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À Procura Da Peróla Viva - Esoterismo Cristão - Olavo de Carvalho
À Procura Da Peróla Viva - Esoterismo Cristão - Olavo de Carvalho
Jesus Cristo permeiam os mais profundos toques esotéricos. É preciso saber ler no intrincado se seus
mistérios.
Disciplina ascética e o
conhecimento superior
Em suma: o judaísmo e o Islã se apresentam como exoterismos que
revestem uma essência esotérica; o cristianismo, como um esoterismo
que, aos poucos, se reveste de uma camada esotérica.
Essa constatação, que é óbvia em si mesma (embora de uma
obviedade raramente constatada), leva-nos a compreender certas
contradições aparentes entre o Velho e o Novo Testamento. Se o
Decálogo ordena “honrar pai e mãe” e o Cristo diz que veio “trazer a
divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entra nora e a sogra,
e os inimigos do homem serão pessoas de sua própria casa” (Mateus
10:34), Ele não está contradizendo a Lei, pois não veio nem para
contradizê-la nem para repeti-la literalmente, mas para levá-la à
perfeição (Mateus 5:17), isto é, para fazê-la cumprir num plano
superior. Quer dizer: Cristo está contradizendo os Profetas, Ele está
falando de outra coisa. Os Profetas traziam uma Lei, para ser cumprida
literalmente por todos; Cristo está trazendo um caminho de perfeição,
uma via espiritual, para ser seguida por aqueles que tiverem “ouvidos
para ouvir, olhos para ver” – o que, certamente, não se aplica a toda a
humanidade indistintamente. Enfim: os Profetas falam num plano
exotérico, de legislação e culto, e Cristo fala num plano esotérico, de
ascese individual.
Tais contradições aparentes não deixaram de criar dificuldades mais
tarde, quando o cristianismo se transformou em religião institucional,
pois as palavras de Cristo não podiam ser violadas em seu sentido
literal, nem tomadas só literalmente como leis para toda a sociedade.
Quem poderia estabelecer um código de leis que incluísse, para toda a
sociedade, a obrigação de oferecer a outra face ou de abandonar todos
os seus bens para sair em busca de Deus? Por isto, tais sentenças não
foram interpretadas como leis, mas como conselhos de perfeição: eles
não são normas para as pessoas comuns, mas ideais que de forma
alguma a Igreja considera obrigatórios para um cristão. O que não
impede que se tornem obrigatórios para alguns indivíduos seletos, num
plano esotérico, como parte da disciplina ascética que lhe dará acesso
não apenas ao Paraíso que está garantido indistintamente a todos os
fiéis, mas a um conhecimento superior e direto, ainda em vida. Aquilo
que exotericamente é um ideal inatingível torna-se, no plano esotérico,
uma exigência disciplinar.
Como a fronteira entre o ideal e o obrigatório se torna sutil, muitos
são os casos onde o cristão se debate na angústia de não conseguir ser
plenamente cristão, enquanto que ao judeu ou islamita, para sê-lo,
basta que sigam literalmente e de boa-fé as prescrições das respectivas
Leis reveladas (as quais, no caso muçulmano, são de uma simplicidade
ao alcance dos mais ignorantes). Claro que a sinceridade interna da
adesão e da obediência também entram em conta, mas não de maneira
inicial e ostensiva como no cristiabismo.
“Devido a essa circunstância” – escreve Luc Benoist – “a doutrina
cristã não pode escapar de um desequilíbrio proveniente da
confrontação da sua alta espiritualidade com as exigências duma vida
ordinária. A via do Cristo mostrou-se particularmente difícil na sua
prática, expondo seus fiéis ao risco de uma hipocrisia permanente,
como é constatada por Kierkgaard quando declara o cristianismo
‘inviável’.”
E não será demais lembrar o cinismo com que Gurdjieff perguntava:
“Como podemos amar nossos inimigos se não conseguimos amar nem
nossos amigos?”
Resumindo tudo numa frase do meu professor Michel Veber, “se você
quer ser um esoterista muçulmano, primeiro tem de ser muçulmano; se
que ser um esoterista cristão, primeiro tem de ser cristão”.
Se a essência do esoterismo cristão não está oculta em um passado
histórico inacessível, mas na letra mesma dos Evangelhos, suas
manifestações históricas, por outro lado, são tão abundantes em toda a
história do Ocidente que parece um esforço cômico ir buscá-las nas
pirâmides do Egito.
Em todo o Novo Testamento, são muitas as referências a um
conhecimento “interno” que não poderia ser dado a todos sem
distinção. “Precisais de leite”, diz São Paulo, “e não do alimento sólido.
De fato, aquele que ainda se amamenta não pode degustar a Doutrina,
pois é uma criancinha. Os adultos, porém, que possuem o senso moral
exercitado para discernir o bem e o mal, recebem o alimento sólido”
(Epístola aos Hebreus 5:12-14).
Entretanto, é muito difícil reconstituir historicamente os primórdios
do cristianismo, o que é natural, dado o seu próprio caráter esotérico. É
certo que, embora transcendendo os quadros do exoterismo judaico, ele
se parecia muito com a espiritualidade das comunidades essênias, onde
inclusive o rito principal constituía-se de uma refeição tomada em
comum após uma purificação. Segundo Luc Benoist, é possível que
Jesus tenha recrutado entre os essênios seus primeiros discípulos, pois,
após o advento do cristianismo, os essênios desapareceram de cena,
como se tivessem sido absorvidos numa síntese superior.
Para disseminar-se no mundo antigo, o cristianismo adotou como
veículo o idioma grego (assim como viria mais tarde a adotar o Direito
Romano), o que propiciou a fusão do seu vocabulário com o do
hermetismo helênico, criando uma das mais conhecidas correntes do
esoterismo cristão: as ciências herméticas, entre as quais ressaltam-se
a alquimia e a astrologia.
Durante toda a Idade Média, essa simbiose cristão-hermética
dominou a cultura superior, que se estruturava em torno de sete
disciplinas (gramática, lógica e retórica; aritmética, geometria,
astrologia e música) que formavam o trivium e o quadrivium. Apesar da
coincidência nominal com disciplinas estudadas ainda hoje, tratava-se
de algo inteiramente diverso, pois seus objetos – os números da
aritmética, as figuras da geometria, etc. – não eram vistos como simples
arranjos convencionais para a medição do mundo sensorial, mas como
“suportes simbólicos” para a apreensão, pelo intelecto, de realidades
metafísicas de natureza superior. Um número, por exemplo, não era
uma simples unidade de contagem, mas uma gigantesca summa
articulada de conhecimentos organizados em torno de um padrão lógico
representado por esse número; os números eram também
representações das diversas ordens de realidades que, desde o
Absoluto, se desdobravam na multiplicidade de formas do mundo
manifesto. Do mesmo modo, um planeta não era apenas um corpo ou
uma forma material, mas o símbolo de um princípio formador do real.
A alquimia fechava o trivium e o quadrivium, direcionando todos
esses conhecimentos teóricos para uma prática e, portanto, para o
conhecimento metafísico. Isso significa que toda a alquimia medieval
pode ser considerada tranqüilamente esoterismo cristão, pois ela tenta,
dentro dos quadros simbólicos e doutrinais do cristianismo, reencontrar
na estrutura mesma do mundo material as marcas da presença do
Absoluto. (Com isso, a documentação escrita sobre o esoterismo cristão
sobe a algumas dezenas de milhares de livros.)
[inserir figura: Jacó encontra seu filho José: “Logo que chegou diante
dele, lançou-se-lhe ao pescoço e chorou longamente assim abraçado”
(Gênesis 46:29).]