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Segredos do esoterismo cristão: Na palavra dos profetas e dos apóstolos e nas mensagens deixadas por

Jesus Cristo permeiam os mais profundos toques esotéricos. É preciso saber ler no intrincado se seus
mistérios.

À procura da pérola viva


CONHECIMENTO REVELADO:
O ESOTERISMO
CRISTÃO
[inserir figura: A Piedade1: o corpo de Cristo resgatado (João, 19, 40).]

O cristianismo não muda de forma quando visto sob o


prisma esotérico:
apenas aprofunda-se, sem alterar-se no que quer que
seja. Esta é uma
das constatações do autor deste trabalho, especial para
Planeta.
Aos que se ressentem, contudo, de algum “cunho
esotérico” em seus
ensinamentos, o mestre René Guénon avisa: se o
cristianismo não tivesse
“descido” para o domínio exotérico, o mundo estaria
desprovido de
toda a Tradição.

POR OLAVO DE CARVALHO


[Revista Planeta # 108, setembro de 1981]

A maioria das pessoas que, nas últimas décadas, colocou no


esoterismo sua esperança de um antídoto contra o materialismo e o
cientificismo dominantes, parece julgar que somente fora do mundo
cristão é possível encontrar o que procuram.
1
Nada melhor do que a sensibilidade, o talento e a inteligência do artista Vito
Campanella para ilustrar o texto de Olavo de Carvalho sobre o esoterismo cristão.
Tendo as passagens bíblicas como referência, Campanella dá-lhes dimensões
profundas e cósmicas, como se, de repente, nas entrelinhas dos Textos Sagrados fosse
possível uma nova leitura do que expressam.
Claro, fala-se muito de um “cristianismo esotérico”, especula-se
sobre o intercâmbio entre Jesus e os iniciados essênios. Criam-se
fantasias incríveis sobre as passagens pouco conhecidas da vida de
Nosso Senhor Jesus Cristo, e chega-se a descrever mesmo as iniciações
que teria recebido dos mestres egípcios, em pleno recinto das
pirâmides (!).
Já se escreveram centenas de livros sobre o “aprendizado oculto” de
Jesus, tentando ligá-lo historicamente a tradições anteriores. Mas, como
na maioria dos casos (os essênios ou os egípcios, por exemplo) trata-se
de tradições muito mais desconhecidas do que a própria vida de Jesus,
está claro que não se pode explicar um mistério por outro mistério
maior, e tudo quanto se consegue é aumentar a confusão – isto quando
não se cai na pura e simples profanação de transformar Jesus num mero
personagem humano histórico envolvido em tramas mais ou menos
embrulhadas.
Em primeiro lugar, o termo correto não é “cristianismo esotérico”,
mas “esoterismo cristão”. Isto é mais do que uma inversão de palavras,
porque não há diferentes espécies de cristianismo, sendo uma delas
esotérica, e sim várias espécies de esoterismo, sendo uma delas cristã.
O cristianismo não muda de forma quando visto sob o prisma esotérico:
apenas aprofunda-se, sem alterar-se no que quer que seja. Já o
esoterismo, ao contrário, sendo um único em sua essência (ele é a
philosophia perennis, a verdade metafísica una, eterna, supraformal e
transcendente), varia entretanto nas distintas formas históricas que o
expressam, havendo, portanto, um esoterismo cristão, um islâmico, um
judaico, etc.
Em segundo lugar, para encontrar a pista do esoterismo cristão é
preciso comparar o cristianismo com as demais formas do monoteísmo
semítico – o judaísmo e o Islã – , o que hoje em dia tornou-se mais fácil
para um cristão desde que o Concílio Vaticano II estabeleceu uma
atitude de compreensão fraterna para com as demais tradições
monoteístas, dissipando velhos rancores.

[inserir figura: A Crucificação: “Aquele que o viu o atesta (e o seu


testemunho é verdadeiro e ele sabe que diz a verdade) para que vós
também creiais” (João, 19, 38).]

Nessa comparação, verifica-se que a mensagem judaica e a islâmica


instauram, desde o início, Leis reveladas – destinadas, portanto, a
regrar a vida das comunidades a elas submetidas, e assim a criar, no
recinto do mundo humano e terrestre, formas sociais de vida conformes
à vontade de Deus. Dão o caráter sacro da comunidade tomada em si
mesma, seja ela de natureza racial (o “povo eleito” de Israel) ou de
natureza jurídica, como no caso islâmico.
Já o cristianismo, por seu lado, não estabelece desde logo lei social
nenhuma, e antes proclama seu desinteresse por todos os assuntos
propriamente sociais e políticos: “Dai a César o que é de César”
(Marcos 12:17)) porque “meu reino não é deste mundo” (Mateus
22:21).
Há, portanto, uma diferença básica nas formas iniciais de
apresentação dessas três revelações: o judaísmo e o islamismo
apresentam-se desde logo como religiões institucionais, o cristianismo
como uma via puramente espiritual, alheia a toda questão institucional.
Claro, com isto não se nega o caráter espiritual do judaísmo e do
Islã, nem o caráter institucional do cristianismo. Apenas ocorre que, no
caso judaico e islâmico, a essência espiritual (el lobb, “o miolo”, na
terminologia islâmica) se apresenta sob uma carapaça jurídica e social
(el qishr, “a casca”), enquanto o cristianismo se apresenta inicialmente
sem essa carapaça e só a desenvolve depois, no decorrer dos séculos,
quando isso se torna necessário para a implantação do culto e da
civilização cristã.

[inserir figura: O velho rei Davi e a escrava Abisang: Procure-se para o


rei, meu senhor, uma jovem virgem, para que sirva ao monarca e o
aqueça” (I Reis 1:2).]

Disciplina ascética e o
conhecimento superior
Em suma: o judaísmo e o Islã se apresentam como exoterismos que
revestem uma essência esotérica; o cristianismo, como um esoterismo
que, aos poucos, se reveste de uma camada esotérica.
Essa constatação, que é óbvia em si mesma (embora de uma
obviedade raramente constatada), leva-nos a compreender certas
contradições aparentes entre o Velho e o Novo Testamento. Se o
Decálogo ordena “honrar pai e mãe” e o Cristo diz que veio “trazer a
divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entra nora e a sogra,
e os inimigos do homem serão pessoas de sua própria casa” (Mateus
10:34), Ele não está contradizendo a Lei, pois não veio nem para
contradizê-la nem para repeti-la literalmente, mas para levá-la à
perfeição (Mateus 5:17), isto é, para fazê-la cumprir num plano
superior. Quer dizer: Cristo está contradizendo os Profetas, Ele está
falando de outra coisa. Os Profetas traziam uma Lei, para ser cumprida
literalmente por todos; Cristo está trazendo um caminho de perfeição,
uma via espiritual, para ser seguida por aqueles que tiverem “ouvidos
para ouvir, olhos para ver” – o que, certamente, não se aplica a toda a
humanidade indistintamente. Enfim: os Profetas falam num plano
exotérico, de legislação e culto, e Cristo fala num plano esotérico, de
ascese individual.
Tais contradições aparentes não deixaram de criar dificuldades mais
tarde, quando o cristianismo se transformou em religião institucional,
pois as palavras de Cristo não podiam ser violadas em seu sentido
literal, nem tomadas só literalmente como leis para toda a sociedade.
Quem poderia estabelecer um código de leis que incluísse, para toda a
sociedade, a obrigação de oferecer a outra face ou de abandonar todos
os seus bens para sair em busca de Deus? Por isto, tais sentenças não
foram interpretadas como leis, mas como conselhos de perfeição: eles
não são normas para as pessoas comuns, mas ideais que de forma
alguma a Igreja considera obrigatórios para um cristão. O que não
impede que se tornem obrigatórios para alguns indivíduos seletos, num
plano esotérico, como parte da disciplina ascética que lhe dará acesso
não apenas ao Paraíso que está garantido indistintamente a todos os
fiéis, mas a um conhecimento superior e direto, ainda em vida. Aquilo
que exotericamente é um ideal inatingível torna-se, no plano esotérico,
uma exigência disciplinar.
Como a fronteira entre o ideal e o obrigatório se torna sutil, muitos
são os casos onde o cristão se debate na angústia de não conseguir ser
plenamente cristão, enquanto que ao judeu ou islamita, para sê-lo,
basta que sigam literalmente e de boa-fé as prescrições das respectivas
Leis reveladas (as quais, no caso muçulmano, são de uma simplicidade
ao alcance dos mais ignorantes). Claro que a sinceridade interna da
adesão e da obediência também entram em conta, mas não de maneira
inicial e ostensiva como no cristiabismo.
“Devido a essa circunstância” – escreve Luc Benoist – “a doutrina
cristã não pode escapar de um desequilíbrio proveniente da
confrontação da sua alta espiritualidade com as exigências duma vida
ordinária. A via do Cristo mostrou-se particularmente difícil na sua
prática, expondo seus fiéis ao risco de uma hipocrisia permanente,
como é constatada por Kierkgaard quando declara o cristianismo
‘inviável’.”
E não será demais lembrar o cinismo com que Gurdjieff perguntava:
“Como podemos amar nossos inimigos se não conseguimos amar nem
nossos amigos?”

Guénon e a “descida” ao exotérico


A transformação do esoterismo cristão numa religião institucional
demandou o estabelecimento de certas leis que, não estando prescritas
no Evangelho, tiveram de ser procuradas em alguma outra fonte. Essa
fonte foi o Direito Romano, no qual a Igreja, transformada em Igreja do
Estado pelo imperador Constantino quando mudou a sede do Império
para Bizâncio, apoiou-se para estabelecer o Direito Canônico. Do
mesmo modo, a Igreja aproveitou-se dos quadros da administração
imperial para estruturar-se como organização social.
Tudo isso leva-nos a compreender por que aqueles que buscam o
esoterismo cristão através de pesquisas históricas nos meandros mais
obscuros de civilizações perdidas e sociedades secretas jamais o
encontraram: o esoterismo cristão não está lá, está aqui, na letra
mesma das palavras do Evangelho. O exoterismo, o estabelecimento da
religião institucional, foi que, ao contrário, teve de interpretar as
palavras do Cristo em sentido figurado para poder dar-lhes um caráter
de certa obrigatoriedade geral que, por si mesmas, não parecem ter.
Hoje em dia, muitos, concordando com a versão dos fatos aqui
apresentada, poderão interpretá-la num sentido errôneo e, de certo
modo, maldoso, acreditando ver, nesse progressivo estabelecimento de
uma religião institucional, uma desvirtuação, uma degenerescência da
intenção originária. Nada mais freqüente, hoje em dia, do que ataques à
“religião estabelecida” em nome da “essência” do cristianismo.
Frente a isso é preciso ressaltar que o estabelecimento da religião
institucional não foi uma degenerescência nem uma traição, mas, ao
contrário, uma expressão da misericórdia. A explicação seguinte é de
René Guénon (que é mais do que insuspeito, já que não era católico,
mas muçulmano):
“Se considerarmos qual era, na época, o estado do mundo ocidental,
isto é, do conjunto de países que estavam então compreendidos no
Império Romano, podemos facilmente dar-nos conta de que, se o
cristianismo não tivesse ‘descido’ para o domínio exotérico, esse
mundo, em seu conjunto, teria ficado logo desprovido de toda Tradição,
aquelas que existiam até então tendo chegado a uma extrema
degenerescência que indica que seu ciclo de existência estava ao ponto
de terminar. Essa ‘descida’, insistamos ainda, não foi portanto de forma
alguma um acidente ou um desvio, mas devemos, ao contrário, encará-
la como tendo um caráter verdadeiramente ‘providencial’, pois ela
evitou que o Ocidente caísse desde essa época num estado que teria
sido, em suma, comparável àquele em que se encontra atualmente. O
momento de produzir-se uma perda geral da Tradição como essa que
caracteriza propriamente os tempos modernos ainda não tinha
chegado; era preciso, portanto, que houvesse uma ‘restauração’, e só o
cristianismo podia operá-la, mas com a condição de renunciar ao
caráter esotérico e ‘reservado’ que tinha tido de início.”
É preciso, portanto, crer que a fundação do cristianismo como
religião foi desejado pelos representantes da Tradição, ou seja, do
esoterismo. Aí entra outra explicação de Guénon, ressaltando que os
representantes qualificados da Tradição, na época, reconheceram no
Cristo a autoridade absoluta tanto no campo esotérico como no
exotérico. A autoridade da Tradição anterior ao Cristo é representada,
na Bíblia, pelos três Reis Magos:
“Pela homenagem que prestam ao Cristo” – escreve Guénon – “eles
reconhecem expressamente nele a fonte de toda a autoridade nos três
domínios em que ela se exerce: o primeiro oferece ouro e o saúda como
rei; o segundo lhe oferece o incenso e o saúda como sacerdote; o
terceiro lhe oferece a mirra ou o bálsamo da incorruptibilidade e o
saúda como profeta ou Mestre espiritual por excelência, o que
corresponde diretamente ao princípio comum dos dois poderes,
sacerdotal e real. A homenagem é assim rendida ao Cristo desde seu
nascimento humano, nos ‘três mundos’ de que falam todas as tradições
orientais: o mundo terrestre, o mundo intermediário e o mundo celeste;
e aqueles que a fazem não são outros senão os depositários autênticos
da Tradição primordial.”
Além disso, Guénon ressalta, num outro texto, que a descida do
cristianismo ao nível exotérico ou religioso ocorreu num momento que
estava perfeitamente de acordo com as leis cíclicas conhecidas pelas
tradições orientais.

Segredos na palavra dos


Evangelhos
Além disso, em todas as tradições esotéricas o conhecimento
profundo obtido pelo esoterista jamais desmente propriamente algum
dogma religioso, antes o completa dando-lhe a plenitude do seu
significado e justificando pela certeza do conhecimento aquilo que
antes era sustentado apenas fé. Dentro do esoterismo islâmico, por
exemplo, o fiel comum se submete à proibição do vinho porque assim o
manda a Lei, e talvez interprete essa proibição num sentido moralista
ou vulgarmente higiênico. Já o esoterista compreenderá que essa
proibição se destina a resguardar um “suporte simbólico”, pois o vinho
vai representar justamente certas essências espirituais que o estudante
sufi tem acesso em certos graus de iniciação, e que assim se trata de
uma proibição meramente “técnica”, e não moral ou sanitária. Mas isso
não o desobrigará de continuar cumprindo a proibição num sentido
literal que, por outro lado, ele já superou.

[inserir figura: Moisés e o Faraó: “E o coração do Faraó se endureceu, e


não deu ouvidos a Moisés e a Aarão, como o Senhor tinha dito” (Êxodo
7:13).]]

Resumindo tudo numa frase do meu professor Michel Veber, “se você
quer ser um esoterista muçulmano, primeiro tem de ser muçulmano; se
que ser um esoterista cristão, primeiro tem de ser cristão”.
Se a essência do esoterismo cristão não está oculta em um passado
histórico inacessível, mas na letra mesma dos Evangelhos, suas
manifestações históricas, por outro lado, são tão abundantes em toda a
história do Ocidente que parece um esforço cômico ir buscá-las nas
pirâmides do Egito.
Em todo o Novo Testamento, são muitas as referências a um
conhecimento “interno” que não poderia ser dado a todos sem
distinção. “Precisais de leite”, diz São Paulo, “e não do alimento sólido.
De fato, aquele que ainda se amamenta não pode degustar a Doutrina,
pois é uma criancinha. Os adultos, porém, que possuem o senso moral
exercitado para discernir o bem e o mal, recebem o alimento sólido”
(Epístola aos Hebreus 5:12-14).
Entretanto, é muito difícil reconstituir historicamente os primórdios
do cristianismo, o que é natural, dado o seu próprio caráter esotérico. É
certo que, embora transcendendo os quadros do exoterismo judaico, ele
se parecia muito com a espiritualidade das comunidades essênias, onde
inclusive o rito principal constituía-se de uma refeição tomada em
comum após uma purificação. Segundo Luc Benoist, é possível que
Jesus tenha recrutado entre os essênios seus primeiros discípulos, pois,
após o advento do cristianismo, os essênios desapareceram de cena,
como se tivessem sido absorvidos numa síntese superior.
Para disseminar-se no mundo antigo, o cristianismo adotou como
veículo o idioma grego (assim como viria mais tarde a adotar o Direito
Romano), o que propiciou a fusão do seu vocabulário com o do
hermetismo helênico, criando uma das mais conhecidas correntes do
esoterismo cristão: as ciências herméticas, entre as quais ressaltam-se
a alquimia e a astrologia.
Durante toda a Idade Média, essa simbiose cristão-hermética
dominou a cultura superior, que se estruturava em torno de sete
disciplinas (gramática, lógica e retórica; aritmética, geometria,
astrologia e música) que formavam o trivium e o quadrivium. Apesar da
coincidência nominal com disciplinas estudadas ainda hoje, tratava-se
de algo inteiramente diverso, pois seus objetos – os números da
aritmética, as figuras da geometria, etc. – não eram vistos como simples
arranjos convencionais para a medição do mundo sensorial, mas como
“suportes simbólicos” para a apreensão, pelo intelecto, de realidades
metafísicas de natureza superior. Um número, por exemplo, não era
uma simples unidade de contagem, mas uma gigantesca summa
articulada de conhecimentos organizados em torno de um padrão lógico
representado por esse número; os números eram também
representações das diversas ordens de realidades que, desde o
Absoluto, se desdobravam na multiplicidade de formas do mundo
manifesto. Do mesmo modo, um planeta não era apenas um corpo ou
uma forma material, mas o símbolo de um princípio formador do real.
A alquimia fechava o trivium e o quadrivium, direcionando todos
esses conhecimentos teóricos para uma prática e, portanto, para o
conhecimento metafísico. Isso significa que toda a alquimia medieval
pode ser considerada tranqüilamente esoterismo cristão, pois ela tenta,
dentro dos quadros simbólicos e doutrinais do cristianismo, reencontrar
na estrutura mesma do mundo material as marcas da presença do
Absoluto. (Com isso, a documentação escrita sobre o esoterismo cristão
sobe a algumas dezenas de milhares de livros.)

Padres do Deserto: a prece


perpétua
As ciências herméticas, entretanto, representam apenas uma
aplicação da metafísica às realidades menores e contingentes, e por
isso são secundárias e inferiores em relação a ela; identificam-se assim
com os Pequenos Mistérios da Antigüidade, enquanto a metafísica se
identifica com os Grandes Mistérios. No caso cristão, estes parecem
reservados às ordens sacerdotais, especialmente monásticas.
Por isso, durante a Idade Média, enquanto nas cidades e nas
universaidades se desenvolvem as ciências do trivium e do quadrivium,
os monges, retirados do mundo, prosseguiam a linha mestra da
Tradição, proveniente dos primeiros Padres do Deserto.
Estes Padres do Deserto não se ocupavam de ciência, mas apenas do
conhecimento metafísico direto – o acesso ao Absoluto. Herdeiro dos
primeiros Padres do Deserto, o hesiquiasmo – palavra grega que
designa solidão, recolhimento e paz, e que se adota como denominação
de uma das principais tradições da espiritualidade monástica –
estabeleceu certas formas de ascese que perpetuam até hoje a Tradição
cristã. Uma de suas principais técnicas é a prece perpétua, a qual
procura realizar literalmente a sentença de São Paulo, que manda “orar
sem cessar”. Essa técnica começou a ser ensinada no monte Sinai, já
nos primeiros séculos do cristianismo, sendo depois o centro de difusão
transferido para o monte Atos, onde ela ainda é praticada e ensinada.
No século 19, a prece perpétua recebeu uma difusão maciça, com a
edição da Philokalia (coletânea de escritos dos primeiros Padres do
Deserto, que dá todos os fundamentos e indicações para essa prática) e,
mais ainda, com a mesma edição dos Relatos de um Peregrino Russo,
livro anônimo, da mais alta espiritualidade, que no entanto se tornou
uma leitura popular em toda a Rússia. (Vêem como não é preciso buscar
o esoterismo cristão nas pirâmides do Egito?)
No aspecto formal, a prece perpétua assemelha-se a técnicas
orientais como o dhikr islâmico (recitação ordenada dos Nomes de
Deus) e o nembutsu dos budistas. Os maiores expositores da prece
perpétua foram, segundo se diz, Evagro, o Pôntico, no século 4, São
Gregório do Sinai, São Simeão, o Novo Teólogo, e São Gregório
Palamas, este já no século 14. Evagro definia a prece como “uma
conversação entre o intelecto e o Absoluto”.
Se no Oriente o esoterismo sobreviveu intocado, enquanto no
Ocidente ele pareceu desaparecer de cena, foi porque aqui a própria
expansão territorial do mundo cristão tornou difíceis as comunicações
das várias organizações esotéricas entre si, enquanto que o Oriente
permaneceu mais estático, facilitando a continuidade da Tradição.

O importante papel da Ordem dos


Templários
No cristianismo latino, o papel de intermediário entre o Ocidente e o
Oriente foi atribuído aos templários – ordem iniciática fundada por São
Bernardo, uma das maiores figuras da Igreja de todos os tempos –, que
mantiveram com os iniciados muçulmanos relações de cordialidade e
intercâmbio.
Esse intercâmbio deixou uma herança tão grande que é impossível
averiguar em toda a sua extensão e profundidade o influxo islâmico na
cultura do Ocidente, o qual, quando se conhece um pouco da história do
esoterismo, se revela muito mais profundo do que os historiadores
leigos supõem. Por exemplo, a Divina Comédia, de Dante, é construída
sobre símbolos esotéricos fornecidos pela escola sufi de Suhrawardi, da
qual, portanto, Dante deve ser considerado uma expressão européia.
Sabe-se que Dante pertenceu a uma organização iniciática, a Fede
Sancta, que, como os Fedeli d’Amore e a Rosacruz, resultou de um
acordo entre iniciados cristãos e muçulmanos para manter o laço de
colaboração.
Aos Fedeli d’Amore pertenceu Bocaccio, autor do Decameron, obra
iniciática apesar do sentido francamente profano e diabólico que lhe foi
atribuído no cinema. No Decameron, um dos personagens,
Melquisedec, proclama decididamente a unidade transcendental de
todas as religiões no plano da doutrina metafísica. Sabe-se que, na
Bíblia, Melquisedec representa justamente a fusão do esoterismo e do
exoterismo, pois ele aparece revestido da dupla função sacerdotal e real
e, nas palavras de São Paulo (Epístola aos Hebreus 7:1-3), Melquisedec
“não tem pai nem genealogia, mas está feito à semelhança do Filho de
Deus, e permanece sacerdote para sempre”.

[inserir figura: Jacó encontra seu filho José: “Logo que chegou diante
dele, lançou-se-lhe ao pescoço e chorou longamente assim abraçado”
(Gênesis 46:29).]

Na Idade Média, o conhecimento hermético expressou-se também


através das artes e ofícios, que, por exemplo, cristalizaram na
construção das catedrais não apenas os símbolos alquímicos como
também as regras aritméticas e geométricas que fundamentavam as
ciências do trivium e do quadrivium; pode-se ler sobre isto na obra de
Fulcanelli, O Mistério das Catedrais.
O mundo do esoterismo cristão ocidental não se dispersou
totalmente a partir da Renascença, mas, por uma série de fatores que
seria longo enumerar (e dos quais tratei justamente no meu livreto A
Imagem do Homem na Astrologia), tornou-se progressivamente
incompreensível para a intelectualidade moderna, destituída do tipo de
formação e informação fornecido nas universidades medievais. Desde
então, as expressões mais marcantes do esoterismo cristão foram as
seguintes:
– A obra de Mestre Eckhart e de toda a escola do Reno, assunto
facilmente acessível, já que existem edições modernas da obra de
Eckhart e de seus discípulos.
– A obra de Nicolau de Cusa, que expõe francamente a unidade das
religiões no plano metafísico (tendo-a inclusive ilustrado com um livro
sobre o islamismo).
– A obra de Jacob Boehme, que toma a cosmologia hermética –
astrologia e alquimia – como ponto de partida para a metafísica.
– Nos séculos 18 e 19, a obra dos chamados (erroneamente)
tradicionalistas românticos, como Joseph de Maistre e Luis Claude de
Saint-Martin. De Maistre (cuja obra os meios literários costumam
interpretar num sentido apenas político, o que, se fosse certo, a
tornaria de reduzida importância) chega a afirmar taxativamente: “O
cristianismo dos primeiros tempos foi uma verdadeira iniciação.”
– No século 19, a difusão da Philokalia (editada no fim do século
anterior) e dos Relatos de um Peregrino Russo.
– Já no século vinte, a obra de René Guénon, embora não direcionada
especificamente à exposição da Tradição cristã, representou um grande
estímulo nesse sentido, já que, expondo as doutrinas orientais, deu
várias “chaves” de apoio para a reinterpretação e a redescoberta da
Tradição cristã.
– Vários autores ocidentais responderam ao estímulo dado por
Guénon. Esses autores agrupam-se, hoje, em torno das revistas Études
Traditionelles (França), Rivista di Studi Tradizionali (Roma) e Studies in
Comparative Religion (Inglaterra). Entre os autores que mais
escreveram sobre assuntos cristãos nessas revistas destacam-se Martin
Lings, Frithjof Schuon e Marco Pallis.

O QUE HÁ PARA SE LER


O Esoterismo, Luc Benoist (trad. brasileira, Difel, São Paulo, 1969);
Da Unidade Transcendente das Religiões, Frithjof Schuon (trad.
brasileira, Martins, São Paulo, 1951; o original francês, De l’Unité
Transcendante des Réligions, foi recentemente reeditado pelas Éditions
du Seuil); O Rei do Mundo, René Guénon (trad. portuguesa, Minerva,
Lisboa, 1978; a tradução é precária; o original francês, Le Roi du
Monde, foi recentemente reeditado pela Gallimard); O Esoterismo de
Dante seguido de São Bernardo, René Guénon (trad. portuguesa de boa
qualidade, Veja, Lisboa, 1978); Aperçus sur l’Ésoérisme Chrétien, René
Guénon (Éditions, Traditionelles, Paris, 1977); Saint Grégoire Palamas
et la Mystique Orthodoxe, Jean Meyendorff (Le Seuil, Paris, 1959);
Ancient Beliefs and Modern Superstitions, Martin Lings (Unwin
Mandala Books, Londres, 1980).

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