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Volume 1 | Número 16 | janeiro a junho de 2016

Universidade Estadual da Paraíba

Profº Antonio Guedes Rangel Junior


Reitor
Prof. Ethan Pereira Lucena
Vice-Reitor

Editora da Universidade
Estadual da Paraíba
Diretor
Cidoval Morais de Sousa

Diagramação
Carlos Alberto de Araujo Nacre

Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura e


Interculturalidade do Departamento de Letras

Direção Geral e Editorial


Luciano Barbosa Justino

Editor deste número


Luciano Barbosa Justino

Conselho Editorial

Alain Vuillemin, UNIVERSITÉ D´ARTOIS


Alfredo Adolfo Cordiviola, UFPE
Antonio Carlos de Melo Magalhães, UEPB
Arnaldo Saraiva, UNIVERSÍDADE DE PORTO
Ermelinda Ferreira Araujo, UFPE
Goiandira F. Ortiz Camargo, UFG
Jean Fisette, UNIVERSITÉ DU QUÉBEC À MONTRÉAL ( UQAM)
Max Dorsinville, MC GILL UNIVERSITY, MONTRÉAL
Maximilien Laroche, UNIVERSITÉ LAVAL, QUÉBEC
Regina Zilberman, PUC-RS
Rita Olivieri Godet, UNIVERSITÉ DE RENNES II
Roland Walter, UFPE
Sandra Nitrini, USP
Saulo Neiva, UNIVERSITÉ BLAISE PASCAL
Sudha Swarnakar, UEPB

Coordenadores do Mestrado em Literatura e Interculturalidade


Antonio Carlos de Melo Magalhães e Luciano Barbosa Justino

Revisores
Eli Brandão da Silva, Luciano B. Justino,
Sébastien Joachim, Antonio Magalhães
Sociopoética
Volume 1 | Número 16 | janeiro a junho de 2016

POESIA DE RODA.
NOTAS A PARTIR DO
CONVÍVIO POÉTICO
ENTRE ALFONSO REYES E
MANUEL BANDEIRA

Campina Grande - PB
SocioPoética - Volume 1 | Número 16
24 janeiro a junho de 2016

POESIA DE RODA. NOTAS A PARTIR DO CONVÍVIO


POÉTICO ENTRE ALFONSO REYES E MANUEL BANDEIRA

Luciana di Leone1 UFRJ

RESUMO:

Este texto pretende, a partir da abordagem de algumas relações poéticas entre


Manuel Bandeira e Alfonso Reyes, apontar de que modo a poesia de circunstância
por eles praticada - principalmente por motivo da sua própria amizade ao longo
das décadas de 30 e 40 - nos permite refletir em torno de uma concepção de
poesia que se alicerça menos no valor moderno de rigor formal, da posição
crítica e da voz autoral, e mais na valoração do passageiro, do contato e do
convivial. A poesia de circunstância seria uma poesia indicial como se mostra
no funcionamento particular que nela adquirem os nomes próprios. Ela, pela
sua precariedade foi, tradicionalmente, recusada pela crítica e pelas edições
consagratórias.

PALAVRAS CHAVE: poesia de circunstância – convívio – nomes próprios –


Manuel Bandeira – Alfonso Reyes

ABSTRACT:

This article focus on the poetic relations between Manuel Bandeira and Alfonso
Reyes, particularly on the occasional poetry practiced by the two poets and
motivated by their friendship during the decades of 1930’s and 40’s. It reflects
on the particularities of a poetic genre that values more the transitory, the
contact and the camaraderie than typical modern values, such as formal rigor,
critical stand and authorial voice. Occasional poetry is an indicial poetry, as
can be testified in the particular function it assigns to proper names. Due to its
precariousness, occasional poetry has been traditionally despised by critics and
their canonizing editions.

KEYWORDS: occasional poetry; coexistence; proper names; Manuel Bandeira;


Alfonso Reyes

1 Luciana di Leone é Professora Adjunta do Departamento de Ciência da


Literatura na Universidade Federal de Rio de Janeiro. Possui Doutorado em
Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense, com a tese “De
trânsitos e afetos: alguma poesia argentina e brasileira do presente”.
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A sala de aula e o poema: do rigor à roda

A consequência mais conhecida da relação literária e


de amizade entre o poeta e diplomata mexicano Alfonso
Reyes e o poeta não diplomata Manuel Bandeira é o
poema “Rondó dos cavalinhos”.

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo.

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O sol tão claro lá fora
E em minh’alma — anoitecendo!

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Alfonso Reyes partindo,
E tanta gente ficando...

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando...

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minh’alma — anoitecendo!
(BANDEIRA, p.239)

O poema, segundo conta a lenda, fora escrito


pelo brasileiro em 1935 por ocasião de um almoço de
despedida oferecido por vários amigos no Jockey Club do
Rio de Janeiro ao mexicano, que deixava o país depois
de vários anos de estadia como Embaixador. Publicado
originalmente em Estrela da manhã (1936), com o título
de “Rondó do Jockey Club”, se tornara um dos poemas
mais trabalhados pelos professores e pesquisadores para
abordar a poesia de Bandeira, em parte porque seria
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representativo dos traços que a crítica considerou mais


característicos da poética banderiana– o tom coloquial,
o humor, a ironia e o uso de formas fixas simples – e em
parte porque o poema ganhara um capítulo no muito
útil livro do crítico Antonio Candido, Na sala de aula,
publicado em 1984.
Esse livro de Candido foi, para os professores, uma
ferramenta quase inevitável para praticar a análise de
poema em classe. Nesse “caderno”, lembremos, Candido
analisa seis poemas, não necessariamente canônicos, de
diversos autores, partindo – segundo nos diz no Prefácio
– de alguns “pressupostos históricos comuns”, como
o de que os significados “são complexos e oscilantes”,
que o poema é uma “fórmula” construída consciente ou
inconscientemente pelo seu autor e que o analista deve
tentar entender qual é a estrutura, qual a sua matriz
formal (CANDIDO, 1986, p.5-6).
Assim, no capítulo “Carrosel”, dedicado à análise
do poema de Bandeira, Candido observa de que modo
a matéria bruta do contexto histórico, social e político
é trabalhada através de uma estrutura binária de
oposições, de contradições, que se desenvolve ao longo
do poema em todos os seus níveis. 2 Desse modo, o
poema com seu rigor construtivo estruturante daria uma
forma nova, crítica, ao contexto. Candido nos esclarece,
ainda, que o poema está mais próximo de um rondel do
que de um rondó, tal como se diz no título,3 forma fixa
escolhida por Manuel Bandeira, segundo Candido, como
modo de chamar a atenção para a “rigorosa construção”
do poema ao mesmo tempo em que, levando em conta

2 Para uma análise minuciosa do poema remeto, de forma redundante, ao próprio texto
de Candido, que não reponho aqui, justamente, por não desviar meu foco de atenção.
3 O próprio Manuel Bandeira nos oferece a diferença entre essas duas formas em
“A versificação em língua portuguesa”: “O rondó, forma francesa, é um poema de
quinze versos, distribuídos em três estrofes segundo o esquema aabba /aabC /
aabbaC [...] A palavra rondó designa também um gênero de poemas com estribilho,
e de número de versos e estrofação variáveis. [...] O rondel é um poema de treze
versos segundo o esquema Abba/ abAB / abbaA” (BANDEIRA, 1960, pp.3246-3247).
Bandeira menciona que podemos encontrar inúmeros exemplos de rondós ou rondel
com variações, principalmente em português.
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que se trata de um gênero cortesão, encenaria mais uma


oposição própria da estrutura, já que contrastaria com a
linguagem popular, informal, e as palavras vulgares do
poema.
No entanto, uma leitura focada no rigor construtivo
deixa escapar outras das características destas formas
fixas - tanto a do rondó quanto a do rondel - que me
parecem especialmente caras ao poema e, de certo
modo, à própria proposta do Candido. Características que
nos levam ao mesmo tempo aquém e além da fixidez da
forma: nos levam a uma dimensão do poema que é da
ordem do passageiro e do convivial.
No “Prefácio” ao livro, Candido reconhece que
todo o que ali está escrito foi fruto de a sala de aula e
parece insinuar, por tanto, que as análises foram sendo
“acrescidas e modificadas” como fruto da relação com
os alunos. De certa forma, poderíamos dizer, o livro é
feito em diálogo e graças à escuta e ao convívio, e seu
próprio funcionamento em toda sala de aula, solicita as
vozes e os corpos de professores e alunos entremeados.
Não é um livro autossuficiente, mas depende de uma
performance. Da mesma forma que para avaliar o livro
de Candido, para avaliar o rondó e o rondel precisamos
prestar especial atenção não ao rigor construtivo da
forma fixa, mas ao tipo de convívio, à trama de corpos
e vozes próprio das danças de roda, que esses gêneros
acarretam por definição.

Rondó e rondel: da roda à letra4

Como dizemos, o “Rondó dos cavalinhos” se aproxima


mais à forma fixa do rondel, e não tanto ao rondó
referido no título. Tendo mas semelhança ainda com
uma das variações, mais brasileira de Rondó, a de Silva
Alvarenga que, como Candido menciona, se aproxima

4 Parafraseio aqui o título do artigo de Eduardo Sterzi, “Da voz à letra” (2012), que
analisa a posição particular do soneto, como uma forma que ao mesmo tempo
abandona a tradição da poesia oral e cantada, mas não deixa de leva-la no seu nome.
Repetirei o mesmo viés analítico aqui em relação ao Rondó e o rondel.
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de uma modinha.5 Não me interessa aqui definir qual é


a forma fixa certa do poema de Bandeira, mas apontar
que as três mencionadas até aqui – rondó, rondel, rondó
brasileiro - têm algumas características comuns que se
tornam centrais para entender a ideia de poesia que o
poema encena.
Rondó e rondel são formas fixas que têm seu
momento de predominância na Baixa Idade Média (XII-
XV), na passagem da Idade Média para a Renascença.
Como sabemos, a poesia dos trovadores medievais era
inseparável da uma dimensão oral, musical e dançante. O
rondel, forma muito utilizada entre os séculos XIV e XVI
derivada da balada provençal e ligada frequentemente a
uma coreografia, é composto geralmente de treze versos
octossílabos ou decassílabos repartidos em três estrofes,
e se destaca na sua estrutura a importância do refrão,
que se encontra nos dois primeiros versos e retorna uma
e outra vez entre essas estrofes. O rondó é uma forma um
pouco anterior ao rondel, mas como este, já enuncia no seu
nome o vínculo com algo que não seria especificamente
literário, o seu vínculo com a “ronda”, a roda, ao mesmo
tempo um tipo de dança e um tipo de música, um tipo
de jogo e um tipo de arte. Rondó remete a uma forma
fixa poética composta geralmente por quinze versos,
com um refrão retornante; mas rondó também é uma
forma musical, baseada na repetição de um tema, uma
pequena melodia - como se escuta no “Rondó alla turca”
de Mozart, mas também na musicalização do “Rondó do
capitão”, feita por João Ricardo para Secos&Molhados
-, e geralmente acompanhada com uma coreografia de

5 Na tradição brasileira a forma do rondó parece ter sofrido uma modificação em função
de um investimento na memorização, na fluidez, na musicalidade. É Silva Alvarenga
quem mais explorara esta forma. Por exemplo, em “O cajueiro - Rondó III”: “Cajueiro
desgraçado, /A que Fado te entregaste,/Pois brotaste em terra dura, /Sem cultura e
sem senhor!// No seu tronco pela tarde,/ Quando a luz no Céu desmaia,/ O novilho a
testa ensaia,/ Faz alarde do valor.// Para frutos não concorre/ Êste vale ingrato e sêco,/
Um se enruga murcho e pêco,/ Outro morre ainda em flor.// Cajueiro desgraçado, / A
que Fado te entregaste, / Pois brotaste em terra dura, / Sem cultura e sem senhor!//
[...]” (Alvarenga in BUARQUE DE HOLLANDA, 1952, p.127-8). Pode notar-se aqui,
que o Rondó fica mais fluido e se aproxima da modinha, como diz Candido, fazendo
uso da redondilha maior, verso típico das cantigas e canções populares.
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dança circular: a dança de roda que atravessa as mais


diversas culturas. No rondó musical, o tema principal
reaparece e se alterna com diferentes temas intermédios
chamados couplets, da mesma forma como o refrão
do Rondó e do Rondel poéticos se alterna com outros
versos. Retorno e roda marcam, então, estes gêneros
poéticos como aquilo que com eles ao mesmo tempo
finda e sobrevive: o vínculo do poema com o que não
é texto. O vínculo com a música, com a dança, com os
corpos da comunidade e com o que não tem uma forma
fixa. Por este motivo resulta bastante útil acompanhar a
reflexão sobre expressões poéticas mais arcaicas.
Segismundo Spina aponta, em Na madrugada das
formas poéticas, o “gosto pela frequência regular do
ritmo” (SPINA, 2002, p.23) próprio das poesias primitivas,
seja nos hinos encomiásticos dos hotentotes, nos cantos
incaicos, esquimós ou tupinambás, ou nas cantigas
paralelísticas galego-portuguesas. Este ritmo, discute
Spina, não proviria tanto do vínculo desses cantos com
o trabalho - no campo, por exemplo, a enxada sulcando
a terra -, como quereriam alguns autores como Karl
Bücher,6 mas do compasso dos ritmos da natureza – as
ondas do mar, a alternância dos dias, a diástole e sístole
cardíaca. Essa frequência regular do ritmo, então, se
associaria menos a uma técnica, a uma coreografia ou a
uma linguagem simbólica e mais a um movimento vital
que palpita nas danças pouco ou nada coreografadas,
como as danças de roda ou circulares.
Neste sentido, cabe lembrar que o vínculo da poesia
nos seus primórdios se dá com o ritual, a magia e ainda

6 Segundo teses como as de Karl Burcher e Richard Wallaschek, diz Segismundo Spina:
“A atividade motriz dos primitivos – a procura do alimento, a caça, a colheita, a guerra
etc., o trabalho em geral do lenhador, do construtor de cabanas, da semeadura, da
remoção de coisas pesadas, do ato de remar em conjunto, da fabricação de objetos e
das armas de caça e pesca – desenvolve a regularidade rítmica, e com ela a música,
que vem facilitar os movimentos e suavizar o sacrifício do trabalho” (2002, 23).
Esta repetição de movimentos idênticos, permanentes recomeços, para Spina, no
entanto, se relaciona a Idea de compasso, que é um esforço do tipo mecânico, não
necessariamente associado à atividade cultural do trabalho. De fato, diz ele, temos
notícias de povos que conhecem o “ritmo” mas que ignoram o trabalho propriamente
dito.
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com as atividades lúdicas,7 onde a repetição se torna


o modo central de desenvolvimento. Daqui que os
recursos mais trabalhados na poesia primitiva ou arcaica
sejam, segundo Spina, 1) a repetição, 2) o refrão, 3) o
paralelismo, 4) a aliteração, 5) a rima e 6) a anacruse.
O refrão, via de regra ou fundamentalmente, é um fe-
nômeno poético que denuncia a origem social do canto,
porque ele se encontra ligado à execução coletiva das
danças primitivas, e como tal às primeiras manifesta-
ções de solidariedade humana. O poeta letrado, isolado
de sua comunidade, também apela para o recurso do
refrão, mas por circunstância de outra ordem – psicoló-
gica, não social -, como se com ele procurasse esgotar
ou sublimar o seu estado lírico (SPINA, 2002, p.30).

O refrão seria, a partir dali, a base para o canto coral,


para a dinâmica da antífona, que no começo designava
a alternância de dois coros, ou seja, o canto de mais de
uma voz.
O refrão então estaria apontando, não apenas ou
não principalmente a sublinhar um significado ou uma
mensagem dentro do poema, mas a marcar um ritmo
coletivizante, assinalar um tipo de concepção de poesia:
social e circunstancial. Assim, podemos ver o amplo
uso do refrão em diversos tempos e espaços da cultura
popular, especialmente na medieval: nas cantigas galego-
portuguesas, no zejel morisco (assimilado pelos poetas
da Europa central a partir do século X), no rondet, ou
nas coplas das culturas andinas (nas quais se estabelece
um contraponto entre os diversos cantores, que pode
ser mais ou menos amigável, mais ou menos cordial). A
repetição de um refrão é o exercício da dimensão coral
e convivial da linguagem. É aquilo que todos os cantores
sabem mas não é propriedade autoral de ninguém.
Se o espírito clássico anterior tinha por virtudes a
perfeição, a subordinação a formas exteriores e fixas e a

7 Segismundo Spina elenca algumas formas: 1) o canto mágico, representado nas


fórmulas de encantamento; 2) o canto mimético, de imitação dos totens, dos pássaros
e animais, muito próximo dos cantos mágicos; 3) os cantos iniciáticos, vinculados
aos ritos de passagem, à dimensão coletiva; 4) o canto ctónico, ligado à terra e
às divindades agrárias, aos ritos de fertilidade; 5) o canto social-agonal, cantos de
competição; 6) os cantos de ofício, ligados ao trabalho.
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contenção, o espírito medieval parece investir na mistura


de gêneros, na instabilidade discursiva e disciplinar, assim
como na dimensão vital da arte. A forma fixa entra na
poesia medieval como elemento associado ao ritmo, mas
vai se cristalizando e se afastando dos jogos corporais
e encarnando jogos mentais, linguísticos. Se o valor da
poesia trovadoresca não estava predominantemente
no texto, mas na sua expressão musical e convivial é,
segundo Spina, na primeira metade do século XIII, no
norte da França, que essa poesia começa a ser mais
influenciada pela galanteria palaciana e “inicia um divórcio
com a realidade social, ao mesmo tempo que tende a
cristalizar-se em formas fixas, as ballades, os virelais, os
rondeaux, os chants royaux e os Laís” (SPINA, 1997, p.
29). A partir dali, começa a se sobrepor o ritmo poético
ao ritmo melódico, “a poesia deixa de ser cantada para
se tornar cantável” (SPINA, 1997, p. 29). Rondó e rondel
fazem parte, então, dos movimentos da cultura medieval
e sinalizam a passagem de uma cultura oral e dançante,
uma poesia inseparável da sua dimensão comunitária,
para uma poesia individual, para ser feita e consumida
no âmbito privado.
Podemos pensar que Bandeira, ao nomear o seu
poema de Rondó e ao flertar com a forma fixa de um
rondel, - e também que Alfonso Reyes ao escolher a
forma romance para os poemas dedicados ao Rio de
Janeiro8 - está sublinhando a importância de uma poesia
menor e passageira e vinculada com a circunstância e
as evidências. Com o “Rondó dos cavalinhos”, Bandeira
convida Reyes para dançar na roda, e este, que sabia
escutar como bom diplomata, aceita o convite.

8 Romances do Río de Enero (1932). Os poemas que Reyes dedicará depois ao Rio
de Janeiro são, por sua vez, romances. Gênero surgido na Espanha, no século XV,
contemporâneo das baladas inglesas, alemãs e francesas, as canções narrativas
italianas e as visers dinamarquesas, segundo Spina. Diz o propio Reyes sobre o gênero
Romance: “El romance nos transporta a la mejor época de la lengua, tras evocaciones
tónicas; la lengua desperezada ofrece sola sus recursos... el romance deja entrar en
la voz cierto tono coloquial, cierto prosaísmo que se nos ha pegado en esta época, al
volver a las evidencias” (REYES, 1959, p.400).
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Poesia de circunstância: “Querido: sou eu”.

Sabemos que o “Rondó do Jockey Club” fora incluído


na primeira edição de Cortesía (1948), livro de poemas
sociais e de circunstância publicado por Alfonso Reyes,
inclusão que grande satisfação dera a Manuel Bandeira
muito interessado nesse tipo de poema, ao ponto de ele
mesmo publicar muitos em Mafuá do malungo (1948).
Em Itinerário de Pasárgada, escreve (e me permito uma
longa citação):
Nesse mesmo ano de ‘48 publiquei sob o título de Mafuá
do Malungo os meus versos de circunstância. “O poe-
ta se diverte”, comentou Carlos Drummond de Andra-
de, traduzindo um verso de Verlaine. Era isso mesmo.
Já contei que os meus primeiros versos datam dos dez
anos e foram versos de circunstância. Até os quinze não
versejei senão para me divertir, para caçoar. Então vie-
ram as paixões da puberdade e a poesia me servia de
desabafo. Ainda circunstância. Depois chegou a doença.
Ainda circunstância. Fiz algumas tentativas de escrever
poesia sem apoio nas circunstâncias. Todas malogradas.
Sou poeta de circunstâncias e desabafos, pensei comi-
go. Foi por isso que, embora se dê comumente o nome
de versos de circunstância aos do tipo do Mafuá do Ma-
lungo, preferi não intitulá-los Versos de Circunstância,
como tive ideia a princípio. “Mafuá” toda a gente sabe
que é o nome porque são conhecidas as feiras popula-
res de divertimentos; “malungo”, africanismo, significa
“companheiro, camarada”. Uma boa parte do livro são
versos inspirados em nomes de amigos. [...] É possível
que nunca viesse a publicar esses versos se não fosse a
neurastenia de João Cabral de Melo, que, aconselhado
pelo médico a adotar um hobby manual, escolheu a arte
tipográfica e começou a lançar de Barcelona uma série
de edições limitadas do mais fino gosto. Pediu-me o poe-
ta-tipógrafo alguma coisa minha para imprimir e eu me
lembrei dos meus jogos onomásticos e outras brincadei-
ras. Por coincidência que me foi muito grata, ao aparecer
aqui o meu Mafuá, saiu no México o volume Cortesía, de
Alfonso Reyes; com a diferença que o poeta mexicano
juntou aos seus versos de circunstância versos de ami-
gos que dizem respeito à pessoa dele, como por exemplo
o meu “Rondó dos Cavalinhos”. Em curto prefácio, depois
de recordar a produção, no gênero, de Marcial, Gôngo-
ra, Juana Inés de la Cruz, Mallarmé e Rubén Darío, la-
menta Reyes que se tenha perdido o bom costume de
tomar a sério – “o mejor en broma” – os versos sociais,
de álbum, de cortesia. E acrescenta estas palavras que
eu gostaria de ter tomado por epígrafe do meu Mafuá:
Desde ahora digo que quién sólo canta en do de pecho
no sabe cantar: que quién sólo trata en versos para las
cosas sublimes no vive la verdadera vida de la poesía y
de las letras sino que las lleva postizas como adorno para
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las fiestas. (BANDEIRA, 1974, pp. 98-99).

O comentário de Alfonso Reyes ao começo do seu


livro, citado aqui por Bandeira, também merece ser
citado de forma integral:

Amigo mío:
Marcial consagró buena parte de su obra
a los “versos de circunstancias” o versos
de ocasión. El exquisito Góngora escribía
décimas y redondillas para ofrecer
golosinas a unas monjas. No es menos
bello de Sor Juana cuanto se le caía de
la pluma como parte de su trato social. El
recóndito Mallarmé dibujaba estrofas en
los huevos de Pascua, ponía en verso las
direcciones de sus cartas, hacía poemas
para ofrecer pañuelitos de Año Nuevo y
tenía la casa de Méry Laurent llena de
inscripciones. ¿Y Rubén Darío? ¡Margotita,
Adela Villagrán, etcétera! Para no hablar
de tantos otros.
Hoy se ha perdido la buena costumbre,
tan conveniente a la higiene mental, de
tomar en serio – o mejor, en broma – los
versos sociales, de álbum, de cortesía.
Desde ahora te digo que quien sólo canta
en do de pecho no sabe cantar; que quien
sólo trata en versos para las cosas sublimes
no vive la verdadera vida de la poesía y
las letras, sino que las lleva postizas como
adorno para las fiestas.
Déjate convencer poco a poco. No hace
ningún daño traer a la discreción cotidiana
las formas de la cultura. Haz cuenta,
simplemente, que queremos recopilar
papeles biográficos y juntar memorias.
Haz cuenta que charlamos un rato, y
ponte cómodo.
A.R.” (REYES, 1959, X, p. 240).

Nestes dois longos comentários se repõem as


circunstâncias desses livros de poemas de circunstância,
e se descreve o que encontraremos nos volumes Mafuá
do malungo, de Bandeira e Cortesía, de Reyes de modo
geral: poemas de versos curtos, de ritmos regulares
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e rimas simples, poemas que alguém poderia chamar


de fáceis, de infantis. Poemas despretensiosos, que se
assumem como brincadeira, jogo, divertimento.
Em “Candombe porteño”, de Cortesía, por exemplo,
brinca-se com a linguagem, quase numa dança com ela.
As palavras – que correspondem a nomes de ruas de
Buenos Aires, a maioria de origem indígena, guarani ou
quéchua – são convocadas na sua materialidade para
entrar numa dança sonora:

Las calles de Buenos Aires


Tienen nombre tan gentil,
Que dan ganas de bailar
Cuando se las nombra así:

– Sarandí – Sarandí – Maipú –


– Tacuarí –
– Guanamí –
– Gualeguay y Gualeguaychú –

[…]

Que a mi negra le gusta la danza


mucho más que me gusta a mí

- Acha – Achala – Achalay – Alianza-


- Lambaré – Calderón –Azamor –Camacuá
que a las calles les gusta la danza
Kikirikí y Cacarañá
(1959, X, 248-249).

Mas, além de simples e brincalhões, os poemas


desses livros são na sua maioria dedicados, enviados para
alguém como se fossem coisas, poemas inseparáveis da
sua enunciação ou de algum objeto que eles mencionam.
Talvez seja por junção do tom brincalhão com a ideia
de presentear que, entre os “Onomásticos” de Mafuá
do malungo, mas também entre os poemas de Cortesía
sejam muitos os dedicados a crianças. Dos tantos
exemplos (BANDEIRA, 368-370):
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BELA

Bela, bela, ritornelo


Seja em tua vida, espero:
Belo, belo, belo, belo
Tenho tudo quanto quero!

Aqui o poeta cita o seu próprio poema “Belo, belo”,


explicitando não apenas a importância da repetição de
palavras, mas a despretensão de originalidade poética.
Ou,

JOANITA

Não é Joe, não é Joana,


Nem Juanita: é Joanita.
A diferença é pequena,
Mas nessa diferencita,
Que em suma é tão pequenina,
Há a graça que não está dita,
Que é privilégio da dona,
Que já toda a gente cita
E assim talvez não reúna
Nenhuma moça bonita.

Aqui o nome é motivo de uma brincadeira sonora


que não recusa a repetição de diminutivos para conduzir
a rima, recurso considerado pobre (que deve ser
evitado), rudimentar, por uma poesia sofisticada. Mas
o investimento no traço infantil vai além da rima e do
ritmo simples. Cortesía, por exemplo, é composto por
textos muito variados - que vão de uma pequena peça
de teatro, infantil, em verso (“El pájaro colorado”) a um
poema destinado ao catálogo do pintor Gregorio Prieto,
para a Associazone Artística de Roma, em 1929 - mas
são predominantes os poemas dedicados que rondam
paronomástica e semanticamente o nome próprio
homenageado, por exemplo: “A Lunita Muñoz Izcua”,
onde a “luna” (lua) se queixa por ter aparecido uma
“Luna” mais bela e radiante do que ela:
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[...]
¿Qué dirán pues mis palabras
cuándo pasen por tu ojos?
Donde yo digo que ando
tu vas a leer que corro;
donde yo arriesgo un “apenas”,
tú vas a afirmar un “todo”.
¡Mira, Luna los trabajos
que pasa tu amigo Alfonso!
[…]
(REYES, 1959, X, 258).

Tanto em Cortesía como em Mafuá, há muitos


poemas comemorativos (de casamento, de aniversários,
de nascimentos) ou poemas em agradecimento ou
retribuição por presentes recebidos: maracujás, doces,
livros. Os poemas se dão num gesto de envio, marcado
pela segunda pessoa, e numa dimensão social. Por
exemplo:

AGRADECENDO UNS MARACUJÁS

Estes não são de gaveta.


Estes são do Maranhão.
Não do Maranhão Estado,
Mas do Maranhão poeta
- Raúl Maranhão chamado –
Amigo do coração.
(BANDEIRA, 398).

Ou, para trazer um dos tantos poemas que Reyes


dedicara a amigos brasileiros9:

9 É notável como, para Reyes, o exercício da poesia de circunstância é


fortemente associado ao período em que trabalhou como diplomata. Cortesía
menciona principalmente amigos e conhecidos que fizera no Rio de Janeiro e
em Buenos Aires.
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Se os poemas – como vimos até aqui - são um jogo,


ao levar em conta que esse jogo é sempre também uma
réplica, uma retribuição, algo que se envia a alguém,
podemos dizer que estes poemas são um jogo coletivo,
que requer o contato. Jogo de contato como numa roda.
Neste sentido, são poemas que, por sempre estarem
apontando para fora de si, sempre tornam presente a
sua dependência, tornam presente a sua insuficiência,
presentificam a falta da coisa, da evidência. E essa falta
que se torna presente é a do outro, a do destinatário,
paradoxalmente nomeado e não nomeado no nome
próprio.
Cortesía e Mafuá vão expor um funcionamento
paradoxal dos nomes próprios. Se a de circunstância é
uma poesia que não se basta a si própria, que constata a
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sua associação com algum acontecimento e circunstância,


poderíamos arriscar que é uma poesia indicial: “Carlos
querido: soy yo”, começa um dos poemas de Alfonso
Reyes, chamado “Al pasar por Río, rumbo a Buenos Aires
a bordo del ‘Vauban’”, dedicado a Carlos Pellicer, no 20
de junho de 1927, que se encontrava em Paris (1959,
X, 246). “Carlos querido: soy yo”, a frase é impactante
em um poema. “Carlos querido: soy yo”, pronunciado
como quem entra em uma casa, batendo palmas, como
quem liga para o telefone fixo da casa materna. “Carlos
querido: soy yo” é uma frase que estende a mão, que
solicita a mão do outro. A poesia de circunstância vem
para dizer: “Querido: sou eu” e para que a referência
desse “eu” e desse “querido”, sempre fiquem faltando.
Os nomes próprios e os pronomes, assim enunciados
– por Reyes ou por Bandeira - nos permitem aqui uma
reflexão. Roland Barthes, em Como viver junto, tenta
fazer algumas diferenciações para os funcionamentos do
nome próprio. No amor, o nome próprio funciona como
um modo de retirar aquilo que se ama do mundo de todos.
Aquilo que nomeio com nome próprio é o que para mim
“merece” ser nomeado, o objeto amado que não é igual
aos outros, que poderiam ser contidos por um pronome
pessoal: “às vezes, podemos medir em nós mesmos a
grande resistência a dizer ‘ele’ ou ‘ela’ de uma pessoa
que amamos” (BARTHES, 2003, p.198). O objeto amado
não cabe num pronome e, por isso, deve ser nomeado.
Já quando o nome próprio sai desse espaço do amor,
quando o nome próprio entra em um grupo fechado, o
seu uso vira um modo de realizar exclusões, uma vez que
o referente desse nome está sempre ausente: utilizam-
se os nomes próprios na fofoca; na fofoca o nome próprio
é sempre uma terceira pessoa, criticável ou elogiável.
Saindo da dimensão amante/amado e da dimensão
grupal, diz Barthes: “numa comunidade ideal (utópica)
não haveria nomes, para que uns nunca pudessem falar
dos outros: só haveria apelos, presenças, e não imagens,
ausências. Não haveria manipulações pelo nome, boas
ou más” (BARTHES, 2003, p.198).
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Quando a poesia de circunstância se afasta da sua


circunstância originária e passa a funcionar de forma
independente (independência, como dizemos, nunca
realizável) parece se colocar, ou colocar o leitor, difícil
posição irresolvível: a poesia de circunstância é, ao
mesmo tempo da ordem da fofoca e da comunidade
utópica. Quando leio um nome – Lunita, Carlos, Bela,
Joanita, Prudente, etc – leio, ao mesmo tempo, uma
terceira pessoa que não sou eu e um nome solto do seu
referente que poderia ser o meu. A poesia de circunstância
ao mesmo tempo me exclui e me chama. Os referentes
estão e não estão ali. E por isso, nessa floresta de nomes
fantasmais, indiciais, eu posso me reconhecer.

Desdobrando a roda

Se os dois livros, Mafuá e Cortesía, têm um nascimento


similar, similares são nos poemas que os compõem e
similar é a sua aposta por uma poesia circunstancial e
indicial, as diferenças nos seus desdobramentos editoriais
se tornam significativas. Nas edições posteriores, Manuel
Bandeira inclui em Mafuá do Malungo as dedicatórias que
ele fizera pra alguns amigos nos exemplares da primeira
edição desse mesmo livro. Assim, o livro se mostra em
permanente movimento e crescimento, paradoxalmente
se tornando mais e mais circunstancial. Na edição de
Mafuá do Malungo que aparece nas obras completas
encontramos, por exemplo, uma belíssima dedicatória
para “Rachel” (certamente de Queiroz):

À grande e cara Raquel


Mando este livro, no qual
Ruim é a parte do Manuel
Ótima a do João Cabral
(BANDEIRA, 1974, p.409).

No mesmo tom de exaltação do trabalho de Cabral:


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Malungo Manuel envia


Isto ao malungo Prudente.
Sei que é mofina a poesia,
Mas que papel Excelente!
(BANDEIRA, 1974, p.409).

Poesia ao mesmo tempo Ruim e Boa, por ser artesanal,


menor e insuficiente. Bandeira consegue, ao um só
tempo, sublinhar a apontar um trabalho de mais de um,
em um poema também para mais de um. Lembremos que
Mafuá foi um dos projetos que João Cabral de Melo Neto
levara adiante quando, por conselho médico, comprara
uma prensa manual e planejara a pequena coleção – da
qual faziam parte seus amigos – “O livro inconsútil”. Sem
costura firme entre os nomeados, sem costura firme
da palavra poética, este livro mambembe é enviado
também para Reyes. Entre as dedicatórias está, escrita
em perfeito espanhol, aquela feita para Don Alfonso:

No es Pegaso, sino un matungo


el caballo de mi poesía:
Simple homenaje del malungo
Al maestro de Cortesía.
(BANDEIRA, 1974, p.409).

Uma poesia matunga. Poesia dos matungos que


se desenhavam entre os cavalinhos e os cavalões do
“Rondó”. Voltamos, finalmente, ao Rondó. Se o livro de
Bandeira aumenta com as edições, Cortesía, do humanista
Reyes, sofrerá significativos cortes. Cortes explicados
por Reyes na apresentação das Obras Completas: “En la
presente edición se suprimen todos los versos ajenos y
algunos propios. Cortesía fue, en buena parte, un juego
de sociedad: inútil reproducir aquí todas sus páginas”
(1959, X, 12).10
A inutilidade antes celebrada desaparece aqui, neste

10 CORTESIA [1909-1947]. 1ra. Edição: México, Editorial Cultura, 1948.


Com desenhos de AR. Não tivemos acesso a essa edição.
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momento consagratório. Desaparece o poema de Bandeira


nas Obras completas, desaparece a presença/ausência
da voz heterogênea, desaparecem também os desenhos
do próprio Reyes que tornavam a poesia menos poesia.
E esses desaparecimentos nos dão, paradoxalmente, a
mais acabada dimensão da precariedade da poesia de
circunstância. A declaração da qualidade de jogo e da
inutilidade da reprodução destes versos nos remete
diretamente à condição passageira dos versos de
circunstância. A sua radical e constitutiva dependência
de um evento social. Estes poemas, sozinhos, não se
sustentam. Contra essa nimiedade se levanta toda obra
monumental. Mas são esses poemas nímios os que
podem falar melhor, em si mesmos, não tematicamente,
do convívio.
Poderíamos dizer então que, mesmo Manuel Bandeira
tendo compilado as suas próprias Obras completas, sua
“estrela da vida inteira”, tendo feito a sua “autobiografia”
no Itinerário, ele encena um gesto mais ambíguo. Na
seção “À maneira de...”, de Mafuá do malungo, Bandeira
remeda o estilo de outros poetas, chamando a atenção
para um duplo gesto no qual se reconhece, por um lado,
a singularidade dos estilos, e por outro a dimensão
imprópria da própria voz.
Poderíamos dizer que Manuel Bandeira se constrói
como “o” poeta menor. Já Reyes, no momento de dar
a sua versão da sua própria trajetória escolhe um viés
mais monumental (monta seu próprio acervo como uma
igreja – a “capela alfonsina”). Se, desde seus poemas
de circunstância, Reyes procurou estabelecer contato,
também é verdade que a sua poesia não deixou muitos
ecos na poesia brasileira. Talvez o contato humanista,
demasiado humanista, operasse como uma espécie de
barreira ou contradição para uma poesia que, sem deixar
de ser cortês, cordial e diplomática, precisa de um ímpeto
corporal e desleixado para ser efetiva no contato com a
vida. Reyes vai se recolher nas Obras completas sob o
signo do monumento, do serviço intelectual. Em Estrela
da vida inteira, do franzino Bandeira, a poesia precária e
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menor ganha mais e mais espaço, cresce se mantendo


pequena.

REFERÊNCIAS

BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Volume único. Rio


de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1974.

____. Literatura hispano-americana. Rio de Janeiro: Editora Fundo


de Cultura, 1949.

____. “A versificação em língua portuguesa”, Enciclopédia Delta


Larousse. Tomo VI. Rio de Janeiro: Editora Delta, 1960.

BARTHES, Roland. Como viver junto (trad. Leyla Perrone Moises).


São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BUARQUE DE HOLLANDA, Sérgio (org). Antologia dos poetas


brasileiros da fase colonial. Vol II. Rio de Janeiro: Departamento
de Imprensa Nacional, 1952.

CANDIDO, Antonio. Na sala de aula. São Paulo: Editora Ática,


1984.

REYES, Alfonso. “Norte y Sur [1925-1942]” e “Historia natural das


Laranjeiras”, Obras Completas, vol. IX, México: Fondo de Cultura
Económica, 1959.

____. “Cortesía”, Obras Completas, vol. X. Constancia poética.


Mexico: Fondo de cultura Economica, 1959.

SPINA, Segismundo. Na madrugada das formas poéticas. São


Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

____. A cultura literária medieval. São Paulo: Ateliê Editorial,


1997.

STERZI, Eduardo. “Da voz à letra”, Alea, nro. 14/2, Rio de Janeiro,
jul-dez 2012.

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