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GRR20090647
MIMESIS DA VIDA
A POÉTICA DE ARISTÓTELES
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RESUMO
3
DEDICATÓRIA
Aos meus pais, que sempre incentivaram meu cultivo das artes e do pensamento
livre.
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AGRADECIMENTOS
5
INTRODUÇÃO
"Mesmo assim, diga-se que, se a poesia imitativa voltada para
o prazer tiver argumentos para provar que deve estar presente
numa cidade bem governada, a receberemos com gosto, pois
temos consciência do encantamento que sobre nós exerce;
mas seria impiedade trair o que julgamos ser verdadeiro."
(Platão, A República, Livro X, 607d)
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opiniões. Careceríamos de fôlego aqui se propuséssemos uma tomada do conceito
de mimesis na história da arte como um todo, e então procuraremos manter o foco
em Platão e Aristóteles, principalmente pela via de Halliwell e Butcher.
1
Crátilo (423b)
2
República (596ff), Crátilo (430b), O Sofista (233d), As Leis (667-70)
3
A República (397a-b), Crátilo (422e)
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Fedro (252d, 264e), Protágoras (326a), Fédon (105b)
5
O Sofista (267a), As Leis (836e)
6
Fedro (248e)
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A República (399a-c, 400a), As Leis (655d)
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o filósofo, afastado da realidade. Como o mesmo argumento seria apresentado
contra os poetas, aqueles que operam a mimesis com relação aos homens?
PLATÃO (601a) explica: "todos os poetas são imitadores da virtude e dos
restantes assuntos sobre os quais compõe, mas não atingem a verdade; mas,
como ainda há pouco dissemos, o pintor fará o que parece ser um sapateiro, aos
olhos dos que percebem tão pouco de fazer sapatos como ele mesmo (...) parece-
me, que o poeta, por meio de palavras e frases, sabe colorir devidamente cada uma
das artes, sem entender delas mais do que saber imitá-las, de modo que, a outros
que tais, que julgam pelas palavras, parecem falar muito bem, quando dissertam
sobre a arte de fazer sapatos, ou sobre a arte da estratégia, ou sobre qualquer
outra (...)". Para Platão, os poetas seriam mimetai da virtude, no entanto estariam
afastados dela pois imitariam a própria imitação da virtude. Enquanto o filósofo
buscaria uma definição para a virtude, os poetas e tragediógrafos simplesmente
operariam a mimesis de homens que supostamente eram virtuosos. Destarte,
pareceria que os poetas teriam algum conhecimento da virtude, mas o
conhecimento seria somente da ordem do simulacro. Os mimetai poderiam assim
dissertar sobre as diversas artes, sem, no entanto, nada saber sobre a verdade
(601a): "o criador de fantasmas, o imitador, segundo dissemos, nada entende da
realidade, mas só da aparência".
No livro sobre "As Leis" (1998, 654b), Platão desenvolve um argumento que
sustenta que as artes devem promover a edificação moral, ou no mínimo, e menos
satisfatoriamente, a erradicação do mal. A 'corretidão' mimética é avaliada com
relação a representação verdadeira das coisas. O mimetês que faz o feio passar
por belo, ou o mau passar por bom, é assim responsável pela ruína moral daqueles
com os quais se relaciona, e por tal razão a representação da verdade seria algo
indissociável da moralidade. A poesia teria assim a capacidade de propagar a
falsidade ética ou, de maneira contrária, o aceitável: a identidade da virtude e da
felicidade. Para que a mimesis pudesse ter qualquer justificação, teria que ser de
encontro à sustentação dessa equação moral e suas implicações.
Para PLATÃO (1997, 606d), as obras miméticas não cumprem a função moral
que deveriam cumprir. Pelo contrário, elas parecem enaltecer o irracional, as
paixões. Tais obras serviriam assim para o fortalecimento dessas faculdades da
alma, e não, como seria do interesse geral, eliminá-las. A imitação poética, ao invés
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de contribuir para que nos tornemos melhores e mais felizes, pareceria exaltar os
piores e mais desgraçados.
A mimesis do artista compreendida como uma imitação de segunda categoria, e
a poesia compreendida por mimesis da virtude tem para Platão tais consequências.
E se for assim, o filósofo conclui que o artista não deve ser recebido na cidade, pois
ele tem efeitos nocivos sobre a mesma.
DA MIMESIS EM ARISTÓTELES
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de mimesis, mas sim o fato que ele é a mimesis de agentes (dróntes). Isto coloca-
nos a dificuldade que a poesia poderia conter ambos o aspecto narrativo e poético,
pois é esta a forma de Homero, contraposta aos moldes da tragédia segundo
Ésquilo, Sófocles e Eurípides, e por último da comédia como a de Aristófanes.
Tratar da poesia implicaria a análise das obras dos poetas épicos, trágicos e os
autores cômicos.
As colocações expostas nos conduzem a seguinte pergunta: Homero pode ser
considerado um autor dramático? Pois, caso a resposta para tal seja afirmativa, a
distinção entre as diferentes formas de mimesis poéticas não seria tão necessário
como avaliamos anteriormente, dado que uma forma compartilharia com outra, por
vezes, a própria mimesis poética. Para HALLIWELL (1998, p.129) este pareceria
ser o caso, feita a advertência que não seria necessária a representação para
configurar uma poesia dramática, somente o fato de que é a mimesis de dróntes. O
pensador afirma: “Não somente deve Homero ser considerado um grande
dramaturgo, mas o épico na melhor das hipóteses (que para Aristóteles é sua
verdadeira natureza) deve ser considerado uma forma de drama e assim
consistente com uma concepção de mimesis poética como uma arte primariamente
dramática ou representativa.”
A mimesis agora tendo seu escopo redefinido para o campo puramente artístico
e não mais relacionado à metafísica, pareceria agora escapar das acusações feitas
por Platão, de que seria uma cópia. A mimesis dramática, sendo um modo
específico da mimesis poética, não faz referência alguma à realidade das coisas,
pois como Aristóteles afirmou, o poeta não trata de como as coisas são mas sim
como elas podem ser.
A segunda pergunta que parece surgir seria: se os mimetai poéticos ou
dramáticos, dentre os quais incluiremos Homero por motivos anteriormente
expressos, não fazem a mimesis da realidade das coisas, de onde advém seu
material? Seria ele mesmo a fonte de sua mimesis? Uma advertência de
ARISTÓTELES (A Poética, 1448a) será aqui invocada, a saber, que o modo de
mimesis pode ser como o de Homero, que “assume a personalidade de outros” ou
de sua “própria pessoa”. Conforme HALLIWELL (1998, p.131), é através da recusa
da segunda hipótese que surge o modo de mimesis dramático. Aristóteles
continuamente aponta na Poética que é pela primeira forma, a de assumir a
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personalidade de outros, que constitui-se a grandeza de Homero. Pareceria assim
que há duas fontes materiais para a mimesis poética, e nenhuma das duas
pretende atingir a realidade. Como a poesia também não pretende solucionar
questões filosóficas, ou metafísicas, tampouco pretendemos adentrar a pergunta
que surgiria, a saber, se a fonte da mimesis poética advém (i) da personalidade de
outros; e (ii) da própria pessoa; de onde tais instâncias teriam suas fontes? Tal
questão será abordada adiante, em momento mais oportuno, nos capítulos sobre “a
sensibilidade e imaginação” e também sobre “a verdade poética”.
É necessário fazer então a distinção doravante entre a mimesis poética e outras
formas de discurso. É tal associação que motiva toda a crítica que Platão dirige ao
mimetês poético, tratando-o como um filósofo, e assim que no caso seria um mero
imitador. Em segundo lugar, Aristóteles expõe a tese segundo a qual o poeta
pretende afirmar como as coisas podem ser, e não como elas são. Então, como
HALLIWELL (1998, p.135) aponta, é necessário “aceitar a liberdade ficcional
poética para imaginar ações humanas de mais de um tipo, ou derivar seus modos
de ação de outras fontes para além da realidade comum”.
8
Nota do autor entre parênteses.
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tem a ver com o que “pode acontecer” (eikos) e não com o ser, há mais uma
distinção do poeta e do filósofo. A acusação de Platão novamente recebe um golpe
de Aristóteles, pois conforme WOODRUFF (2009, p.617) aponta: “A mimesis
trágica é essencialmente capaz da enganação. Pois é porque a mimesis trágica
tende ao eikos (o que é provável ou plausível), e espera desta forma ser
persuasiva. Mas o que é plausível não é necessariamente a verdade, como
Aristóteles bem sabe (...) e eikos não é objeto da filosofia.”
A mimesis efetuada pelo poeta trágico é denominada por Aristóteles de mythos.
Para ele, entre todos elementos de uma tragédia é este o mais importante. É
comum a tradução de mythos por “trama”, mas para evitarmos ambiguidades ou
equívocos em relação a esta tradução, manteremos o original também pelo
seguinte motivo: a saber, que mythos não trata-se apenas da descrição dos
acontecimentos de uma tragédia tal qual a palavra “trama” sugere, mas sim toda
sua organização formal. BELFIORE (2009, p.641) explica: “A trama trágica (mythos)
é a estrutura formal, um “universal”, governado pelos princípios de probabilidade ou
necessidade, que é voltado às ações humanas significativas.” Há muita
controvérsia entre os comentaristas modernos com respeito à afirmação de
Aristóteles que mythos seria mais importante que todos outros elementos da
tragédia (especialmente a opsis, sobre a qual dedicamos o próximo capítulo de
nossa análise). No entanto, a dificuldade se dá à medida em que não há a
compreensão que mythos, como afirmado anteriormente, não trata-se de
simplesmente os acontecimentos, mas também toda a organização formal da
tragédia. HALLIWELL (1998, p.24) expõe uma compreensão mais ampla de
mythos: “Mythos pode ser a grosso modo reduzido a "trama", mas somente se
compreendemos que não trata-se dos conteúdos contingentes de uma peça ou
poema, mas sim a organização formal que é propositadamente produzida e
esculpida à coerência pelo poeta". Desta forma, se mythos é a mimesis do poeta de
ação e vida, é na organização formal de seu poema que o poeta encontra o meio
de resposta criativa aos estímulos do original. É na construção por meio de signos e
linguagem que o poeta encontra o melhor meio de mimesis da realidade. No
entanto, não é de ordem puramente simbólica a criação do poeta, pois o mythos
encontra na realidade de ações humanas seu original, e ele visa a opsis (o
espetáculo) de tal, encontrando novamente no corpo humano seu veículo para a
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criação de um novo original.
Nossa análise assim aprofundará a compreensão da arte do tragediógrafo, sua
mimesis (o mythos), ao investigar o destino de sua escrita: a realização do
espetáculo, a opsis.
A OPSIS
9
Nota do autor.
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construção do mythos sem a visualização de sua opsis?
Ao nosso ver, pareceria que opsis estaria em um sentido sendo ligada
simplesmente à execução cênica da tragédia, e por outro lado como uma forma
mais intrínseca à construção do mythos, a visualização poética da execução. Para
a primeira, o filósofo reservaria um lugar inferior na ordem hierárquica dos
elementos, sendo possível que a tragédia surtisse seus efeitos à despeito dela, e
para a segunda, algo indispensável à construção do elemento mais importante: o
mythos. Conforme HALLIWELL (1998, p.340) aponta, Aristóteles não estaria
tratando de opsis de forma ambígua, mas sim de opsis enquanto arte do poeta,
forma esta indissociável à construção do mythos, e por outro opsis enquanto arte
do cenógrafo ou ator, que não estaria ligada a arte do poeta, e assim dispensável
aos efeitos de sua arte.
A distinção que apontamos faz surgir uma nova questão, a saber, Aristóteles
trata da tragédia em si mesma, ou em relação ao teatro, à execução cênica? Pois,
se a primeira hipótese for sustentada, pareceria haver uma certa insensibilidade do
filósofo quanto aos efeitos visuais e cênicos que advém do teatro. Também
pareceria levar à conclusão que a tragédia poderia surtir os mesmos efeitos através
de uma leitura do que através de sua efetiva execução, por atores. Não
acreditamos ser este o caso, pois conforme (1453b) o filósofo afirma que “o terror e
a piedade podem surgir por efeito do espetáculo cênico (opsis) (...)”. Há clara
indicação aqui de que a opsis, enquanto arte do ator, cenógrafo, etc, também tem
seu potencial. No entanto, Aristóteles investiga somente arte do poeta, e sendo
assim ele continua (1453b): “(...) mas também podem derivar da íntima conexão
dos atos (mythos)11, e este é o procedimento preferível e o mais digno do poeta.
Porque o mythos deve ser composto de tal maneira que quem ouvir as coisas que
vão acontecendo, ainda que nada veja, só pelos sucessos trema e se apiade (...)
Querer produzir estas emoções unicamente pelo espetáculo (opsis) é processo
alheio à arte (do poeta)12 e que mais depende da coregia.”
Conforme mencionamos anteriormente, o poeta estaria liberto da condição de
educador, filósofo, ou de qualquer servidão ao entendimento. Pela distinção da
opsis enquanto visualização e elemento construtivo de sua mythos, ao invés de
10
Nota do autor.
11
Nota do autor.
12
Nota do autor.
17
indicações à efetiva realização do espetáculo pelos atores, o poeta é mais uma vez
liberto de sua condição de servidão, desta vez dos sentidos. Pois conforme nossa
análise, e as de HALLIWELL (1998, p.343): “não devemos ter nenhuma dificuldade
em perceber a significância da tentativa de Aristóteles de tornar o poeta em um
fazedor não de materiais para o teatro, mas sim de construções poéticas, mythoi, a
experiência dos quais é cognitiva e emocional, não diretamente ligada aos sentidos,
caso fosse se o drama somente pudesse ser realizado através de sua execução
performática.”
A TRAGÉDIA E AS EMOÇÕES
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“Uma estrutura-de-trama (mythos) bem concebida
implicitamente pressupõe, e inevitavelmente evocará no
espectador ou leitor sintonizado, a experiência trágica distinta
de piedade ou terror; a natureza de tais emoções de tal modo
que serão espontaneamente sentidas em resposta à ação
dramática da espécie requerida.” (HALLIWELL, 1998, p.168-
169)
13
Nota do autor baseada na preferência de HALLIWELL a tratar mythos como “estrutura-de-trama”.
18
ambas. HALLIWELL (1998, p.173) explica: “é muito significativo para a
compreensão da Poética perceber o peso da recusa de Aristóteles a seguir Platão
na ampla dissociação das emoções de outras faculdades da mente. Piedade e
terror (embora não somente as duas) não devem ser consideradas como instintos
ou forças incontroláveis, mas sim como respostas a realidades que são possíveis
em uma mente na qual pensamento e emoções são integrados e
interdependentes”. Novamente, percebemos que a acusação de Platão a uma
suposta corrupção moral por parte dos poetas, que enalteceriam o irracional e o
vinculado às paixões, não somente não seria o caso para Aristóteles, como seria
impossível em sua teoria. As emoções são parte indissociável do processo mental,
integradas ao pensamento, e suscitar a piedade e terror seria mais um estímulo
para tal processo do que sua corrupção.
Ao analisar a piedade segundo Aristóteles, HALLIWELL (p.1998, p.175) aponta
para trechos da Retórica e o fato que, segundo o filósofo, a piedade não seria uma
emoção de caráter altruísta, mas sim “a percepção de afinidade entre o sujeito e o
objeto da emoção”. Desta forma, o espectador de uma tragédia não teria piedade
pelas figuras que sofrem na própria tragédia, mas sim teria, de certa forma, medo,
embora imaginário, de que algo semelhante pudesse ocorrer consigo mesmo ou
pessoas estimadas. Sem dúvidas a mimesis do poeta que provocaria a piedade no
leitor ou espectador não seria da ordem do simulacro ou ilusão completa, mas sim
da ativação de seus imaginários e o suscitar de emoções, embora certamente
cientes de que aquilo que é posto é simplesmente uma obra de arte. Katharsis
poderia aqui ser interpretado como um certo exercício das faculdades emocionais,
indissociáveis de outros processos mentais, e não necessariamente a purgação de
tais emoções pela via platônica. Pois, se todo processo emocional seria, de certa
forma, auto-referente, a tragédia poderia servir para a ativação de toda espécie de
emoção e sensação que poderia estar adormecida no receptor da obra. Ademais,
percebemos que HALLIWELL considera o caráter de edificação moral e ética no
exercício de tais emoções. Pois, ao analisar a Poética em relação à Política (livro
VIII), o comentarista aponta para 1340a 16-18 que poderia caracterizar o processo
de katharsis como uma certa habituação às emoções de medo e piedade.
HALLIWELL (1998, p.196) afirma: “Tal habituação emocional é uma contribuição
para a aquisição de virtude ética, pois conduz a um alinhamento das emoções com
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a percepção de qualidades morais no mundo (...) Aristóteles está comprometido
com o princípio geral (e platônico) que „estar acostumado às sensações de prazer e
dor no caso de semelhanças (i.e. obras miméticas) é uma aproximação a estar
disposto da mesma forma na realidade”.
HALLIWELL percebe que com relação a piedade, a emoção do medo sempre
está pressuposta, pois piedade é de certa forma “medo que algo semelhante
aconteça consigo mesmo”. Ora, o medo pode ser em relação a coisas que
poderiam acontecer (eikos) consigo mesmo ou outrem. No entanto, há a clara
percepção de que mesmo o medo que é em relação ao que poderia acontecer com
outros é, de certa forma, a ativação imaginária de que aquilo poderia acontecer
consigo. Pareceria que Aristóteles, segundo a análise de Halliwell, apontaria que a
natureza do medo é sempre em auto-referência, e que esta emoção é sempre
direcionada a alguma esfera ligada a auto-preservação.
A tragédia suscitaria medo e piedade, e então toda a mimesis de ação e vida que
ela opera é uma mimesis de ação e vida daquele que é leitor ou espectador da
tragédia, pois o medo é sempre auto-referente ao sujeito. Ora, como atingir tal
universalidade, dado que há uma multiplicidade de possíveis leitores e
espectadores? Deixamos a questão com o comentário de HALLIWELL (1998,
p.191) que aponta para o trecho da Retórica onde Aristóteles afirma: “a emoção
que algumas almas sentem de forma potente existe em todas almas em maior ou
menor grau.” Assim, há claramente a pretensão de atingir o universal na alma de
cada alma particular. Medo e seu correlato imaginário, a piedade, seriam emoções
presentes em toda alma, e assim suscitar tais emoções exercitaria algo da ordem
do universal.
DA SENSIBILIDADE E IMAGINAÇÃO
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imaginação que é capaz de percepcionar, como foi dito, existe também nos outros
todos animais; a imaginação que é capaz de deliberar, pelo contrário, pertence
apenas aos animais racionais.”
A imaginação sensível é aquela que produz as imagens mentais que
acompanham a percepção sensível. Os sensíveis próprios (visão, audição, paladar,
olfato, e tato) funcionam em relação aos sensíveis comuns (movimento, descanso,
figura, magnitude, número, e unidade). Cada sensível próprio é associado a um
órgão sensível específico, enquanto os sensíveis comuns não são associados a um
órgão específico. O conteúdo dos sensíveis comuns interage com os sensíveis
próprios, é pelos últimos integrados, e forma as imagens que compõe a percepção.
A união e associação de tais imagens é denominada de imaginação sensível.
A imaginação deliberativa é um componente do pensamento que fornece o
conteúdo para as operações do intelecto. ARISTÓTELES (431a 15) afirma: “Para a
alma discursiva, as imagens servem como as sensações. E, quando ela afirma ou
nega que uma coisa <imaginada> é boa ou má, evita-a ou persegue-a. Por isso é
que a alma nunca entende sem uma imagem.” O processo do pensamento é assim,
para ele, uma manipulação de tais imagens ou representações de objetos.
A indissociabilidade das faculdades sensíveis e do entendimento é um ponto
sobre o qual já fizemos alusão anteriormente. Pois, ao analisarmos a katharsis,
percebemos que há também cognição à medida que as emoções de medo e
piedade são suscitadas. Para Aristóteles isso se dá pois não há conhecimento
possível que não esteja engajado com a faculdade de sensibilidade, e o exercício
de uma faculdade provoca conteúdos na outra. ARISTÓTELES (432a 5) comenta:
“Mas como, ao que parece, nenhuma coisa existe separadamente e para além das
grandezas sensíveis, é nas formas sensíveis que os objectos entendíveis existem.
Estes são os designados «abstracções» e todos os estados e afecções dos
sensíveis. Mas, por isso, se nada percepcionássemos, nada poderíamos aprender
nem compreender14.”
Embora as faculdades da imaginação, do conhecimento, da sensibilidade, sejam
indissociáveis, não há uma equação no que tange o funcionamento de cada uma,
sendo elas assim passíveis de compreensão isoladamente. Somos levados a tal
raciocínio ao perceber como SCHOFIELD (1992, p.276) aponta para a possibilidade
14
Grifo nosso.
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da imaginação lidar com a falsidade, não sendo este o caso da opinião e da
sensibilidade imediata. SCHOFIELD (1992, p.253) também aponta uma distinção
fundamental entre imaginação (phantasia) e crença (doxa), pois a primeira seria
ativada pela vontade e a segunda não. O autor aponta: “(...) se sentimos temor
imediato ao crermos estar perante algo alarmante, no caso da phantasia, seria um
temor semelhante a ver algo em uma pintura”.
Embora a imaginação possa ser ativada por conteúdos externos à alma, não é
somente a isso que ela se resume. Pois, para Aristóteles, ela pode proceder de
inúmeras maneiras, inclusive ativas, e é fonte de grande parcela do raciocínio, e
também fonte para as artes que envolvem criação/invenção (poiesis), objeto de
nossa análise. ARISTÓTELES (427b 15) afirma: “A imaginação, por seu turno, é
algo diferente da percepção e do pensamento discursivo. Ela não sucede, de fato,
sem a percepção sensorial, e sem ela não existe suposição. Que a imaginação não
é contudo a mesma coisa que [o pensamento], nem que a suposição, isso é
evidente. É que essa afecção depende de nós, de quando temos vontade 15 (é
possível, pois, supor algo diante dos olhos, como os que arrumam <as ideias> em
mnemónicas, criando imagens.” As faculdades são assim interdependentes, porém
são preenchidas de conteúdos e formas de agir distintas, sendo a imaginação uma
faculdade criativa, moldada pela vontade, com sua fonte na percepção sensível.
Conforme mencionamos, para que a mimesis ocorra, a imaginação é invocada
para a criação de um novo original obtendo conteúdos das faculdades sensíveis
conforme FREDE (1992, p.281) explica: “a imaginação é, de certa forma, parasita
da sensibilidade”. Assim, os conteúdos da sensibilidade são submetidos à
imaginação e sua atividade moldada pela vontade. O novo original que
sustentamos que a mimesis produz é precisamente a unidade das percepções,
suas associações mais variadas, sob perfis dos mais distintos, moldados de acordo
com a vontade do criador. BUTCHER (1951, p.123) parece concordar com nossa
afirmação: “Um ato visto meramente como um processo ou resultado externo, um
de uma série de fenômenos de fora, não é o verdadeiro objeto de mimesis estética.
A ação que a arte busca a mimesis é composta principalmente de processos
internos, uma energia psíquica em movimento para o externo; feitos, incidentes,
situações, são inclusos à medida que surgem de um ato interno da vontade, ou
15
Grifo nosso.
22
elicitam alguma atividade de pensamento ou sensação.”
Embora seria um tanto proveitoso um estudo sobre o que Aristóteles
compreenderia por “vontade”, deixaremos o tópico para uma análise futura,
percebendo que tal empreitada não seria sem dificuldades. No entanto, podemos
deduzir do que já foi analisado que, segundo Aristóteles, a imaginação lida não
somente com a verdade, ou com aquilo que lhe é imediatamente fornecido. Todo
conteúdo que passa por seu funcionamento passa (i) pela sensibilidade; e (ii) pela
vontade daquele que imagina e não necessariamente das coisas como são
independentemente dele. A relação da mimesis (enquanto ato indissocíavel da
faculdade da imaginação) e a verdade é, assim, o tópico de nosso próximo capítulo.
“Uma obra de arte faz a mimesis de seu original, não como ele
é em si mesmo, mas sim como aparece aos sentidos. A arte é
voltada não à razão abstrata, mas sim à sensibilidade e
faculdade de criação de imagens; ela é voltada às aparências
externas; ela utiliza ilusões; seu mundo não é aquele revelado
pelo pensamento puro; ela vê a verdade, mas em suas
manifestações concretas, e não como uma ideia abstrata.”
(BUTCHER, 1951, p.127)
DA VERDADE POÉTICA
23
complementa: “A primeira marca da distinção, então, é que a poesia tem uma
temática mais elevada que a história; ela exprime o universal e não o particular, as
possibilidades permanentes da natureza humana, e não simplesmente a história de
uma vida individual [...] “.
Conforme Aristóteles observa, a história é um registro de fatos, sobre eventos
particulares, associados pela sua ordem cronológica e não necessariamente uma
conexão causal clara. Por outro lado, a poesia, através de sua estrutura-de-trama
(mythos), e também no funcionamento interno de seus dróntes, observa uma ordem
mais lógica e mais rigorosa que a experiência atual ou efetiva.
Quando Aristóteles faz menção a eikos (o provável) não trata-se do sentido de
média numérica, uma expressão condensada do que ocorre na experiência
cotidiana. BUTCHER (1952, p.168) explica: “A poesia não preocupa-se com o fato,
mas com aquilo que transcende ao fato; ela representa coisas que não são, e que
nunca serão na experiência atual; ela nos apresenta o „que pode ser‟; a forma que
responde à ideia verdadeira. Os personagens de Sófocles, as formas ideais de
Zeuxis, são irreais somente à medida que elas ultrapassam a realidade. Elas não
são contrárias à verdade, aos principios da natureza ou suas tendências ideais.”
O eikos dos fatos cotidianos é aquilo que é usual empiricamente, o que deriva da
observação de uma sequência de eventos, e a dedução do que é normal e regular
em ocorrência: a regra, não a exceção. No entanto, a arte não pode operar com
esse sentido de eikos pois as criações elevadas da poesia são localizadas em outro
plano. É justamente aquilo que não pode ser deduzido do lugar usual da
experiência que compoe o eikos da poesia. BUTCHER (1952, p.167) complementa:
“Poucos escritores compreenderam mais profundamente que Aristóteles a relação
através da qual a verdade poética faz oposição ao fato empírico. Ele dedica uma
grande parcela de um capítulo (cap. XXV) para uma pesquisa sobre as supostas
inverdades e impossibilidades da poesia. Ele indica a distinção entre os erros que
afetam a essência da arte poética, e o erro de fato relacionado às outras artes”. A
verdade poética não é a mesma verdade que a filosofia busca (pois eikos não é
objeto de filosofia), mas mesmo que fosse, seus critérios seriam intimamente
ligados à vontade daquele no qual a phantasia opera, revelando um elemento ativo,
individual, e não necessariamente tal como as coisas são de fato. Percebemos aqui
um dilema: como qualquer verdade estaria ligado ao invidual? Voltando ao
24
parágrafo anterior, percebemos justamente o ponto de Aristóteles, o de que a
poesia lida não com phantasia no sentido individual, cotidiano, com suas fontes
sensíveis nele, mas com sua mira justamente em emoções e sensações que têm a
ver com o melhor, o universal, e não com o individual e seu sentido de real.
Que o eikos relacionado à poesia tem uma ligação forte à phantasia nos parece
evidente na análise de SCHOFIELD (1992, p.276). Ao perceber que embora a
phantasia é distinta da crença e do conhecimento à medida que lida também com a
falsidade, o comentarista sugere critérios diferentes ao lidar com a veracidade no
caso da phantasia. Pois, por um lado, conforme mencionamos no capítulo anterior,
a phantasia obtem seu conteúdo da sensibilidade, e é de certa forma parasita dela,
porém os critérios para verificação de tais conteúdos não podem ser os mesmos
que o da experiência cotidiana e sua regularidade. O elemento ativo da phantasia,
isto é, de moldar e associar formas de phantasma conforme a vontade, é algo que
deve ser levado em consideração. Caso contrário, não haveria distinção alguma
entre a phantasia e a própria sensibilidade, deixando para a primeira somente um
caráter de simulacro e obscurecimento de uma verdade subjacente, a dos objetos
sensíveis. A mimesis poética, intimamente ligada aos processos da phantasia,
parece modificar os objetos sensíveis, tornando-os outra coisa, religando-os a uma
esfera do universal à partir desta fonte sensível particular. BUTCHER (1951, p.152)
complementa: “O movimento geral da vida orgânica é parte de um progresso ao
„melhor‟, as diversas partes trabalhando em conjunto para o bem do todo. O artista
em seu mundo mímico leva adiante tal movimento em direção a uma completude
mais perfeita. As criações de sua arte são aos moldes das linhas ideais que a
natureza desenhou: suas intimações, sua orientação é o que ele persegue. Ele
também visa algo melhor que o atual. Ele produz algo novo, não a coisa atual da
experiência, não uma cópia da realidade, mas uma realidade superior – pois o tipo
ideal deve ir além do atual; o ideal é „melhor‟ que o real”.
Percebemos que a phantasia em si, sem uma efetiva materialização, não faria a
atualização dos objetos sensíveis à esfera do universal. Para que seja completo o
movimento do particular ao universal, é necessário um retorno à sensibilidade, a
operação mimética. A obra mimética torna-se então a materialização do „melhor‟, da
„realidade superior‟. Não restam dúvidas que ela não pode ser considerada uma
cópia inferior, pelo contrário, ela é justamente o universal feito particular.
25
HALLIWELL (1998, p.188) vai além, tomando a ideia de mimesis como um todo, e
atribuindo a ela toda forma de poiesis: “A mimesis é o meio através do qual o eterno
produz e molda o mundo, e, de forma correspondente, o meio através do qual a
mente humana pode ascender ou aspirar em sua busca pelo conhecimento: a
mimesis carrega consigo uma significância ativa filosófica e teológica.”
A MIMESIS DA VIDA
Nossa análise teve como ponto de partida o exame da ideia de Aristóteles que a
poesia não seria uma mimesis de homens mas sim de ação e vida. ARISTÓTELES
(A Poética, 1448a 2-3) apresenta diversos exemplos de como os agentes nas
tragédias não são uma cópia de homens comuns mas, pelo contrário, homens fora
da normalidade, melhores ou piores que os primeiros. A mimesis de tais agentes
opera uma transformação, coloca-nos em confronto com modelos de humanidades
que são atípicos. No entanto, conforme nossa análise sugere em todo seu
percurso, isto não significa um simulacro, ou obscurecimento de uma forma de
verdade subjacente. Pelo contrário, ela manifesta algo, de certa forma, “mais
verdadeiro” que o mundo da sensibilidade e experiência usual.
O drama utiliza signos como meio de expressão, e para Aristóteles é justamente
através de tal forma que a ação e vida encontram seu melhor modelo de mimesis.
O filósofo parece atribuir grande relevância ao poder dos signos como forma de
expressão do pensamento e sentimento, e que a linguagem parece conter grande
potencial para a expressão do caráter humano. É através da linguagem que
pensamento encontra sua plenitude e sua maneira de materialização do universal.
O dramaturgo, através de sua manipulação de signos, fazendo uso constante da
phantasia e, por conseguinte, sua vontade, cria modelos de ação e vida que não
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são encontrados no mundo cotidiano.
A poiesis está intimamente ligada ao processo de mimesis na sua criação de um
novo original tendo como modelo diversas fontes que atravessam a phantasia. Os
modelos apresentados por tal mimesis lidam certamente com a falsidade,
especialmente quando os critérios de verificação são baseados na experiência
cotidiana, conforme BUTCHER (1951, p.176) menciona: “Há ainda outra forma do
„impossível‟ ou mesmo do „irracional‟, que, de acordo com Aristóteles, pode ser
admitido na poesia. Algumas coisas não podem ser defendidas nem como uma
expressão de uma realidade superior, nem como algo que constitui um todo
coerente e conectado que podemos aquiescer sem esforço. Elas recusam-se o
encaixe em nosso esquema sobre o universo, ou de harmonizar-se ao nosso
pensamento. No entanto, pode ser, elas são ainda parte de nossa crença
tradicional, ou consagradas em lendas populares ou superstições. Se elas não são
verdadeiras, acredita-se que são.”
O trecho supramencionado apresenta-nos algo interessante: como a mimesis
pode incluir em sua criação porções da vida que não necessariamente são
cognoscíveis, e que talvez sejam puramente da ordem da superstição ou pura
falsidade. O ponto é justamente que embora tais coisas possam não ter
fundamento, e que sejam irracionais ou impossíveis, elas exercem seus efeitos
sobre a ação do homem, e devem assim ser consideradas quando a mimesis da
vida é efetuada. Há ainda a possibilidade do drama enfatizar e tomar como modelo
tais aspectos da vida, tomando cada vez mais distância do mundo tal como ele é na
experiência usual e aproximando-se mais do eikos (do que a experiência pode ser).
O dramaturgo, tendo como ponto de vista aquilo que „pode ser‟ está assim mais
perto do pensamento fundamental da filosofia de Aristóteles, que enfatiza o „tornar-
se‟ e não o „Ser‟. O eikos revela a ordem da mutação e um desdobramento possível
daquilo que percebemos na experiência cotidiana. Os personagens de Sófocles e
Homero não podem servir de possibilidade atual de nossa experiência mas
certamente como diferença possível. BUTCHER (1951, p.160) explica: “O
pensamento fundamental da filosofia de Aristóteles é o Tornar-se e não o Ser; e
Tornar-se para ele não significa um aparecer e desaparecer, mas sim um processo
de desenvolvimento, um desdobramento de algo já presente no embrião, uma
ascenção que conclui-se no Ser que é o mais alto objeto do conhecimento. A coisa
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concreta individual não é uma aparência sombria mas sim a realidade primária.” A
mimesis da vida revela sempre que realidade tal como percebemos ainda não
tornou-se aquilo que „pode ser‟. O eterno movimento que tende ao „melhor „, às
„formas ideais‟, é algo que a mimesis sempre pode exemplificar através de suas
concretizações.
CONCLUSÃO
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Referências Bibliográficas:
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