da verdade e apenas visam a
obtenção de prestígio e de honras. Quando nos aproximamos do pensamento de um
A Oratio, como se pode verificar, foi concebida, não filósofo como o do Conde della Mirandola, se queremos
como uma obra autónoma, mas como a introdução ne- detectar qual o seu contributo para a história da filosofia,
cessária à abertura da disputa romana e tendo já presente é necessário atendermos à génese do seu pensamento.
algumas das críticas apontadas às conclusões. Nesse sentido, o estudo da sua formação, que sumaria-
Primeiramente, treze teses da segunda parte, portanto, mente foi apresentada nos traços biográficos, constitui
teses em que Giovanni Pico exprimia as suas opiniões, são um elemento que ajuda à compreensão do seu filosofar.
consideradas heréticas. Em sua defesa, escreve a Apologia Porém, e como é evidente, isso não basta e é necessário
(1487), onde retoma temas presentes na Oratio e que ir mais além. O que agora nos interessa salientar, numa
dedica a Lourenço de Medici, seu amigo e fiel protec- análise que se queira filosófica, é o ritmo próprio e
toro Com a publicação desta obra, escrita num estado de peculiar da sua aproximação filosófica, isto é, procurar
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a intuição que deu origem à sua meditação, ou então uma concepção filosófica passada pelo crivo da sua ati-
procurar determinar os centros da sua reflexão. tude crítica, que se propunha não jurar nas palavras de
Eugenio Garin, com muita acuidade, chama a atenção ninguém e, simultaneamente, superar o «saber apenas
para o erro hermenêutico de se procurar fornecer visões de reflexo dos livros».
unificantes da filosofia de Pico, deformando gravemente Será, então, tendo presente este seu ponto de vista,
o seu pensamento. Tomar como aglutinador de todas as que procuraremos referenciar os centros da reflexão
outras problemáticas um só tema é forçar e até mesmo presentes na Oratio. De um modo muito claro, esta está
reduzir a complexidade do seu pensamento, cortar a sua dividida em duas partes, uma primeira que diz respeito
riqueza (8) . à dignidade do homem, uma segunda, que tematiza a
Assim sendo, talvez não interesse tanto procurar a questão da paz filosófica ou concórdia.
intuição original, ou seja, o ponto de partida da sua
reflexão, porque tal metodologia não reflecte o ritmo
do seu filosofar, quanto interrogarmo-nos acerca dos A dignidade do homem
centros da sua meditação, a fim de acedermos ao seu
real processo de filosofar. o problema da dignidade do homem é perspectivado
Tais centros de reflexão encontram-se na Oratio, não em função do lugar central que este ocupa no universo,
de um modo totalmente desenvolvido ou tematizado , ponto de referência de toda a realidade. Daí podermos
mas pelo menos acenados. Assim, não é tanto o jogo de falar em antropocentrismo.
influências que constitui um problema filosófico a deba- Esta preocupação por uma valorização do homem na
ter quanto, numa atitude hermenêutica, colhida numa sua condição terrestre, se bem que encontre no nosso
lição dos textos, a determinação dos temas que permitem autor a sua máxima expressão, não é nova na época,
organizar o seu pensamento. pois já tinha encontrado algumas formas de expressão
Em Giovanni Pico, o recurso a todo o aparato crítico e em autores humanistas, especialmente a tematização de
erudito que a época propiciava, especialmente uma plena Gianozzo Manetti, discípulo de Ambrogio Traversari, que
utilização do retorno aos filósofos antigos e),
constituía celebrou o homem e a sua dignidade, ao acentuar o valor
um pretexto para uma outra visão do mundo, assente da actividade humana, mas só na medida em que esta
sobretudo numa interiorização do já dito ou do já feito, lhe é conferida pelo Criador. Gianozzo não entrevê, no
uma espécie de experiência interior da filosofia, isto é, entanto, o alcance ontológico, metafísico e ético desta
tese. Tal intuição está reservada a Giovanni Pico della
Mirandola.
De facto, no Conte di Concordia, esta questão surge
(8) Cf. Eugenio Garin, L'opera e il pensiero di Giovannni Pico delta
Mirandola, Florença, Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento,
como uma tematização muito mais elaborada, podendo
1964. detectar-se na temática da dignidade do homem a arti-
(9) Acerca da questão do retorno dos filósofos antigos, cf. Euge- culação de três níveis de inteligibilidade: um problema
nio Garin, Il ritorno dei filosofi antichi. Nápoles, Bibliopolis, 1983.
da razão; um problema da liberdade humana; e um
XXII I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XXIII

problema de ser. Dialéctica, ética e metafísica estão aqui Acentua-se assim o predomínio da vontade sobre o
implicadas. saber abstracto, sugestão certamente colhida nas suas lei-
Com efeito, neste seu texto, surge inequivocamen- turas de autores medievais de raiz augustiniana. Tal facto,
te uma afirmação da razão e do seu poder indagador, determina, sem dúvida, que o nosso autor considere que
enquanto envolve uma possibilidade de compreender, esta vontade, que é livre, e que como tal postula a escolha
sendo o filósofo o ser privilegiado por ter como atributo livre, se se quiser realizar numa dimensão de facto huma-
o discernir «com recta razão», e sendo a filosofia carac- na, tem de estar orientada para o bem. O homem não se
terizada como um discurso dessa mesma razão. deve contentar com as coisas medíocres, mas deve aspirar
Ora, é precisamente esta capacidade racional que às mais altas. Há aqui como que um compromisso ético
permite ao homem tomar consciência da sua dimensão diferente do dado ontológico. Encontramo-nos perante
como ser livre. A tematização do antropocentrismo pi- uma ética do poder ser, em que o homem, orientado pela
qui ano vem dada essencialmente a partir da consideração razão e desde que isso seja possível (questão dos limites
da liberdade humana, virada, sem dúvida, para a acção humanos da acção), age com vista à obtenção dos mais
ética, portanto, com alcance prático, mas articulando um altos valores espirituais. Esta é uma outra forma de a
nível ontológico. O homem é o ser mais digno da Criação sua superioridade se expressar relativamente a todos os
de Deus, porque foi colocado no centro do universo e outros seres criados.
porque de tudo quanto foi criado ele possui as sementes. Mas esta questão da dignidade do homem tem também
Ser ontologicamente de natureza indeterminada, distin- um alcance ontológico. O facto de o homem se constituir
gue-se, por tal facto, tanto do mundo natural como do como um ser de natureza indefinida não apon ta para uma
mundo angélico, de que é o mediador, distingue-se ainda pobreza ontológica, mas para uma riqueza. Porque em si
devido a ser o artífice de si mesmo, de tal modo que o estão colocadas todas as sementes dos seres criados, há
problema da sua natureza não se pode pôr a priori, mas no homem uma superabundância que lhe é conferida
tão-só a posteriori. Enquanto o animal, devido à natureza à partida e que lhe compete, mediante a escolha, fazer
que lhe é dada à partida, só pode ser animal e o anjo só frutificar. Como refere Sante Pignagnoli (10), esta inde-
pode ser anjo, o homem tem quase o poder divino de se finição ôntica, numa linguagem actual, funciona como
constituir segundo aquilo que quiser ser: pode degenerar um pré-reflexivo, um pré-categorial, que tem de ser
até aos brutos e pode regenerar-se até aos anjos, mas a determinado a partir da acção. O homem possui, então,
possibilidade de viver como os animais ou como os seres o poder de se autodeterminar e deste modo coloca-se
espirituais depende inteiramente de si mesmo, isto é, da acima do mundo físico-biológico. Inscreve-se aqui o
sua escolha. Esta tese, para a época, é verdadeiramente problema da responsabilidade moral. De facto, pode-
notável e peculiar, o homem, ser de natureza indefinida,
com a possibilidade de ser tudo, está condenado a escolher,
está condenado à liberdade, por parte de Deus. E porque (lO) Cf. Giovanni Pico delIa Mirandola. La dignità dell'uomo.
tem de escolher, o homem é fautor do seu destino. Eis Introduzione di Fabio Sante Pignagnoli. 2: ed., Bolonha, Patron,
o grande milagre. 1970, p. 36.
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colocando-o ao seu serviço e desvendando os seus mais


mos dizer que há na sua filosofia um predomínio da
arcanos segredos. Tal concepção de magia seria a ante-
filosofia moral, na medida em que esta possui um valor
cessora da ciência experimental moderna e da ciência
terapêutico para o homem. A recondução do homem
tecnológica contemporânea. Daí algumas referências
a Deus dá-se por via ética e a sua liberdade dá-se como
a Pico antecipando intuitivamente a concepção de um
imago Dei: o homem acaba por aparecer como um deus
homem tecnológico, enquanto defensor de uma ciência
terreno (11), necessariamente imperfeito, porque é ape-
de domínio da natureza.
nas reflexo e imagem, isto é, ser à semelhança de Deus
A sua condenação da astrologia, tese a que sempre se
que, no entanto, sempre lhe permanece transcendente.
manteve fiel, inscreve-se, por um lado, numa problemáti-
Eis uma perspectiva metafísica.
ca muito característica do Renascimento, por outro, no
Retomando esta questão da dignidade, parece-nos
enraizamento da liberdade: se se aceitar a tese de que os
útil relacioná-la com outros dois problemas que a Oratio
astros influenciam a vida humana e determinam o dia a dia
aponta e que são relevantes na economia do seu pensa-
do homem, então, o problema da liberdade humana não
mento: são eles a magia e a condenação da astrologia,
teria sentido. Assim, desejoso de a salvaguardar, o nosso
que deu mais tarde origem à polémica antiastrológica.
filósofo opõe-se a todas as fórmulas de ocultismo ou de
O primeiro problema prolonga a questão da dignidade,
astrologia, porque estas teorias acabavam por apontar para
o segundo articula-se com o da liberdade.
um necessitarismo e determinismo do agir humano, que
Referindo-se à magia, o nosso autor distingue uma
a sua concepção ética não podia aceitar. O nosso filósofo
«boa» magia de uma «má» magia, isto é, estabelece a
não nega que exista uma harmonia entre todos os seres
diferença entre uma magia natural, que está ao alcance
do universo, portanto, não recusa a tese de que entre o
do homem e que é considerada louvável, símbolo da sua
mundo dos astros e o mundo humano haja uma relação,
dignidade, porque é o fruto do poder do homem, e uma
o que nega efectivamente é que os astros ten~am de uma
magia de origem diabólica, reprovável, que só é praticada
forma directa o poder de influir nos acontecnnentos hu-
secretamente, porque não dignifica os seus cultores, antes
manos. Com esta sua concepção, opõe-se, quer a Marsilio
os submete aos seus poderes maléficos (12).
Ficino, extremamente sensível e defensor da astrologia,
A boa magia identifica-se com um conhecimento da
quer a todo um ambiente característico do Rena~ci~ento,
natureza que pressupõe a compreensão dos seus segredos
como bem demonstra Cesare Vasoli na sua obra intitulada
e do desfrutar das suas possibilidades escondidas, isto é,
I Miti e gli Astri, onde evidencia precisamente o papel
dos sem; poderes. Tal questão inscreve-se na dignidade
central que a astrologia tinha adquirido neste épocar").
do homem, enquanto ser capaz de encontrar, pela razão,
Por tudo isto, de salientar também a posição inovadora
a íntima harmonia do universo, dominando o seu poder,
deste pensador, que coloca a questãodando-Ihe uma outra

(11) Cf. Idem, ibidem. p. 39.


(12) Cf. Frances Yates, Giovanni Pico delta Mirandola and magic,
«Relazioni», Florença, 1965, p. 134. (13) Cf. Cesare Vasoli, I miti e gli astri; Nápoles, Cuida Ed., 1977.
XXVI I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM XXVII

dimensão a partir da consideração de que a liberdade é A noção de prisca theologia, cuja introdução tem a sua
co-essencial ao homem, mas que os astros não o são. Esta origem em Marsilio Ficino, que a ~escobriu e valorizou,
sua concepção dá origem à redacção, em 1493, da obra trabalha a favor da unidade, na medida em que com
Disputationes Adversus AstrologiamDivinatricem, que envolve ela se quer significar que há uma tradição religiosa
o seu autor em mais uma polémica, obrigando-o, para ininterrupta que liga as religiões mais antigas - recu-
defender a sua tese, a colocar de uma maneira muito ando assim ao seu início com Zoroastro e Trimegisto
clara a relação entre o homem e a natureza. _ à religião cristã, tal como ela se apresentava na época
de Marsilio Ficino. Como elos desta cadeia, teríamos,
dentro de uma tradição e de um esquema apoiado nas
Concórdia teses neoplatónicas, sucedendo aos primeiro, isto é, a
Zoroastro e a Hermes Trimegisto, Aglaofemo, Pitágoras,
A Concórdia ou paz filosófica é também um tema Platão, Plotino, ]âmblico, Proclo e todos os medievais
central de Oratio e podemos considerá-la como um platonizantes. Marsilio Ficino considerava-se o último
dos centros da sua reflexão, talvez aquele que melhor anel desta cadeia. Deste modo se teria transmitido a
corresponde à intenção e aos propósitos desta obra. arcana sabedoria dos Egípcios e dos Caldeus aos Gregos,
O tema da concórdia pode ter diferentes leituras, ou que por sua vez a transmitiram aos vindouros (14).
diferentes níveis de interpretação, no entanto, num Ora, esta concepção de prisca theologia é reelaborada
primeiro momento, ela é suscitada por um problema por Giovanni Pico della Mirandola à luz da sua con-
filosófico que constitui uma antiga preocupação de cepção filosófica, integrando nesta cadeia ininterrupta
Giovanni Pico, ou seja, o acordo, ao limite, entre todos outros filósofos e sobretudo a Cabala, que, segundo a
os pensadores, mesmo dos que à partida parecem mais sua convicção, se harmoniza com o essencial da verdade
se opor. Este acordo foi inicialmente intuído acerca da que o Cristianismo afirma. Porém, este seu interesse pela
filosofia de Platão e de Aristóteles, mas que, embora Cabala, mais do que uma tomada de posição a seu favor,
acenado na Oratio, só mais tarde encontrará a sua plena é sobretudo uma estratégia conducente à elaboração
tematização com a redacção da obra De Ente et Uno, em de uma tese apologética da verdade que o Cristianismo
1490. Esta sua secreta convicção estendeu-se a todos os veicula.
filósofos, a todas as correntes, e a Disputa Romana seria O problema da unidade do pensamento, no Conde
precisamente o lugar privilegiado, no entender do nos- della Mirandola, liga-se ao tema da unidade da verdade.
so autor, para demonstrar esta tese. Pico acalentava a Para o nosso filósofo, a verdade é imutável e universal e,
ideia de, num gigantesco esforço conciliador, promover se assim é, então todas as filosofias se constituem como
a concórdia universal entre todos os filósofos. Ora, tal
concepção pode ser compreendida a partir de várias
instâncias: a de prisca theologia, a de unidade da religião
(14) Marsilio Ficino, Opera omnia, Turim, Botega d'Erasmo,
no Cristianismo, a de unidade do pensamento humano
1962, 2 voll. Cf. voll. 11, p. 1836.
e, por fim, a de unidade da verdade.
XXVIII I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XXIX

uma aproximação à verdade, ou seja, cada uma, à sua atingido pelo diálogo, tal como o concebeu aquando do
maneira, participa da verdade. Toda a relevância conferida projecto da disputa romana. Esta idéia de uma unidade
à tradição filosófica fica, então, aqui justificada. superior justificadora de cada filosofia particular aparece-
A possibilidade de uma conciliação de todos os pensa- -nos como uma ideia reguladora à maneira kantiana.
mentos reside precisamente aqui: a promoção da concór- Para o tempo de Giovanni Pico, tratava-se também de
dia é possível a partir do movimento de recondução de resolver, mediante uma superação, por síntese, um dos
cada pensamento particular à Verdade que é perspectivada grandes contrastes que atravessou, em termos teoréticos,
como Una, Universal e Transcendente. a sua época, ou seja, a oposição entre platonismo e aris-
Esta questão da concórdia ou paz filosófica tem os totelismo, sem cair, no entanto, na posição ficiniana de
seus antecedentes, embora seja o nosso autor aquele que submeter este último ao primeiro, mas antes numa posição
mais alargou o âmbito da noção de concórdia, sinal de de igualdade, de integração e complementaridade.
um espírito irénico e tolerante. Ora, esta atitude - de defensor intransigente do
Se na noção de prisca theologia podemos encontrar acordo e da concórdia entre Platão e Aristóteles - está
uma sugestão que Giovanni Pico colheu, é contudo com na origem, precisamente, de uma interpretação de Gio-
o pensamento de Nicolau de Cusa que maior afinidade vanni Pico como ecléctico ou mesmo sincrético. Entre
esta sua tematização apresenta, embora este autor alemão os defensores da tese sincretística temos, por exemplo, P.
coloque a questão em termos essencialmente teológicos, Kristeltert "). Porém, com outro tipo de argumentação,
e o nosso em termos fundamentalmente filosóficos. a esta interpretação opõem-se Pina Martins e Eugenio
Nicolau de Cusa, na sua obra De Pace et Concordantia Garin (16), que não consideram haver uma posição ecléc-
Fidei, refere-se ao facto de as múltiplas formas e costu- tica ou sincrética no seu pensamento. Para este último
mes segundo os quais os povos adoram a Deus, sob
a forma de uma multiplicidade de divindades, corres-
ponderem à necessidade de, mediante determinações
concretas, se captar uma realidade que verdadeira- (15)Cf.Paul Oskar Kristeller, Quo pensatori del Rinascimento ita-
liano. Milão-Nápoles, Riccardo Ricciardi ed., 1970, pp. 61-79. Este
mente é incaptável e que ao limite se identifica com o autor expressa a opinião a favor de uma consideração sincretista
Deus do Cristianismo. Ora, tal tese exerceu, sem dúvida, relativamente ao pensamento de Pico.
certa influência no seu pensamento. (16)Tanto Pina Martins na sua monografia,já citada, sobre Pico,
como Eugenio Garin, na sua obra fundamental de renovação dos
Este tema da paz, que ganha hoje em dia plena actu-
estudos piquianos, intitulada Giovanni Pico delta Mirandola. Vita e
alidade, quer na sua dimensão ético-religiosa, quer mes- dottrina. Florença, Le Mounier, 1937, reflectem acerca da ques-
mo político-estratégica, faz de Giovanni Pico um autor tão do eclectismo e ou do sincretismo do Conde de Mirandola,
verdadeiramente universal. A paz - núcleo indiscutível considerando que este filósofo supera essas posições. Então o que
há, no pensamento deste autor, é sobretudo a tomada de cons-
da Oratio -, no dizer de Eugenio Garin, é uma espécie ciência de uma pluralidade de pontos de vista, entre si integráveis
de hino à paz doutrinal, ou seja, aposta num acordo de e susceptíveis de uma harmonia superior, tendo como objectivo
fundo e substancial entre todos os pensamentos, filósofos a procura da verdade que se dá como inatingível no plano da
e correntes. Tal facto seria, no entender do nosso autor, investigação humana.
xxx I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XXXI

especialista do pensamento piquiano, tais considerações Procurando aceder ao núcleo significativo do que é
interpretativas são superadas a partir da reformulação a filosofia para o nosso autor, e tal çomo se tem vindo a
da questão: o que está implicado na atitude filosófica de demonstrar, ele centra-se numa reflexão sobre o homem,
Giovanni Pico della Mirandola é, sem dúvida, a tomada acentuando neste a moralidade, mediante uma afirma-
de consciência e a convicção de que é possível integrar ção inequívoca da liberdade humana enquanto esta está
numa busca comum da verdade filosófica e teológica orientada para o bem.
- tarefa que é o objectivo primordial de toda a filosofia A questão fundamental a dilucidar e que aqui está
que seriamente se constitui como tal - uma pluralidade implicada diz respeito ao homem que sabe que tem uma
de pontos de vista, tendo como horizonte a constituição tarefa terrena a desempenhar e que esta está a todo o
de uma harmonia superior, que está para além da parti- momento invadida pelo divino. Há aqui uma revaloriza-
cularidade e limite da cada filosofia concreta. ção do homem apoiada no Studia Humanitatis. Porém, a
Quando Ermolao Barbaro o acusa, na sua célebre tematização de Giovanni Pico rasga os horizontes deste
carta, de traidor, por passar do campo aristotélico para humanismo de cariz predominantemente literário, ao
o campo platónico (como se de uma batalha se tratasse, centrar a reflexão acerca do homem na sua liberdade,
quanto ao confronto das duas posições que apareciam retirando-o da hierarquia neoplatónica dos três mundos:
como extremadas), a resposta do nosso filósofo é muito elementar, celestial e angélico. Graças à possibilidade
clara e já pré-anuncia este ideal de concórdia, ao dizer indeterminada de ser tudo, o homem é nó do universo,
que era como explorador e não como trânsfuga que agora vínculo que une o mundo sensível ao inteligível, microcos-
acedia ao conhecimento dos mistérios platónicos. Ora, mos na acepção de mundo humanizado, metaforicamente
uma tal afirmação vem acentuar e sublinhar a sua atitude tomado como «camaleão», porque «animal de natureza
de conciliador, já também prefigurada no seu propósito vária, multiforme e mutável-I!").
de não jurar nas palavras de ninguém. Esta intuição, que impressionou fortemente a sua
A intuição do nosso autor, relativamente a este problema, época, nasce de uma vivência muito própria e que está
centra-se na convicçãode que a verdade se apura na dialéctica fundada no seu claro optimismo antropológico, presente
dos pontos de vista, constituindo-se cada filosofur concreto e estruturante do seu pensamento e que justifica simul-
como uma aproximação à verdade que, no entanto, transcende taneamente o valor que confere à dignidade do homem
a particularidade de cada aproximação. e a sua convicção de que a paz ou concórdia como mo-
mento de afirmação da solidariedade fraternal é possível
ser realizada. Optimismo - não obstante os reveses que
o elogio da filosofia
('7)CL Eugenio Garin, L'umanesimo italiano, 9." ed., Bari La-
Para concluir, e retomando uma afirmação feita no iní-
terza, 1984,p. 128: «LaceIebrazione pichiana dell'uomo e tutta una
cio deste estudo, relativamente ao facto de a Oratio ser um sottintesa polemica contro il tema deI microcosmo, tritum in scholis,
elegante elogio da filosofia, gostaríamos de aduzir, a partir per giungere, capovengendo la tesi dell'universo che si incentra
do próprio texto, alguns argumentos a favor desta tese. nell'uomo, all'altra, dell'uomo che si prolunga nell'universo.»
XXXII I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XXXIII

a sua biografia aponta, numa época que foi esplêndida, os caminhos do futuro racionalismo moderno, quer numa
mas não foi feliz, antes trágicat!") - que não está desligado aposta da via mística, em que se afirma como muito forte
de riscos,de tensões e de equilíbrios instáveis,suscitadores de a relação afectiva, sendo neste aspecto o Amor a chave de
angústias quanto à própria destinação humana.Joga-se aqui, interpretação.
numa dialéctica do bem e do mal, a plenitude e a realização Todas estas considerações são como que a justifica-
.humana: o seu poder de degenerar ou de se regenerar. E tal ção da sua opção existencial, que consistiu em tudo
tarefa responsabiliza-o frente a si mesmo e frente a Deus. O abandonar (honras, riqueza, poder) e tudo sacrificar à
homem, universo contracto, tem, de acordo com a hierarquia filosofia, dedicando-lhe a sua vida e labor intelectual, de
neoplatónica, o dever de se elevaraté às realidades superiores, um modo desinteressado e altruísta, sem esperar ganhos
subsumindo simultaneamente as inferiores. Ao homem sofísticos, antes inflamado por esse amor socrático e por
compete a tarefa de espiritualizar o mundo. essa procura de sabedoria, que, se muitas vezes aparece
Daqui se segue a sua tematização do mal ligado à ig- como a tentação de tudo querer saber, numa atitude
norância, à fraqueza da carne, à alteração da hierarquia enciclopédica, no entanto é mais do nível da opóvnou;
dos valores, correspondendo o bem à inclinação natural, à (prudência) e que sempre se constitui como questão para
vontade livre e racional. Então, podemos dizer que é a virtus qualquer espírito inquieto e insaciável de saber, que põe
que confere ao homem a dignidade e que o eleva acima a si próprio um conjunto de interrogações, que só uma
de todas as outras criaturas, esse o magnum miraculum. reflexão penetrante e atenta ao real pode assegurar.
Na sequência desta argumentação, de todos os homens Por tudo isto, parece-nos justo considerar como mestre
o mais excelente e digno é o filósofo, «animal celeste», de- da vida interior este filósofo que durante muito tempo
vido ao poder indagador da recta razão, e isto porque nele simbolizou e encarnou o espírito do Renascimento sem,
se dá a coincidência do saber e do agir orientados por um no entanto, ser devidamente conhecido, sendo sobretudo
espírito de verdade. Mas é da dignidade da filosofia que apreciado de um modo exterior. A riqueza da sua abor-
advém a dignidade do filósofo, do elogio da filosofia, como dagem filosófica, a profundidade das suas intuições, que
tarefa excelente, se passa ao elogio do filósofo. Este um traço só uma leitura atenta dos textos deixa entrever, são um
característico da sua época, isto é, a afirmação do individua- marco importante da história da filosofia. O seu pensa-
lismo. Giovanni Pico centra o filosofar na pessoa singular mento não está isento de dificuldades (19) , mas inequi-
do filósofo, aquele que mais próximo está da Verdade-
-Deus, quer se coloque numa atitude discursiva, que aponta
(19) a. Eugenio Garin, L'Opem e i1pensiero di Giovanni Pico della Mimn-
doia, onde se refere às dificuldades da filosofia do nosso autor, de que
salientamos as seguintes: vastíssimomaterial não completo>destinado a
(18) Cf. Eugenio Garin, Rittrati di humanisti, p. 187: «11 Ri- uma reelaboração e sistematizaçâo,que o autor, porque morreu jovem,
nascimento italiano e stato una stagione splendida della storia não teve tempo de concretizar: algumas das suas posições ressentem-se
del mondo: non una stagione lieta. Savonarola e Machiavelli, de situaçõespolémicas (recordamos a polémica anti-retórica,a polémica
Leonardo e Michelangelo hanno aspectto tragico non gioioso; la em tomo da Disputa Romana e, por fim, a polémica contra a astrologia
loro grandeza e sempre terribile: la loro serenità e oltre il dolore, judiciária); além disso,algumas afirmacões presentes na sua obra devem
di lã d'ogni illusione.» ser consideradas citações e não expressão do seu pensamento pessoal.
XXXIV I GIOVANNI PICO DELLA MlRANDOLA

vocamente pré-anuncia o homem moderno, quer pelas


suas problemáticas subjectivísticas, podendo nós falar de
um itinerário da consciência, quer pela valorização das
questões naturalistas que nos propõe, quer ainda pela sua
posição de conciliador e de aposta na tolerância, obtida
mediante o diálogo. Princeps Concordiae, no dizer dos seus
amigos, Giovanni Pico delIa Mirandola foi, inegavelmen-
te, um homem que dignificou o trabalho filosófico e à
maneira socrática tudo sacrificou à filosofia. *
Nota Bibliogáfica

* A tradução foi realizada a partir do texto latino, es- Apresentamos uma breve bibliografia com a intenção de elu-
tabelecido criticamente e traduzido por Eugenio Garin. cidar e orientar o leitor. Assim, referimos em primeiro lugar as
Nesse sentido, cf. Giovanni Pico de lla Mirandola, Opera. principais obras de Giovanni Pico, seguidas das edições mais im-
De hominis dignitate. Heptaplus. De ente et uno. Introd. di portantes da sua obra, assim como algumas traduções da Oratio.
Eugenio Garin, Florença, ValIecchi ed., Edizione Nazio- Quanto aos estudos, referenciamos os que foram essenciais
nale dei Classici del Pensiero Italiano, 1942, pp. 102-165. para a elaboração deste trabalho, e que, simultaneamente,
são fundamentais para uma compreensão do pensamento do
Usámos largamente a tradução de Garin, considerada
nosso filósofo.
inequivocamente como a mais fiel ao pensamento e ao
estilo de Pico, quer no que diz respeito ao apuramento de
terminologia, quer no referente à elegância estilística.
OBRAS DE GmVANNI PICO DAlLA MIRANDOLLA
No que diz respeito ao hebraico, seguimos o critério do
próprio Garin, que na tradução omitiu as expressões e os
vocábulos naqueles caracteres. Fizérno-lo por comodidade
Epistola ad Hermolaum Barbarum;
de edição. Contudo, mantivemos o grego.
Commento alta canzone d 'amore;
Conclusiones sive Theses DCCCC;
Oratio;
MARIA DE LOURDES SIRGADO GANHO Apologia;
Heptaplus;
De ente et uno;
Disputationes adversus astrologiam divinatricem;
Omnia opera, Basileia, 1557, 1572, 1601;
opera omnia. I. 11. Introd. Cesare Vasoli, Hildesheim, G. Olms,
1969, (reprodução anastática da ed. de Basileia, 1572).
XXXVI [ GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM [XXX\1!

Opera omnia. Premessa Eugenio Garin, Turim, 1971, (ed. fac- Inglês
simile) . Oration on the dignity of mano Trad. E. Livermore Forbes, in "The
De hominis dignitate. Hectaplus. De ente et uno. Introd. Eugenio Renaissance Philosophy of man", Chicago, 1948.
Garin, Florença, Vallecchi, 1942;
Disputationis adversus astrologiam divinatricem. I. lI., Florença, Francês
Vallecchi, 1946-1952, (Edizione Nazionale dei Classici del
Pensiero Italiano). De hominis dignitate. Texto bilingue com trad. P. M. Cordier, in
"Pie de la Mirandole ou la plus pure figure de I'Humanisme
Chrétien", Paris, Debresse, 1958.

Traduções da Oratio

Estudos
Italiano

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apêndice, "La Filosofia di Pico della Mirandola", Milão, 1937.
Lib. Lombarda, 1936; Axvv, Giovanni Pico della Mirandola. Convegno Internazionale di
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bilingue com tradução de Eugenio Garin in "De hominis a cura di G. C. Garfagnini, Olschki, Firenze 1997.
dignitate ... " Florença, Vallecchi, 1942; Axvv, Neoplatonism and Jewish Thought, Ed., Lenn Goodman,
La dignità dell'uomo. Trad. F. Sante Pignagnoli, Bolonha, Pa- State University ofNewYork Press, 1992.
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Discorso sulla dignitá dell'uomo. (Edição bilingue). Trad. de nella storia dell'Umanesimo. Convegno internazionale
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nella cultura portoghese del Cinquecento, in Giovanni
Estudo Pedagógico Introdutório

Pico: o homem e o seu tempo

Esta é uma obra marcante da filosofia do Renascimento


porque retrata uma visão nova do homem e do mundo,
no contexto da história da filosofia. De facto, com Re-
nascimento quer significar-se ressurgimento, novo nasci-
mento ou ressurreição, renovação, rejuvenescimento. Um
Renascimento como renovação do mundo clássico, grego
e romano, pela proclamação do fim da época medieval
- sete séculos após a queda do império romano - com
especial relevância, depois, para a oposição às doutrinas
neo-aristotélicas da escolástica. É antes de tudo uma ma-
nifestação de cultura, uma nova concepção da vida e do
mundo que influi nas artes, nas ciências, na educação, na
moral e nos costumes, numa época de tolerância religiosa,
de concórdia das crenças e de sínteses platónico-cristãs ou,
por exemplo, de Aristóteles e Platão de que são paradigmas
Marsilio Ficino e Pico della Mirandola.
Antes de mais, o Renascimento traduz um senti-
mento generalizado da necessidade de recuperar os
clássicos na sua autenticidade - contra a adulteração
que, supostamente, a Idade Média operou -, o que, ine-
vitavelmente, também comporta, nem que seja pela crítica,
XLII GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XLIII

a descoberta do mundo medieval. Pretende-se com isso e della Mirandola, assim como as tentativas de elaborar uma
ao mesmo tempo a recuperação do próprio cristianismo, síntese entre Aristóteles e Platão, de que Pico é, talvez, o
vencendo divisões e disputas que então vingavam. Deste expoente máximo. De facto, este período da história da
modo, como fenómeno total, à renovação espiritual deve, filosofia é marcado por uma nova compreensão de Aristó-
necessariamente, corresponder uma renovação civile polí- teles, pelo estudo de escolas de pensamento como sejam
tica, assente na dignidade do homem como indivíduo, na o epicurismo, o estoicismo e o cepticismo, pelo conheci-
paz e na liberdade. No essencial, as temáticas que têm sido mento de Cícero e, sobretudo, de Platão - a recuperação
identificadas como próprias do Renascimento são: a crise dos textos de Platão para o mundo latino, por obra dos
de crenças e ideias, o desenvolvimen to da individualidade , trabalhos de tradução de Marsilio Ficino, é determinante
a descoberta de novas ideias sobre o homem e o mundo , para a constituição deste novo pensamento.
a amplificação do horizonte geográfico, histórico e expe-
rimental, a confiança na possibilidade do conhecimento e Em Pico podemos constatar, como presença de uma
a exaltação mística e metafísica do homem criador. característica marcante do Renascimento, a noção do
A valorização da acção humana no seu enquadramento homem como o grande milagre da criação, centro do uni-
histórico, na sua temporalidade, permitiu que o homem verso e mediador das realidades terrena, celeste e divina
passasse a considerar-se o criador da sua própria vida, - no fundo como marca da revolução antropocêntrica,
desfrutando da natureza para realização dos seus fins. que se realiza no Renascimento, que celebra o homem
Naturalmente, novas descobertas (Descobrimentos), como o centro do mundo.
novos conhecimentos (ciências experimentais, como a A sua obra reflecte um profundo conhecimento dos
física, e a importância da matemática) e novas práticas filósofosgregos, cristãos,judeus e árabes e debruça-se sobre
levaram à instauração daquilo que denominamos como a metafísica e a antropologia, assim como sobre a religião
ciência moderna. No entanto, esta valorização conduziu, e a magia - tal como a entende. Tais estudos e interesses,
ao mesmo tempo, à confluência de duas visões sobre o aos quais se alia a profunda influência que sofre de Platão,
homem: por um lado, a glorificação e elogio do homem levam-no a perspectivar uma conciliação entre a filosofia
como criador das artes e das ciências, por outro, a sua clássica, sobretudo grega, e o cristianismo, procurando
fraqueza e depravação, com acentuação na modéstia do sempre auscultar o lugar e a especificidade do homem
lugar que ocupa no universo, fruto de uma cultura de no mundo. Assim, o homem é concebido como sendo a
ociosidade e de hedonismo. É também nesta revalorização perfeita síntese de todas as partes do universo - um mi-
que assenta a oficialização de práticas como a astrologia crocosmos criador da sua própria vida - na medida em
e magia, bem como a ideia de uma proporcionalidade que, à ordem divina, à ordem celeste e à ordem terrena,
harmónica entre todos os seres, que conduziu às noções de corresponde em si o corpo, a alma e o espírito. Só assim é
um macrocosmo divino e de um microcosmo humano. possível o conhecimento humano alcançar e fundir-se com
Este último exemplo ilustra bem a estreita relação o uno absoluto e ser incondicionado, que é Deus.
entre o Renascimento e o platonismo, nomeadamente Tal como em Aristóteles, também em Pico o homem
em autores como Nicolau de Cusa, Marsilio Ficino e Pico e a sua alma ocupam um lugar central na filosofia e, tal
XLIV I GIOVANNI PICO DELLA MlRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM XLV

como em Platão, também aqui a alma humana é conce- da sua condição terrena à realidade celeste, em comunhão
bida como um intermediário entre o mundo corpóreo e com os anjos, conhecedor das coisas divinas e fundindo-se,
o mundo transcendente. A novidade reside na conjunção pelo amor, no Pai. Neste contexto, a filosofia assume uma
que faz da filosofia clássica com a doutrina cristã, onde as importãncia determinante para o bom sucesso de tal empresa
noções de encamaçãoe de salvação balizam o horizonte do pois o seu estudo auxilia esta ascensão ontológica. De outro
discurso, porque a dignidade humana reside, sobretudo, modo, há uma hierarquia ordenada de possibilidades pelas
no facto de o homem ser uma criatura feita à imagem e quais o homem se pode realizar mas nem todas correspondem
semelhança de Deus, capaz de atingir a salvação. à dignidade humana que resulta desta sua natureza, neste sen-
O tema da natureza e dignidade humana, não sendo tido, a liberdade implica, não a possibilidade de uma escolha
exclusivo do estudo Pico, mas transversal a todo o Renas- qualquer, mas uma escolha moral e intelectual responsável
cimento, recebe na Oratio a sua mais interessante formu- que cumpra o dever de nos elevarmos até Deus.
lação neste período da história da filosofia. Aqui, o autor Ao elevar-se para Deus carrega também consigo a re-
socorre-se das suas fontes históricas, filosóficas e religiosas lação que as outras partes do mundo estabelecem umas
de modo a estabelecer, para si, de uma vez por todas, a ver- com as outras, visto ser ele o dinamizador dessas relações.
dadeira natureza e dignidade humana. Pico, passa, então, Assim, fica a porta aberta para a constatação, posterior
a conceber o homem como um ser que livremente pode na história da filosofia, de que a dignidade humana não
determinar e escolher o seu próprio destino, porque a sua pode ser separada do princípio de que o homem governa
marca distintiva é o facto de estar privado de propriedades os elementos e controla a natureza. Esta será uma carac-
fixas, sendo que, ao mesmo tempo, tem a capacidade de terística da modernidade e uma das razões do papel que
partilhar de todas as propriedades dos outros seres em a ciência experimental e a tecnologia passaram a ocupar
consonância com a sua própria livre escolha. Retoma-se, na vida humana; marca de uma nova ciência e de uma
aqui, o mito do Protágoras, de Platão, em que o Criador nova filosofia. De facto, Pico tem sido evocado como um
distribui por todas as criaturas os dons próprios de cada pensador que já se preocupa com a tecnologia.
um, sendo que, ao homem, uma vez que não havia mais
dons a distribuir, não é conferida uma natureza ou essência
claramente determinada podendo, por isso, participar em A obra: Discurso sobre a Dignidade do Homem
todos os dons que haviam sido distribuídos, tornando-se,
por decisão sua, no que quiser. O que aqui está patente é A Oratio divide-se em duas partes. A primeira trata do
a noção do homem como um microcosmos, com a missão problema da natureza e dignidade do homem, da justi-
de superar as formas de vida inferiores e se elevar até Deus, ficação do estudo da filosofia como meio que concorre
actualizando o Cosmos. para a concretização dessa natureza, e o seu auge na
Este poder de escolha sobre a forma e o valor que a vida Paz Teológica da comunhão com o Pai; a segunda parte
de cada um adquirirá mediante a sua reflexão e as suas acções apresenta-se como justificação da existência de diferentes
implica, necessariamente, que se faça sempre a melhor esco- e por vezes contraditórias posições e escolas filosóficas e
lha possível. Uma escolha que permita ao homem elevar-se religiosas acerca deste mesmo tema.
XLVI I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XLVII

Nesta obra compreende-se o homem na sua natureza Assim se compreende que o homem seja aqui conside-
multiforme e cambiante, na sua essência livre e criadora rado como um camaleão, «um animal de natureza vária,
de si mesmo e na sua substancialidade como criatura de multiforme e mutável» (21), dotado do livre-arbítrio para
Deus, por excelência. É em tomo destas premissas que decidir o caminho de vida que quer levar e aquilo que
Pico apresenta os seus argumentos, tentando demonstrar quer vir a ser. Por isto mesmo, há aqui uma consideração
como o homem é um ser livre, porque capaz de decidir sobre o que seja a virtude do homem, sobre o que o que
o seu destino e cumprir a sua natureza. seja admirável e honrável na actividade humana.
Para o Conte di Concordia e della Mirandola, o ho- De facto, a actividade humana pode mover-se em duas
mem é um ser entre dois mundos - o mundo celeste que direcções e pode ter dois objectos opostos. Por um lado,
é superior e o mundo terrestre, inferior - e entre dois a actividade contemplativa, filosófica e espiritual, que é
tempos -, a finitude e a eternidade - mas é também um aquela que possibilita a aproximação com as realidades
ser dotado de corpo, de sensibilidade e de razão e, como celestes e nos pode conduzir «próximo da sumidade da
suprema e mais perfeita criatura de Deus, é portador de divindade», por outro, a vida mundana, terrena, da ri-
uma «natureza indefinida» que necessita de ser concre- queza material e do prazer carnal e das paixões que nos
tizada, isto é, realizada de acordo com esta sua essência. alienam de nós próprios.
Neste sentido, o homem é livre e responsável perante a Qual então a direcção que devo tomar para verdadei-
vida que tem e a vida que quer ter, visto que esta é obra ramente viver?
sua. Pode-se, assim, falar de uma natureza animal, uma Apoiada na ciência moral perante as paixões, e na
natureza propriamente humana e uma natureza divina dialéctica como clarificadora da razão, a direcção deverá
que coexistem no homem visto, neste sentido, como um ter sempre dois sentidos: por um lado, ascendente, pela
microcosmos de toda a realidade. razão da filosofia natural ao amor do conhecimento
das coisas divinas, visando a contemplação da verdade
«Ó suma liberdade de Deus pai, ó suma e admirável e a purificação da alma face à ignorância e ao vício;
felicidade do homem! ao qual é concedido obter o que por outro lado, e em seguida, descendente, tratando as
deseja, ser aquilo que quer» (20) . coisas terrenas e mundanas com o recto discernimento
alcançado, eliminados os vícios e refreadas as paixões. Só
No entanto, esta suprema liberdade, que contém em si assim «elevar-nos-ernos até que por fim no seio do Pai,
a exigência de o homem se realizar de acordo com a sua que está no vértice da escada, repousaremos na felicidade
natureza, implica uma escolha que acarreta o perigo de teológica» (22) .
essa realização ser feita em tomo dessa instância inferior ,
animalesca e hedonista, libertinária e corrupta, ou, pelo
contrário, desse dom divino de que somos portadores.

(21) Cf. p. 6l.


(22) Cf. p. 67.
XLVIII I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I XLIX

Aí estará a paz solucionadora do conflito da nossa «a magia outra coisa não era senão o conhecimento das
natureza dúbia composta de carne e de espírito. Aí «go- coisas divinas» (27) .
zaremos a paz desejada, a santíssima paz, a indissolúvel Assim, segundo Pico della Mirandola, concordarão
união, a amizade concorde pela qual todas as almas não todas as religiões e todas as filosofias.
só se acordam numa única Mente que está acima de cada
mente, mas também de uma maneira inefável se fundem
num só» (23). Uma Paz Filosófica que será, também pela Gra- Nota sobre o estudo do Discurso sobre a Dignidade
ça de Deus, uma Paz Teológica, onde <já não seremos mais do Homem
nós próprios, mas Aquele mesmo que nos fez» (24).
Estaremos então na casa do Pai e desfrutaremos os A De hominis dignitate oratio ou Discurso sobre a Dignidade
quatro rios do paraíso que se podem denominar como do Homem, de Pico della Mirandola, é uma obra presente
justiça, expiação, luz e fé. Com eles concordaremos, res- no Programa Curricular de Filosofia do 12. Ano, e, neste
0

pectivamente, mediante a ciência moral, a dialéctica, a contexto, o seu estudo insere-se na escolha do tema ou
contemplação e a meditação teológica. problema integrador a ser desenvolvido ao longo de cada
Na segunda parte da obra, Pico pretende demonstrar a ano lectivo, em conjunto com outras duas obras de leitura
necessidade e a possibilidade de acordo entre as diversas obrigatória. Como qualquer outra, o estudo desta obra deve
escolas filosóficas acerca de problemas tão fundamentais ser orientado para a possibilidade de um confronto com-
como sejam «a causa das coisas, os processos da natureza, parativo com outras perspectivas e argumentos, visando a
a razão do universo, os conselhos de Deus, os mistérios aquisição e demonstração de uma postura filosófica crítica.
do céu e da terra ... »(25) e, naturalmenete, a natureza Assimsendo, assume particular importância a identificação
e dignidade do homem, bem como da sua orientação clara e concisa da problemática do texto, da sua rede con-
para o divino, nesta visão do universo e de Deus. Trata- ceptual e da sua própria estrutura argumentativa, sendo que,
-se, sobretudo, de umajustificação ou fundamentação da para isso, é importante compreender a época e conhecer o
veracidade dos seus pressupostos e argumentos, nem que contexto em que a obra foi escrita.
para isso seja necessário estabelecer uma nova filosofia Pelos contributos já dados para a compreensão das re-
que permita procurar a verdade «com base nos números» lações possíveis que se podem estabelecer entre Pico della
- não numa «aritmética de comerciantes» mas numa Mirandola e toda a sua herança filosófica, nomeadamente
«aritmética divina» (26) - e com base em «teoremas má- com Pitágoras, Platão, Aristóteles, Plotino, Santo Agostinho,
gicos», como realizações da filosofia natural, isto porque importa também compreender como é que o Discurso sobre
a Dignidade do Homem influencia ou, de certa forma, está
presente em autores e obras posteriores.

(2~) Cf. p. 7l.


(24) Cf. p. 75 e 77.
(2") Cf. p. 83.
(2") Cf. p. 101. (2') Cf. p. 103
L GIOVANNI PICO DELLA MIRANDO LA

Como obra marcante de uma época de transição do


chamado mundo medieval para o mundo moderno, ou, se
quisermos, da filosofia medieval para a filosofia moderna,
o seu horizonte temático projectou-se até aos nossos dias.
De facto, esta nova visão do homem como artífice de si,
dotado de livre-arbítrio e da capacidade para escolher
livremente a sua própria vida, influencia decisivamente
o entendimento moderno do homem sobre o homem.
A centralidade do homem no mundo e a dignidade da
condição humana contribuíram para que o antropocen-
trismo aqui afirmado abrisse as portas a um individualismo Discurso de Giovanni Pico
que se veio a agudizar até aos nossos dias.
Do mesmo modo, a acentuação da liberdade de escolha Conde de Concórdia
dada a cada um para se realizar, a seu modo, de acordo
com a sua própria natureza, conduziu a um enfraque-
cimento da consideração das hierarquias sociais como ( Oratio /oannis Piei Mirandulani
reflexo da hierarquia cósmica. Neste contexto, abriu-se
as portas à afirmação de um ideal de autenticidade in- Concordiae Comitis)
dividual que enfatiza o igual valor das escolhas de vida
em detrimento da determinação da própria vida boa. O
que é no fundo a manifestação de um relativismo moral
contra o qual ainda hoje lutamos e que deve muito tam-
bém às considerações utilitaristas de que nos socorremos
quando temos que decidir. Não é por isso de estranhar
que o tema da liberdade tenha sido uma das principais
categorias filosóficas do século xx, se não mesmo a mais
importante.
Em qualquer caso o tema integrador por excelência,
entre esta e outras obras de cariz filosófico é a natureza
humana, é o que é o homem, na sua dignidade e liber-
dade, na sua essência e substancialidade.

Luís LOIA
Li nos escritos dos Árabes, venerandos Padres, que, in-
terrogado Abdala Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos
Legi, Patres colendissimi, in Arabum monumentis, o espectáculo mais maravilhoso neste cenário do mundo,
interrogatum Abdalam Sarracenum, quid in hac quasi tinha respondido que nada via de mais admirável do que
mundana scaena admirandum maxime spectaretur, o homem. Com esta sentença concorda aquela famosa de
Hermes]"): «Grande milagre, ó Asclépio, é o homern.»
nihil spectari homine admirabilius respondisse. Cui
Ora, enquanto meditava acerca do significado destas
sententiae illud Mercurii adstipulatur: Magnum, o As-
afirmações, não me satisfaziam de todo as múltiplas razões
clepi, miraculum est homo. Horum dictorum rationem que são aduzidas habitualmente por muitos a propósito da
cogitanti mihi non satis illa faciebant, quae multa de grandeza da natureza humana: ser o homem vínculo das
humanae naturae praestantia afferuntur a multis: esse criaturas, familiar com as superiores, soberano das inferi-
hominem creaturarum internuntium, superis famili- ores; pela agudeza dos sentidos, pelo poder indagador da
rem, regem inferiorum; sensuum perspicacia, rationis razão e pela luz do intelecto, ser intérprete da natureza;
indagine, intelligentiae lumine, naturae interpretem: intermédio entre o tempo e a eternidade e, como dizem os
Persas, cópula, portanto, himeneu do mundo e, segundo
stabilis aevi et fluxi temporis interstitium, et (quod
atestou David, em pouco inferior aos anjos. Grandes coisas
Persae dicunt) mundi copulam, immo hymenaeum,
estas, sem dúvida, mas não as mais importantes, isto é, não
ab angelis, teste Davide, paulo deminutum.' Magna tais que consintam a reivindicação do privilégio de uma
haec quidem, sed non principalia, idest quae summae admiração ilimitada. Porque, de facto, não deveremos nós
admirationis privilegium sibi iure vendicent. Cur enim admirar mais os anjos e os beatíssimos corpos celestes?
non ipsos angelos et beatissimos caeli choros magis
admirernur? Tandem intellexisse mihi sum visus, cur
n Hermes Trimegisto (três vezes grande) - nome grego do deus
felicissimum proindeque dignum omni admiratione egípcio Tote, a que a tradição grega atribuiu conhecimentos esotéricos
animal sit homo, et quae sit demum illa conditio sobre magia, alquimia e astrologia. Foi o primeiro a expressar por escrito,
os fundamentos da medicina astrológica. Os livros atribuídos a Hermes
quam in universi serie sortitus sit, non brutis modo, encontram-se reunidos no Corpus Hermeticum. Em 1445, esse manuscrito
sed astris, sed ultramundanis mentibus invidiosam. começa a circular em F1orença, tendo chegado ao conhecimento e ao
estudo de Pico della Mirandola. Aí assume-se que o Homem, como mi-
Res supra fidem et mira. Quidni? Nam et propterea crocosmo, reproduz a estrutura do Universo - macrocosmos. (N. T.)
54 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 55

magnum miraculum et admirandum profecto animal Finalmente, pareceu-me ter compreendido por que
iure homo et dicitur et existimatur. Sed quaenam ea razão é o homem o mais feliz de todos os seres animados
sit audite, Patres, et benignis auribus pro vestra hu- e digno, por isso, de toda a admiração, e qual enfim a
condição que lhe coube em sorte na ordem universal,
manitate hanc mihi operam condonate.
invejável não só pelas bestas, mas também pelos astros e
Iam summus Pater architectus Deus hanc quam até pelos espíritos supramundanos. Coisa inacreditável e
videmus mundanam domum, divinitatis templum au- maravilhosa. E como não? Já que precisamente por isso o
gustissimum, archanae legibus sapientiae fabrefecerat. homem é dito e considerado justamente um grande milagre
Supercaelestem regionem mentibus decorarat; aethe- e um ser animado, sem dúvida digno de ser admirado.
reos globos aeternis animis vegetarat; excrementarias Mas, escutai, ó Padres, qual é essa condição de grandeza
ac feculentas inferioris mundi partes omnigena anima- e, com a vossa liberalidade, prestai um ouvido benigno
e tolerante a este meu discurso.
lium turba complerat. Sed, opere consummato, desid-
Já o Sumo Pai, Deus arquitecto, tinha construído segundo
erabat artifex esse aliquem qui tanti operis rationem leis de arcana sabedoria este lugar do mundo como nós o
perpenderet, pulchritudinem amaret, magnitudinem vemos,augustíssimo templo da divindade. Tinha embelezado
admiraretur. Idcirco iam rebus omnibus (ut Moses Ti- a zona superceleste com inteligências, avivado os globos
maeusque testantur) absolutis, de producendo homine etéreos com almas eternas, povoado com uma multidão de
postremo cogitavit. Verum nec erat in archetypis unde animais de toda a espécie as partes vis e fermentantes do
mundo inferior. Mas, consumada a obra, o Artífice desejava
novam sobolem effingeret, nec in thesáuris quod novo
que houvesse alguém capaz de compreender a razão de
filio hereditarium largiretur, nec in subselliis totius
uma obra tão grande, que amasse a beleza e admirasse a
orbis, ubi universi contemplator iste sederet. Iam plena sua grandeza. Por isso, uma vez tudo realizado, como Moi-
omnia: omnia summis, mediis, infimisque ordinibus sés e Timeu atestam, pensou por último criar o homem.
fuerant distributa. Sed non erat paternae potestatis Dos arquétipos, contudo, não ficara nenhum sobre o qual
in extrema fetura quasi effeta defecisse; non erat modelar a nova criatura, nem dos tesouros tinha algum
sapientiae, consilii inopia in re necessaria fluctuasse; para oferecer em herança ao novo filho, nem dos lugares
de todo o mundo restara algum no qual se sentasse este
non erat benefici amoris, ut qui in aliis esse divinam
contemplador do universo. Tudo estava já ocupado, tudo
liberalitatem laudaturus in se illam dammare coger-
tinha sido distribuído nos sumos, nos médios e nos ínfimos
etur. Statuit tandem optimus opifex, ut cui dare nihil graus. Mas não teria sido digno da paterna potência não
proprium poterat commune esse quicquid privatum se superar, como se fosse inábil, na sua última obra, não
singulis fuerat. Igitur hominem accepit indiscretae era próprio da sua sapiência permanecer incerta numa
opus imaginis atque in mundi positum meditullio obra necessária, por falta de decisão, nem seria digno do
sic est alloquutus: «Nec certam sedem, nec propriam seu benéfico amor que quem estava destinado a louvar
faciem, nec munus ullum peculiare tibi dedimus, o nos outros a liberalidade divina, fosse constrangido a
lamentá-la em si mesmo.
56 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 57

Adam, ut quam sedem, quam faciem, quae munera Estabeleceu, portanto, o óptimo artífice que, àquele a
tute optaveris, ea, pro voto, pro tua sententia, habeas quem nada de especificamente próprio podia conceder,
fosse comum tudo o que tinha sido dado parcelarmente
et possideas. Definita ceteris natura intra praescriptas
aos outros. Assim, tomou o homem como obra de na-
a nobis leges coercetur. Tu, nullis angustiis coercitus,
tureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo,
pro tua arbitrio, in cuius manu te posui, tibi illam falou-lhe deste modo: «Ó Adão, não te demos nem um
praefinies. Medium te mundi posui, ut circumspi- lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio,
ceres inde commodius quicquid est in mundo. Nec nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e
te caelestem neque terrenum, neque mortalem neque possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que
immortalem fecimus, ut tui ipsius quasi arbitrarius tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e
honorariusque plastes et fictor, in quam malueris tute a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres
é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário,
formam effingas. Poteris in inferiora quae sunt bruta
não constrangido por nenhuma limitação, determiná-Ia-ás
degenerare; poteris in superiora quae sunt divina ex
para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei.
tui animi sententia regenerari». Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar
O summam Dei patris liberalitatem, summam melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste
et admirandam hominis felicitatem! cui datum id nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu,
habere quod optat, id esse quod velit. Bruta simul árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e
atque nascuntur id secum afferunt, ut ait Lucilius, e te informasses, na forma que tivesses seguramente esco-
bulga matris quod possessura sunt. Supremi spiritus lhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas,
aut ab initio aut paulo mox id fuerunt, quod sunt poderás regenerar-te até às realidades superiores que são
divinas, por decisão do teu ânimo».
futuri in perpetuas aeternitates. Nascenti homini
Ó suma liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável
omnifaria semina et omnigenae vitae germina indidit felicidade do homem! ao qual é concedido obter o que
Pater; quae quisque excoluerit illa adolescent, et deseja, ser aquilo que quer. As bestas, no momento em
fructus suos ferent in illo. Si vegetalia, planta fiet. que nascem, trazem consigo do ventre matemo, como
Si sensualia, obrutescet. Si rationalia, caeleste evadet diz Lucílio, tudo aquilo que depois terão. Os espíritos
animal. Si intellectualia, angelus erit et Dei filius, superiores ou desde o princípio, ou pouco depois, foram
et si nulla creaturarum sorte contentus in unitatis o que serão eternamente. Ao homem nascente o Pai
centrum suae se receperit, unus cum Deo spiritus conferiu sementes de toda a espécie e germes de toda a
vida, e segundo a maneira de cada um os cultivar assim
factus, in solitaria Patris caligine qui est super
estes nele crescerão e darão os seus frutos. Se vegetais,
omnia constitutus omnibus antestabit. Quis hunc tomar-se-á planta. Se sensíveis, será besta. Se racionais,
nostrum chamaeleonta non admiretur? aut omnino elevar-se-á a animal celeste. Se intelectuais, será anjo e
quis aliud quicquam admiretur magis? Quem non filho de Deus, e se, não contente com a sorte de ne-
immerito Asclepius Atheniensis versipellis huius nhuma criatura, se recolher no centro da sua unidade,
58 I GIOVANNI PICO DELLA MlRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 59

et se ipsam transformantis naturae argumento per tornado espírito uno com Deus, na solitária caligem (*)
Proteum in mysteriis significari dixit. Hinc illae do Pai, aquele que foi posto sobre todas as coisas estará
sobre todas as coisas.
apud Hebraeos et Pythagoricos metamorphoses
Quem não admirará este nosso camaleão?(*) Não sem
celebratae. Nam et Hebraeorum theologia secretior razão Asclépio, ateniense, devido ao aspecto mutável e devido
nunc Enoch sanctum in angelum divinitatis, quem a uma natureza que a si mesma se transforma, disse que nos
vocant iTj'l~~iT j~t,~ nunc in alia alios numina mistérios era simbolizado por Proteu. Daqui as metamorfoses
reformant. Et Pythagorici scaelestos homines in bruta celebradas pelos Hebreus e pelos Pitágoricos. Até mesmo
deformant et, si Empedocli creditur, etiam in plantas. a mais secreta teologia hebraica, de facto, transforma ora
Quas imitatus Maumeth illud frequens habebat in ore, Enoch santo no anjo da divindade, ora outros noutros es-
qui a divina lege recesserit brutum evadere, et merito píritos divinos. E os Pitagóricos transformam os celerados
em bestas e, a acreditar em Empédocles, até mesmo em
quidem. Neque enim plantam cortex, sed stupida et
plantas. Imitando isto, Maomé repetia muitas vezes e com
nihil sentiens natura; neque iumenta corium, sed
razão: «quem se afasta da lei divina toma-se uma besta». De
bruta anima et sensualis; nec caelum orbiculatum facto, não é a casca que faz a planta, mas a sua natureza
corpus, sed recta ratio; nec sequestratio corporis, sed entorpecida e insensível; não é o couro que faz a jumenta,
spiritualis intelligentia angelum facit. Si quem enim mas a alma bruta e sensual; nem é a forma circular que faz
videris deditum ventri, humi serpentem hominem, o céu, mas a recta razão; nem é a separação do corpo que
frutex est, non homo, quem vides; si quem in fantasia e faz o anjo, mas a inteligência espiritual. Por isso, se virmos
quasi Calypsus vanis praestigiis caecutientem et alguém dedicado ao ventre rastejar por terra como serpen-
te, não é homem o que vê, mas planta; se alguém cego,
subscalpenti delinitum illecebra sensibus mancipatum,
como Calipso, por vãs miragens da fantasia, seduzido por
brutum est, non homo, quem vides. Si recta
sensuais engodos, escravo dos sentidos, é uma besta o que
philosophum ratione omnia discernentem, hunc vemos, não é um homem. Se é um filósofo que disceme
venereris; caeleste est animal, non terrenum. Si purum com recta razão todas as coisas, venerá-lo-emos, é animal
contemplatorem corporis nescium, in penetralia celeste, não terreno. Se é um puro contemplante, ignaro
mentis relegatum, hic non terrenum, non caeleste do corpo, todo embrenhado no âmago da mente, este não
animal; hic augustius est numen humana carne é animal terreno, nem mesmo celeste: é um espírito mais
circumvestitum. Ecquis hominem non admiretur?
(') Caligem - o termo caligem remete para uma mística nocturna
qui non immerito in sacris litteris mosaicis et que pretende referir o encontro solitário e pessoal da criatura com o
christianis, nunc omnis carnis, nunc omnis creaturae criador, do filho, homem, com o Pai, Deus. Corresponde à problemática
do Deus Escondido tematizada por Nicolau de Cusa.
appellatione designatur, quando se ipsum ipse in (') Camaleão - Ao contrário dos dias de hoje em que camaleão tem
omnis carnis faciem, in omnis creaturae ingenium uma certa carga negativa, nesta época era um animal admirado pela
sua capacidade de transformação e adaptação ao meio circundante.
effingit, fabricat et transformat. Idcirco scribit Evantes Estamos perante um símbolo da possibilidade que o homem possui
Persa, ubi chaldaicam theologiam enarrat, non esse de se transformar (N.T.).
60 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDO LA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 61

homini suam ullam et nativam imaginem, extrarias elevado, revestido de carne humana. Quem pois não ad-
multas et adventitias. Hinc illud Chaldaeorum: mirará o homem? Que não por acaso nos sagrados textos
"nt,r~ n~~~ ;,~~, t:J"'j~ ~,;, ~,~~ idest homo moisaicos e cristãos é chamado ora com o nome de cada
varia e ac multiformis et desultoriae naturae animal. ser de carne, ora com o de cada criatura, precisamente
porque se forja, modela e transforma a si mesmo segundo
Sed quorsum haec? ut intelligamus, postquam
o aspecto de cada ser e a sua índole segundo a natureza
hac nati sumus conditione, ut id simus quod esse
de cada criatura? O persa Evantes, por isso, onde expõe
volumus, curare hoc potissimum debere nos, ut a teoria caldaica, escreve que o homem não possui uma
illud quidem in nos non dica tu r, cum in honore sua específica e nativa imagem, mas muitas estranhas e
essemus non cognovisse similes factos brutis et adventícias. Daí o dito caldaico de que o homem é animal
iumentis insipientibus. Sed illud potius Asaph de natureza vária, multiforme e mutável.
prophetae: «Dii estis et filii excelsi ornnes», ne, Mas com que objectivo recordar tudo isto? Para que
abutentes indulgentissima Patris liberalitate, quam compreendamos, a partir do momento em que nascemos na
condição de sermos o que quisermos, que o nosso dever(")
dedit ille liberam optionem, e salutari noxiam
é preocuparmo-nos sobretudo com isto: que não se diga
faciamus nobis. lnvadat animum sacra quaedam
de nós que estando em tal honra não nos demos conta de
ambitio ut mediocribus non contenti anhelemus ad nos termos tomado semelhantes às bestas e aos estúpidos
summa, adque illa (quando possumus si volumus) jumentos de carga. Acerca de nós repita-se, antes, o dito do
consequenda totis viribus enitamur. Dedignemur profeta Asaph: «Soisdeuses e todos filhos do Altíssimo». De
terrestria, caelestia contemnamus, et quicquid mundi tal modo que, abusando da indulgentíssima liberalidade do
est denique posthabentes, ultramundanam curiam Pai, não tomemos nociva, em vez de salutar, a livre escolha
emitensissimae divinitati proximam advolemus. Ibi, que ele nos concedeu. Que a nossa alma seja invadida por
uma sagrada ambição de não nos contentarmos com as
ut sacra tradunt mysteria, Saraphin, Cherubin et
coisas medíocres, mas de anelarmos às mais altas, de nos
Throni primas possident; horum nos iam cedere
esforçarmos por atingi-las, com todas as nossas energias,
nescií et secundarum impatientes et dignitatem et desde o momento em que, querendo-o, isso é possível.
gloriam aemulemur. Erimus illis, cum voluerimus, Desdenhemos das coisas da terra, desprezemos as as-
nihilo inferiores. trais e, abandonando tudo o que é terreno, voemos para
Sed qua ratione, aut quid tandem agentes? Videa- a sede supramundana, próximo da sumidade da divin-
mus quid illi agant, quam vivant vitam. Eam si et nos dade. Ali, como narram os sagrados mistérios, Serafins,
vixerimus (possumus enim), illorum sortem iam ae- Querubins e Tronos ocupam os primeiros lugares; deles
quaverimus. Ardet Saraph caritatis igne; fulget Cher-
ub intelligentiae splendore; stat Thronus iudicii fir- (') Dever - mais do que poder escolher ou decidir, o dever impõe-
-se como uma exigência imperativa à nossa acção. Neste caso, é nosso
mitate. Igitur si actuosae addicti vitae inferiorum
dever vivermos de acordo com a mais alta e honrada forma de vida que
curam recto examine susceperimus, Thronorum stata a nossa natureza, enquanto seres criados por Deus, permite (N. T.).
62 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 63

soliditate firmabimur. Si ab actionibus feria ti , in opi- também nós emulemos a dignidade e a glória, incapazes
ficio opificem, in opifice opificium meditantes, in agora de recuar e não suportando. o segundo lugar. E se
quisermos, não seremos em nada inferiores a eles.
contemplandi ocio negociabimur, luce cherubica un-
Arde o Serafim no fogo de amor, refulge o Querubim no
dique corruscabimus. Si caritate ipsum opificem solum esplendor da inteligência, está o Trono na solidez do juízo.
ardebimus, illius igne, qui edax est, in saraphicam Portanto, ainda que dedicados à vida activa, se assumirmos
effigiem repente flammabimur. Super Throno, idest tratar as coisas inferiores com recto discernimento, afirmar-
iusto iudice, sedet Deus iudex saeculorum. Super nos-emos com a firmeza dos Tronos. Se libertos das acções,
Cherub, idest contemplatore, volat atque eum quasi meditando na criação o artífice e no artífice a criação, estare-
incubando fovet. Spiritus enim Domini fertur super mos imersos na paz da contemplação (*), resplandeceremos
aquas, has, inquam quae super caelos sunt, quae apud rodeados de querubínica luz. Se ardermos só por amor do
artífice daquele fogo que consome todas as coisas, inflamar-
Iob Dominum laudant antelucanis hymnis. Qui Saraph,
-nos-ernos logo com aspecto seráfico. Sobre o Trono, isto
idest ama tor est, in Deo est, et Deus in eo, immo et
é, acima do justo juiz, está Deus juiz dos séculos. Acima
Deus et ipse unum sunt. Magna Thronorum potestas, do Querubim, ou seja, sobre o contem plante, voa e quase
quam iudicando; summa Saraphinorum sub limitas , gerando-o por incubação aquece-o. De facto, o espírito do
quam amando assequimur. Sed quonam pacto vel Senhor move-se sobre as águas, aquelas que estão por cima
iudicare quisquam vel amare potest incognita? Ama- dos céus e que, como está escrito no livro de Job, louvam o
vit Moses Deum quem vidit, et administravit iudex Senhor com hinos antelucanos. O Serafim, isto é, o amante,
in populo quae vidit prius contemplator in monte. está em Deus e Deus está nele, e Deus e ele são um só.
Grande é o poder dos Tronos e atingimo-lo com o juí-
Ergo medius Cherub sua luce et saraphico igni nos
zo: suma é a sublimidade dos Serafins e atingi-la-emos
praeparat et ad Thronorum iudicium pariter illuminat;
com o amor. Mas como pode alguém julgar ou amar o
hic est nodus primarum mentium, ordo palladicus, que não conhece? Moisés amou o Deus que viu, e promul-
philosophiae contemplativae praeses; hic nobis et gou ao povo, como juiz, aquilo que antes tinha visto na
aemulandus primo et ambiendus, atque adeo compre- montanha como contemplador. Eis por que no meio
hendendus est, unde et ad amoris rapiamur fastigia o Querubim com a sua luz nos prepara para a chama
et ad munera actionum bene instructi para tique de- seráfica e nos ilumina juntamente com o juízo dos
scendamus. At vero operae precium, si ad exemplar Tronos. Este é o nó das primeiras mentes, a ordem sa-
piencial que preside à filosofia contemplativa: isto deve-
vitae cherubicae vita nostra formanda est, quae illa et
mos, primeiro que tudo, emular, investigar e compreen-
qualis sit, quae actiones, quae illorum opera, prae
oculis et in numerato habere. Quod cum nobis per
(*) paz contemplativa - A evocação do fim deste itinerário para Deus
nos, qui caro sumus et quae humi sunt sapimus,
como um estado de paz e de contemplação retoma o Eros platónico
consequi non liceat, adeamus antiquos patres, qui de que permite superar o final da Alegoria da Linha, na República, ou a
his rebus utpote sibi domesticis et cognatis locupletis- Graça divina por que suplica Santo Agostinho nas Confissões (N. T.).
r 64 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 65

simam nobis et certam fidem facere possunt. Con- der, de modo a sermos arrebatados até aos fastígios
sulamus Paulum apostolum vas electionis, quid ipse do amor e descer em seguida instruídos e preparados
cum ad tertium sublimatus est caelum, agentes para as tarefas da acção. Mas, se a nossa vida deve ser
Cherubinorum exercitus viderit. Respondebit utique modelada sobre a vida dos Querubins, devemos ter cla-
Dionysio interprete: purgari illos, tum illuminari, ro, frente aos nossos olhos, em que consiste tal vida, quais
as acções e quais as obras deles, este o preço de tal rea-
postremo perfici: ergo et nos cherubicam in terris
lização. Mas porque isto não podemos atingir, nós que
vitam aemulantes, per moralem scientiam affectum
somos carne e que temos o gosto das coisas terrenas,
impetus coercentes, per dialecticam rationis caliginem aproximemo-nos dos antigos Padres, os quais nos po-
discutientes, quasi ignorantiae et vitiorum eluentes dem oferecer um seguro e rico testemunho de tais coisas, a
sordes animam purgemus, ne aut affectus temere de- eles familiares e congénitas. Perguntemos ao apóstolo Pau-
bacchentur aut ratio imprudens quandoque deliret. lo (*), vaso de eleição, que faziam os exércitos dos Querubins
Tum bene compositam ac expiatam animam naturalis quando foi arrebatado ao terceiro céu. Responder-nos-á,
philosophiae lumine perfundamus, ut postremo divi- como interpreta Dionísio: purificava-se, eram iluminados
e tornavam-se, por fim, perfeitos.
narum rerum eam cognitione perficiamus. Et ne nobis
Também nós, portanto, emulando na terra a vida queru-
nostri sufficiant consulamus Iacob patriarcham, cuius
bínica, refreando o ímpeto das paixões com a ciência moral,
imago in sede gloriae sculpta corruscat. Admonebit dissipando a treva da razão com a dialécticat"), purifique-
nos pater sapientissimus in inferno dormiens, mundo mos a alma limpando-a das sujidades da ignorância e do
in superno vigilans. Sed admonebit per figuram Cita vício para que os afectos não se desencadeiem cegamente
eis omnia contingebant) esse scalas ab imo solo ad nem a razão imprudente alguma vezes delire.
caeli summa pro tensas multorum graduum serie dis- Na alma, portanto, assimrecomposta e purificada, difunda-
tinctas: fastigio Dominum insidere. Contemplatores mos a luz da filosofianatural, levando-a em seguida à perfeição
angelos per eas vicibus alternantes ascendere et de- final mediante o conhecimento das coisas divinas.
E para não nos restringirmos aos nossos Padres, consul-
scendere. Quod si hoc idem nobis angelicam affec-
temos o patriarcaJacob, cuja figura resplandece esculpida
tantibus vitam factitandum est, quaeso, quis Domini
em sede de glória. O sapientíssimo patriarca ensinar-nos-á
scalas vel sordidato pede, vel male mundis manibus
attinget? Impuro, ut habent mysteria, purum attin- (*) Paulo - A referência recorrente a São Paulo ilustra bem este
interesse renascentista com o contacto directo com as fontes do
gere nefas. Sed qui hi pedes? quae manus? Profecto pensamento cristão, ultrapassando as teorias oficiais dos seus principais
pes anima e illa est portío despicatissima, qua ipsa interpretes, como é o caso de São Tomás de Aquino (N. T.).
materiae tamquam terrae solo innititur, altrix inquam (') Dialéctica - Refere-se ao método ou arte de discutir, argu-
mentando, discorrendo e procurando o desvelamento da verdade.
potestas et cibaria, fomes libidinis et voluptuariae A decomposição dos conceitos para melhor compreensão da sua
mollitudinis magistra. Manus anima e cur irascentiam amplitude significante e a sua reconstrução, já informada com esses
conhecimentos parcelares, traduzem o modo de pensar rectamente
non dixerimus, quae appetentiae propugnatrix pro ea e a melhor forma de aproximação à verdade (N. T.).
66 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 67

decertat et sub pulvere ac sole praedatrix rapit, quae que, se donnia no mundo terreno, velava no reino dos
illa sub umbra dormitans helluetur? Has manus, hos céus. Mas ensinar-nos-á mediante um símbolo (tudo assim
pedes, idest totam sensual em partem in quam sedet se lhes apresentava) que existem escadas que sobem do
corporis illecebra quae animam obtorto, ut aiunt, fundo da terra até ao cume dos céus, distintas numa longa
série de degraus, no alto dos quais está sentado o Senhor,
detinet callo, ne a scalis tamquam profani pollutique
enquanto os anjos contemplantes por elas sobem e descem,
reiiciamur, morali philosophia quasi vivo flumine alternando-se, cada um por sua vez. E se é nosso dever fazer
abluamus. At nec satis hoc erit, si per lacob scalam a mesma coisa, imitando a vida dos anjos, pergunto, quem
discursantibus angelis comites esse volumus, nisi et ousará tocar as escadas do Senhor ou com pé impuro ou
a gradu in gradum rite promoveri, et a scalarum tra- com mãos por lavar? Ao impuro, segundo os mistérios,
mite deorbitare nusquam, et reciprocos obire excursus é-lhe vedado tocar aquilo que é puro.
bene apti prius instructique fuerimus. Quod cum per Mas que pés? Que mãos? Sem dúvida, pé da alma é a
artem sermocinalem sive rationariam erimus conse- parte vilíssima com a qual se apoia à matéria e ao solo; o
poder que alimenta, fonte de lascívia, mestra de sensual
quuti, iam cherubico spiritu animati, per scalarum,
brandura. E mão da alma porque não chamar à irascível
idest naturae gradus philosophantes, a centro ad cen-
que, serva dos apetites, por eles se bate e se lança como
trum omnia pervadentes, nunc unum quasi Osirim um predador sob o pó e o sol, que os devora sofregamente
in multitudinem vi titanica discerpentes descendemus, repousando à sombra? Estas mãos, estes pés, isto é, toda a
nunc multitudinem quasi Osiridis membra in unum parte sensível onde estão sediadas as seduções corpóreas
vi phoebea colligentes ascendemus, donec in sinu que, como se diz, têm subjugada a alma, Iavemo-los com a
Patris qui super scalas est tandem quiescentes, theo- filosofia moral, como um vivo rio, para não sermos expulsos
logica felicitate consummabimur. Percontemur et daquelas escadas como profanos e imundos.
Mas nem isto será suficiente, se queremos ser compa-
iustum]ob, qui foedus iniit cum Deo vitae prius quam
nheiros dos anjos que percorrem a escada de Jacob, se
ipse ederetur in vitam, quid summus Deus in decem
primeiro não tivermos sido bem habilitados e instruídos a
illis centenis milibus, qui assistunt ei, potissimum mover-nos com ordem de degrau em degrau, sem nunca
desideret: pacem utique respondebit, iuxta id quod sairmos da rampa da escada, sem estorvar a um ou a outro
apud eum legitur, qui facit pacem in excelsis. Et quo- o caminho. Quando tivermos conseguido isto com a parte
niam supremi ordinis monita medius ordo inferioribus discursiva ou raciocinante, animados então por um espírito
interpretatur, interpretetur nobis lob theologi verba querubínico filosofando ao longo dos degraus da escada,
Empedocles philosophus. Hic duplicem naturam in isto é, da natureza, e tudo perscrutando do centro e para
o centro, ora desceremos dilacerando com força titânica
nostris animis sitam, quarum altera sursum tollimur
o um nos muitos, como Osíris, ora, recolhendo com força
ad caelestia, altera deorsum tradimur ad inferna, per
apolínea os muitos no um, como os membros de Osíris,
litem et amicitiam, sive bellum et pacem, ut suam elevar-nos-emos até que por fim no seio do Pai, que está no
testantur carmina, nobis significat. In quibus se lite vértice da escada, repousaremos na felicidade teológica.
68 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM 69

et discordia actum, furenti similem profugum a diis, E perguntemos ao justo Job, o qual antes de ter
inaltum iactari conqueritur. Multiplex profecto, patres, sido gerado para a vida fez um pacto com o Deus da vida, que
in nobis discordia; gravia et intestina domi habemus é que o sumo Deus deseja sobretudo, daqueles milhões de
et plus quam eivilia bella. Quae si noluerimus, si illam anjos que estão na sua presença; ele responderá, certamente:
a paz, conforme nele se lê, «Aquele que faz a paz nos céus».
affectaverimus pacem, quae in sublime ita nos tollat
E porque a ordem mediana é, para a inferior, intérprete dos
ut inter excelsos Domini statuamur, sola in nobis
preceitos da ordem superior, que as palavras do teólogo Job
compescet prorsus et sedabit philosophia moralis sejam para nós ilustradas pelo filósofo Empédocles. Este,
primum, si nos ter homo ab hostibus indueias tantum como atestam os seus poemas, simboliza com o ódio e com
quaesierit, multiplieis bruti effrenes excursiones et o amor, isto é, com a guerra e com paz, as duas naturezas
leonis iurgia, iras animosque contundet. Tum, si rec- da nossa alma, a partir das quais somos levados ao céu ou
tius consulentes nobis perpetuae paeis securitatem precipitados nos infernos. E ele, naquela luta e discórdia,
desideraverimus, aderit illa et vota nostra liberaliter transtornado como se fosse um louco, lamenta-se por ter
sido arrastado para o abismo, para longe dos deuses.
implebit, quippe quae caesa utraque bestia, quasi icta
É indubitável, ó Padres, que múltiplas são as discórdias
porca, inviolabile inter camem et spiritum foedus
entre nós, temos lutas intestinas graves e piores do que
sanctissimae paeis saneiet. Sedabit dialectica rationis guerras civis, que só a filosofia moral poderá acalmar, se
turbas inter orationum pugnantias et syllogismorum lhes quisermos fugir e se quisermos obter a paz que nos
captiones anxie tumultuantis. Sedabit naturalis phi- conduza ao alto, de modo a colocar-nos entre os eleitos do
losophia opinionis lites et dissidia, quae inquietam Senhor. Mas se antes de tudo o homem que há em nós pedir
hinc inde animam vexant, distrahunt et lacerant. Sed trégua aos seus inimigos, travará os descompostos tumultos
ita sedabit, ut meminisse nos iubeat esse naturam do animal multiforme e o ímpeto, o furor e o assalto do
iuxta Heraclitum ex bello genitam, ob id ab Homero leão. Depois, mais solícitos relativamente ao nosso bem, se
desejarmos a segurança de uma paz perpétua, esta virá e
contentionem voeitatam; ideirco in ea veram quietem
coroará abundantemente os nossos votos, e morto um e
et solidam pacem se nobis praestare non posse, esse outro animal, como vítimas imoladas, instituir-se-á um pacto
hoc domina e suae, idest sanctissimae theologiae, mu- inviolável de santíssima paz entre a carne e o espírito.
nus et privilegium. Ad illam ipsa et viam monstrabit A dialéctica acalmará a razão tumultuosamente mor-
et comes ducet, quae procul nos videns properantes: tificada entre os contrastes das palavras e dos silogismos
«Venite, inclamabit, ad me qui laborastis; venite et capciosos. A filosofia natural acalmará os conflitos da
ego refieiam vos; venite ad me et dabo vobis pacem opinião e os dissídios que atormentam, dividem e dila-
quam mundus et natura vobis dare non possunt», ceram de modos diversos a alma inquieta. Mas acalma-
-los-á de modo a recordar-nos que a natureza, como disse
Tam blande vocati, tam benigniter invitati, alatis pe-
Heraclito, é gerada pela guerra e, por isso, chamada por
dibus quasi terrestres Mercurii, in beatissimae am- Homero luta. Nesta, no entanto, não podemos encontrar
plexus matris evolantes, optata pace perfruemur; pace uma verdadeira calma e paz estável, dom e privilégio da sua
70 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 71

sanctissima, individua copula, unanimi amicitia, qua senhora, isto é, a santíssima teologia. Esta mostrará o cami-
omnes animi in una mente, quae est super omnem nho e servir-nos-á de guia; esta, vendo-nos apressados, de
longe gritará: «Vinde a mim, vós que viveislaboriosamente,
mentem, non concordent adeo, sed ineffabili quodam
vinde e eu vos reconfortarei, vinde e dar-vos-ei a paz que o
modo unum penitus evadant. Haec est illa amicitia
mundo e a natureza não vos podem dar».
quam totius philosophiae finem esse Pythagorici dic- Chamados de um modo tão persuasivo, convidados com
tunt, haec illa pax quam facit Deus in excelsis suis, tanta benignidade, voando para o abraço da beatíssima mãe,
quam angeli in terram descendentes annuntiarunt com pés alados como terrenos Mercúrios, gozaremos a paz
hominibus bonae voluntatis, ut per eam ipsi homines desejada, a santíssima paz, a indissolúvel união, a amizade
ascendentes in caelum angeli fierent; hanc pacem concorde pela qual todos as almas não só se acordam numa
única Mente que está acima de cada mente, mas também de
amicis, hanc nostro optemus saeculo, optemus uni-
uma maneira inefável se fundem num só. Esta é a amizade
cuique domui quam ingredimur, optemus animae que os Pitagóricos dizem ser o fim de toda a filosofia, esta
nostrae, ut per eam ipsa Dei domus fiat; ut, postquam é a paz que Deus põe em acto nos seus céus, que os anjos
per moralem et dialecticam suas sordes excusserit , descendo à terra anunciaram aos homens de boa vontade,
multiplici philosophia quasi aulico apparatu se exor- a fim de que mediante esta também os homens, subindo ao
narit, portarum fastigia theologicis sertis coronarit, céu, se tomassem anjos. Esta paz desejemo-Ia aos amigos,
descendat Rex gloriae et cum Patre veniens mansionem desejemo-Ia ao nosso tempo, invoquemo-Ia em cada casa em
que entremos, invoquemo-Ia para a nossa alma para que ela
faciat apud eam. Quo tanto hospite si se dignam
se tome morada de Deus, para que, rejeitadas as impurezas
praestiterit, quae est illius immensa clementia, deau- com a moral e a dialéctica, se adorne da mais vasta filosofia
rato vestitu quasi toga nuptiali multiplici sententiarum como se fosse um ornamento real, que coroe o frontão das
circumdata varietate, speciosum hospitem, non ut portas com a grinalda da teologia, de tal modo que desça
hospitem iam, sed ut sponsum excipiet, a quo ne sobre ela o Rei da glória e, vindo com o Pai, estabeleça nela
umquam dissolvatur dissolvi cupiet a populo suo et a sua morada.
domum patris sui, immo se ipsam oblita, in se ipsa E se souber mostrar-se digna de tal hóspede, já que
imensa é a sua demência, vestida de ouro, como de veste
cupiet mori ut vivat in sponso, in cuius conspectu
nupcial, circundada da múltipla variedade dos saberes,
preciosa profecto mors sanctorum eius mors inquam acolherá o singular hóspede, não já como hóspede, mas
illa, si dici mors debet plenitudo vitae', cuiu~ medita~ como esposo e, para nunca mais deste se separar, desejará
tionem esse studium philosophiae dixerunt sapientes. desligar-se da sua gente, e esquecida da casa do pai e até
Citemus et Mosem ipsum a sacrosanctae et ineffabilis de si mesma, desejará em si morrer para viver no esposo, a
intelligentiae Fontana plenitudine, unde angeli suo cujo conspecto é preciosa a morte dos santos, digo aquela
nectare inebriantur, paulo deminutum. morte, se morte se deve chamar a plenitude de vida, a cuja
meditação os sábios chamaram estudo de filosofia.
Audiemus venerandum iudicem nobis in deserta
E invoquemos também Moisés, em pouco inferior
huius corporis solitudine habitantibus leges sic edi- àquela inexcedível plenitude de sacrossanta e inefável

..
72 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDO LA
DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 73

centem: qui polluti adhuc morali indigent, cum plebe inteligência, de cujo néctar os anjos se inebriam. Ouvi-
habitent extra tabernaculum sub divo, quasi Thelassi remos o venerando juiz ditar as leis a nós que habitamos
sacerdotes interim se expiantes. Qui mores iam com- na deserta solidão do corpo: os que, ainda impuros, têm
posuerunt, in sanctuarium recepti, nondum quidem necessidade moral, fiquem com o vulgo fora do taberná-
sacra attractent, sed prius dialectico famulatu seduli culo, sob o céu descoberto, como os sacerdotes da Tessália,
até estarem purificados. Os que já atingiram uma vida
levitae philosophiae sacris ministrent. Tum ad ea et
recta, acolhidos no santuário, não se aproximem ainda
ipsi admissi, nunc superioris Dei regia e multicolorem,
das coisas sacras, mas prestem-lhes primeiro serviço com
idest sidereum aulicum ornatum, nunc caelestem um noviciado dialéctico, como zelosos levitas da filosofia.
candelabrum septem luminibus distinctum, nunc pel- Por fim, admitidos também eles, contemplem agora, no
licea elementa, in philosophiae sacerdotio contempl- sacerdócio da filosofia, ora o multicolor, quer dizer, o
entur, ut postremo per theologicae sublimitatis merita sidéreo ornamento do palácio de Deus, ora o candelabro
in templi adita recepti, nullo imaginis intercedente velo, das sete chamas, ora os elementos de pele, até que, acol-
divinitatis gloria perfruantur. Haec nobis profecto Mo- hidos finalmente no tabernáculo do templo, por mérito
ses et imperat et imperando admonet, excitat, ínhor- da sublimidade teológica, usufruam, retirado totalmente
o véu da imagem, da glória de Deus. Isto, sem dúvida,
tatur, ut per philosophiam ad futuram caelestem
nos ordena Moisés e ordenando aconselha-nos, incita-
gloriam, dum possumus, iter paremus nobis. Verum -nos e exorta-nos a preparar, enquanto pudermos, a via
enimvero, nec Mosaica tantum aut Christiana myste- para a futura glória dos céus, por meio da filosofia.
ria, sed priscorum quoque theologia harum, de quibus Mas não só os mistérios moisaicos ou os cristãos,
disputaturus accessi, liberalium artium et emolu- mas também a teologia dos antigos nos mostra o valor e a
menta nobis et dignitatem ostendit. Quid enim aliud dignidade das artes liberais (*), que estou a discutir. Que outra
sibi volunt in Graecorum arcanis observati initiatorum coisa, de facto, querem significar nos mistérios gregos os
gradus, quibu primum per illas quas diximus quasi graus habituais dos iniciados, admitidos no mistério através
de uma purificação obtida com a moral e com a dialéctica,
februales artes, moralem et dialecticam, purifica tis ,
artes que já dissemos serem quase purificatórias? E aquela
contingebat mysteriorum susceptio? Quae quid aliud
iniciação que outra coisa pode ser senão a interpretação
esse potest quam secretioris per philosophiam naturae da mais oculta natureza mediante a filosofia? Finalmente,
interpreta tio ? Tum demum ita dispositis illa adveniebat quando estavam preparados, sobrevinha aquela E1t01t'tEUx,
E1t01t'tEÍa, idest rerum divinarum per theologiae lumen isto é, a visão das coisas divinas através da luz da teologia.
inspectio. Quis talibus sacris initiari non appetat? Quis
humana omnia posthabens, fortunae contemnens bona, (*) Artes liberais - São disciplinas a serem cultivadas pelos homens
corporis negligens, deorum conviva adhuc degens in livres (em oposição às artes serviles), dignas de ser estudadas "por si"
terris fieri non cupiat, et aeternitatis nectare madidus pois são livres de utilidade prática. Agrupam-se no trivium (Gramática,
Retórica e Dialética) e no quadrivium (Aritmética, Geometria, Música
mortale animal immortalitatis munere donari? quis non e Astronomia) (N. T.).
74 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDO LA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 75

Socraticis illis furoribus, a Platone in Phaedro decanta- Quem não desejaria ser iniciado em tais mistérios?
tis, sic afflari non velit, ut alarum pedumque remigio Quem é que não deseja, ainda peregrino na terra, mas
hinc, idest ex mundo, qui est positus in maligno, pro- desprezando tudo o que é terreno e desprezando os
pere aufugiens, ad caelestem Hierusalem concitatissimo bens da fortuna, esquecido do corpo, tomar-se comen-
sal dos deuses e dessedentado pelo néctar da eterni-
cursu feratur? Agemur, Patres, agemur Socraticis fu-
dade, receber, animal mortal, o dom da imortalidade? Quem
roribus, qui extra mentem ita nos ponant, ut mentem não quererá ser inspirado pelo furor socrático, exaltado por
nostram et nos ponant in Deo. Agemur ab illis utique, Platão no Fedro, arrebatado em célere voa para aJerusalém
si quid est in nobis ipsi prius egerimus; nam si et per Celeste, fugindo rapidamente com um bater de asas daqui,
moralem affectuum vires ita per debitas competentias isto é, do mundo, reino do demónio? Arrebatar-nos-ão, ó
ad modulos fuerint intentae, ut immota invicem con- Padres, arrebatar-nos-ão os furores socráticos, trazendo-nos
sonent concinentia, et per dialecticam ratio ad numerum para fora da mente a tal ponto que nos coloquemos a nós
se progrediendo auribus combinemus. Tum Musarum e à nossa mente em Deus. E por eles certamente seremos
arrebatados, se primeiro tivermos realizado tudo quanto está
dux Bacchus in suis mysteriis, idest visibilibus naturae
em nós: se, de facto, com a moral forem refreados, dentro
signis, invisibilia Dei philosophantibus nobis ostendens,
dos justos limites, os ímpetos das paixões ("), de tal modo
inebriabit nos ab ubertate domus Dei, in qua tota si que se harmonizem reciprocamente com estável acordo,
uti Moses erimus fideles, accedens Sacratissima Theo- se a razão proceder ordenadamente mediante a dialéctica,
logia duplici furore nos animabit. Nam in illius emi- inebriar-nos-emos, invocados pelas Musas, com a harmonia
nentissimam sublima ti speculam, inde et quae sunt, celeste. Então Baco, senhor das Musas, mostrando-nos, toma-
quae erunt quaeque fuerint insectili metientes aevo, dos filósofos, nos seus mistérios, isto é, nos sinais visíveisda
et primaevam pulchritudinem suspicientes, illorum natureza, os invisíveissegredos de Deus, inebriar-nos-á com
a abundância da casa divina na qual, se formos totalmente
Phoebei vates, huius alati erimus amatores, et inef-
fiéis como Moisés, a santíssima teologia, aproximando-se,
fabili demum caritate, quasi aestro perciti, quasi
animar-nos-á com um duplo furor. Sublimados, portanto, no
Saraphini ardentes extra nos positi, numine pleni, iam seu excelso observatório, referindo à medida do eterno as
non ipsi nos, sed ille erimus ipse qui fecit nos. Sacra coisas que são, que serão e que foram, observando nelas a
Apollinis nomina, si quis eorum significantias et lati- beleza original, seremos, como vates apolíneos, os amadores
tantia perscrutetur mysteria, satis ostendunt esse Deum alados até que num inefável amor, como invadidos por um
illum non minus philosophum quam vatem. Quod estro, postos fora de nós e cheios de Deus como Serafins
cum Ammonius satis sit exequutus, non est cur ego ardentes, já não seremos mais nós próprios, mas Aquele
mesmo que nos fez.
aliter pertractem; sed subeant animum, Patres, tria
delphica praecepta oppido his necessaria, qui non
ficti sed veri Apollinis, qui illuminat omnem animam n Paixões - Pretende significar os interesses ou apetites que condic-
ionam a acção humana, desviando-a dos seus mais altos propósitos. Como
venientem in hunc mundum, sacrosanctum et augus- condicionadoras da acção devem ser refreadas pela razão (N. T.).
76 GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 77

tissimum templum ingressuri sunt; videbitis nihil Os sagrados nomes de Apolo, se alguém perscrutar a
aliud illa nos admonere, quam ut tripartitam hanc, de fundo o significado e os mistérios encobertos, demons-
qua est praesens disputatio, philosophiam totis viribus tram suficientemente ser aquele Deus não menos filósofo
amplectamur. Illud enim ~Tlocvà:yav, idest ne quid do que vate. Mas tendo já Amónio ilustrado isto copio-
samente, não há motivo para que eu trate disso de uma
nimis, virtutum omnium normam et regulam per
outra maneira. Recordemo-nos, todavia, ó Padres, dos
mediocritatis rationem, de qua moralis agit, recte
três preceitos délficos, indispensáveis aos que estão para
praescribit. Tum illud v&3tcrEautóv, idest cognosce te entrar no sacrossanto e augustíssimo templo, não do falso
ipsum, ad totius naturae nos cognitionem, cuius et mas do verdadeiro Apolo, que ilumina toda a alma que
interstitium et quasi cynnus natura est hominis, ex- vem a este mundo; vereis que nada mais reclamam de nós
citat et inhortatur. Qui enim se cognoscit, in se omnia senão que abracemos com todas as forças a tríplice filosofia
cognoscit, ut Zoroaster prius, deinde Plato in Alcibiade acerca da qual agora se disputa. De facto, o ~TJÕEV áycxv,
scripserunt. Postremo hac cognitione per naturalem isto é, nada em excesso, prescreve rectamente a norma e
a regra de cada virtude segundo o critério do justo meio,
philosophiam illuminati, iam Deo proximi, EI, idest
de que trata a moral. E o famoso v&ihcrêcxmóv, isto é, co-
es dicentes, theologica salutatione verum Apollinem
nhece-te a ti mesmo, incita e exorta ao conhecimento da
familiariter proindeque feliciter apellabimus. Con- natureza na sua totalidade, de que o homem é vínculo
sulamus et Pythagoram sapientissimum, ob id prae- e quase síntese. Quem, de facto, se conhece a si mesmo
cipue sapientem, quod sapientis se dignum nomine tudo em si conhece, como escreveram primeiro Zoroastro
nunquam existimavit. Praecipiet primo ne super mo- e depois Platão no Alcibíades. Finalmente, iluminados por
dium sedeamus, idest rationalem, partem, qua anima tal conhecimento mediante a filosofia natural, próximos
omnia metitur, iudicat et examinat, ociosa desidia ne agora de Deus e pronunciando EI, isto é, tu és, teológica
remittentes amittamus, sed dialectica exercitatione ac saudação, chamaremos o verdadeiro Apolo com alegre
familiaridade.
regula et dirigamus assidue et excitemus. Tum cav-
Interroguemos também o sapientíssimo Pitágoras,
enda in primis duo nobis significabit, ne aut adversus sapiente sobretudo por nunca se ter considerado dig-
Solem emingamus, aut inter sacrificandum unguem no de tal nome. Exortar-nos-á, em primeiro lugar, a
resecemus. Sed postquam per moralem et superflu- não nos sentarmos em cima do alqueire, isto é, não
entium voluptatum eminxerimus appetentias, et un- deixemos inactiva a parte racional com a qual a alma
guium praesegmina, quasi acutas irae prominentias tudo mede, julga e examina, mas antes devemos dirigi-
et animo rum aculeos resecuerimus, tum demum sac- -la e mantê-la desperta com o exercício e as regras da
ris, idest de quibus mentionem fecimus Bacchi mys- dialéctica. Indicar-nos-á então duas coisas que acima de
tudo devemos evitar: urinarmos voltados para o sol e cor-
teriis, interesse, et cuius pater ac dux merito Sol di-
tarmos as unhas durante o sacrifício. Só quando tivermos
citur nostrae contemplationi vacare incipiamus.
expulso de nós, mediante a moral, os turvos apetites da
Postremo ut gallum nutriamus nos admonegit, idest voluptuosidade e tivermos cortado as garras aduncas da ira,
78 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 79

ut divinam animae nostrae partem divinarum rerum removidos os aguilhões da alma, só então começaremos
cognitione quasi solido cibo et caelesti ambrasia pas- a tomar parte nos sacros mistérios de Baco, dos quais já
camus. Hic est gallus cuius aspectum leo, idest omnis falámos e dedicar-nos-emos à contemplação de que o Sol
terrena potestas, formidat et reveretur. Hic ille gallus, merecidamente é considerado pai e senhor. Aconselhar-
nos-á, por fim, a alimentar o galo, isto é, a saciar com
cui datam esse intelligentiam apud lob legimus. Hoc
sólida alimentação e com a celeste ambrósia das coisas
gallo canente aberrans homo resipiscit. Hic gallus in
divinas a parte divina da nossa alma. É este o galo cujo
matutino crepusculo, matutinis astris Deum laudan- aspecto teme e venera o leão, isto é, toda a potência ter-
tibus, quotidie commodulator. Hunc gallum moriens rena. É este o galo, ao qual, segundo Job, foi conferida
Socrates, cum divinitatem animi sui divinitati maior- a inteligência. Com o canto deste galo arrepende-se o
is mundi copulaturum se speraret, Aesculapio, idest homem extraviado. Este é o galo que canta todos os dias
animarum medico, iam extra omne morbi discrimen de madrugada, quando as estrelas de manhã louvam a
positus, debere se dixit. Recenseamus et Chaldaeorum Deus. É este o galo que Sócrates, na hora da morte, no
momento em que esperava reunir o divino da sua alma
monumenta, videbimus (si illis creditur) per easdem
à divindade de tudo e já afastado do perigo de qualquer
artes patere viam mortalibus ad felicita tem. Scribunt
doença corpórea, considerava que devia a Esculápio, isto
interpretes Chaldaei verbum fuisse Zoraastris alatam é, ao médico da alma.
esse animam, cumque alae exciderent ferre illam Examinemos também os testemunhos dos Caldeus e,
praeceps in corpus, tum illis subcrescentibus ad su- se acreditarmos neles, veremos que são as mesmas artes
peras revolare. Percunctantibus eum discipulis alis que abrem aos mortais o caminho da felicidade. Escrevem
quo pacto bene plumantibus volucres animos sortiren- os intérpretes caldaicos que Zoroastro havia dito ser a
tur: «irrigetis, dixit, alas aquis vitae». lterum scisci- alma alada e que, quando lhe caem as asas, se precipita
no corpo e volta a voar para o céu quando lhe tornam a
tantibus unde has aquas peterent, sic per parabolam
crescer. Tendo-lhe os discípulos perguntado de que modo
(qui erat hominis mos) illis respondit: «quatruor am-
poderiam tornar a alma apta para o voo com asas bem
nibus paradisus Dei abluitur et irrigatur, indidem plumadas, «regai as asas, disse, com a água da vida». E
vobis salutares aquas hauriatis. Nomen ei qui ab aq- perguntando-lhe ainda estes como poderiam obter tais
uilone Pischon, quod rectum denotat, ei qui ab oc- águas, respondeu-lhes, segundo o seu costume, com uma
casu Dichon, quod expiationem significat, ei qui ab parábola: «O paraíso de Deus é banhado e irrigado por
ortu Chiddekel, quod lumen sonat, ei qui a meridie quatro rios: a partir daí podereis atingir as águas salutares.
Perath, quod pietatem interpretari possumus». Ad- O nome daquele que corre de setentrião é Pischon, que
significa justiça; o que vem do ocaso chama-se Dichon,
vertite animum et diligenter considera te , Patres, quid
isto é, expiação; o que vem do oriente é Chiddekel e
haec sibi velint Zoraastris dogmata: prafecto nihil
significa luz; por fim, aquele que corre do sul chama-se
aliud nisi ut morali scientia, quasi undis hibericis, Perath e podemos interpretar como fé». Pensai bem, ó
oculorum sordes expiemus; dialectica, quasi boreali Padres, e considerai com atenção o significado destes
80 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 81

amussi, illorum aciem liniemus ad rectum. Tum in dogmas de Zoroastro; certamente nada mais significam
naturali contemplatione debile adhuc veritatis lumen, do que isto, que devemos purificar a viscosidade dos olhos
com a ciência moral, como com ondas ocidentais; que
quasi nascentis solis incunabula, pati assuescamus,
devemos dirigir atentamente o olhar com a dialéctica,
ut tandem per theologicam pie tatem et sacratissimum
como com um nível boreal; que nos devemos habituar a
Dei cultum, quasi caelestes aquilae, meridiantis solis suportar na contemplação da natureza a ainda fraca luz
fulgidissimum iubar fortiter perferamus. Hae illae da verdade, primeiro indício do sol nascente: até que,
forsan et a Davide decantatae primum, et ab Augus- finalmente, com a meditação teológica e o santíssimo
tino explicatae latius, matutinae, meridiana e et ves- culto de Deus, possamos aguentar vigorosamente, como
pertinae cognitiones. Haec est illa lux meridialis, águias do céu, o fulgurante esplendor do sol do meio-dia.
quae Seraphinos ad lineam inflammat et Cherubinos Talvez sejam estes os conhecimentos matutinos, meri-
dianos e vespertinos, cantados primeiro por David e em
pari ter illuminat. Haec illa regio, quam versus sem-
seguida explicados amplamente por Agostinho. Esta é a
per antiquus pater Abraham proficiscebatur. Hic ille
luz resplandecente que inflama os Serafins e do mesmo
locus, ubi immundis spiritibus locum non esse et modo ilumina os Querubins. Esta é a região para a qual
Cabalistarum et Maurorum dogmata traditerunt. Et tendia sempre o antigo pai Abraão. É este o lugar onde,
si secretiorum aliquid mysteriorum fas est vel sub segundo o ensino dos Cabalistas e dos Árabes, não há
aegnimate in publicum proferre, postquam et repens lugar para os espíritos impuros.
e caelo casus nostri hominis caput vertigine damna- E se é lícito trazer a público alguma coisa dos mais
vit et, iuxta Hieremiam, ingressa per fenestras mors secretos mistérios, ainda que só sob o véu do enigma,
iecur pectusque male affecit, Raphaelem caelestem dado que a nossa imprevista queda do céu condenou à
vertigem a cabeça do homem; segundo as palavras deJe-
medicum advocemus, qui nos morali et dialectica
remias, de facto, foram abertas asjanelas à morte, a qual
uti pharmacis salutaribus liberet. Cum ad valitudinem atingiu o coração e o fígado, invoquemos Rafael, médico
bonam restitutos, iam Dei robur Gabriel inhabitabit, celeste, para que nos liberte com a moral e a dialéctica,
qui nos per naturae ducens miracula, ubique Dei fármacos salutares. Habitará então em nós, já outra vez
virtutem potestatemque indicans, tandem sacerdoti de boa saúde, Gabriel, força de Deus, levando-nos através
summo Michaeli nos tradet qui, sub stipendiis phi- das maravilhas da natureza e mostrando-nos por todo
losophiae emeritos, Theologiae sacerdotio quasi o lado a virtude e o poder de Deus, apresentar-nos-á fi-
corona preciosi lapidis insignet. nalmente a Miguel sumo sacerdote, o qual, após termos
prestado serviço nas milícias da filosofia, nos coroará,
Haec sunt, Patres colendissimi, quae me ad
como se se tratasse de uma coroa de pedras preciosas,
philosophiae studium non animarunt modo sed com o sacerdócio da Teologia.
computerunt. Quae dicturus certe non eram, Estes são os motivos, venerandos Padres, que não só
nisi his responderem qui philosophiae studium me encorajaram, mas também me impeliram ao estudo da
inprincipibus praesertim viris, aut his omnino qui filosofia. Certamente não os teria exposto se não tivesse
82 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 83

mediocri fortuna vivunt, damnare solent. Est enim de responder a todos quantos têm o hábito de condenar o
iam hoc totum philosophari (quae est nostae aetatis estudo da filosofia, sobretudo aos príncipes, ou que gozam
infelicitas) in contemptum potius et contumeliam, em geral de uma qualquer fortuna. Todo este filosofar,
quam in honorem et gloriam. Ita invasit fere omnium de facto, dá azo mais ao desprezo e ao vitupério - e isto
mentes exitialis haec et monstruosa persuasio, aut é uma infelicidade do nosso tempo - do que à honra e
à glória. E esta funesta e monstruosa convicção invadiu
nihil aut paucis philosophandum. Quasi rerum
de tal modo a mente da maioria que só pouquíssimos,
causas, naturae vias, universi rationem, Dei consilia,
ou mesmo ninguém, deviam poder filosofar: como se o
caelorum terraeque mysteria, prae oculis, prae investigar as causas das coisas, os processos da natureza,
manibus exploratissima habere nihil sit prorsus, a razão do universo, os conselhos de Deus, os mistérios
nisi vel gratiam inde aucupari aliquam, vel lucrum do céu e da terra não valesse de nada, a menos que daí
sibi quis comparare possit. Quin eo deventum est se consiga retirar algo de útil ou de lucrativo. Chegámos
ut iam (pro h dolor!) non existimentur sapientes a um tal ponto, actualmente, e é uma dor de alma, que
nisi qui mercenarium faciunt studium sapientiae, ut não se consideram sábios senão os que transformaram o
sit videre pudicam Palladem, deorum munere inter estudo da sabedoria em fonte de lucro, de tal modo que
se pode ver a casta Palas, enviada para o meio dos homens
homines diversantem, eiici, explodi, exsibilari; non
por dom divino, expulsa, ridicularizada e vilipendiada.
habere qui amet, qui faveat, nisi ipsa, quasi prostans Não há quem a ame, quem a siga, senão com a condição
et praefloratae virginitatis accepta mercedula, male de se prostituir e de tirar lucro da sua violada virgindade
paratum aes in amatoris arculam referat. Quae e, recebido o dinheiro, deitar esse mal obtido dinheiro
omnia ego non sine summo dolore et indignatione no cofre do amante.
in huius temporis, non principes, sed philosophos E digo tudo isto, não sem uma enorme dor e profun-
dico, qui ide o non esse philosophandum et credunt da indignação, não já contra os príncipes, mas contra
et praedicant, quod philosophis nu lIa merces, nu lIa os filósofos do nosso tempo, os quais acreditam e dizem
que não se deve filosofar porque não se estabeleceram
sint praemia constituta, quasi non ostendant ipsi,
prémios e recompensas para os filósofos; como se não
hoc uno nomine, se non esse philosophos. Quod mostrassem precisamente com esta afirmação não serem
cum tota eorum vita sit vel in quaestu, vel in filósofos. Toda a vida destes, efectivamente, ao assentar no
ambitione posita, ipsam per se veritas cognitionem lucro ou na ambição, mostra que eles não abraçam por si
non amplectuntur. Dabo hoc mihi, et meipsum hac mesmo o conhecimento da verdade. A mim mesmo con-
ex parte laudare nihil erubescam, me numquam cederei apenas isto, e não corarei, pois, por ser elogiado,
alia de causa philosophatum nisi ut philosopharer, que nunca filosofei senão pelo amor da pura filosofia,
nec ex studiis meis, ex meis lucubrationibus, nem nunca esperei ou procurei com os meus estudos
e as minhas meditações obter alguma mercê ou algum
mercedem ullam aut fructum vel sperasse alium
fruto a não ser a formação da minha alma e o conheci-
vel quaesiisse, quam animi cultum et a me semper
mento da verdade, por mim ansiada acima de qualquer
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plurimum desideratae veritatis cognitionem. Cuius ita outra coisa. Da qual tenho sido sempre um amante tão
cupidus semper et amantissimus fui ut, relícta omni apaixonado que, abandonada toda e qualquer preocupa-
privatarum et publícarum rerum cura, contemplandi ção relativamente aos negócios privados e públicos, me
dediquei completamente à paz da meditação; disto nem
oeio totum me tradiderim; a quo nullae invidorum
calúnias de invejosos nem a maldade dos inimigos do
obtrectationes, nu lIa hostium sapientiae maledicta,
saber me puderam até aqui desviar e nunca o poderão.
vel potuerunt antehac, vel in posterum me deterrere Foi a filosofia que me ensinou a depender mais da minha
poterunt. Docuit me ipsa philosophia apropria consciência do que dos juízos dos outros; a estar sempre
potius conseientia quam ab externis pendere ludiciís, atento, não ao mal que de mim se diz, mas a não dizer
cogitareque semper, non tam ne male audiam, quam ou a não fazer eu próprio o mal.
ne quid male dicam ipse vel agam. Equidem non Não ignorava certamente, venerandos Padres, que esta
eram neseius, Patres colendissimi, futuram hanc discussão acabaria por ser tão apreciada e agradável a todos
vós, amantes das artes liberais e dando voluntariamente
ipsam meam disputa tionem quam vobis omnibus,
prestígio à iniciativa com a vossa augustíssima presença,
qui bonis artibus favetis et augustissima vestra
quanto intolerável e molesta a muitos outros, e bem sei que
praesentia illam honestare voluistis, gratam atque não faltam os que já condenaram antes e condenam agora
iucundam, tam multis alíis gravem atque molestam; de muitas maneiras a minha iniciativa, de tal modo que
et seio non deesse qui inceptum meum et damnarint as boas e santas iniciativas têm habitualmente implacáveis
antehac et in praesentia multis nominibus damnent. críticas, se não mais, decerto não menos numerosas, do
Ita consueverunt non paueiores, ne dicam plures, que as iníquas e viciosas. Alguns há que desaprovam este
habere oblatratores quae bene sancteque aguntur ad género de discussão e esta minha iniciativa de debater
virtutem, quam quae inique et perperam ad vitium. em público questões doutrinais, afirmando que tudo isto
tem mais como intenção mostrar engenho e erudição do
Sunt autem qui totum hoc disputandi genus et hanc
que obter um melhor conhecimento. Outros, embora não
de líteris publice disceptandi institutionem non
desaprovando esta espécie de exercício, não o aprovam
approbent, ad pompam potius ingenií et doctrinae, absolutamente no meu caso, visto que eu, com esta idade,
quam ad comparandam eruditionem esse illam isto é, com apenas vinte e quatro anos, tive a ousadia de
asseverantes. Sunt qui hoc quidem exereitationis propor uma discussão acerca dos mistérios mais altos da
genus non improbent, sed in me nullo modo probent, religião cristã, acerca das questões mais profundas da
quod ego hac aetate, quartum scilicet et vigesimum filosofia, acerca de doutrinas desconhecidas, numa cida-
modo natus annum, de sublimibus Christianae de famosíssima, numa vastíssima assembleia de homens
doutíssimos, frente ao senado Apostólico. Outros, embora
theologiae mysteriís, de altissimis philosophiae loeis,
consentindo que eu discuta, não admitem que eu discuta
de incognitis diseiplínis, in celebratissima urbe, in
acerca de novecentos assuntos, afirmando maldosamente
amplíssimo doctissimorum hominum consessu, in que isto é uma atitude tão soberba e ambiciosa como
Apostolíco senatu, disputationem proponere sim acima está das minhas forças.
86 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM 87

ausus. Alii, hoc mihi dantes quod disputem, id dare Às objecções de todos estes me teria rendido ime-
nolunt quod de nongentis disputem quaestionibus, diatamente se assim me tivesse ensinado a filosofia que
tam superfluo et ambitiose quam supra vires id factum professo; nem mesmo agora, pelo seu ensino, responderia
calumniantes. Horum ego obiectamentis et manus se eu considerasse que esta discussão tinha sido levada a
cabo com o propósito de altercar e polemizar entre nós.
illico dedissem, si ita quam profiteor philosophia
Está, portanto, longe do nosso ânimo qualquer intenção
me edocuisset et nunc, illa ita me docente, non
de litígio e de provocação e a inveja que, segundo Platão,
responderem, si rixandi iurgandique proposito afasta dos deuses; examinemos, antes, amigavelmente se
constituam hanc inter nos disceptationem crederem. é admissível que eu tenha iniciado esta disputa e tenha
Quare, obtrectandi omne lacessendique propositum, discutido tantas questões.
et quem scribit Plato a divino semper abesse choro, Aos que criticam o hábito de discutir em público
a nostris quoque mentibus facessat livor, et an não direi muitas coisas, a partir do momento em que
disputandum a me, an de tot etiam quaestionibus, tal culpa, se como culpa é considerada, não é só comum
amice incognoscamus. Primum quidem ad eos, a todos vós, exímios doutores, que muitas vezes haveis
assumido esta tarefa não sem grande louvor e glória,
qui hunc publice disputandi morem calumniantur,
mas também a Platão, a Aristóteles, a todos os filósofos
multa non sum dicturus, quando haec culpa, si mais famosos de todos os tempos. Os quais tinham por
culpa censetur, non solum vobis omnibus, doctores certíssima convicção que nada lhes era mais favorável
excellentissimi, qui saepius hoc munere, non sine para a obtenção da verdade que procuravam do que o
summa et laude et gloria, functi estis, sed Platoni, exercício contínuo e frequente da discussão. De facto,
sed Aristoteli, sed probatissimis omnium aetatum do mesmo modo que as forças do corpo se robuste-
philosophis mecum est communis. Quibus erat cem com a ginástica, assim também, sem dúvida, nesta
certissimum nihil ad consequendam quam quaerebant espécie de palestra do espírito, a energia da alma se
torna mais forte e firme. E eu sou levado a crer que
veritatis cognitionem sibi esse, potius quam ut essent in
isto quiseram dar a entender os poetas com as famosas
disputandi exercitatione frequentissimi. Sicut enim per
armas de Palas, ou os Hebreus considerando o ferro
gyrnnasticam corporis vires firmiores fiunt, ita dubio símbolo dos sapientes, acerca da conveniência de tal
procul, in hac quasi literaria palaestra, animi vires et género de lutas para obter a sapiência, assim como a
fortiores longe et vegetiores evadunt. Nec crediderim necessidade delas para a defender. E talvez também por
ego aut Poetas aliud per decantata Palladis arma, aut isto os Caldeus desejavam que no nascimento daquele
Hebraeos, cum t",~, ferrum, sapientum syrnbolum que se deve tornar filósofo, Marte olhe triangularmente
para Mercúrio, de tal modo que, uma vez retiradas estas
esse dicunt, significasse nobis quam honestissima
conjunções e estes contrastes, toda a filosofia resultasse
hoc genus certamina, adipiscendae sapientiae oppido
soporífera e sonolenta.
quam necessaria. Quo forte fit ut et Chaldaei, in eius
É-me mais difícil a defesa frente àqueles que não me
genesi qui philosophus sit futurus, illud desiderent, ut consideram à altura desta iniciativa: se, de facto, me
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Mars Mercurium triquetro aspectu conspiciat, quasi, considerar à altura de tal empresa, serei talvez conside-
si hos congressus, haec bella substuleris, somniculosa rado digno da acusação de imodesto e presunçoso; se,
et dormitans futura sit omnis philosophia. At vero pelo contrário, me considerar incapaz, serei digno da
cum his qui me huic provinciae imparem dicunt, de imprudente e temerário. Vede, pois, em que caí, em
que posição me encontro, já que não posso deixar de
difficilior est mihi ratio defensionis: nam si parem me
prometer sem reprovação o que em seguida não posso
dixero, forsitan immodesti et de se nimia sentientis , sem reprovação dar. Talvez possa citar de Job que o es-
si imparem fatebor, temerarii et inconsulti notam pírito está em todos, e ouvir com Timóteo: «ninguém
videor subiturus. Videte quas incidi angustias, quo despreze a tua juventude». Mas, de um modo mais sin-
loco sim constitutus, dum non possum sine culpa de cero e segundo a minha consciência, poderei dizer que
me promittere, quod non possum mox sine culpa non em mim nada há de grande e de singular; ainda que
praestare. Forte et illud Job afferre possem, spiritum admitindo ser estudioso e desejoso de saber, contudo
esse in omnibus, et cum Timotheo audire «nerno não me arrogo nem pretendo o nome de douto. Pelo
que, se me propus realizar uma tarefa tão pesada, não foi
contemnat adolescentiam tuarn». Sed ex mea verius
porque não tivesse consciência da minha fraqueza; mas
hoc conscientia dixero, nihil esse in nobis magnum vel
dependeu do reconhecimento, que é prerrogativa desta
singulare; studio, sum me forte et cupidum bonarum espécie de batalhas doutrinárias, de que o ser vencido é
artium non inficiatus, docti tamen nomen mihi nec um ganho. Por isso, acontece que o mais fraco não só
sumo nec arrogo. Quare et quod tam grande humeris as deve evitar, mas antes pode e deve afrontá-las por sua
onus imposuerim, non fuit propterea quod mihi conscius iniciativa, já que quem sucumbe recebe não um dano,
nostrae infirmitatis non essem, sed quod sciebam hoc mas uma vantagem, pois volta para casa mais rico, isto
genus pugnis, idest literariis, esse peculiare quod in eis é, mais douto e mais armado para as futuras batalhas.
Animado de tal esperança, eu, fraco soldado, não tive
lucrum est vinci. Quo fit ut imbecillissimus quisque
receio algum de afrontar uma tão perigosa batalha
non detractare modo, sed appetere ultro eas iure possit
com combatentes mais fortes e corajosos. Se, contudo,
et debeat. Quandoquidem qui succumbit beneficium a minha empresa é ou não temerária, poder-se-á julgar
a victore accipit, non iniuriam, quippe qui per eum melhor a partir do resultado do combate, e não devido
et locupletior domum, idest doctior et ad futuras pug- à minha idade.
nas redit instructior. Hac spe animatus, ego infirmus Resta-me, em terceiro lugar, responder àqueles a
miles cum fortissimis omnium strenuissimisque tam quem ofende o número exagerado das teses propostas,
gravem pugnam decemere nihil sum veritus. Quod como se o peso delas recaísse sobre os seus ombros e,
em vez disso, não fosse apenas eu a dever suportar tal
tamen temere sit factum necne, rectius utique de eventu
fadiga, por muito pesada que ela possa ser. Mas é ver-
pugna e quam de nostra aetate potest quis iudicare?
dadeiramente inconveniente e pouco razoável querer
Restat ut tertio loco his respondeam, qui numerosa pôr um limite às obras dos outros e, como disse Cícero,
propositarum rerum multitudine offenduntur, quasi querer exigir a mediocridade ao que é tanto melhor
90 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 91

hoc eorum humeris sederet onus, et non potius hic quanto maior é.
mihi soli, quantuscunque est labor, esset exanclandus. Numa empresa tão grande como esta, é necessano
que eu sucumba ou triunfe; se consigo, não vejo por que
Indecens profecto hoc et morosum nimis, velle alienae
motivo é digno de louvor conseguir com dez assuntos e
industriae modum ponere, et, ut inquit Cicero, in ea re
se deva considerar uma culpa fazê-lo com novecentos.
quae eo melior quo maior, mediocritatem desiderare. Se sucumbir, aqueles, se me odeiam, terão motivo para
Omnino tam grandibus ausis erat necesse me vel me acusarem; se me amam, para me desculparem. Que
succumbere vel satisfacere; si satisfacerem, non video um jovem de pouco engenho e de exígua doutrina não
CUf quod in decem praestare quaestionibus est laudabile, esteja à altura de uma tão grande e arriscada empresa é
in nongentis etiam praestitisse culpabile existimetur, um facto mais digno de perdão do que de condenação.
Si succumberem, habebunt ipsi, si me oderunt, unde Como diz o Poeta:
accusarent, si amant unde excusent. Quoniam in re tam
Se as forças faltam, será fonte de louvor
gravi, tam magna, tenui ingenio, exiguaque doctrina,
a audácia: nas grandes empresas, é já
adolescentem hominem defecisse, venia potius dignum muito o tê-lo querido.
erit quam accusatione. Quin et iuxta Poetam:
Se, nos nossos tempos, muitos, imitando Górgias de
si deficiant vires, audacia certe Leontino, propuseram disputas, não sem louvor, não
laus erit: in magnis et voluisse sat est. só sobre novecentas teses, mas mesmo sobre todos os
assuntos de todas as artes, porque não poderei eu, sem
ser reprovado, discutir sobre muitas, sim, mas bem pre-
Quod si nostra aetate multi, Gorgiam leontinum
cisas e determinadas? Mas replicam que isso é supérfluo
imitati, non modo de nongentis sed de omnibus etiam
e ambicioso. Eu, pelo contrário, contraponho que não
omnium artium quaestionibus soliti sunt, non sine só não é supérfluo, mas que para mim é necessário
laude, proponere disputationem, cur mihi non liceat, fazê-lo, e se aqueles considerassem as razões do meu
vel sine culpa, de multis quidem, sed tamen certis filosofar seriam constrangidos a reconhecer tal absoluta
et determina tis disputare? At superfluum inquiunt necessidade.
hoc et ambitiosum. Ego vero non superfluo modo, Os que, de facto, seguem uma qualquer escola filo-
sed necessario factum hoc a me contendo, quod et si sófica, de São Tomás, por exemplo, ou de Escoto, que
actualmente congregam os maiores consensos, cimentam
ipsi mecum philosophandi rationem considerarent,
a sua doutrina na discussão de poucas questões. Eu, pelo
inviti etiam fateantur plane necesse est. Qui enim
contrário, propus interessar-me seriamente por todos os
se cuipiam ex philosophorum familiis addixerunt, mestres da filosofia, examinar todas as posições, conhe-
Thomae videlicet aut Scoto, qui nunc plurimum cer todas as escolas, mas não jurar sobre a palavra de
in manibus, faventes, possunt illi quidem vel in ninguém. Por isso, encontrando-me na necessidade de
paucarum quaestionum discussione suae doctrinae falar de todos os filósofos, para não parecer sustentar
92 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA
DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 93

uma tese determinada sem tomar em consideração as


periculum facere. At ego ita me institui, ut in nullius
outras, as questões propostas não podiam deixar de
verba iuratus, me per omnes philosophiae magistros
ser muitas no seu conjunto, ainda que sejam poucas
funderem, omnes schedas executerem, omnes familias as atinentes a cada um. Nem me venham reprovar que
agnoscerem. Quare, cum mihi de illis omnibus esset em qualquer lado que a tempestade se apresente aí
dicendum, ne, si priva ti dogmatis defensor reliqua chego eu como hóspede. Por todos os antigos, de facto,
posthabuissem, illi viderer obstrictus, non potuerunt, foi observada esta regra, que, examinado cada autor,
etiamsi pauca de singulis proponerentur, non esse não deixassem de ler, tanto quanto possível, nenhum
plurima quae simul de omnibus affeberantur. Nec id escrito. Tal regra observou-a em particular, Aristóteles
que, por isso, era denominado por Platão àua,yuóx}"'tllÇ,
in me quispiam damnet, quod me quocumque ferat
quer dizer, o leitor; e é verdadeiramente próprio de
tempestas deferar hospes. Fuit enim cum ab antiquis
mente estreita restringir-se a uma só escola, quer ela
omnibus hoc observatum, ut omne scriptorum genus seja o Pórtico(*) ou a Academiaf"). Portanto, não pode
evolventes, nullas quas possent commentationes il- escolher entre todas a sua família quem primeiro não
lectas praeterirent, tum maxime ab Aristotele, qui examinou a fundo todas. Acrescente-se que em cada
eam ob causam àua:yu<ÍxrtllÇ, idest lector, a Platone escola há algo de peculiarmente insigne não comum
nuncupabatur, et profecto angustae est mentis intra com as outras, e, para começar com os nossos, aos quais
unam se Porticum aut Academiam continuisse. Nec chegou finalmente a investigação filosófica, há emJoão
potest ex omnibus sibi recte propriam selegisse, qui [Duns] Escoto qualquer coisa de vigoroso e de sub til ,
em Tomás [de Aquino] de sólido e de equilibrado, em
omnes prius familiariter non agnoverit. Adde quod in
Egídio [Romano] de terso e de exacto, em Francisco
unaquaque familia est aliquid insigne, quod non sit
[de Mayronnes] de penetrante e de agudo, em Alberto
ei commune cum ceteris. Atque ut a nostris, ad quos [Magno] de antigo, amplo e imponente, em Henrique
postremo philosophia pervenit, nunc exordiar, est [de Gand], parece-me, qualquer coisa sempre sublime
in Joanne Scoto vegetum quiddam atque discussum, e veneranda.
in Thoma solidum et aequabile, in Aegidio tersum E entre os Árabes há em Averróis algo de seguro e
et exactum, in Francisco acre et acutum, in Alberto de inconcusso, em Avenpace e em Alfarrabi de grave
priscum, amplum et grande, in Henrico, ut mihi visum e de meditado, em Avicena de divino e de platónico.
Entre os Gregos, em geral, existe acima de tudo uma
est, semper sublime et venerandum. Est apud Arabes,
filosofia clara e pura; rica e ampla em Simplício, ele-
in Averroe firmum et inconcussum , in Avenpace , in
Alpharabio grave et meditatum, in Avicenna divinum
atque platonicum. Est apud Graecos in universum (') Pórtico e Academia - O Pórtico e a Academia referem-se,
respectivamente, à escola estóica e à escola fundada por Platão. Am-
quidem nitida, in primis et casta philosophia; apud bos os nomes derivam da localização das escolas: nos estóicos, sob o
Simplicium locupies et copiosa, apud Themistium pórtico ornado com as pinturas de Polignoto; em Platão, no ginásio
elegans et conpendiaria, apud Alexandrum constans dos jardins do herói Academos (N.T.).
94 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 95

et docta, apud Theophrastum gravite r elabora ta, apud gante e sintética em Temístio, constante e douta em
Ammonium enodis et gratiosa. Et si ad Platonicos te Alexandre de Afrodísia, profundamente elaborada em
Teofrasto, ágil e graciosa em Amónio. E se em seguida
converteris, ut paucos percenseam, in Porphyrio rerum
nos voltarmos para os Platónicos, para falar só de pou-
copia et multiiuga religione delectaberis, in Jamblico
cos, com Porfírio deleitar-nos-emos com a abundância
secretio rem philosophiam et barbarorum mysteria de temas e com a religião complexa, em Jâmblico
veneraberis, in PIo tino primum quicquam non esta- veneremos a filosofia oculta e os mistérios bárbaros,
dmireris, qui se undique praebet admirandum, quem em PIo tino não há nada que não se possa admirar,
de divinis divine, de humanis longe supra hominem porque em tudo ele se mostra admirável, porque fala
docta sermonis obliquitate loquentem, sudantes divinamente das coisas divinas, porque quando fala das
Platonici vix intelligunt. Praetereo magis novitios, coisas humanas coloca-se muito acima do humano com
Proculum Asiatica fertilitate luxuriantem et qui ab a sapiente subtileza do discurso, de tal modo que, com
algum trabalho, só o entendem os próprios Platónicos.
eo fluxerunt Hermiam, Damascium, Olympiodorum
E deixo os mais recentes, Proclo luxuriante de fecun-
et complures alios, in quibus omnibus illud 'to SEtOV, didade asiática e os seus alunos, Hérmias, Damásio e
idest divinum, peculiare Platonicorum symbolum elu- Olimpiodoro e muitos outros, nos quais reluz sempre
cet semper. Accedit quod, si qua est secta quae veriora aquele 'to SEtOV, isto é, o divino, símbolo característico
incessat dogmata et bonas causas ingenii calumnia dos Platónicos.
ludificetur, ea veritatem firmat, non infirmat, et, velut Acrescente-se que, se há uma qualquer escola que
motu quassatam flammam, excitat, non extinguit. Hac combate as afirmações mais verdadeiras e calunia os
ego ratione motus, non unius modo (ut quibusdam válidos juízos da razão, ela reforça e não enfraquece a
verdade, tal como o vento agitando a chama a alimenta
placebat), sed omnigenae doctrinae placita in medium
e não a apaga.
afferre volui, ut hac complurium sectarum collatione
Movido por esta consideração, quis apresentar as con-
ac multifariae discussione philosophiae, ille veritatis clusões não de uma só doutrina, como teria agradado a
fulgor, cuius Plato meminit in Epistulis, animis nostris alguns, mas de todas, de modo a que, do confronto de
quasi sol oriens ex alto clarius illucesceret. Quid erat, muitas escolas e da discussão das múltiplas filosofias, o
si Latinorum tantum, Alberti scilicet, Thomae, Scoti, fulgor de verdade de que Platão fala nas Cartas resplan-
Aegidii, Francisci, Henricique philosophia, obmís- deça nas nossas almas, como um sol nascente no céu.
sis Graecorum Arabumque philosophis, tractabatur? Que valor teria tratar só da filosofia dos latinos, isto é, de
Alberto, de Tomás, de Escoto, de Egídio, de Francisco, de
Quando omnis sapientia a Barbaris ad Graecos, a Graecis
Henrique, esquecendo a filosofia dos Gregos e dos Arabes,
ad nos manavit. Ita nostrates semper in philosophandi
quando todo o conhecimento passou dos Bárbaros aos
ratione peregrinis inventis stare, et aliena excoluisse sibi Gregos e dos Gregos a nós? Por isso, os nossos sempre
duxerunt satis. Quid erat cum Peripateticis egisse de retiveram suficiente, no campo filosófico, aterem-se às
naturalibus, nisi et Platonicorum accersebatur academia, descobertas dos outros e aperfeiçoar o pensamento
96 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 97

quorum doctrina et de divinis semper inter omnes phi- alheio. De que teria valido discutir acerca de questões
losophias - teste Augustino - habita est sanctissima et físicas com os Peripatéticos, se não se fizesse também
a me nunc primum, quod sciam, - verbo absit invidia intervir a Academia dos Platónicos, cuja doutrina acerca
- post multa saecula sub disputandi examen est in das coisas divinas, segundo Agostinho, tem sempre sido
considerada santíssima entre todas as filosofias e agora,
publicum allata. Quid erat et aliorum quotquot erant
pela primeira vez após tantos séculos, por mim apenas
tractasse opiniones, si quasi ad sapientum symposium
- que eu saiba, e longe de mim que tais palavras sejam
asymboli accedentes, nihil nos quod esset nostrum, de inveja - foi trazida ao exame de um debate público?
nostro partum et elaboratum ingenio, afferebamus? De que teria valido ter discutido as opiniões dos outros,
Profectum ingenerosum est, ut ait Seneca, sapere solum se, convidados para o banquete como quem não leva
ex commentario et, quasi maiorum inventa nostrae nada consigo, não tivéssemos trazido nada de nosso,
industriae viam praecluserint, quasi in nobis effeta sit nada produzido e elaborado pelo nosso engenho? É
vis naturae, nihil ex se parere, quod veritatem, si non verdadeiramente pouco nobre, como afirma Séneca,
saber apenas de comentário, como se as descobertas
demonstret, saltem innuat vel de longinquo. Quod si in
dos maiores tivessem fechado o caminho para a nossa
agro colonus, in uxore maritus odit sterilitatem, certe
investigação, como se a força da natureza, como que
tanto magis infecundam animam oderit illi complicita esgotada, não pudesse gerar algo que, ainda que não
et associata divina mens, quanto inde nobilior longe mostrando completamente a verdade, a faça pelo menos
proles desideratur. entrever de longe. Do mesmo modo que o camponês
Propterea non contentus ego, praeter communes odeia a infertilidade do campo e o marido a esterilidade
doctrinas multa de Mercuri Trismegisti prisca theolo- na mulher, assim também a mente divina odiará ainda
gía, multa de Chaldaeorum, de Pythagorae disciplinis, mais uma alma infecunda ligada e cingida a si, quanto
mais nobre é a prole que dela se deseja.
multa de secretioribus Hebraeorum addidisse mys-
Por tais motivos, eu, insatisfeito por ter trazido, além
teriis, plurima quoque per nos inventa et meditata,
das doutrinas comuns, muitos assuntos da antiga teologia
de naturalibus et divinis rebus disputanda propo- de Hermes Trimegisto, muitas das teorias dos Caldeus e
suimus. Proposuimus primo Platonis Aristotelisque de Pitágoras, muitos dos escondidos mistérios dos He-
concordiam a multis antehac creditam, a nemine satis breus, também propus à discussão muitíssimos assuntos
probatam. Boethius, apud Latinos, id se facturum pol- concernentes ao mundo natural e divino, encontrados
licitus, non invenitur fecisse umquam quod semper e meditados por mim. Antes de tudo o mais, propus o
facere voluit. Simplicius, apud Graecos idem profes- acordo entre Platão e Aristóteles, por muitos já antes
considerado possível, mas por ninguém suficientemente
sus, utinam id tam praestaret quam pollicetur. Scribit
provado. Boécio, entre os Latinos, embora tivesse pro-
et Augustinus in Academicis non defuisse plures qui
metido fazê-lo, parece que nunca cumpriu o que sempre
subtilissimus suis disputationibus idem probare co- disse querer fazer: Simplício, entre os Gregos, tinha
nati sint, Platonis scilicet et Aristotelis eamdem esse sustentado a mesma coisa, oxalá tivesse mantido quanto
98 I GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM I 99

philosophiam. joannes item Grammaticus cum dieat prometera. Até mesmo Agostinho, no livro Contra os Aca-
apud eos tantum dissidere Platonem ab Aristotele, démicos, escreve que muitos foram os que tentaram provar
qui Platonis dieta non intelligunt, probandum tamen nas suas subtilíssimas disputas que a filosofia de Platão
posteris hoc reliquit. Addidimus autem et plures locos e de Aristóteles são uma mesma filosofia. Assim, João
Gramático, que afirma que Platão difere de Aristóteles
in quibus Scoti et Thomae, plures in quibus Averrois
só para os que não percebem o texto de Platão, deixou
et Avieennae sententias, quae discordes existimantur, aos vindouros a demonstração.
concordes esse nos asseveramus. Secundo loco, quae Acrescentámos ainda várias teses nas quais afirmámos
in philosophia cum Aristotelica tum Platoniea excogi- que as sentenças consideradas contrastantes de Escoto e
tavimus nos, tum duo et septuaginta nova dogmata de Tomás, de Averróis e de Avicena, pelo contrário são
physiea et metaphysiea collocavimus, quae si quis concordantes. Propusemos, pois, as conclusões por nós
teneat, peterit, nisi fallor, quod mihi erit mox mani- encontradas quer sobre a filosofia platónica, quer sobre
festum, quamcumque de rebus naturalibus divinisque a aristotélica e, portanto, setenta e duas novas teses de
física e de metafísica, as quais, após demonstradas, qual-
propositam quaestionem longe alia dissolvere ratione,
quer um poderá, (se não me engano) com o que me
quam per eam edoceamur quae et legitur in scholis et
será manifesto dentro de pouco tempo, resolver qual-
ab huius aevi doctoribus colitur philosophiam. Nec quer questão natural e teológica com um outro critério,
tam admirari quis debet, Patres, me in primis annis, in diferente do que se ensinou e se ensina nas escolas e que
tenera aetate, per quam vix licuit - ut iactant quidam é usado pelos filósofos do nosso tempo. E que ninguém
- aliorum legere commentationes, novam afferre velle se admire, ó Padres, que eu jovem em anos e de idade
philosophiam, quam vel laudare illam, si defenditur, imatura, a qual, como insinuam alguns, só permite que
vel damnare, si reprobatur, et denique, cum nostra se leiam os comentários dos outros, queira propor uma
nova filosofia. Tal facto será antes de louvar, se a souber
inventa haec nostrasque sint litteras iudieaturi, non
defender, de condenar, se for reprovada; enfim, os que
auctoris annos, sed illorum merita potius vel demerita
deverão julgar as nossas descobertas e os nossos escritos,
numerare. Est autem, et praeter illam, alia, quam nos tenham em conta não os anos do autor, mas sim os méritos
attulimus, nova per numeros philosophandi institutio ou deméritos da obra.
antiqua, illa quidem et a Priscis Theologis, a Pythagora Propusemos ainda, além das novas teses, um outro pro-
praesertim, ab Aglaophamo, a Philolao, a Platone priori- cedimento filosófico com base nos números, seguido pelos
busque Platonicis observa ta, sed quae hac tempestate, primeiros Teólogos, especialmente por Pitágoras, por Agla-
ut praeclara alia, posteriorum incuria sie exolevit, ut vix ofemo, por Filolau, por Platão e pelos antigos platónicos,
doutrina que, como outras doutrinas ilustres, se apagou de
vestigia ipsius ulla reperiantur. Scribit Plato in Epinomide,
tal modo, devido à in cúria dos vindouros, que delas dificil-
inter omnes liberales artes et scientias contemplatrices
mente se encontra actualmente um ou outro traço. Escreve
praecipuam maximeque divinam esse scientiam nume- Platão no Epinómides que a ciência de contar é, entre todas
randi. Quarens item, cur homo animal sapientissimum? as artes e as ciências de contemplar, excelente e sumamente

L
1001 GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM 1101

respondet: quia numerare novit. Cuius sententiae et divina. E perguntando-se por que razão é o homem o mais
Aristoteles meminit in Problematis. Scribit Abumasar sapiente dos animais, responde: porque sabe contar. Esta
sentença também Aristóteles recorda nos Problemas. Escreve
verbum fuisse Avenzoar Babylonii, eum omnia nosse qui
Abumasar, que foi opinião de Avenzoar, babilónio, que tudo
noverat numerare. Quae vera esse nullo modo possunt,
sabe quem sabe contar. Tal coisa de modo algum poderia
si per numerandi artem eam artem intellexerunt cuius ser verdadeira se, por arte de contar, se entendesse a arte
nunc mercatores in primis sunt peritissimi, quod et Plato do cômputo de que agora são peritos sobretudo os merca-
testatur, exserta nos admonens voce ne divinam hanc dores, e isto confirma também Platão quando nos adverte,
arithmeticam mercatoriam esse arithmeticam intelliga- com voz ampla, para não se confundir esta aritmética divina
mus. Illam ergo arithmeticam, quae ita extollitur, cum com a aritmética dos comerciantes. Após longas reflexões,
mihi videar post multas lucubrationes exploratam habere, considerando, portanto, ter examinado a fundo a aritmética
huiusce rei periculum facturus, ad quattor et septuaginta assim exaltada e estando pronto para afrontar a discussão,
tomei a decisão de responder publicamente mediante os
quaestiones, quae inter physicas et divinas principales
números a setenta e quatro questões, consideradas
existimantur, responsurum per numeras publice me sum
principais entre as físicas e divinas.
pollicitus. Praposuimus et magica theoremata, in quibus Propusemos também teoremas mágicos onde de-
duplicem esse magiam significavimus, quarum altera monstrámos que a magia(*) é dupla; uma fundando-se
daemomum tota opere et auctoritate constat, res medius exclusivamente na obra e autoridade dos demónios, é
fidius execranda et portentosa. Altera nihil est aliud, cum coisa execrável e monstruosa; a outra, pelo contrário, se
bene exploratur, quam naturalis philosophiae absoluta olharmos bem, nada mais é do que a suprema realização
consummatio. Utriusque cum meminerint Graeci, illam da filosofia natural. Os Gregos, tendo presente uma e
outra, indicam a primeira, não a dignificando de modo
magiae nullo modo nomine dignantes yor}'a::iavnuncu-
algum com o nome de Magia com o vocábulo yOTl'cEÍav, e
pant, hanc prapria peculiarique appellatione j..layEÍav,
chamam com o próprio e peculiar nome J!ayEÍa à quase
quasi perfectam summamque sapientiam vocant. perfeita e suprema sapiência. Como disse Porfírio, de
Idem enim, ut ait Porphyrius, Persarum lingua facto, na língua persa, «mago» tem o mesmo significado
magus sonat quod apud nos divino rum interpres et que tem para nós intérprete e cultor das coisas divinas.
cultor. Magna autem, immo maxima, Patres, inter has Grande, portanto, melhor, enormíssima, ó Padres, é a
artes disparilitas et dissimilitudo. Illam non modo
Christiana religio, sed omnes leges, omnis bene in- (*) Magia - Para Pico existem dois tipos de magia. Por um lado
stituta respublica damnat et exsecratur. Hanc omnes a magia negra da bruxaria e da feitiçaria, obra do demónio que ele
critica e recusa, por outro, identificando-se com a filosofia natural. Pico
sapientes, omnes caelestium et divinarum rerum considera-a uma "boa magia" porque se refere ao estudo e interpretação
studiosae nationes, approbant et amplectuntur. Illa das coisas celestes e divinas que permite, também, o conhecimento da
realidade terrestre visto esta ser uma criação de Deus. Corresponde
artium fraudolentissima, haec firma, fidelis et solida.
também ao poder do homem manipular a natureza. Há quem se
Illam quisquis coluit semper dissimulavit, quod in refira, por isso, ao Pico que anuncia a tecnologia (N. T.).
1021 GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM 1103

auetoris esset ignominiam et eontumeliam, ex hae disparidade e a dissemelhança entre estas duas artes. Uma
summa litterarum claritas gloriaque antiquitus et é condenada e detestada não só pela religião cristã, mas
paene semper petita. Illius nemo umquam studiosus por todas as leis, por qualquer Estado bem organizado. A
fuit vir philosophus et eupidus diseendi bobas artes; outra aprovam-na e abraçam-na todos os sábios, todos os
povos amantes de coisas celestes e divinas. Aquela é entre
ad hane Pythagoras, Empedocles, Demoeritus, Plato,
todas as artes a mais fraudulenta; esta é segura, digna
diseendam navigavere, hane praediearunt reversi,
de fé e sólida. Quem quer que tenha praticado aquela
et in areanis praecipuam habuerunt. Illa, ut nullis sempre o escondeu, pois teria revertido como vergonha
rationibus, ita nee eertis probatur auetoribus; haee, e como dano sobre o seu autor; com esta, na antiguidade
clarissimis quasi parentibus honestata, duos prae- e depois, quase sempre se procurou grande celebridade
cipue habet auetotes: Xalmosidem, quem imitatus e glória nas letras. Daquela nunca foi estudioso algum
est Abbaris hyperboreus, et Zoroastrem, non quem filósofo ou homem desejoso de aprender as boas artes;
forte ereditis, sed ilium Oromasi filuim. Utriusque para aprender esta, Pitágoras, Empédocles, Demócrito e
Platão correram os mares e quando voltaram ensinaram-
magia quid sit, Platonem si pereontemur, respondebit
na e tiveram-na como suprema arte nos seus mistérios.
in Alcibiade: Zoroastris magia non esse aluid quam
Aquela, porque não é sustentada por nenhuma razão,
divino rum scientiam, qua filios Persarum reges erud- não é aprovada por nenhum autor; esta, quase tornada
iebant, ut ad exemplar mundana e Reipublieae suam nobre por ilustres pais, tem sobretudo dois cultores.
ipsi regere Rempublieam edoeerentur. Respondebit in Zalmóxides que imitou Ábaris, o Hiperbóreo, e
Charmide, magiam Xalmosidis esse animi medicinam, Zoroastro, não aquele em que talvez estejais a pensar,
per quam scilieet animo temperantia, ut per illam cor- mas o filho de Oromásio. Que magia é a destes dir-
pori sanitas eomparatur. Horum vestigiis postea per- -nos-á, se o interrogarmos, Platão no Alcibíades: que a
magia outra coisa não era senão o conhecimento das
stiterunt Carondas, Damigeron, Apollonius, Hostanes
coisas divinas, que os reis persas ensinavam aos seus
et Dardanus. Perstitit Homerus, quem ut omnes alias
filhos para que aprendessem a governar a sua Repúbli-
sapientias, ita hane quoque sub sui Ulixis erroribus ca, segundo o exemplo da ordem do mundo. Respon-
dissimulasse in poetica nostra Theologia aliquando der-nos-á no Cármines que a magia de Zalmóxides é a
probabimus. Perstiterunt Eudoxus et Hermippus. medicina da alma, com a qual se atinge a harmonia da
Perstiterunt fere omnes qui Pythagora Platonieaque vida interior, do mesmo modo que com a outra se obtém
mysteria sunt perserutati. Ex iunioribus autem, qui a saúde do corpo.
eam olfeeerint tres reperio, Alchindum, Arabem, Na esteira destes persistiram Carondas, Damigeron,
Rogerium Baeonem et Guilielmum Parisiensem. Me- Apolónio, Hostanes, Dárdano. Seguiu-a Homero, que
demonstraremos um dia, numa nossa Teologia poética,
minit et Plotinus, ubi naturae ministrum esse et non
ter escondido, sob as viagens do seu Ulisses, tal como
articifem Magum demonstrat: hane magiam probat todas as outras ciências, também esta. Seguiram-na
asseveratque vir sapientissimus, alteram ita abhor- Eudoxo e Hermipo. Seguiram-na quase todos os que

l
1041 GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM 1105

rens ut, cum ad malorum daemonum sacra vocare- investigaram a fundo os mistérios Pitagóricos e Plató-
tur, rectius esse, dixerit, ad se illos quam se ad illos nicos. Entre os modernos que a praticaram encontro
accedere, et merito quidem. Ut enim illa obnoxium três, o árabe Alkindi, Rogério Bacon e Guilherme de
Paris [de Alvérnia]. Recorda-a também Plotino, quan-
mancipatumque improbis potestatibus hominem
do demonstra que o mago é ministro e não artífice
reddit, ita haec illarum principem et dominum. Illa
da natureza: e tal espécie de magia, aquele homem
denique nec artis nec scientiae sibi potest nomem sapientíssimo aprova e sustém, enquanto, pelo con-
vendicare; haec altissimis plena mysteriis, profundis- trário, desdenha a tal ponto da outra que, convidado
simam rerum secretissimarum contemplationem, et para os rituais dos demónios, respondeu com razão que
demum totius naturae cognitionem complectitur. Haec, era melhor que eles fossem até ele e não ele até eles.
inter sparsas Dei beneficio et inter seminatas mundo Enquanto aquela, de facto, torna o homem escravo das
virtudes, quasi de latebris evocans in lucem, non tam forças do mal, esta torna-o senhor e dono. Aquela não
pode reivindicar para si o nome da arte ou da ciência:
facit miranda quam facienti naturae sedula famulatur.
esta, repleta de profundíssimos mistérios, abraça a
Haec universi consensum, quem significantius Graeci
contemplação mais alta das coisas mais secretas e por
crUjl1táSEtUV dicunt, introrsus perscrutatius rima ta et fim, o conhecimento total da natureza. Esta, como que
mutuam naturarum cognitionem habens persectam, trazendo das profundidades à luz as virtudes dispersas e
nativas adhibens unicuique rei et suas illecebras, quae disseminadas no mundo pela bondade de Deus, mais do
magorum íU'Y'YEç nominantur, in mundi recessibus, que realizar milagres coloca-se ao serviço da milagrosa
in naturae gremio, in promptuariis arcanisque Dei natureza. Esta, perscrutando intimamente o secreto
latitantia miracula, quasi ipsa sit artifex, promit in acordo do universo a que os Gregos chamam de uma
publicum, et sicut agricola ulmos vitibus, ita Magus maneira muito significativa crUJl1táSEta, explorando a
mútua ligação das naturezas, atribuindo a cada uma
terram caelo, idest inferiora superiorum dotibus vir-
delas as congénitas lisonjas que se chamam tÚyyEÇ,
tutibusque maritat. Quo fit ut quam illa prodigiosa et isto é, encantamentos dos magos, traz à luz, como se
noxia, tam haec divina et salutaris appareat. Ob hoc ela própria fosse o artífice, as maravilhas escondidas
praecipue quod illa hominem, Dei hostibus mancipans, nas profundezas do mundo, no seio da natureza e dos
avocat a Deo, haec in eam operum Dei admirationem mistérios de Deus, e, do mesmo modo que o camponês
excitat, quam propensa caritas, fides ac spes, certís- casa olmos com videiras, também o Mago casa a terra
sime consequuntur. Neque enim ad religionem, ad com o céu, isto é, as forças inferiores com os dotes e as
Dei cultum quicquam promovet magis quam assidua propriedades superiores. Daqui se infere que, enquanto
a primeira magia aparece como monstruosa e nociva, a
contemplatio mirabilium Dei, quae ut per hanc de
segunda mostra-se divina e salutar. Sobretudo por isto,
qua agimus naturalem magiam bene exploraverimus,
enquanto uma, colocando o homem à mercê dos inimigos
in opificis cultum amoremque ardentius anima ti illud de Deus, o afasta de Deus, a outra exalta-o para tal admi-
canere compellemur: «Pleni sunt caeli, plena est omnis ração das obras de Deus, de onde seguramente derivam
GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM 1107

terra maiestate gloriae tuae». a caridade, a fé e a esperançat"). De facto, nada conduz


Et haec satis de magia, de qua haec diximus, melhor à religião, ao culto de Deus, como a constante
quod seio esse plures qui, sicut canes ignotos semper contemplação das maravilhas de Deus, e quando as tiver-
adlatrant, ita et ipsi saepe damnant oderuntque quae mos examinado bem mediante esta magia natural de que
non intelligunt. agora tratamos, mais ardentemente animados pelo culto
e por um grande amor pelo artífice, seremos levados a
Venio nunc ad ea quae ex antiquis Hebraeorum
cantar: «Cheios estão os céus, cheia está a Terra da Tua
mysterris eruta, ad sacrosanctam et catholicam fidem majestade e glória».
confirmandam attuli, quae ne forte ab his, quibus sunt E agora chega de magia, de que tanto falei, porque
ignota, commentitiae nugae aut fabulae eircumlatorum sei que muitos há que, como os cães que ladram sempre
existimentur, volo intelligant omnes quae et qualia aos desconhecidos, também condenam e odeiam o que
sint, unde petita, quibus et quam claris auctoribus não compreendem.
confirma ta et quam reposita, quam divina, quam Passo agora às coisas que, tiradas dos antigos mistérios
nostris hominibus ad propugnandam religionem contra Hebreus, aleguei como confirmação da sacrossanta e cató-
lica fé, e com o fim de não serem consideradas por aqueles
Hebraeorum importunas calumnias sint necessaria.
que as ignoram como vaidades, patetices ou fábulas de
Scribunt non modo celebres Hebraeorum doctores, charlatães, quero que todos saibam que coisas são e quais,
sed ex nostris quoque Esdras, Hilarius et Origines, donde derivam, por que ilustres autores são confirmadas,
Mosem non legem modo, quam quinque exaratam quão escondidas, quão divinas, quão necessárias são tais
libris posteris reliquit, sed secretiorem quoque et coisas para defender a nossa religião contra as fastidiosas
veram legis enarrationem in monte divinitus accepisse; calúnias dos Hebreus. Escrevem não só célebres doutores
praeceptum autem ei a Deo ut legem quidem populo hebreus mas, entre os nossos, também Esdras, Hilário
publicaret, legis interpretationem nec traderet e Orígenes, que Moisés recebeu no monte não só a lei
que depois deixou aos descendentes em cinco livros, mas
libris, nec invulgaret, sed ipse Iesu Nave tantum,
também uma secreta e verdadeira interpretação dela. A
tum ille aliis deinceps succedentibus sacerdotum
Moisés Deus ordenou que divulgasse a lei, mas que não
primoribus, magna silenti religione, revelaret. Satis escrevesse a interpretação da lei nem a divulgasse, mas a
erat per simplicem historiam nunc Dei potentiam, revelasse só aJesus Nave e este, por sua vez, aos seguintes
nunc in improbos iram, in bonos clementiam, in sumos sacerdotes, sob o sagrado sigilo do absoluto silên-
omnes iustitiam agnoscere, et per divina salutariaque cio. Era suficiente conhecer mediante o simples relato
praecepta ad bene beateque vivendum et cultum daqueles factos quer a potência de Deus, quer a sua ira
verae religionis institui. At mysteria secretiora,
et sub cortice legis rudique verborum praetextu (') Caridade, fé e esperança - São as virtudes teologais transmitidas
latitantia, altissimae divinitatis arcana, plebi palam ao homem por Deus no acto do Baptismo e visam complementar as
virtudes naturais, habitualmente designadas por virtudes cardeais:
facere, quid erat illud quam dare sanctum canibus prudência,justiça, fortaleza e temperança (N. T.).
GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM 1109

et inter porcos spargere margaritas? Ergo haec contra os malvados, quer a demência para com os bons,
clam vulgo habere, perfectis communieanda, inter a justiça para com todos, e serem deste modo educados,
quos tantum sapientiam loqui se ait Paulus, non mediante preceitos divinos e salutares, para uma vida
boa e feliz, para o culto da verdadeira religião. Porém,
humani consilii sed divini praecepti fuit. Quem
revelar abertamente à plebe os mistérios mais secretos,
morem antiqui philosophi sanctissime observarunt.
escondidos sob a casca da lei, expor os sublimes misté-
Pythagoras nihil scripsit nisi pau cuia quaedam, quae rios de Deus, ocultos sob a rude veste das palavras, que
Damae filiae moriens commendavit. Aegyptiorum outra coisa teria sido senão dar as coisas santas aos cães
templis insculptae Sphinges, hoc admonebant ut e lançar pérolas a porcos?
mystica dogmata per aenigmatum nados a profana Manter, portanto, tudo isto oculto do vulgo, a fim
multitudine inviolata custodirentur. Plato Dionysio de o comunicar apenas aos perfeitos, entre os quais
quaedam de supremis scribens substantiis, «per unicamente Paulo afirma pronunciar palavras de sa-
piência, não foi obra de humana prudência, mas de
aenigmata, inquit, dieendum est, ne si epistula forte
divina sabedoria. E tal costume foi escrupulosamente
ad aliorum pervenit manus, quae tibi scribemus ab
observado pelos antigos filósofos. Pitágoras não escreveu
aliis intelligantur». Aristoteles libros Metaphysicae senão pouquíssimas coisas que ao morrer confiou à filha
in quibus agit de divinis editos esse et non editos Damo. As Esfinges, esculpidas nas frentes dos templos
dieebat. Quid plura? Iesum Christum vitae magistrum egípcios, advertiam que os ensinamentos místicos de-
asserit Origenes multa revelasse discipulis, quae viam ser guardados com os nós dos enigmas, invioláveis
illi, ne vulgo fierentcommunia, scribere noluerunt. para a multidão profana. Platão, escrevendo a Dionísio
Quod maxime confirmat Dionysius Areopagita, qui acerca dos modos das substâncias supremas, afirma: «É
secretiora mysteria a nostrae religionis auctoribus ÉK necessário exprimirmo-nos mediante enigmas de modo
que, se alguma vez por acaso a carta cair na mão de
voú EÍç voüv <>tà uéoov Â.óyov,ex animo in animum,
um outro, não seja percebido pelos outros aquilo que
sine litteris, media intercedente verbo, ait fuisse
escrevo». Aristóteles dizia que os livros da Metafísica,
transfusa. Hoc eodem penitus modo cum ex Dei nos quais trata das coisas divinas, eram publicados e
praecepto vera illa legis interpretatio Moisi deitus inéditos. Que mais ainda? Orígenes afirma que Jesus
tradita revelare tu r, dieta est Cabala, quod idem est Cristo, mestre de vida, revelou aos discípulos muitas
apud Hebraeos quod apud nos receptio; ob id scilicet coisas que eles não quiseram escrever para não serem
quod illam doctrinam, non per litterarum monumenta, vulgarizados. Tal facto confirma-o sobretudo Dionísio
sed ordinariis revelationum successionibus alter Areopagita, o qual diz que os mistérios mais secretos
foram transmitidos pelos fundadores da nossa religião h:
ab altero quasi hereditario iure reciperet. Verum
vou EÍç voüv ôtà uéoov ÂÓyov, isto é, de mente a mente,
postquam Hebraei a Babyloniea captivitate restituti
sem escritos, mediante o Verbo.
per Cyrum et sub Zorobabel instaura to templo ad Tendo deste modo sido revelada, por mandamento de
reparandum legem animum appulerunt, Esdras, tunc Deus, a verdadeira interpretação da lei dada a Moisés por
1101 GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM 1111

ecclesiae praefectus, post emendatum Moseos librum, Deus, deu-se-Ihe o nome de Cabala(*) , que para os Hebreus
cum plane cognosceret per exilia, caedes, fugas, tem o mesmo significado que para nós receptio (recepção).
captivitatem gentis Israeliticae institutum a maioribus E isto porque tal doutrina era recebida, não mediante
morem tradendae per manus doctrinae servari non momentos literários, mas por meio de sucessivasrevelações
que um recebia do outro, como por direito hereditário.
posse, futurumque ut sibi divinitus indulta caelestis
Quando os Hebreus, libertados por Ciro da escravi-
doctrinae arcana perirent, quorum commentariis
dão babilónica e construído o templo sob Zorobabel, se
non intercedentibus durare diu memoria non empenharam em restaurar a lei, Esdras, então chefe da
poterat, constituit ut, convocatis qui tunc supererant igreja, depois de ter emendado o livro de Moisés, ao ver
sapientibus, afferret unusquisque in medium quae claramente que não se podia manter a tradição fixada
de mysteriis legis memoriter tenebat, adhibitisque pelos antepassados de transmitir oralmente a doutrina nos
notariis in septuaginta volumina (tot enim fere exílios, nos massacres, nas fugas, nos cativeiros do povo
in Synedrio sapientes) redigerentur. Qua de re ne de Israel, dado que deste modo pereceriam os mistérios
da celeste doutrina, concedidos por Deus, não podendo
mihi soli credatis, Patres, audite Esdram ipsum sic
manter-se por muito tempo a memória desta sem a inter-
loquentem: «Exactis quadraginta diebus loquutus est
posição de textos escritos, estabeleceu que, reunidos os
altissimus dicens: Priora quae scripsisti in palam pone, sábios então sobreviventes, cada um manifestasse quanto
legant digni et indigni, novissimos autem septuaginta conservava guardado na memória acerca dos mistérios da
libras conservabis ut tradas eos sapientibus de populo lei. Estes em seguida, chamados os escribas, foram escritos
tuo. In his enim est vena intellectus et sapientiae fons em setenta volumes, tantos quantos eram então os sábios
et scientiae flumen. Atque ita feci». Haec Esdras ad do Sinédrio. E porque nisto, ó Padres, não deveis apenas
verbum. Hi sunt libri scientiae Cabalae, in his libris crer em mim, escutai Esdras que assim fala: «Ao fim de
merito Esdras venam intellectus, idest ineffabilem quarenta dias, o Altíssimo falou dizendo: o que primeiro
escreveste toma-o público e que o leiam os dignos e os
de supersubstantiali deita te Theologiam, sapientiae
indignos; mas os últimos setenta livros conservá-los-ás a
fontem, idest de intelligibilibus angelicisque formis
fim de os confiares aos sábios do teu povo; neles está a
exactam metaphysicam, et scientiae flumen, idest de veia do intelecto, a fonte de sabedoria, um rio de ciência.
rebus naturalibus firmissimam Philosophiam esse, E assim fiz»: Assim Esdras, textualmente.
clara in primis voce pranuntiavit. São estes os livros da ciência da Cabala; neles, com
Hi libri Sixtus quartus Pontifex maximus, qui razão, Esdras proclamou claramente estar ali a veia do
hunc sub quo vivimus feliciter Innocentium octavum
(') Cabala - Estudo bíblico de cariz filosófico, teológico e cos-
praxime antecessit, maxima cura studioque curavit
mológico, de carácter esotérico (secreto), que sustenta uma tradição
ut in publicam fidei nostrae utilitatem Latinis litteris originada numa revelação divina, transmitida oralmente só a alguns
mandarentur. Itaque, cum ille decessit, tres ex illis eleitos, pretendendo resolver os mistérios da relação do mundo divino
com o mundo terrestre. Corresponde à mais secreta teologia dos
pervenerant ad Latinos. Hi libri apud Hebraeos hac judeus, apontando para um conhecimento místico. (N. T.)
1121 GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM 1113

tempestate tanta religione coluntur, ut nemimem intelecto, isto é, a inefável Teologia da supersubstancial
liceat nisi annos quadraginta natum illos attingere. divindade; a fonte de sapiência, isto é, a exacta metafísi-
Hos ego libros non mediocri impensa mihi cum ca das formas inteligíveis e angélicas; e o rio de ciência,
comparassem, summa diligentia, indefessis laboribus isto é, a solidíssima filosofia das coisas da natureza. Estes
livros, Sisto N, Sumo Pontífice, que foi o imediato prede-
cum perlegissem, vidi in illis - testis est Deus
cessor de Inocêncio VIII sob o qual felizmente vivemos,
- religionem non tam Mosaicam quam Christianam.
mandou, com grande cuidado e grande zelo, que fossem
Ibi Trinitatis mysterium, ibi Verbi incarnatio, ibi traduzidos para latim, para pública utilidade da nossa fé.
Messiae divinitas, ibi de peccato originali, de illius Assim, quando morreu, já três tinham sido traduzidos.
per Christum expiatione, de caelesti Hierusalem, de Estes livros procurei-os com não pequeno dispêndio de
casu daemonum, de ordinibus angelorum, de purgatoriis, dinheiro, li-os com suma diligência e incansável estudo e
de inferorum poenis, eadem legi quae apud Paulum et vi neles - Deus é disso testemunha - não tanto a religião
Dionysium, apud Hieronymum et Augustinum, quotidie Moisaica quanto a Cristã. Aqui os mistérios da Trindade,
aqui a encarnação do Verbo, aqui a divindade do Messias;
legimus. In his vero quae spectant ad philosophiam,
aqui quanto diz respeito ao pecado original, à expiação
Pythagoram prorsus audias et Platonem, quorum
deste por meio de Cristo, quanto concerne à Jerusalém
decreta ita sunt fidei Christianae affinia, ut Augustinus Celeste, à queda dos demônios, aos coros angélicos, às
noster immensas Deo gratis agat, quod ad eius manus penas do purgatório e do inferno; li as mesmas coisas que
pervenerint libri Platonicorum. In plenum nulla est todos os dias lemos em Paulo e Dionísio, em Jerônimo
ferme de re nobis cum Hebraeis controversia, de qua e em Agostinho. No tocante à filosofia, parece-nos ouvir
ex libris Cabalistarum ita redargui convincique non Pitágoras e Platão, cujos princípios são tão afins à fé cristã
possint, ut ne angulus quidem reliquus sit in quem se que o nosso Agostinho dá imensas graças a Deus por lhe
condant. Cuius rei testem gravissimum habeo Antonium terem chegado às mãos os livros dos platônicos.
Concluindo, não há nenhum assunto controverso
Cronicum virum eruditissimum, qui suis auribus,
entre nós e os Hebreus, em que estes não possam ser
cum apud eum essem in convivio, audivit Dactylum
combatidos e convencidos com os livros cabalísticos, de
Hebraeum peritum huius scientiae in Christianorum tal modo que não lhes fica nem sequer um cantinho onde
prorsus de Trinitate sententiam pedibus manibusque se possam esconder. De tal facto tenho uma testemunha
descendere. Sed ut ad meae redeam disputationis capita atendibilíssima, Antônio Crônico, homem eruditíssimo,
percensenda, attulimus et nostram de interpretandis que na sua casa durante um banquete ouviu com os seus
Orphei Zoroastrisque carminibus sententiam. Orpheus próprios ouvidos Dáctilo Hebreu, conhecedor profundo
apud Graecos ferme integer, Zoroaster apud eos de tal ciência, chegar em tudo às mesmas conclusões dos
cristãos acerca da Trindade.
mancus, apud Chaldaeos absolutior legitur. Ambo
Mas, voltando ao exame dos argumentos da minha
priscae sapientiae crediti patres et auctores. Nam ut
disputa, trouxemos também o nosso modo de interpretar
taceam de Zoroastre, cuius frequens apud Platonicos os carmes de Orfeu e de Zoroastro. Orfeu lê-se nos textos
1141 GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM 1115

non sine summa semper veneratione est mentio, scribit gregos quase integralmente, Zoroastro nos textos gregos está
lamblichus Chalcideus habuisse Pythagoram Orphicam mutilado, mas está mais completo nos dos Caldeus. Ambos
Theologiam tamquam exemplar ad quam ipse suam são considerados pais e autores da antiga sabedoria. Para
não falar de Zoroastro, frequentemente mencionado pelos
fingeret formaretque philosophiam.
Platónicos e sempre com suma veneração,]âmbico de Cal-
Quin idcirco tantum dieta Pythagorae sacra
cíclica escreve que Pitágoras considerava a teologia órfica o
nuncupari dicunt, quod ab Orphei fluxerint institutis; modelo sobre o qual plasmou e formou a sua filosofia.
inde secreta de numeris doctrina, et quicquid magnum Precisamente por isso, porque derivam da iniciação ór-
sublimeque habuit graeca philosophia, ut a primo fonte fica, os ensinamentos de Pitágoras consideram-se sagrados;
manavit. Sed (qui erat veterum mos Theologorum) deles emanou, como sua primeira fonte, a secreta doutrina
ita Orpheus suorum dogmatum mysteria fabularum dos números e tudo o que de grande e de sublime teve
intexit involucris et poetico velamento dissimulavit, a filosofia grega. Mas, como era costume dos antigos teó-
logos, Orfeu revestiu os mistérios dos seus dogmas com a
ut si quis legat illius hymnos, nihil subesse credat
veste das fábulas e dissimulou-os com véus poéticos, de tal
praeter fabellas nugasque meracissimas. Quod volui
modo que quem lê os seus hinos pode julgar não passarem
dixisse ut cognoscatur quis mihi labor, quae fuerit estes de fabulações e de divagações brincalhonas. E quis
dificultas, ex affectatis aenigmatum syrpis, ex fabularum dizer isto para que se saiba que fadiga foi a minha, que
latebris latitantes eruere secretae philosophiae sensus, dificuldade foi tirar do emaranhado dos enigmas, dos véus
nulla praesertim in re tam gravi tam abscondita das fábulas, os sentidos ocultos da secreta filosofia, sem o
inexplorataque adiuto aliorum interpretum opera et auxílio de outros intérpretes, numa empresa tão grave, re-
diligentia. Et tamen oblatrarunt canes mei minutula côndita e inexplorada. E mesmo assim, os que me assediam
quaedam et levia ad numeri ostentationem me como cães ladram que eu acumulei por mera ostentação
futilidade e patetices, como se não tivesse proposto todas
accumulasse, quasi non omnes quae ambiguae maxime
aquelas questões que são as mais ambíguas e controversas,
controversaeque sunt quaestiones, in quibus principales sobre as quais polemizam as principais escolas; como se eu
digladiantur academiae, quasi non multa attulerim his tivesse proposto questões de todo desconhecidas e nunca
ipsis, qui et mea carpunt et se credunt philosophorum focadas mesmo por aqueles que me atacam e se reputam
principes, et incognita prorsus et intentata. de mestres entre os filósofos.
Quin ego tantum absum ab ea culpa, ut curaverim De tal modo estou longe de tais culpas que procurei
in quam paucissima potui capita cogere disputationem. reduzir a discussão ao menor número possível de pon-
Quam si - ut consueverunt alii - partiri ipse in sua tos. Que, se eu tivesse querido - como é habitual outros
fazerem - dividir e desmembrar nas suas partes, teria
membra et lancinare voluissem, in innumerum profecto
escrito certamente um número inumerável de teses. Para
numerum excrevisset. Et, ut taceam de ceteris, quis
não falar de tudo o mais, quem não sabe que uma só das
est qui nesciat unum dogma ex nongentis, quod novecentas teses, isto é, aquela sobre a conciliação entre
scilicet de concilianda est Platonis Aristotelisque a filosofia de Aristóteles e a de Platão, eu a poderia ter
GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM 1117

philosophia, potuisse me citra omnem affectatae dividido, e sem incorrer na suspeita de prolixidade, em
numerositatis suspicionem in sexcenta ne dicam seiscentos pontos, para não dizer mais ainda, enumerando
plura capita deduxisse, locos scilicet omnes in quibus separadamente todos os lugares em que os outros consi-
deram que os dois contrastam e eu penso, pelo contrário,
dissidere alii, convenire ego illos existimo particulatim
que estão de acordo?
enumerantem? Sed certe - dicam enim quamquam
Mas certamente - e di-lo-ei, embora não seja modesto
neque modeste neque ex ingenio meo - dicam tamen, da minha parte e seja contra a minha índole - di-Io-ei,
quia dicere me invidi cogunt, cogunt obtrectatores, contudo, porque a isso me obrigam os invejosos e me
volui hoc meo congressu fidem facere, non tam quod forçam os detractores: quis nesta assembleia mostrar não
multa scirem, quam quod scirem quae multi nesciunt. tanto que sei muitas coisas, mas que sei coisas que os ou-
Quod ut vobis reipsa, Patres colendissimi, iam palam tros ignoram. E para que isto agora, Venerandos Padres,
ó

fiat, ut desiderium vestrum, doctores excelentissimi, quos seja manifesto a partir da realidade dos factos, para que
o meu discurso não empate muito mais o vosso desejo,
para tos accinctosque expectare pugnam non sine magna
excelentíssimos doutores que vejo, prontos e preparados,
voluptate conspicio, mea longius oratio non remoretur,
esperando a contenda, e não sem grande prazer, com um
quod felix faustumque sit quasi citante classico iam bom augúrio, como ao som da trompa de guerra, venha-
conseramus manus. mos agora à batalha.
r

~
lndice

Acerca do pensamento de Giovanni


della Mirandola VII

Nota Bibliográfica XXXV

Estudo Pedagógico Introdutório XLI

Discurso de Giovanni Pico Conde de Concórdia 51

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