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Capital Social

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AUGUSTO DE FRANCO


Leituras
INSTITUTO DE POLÍTICA
MILLENNIUM

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Capital Social
__________________________________________


Leituras

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Capital Social
_______________________________
AUGUSTO DE FRANCO


Leituras de Tocqueville, Jacobs,
Putnam, Fukuyama, Maturana,
Castells e Levy
INSTITUTO DE POLÍTICA
MILLENNIUM

5
Capital Social. Leituras de Tocqueville, Jacobs, Putnam,
Fukuyama, Maturana, Castells e Levy.
Augusto de Franco, 2001.

6
“A vida não se apossa do globo pelo combate,
mas sim pela formação de redes”.

Lynn Margulis e Dorion Sagan,


em Microcosmos, 1986.

7
8
Índice

Apresentação

1
Os vários aspectos do debate
1.1 – As razões da idéia
1.2 – O debate ideológico
1.3 – O debate epistemológico
1.4 – O debate do desenvolvimento
1.5 – O debate epistemológico incide sobre o debate do
desenvolvimento
1.6 – O debate político da democracia
1.7 – O debate político da democracia incide sobre o
debate do desenvolvimento
1.8 – O debate dos pressupostos
1.9 – O debate dos pressupostos incide sobre o debate do
desenvolvimento
1.10 – Resposta à algumas objeções

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2
Reconstruindo o conceito
2.1 – O fenômeno que o conceito de Capital Social quer
captar
2.2 – A capacidade a que se refere o termo ‘Capital Social’
2.3 – Em que consiste essa capacidade a que se refere o
termo ‘Capital Social’
2.4 – O que confere às pessoas (ou às sociedades)
‘capacidade de comunidade’
2.5 – Como o Capital Social pode ser produzido,
acumulado e reproduzido
2.6 – Como o Capital Social pode ser medido
2.7 – Porque os seres humanos podem ter ‘capacidade de
comunidade’

3
De onde vem a idéia
3.1 – A genealogia do conceito
3.2 – Os precursores da idéia
3.3 – Um conceito tocquevilliano
3.4 – Um conceito americano
3.5 – Um conceito originalmente político
3.6 – A dinâmica sociológica de Jacobs

4
Como a idéia ficou conhecida
4.1 – Um estudo tocquevilliano
4.2 – Dilemas da ação coletiva
4.3 – Coerção de um terceiro

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4.4 – Cooperação voluntária
4.5 – Capital Social
4.6 – Confiança social
4.7 – Regras de reciprocidade generalizada
4.8 – Sistemas de participação cívica
4.9 – Relações horizontais e verticais
4.10 – Equilíbrios sociais (subordinação à trajetória)
4.11 – Acumulação, auto-reforço, círculos virtuosos e
viciosos
4.12 – As lições tocquevillianas da pesquisa de Putnam
4.13 – Outras lições que devemos tirar da teoria de Putnam

5
O debate atual sobre os pressupostos da idéia
5.1 – Capital Social
5.2 – Confiança e sociabilidade espontânea
5.3 – Conseqüências econômicas do Capital Social
5.4 – Conseqüências extra-econômicas do Capital Social
5.5 – A tese do ‘declínio do Capital Social americano’
5.6 – As duas fontes de Capital Social: natureza humana e
auto-organização
5.7 – O debate sobre a origem das normas
5.8 – As relações entre natureza humana e ordem social
5.9 – As origens biológicas da cooperação
5.10 – Altruísmo recíproco
5.11 – Cooperação ou competição?
5.12 – Problemas do paralelo biológico empregado por
Fukuyama
5.13 – Capital Social e auto-organização

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6
Uma teoria da cooperação
6.1 – O arcabouço teórico da biologia do fenômeno social
6.2 – O ‘linguagear’, o ‘emocionar’ e o ‘conversar’
6.3 – Um novo olhar sobre a teoria da evolução humana
6.4 – O que funda o humano
6.5 – Redes de conversações
6.6 – O que funda o social
6.7 – Competição ou cooperação?
6.8 – Conversações matrísticas e patriarcais
6.9 – Uma teoria da democracia
6.10 – Uma teoria da cooperação baseada em Maturana

7
Competição, colaboração e desenvolvimento
7.1 – Cooperação e desenvolvimento
7.2 – Competição e desenvolvimento
7.3 – A competição pode ficar restrita ao mercado?
7.4 – Cooperar para competir
7.5 – Cooperar e competir
7.6 – Competição como forma imatura de cooperação
7.7 – Nem anjos nem demônios

8
Sociedades de dominação e sociedades de
parceria
8.1 – Predador ou simbionte?
8.2 – A hipótese do precedente sumeriano
8.3 – O protótipo civilizatório

12
8.4 – A mitologia como genética civilizacional
8.5 – Origens espirituais da dominação social
8.6 – Um novo modo-de-ver as origens da cultura
civilizada
8.7 – Sociedades de parceria e Capital Social

9
O padrão de rede
9.1 – Capital Social e rede
9.2 – Redes e comunidades em uma sociedade pós-
industrial
9.3 – Rede, comunidade e Capital Social

10
O modo democrático
10.1 – Capital Social e democracia
10.2 – A natureza do político
10.3 – A natureza da democracia
10.4 – A radicalização da democracia
10.5 – A democracia em tempo real

11
Capital Social, sustentabilidade e comunalidade
11.1 – Sistemas sociais e sistemas vivos
11.2 – Capital Social e comunalidade
11.3 – Sustentabilidade e comunalidade

13
12
Desenvolvimento como mudança social
12.1 – As novas dinâmicas da mudança social
12.2 – Como investir em Capital Social

Epílogo

Notas

Bibliografia

O autor

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Convenções
____________________________

1 – Quando os trechos transcritos são tomados de traduções,


mantém-se a data original, i. e., da primeira vez em que o livro
foi publicado, mas a página citada se refere à da tradução, se for
o caso, conforme se poderá sempre verificar na Bibliografia.

2 – Interpolações em transcrições aparecem entre colchetes:


[interpolação]. Quando a interpolação é feita por mim, depois da
referência ao autor, conforme o item 4.a (abaixo), vêm, entre
parêntesis, os sinais „(n. i.)‟, que significam: “nossa
interpolação”. Interpolações do autor são colocadas neste
mesmo padrão e indicadas com os sinais „(i. a)‟.

3 – Passagens grifadas nas transcrições são assinaladas, depois


da referência ao autor, com os sinais „(g. a.)‟ para “grifo do
autor” ou „(n. g.)‟ para “nosso grifo”.

4 – Todas as demais convenções seguem normas usuais, dentre


as quais pode ser útil relembrar:
a) Menções a obras, listadas na Bibliografia, têm a forma:
(Sobrenome do autor, Data), como em (Putnam, 1993). Citações
de autores cujas expressões, frases ou textos foram transcritos
seguem a forma: (Sobrenome do autor, Data: Página), como em
(Putnam, 1993: 19) para indicar a página 19 do livro que Robert
D. Putnam publicou em 1993 – listado este, por sua vez, em
ordem alfabética, na Bibliografia.
b) No caso do mesmo autor ter publicado dois ou mais
livros no mesmo ano, distingue-se-os, por ordem de
antigüidade, com as letras a, b, c etc., como em (Franco, 2000a)
e (Franco, 2000b), para fazer referência, respectivamente, às

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obras, listadas na Bibliografia: “Porque precisamos de
Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável” (publicado em
março de 2000) e “Além da Renda: a pobreza brasileira como
insuficiência de desenvolvimento” (publicado em agosto de
2000).

16
Apresentação

Há algum tempo venho tentando investigar as novas


dinâmicas segundo as quais se processa a mudança
social nos complexos sistemas pós-industriais, na
chamada era da informação.
Fui levado a isso não apenas por uma
perplexidade teórica diante das realidades sociais que
surgem no dealbar do novo milênio, cujo
funcionamento não pode mais ser explicado pelas
visões (mecanicistas) que dominaram o pensamento
sociológico desde o seu nascimento e continuam
prevalecendo na economia, mas – na posição em que
me encontro atualmente – pela exigência prática de
elaborar e aconselhar novas políticas para o
desenvolvimento humano e social sustentável do
Brasil. Foi o chamado desenvolvimento local integrado e
sustentável que me levou a procurar respostas
substancialmente diferentes das tradicionais para
responder a perguntas do tipo: qual pode ser o impacto

17
de pequenas ações, desenvolvidas por populações
marginalizadas, em localidades com baixo índice de
desenvolvimento sócio-econômico, em um país
continental como o Brasil, com um imenso
contingente de pobres, submetido à dinâmica
avassaladora dos fluxos de capital característica do
mundo globalizado?
Tentando achar respostas convincentes para
questões como essas, encontrei-me com o conceito de
Capital Social, tão em voga no momento, sobretudo no
âmbito dos organismos internacionais de apoio ao
desenvolvimento. Descobri que estratégias de indução
ao desenvolvimento local sustentável, inclusive as que
ajudei a elaborar e já começaram a ser implementadas
no Brasil em escala bem ampliada, são,
fundamentalmente – embora não apenas – programas
de investimento em Capital Social.
Ocorre que eu não conhecia, suficientemente,
boa parte do que já havia sido dito sobre o tema. Tinha
apenas algumas noções, bastante vagas, da genealogia
do conceito e das diversas tentativas teóricas que
foram feitas no sentido de precisar melhor seus
fundamentos e de investigar seus possíveis
pressupostos.
Resolvi, então, desenvolver um programa de
investigação que não tomasse o debate do Capital
Social apenas do ponto de vista econômico-sociológico
do desenvolvimento, mas enfrentasse, também, vários

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de seus outros aspectos: ideológicos, epistemológicos,
filosófico-antropológicos e políticos.
Fui levado, assim, a analisar os fundamentos do
conceito, tendo que examinar ou reexaminar: os
supostos políticos antevistos por Tocqueville, a
fenomenologia sociológica detectada, pioneiramente,
por Jane Jacobs, as implicações cívicas constatadas por
Putnam e as especulações mais recentes de Fukuyama
sobre seus pressupostos antropológicos,
antropobiológicos ou biológicos mesmo.
Tive, também, que lançar mão de formulações
de teóricos que não trabalham com o conceito de
Capital Social. Assim, foi necessário considerar, por
exemplo, a dinâmica da sociedade em rede estudada
por Castells, os pressupostos para uma teoria da
cooperação lançados, há mais de uma década, por
Maturana, as idéias sobre a democracia em tempo real
de Pierre Lévy e as minhas próprias idéias anteriores
sobre a radicalização ou a democratização da
democracia, em parte baseadas em Giddens, Bobbio e
Bovero, em parte desenvolvidas a partir de uma teoria,
na qual venho trabalhando há uns oito anos, sobre o
confronto entre tradicionalidade e modernidade como
paradigmas civilizacionais.
A tarefa mais árdua de todas, porém, foi a de
tentar compreender o instrumental conceitual das
teorias da complexidade como, por exemplo, o
utilizado por Stuart Kauffman nas suas investigações

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sobre auto-organização e seleção na evolução. Tal
esforço revelou-se bastante útil porquanto as
sociedades humanas são sistemas complexos e o
instrumental geralmente utilizado para analisá-las não é
adequado nem suficientemente potente para captar as
dinâmicas associadas à complexidade. (Por ora devo
dizer que ainda não consegui, como pretendia, articular
uma abordagem das sociedades humanas, nem mesmo
do fenômeno que o conceito de Capital Social quer
captar, que utilizasse a “lógica”, a semântica, a
metodologia, enfim, a toolbox das teorias da
complexidade, senão apenas fazer algumas indicações –
reunidas no último capítulo – para serem melhor
trabalhadas em oportunidade ulterior).
Se todo esse esforço não foi capaz de gerar uma
nova teoria, teve como resultado, pelo menos, uma
nova seleção e organização de leituras – notadamente
de Tocqueville, Jacobs, Putnam, Fukuyama, Maturana,
Castells e Levy – com base nas quais acabei propondo
um outro conceito de Capital Social e este ficou sendo,
então, o tema central do livro (e não, como pretendia
inicialmente, o processo de desenvolvimento como
transformação social, embora as duas coisas, estando
intimamente relacionadas, sejam tratadas aqui). O novo
conceito que proponho pode ser apresentado,
resumidamente, assim:
Na medida em que o ser humano é um ser social
há, em qualquer coletividade humana, uma tendência

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ou propensão básica para cooperar, interpretada como
uma predisposição para gerar Capital Social. No
entanto, tal tendência pode ser obstruída ou sua
ampliação social impedida por certas classes de
interação humana que introduzem formas
heterônomas de relacionamento e modos autocráticos
de solução de conflitos.
Se há, entre os humanos, uma tendência
espontânea para cooperar, essa tendência é refreada
quando as diferenças entre os seres humanos são
transformadas em separações que se institucionalizam
como hierarquias, cristalizando tais separações como
separações entre superiores e inferiores: basicamente,
entre fortes e fracos, ricos e pobres, sábios e ignorantes
– e gerando conflitos não-ocasionais, mas sistemáticos,
inerentes ao fenômeno social, porquanto constitutivos
do tipo de organização social assim fundada (nas
separações "cristalizadas").
Quando os conflitos entre fortes e fracos são
solucionados por um modo de regulação cujo fim é
manter a continuidade da ordem constituída com base
na separação entre superiores e inferiores, estamos
diante da política autocrática.
A hierarquia como forma de relacionamento
(que materializa uma atitude de heteronomia diante do
poder) e a autocracia como modo de regulação (que
corresponde a uma atitude monárquico-militar diante
da política) são os dois obstáculos à produção, à

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acumulação e à reprodução de Capital Social. É por
isso que o conceito de Capital Social tem a ver com
poder e com política.
Somente uma atitude de autonomia diante do
poder, que seja materializada em formas não-
hierárquicas de relacionamento humano e somente
uma atitude democrática diante da política, que seja
correspondida por modos não-autocráticos de
regulação de conflitos, podem favorecer a produção, a
acumulação e a reprodução de Capital Social.
Dizendo de outra maneira: quanto menos
hierarquia e quanto menos autocracia incidirem numa
coletividade humana, mais condições essa coletividade
terá de constituir-se como comunidade – produzindo,
acumulando e reproduzindo Capital Social. Ou,
falando bem diretamente: quanto mais relações
horizontais – em rede – se formarem entre pessoas e
grupos de uma coletividade e quanto mais
democráticos forem os processos políticos praticados
nessa coletividade, mais forte será a comunalidade, quer
dizer, a expressão da comunidade enquanto entidade
socialmente “viva” (em sentido metafórico e em nada
que se deva distinguir – como vim a descobrir – do
sentido de „sustentável‟), e maior será o nível do seu
Capital Social.
Padrões hierárquico-verticais de organização e
modos violentos ou coercitivos de solução de conflitos
mantêm as coletividades humanas em níveis de “vida”

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social inferiores ao das comunalidades (em termos de
complexidade, isto é, de diversidade, de conectividade
e de organização do que pode haver de “vivo” em
conjuntos humanos) – e é por isso que impedem o
Capital Social.
Como bem percebeu Putnam, o clientelismo
(como exemplo de relação vertical) e a violência (como
modo de regulação autocrática) são os grandes
exterminadores de Capital Social. Porque são,
poderíamos dizer, os assassinos das comunalidades, ou
seja, da “vida” social organizada num estágio de maior
complexidade.
A “vida” expressada pelas comunalidades -
fenômeno que já havia sido pressentido por Jacobs - é
função, portanto, do seu padrão (estrutural) de
organização e do seu modo (dinâmico) de regulação.
Estruturas horizontais e dinâmica democráticas, que
constituem o “corpo” e o “metabolismo” sociais das
comunidades que se expressam como comunalidades,
não poderiam jamais se estabelecer sem aquela
propensão básica, característica dos humanos, para a
cooperação. Porém, sem elas, a prática cooperativa
jamais se ampliaria socialmente.
Ora, a ampliação social da cooperação é,
justamente, o que se chama de Capital Social; a sua
conseqüente reprodução numa escala ampliada é o que
dá origem ao fenômeno que o conceito de Capital
Social quer expressar.

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O conceito de Capital Social que proponho é,
portanto, na verdade, muito simples – padrões de
organização e modos de regulação: tudo depende disso.
Resumindo mais ainda. Existe uma propensão
básica do ser humano para cooperar. Para cooperar
espontaneamente é preciso certa dose de altruísmo. O
ser humano é capaz de altruísmo. O altruísmo pode ser
encarado como uma virtude humana. A humanidade
reconhece e valoriza tal virtude, exaltando aqueles que
a praticam. Tanto é assim que as religiões chamam de
santos ou empregam termo equivalente para designar
aquelas pessoas com reconhecido alto grau de
altruísmo.
Pois bem. O Capital Social é função do grau de
altruísmo social, ou seja, da capacidade de cooperar de
uma sociedade. Mas não é a virtude humana de um
indivíduo que se soma a outras virtudes humanas de
outros indivíduos para compor o estoque de Capital
Social de uma sociedade e sim o padrão de organização
e o modo de regulação adotados por essa sociedade
que podem favorecer ou não a geração, a acumulação e
a reprodução do Capital Social em escala ampliada.
Em outras palavras: o Capital Social não é
função da “densidade superficial de santos”, quer dizer,
do número de santos por metro quadrado que existem
numa sociedade e sim do tipo de interação que se
estabelece entre os pecadores. Como veremos, um cluster
de santos organizado segundo um padrão hierárquico-

24
vertical e regulados autocraticamente por um santo dos
santos, apresentaria índices de Capital Social próximos
de zero, se não “negativos”. Por outro lado, uma rede
de pecadores que se reúne regularmente na praça pública
ou num fórum virtual pela Internet, discute os
problemas e as oportunidades da sua comunidade e
encaminha democraticamente propostas de soluções
para esses problemas ou de aproveitamento dessas
oportunidades, compartilhando entre si as
responsabilidades e dividindo consequentemente as
tarefas de implementação de tais propostas, com toda a
certeza gerará, acumulará e reproduzirá Capital Social
“positivo”.
Admitindo que o ser humano tenha uma
propensão básica para colaborar, esta propensão jamais
se ampliará socialmente se os padrões de organização
forem hierárquico-verticais e se os modos de regulação
de conflitos forem autocráticos, baseados na violência
e na coerção. Capital Social é uma coisa que só pode
florescer plenamente em comunidades ou sociedades
de parceria, quer dizer, em coletividades que adotaram
um padrão de organização em rede e que regulam seus
conflitos democraticamente.
Imagino que esta nova concepção de Capital
Social é capaz de sustentar a resposta que quis
encontrar para a questão que gerou o presente estudo.
Ações desenvolvidas em comunidades podem ter um
impacto considerável na mudança da vida das pessoas

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destas comunidades, mesmo que sejam realizadas por uma
pequena parcela destas pessoas - e isso é o que parece haver
de mais surpreendente nessa história toda. Restaria
mostrar que tais ações, desenvolvidas em certo número
de comunidades com baixo índice de desenvolvimento
sócio-econômico, podem vir a ter um impacto
considerável no desenvolvimento do país como um
todo, mesmo que não sejam realizadas na maioria
dessas localidades e mesmo que estejam inseridas num
contexto dominado pela dinâmica avassaladora dos
fluxos de capital característica do mundo globalizado -
mas essa tarefa ainda constitui, tal como a abordagem
da complexidade social a partir das teorias da
complexidade, também um desafio a ser enfrentado em
oportunidade ulterior.
Procurando evidenciar a relação entre o conceito
de Capital Social proposto e o impacto das ações
comunitárias sobre o processo de desenvolvimento
social, descobri que o problema do desenvolvimento é,
essencialmente, um problema de poder e de política.
Pequenas ações comunitárias terão impacto ponderável
sobre o desenvolvimento a não ser enquanto
introduzam novos padrões (horizontais) de
organização e novos modos (democráticos) de
regulação.
Se isso de fato é assim, então esse é um
conhecimento que pode mudar muita coisa.

26
Augusto de Franco
Outono de 2001

27
1
________________________
Os vários aspectos do debate

Um programa de investigação teórica sobre o conceito


de Capital Social envolve um debate com muitos
aspectos. É preciso, antes de qualquer coisa, examinar
os vários aspectos do debate para recolocá-lo centrado
nos seus aspectos mais substantivos.

1.1 – As razões da idéia


As tentativas de explicar o processo social a
partir dos movimentos ocorridos numa chamada 'base
econômica' da sociedade, começaram a revelar sua
inconsistência menos de um século após terem sido

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formuladas. Mas ainda não estão disponíveis outras
explicações coerentes e abrangentes.
Fazem parte de um velho paradigma científico
todas as tentativas de "explicação" da realidade social
baseadas em modelos de causalidade unívoca e padrões
de relações lineares, como as utilizadas, via de regra,
por alguns economistas, quando, por exemplo,
encaram o desenvolvimento social como resultado de
crescimento econômico. Curiosamente, porém, o que
em geral se verifica é também o inverso: sem atingir
um certo nível de desenvolvimento social as sociedades
têm grandes dificuldades para se expandir
economicamente .
Como cada vez mais gente se dá conta disso,
tem ressurgido a noção de 'capital social', uma velha
idéia tocquevilliana, originalmente política, agora
travestida com linguagem econômica por motivos
óbvios: para ter mais chances de ser aceita, ou ao
menos considerada, pelos sacerdotes da modernidade -
os economistas - que, via de regra, controlam o
pensamento dos policy makers. Fala-se então de
"acumulação de capital social" para expressar a
quantidade, o volume ou freqüência, de certas
características extra-econômicas, de formas não-
financeiras de poupança, em sentido metafórico, que
deve possuir uma sociedade para alcançar a
prosperidade econômica, ou seja, para atingir o que

29
boa parte dos economistas querem entender por
desenvolvimento.

1.2 – O debate ideológico


Há um debate ideológico sobre a denominação
'capital social'. Parte das esquerdas se opõe à utilização
do termo 'capital' por ver aí uma espécie de
contrabando. Ao nomear características humano-
sociais, como a sociabilidade, a confiança e a
cooperação, de 'capital', se estaria tentando transpor,
para a "esfera" da sociedade, uma racionalidade válida
na "esfera" do mercado. Seria, assim, mais uma
tentativa neoliberal, inspirada por uma visão
mercadocêntrica do mundo, de legitimar o jogo das
forças de mercado, livre das peias das regulações
estatais e dos controles sociais. Esta face do debate é
anacrônica: "alfândegas ideológicas" constituem
heranças fundamentalistas de triste memória.
Outra parte das esquerdas se opõe à utilização,
do conceito mais do que do termo, mas também do
termo, por ver neles algo que escapa ao protagonismo
estatal e por não compreender, sinceramente, como
possa existir uma coisa que caracterize o estado de uma
sociedade que não possa ser produzida ou ao menos
regulada pelo Estado. Uma parte da direita, mais
radical e também fundamentalista, aquela tatcherista,

30
também não aprova o termo, por não entender como
possa haver alguma coisa como sociedade.
Ora, para entender as razões pelas quais deve-se
trabalhar com o conceito de capital social é necessário
admitir que exista alguma coisa como sociedade civil.
Isso não é tão óbvio como parece: significa admitir que
a realidade social é composta de vários campos ou
"esferas" com racionalidades próprias, regidas por
"lógicas" distintas: além do Estado e do Mercado, a
chamada Sociedade Civil. Boa parte dos cientistas
sociais e dos policy makers da atualidade ainda não o
admitem ou, se aceitam teoricamente tal hipótese, dela
não extraem grandes conseqüências.

1.3 – O debate epistemológico


Para além deste debate de corte marcadamente
ideológico há os que se opõem à noção de Capital
Social por razões ditas científicas, por não
reconhecerem no conceito o status teórico necessário.
Ao invés de instituírem uma "alfândega ideológica"
instalam esses um "tribunal epistemológico", para
julgar o que deve e o que não deve ser aceito como
ciência (1.3: 1). Sobre isso penso que não só o conceito
de Capital Social mas quase todas as hipóteses das
chamadas ciências sociais não poderiam ser absolvidas
sem grande dose de indulgência por tal tipo de tribunal
na contemporaneidade.

31
Entender a dinâmica da sociedade humana
parece ser tão difícil quanto entender a mecânica
quântica. Quando este tema estiver melhor
compreendido, se é que algum dia o estará, talvez
possamos admitir tal rigor epistemológico para falar,
com toda a propriedade, de alguma coisa como 'ciência
social'.
Sei que muitos cientistas sociais não apreciarão
estas considerações, as quais me parecem, entretanto,
justas - se entendemos por ciência algo mais do que
coleção ou coleção de coleções sistematizadas de
frutos de investigações, empíricas ou teóricas, focadas
num mesmo campo de estudo, no caso a sociedade
humana. Conjuntos racionalmente encadeados de
resultados de investigações constituem excelentes
acervos para a história do pensamento e da prática
investigativos sobre algum assunto, mas não
representam, per se, ciência alguma sobre tal assunto.
Para uma coisa poder ser chamada de ciência,
penso que deveria ser capaz de revelar intimidades de
objetos, sejam entes ou processos - ou, então, num
sentido contemporâneo, de relações entre sujeitos e
objetos - que não poderiam se revelar imediatamente
ou ser, o que é a mesma coisa, conhecidas por sujeitos
que não contassem com seu concurso (1.3: 2).
Mas o esforço humano de produzir um tipo de
conhecimento que revele o que não se revela
imediatamente, revela afinal o que? Durante alguns

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séculos a ciência moderna imaginou que este tipo de
conhecimento deveria revelar as estruturas
fundamentais, que nada mais eram do que supostas
configurações geradoras de regularidades, por meio das
quais (imaginava-se que) certas forças atuavam para
produzir determinados fenômenos. O conceito de
força é típico da mecânica clássica newtoniana (1.3: 3).
Mas é curioso como este conceito "glissou" para as
ciências sociais, por exemplo, com Marx, que falava de
'estruturas' sociais e de 'forças' produtivas.
Para a ciência contemporânea estes modos de
olhar não se sustentam mais ou não são mais
suficientes. Quer-se, agora, revelar o processo
subjacente, a teia dinâmica de relações que dá origem
às supostas estruturas, ou seja, às configurações
geradoras de regularidades que, para os modos
clássicos de olhar, fazem com que as mesmas forças,
atuando nas mesmas condições, produzam os mesmos
fenômenos.
Em sistemas complexos - e quase todos os
sistemas não-ideais são sistemas complexos ou são
compostos por sistemas complexos - por trás de cada
configuração que produz regularidade existe uma teia
de relações intrinsecamente dinâmica, composta por
redes de redes interconexas que produzem
irregularidades quando isoladas pelo olhar que quer
compreender a dinâmica do todo a partir das
propriedades das partes. Ora, para a ciência

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contemporânea, as propriedades das partes só podem
ser entendidas a partir da dinâmica do todo. O que
precisa ser revelado, portanto, são os padrões
existentes em regiões da teia inseparável de relações
que constitui o todo. Mas esses padrões - que
constituem as partes que se quer conhecer - só se
revelam na medida em que a dinâmica do todo é
captada.
Reflexões como essas não são estranhas à nova
física ou à nova biologia - reconhecidamente ciências
contemporâneas - como o são às ciências sociais, cujos
fundamentos teóricos ainda estão baseados em
pressupostos filosóficos dos séculos XVIII e XIX.
Fazem parte desse velho paradigma científico todas as
tentativas de "explicação" da realidade social baseadas
em modelos de causalidade unívoca e padrões de
relações lineares, como as utilizadas, via de regra, por
boa parte dos economistas que encaram o
desenvolvimento social como resultado de crescimento
econômico quando, como dissemos, o que se vê, com
freqüência, é também o inverso. Ademais, deveria
parecer óbvio, a qualquer pessoa inteligente, que o
crescimento econômico - num quadro não ideal, como
o da maioria das sociedades realmente existentes no
mundo atual, de concentração de renda, riqueza,
conhecimento e poder - não leva ao desenvolvimento
social.

34
1.4 – O debate do desenvolvimento
Ou seja, estamos aqui diante de sistemas
complexos, nos quais fatores econômicos e extra-
econômicos do desenvolvimento (tais como renda,
riqueza, conhecimento e cultura, poder ou
empoderamento e meio ambiente) são variáveis que
sempre estão presentes, mas que se combinam de uma
maneira desconhecida (1.4: 1). As relações de mútua
dependência que se estabelecem entre essas variáveis
não podem ser captadas pelo olhar mecanicista e linear
que ainda prevalece na economia e nas chamadas
ciências sociais. Cada uma dessas variáveis depende das
demais segundo funções não-lineares desconhecidas,
nas quais entram outras variáveis também
desconhecidas em número e natureza, cuja relação só
poderia ser descrita por um sistema muito complexo
de equações diferenciais - com certeza sem solução no
estágio atual de nossos conhecimentos - e jamais pelo
instrumental analítico primário de que fazem uso
economistas e cientistas sociais.
De sorte que, a rigor, não podemos saber em
que medida o incremento de um desses fatores afetará,
intrinsecamente, o comportamento dos demais, não
podemos saber qual o valor ideal das variáveis, nem
mesmo os módulos dos seus intervalos de flutuação e,
assim, não podemos saber como produzir "círculos
virtuosos", nos quais o sistema possa "rodar" por
conta própria reunindo condições de sustentabilidade,

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quer dizer, gerando novos e múltiplos laços de
realimentação de reforço que façam com que uma
certa dose de capital humano (conhecimento), gere
uma dose correspondente de capital social
(empoderamento), que gere a renda necessária para
gerar outra quantidade adequada de capital humano et
coetera.
Os economistas, em geral, porque existem
exceções, querem nos fazer acreditar que mais é
sempre melhor, porém as coisas não se passam assim
em sistemas complexos como as sociedades humanas
reais. Uma variável do desenvolvimento que cresce
além de um certo valor, ótimo para uma determinada
sociedade, pode levar à perda da estabilidade do
sistema. Aumentar indefinidamente a renda pode ser
um péssimo negócio a longo prazo para uma
sociedade: além de um certo valor isso pode gerar
ciclos de produção-consumo-produção cujos resíduos
ou emissões não sejam compatíveis com os padrões de
reciclagem (que estarão) disponíveis àquela sociedade.
Expandir o capital empresarial para além de uma
determinada taxa pode levar, ao invés de à uma
desejável economia competitiva de mercado, à uma
insuportável sociedade de mercado, vincada na sua
base por uma cultura adversarial: todas as famílias e,
depois, todos os indivíduos dentro de uma mesma
família, competindo entre si, possuídos pela obsessão
sem fim de maximizar seus lucros. Maximizar o capital

36
humano, em certas circunstâncias, pode introduzir
desarranjos importantes. Mantidas as condições
políticas do mundo de hoje, a imensa maioria das
comunidades existentes se veria em sérios problemas
se todos os seus habitantes maiores de 28 anos
tivessem, por exemplo, pós-doutorado. Em sistemas
complexos, a alteração isolada de uma variável de
estado geralmente leva à perda da estabilidade e,
portanto, à insustentabilidade.

1.5 – O debate epistemológico incide sobre o


debate do desenvolvimento
Como as sociedades são, reconhecidamente,
sistemas complexos, as tentativas de estudá-las como
se não o fossem - sobretudo em uma época como a
que vivemos, na qual já estão se desenvolvendo os
fundamentos de uma ciência da complexidade - a rigor
não poderiam ser consideradas como procedimentos
mais atuais da ciência. Digo isso apenas como resposta
aos que levantam rigorosas objeções epistemológicas
para recusar, in limine, como não científicos, conceitos
nascentes ou renascentes que, ao meu ver, ajudam a
compreender a dinâmica das sociedades - como o de
Capital Social - pois não tenho a intenção de brandir tal
rigor contra quem quer que seja, nem mesmo contra
aqueles que costumam utilizar esse tipo de argumento
na luta das idéias.

37
É necessário, entretanto, destacar aqui algumas
exceções. Robert Putnam, por exemplo,
incontestavelmente o principal divulgador do conceito
de Capital Social, chegou a roçar o problema.
Mostram-no seus esforços, ingentes, para dar conta de
explicar o fenômeno que o conceito de Capital Social
quer expressar, de encontrar um novo instrumental
analítico. Tais esforços, de certo modo, valem também
como um atestado de impotência das ferramentas
conceituais até agora aceitas pelas ciências sociais.
Podemos observar a ginástica de Robert Putnam para
explicar, tendo lançado mão da teoria dos jogos, por
que os seres humanos, com freqüência que não pode
ser teoricamente justificada (não pelo menos no
âmbito da teoria dos jogos), comportam-se
subjetivamente contra os seus interesses objetivos,
dando mais valor à recompensa emocional pelo
reconhecimento social do que ao ganho material de
alguma vantagem concreta. Também é muito instrutivo
observar Putnam, apoiado nas teses
neoinstitucionalistas de North, tendo que lançar mão
de conceitos inusitados, próprios das teorias da
complexidade – como “auto-reforço” e “círculos
virtuosos” – que há até bem pouco não seriam
reconhecidos como científicos por aqueles “tribunais
epistemológicos” acadêmicos instituídos no âmbito das
ciências sociais, para explicar como práticas de ajuda-
mútua e solidariedade, podem ser amplificadas, por

38
retroalimentação, levando às sociedades a se manter
em caminhos que contradizem a prevalência da
solução hobbesiana dos dilemas da ação coletiva (o que
não quer dizer que tenhamos que nos convencer de
qualquer coisa como path-dependence).
Evidentemente deve-se responder também às
objeções, em aparência mais pertinentes e consistentes,
levantadas por aqueles que constatam que "nem os
sociólogos nem os economistas ficaram felizes com a
disseminação do uso da expressão capital social; aqueles
porque consideram-no uma parte da conquista mais
ampla das ciências sociais pela economia e estes
porque o vêem como um conceito nebuloso e difícil,
se não impossível de ser medido" (Fukuyama, 1999:
32). Quanto a isso, porém, é preciso dizer mais alguma
coisa.
Assim como “há uma tendência, já assinalada
por Rosnay, para internalizar os custos ecológicos na
economia clássica – uma via que, no final de contas,
pode desembocar em uma “mercantilização” dos bens
naturais”, também há uma tendência para internalizar
os custos sociais. No primeiro caso trata-se de “dar um
preço a tudo – um golfinho, um metro cúbico de ar,
uma floresta – para deixar funcionar os mecanismos
reguladores do mercado e taxar o consumo de recursos
naturais ou a emissão de detritos poluentes, [mas isso]
pode ter outros efeitos perversos também terríveis. Se
levarmos esse raciocínio mais adiante, avaliando o

39
preço dos “serviços da natureza” (tais como a
despoluição do ar e da água pela fotossíntese ou os
micróbios do solo), criamos, ao mesmo tempo, um
direito de poluir regiões do mundo nas quais os
serviços da natureza ainda chegam a ser eficientes,
portanto, menos dispendiosos do que os métodos
utilizados pelas tecnologias verdes dos países
desenvolvidos” (Rosnay, 1995: 265) (n. i.).
No segundo caso, trata-se também de dar um
preço, agora aos recursos sociais – por exemplo, às
redes de cooperação existentes numa determinada
coletividade alvo de um programa governamental ou
afetada por um empreendimento privado – quer dizer,
quantificar o Capital Social envolvido para transformá-
lo em mais uma parcela na contabilidade de um
projeto, o que pode igualmente desembocar em uma
“mercantilização” dos bens sociais. Uma possível
conseqüência desastrosa desta maneira de encarar os
bens sociais seria, por exemplo, gerar o direito de
desconstituir comunidades mediante o pagamento de
uma indenização equivalente ao valor do Capital Social
destruído por um determinado projeto, tornando esse
procedimento rotineiro.
A rigor nenhuma “usina” de Capital Social –
como é o caso das redes de pessoas e grupos e de
outras formas de interação humana, baseadas na
parceria, que constituem comunidade – pode ser
substituída por outra equivalente. Cada uma dessas

40
“usinas” é singular, tem uma qualidade diferente das
demais e se relaciona com o exterior, influenciando e
sendo influenciada, de um modo também peculiar, que
depende de um número indeterminável de fatores.
Uma unidade geradora de Capital Social é, nesse
aspecto, como uma pessoa humana – seu valor é
qualitativo, não pode ser quantificado e trocado por
outro valor equivalente, sobretudo se este valor for
monetizado para transformá-la em mercadoria.

1.6 – O debate político da democracia


Há um outro debate substantivo, todavia. Trata-
se do debate da política, ou melhor, da democracia.
Em geral as abordagens atuais do Capital Social não
mantêm uma linha de continuidade com o que disse o
principal precursor da idéia: Alexis de Tocqueville. A
natureza originalmente política da idéia tocquevilliana
original praticamente desaparece das formulações
contemporâneas, que assumem, quase sempre, um viés
despolitizado e despolitizador. Ora, o Capital Social
não pode ser produzido, acumulado e reproduzido
socialmente numa escala ampliada, fora de processos
democráticos. Por isso, qualquer conceito de Capital
Social deveria ser capaz de articular também a
dimensão política, restabelecendo a ligação com sua
natureza originalmente política.

41
1.7 – O debate político da democracia incide
sobre o debate do desenvolvimento
Mais do que isso, entretanto: o debate
substantivo sobre as relações entre Capital Social e
democratização ou radicalização da democracia, talvez
seja a única maneira de estabelecer uma ponte entre as
problemáticas do desenvolvimento e as problemáticas
da mudança social nas sociedades contemporâneas.
Novamente aqui impõe-se a necessidade de
restabelecer uma ligação com os precursores. Refiro-
me agora a Jane Jacobs. A dinâmica sociológica (pela
qual as redes de relações, “que são o Capital Social”,
transformam o contexto social em que estão inseridas),
percebida por Jacobs – a primeira pessoa que usou a
expressão com o seu sentido atual – não foi percebida
por mais ninguém ou, se o foi, não deu margem a
nenhum desenvolvimento ulterior conhecido. A não
ser, muito recentemente, com os teóricos das redes e
os que tentam interpretar a dinâmica das sociedades
contemporâneas e da mudança social nessas
sociedades, como dinâmicas próprias de uma sociedade
em rede – como é o caso de Manuel Castells, para
quem a sociedade em rede permite a geração de Capital
Social, embora ele nunca fale assim. E ainda que
Castells não use a expressão e nem trabalhe com o
conceito, a correlação, estabelecida por ele, entre
comunidade-rede-mudança numa sociedade pós-
industrial, constitui, ao meu ver, um dos principais

42
fundamentos para um conceito de Capital Social que
resgate o seu caráter originalmente político.
O debate do padrão de rede – forma pelo qual
se estruturam coletivos sociais complexos – guarda
uma relação profunda com a mudança social enquanto
processo de democratização da democracia. Pois a
ampliação social da cooperação (à qual se refere o
conceito de Capital Social) e a sua conseqüente
reprodução numa escala ampliada (que dá origem ao
fenômeno que o conceito de Capital Social quer
expressar) dependem da emersão de estruturas cada
vez mais horizontais (segundo um padrão de rede,
oposto aos padrões hierárquico-verticais de
organização) – sem o que, aliás, também não se podem
instalar dinâmicas cada vez mais democráticas (opostas
aos modos violentos ou coercitivos de solução de
conflitos) nas coletividades humanas.
Que isso tudo tenha a ver com o
desenvolvimento não se pode negar e é mesmo difícil
não ver. Desenvolvimento é movimento, é mudança.
Desenvolvimento social – que é “aumento” de Capital
Social – e sem o qual não pode haver real
desenvolvimento econômico, é mudança social. Porém
mais difícil ainda é explicar por que os teóricos do
desenvolvimento não percebem, ou, pelo menos, não
dão mostras de perceber, tais relações intrínsecas e,
assim, despolitizam tanto suas formulações.

43
1.8 – O debate dos pressupostos
Por último, há um terceiro debate substantivo
que deve ser travado e esse debate é o seguinte. A
construção de um conceito de Capital Social pressupõe
– não há como evitar – uma opinião sobre a natureza
de alguma coisa que se possa chamar de “natureza
humana”. Todavia, em geral, os teóricos guardam para
si sua opinião, não estando dispostos a abrir tal
discussão (com exceções, como a de Francis
Fukuyama, mas problemáticas, de vez que ele não
obteve o visto naquelas “alfândegas ideológicas” que
foram instaladas pela esquerda estatista nas academias).
Ora, só pode haver produção de Capital Social
se os seres humanos fizerem coisas que contradizem
seus interesses imediatos como, por exemplo, cooperar
sem esperar recompensa imediata, proporcional ou
prevista em prazo azado. Evidentemente, isso deveria
levar qualquer pesquisador sério a investigar as origens
da cooperação. A esse respeito, a direita, em geral,
assim como boa parte dos economistas que se metem a
explicar o funcionamento das sociedades humanas,
assumem sem muito pudor a visão de que o homem é
naturalmente competitivo, não passando a cooperação
de resultado de uma racionalização visando a (ou na
expectativa de) obter maiores ganhos no longo prazo –
mas aí todos esses se vêem em enormes dificuldades
para explicar porque existe tanta cooperação
espontânea no mundo real.

44
Nada de realmente científico nos obriga a aceitar
a suposição de que os seres humanos são
inerentemente competitivos. Os pressupostos
filosófico-antropológicos dos economistas e dos
sociólogos que querem ser aceitos pelos economistas
são, na verdade, discursos axiológico-normativos.
Supor que a competição seja uma característica
inerente à natureza humana – porque o homem é um
animal e os animais competem por recursos e, no caso
dos primatas, também por poder (afirmativas muito
questionáveis, como veremos adiante) – é um axioma
de ideologia moral que, portanto, não pode ser
validado pelas regras válidas da ciência que se constrói
a partir dessa suposição, tomada de antemão como
verdadeira. Se é assim, pode-se igualmente supor – em
resposta à pergunta de por que os seres humanos
podem ter capacidade de cooperar – que o que
possibilita aos seres humanos terem essa capacidade é a
mesma coisa que os constitui como seres realmente
humanos. Se é uma questão de preferência na escolha
de que suposição tomar, há muitas razões indicando
que deve-se preferir esta última, inclusive por ser mais
conforme a um comportamento universalmente
observado, de haver tanta cooperação espontânea no
mundo real, que não poderia haver, com a freqüência
observada, caso o ser humano fosse inerentemente
competitivo.

45
Ao investigar seriamente as origens da
cooperação nos damos conta de que uma teoria do
Capital Social é, pelo menos no que tange aos seus
pressupostos, uma teoria do humano.
Talvez ninguém tenha desenvolvido isso tão
bem como o biólogo chileno Humberto Maturana
Romesin. Para fazer frente tanto às simplificações dos
economistas, que comparecem em quantidade não
desprezível quando se trata de justificar porque o
humano tem que ser constitutivamente ou
“geneticamente” competitivo, quanto para ter uma
espécie de antídoto contra tais idéias perversas, desses
e de outros – como os sociobiólogos – deve-se
reconstruir uma teoria da cooperação. E, na minha
opinião, pode-se e deve-se fazer isso, cientificamente;
por exemplo, a partir de Maturana.

1.9 – O debate dos pressupostos incide sobre


o debate do desenvolvimento
Ao reconstruir uma teoria da cooperação que
parta da características cooperativas dos seres humano-
sociais – aí sim, e só então – nos daremos conta de
toda a importância de se trabalhar com o conceito de
Capital Social, de um modo diferente, porém, do que
geralmente se faz hoje em dia, quer dizer, não de uma
maneira instrumental e tecnicista, que – como vimos –
quer apenas medir o quanto valem as relações

46
existentes num determinado grupo humano para
introduzir mais uma parcela na contabilidade dos
projetos, sem prestar atenção no que valem tais
relações para a mudança dos padrões e dos modos de
regulação das sociedades de dominação e sem levar em
conta os seus aspectos qualitativos. Ao fazer isso, quer
dizer, ao reconstruir uma teoria da cooperação que
parta da características cooperativas dos seres humano-
sociais, descobriremos que, talvez, não se trate
propriamente de construir uma economia e sim uma
ecologia do Capital Social.

1.10 – Resposta à algumas objeções


As argumentações apresentadas acima podem,
pelo menos, valer como resposta a uma parte daqueles
que se recusam a trabalhar com o conceito de Capital
Social por motivos ideológicos. Me refiro àquela parte
que, admitindo a existência da Sociedade Civil, não se
sente confortável em usar o termo 'capital' por medo
de "contaminar" realidades humano-sociais com o
"vírus" do mercado. Ora, se o que incomoda aqui é
apenas a palavra 'capital', então não há problema. Basta
não usá-la. Desconfio, entretanto, que essas objeções
tenham a ver com o conceito mesmo e estejam
relacionadas a uma recusa à idéia de que seja possível,
para uma sociedade, "acumular" formas não
financeiras de poupança ou que tal "acumulação"

47
cumpra um papel decisivo, quer para a prosperidade
econômica, quer para a boa governança que possam vir
a se instalar nessas sociedades, mas sobretudo para o
tipo de mudança social que tal acumulação possa vir a
desencadear – uma mudança na direção da
radicalização da democracia.
Neste caso, a objeção ao uso do termo 'capital'
apenas disfarça outras objeções, mais de fundo, à idéia
mesma que o termo quer designar. Desconfio que na
base do pensamento dos que fazem tal objeção
permaneça viva a crença de que se deve atribuir ao
crescimento do produto a condição de única geratriz
do desenvolvimento social; ou, lamentavelmente,
esconda-se um certo incômodo, um certo desconforto,
sintomáticos, próprios de quem não está muito
convencido da democracia.

48
2
_____________________
Reconstruindo o conceito

Pode-se tentar refazer, passo a passo, as etapas de


construção do conceito de Capital Social, seguindo
primeiramente uma ordem lógica, ou melhor,
metodológica e não cronológica.

2.1 – O fenômeno que o conceito de Capital


Social quer captar
A observação revela (quer dizer, pode-se inferir
a partir da observação) que existe alguma coisa - algum
fator ou variável do desenvolvimento - que não pode
ser reduzida às formas conhecidas de capital
propriamente dito, nem de 'capital humano' (que se

49
refere ao conhecimento, ao know how e à capacidade de
criá-lo e recriá-lo - envolvendo, portanto, a saúde, a
alimentação e a nutrição, a educação, a cultura e a
pesquisa e, sobretudo, o empreendedorismo, quer
dizer, àquela característica dos humanos, chamada às
vezes de imaginação criadora, que se revela como
desejo, sonho e visão: desejo e desejo de materializar o
desejo; sonho e capacidade de realizar o sonho; visão e
habilidade e competência para viabilizar a visão), nem
de 'capital natural' (que se refere aos recursos naturais
herdados, regenerados, recriados ou criados).
Constata-se, empiricamente, em primeiro lugar,
que na presença desse fator:
a) as sociedades, ou partes delas, exploram
melhor as oportunidades ao seu alcance;
b) as organizações tornam-se mais eficientes;
c) os chamados "custos de transação" são
reduzidos;
d) as instituições funcionam melhor;
e) reduz-se a necessidade do uso da violência na
regulação de conflitos;
f) mais bens públicos (e privados) são
produzidos;
g) mais atores sociais são constituídos; e
h) a sociedade civil torna-se mais forte.
Em suma, observa-se que a presença desse fator
facilita a prosperidade econômica e a boa governança,

50
impulsionando o desenvolvimento e aprofundando a
democracia.
Observa-se, em segundo lugar, que quanto
maior for a presença (ou a "quantidade" – infere-se
aqui por analogia com outros fatores mais conhecidos
do desenvolvimento que podem ser quantificados)
desse fator, mais rapidamente ou mais intensamente ou
mais duradouramente os efeitos assinalados acima se
manifestam.
Em terceiro lugar também se constata,
empiricamente, que este fator depende das relações
sociais - das relações estáveis e duráveis estabelecidas
entre pessoas e grupos numa dada sociedade. Percebe-
se, ou infere-se, que este fator é função do conjunto
dessas relações.
Sistematizando os resultados dessas
constatações supõe-se que podem ser atribuídas a este
fator desconhecido:
a) a qualidade de ser um fator ou variável do
desenvolvimento;
b) a natureza de ser algo que pode ser
produzido, acumulado e reproduzido e,
portanto, de uma forma ou tipo de Capital; e
c) uma origem Social, ou seja, de ser algo que é
produzido, acumulado e reproduzido
socialmente, em função do tipo de relações
sociais estabelecidas ou em função da
configuração do conjunto dessas relações.

51
Com base nessas considerações resolve-se,
então, denominar este fator ou variável do
desenvolvimento, cuja natureza é a de uma forma ou
tipo de Capital e cuja origem é Social, de 'Capital Social'.

2.2 – A capacidade a que se refere o termo


'Capital Social'
Explorando o que se denominou de 'Capital
Social' descobre-se que ele se refere à capacidade das
pessoas de uma dada sociedade:
a) de subordinar interesses individuais aos de
grupos maiores;
b) de trabalhar juntas visando a objetivos
comuns ou ao benefício-mútuo;
c) de se associar umas às outras e formar novas
associações;
d) de compartilhar valores e normas:
i. para formar grupos e organizações
estáveis; e
ii. para constituir, compartilhar a gestão
e, em suma, viver em comunidade.
Não há grande desacordo entre os
pesquisadores sobre o exposto acima. Todavia, para
construir uma teoria do Capital Social seria necessário
– fazendo o que, em geral, não é feito – responder
sistematicamente as seguintes questões:
1 - Em que consiste essa capacidade?

52
2 - O que confere às pessoas (ou às sociedades
humanas) essa capacidade?
3 - Como ela pode ser produzida, acumulada e
reproduzida (ou esgotada, dissipada ou destruída)?
4 - Como ela pode ser detectada
(potencialmente) e como ela (ou a sua manifestação)
pode ser medida (actualmente)?
Além disso, dever-se-ia responder: por que os
seres humanos podem ter essa capacidade?
Evidentemente, esta última pergunta pertence a uma
meta-teoria e diz respeito, talvez, mais a uma filosofia
do que a uma ciência social propriamente dita. Mas
para analisar os fundamentos do construct 'Capital
Social' torna-se necessário investigar os pressupostos
filosóficos subsumidos na sua elaboração.

2.3 – Em que consiste essa capacidade a que


se refere o termo ‘Capital Social’
Todos os diferentes aspectos da capacidade a
que se refere o conceito de Capital Social (elencados
acima), poderiam ser resumidos à capacidade de viver
em comunidade, latu sensu, ou seja, de interagir
socialmente de sorte a criar e manter contextos onde se
manifeste um ethos de comunidade.
Assumido isto, podemos então investigar em
que consiste essa "capacidade de comunidade" a que se
refere o conceito de Capital Social.

53
A "capacidade de constituir comunidade" – na
época atual poderíamos dizer, de desentranhar
comunidade (gemeinschaft) de sociedade (gesellschaft),
gerando contextos onde se manifeste um ethos de
comunidade - consiste em uma classe particular de
interações sociais que promovem:
a) o reconhecimento mútuo;
b) a confiança;
c) a reciprocidade e a ajuda-mútua;
d) a solidariedade; e
e) a cooperação.
Sobre isso há também um forte consenso entre
os pesquisadores.
Essa classe particular de interações diz respeito a
um tipo de relação que vem sendo chamada, muito
embora os teóricos do Capital Social não empreguem o
termo, de relação de parceria. Isso não precisa ser
mostrado pois trata-se de uma denominação geral para
o conjunto das cinco expressões acima e, portanto, de
uma convenção.
Dizer que a capacidade de gerar contextos onde
se manifeste um ethos de comunidade é dada pela
parceria, não quer dizer que basta a existência de
relações de parceria para que se verifique tal capacidade
(pois, antes de qualquer consideração substantiva, isso
seria uma falácia em termos lógicos), mas significa
dizer que na ausência de relações de parceria não pode
se realizar essa capacidade.

54
Mas, substantivamente, também não basta que
existam relações de parceria – sempre presentes em
algum grau em qualquer coletividade humana durável –
sendo necessário que elas conformem arranjos de
sociabilidade suficientemente estáveis e duráveis para
gerar normas e instituições que consolidem e
reproduzam os valores e atitudes que as constituem, i.
e., o reconhecimento mútuo, a confiança, a
reciprocidade e a ajuda-mútua, a solidariedade e a
cooperação.
É preciso mostrar, aqui sim, que isso não pode
ser feito, numa escala ou dimensão social, a partir da
soma de relações interpessoais de parceria. Mostrado
isso, pode-se concluir que é necessário, então, que
exista uma função sistêmica, relacionada a um padrão
organizativo e a um modo de regulação (de conflitos)
para gerar ou para ampliar tal fenômeno.
Em outras palavras, isso significaria afirmar que
essa forma de capital – denominada Capital Social – é,
de fato, social; não é pessoal ou apenas interpessoal.

2.4 – O que confere às pessoas (ou às


sociedades) 'capacidade de comunidade'
Vencida a etapa anterior chegaríamos, assim, ao
centro da questão. O tipo de relação – de parceria –
que confere "capacidade de comunidade" decorre, por
um lado, de um padrão de organização social, que deve

55
estar presente em regiões ou subconjuntos da
sociedade para que o fenômeno ocorra numa dimensão
social e não apenas individual ou interpessoal. Isso
precisa ser mostrado. Mas esta passagem não é trivial,
como veremos mais adiante.
É preciso mostrar, ademais, que este padrão de
organização é o padrão de rede, na qual se estabelecem
laços horizontais de interdependência entre seus
membros. Comunidades deveriam ser redefinidas, a
partir desse ponto de vista, como conjuntos de
elementos ligados por interdependência.
Um caminho possível seria começar definindo
interdependência como a dependência mútua de todos
os processos que ocorrem em um sistema complexo
que adota como padrão organizativo o de uma rede
(mas uma rede com certas características, como
veremos depois). E, a partir daí, mostrar que a
interdependência tende a se manifestar nas
coletividades humanas que possuem um ethos de
comunidade, argumentando que somente em um
contexto de comunidade se pode ascender à
consciência do papel, vital para a continuidade do
sistema, que cumprem as múltiplas relações que se
estabelecem entre seus membros (2.4: 1).
Tudo isso significaria dizer, em outras palavras,
que pessoas conectadas com pessoas, a partir de um
padrão de rede, geram normas e instituições capazes de
consolidar e reproduzir, numa dimensão social, as

56
virtudes atribuídas ao Capital Social. Mas aqui viria a
parte mais difícil, qual seja a de mostrar que o
fenômeno ocorre mesmo que essas pessoas,
individualmente, não tenham motivação especial para
praticar tais virtudes. E aí seria preciso mostrar
também o contrário, ou seja, que pessoas subordinadas
a pessoas (dependentes ao invés de interdependentes) a
partir de um padrão piramidal de organização
(mainframe ao invés de network) podem até continuar,
individualmente, a praticar essas virtudes, porém não
conseguem reproduzi-las socialmente numa escala
ampliada.
Por outro lado, seria preciso mostrar que a
maneira como a sociedade regula seus conflitos
também é decisiva para que o fenômeno ocorra numa
dimensão social.
Em suma, dever-se-ia concluir que, se valores e
atitudes de confiança, reciprocidade, cooperação etc.,
fossem apenas a expressão de virtudes pessoais, eles
não gerariam esse fator social de desenvolvimento
chamado Capital Social. E que o Capital Social,
portanto, diz respeito a virtudes sociais, virtudes
encarnadas em coletividades humanas.
Poder-se-ia apresentar evidências para
corroborar tais conclusões, mostrando que as referidas
virtudes sociais não se manifestam, a não ser muito
pontualmente, em sociedades dominadas por governos
autocráticos. E mostrando que quanto menor for a

57
incidência de relações horizontais (redes), quanto
maior for a presença de estruturas verticalizadas
(como, por exemplo, as dos Estados totalitários),
menor será o nível do Capital Social.
Poder-se-ia, por último, lançar mão de exemplos
concretos para reforçar essas conclusões, dizendo, e. g.,
que não é outro o motivo do Capital Social ser tão
baixo no Leste Europeu ou em Cuba, ainda que o nível
do capital humano nesses países seja relativamente alto
em comparação com a média mundial. E, enfim, que
nem a quantidade, nem mesmo a qualidade do capital
humano podem compensar os déficits de Capital Social
decorrentes de um padrão organizativo avesso à sua
produção, acumulação e reprodução. Uma organização
piramidal de santos apresentaria, como qualquer
exército, baixíssimos índices de Capital Social (se não
valores negativos).

2.5 – Como o Capital Social pode ser


produzido, acumulado e reproduzido
Capital Social se refere a "capacidade de
constituir comunidades" porque comunidades são
“usinas” de Capital Social. Quanto mais comunidades
existirem numa sociedade, mais Capital Social será
produzido, acumulado e reproduzido socialmente.
Mas, para mostrar isso, é preciso dizer o que se
entende por comunidade. Uma conceituação possível,

58
que pode ser tomada como ponto de partida, é a
seguinte. Comunidades, stricto sensu, vêm sendo
tradicionalmente definidas como unidades sociais onde
existam:
a) valores compartilhados;
b) sentido de identidade e pertencimento;
c) cultura e atividades econômicas e políticas
comuns;
d) coordenação de atividades voltadas para
propósitos coletivos; e
e) algum grau de autogoverno.
Mas é interessante mostrar aqui que as
comunidades em uma sociedade pós-industrial são,
obviamente, realidades muito diferentes das
comunidades de uma sociedade pré-industrial. Nas
sociedades contemporâneas comunidades são
subconjuntos, regiões onde o tecido social apresenta
um padrão diferenciado de organização.
As comunidades atuais são coletivos
conformados a partir da interação em rede entre
pessoas, conectadas por laços de interdependência, que
encarnam, muitas vezes com diversidade e
flexibilidade, normas e instituições que consolidam e
reproduzem valores e atitudes de parceria.
Mas a sociedade atual não é constituída por
comunidades, não é um conjunto de unidades
comunais. Todo o período industrial, do qual ainda

59
não saímos completamente, significou uma
impossibilidade do viver social em comunidades.
Entretanto, é possível argumentar para mostrar
que no período pós-industrial – ou sociedade do
conhecimento – que está emergindo, essa possibilidade
volta de uma outra forma, de vez que este tipo de
sociedade permite o aparecimento de redes nas quais a
interdependência e, muitas vezes, a diversidade e a
flexibilidade, podem ser características de um novo
padrão de organização social. E que este novo padrão
não se estabelece, pelo menos inicialmente, no
conjunto da sociedade emergente porém em partes
desse conjunto, criando contextos sociais nos quais
pode surgir ou ressurgir o ethos de comunidade.
Mas, fundamentalmente, é preciso mostrar que,
se as comunidades que podem se constituir na
contemporaneidade são, como dissemos, muito
diferentes das comunidades tradicionais, isso não quer
dizer que não sejam comunidades. E que, se
instituições se materializam em organizações,
instituições com ethos comunitário se materializam, na
contemporaneidade, como organizações em rede.
Desse ponto de vista, a questão de como o
Capital Social pode ser produzido se apresenta então,
como assinalou John Durston, como outra questão: a
de “como emergem as instituições do capital social
comunitário?” (Durston, 2000: 23) (2.5: 1).

60
2.6 – Como o Capital Social pode ser medido
Quando se fala em produzir, acumular e
reproduzir Capital Social, para que tais expressões
tenham sentido – mesmo que seja um sentido
metafórico – deve-se falar de algum tipo de recurso.
Os fundadores do conceito já haviam percebido.
Para os fundadores, sobretudo para Coleman (1990),
estes “recursos sociais” são produtivos, tais como
outras formas de capital (2.6: 1).
Ora, faz sentido: se são recursos, se são sociais e
se são produtivos, então estamos tratando de uma
outra forma de capital - que deveria mesmo ser
chamada de Capital Social. Isso é bastante razoável.
Em experiências passadas de crédito rotativo e,
hoje, do chamado microcrédito, observa-se que os
tomadores, não dispondo de bens físicos para dar
como garantia de seus empréstimos, empenham suas
relações sociais. Daí se depreende que esse fator –
referente às relações sociais empenhadas – pode ser
chamado, com alguma propriedade, de „capital‟ social.
Se as relações, empenhadas no caso do crédito rotativo,
são ou podem ser aceitas, inclusive do ponto de vista
da eficiência econômica, como um equivalente de bens
físicos, então elas são uma forma de capital. Se são
relações sociais, então esta forma de capital é social. Isso
também é bastante razoável. E novamente aqui
estabelece-se uma relação de equivalência com
recursos.

61
O problema é que, diferentemente de outras
formas de capital propriamente dito, como o capital
“físico” (ou tradicional), não se sabe bem como aferir a
sua magnitude. Recursos "ligados à posse de redes",
recursos associados a relações, não podem ser medidos
facilmente.
Há um outro problema, porém. Em geral os
esforços para medir o Capital Social têm se revelado
infrutíferos em razão das características qualitativas do
conceito.
Não se pode medir a qualidade porque o ato de
medir é o ato de discriminar para comparar, a partir de
um padrão comum adotado para possibilitar a
comparação entre mais de dois objetos. A medição
envolve, portanto, unidades de medida (quanta) válidas
para mais de um objeto, igualmente verificáveis por
sujeitos distintos, cuja soma confere a grandeza e
outros atributos dos objetos medidos, ainda que nem
sempre precise ser uma soma aritmética, de módulos,
podendo envolver direção e sentido (como, por
exemplo, na soma vetorial) e outras propriedades
como rotação e posicionamento relacionável à
velocidade ou à energia (como no caso das medições
relativas à partículas elementares). Ora, não existem
“quanta” de qualidade, pois quantum como definição de
unidade é aplicável qualis libet.

62
2.7 – Porque os seres humanos podem ter
‘capacidade de comunidade’
Os fundamentos da maioria das abordagens
teóricas do Capital Social estão construídos sobre um
terreno de pressupostos que quase nunca se explicitam.
Tais pressupostos, entretanto, existem. São
pressupostos filosófico-antropológicos, que tomam
suas matrizes conceituais, em geral, de empréstimo de
outras ciências, como a biologia e a biologia da
evolução, formulando então meta-hipóteses
sociológicas (na verdade, diriam alguns, sub-
sociológicas) a partir das hipóteses aventadas para
explicar o funcionamento de organismos ou de partes
de organismos (como o cérebro humano) ou para
explicar comportamentos animais (como os dos
chimpanzés). E não é possível analisar os fundamentos
do conceito de Capital Social sem desvelá-los.
A tarefa de desvelar os pressupostos do conceito
de Capital Social não é trivial, porquanto envolve
elementos teóricos de procedências distintas e status
diverso: assertivas tomadas axiomaticamente por
sistemas (ou discursos) filosóficos, do tipo “o homem
é um animal político” (Aristóteles); conclusões
deslizadas da biologia para a antropologia social, como:
“os seres humanos cooperam para competir”
(Alexander, 1990); especulações com as teorias da
evolução – por exemplo, sobre a existência de uma
“natureza humana” – que supostamente indicariam

63
que o Capital Social “tende a ser gerado de forma
instintiva pelos seres humanos” (Fukuyama, 1999);
além, é claro, de todas as crenças morais (e imorais)
subsumidas em teorias econômicas, como a de que não
é possível explicar o comportamento de grupos a não
ser em termos dos interesses dos indivíduos e de que
estes interesses são basicamente egoístas.
Os sub-discursos axiológico-normativos dos
economistas, se se pode falar assim, não são os
melhores exemplos de ocultamento de pressupostos,
de vez que chegam a confundir-se com seus discursos,
dando a impressão de que as teorias econômicas são,
afinal, teorias morais (e, com freqüência, imorais). Isso
fica claríssimo, por exemplo, nas críticas ao socialismo
de Ludwig von Mises (1981) e Friedrich Hayek (1988).
Mas, quando não se pode falar assim, como no caso da
teoria econômica dos jogos e outras teorias baseadas
na rational choice, constituem então os melhores
exemplos de transposições mecânicas de noções de um
âmbito teórico para outro, sem muita cerimônia
semântica, sem muita consideração epistemológica
pelos estatutos próprios dos diversos campos de
conhecimento trafegados e, enfim, sem muito respeito
pela natureza do objeto do conhecimento (ou pela
natureza dos conhecimentos sobre o objeto) em
questão: o ser humano ou os conjuntos de seres
humanos.

64
Assim, o ser humano é tratado, por exemplo, na
teoria econômica dos jogos, como um ser puramente
racional e não como um ser emocional-racional – o
que explica os limites das explicações que alguns
economistas fornecem para a solução dos chamados
dilemas da ação coletiva. Com efeito, diante do dilema
do prisioneiro, os seres humanos, em geral, quer dizer,
majoritariamente na maioria das culturas, não
escolhem, com tanta freqüência, a opção que seria
racionalmente a mais vantajosa para si como
indivíduos, porquanto trapacear não é uma opção
emocionalmente confortável.
Tão simples como isso, mas os economistas
“freqüentemente expressam surpresa pelo fato de
haver tanta cooperação no mundo, uma vez que a
teoria dos jogos sugere que as soluções cooperativas
são, muitas vezes, difíceis de obter... [e continuam
tendo grandes] dificuldades para explicar por que
tantas pessoas votam, fazem doações a entidades
caritativas ou permanecem leais aos seus
empregadores, porque seus modelos de
comportamento egoísta sugerem que é irracional fazer
isso” (Fukuyama, 1999: 172). Por quê – deve-se
perguntar – se “todo mundo sabe”, inclusive os
economistas, que os seres humanos são sociáveis e são
recompensados emocionalmente pelo reconhecimento
social que advém do exercício da colaboração? Talvez
essas dificuldades provenham de outro campo, não

65
propriamente da teoria científica, mas da ideologia
embutida na teoria, na visão que precisa ser impingida
para aumentar a verosimilhança do discurso. De fato, o
pressuposto básico da competição tem que estar
presente para o esquema explicativo funcionar,
legitimando (e contribuindo para reproduzir) um
mundo de competição onde a explicação, então,
funcione, garantindo o status sacerdotal daqueles que o
explicam. Mas, justiça seja feita, tal comportamento
não é privilégio de economistas – é o que atestam, por
exemplo, outras perversões; vale lembrar: a sociologia
de Garret Hardin, a sociobiologia de Edward Wilson e
a antropologia de Robert Ardrey – como tão bem
mostrou William Irwin Thompson (1987: 23).
Na verdade a teoria econômica dos jogos não é
bem humana, não por ser uma teoria matemática ou
matematizada, mas – no sentido de que é uma teoria
indevidamente transposta para o campo das ciências
humanas – por não se aplicar aos seres humanos reais
e sim a seres humanos idealizados, cujos cérebros
funcionam como CPUs de computador.
Responder “por quê os seres humanos podem
ter „capacidade de comunidade?” nos obriga a desvelar
os pressupostos do conceito de Capital Social. A
„capacidade de comunidade‟ a que se refere o conceito
de Capital Social é constituída, fundamentalmente, pela
capacidade que tem o ser humano de colaborar ou de
cooperar com outros seres humanos. Este último

66
termo é melhor por ser mais abrangente: „co-laborar‟
evoca a noção de trabalho conjunto, enquanto que „co-
operar‟ se refere a quaisquer (oper)ações conjuntas,
algumas delas fundamentais porquanto constitutivas do
humano como é o caso, por exemplo, na visão de
Humberto Maturana (1988), compartilhada aqui, do
„con-versar‟. Para descobrir de onde vem esta
„capacidade de comunidade‟ é preciso, pois, investigar
as origens humano-sociais da cooperação.
Antes, porém, deve-se direcionar a investigação
para as suas fontes primeiras.

67
3
_________________
De onde vem a idéia

As teorias do Capital Social foram ensaiadas a partir de


indagações sobre o “corpo” e o “metabolismo” de
comunidades humanas. Por que certas sociedades
regulam tão bem os seus conflitos? Por que certas
territorialidades apresentam uma dinâmica social tão
parecida com a de organismos que se auto-mantêm?
Tais perguntas estão na origem de todas as teorias do
Capital Social que floresceram, sobretudo, a partir da
última década do século XX e foram elas que guiaram
as investigações precursoras do conceito, iniciadas
ainda em meados do século XIX.

68
3.1 – A genealogia do conceito
Para investigar as tentativas teóricas que foram
feitas sobre o Capital Social é sempre bom levantar,
preliminarmente, a genealogia do conceito.
As diferentes abordagens do conceito de Capital
Social que vêm sendo crescentemente empregadas por
cientistas políticos, pesquisadores sociais e, sobretudo,
por policy makers, são, quase sempre, baseadas no
material teórico desenvolvido por Bordieu, Coleman
(e, freqüentemente, também Putnam) – os
considerados fundadores. Tal como hoje se emprega, a
noção de Capital Social é uma construção da última
década do século XX.
Todavia, tanto a expressão, quanto a idéia que a
expressão faz referência, parecem vir de muito antes.
Mas não há um consenso sobre a autoria da expressão
Capital Social (3.1: 1).
Na minha opinião, uma razoável genealogia do
conceito poderia ser apresentada assim:
A primeira pessoa a descrever o fenômeno que
o conceito de Capital Social quer captar e expressar foi
Alexis de Tocqueville (1835; 1840). A primeira pessoa
a usar o termo, ao que se saiba, foi Lyda Hanifan
(1916). A primeira pessoa a explorar a intimidade
sociológica da idéia foi Jane Jacobs (1961). As
primeiras pessoas que empregaram a noção de Capital
Social para analisar questões concretas de

69
desenvolvimento foram o sociólogo Ivan Light (1972)
e o economista Glenn Loury (1977; 1987).
Entretanto, o conceito só foi elaborado de uma
maneira mais completa pelos sociólogos Pierre
Bourdieu (1980; 1985) e James Coleman (1988; 1990).
Em "Social Capital in the Creation of Human Capital",
Coleman (1988) introduziu a expressão no debate
contemporâneo do desenvolvimento travado no
âmbito da sociologia já um pouco pautada pela
economia.
O pano de fundo econômico contra o qual o
conceito faz sentido foi fornecido pelos chamados
neoinstitucionalistas, notadamente Douglass North
(1970; 1973; 1990), por Robert Bates (1988), James
March e Johan Olsen (1989) e Elinor Ostrom (1990;
1992; 1999), e pelo teórico da sociologia econômica
Mark Granovetter (1985) (3.1: 2). Na qualidade de
fornecedores de noções conexas, como a de
empowerment – aliás, também de origem tocquevilliana –
deve-se lembrar de outros investigadores: por exemplo,
Lee Staples (1990).
Aí então vieram os relançadores da idéia no
debate contemporâneo: de Robert Putnam (1993;
1995; 1997; 2000) – e seus críticos, como Alejandro
Portes (1993; 1996; 1998) e Everett Ladd (1993-4;
1996; 1999) – a P. Evans (1995) e Francis Fukuyama
(1995; 1999). Por último, já na segunda metade da
década de 90, cerca de meia centena de pessoas ou

70
entraram no debate, em grande parte constantemente
reaceso por Putnam (com essa história de declínio do
Capital Social nos Estados Unidos, na qual também
embarcou Fukuyama), ou aplicaram o conceito para
analisar situações concretas as mais diversas (3.1: 3).
Ao que tudo indica, a partir do ano 2000 o
debate tende a ser recolocado, em parte porque o
conceito deve ser reconstruído a partir de outro ponto
de vista - o da teoria da complexidade. Tais esforços
mais atuais também se baseiam em pressupostos
lançados ainda nas três décadas passadas (3.1: 4).
Supondo que Hanifan apenas cunhou a
expressão, mas não desenvolveu a idéia, os precursores
são, portanto, Alexis de Tocqueville e Jane Jacobs.

3.2 – O precursores da idéia


Para investigar as tentativas teóricas que foram
feitas sobre o Capital Social é necessário revisitar os
precursores da idéia, como Alexis de Tocqueville
(1835/1840) e Jane Jacobs (1961).
A grande contribuição de Fukuyama à
genealogia do conceito de Capital Social foi ter
identificado sua origem tocquevilliana: "Talvez o maior
teórico do capital social tenha sido alguém que nunca
usou a expressão, mas compreendia sua importância
com muita clareza: o aristocrata francês e viajante
Alexis de Tocqueville. Ele observou, em Democracy in

71
America, que em agudo contraste com a França, a
América possuía uma rica "arte de associação", isto é,
uma população habituada a se reunir em associações de
voluntários para fins tanto triviais como sérios. A
democracia americana e seu sistema de governo
limitado funcionavam somente porque os americanos
tinham muita prática para formar associações para fins
civis e políticos. Esta capacidade de auto-organização
significava não só que o governo não precisava impor
ordem de uma forma hierárquica, de cima para baixo; a
associação civil também era uma "escola de
autogoverno" que ensinava às pessoas hábitos
cooperativos que elas levavam consigo para a vida
pública. Suspeitamos que Tocqueville concordaria com
a proposição de que, sem capital social, não poderia
haver sociedade civil e que, sem sociedade civil, não
poderia haver uma democracia bem-sucedida"
(Fukuyama, 1999: 31-2).
Em "Confiança", Fukuyama (1995), reproduz
um célebre trecho de Tocqueville que é apontado
como representativo de sua percepção pioneira do
potencial da "arte da associação" americana: "Os
americanos de todas as idades, todas as condições e
todas as disposições constantemente formam
associações. Eles têm não só companhias comerciais e
manufatureiras, em que todos tomam parte, como
associações dos mais variados tipos, religiosas, morais,
sérias, fúteis, gerais ou restritas, enormes ou

72
minúsculas. Os americanos criam associações para
promover diversões, fundar seminários, construir
hospedarias e igrejas, difundir livros, enviar
missionários para os antípodas; dessa maneira, fundam
hospitais, prisões e escolas. Se alguém propuser
propagar alguma verdade ou fomentar algum
sentimento por meio do estímulo de um grande
exemplo, eles logo organizam uma sociedade. Sempre
que você vir à frente de um grande empreendimento
na França o governo ou na Inglaterra um homem de
gabarito, nos Estados Unidos você encontrará com
certeza uma associação” (Tocqueville, 1835 – citado
por Fukuyama, 1995: 391n.).

3.3 – Um conceito tocquevilliano


Na minha opinião, entretanto, deve-se percorrer
Tocqueville também de outro modo para mostrar
porque o Capital Social é, originariamente, um
conceito tocquevilliano. No primeiro volume de "A
Democracia na América", aparecido em 1835, Alexis
de Tocqueville lança, de fato, os fundamentos do
conceito de Capital Social, mas ao constatar o
protagonismo político da sociedade americana.
Escreve ele: "Há países em que um poder, de
certa forma exterior ao corpo social, atua sobre ele e
força-o a caminhar em certo sentido. Outros há em
que a força é dividida, situando-se ao mesmo tempo na

73
sociedade e fora dela. Nada parecido se vê nos Estados
Unidos; lá a sociedade age por si e sobre si mesma. Só
há força em seu seio; quase não se encontra ninguém
que ouse conceber e, sobretudo, exprimir a idéia de
buscá-la em outra parte. O povo participa da
composição das leis pela escolha dos legisladores, dá
sua aplicação pela eleição dos agentes do poder
executivo; podemos dizer que governa por si mesmo, a
tal ponto a importância deixada à administração é fraca
e restrita, a tal ponto ela é marcada por sua origem
popular e obedece ao poder de que emana"
(Tocqueville, 1835: 68).
Tocqueville estava falando do grau de
empoderamento da sociedade civil americana. Tanto é
assim que ele aduz mais adiante: "Vejam com que arte,
na comuna americana, tomou-se o cuidado, se assim
posso me exprimir, de espalhar o poder, a fim de
interessar mais gente pela coisa pública.
Independentemente dos eleitores chamados de quando
em quando a executar atos de governo, quantas
funções diversas, quantos magistrados diferentes, que
representam todos, no círculo de suas atribuições, a
poderosa corporação em nome da qual agem! Quantos
homens exploram assim em seu proveito o poder
comunal e nele se interessam por si mesmos! "
(Tocqueville, 1835: 79) (n. g.).
Ora, tal protagonismo da sociedade americana é
facilitado e impulsionado por um sistema político

74
extremamente avançado. A nascente democracia
americana, aos olhos de Tocqueville, era já uma
democracia radicalizada, na qual o conceito
contemporâneo de cidadania política, como direito e
responsabilidade do cidadão, estava antecipatoriamente
presente.
"O sistema americano - escreve ele ainda - ao
mesmo tempo que divide o poder comunal entre um
grande número de cidadãos, tampouco teme
multiplicar os deveres comunais... Dessa maneira, a
vida comunal se faz, de certa forma, sentir a cada
instante; ela se manifesta cada dia pelo cumprimento
de um dever ou pelo exercício de um direito. Essa
existência política imprime à sociedade um movimento
contínuo, mas ao mesmo tempo tranqüilo, que a agita
sem perturbá-la" (Tocqueville, 1835: 79).
Este sistema democrático dinâmico era, para
Tocqueville, a base da boa governança: "As comunas
da Nova Inglaterra em geral têm uma existência feliz.
Seu governo é a seu gosto, assim como de sua escolha.
No seio da paz profunda e da prosperidade material
que reinam na América, as tormentas da vida municipal
são pouco numerosas. Ademais, faz muito tempo que
a educação política do povo está feita, ou, antes, ele já
chegou instruído ao solo que ocupa. Na Nova
Inglaterra a divisão hierárquica não existe nem mesmo
em lembrança; não há, pois, porção da comuna que
seja tentada a oprimir a outra, e as injustiças, que só

75
atingem indivíduos isolados, diluem-se no
contentamento geral. Se o governo apresenta defeitos,
e por certo é fácil assinalar alguns, eles não chocam os
olhares, porque o governo emana realmente dos
governados e porque lhe basta funcionar como pode
para que um tipo de orgulho paterno o proteja. De
resto eles não têm nada a que compará-lo"
(Tocqueville, 1835: 79-80).
A base de tudo era, entretanto, a participação
dos cidadãos: "O habitante da Nova Inglaterra prende-
se à sua comunidade, porque ela é forte e
independente; interessa-se por ela, porque colabora
para dirigi-la; ama-a, porque não tem de queixar-se de
sua sorte; deposita nela sua ambição e seu futuro;
envolve-se em cada incidente da vida comunal. Nessa
esfera restrita que está a seu alcance, ele tenta governar
a sociedade, habitua-se às formas sem as quais a
liberdade só procede por meio de revoluções, imbui-se
do espírito delas, toma gosto pela ordem, compreende
a harmonia dos poderes e reúne enfim idéias claras e
práticas sobre a natureza de seus deveres, bem como
sobre a extensão de seus direitos" (Tocqueville, 1835:
80).

3.4 – Um conceito americano


Muito embora só se possa dizê-lo, com toda a
propriedade, se nos referirmos àquele Estados Unidos

76
visitado por Tocqueville, Capital Social é um conceito
tipicamente americano. E isso não só porque quase
todos os teóricos que empregaram pioneiramente o
termo ou desenvolveram a idéia – como Hanifan,
Jacobs, Light, Loury, North, Coleman, Putnam etc. –
fossem americanos ou trabalhassem nos Estados
Unidos. Mas porque, como reconheceu Tocqueville, "a
América é o país do mundo em que se tirou maior
partido da associação e em que se aplicou esse
poderoso meio de ação a uma diversidade maior de
objetos" (Tocqueville, 1840: 219).
No famoso Capitulo IV do segundo volume de
"A Democracia na América", aparecido em 1840, cinco
anos depois do primeiro, Alexis de Tocqueville fala do
uso cotidiano do direito de associação:
"Independentemente das associações permanentes
cridas pela lei sob o nome de comunas, cidades e
condados, há uma multidão de outras que devem seu
surgimento e seu desenvolvimento apenas a vontades
individuais. O habitante dos Estados Unidos aprende
desde o nascimento que deve contar consigo mesmo
para lutar contra os males e os embaraços da vida; ele
lança à autoridade social um olhar desconfiado e
inquieto, e só apela para o seu poder quando não pode
dispensá-lo. Isso começa a se perceber desde a escola,
onde as crianças se submetem, até mesmo nos jogos, a
regras que elas mesmas estabelecem e punem entre si
os delitos que elas mesmas definem. O mesmo espírito

77
se encontra em todos os atos da vida social. Um
problema qualquer ocorre na via pública, a passagem é
interrompida, o tráfego detido; os vizinhos logo se
estabelecem em corpo deliberador; dessa assembléia
improvisada sairá um poder executivo que remediará o
mal, antes que a idéia de uma autoridade preexistente à
dos interessados se apresente à imaginação de alguém.
Se se trata de um prazer, logo se associarão para dar
maior esplendor e regularidade à festa. Unem-se enfim
para resistir a inimigos totalmente intelectuais:
combatem em comum a intemperança. Nos Estados
Unidos, as pessoas se associam com fins de segurança
pública, comércio, indústria, moral e religião. Não há
nada que a vontade humana desespere alcançar pela
livre ação da força coletiva dos indivíduos
(Tocqueville, 1840: 219-20).
As raízes de tudo isso – ou seja, a base objetiva
que permitiu as observações de Tocqueville – estão na
forma peculiar como foi inventado os Estados Unidos,
pelos chamados Pais Fundadores sim, mas,
principalmente, também pelas múltiplas ligações
horizontais que se estabeleceram entre pessoas, muitas
vezes anônimas, porém já com certo grau de capital
humano, há trezentos anos, formando redes.
A dinâmica da associação americana no século
XVIII, foi - ao contrário do que se poderia esperar
para a época - uma dinâmica de autonomia e de auto-
organização em rede e não de heteronomia e de

78
organização hierárquico-vertical. A coisa acontece
como se capital humano, a partir de certo patamar,
conectado dessa forma – i. e., em rede – produzisse
aceleradamente Capital Social. A acumulação primitiva
dessas formas não financeiras de poupança – o capital
humano e o Capital Social – foi favorecida, talvez nos
Estados Unidos mais do que em qualquer outro lugar,
pelos eventos que caracterizam a história americana,
dentre os quais deve-se citar a própria articulação da
Independência, como perceberam Jessica Lipnack e
Jeffrey Stamps (em 1982):
"Há quase 300 anos, no então chamado “Novo
Mundo”, grupos locais autodenominados Comitês de
Correspondência formaram um network – um fórum
de comunicações onde pensadores políticos e
econômicos “feitos em casa” forjaram suas diferenças
ideológicas e esculpiram a forma de um país distinto e
independente na América do Norte. Escrevendo uns
aos outros e trocando cartas com vizinhos, essa
geração revolucionária fomentou suas idéias juvenis em
uma política madura. Homens e mulheres participaram
do debate sobre a independência da Inglaterra e a
forma desejável do futuro americano. Foi numa dessas
cartas que Abigail Adams mencionou pela primeira vez
a idéia do direito de voto para as mulheres, enquanto
uma de suas amigas, a dramaturga Mercy Otis Warren,
delas extraía idéias para suas populares sátiras sobre os
ingleses.

79
Durante os anos em que a Revolução Americana
estava germinando, as cartas, folhas de notícias e
panfleto levados de uma aldeia para outra eram os
meios de refinar as idéias sobre democracia. No tempo
devido, os correspondentes concordaram com um
encontro ao vivo. Os conceitos de independência e
governo já haviam sido debatidos, discutidos,
descartados e reformulados centenas de vezes antes
que o network revolucionário se reunisse na Filadélfia.
Depois que os articulistas se reuniram numa
série de conferências e elaboraram uma declaração de
propósitos – que chamaram de “Declaração de
Independência” – o network de correspondência e
páginas impressas levou à formação de uma
organização” (Lipnack & Stamps, 1986: 87-88).
Estamos falando do movimento anterior ao
sugerido pelo título do trabalho pioneiro de Coleman
(1988): "Social Capital in the Creation of Human Capital".
Trata-se aqui de „Capital Humano na criação de Capital
Social‟ - o qual, por sua vez, incide de volta sobre o
primeiro, criando espécies de laços de realimentação de
reforço.
Tocqueville, como vimos, percebeu essa
característica distintiva e saliente da formação histórica
americana ao constatar que "faz muito tempo que a
educação política do povo está feita, ou, antes, ele já
chegou instruído ao solo que ocupa" (loc. cit.). Com
efeito, os Estados Unidos visitado por Tocqueville

80
apresentava, talvez, o maior grau de Capital Humano
do planeta: "Estatísticas reconstruídas pelo professor
Nathaniel Leff, de Harvard, sobre a estrutura
educacional no século XIX, revelam que... em 1850,
apenas 1% da população brasileira era alfabetizada...
Na Europa Ocidental, a situação era melhor e mais
diferenciada: 7% na Holanda, 10% na França, 14% na
Inglaterra e 16% na antiga Prússia. A grande surpresa
são os Estados Unidos, que já em 1850 tinham 22% da
população alfabetizada...” (Campos, 2000 – citado em
Franco, 2000b: 40-1).

3.5 – Um conceito originalmente político


É significativo que o título do Capítulo IV de "A
Democracia na América" - que poderia ser considerado
por alguém como uma das fontes primevas na
genealogia do conceito de Capital Social – seja: "Da
associação política nos Estados Unidos". Ao tratar da
grande capacidade de associação civil do povo
americano, Tocqueville estava preocupado com suas
conseqüências, como ele disse, "no mundo político" e
não apenas "na vida civil".
Ele percebe, em contrapartida, que a própria
associação civil americana do século XIX é ordenada
pela política: "Os americanos estabeleceram também
um governo no seio das associações; mas, se assim
posso me exprimir, é um governo civil. A independência

81
individual nelas encontra seu lugar: como na sociedade,
todos os homens nelas caminham ao mesmo tempo
para o mesmo objetivo, mas cada um não é obrigado a
marchar exatamente pelos mesmos caminhos"
(Tocqueville, 1840: 227) (n. g.).
A idéia de governo civil é genial. Ela faz referência
a um novo tipo de relação público-privado, próprio de
uma democracia radicalizada ou democratizada, quer
dizer, vigorante também no seio da sociedade, familiar
e associativa, e não apenas no mundo político
propriamente dito. "Na Europa – escreve ele –
costumamos introduzir as idéias e os hábitos da
existência privada na vida pública e, quando nos sucede
passar de repente do seio da família ao governo do
Estado, vemo-nos freqüentemente discutir os grandes
interesses da sociedade da mesma maneira que
conversamos com nossos amigos. São, ao contrário, os
hábitos da vida pública que os americanos quase
sempre transportam para a vida privada. Entre eles a
idéia do júri é descoberta nas brincadeiras escolares, e
as formas parlamentares são encontradas até na ordem
de um banquete” (Tocqueville, 1840: 358).
Como a grande capacidade de associação da
sociedade americana – base da percepção
tocquevilliana à qual se atribui a gênese do conceito de
Capital Social – depende da política, digo que o
conceito é, originalmente pelo menos, de natureza
política.

82
Dentre os fatores que permitem a instalação de
uma dinâmica que torna "viva" a sociedade –
produzindo e reproduzindo Capital Social, diríamos
hoje – está a política democrática. Sob o "império da
liberdade democrática", assinala Tocqueville, "não é o
que executa a administração pública que é grande, mas
sobretudo o que se executa sem ela e fora dela. A
democracia não proporciona ao povo o governo mais
hábil, mas faz o que o governo mais hábil muitas vezes
é incapaz de criar; ela difunde em todo o corpo social
uma atividade inquieta, uma força superabundante,
uma energia que nunca existem sem ela e que, por
pouco que sejam favoráveis as circunstâncias, podem
gerar maravilhas" (Tocqueville, 1840: 285).
Parece evidente, em contrapartida, que tal
sistema democrático só poderia ter se radicalizado,
democratizando a sociedade e a própria política, em
virtude da existência de uma base associativa ampla na
sociedade civil. Para captar a "lógica" do fenômeno
não se pode lançar mão de esquemas lineares de
causalidade unívoca. As variáveis desse sistema
complexo se retroalimentam a partir de múltiplos
ciclos conexos e interagentes. Mas se, para efeitos de
explicação, quisermos apontar um fator detonador, que
desencadeou o processo acelerado de produção e
reprodução do Capital Social na sociedade americana
do século XIX, esse fator é a combinação explosiva,

83
ocorrida a partir dos anos setecentos, de alta dose
relativa de capital humano com conexão em rede.
A dinâmica sociológica desse processo,
entretanto, só viria a ser percebida, pelo próximo
precursor do conceito de Capital Social, cento e vinte
anos depois de Tocqueville ter escrito o segundo
volume de "A Democracia na América".

3.6 – A dinâmica sociológica de Jacobs


Jane Jacobs parece ter sido a primeira pessoa a
explorar, depois de Tocqueville, a intimidade
sociológica do fenômeno que se quer captar com o
conceito de Capital Social.
Jacobs (1961) é apontada por alguns como a
primeira pessoa a usar o conceito, ou a expressão,
'Capital Social', na seguinte passagem de "Morte e Vida
das Grandes Cidades Americanas": "Para a autogestão
de um lugar funcionar, acima de qualquer flutuação da
população deve haver a permanência das pessoas que
forjaram a rede de relações do bairro. Essas redes são o
capital social urbano insubstituível. Quando se perde
esse capital, pelo motivo que for, a renda gerada por
ele desaparece e não volta senão quando se acumular,
lenta e ocasionalmente, um novo capital" (Jacobs,
1961: 151) (n. g.).
Ao final da primeira parte deste seu livro de
1961, considerado um clássico do planejamento

84
urbano, ela analisa "as vantagens e os pontos fortes
peculiares às cidades grandes e também suas fraquezas"
(Jacobs, 1961: 153). A idéia de Jacobs era que "o
conjunto de oportunidades de todo tipo existentes nas
cidades e a espontaneidade com que essas
oportunidades e opções podem ser usadas são um
trunfo – não uma desvantagem – para encorajar a
estabilidade do bairro. Contudo, esse trunfo precisa ser
capitalizado. Ele é desperdiçado nos lugares em que a
mesmice prejudica os distritos, servindo, portanto,
somente a uma faixa estreita de renda, gostos e
circunstâncias familiares. Os recursos que o bairro
oferece para pessoas-índice imutáveis, sem corpo, são
recursos para a instabilidade. As pessoas que se
encontram nele e são dados estatísticos podem
permanecer as mesmas. Mas não as pessoas que se
encontram nele e são pessoas. Tais lugares são eternos
locais de passagem” (Idem: 152-3) (n. g.).
Jacobs estava preocupada com os fatores que
tornam "viva" uma localidade, que fazem com que ela
se torne aquilo que chamava de uma "Entidade real",
com a teia de relações tramada por pessoas humanas,
vivas e reais, que vivem naquela localidade: "As inter-
relações que permitem o funcionamento de um distrito
como uma Entidade não são nem vagas nem
misteriosas. Consistem em relacionamentos vivos entre
pessoas específicas, muitas delas sem nada em comum

85
a não ser o fato de utilizarem o mesmo espaço
geográfico.
Os primeiros relacionamentos que se formam
em áreas urbanas, desde que haja uma estabilidade
populacional nos bairros, são os que ocorrem na
vizinhança e entre pessoas que têm alguma coisa em
comum e integram instituições – igrejas, APMs,
associações de negócios, diretórios políticos, ligas
cívicas, comitês para angariar recursos para campanhas
de saúde ou outras causas públicas, os naturais de tal e
tal vila (associações hoje comuns entre porto-
riquenhos, como já foram entre os italianos),
associações de proprietários, sociedades de amigos de
bairro, grupos contra injustiças e assim por diante, ad
infinitum.
A profusão de organizações, na maioria
pequenas, existente em quase todas as zonas
relativamente estáveis de uma cidade grande, deixa
qualquer pessoa tonta. Goldie Hoffman, uma das
executivas de um departamento de reurbanização de
Filadélfia, decidiu fazer um levantamento das eventuais
organizações e instituições existentes numa pequena
área lúgubre da cidade com cerca de 10 mil habitantes,
designada para revitalização. Para surpresa geral,
encontrou dezenove. As organizações pequenas e as
organizações com fins específicos crescem nas cidades
como as folhas de uma árvore e são, à sua maneira,

86
uma manifestação impressionante da persistência e
obstinação da vida.
Contudo, a etapa crucial para a formação de um
distrito efetivo vai muito além disso. Deve
desenvolver-se um conjunto diferente de inter-
relações; são as relações ativas entre pessoas,
geralmente líderes, que ampliam sua vida pública local
para além da vizinhança e de organizações ou
instituições específicas e proporcionam relações com
pessoas cujas raízes e vivências encontram-se, por
assim dizer, em freguesias inteiramente diferentes”
(Jacobs, 1961: 146).
Jane Jacobs está tratando de algo muito mais
profundo do que a segurança pública, ao contrário do
que quis salientar Fukuyama (1999: 31). Ela investiga a
formação do "ser social" que chama de "Entidade real"
(com 'E' maiúsculo): "É necessário um número
surpreendentemente baixo de pessoas que estabeleçam
ligação, em comparação com a população total, para
consolidar o distrito como uma Entidade real. Bastam
cerca de cem pessoas numa população mil vezes maior.
Mas essas pessoas precisam dispor de tempo para se
descobrir em umas às outras, para investir em
colaboração proveitosa - e também para criar raízes
nos diversos bairros menores locais ou de interesse
específico" (Jacobs, 1961: 147).
Surpreendentemente a passagem acima não
gerou nenhuma reflexão mais fecunda, nem por parte

87
dos leitores-admiradores de Jacobs, nem por parte dos
teóricos do Capital Social. Mas aqui talvez esteja, ao
meu ver, uma das pistas para desvendar a complexa
dinâmica das sociedades humanas.
Para Jacobs são as pessoas humanas reais, "de
carne e osso", e não o seu número – ou, imagino que
se possa inferir, outros fatores quantitativos que
possam ser aferidos em abstração da sua pessoalidade,
quer dizer, da qualidade do capital humano envolvido
– que tramam o tecido social, produzindo Capital
Social, de modo a torná-lo "vivo", constituindo uma
comunidade concreta numa dada localidade e
condicionando, de uma forma sempre peculiar, o seu
estado presente e o seu processo futuro.
"Assim que consiga firmar-se no distrito, uma
rede de ligações desse tipo, boa e forte, poderá
expandir-se relativamente rápido e assumir qualquer
outro feitio... As pessoas que estabelecem as ligações,
assim como aquelas que formam elos menores nas ruas
e organizações de interesse específico, não são de
forma alguma os índices estatísticos que supostamente
representam pessoas nos projetos urbanísticos e
habitacionais. Pessoas-índice são uma fantasia por
várias razões, uma das quais é elas serem encaradas
como sempre substituíveis. As pessoas de carne e osso
são únicas; investem muitos anos em relacionamentos
significativos com outras pessoas únicas, e são, no
mínimo, insubstituíveis. Desfeitos seus

88
relacionamentos, destrói-se sua condição de seres
sociais verdadeiros - às vezes por pouco tempo, às
vezes para sempre" (Jacobs, 1961: 148-9).
Jane Jacobs, portanto, não apenas usou a
expressão 'Capital Social'. Ela trabalhou, de fato, com o
conceito de Capital Social, desenvolveu este conceito,
aportando contribuições novas e substantivas para
desvendar o processo de sua formação em
comunidades. Ocupada com a vida coletiva, com o
viver social, ela não "economicizou" o conceito – no
sentido de transformá-lo num fator matemático que se
pudesse quantificar em abstração das pessoas que,
conectadas de certa maneira, logram gerá-lo – como
fizeram, depois, alguns economistas e sociólogos que
queriam ser levados a sério por alguns economistas,
ainda que tenha usado, várias vezes, a expressão
'acumular' para se referir ao processo progressivo de
estabelecimento daquelas conexões em rede, entre
pessoas, que chamou de Capital Social.

89
4
_________________________
Como a idéia ficou conhecida

Para investigar as tentativas teóricas que foram feitas


sobre o Capital Social deve-se começar, na minha
opinião, pelas que ficaram mais conhecidas, como a
teoria do Capital Social de Putnam (1993).
Robert Putnam publicou, em 1993, um livro
denominado “Making democracy work: civic traditions in
modern Italy” – traduzido no Brasil, em 1996, como
“Comunidade e democracia: a experiência da Itália
moderna” – uma das mais importantes obras da década
passada que teve, entre outros, o mérito de relançar e
amplificar o debate sobre o Capital Social. “Para que a
democracia funcione” – resultado de vinte anos de

90
pesquisa – é uma aventura tocquevilliana, uma espécie
de “A Democracia na Itália”.

4.1 – Um estudo tocquevilliano


De fato é curioso. O europeu Alexis de
Tocqueville foi buscar na América a explicação para o
bom governo democrático. Quase um século e meio
depois, o americano Robert Putnam foi buscar na
Europa, como ele mesmo escreve no início do livro, a
resposta para a questão: “por que alguns governos
democráticos têm bom desempenho e outros não?”
(Putnam, 1993: 19).
A analogia é forte. Tocqueville termina “A
Democracia na América” (1835-1840) com uma
profecia: a de que EUA e Rússia se transformariam nas
duas grandes potências mundiais – o primeiro tendo
“por principal meio de ação a liberdade; o outro a
servidão” – mas “cada um deles, parece[ndo] chamado,
por um desígnio secreto da Providência, a ter um dia
em suas mãos o destino de metade do mundo”
(Tocqueville, 1840: 477) (n. i.). Putnam, no último
capítulo desse seu livro sobre “a democracia na Itália”
(quer dizer: “As tradições cívicas na Itália moderna”),
escreve: “Muitas das ex-sociedades comunistas tinham
parcas tradições cívicas antes do advento do
comunismo, e o totalitarismo malbaratou até mesmo
esse escasso capital social. Sem regras de reciprocidade

91
e sem sistemas de participação cívica, a solução
hobbesiana que prevaleceu no Mezzogiorno –
familismo amoral, clientelismo, ilegalidade, desgoverno
e estagnação econômica – parece ser mais provável do
que a democratização e o desenvolvimento econômico.
Palermo poderá representar o futuro de Moscou”
(Putnam, 1993: 192).
Na minha opinião esse livro de Putnam pode se
resumir numa frase sua: “A história mostrou aos
italianos meridionais a inviabilidade da solução
hobbesiana para os dilemas da ação coletiva” (Putnam,
1993: 175).
Mas ao final do livro Putnam propõe o seu
próprio resumo, do qual reproduzimos aqui apenas os
dois parágrafos iniciais:
“Em todas as sociedades os dilemas da ação
coletiva obstam as tentativas de cooperar em benefício
mútuo, seja na política ou na economia. A coerção de
um terceiro é uma solução inadequada para esse
problema. A cooperação voluntária (por exemplo,
associações de crédito rotativo) depende do capital
social. As regras de reciprocidade generalizada e os
sistemas de participação cívica estimulam a cooperação
e a confiança social porque reduzem os incentivos a
transgredir, diminuem a incerteza e fornecem modelos
para a cooperação futura. A própria confiança é uma
propriedade do sistema social, tanto quanto um
atributo social. Os indivíduos podem ser confiantes (e

92
não simplesmente crédulos) por causa das normas e
dos sistemas em que se inserem seus atos.
Os estoques de capital social, como confiança,
normas e sistemas de participação, tendem a ser
cumulativos e a reforçar-se mutuamente. Os círculos
virtuosos redundam em equilíbrios sociais com
elevados níveis de cooperação, confiança,
reciprocidade, civismo e bem-estar coletivo. Eis as
características que definem a comunidade cívica. Por
outro lado, a inexistência dessas características na
comunidade não-cívica também é algo que tende a
auto-reforçar-se. A deserção, a desconfiança, a
omissão, a exploração, o isolamento, a desordem e a
estagnação intensificam-se reciprocamente num
miasma sufocante de círculos viciosos. Tal
argumentação sugere que deve haver pelo menos dois
equilíbrios gerais para os quais todas as sociedades que
enfrentam os problemas da ação coletiva (ou seja, todas
as sociedades) tendem a evoluir e que, uma vez
atingidos, tendem a auto-reforçar-se” (Putnam, 1993:
186-7).
Podemos partir desse resumo de Putnam para
compreender o instrumental utilizado por ele,
destacando do texto acima dez elementos teóricos:
1 – Dilemas da ação coletiva
2 – Coerção de um terceiro
3 – Cooperação voluntária
4 – Capital social

93
5 – Confiança social
6 – Regras de reciprocidade generalizada
7 – Sistemas de participação cívica
8 – [Relações horizontais e verticais]
9 – Equilíbrios sociais (subordinação à trajetória)
10 – Acumulação, auto-reforço, círculos
virtuosos e viciosos.
A teoria do Putnam de 1993 pode ser,
basicamente, reconstruída a partir destes elementos.

4.2 – Dilemas da ação coletiva


Robert Putnam parte dos chamados „dilemas da
ação coletiva‟, diante dos quais as partes envolvidas
numa relação teriam a ganhar se cooperassem, mas não
cooperam porque, não havendo um compromisso
mútuo confiável entre elas, cada qual prefere desertar
por oportunismo.
O espírito cívico racional é corroído por esses
dilemas, como o exemplifica a parábola de David
Hume:
“Teu milho está maduro hoje; o meu estará
amanhã. É vantajoso para nós dois que eu te ajude a
colhê-lo hoje e que tu me ajudes amanhã. Não tenho
amizade por ti e sei que também não tens por mim.
Portanto não farei nenhum esforço em teu favor; e sei
que se eu te ajudar, esperando alguma retribuição,
certamente me decepcionarei, pois não poderei contar

94
com tua gratidão. Então, deixo de ajudar-te; e tu me
pagas na mesma moeda. As estações mudam; e nós
dois perdemos nossas colheitas por falta de confiança
mútua” (Hume, 1740 – citado por Sugden (1986),
citado por Putnam, 1993: 171).
Putnam lança mão da teoria dos jogos para
apresentar diversas circunstâncias nas quais podem se
apresentar tais dilemas, que funcionam – ao meu ver –
mais ou menos assim no caso de uma relação entre
duas pessoas que tendem, ambas, a ganhar ou perder
em função de ações que realizem ou deixem de realizar
uma em relação a outra:
a) Há uma coisa que, se ambos fizermos, ambos
sairemos ganhando;
b) mas se só eu fizer e você não fizer, eu sairei
perdendo e você sairá ganhando;
c) não tenho nenhum motivo para acreditar que
você não aproveite essa oportunidade de ganhar
às minhas custas;
d) o comportamento que posso esperar de você
(sob pena de passar por “trouxa”) é que você
aproveitará a oportunidade de sair ganhando;
ou,
d‟) o comportamento que posso esperar de você
é que você raciocine da mesma forma que eu e
não queira se expor a perder (passando por
“trouxa”) fazendo uma coisa que eu não farei

95
(no caso de ter que agir antes de mim ou
simultaneamente a mim);
e) logo, não devo fazer uma coisa que só irá me
beneficiar se você também fizer, porque o mais
certo é que você não fará.
f) Resultado: ambos não fazemos e ambos
perdemos (ou deixamos de ganhar).
A forma mais conhecida deste tipo de dilema é o
chamado „dilema do prisioneiro‟:
“Dois cúmplices são mantidos incomunicáveis, e
diz-se a cada um deles que, se delatar o companheiro
ganhará a liberdade, mas se guardar silêncio e o outro
confessar, receberá uma punição especialmente severa.
Se ambos mantivessem silêncio, seriam punidos
levemente, mas, na impossibilidade de combinarem
suas versões, cada qual faz melhor em delatar,
independentemente do que o outro venha a fazer” (Putnam,
1993: 174).
Este tipo de dilema também aparece de forma
coletiva, envolvendo toda a sociedade ou, até, toda a
humanidade. Por exemplo, “um bem público, como o
ar ou um ambiente despoluídos, pode ser desfrutado
por todos, mesmo pelos que não contribuem para
prover esse bem. Logo, normalmente ninguém é
incentivado a prover um bem público, e a falta de
iniciativa é prejudicial a todos” (Putnam, 1993: 173).

96
4.3 – Coerção de um terceiro
Para sair desse tipo de dilema uma tentação
sempre presente é lançar mão da chamada solução
hobbesiana. A solução hobbesiana é a seguinte: se
ambas as partes conferirem, a um terceiro, poder de
coerção para garantir que cada qual faça a sua parte,
punindo quem não fizer, então a falta de confiança não
impedirá que ambos cumpram a sua parte.
Ora, este terceiro coator (o Leviatã de Thomas
Hobbes) só pode ser o Estado, que “possibilita aos
seus cidadãos fazerem aquilo que não podem fazer por
conta própria – confiarem uns nos outros” (Putnam,
1993: 175).
Porém tal solução não é boa, pelo menos por
dois motivos. Em primeiro lugar, porque aumenta o
custo de transação: fiscalizar, fazer cumprir contratos
e, sobretudo, punir quem descumpre acordos ou
deserta, custa alguma coisa a mais para as partes (ou
para o restante da sociedade) reduzindo os ganhos que
ambos obteriam (ou onerando os demais). Em
segundo lugar porque nenhum terceiro será totalmente
imparcial ou altruísta, reintroduzindo então o dilema
que se quer solucionar: seria preciso, a rigor, a coerção
de um quarto poder para garantir que o terceiro não
fosse parcial ou que não utilizasse seu poder em
proveito próprio, reduzindo os ganhos das partes (ou
da sociedade). E assim sucessivamente.

97
4.4 – Cooperação voluntária
Do ponto de vista da teoria dos jogos a atitude
racional para qualquer indivíduo, posto ante dilemas
como o dos fazendeiros de Hume, seria não cooperar.
Os fatos, entretanto, parecem não confirmar tal
conclusão. Existe muita cooperação voluntária nas
sociedades humanas. Por causa disso, Diego Gambetta
escreve: “Deveríamos perguntarmo-nos porque o
comportamento não-cooperativo não se manifesta
com tanta freqüência quanto prevê a teoria dos jogos”
(Gambetta, 1988 – citado por Putnam, 1993: 175).
Com efeito, pela teoria dos jogos a cooperação
impessoal deveria ser rara. Mas ocorre que ela é
comum no mundo moderno. E Putnam, então,
pergunta: “Por quê?” (Putnam, 1993: 176).
Putnam continua perguntando: “De fato, os
infratores, os aproveitadores e as minorias dominantes
infestam muitas sociedades, como podem atestar os
cidadãos das regiões menos cívicas da Itália. No
entanto, parece que em outros lugares as instituições
colaborativas funcionam mais efetivamente. Por quê?”
(Putnam, 1993: 176).
“Para resolver esse enigma – prossegue Putnam
– teóricos obstinados voltaram-se para o que Robert
Bates denomina soluções “conciliadoras”, como
comunidade e confiança: “Num mundo onde existem
dilemas do prisioneiro, as comunidades cooperativas
permitirão aos indivíduos racionais superarem os

98
dilemas coletivos”” (Bates, 1988 – citado por Putnam,
1993: 176).
A resposta de Putnam, seguindo a linha de
argumentação de Bates, baseia-se na hipótese do
Capital Social. “A superação dos dilemas da ação
coletiva e do oportunismo contraproducente daí
resultante depende do contexto social mais amplo em
que determinado jogo é disputado. A cooperação
voluntária é mais fácil numa comunidade que tenha
herdado um bom estoque de capital social sob a forma
de regras de reciprocidade e sistemas de participação
cívica” (Putnam, 1993: 177).

4.5 – Capital Social


O encontro de Putnam com o conceito de
Capital Social – sobretudo com o conceito reelaborado
por James Coleman três anos antes da publicação de
“Para que a democracia funcione” – se deu, ao que
parece, simultaneamente, a partir de interrogantes
colocados pela sua pesquisa italiana e de uma
motivação teórica de investigar, no plano abstrato,
certas categorias sociológicas capazes de explicar a
estabilidade dos comportamentos coletivos. Putnam
constatou que “certas regiões da Itália... são
favorecidas por padrões e sistemas dinâmicos de
engajamento cívico, ao passo que outras padecem de
uma política verticalmente estruturada, uma vida social

99
caracterizada pela fragmentação e o isolamento, e uma
cultura dominada pela desconfiança” (Putnam, 1993:
31). Isso precisa ser explicado. Mas é preciso também
responder “por que os modelos e sistemas de
engajamento cívico influenciam tanto [na Itália e em
outros lugares] as perspectivas de um governo eficaz e
responsável, e por que as tradições cívicas se mantêm
estáveis por tanto tempo” (Idem). É para dar uma
mesma resposta a essas questões que Putnam lança
mão de uma abordagem teórica “fundamentada na
lógica da ação coletiva e no conceito de „capital social‟”
(Idem-idem).
Para dar um exemplo concreto de como a
presença deste fator – o Capital Social – pode fazer a
diferença, contradizendo a lógica da ação coletiva e
negando a universalidade da solução hobbesiana,
Putnam toma o crédito rotativo: “As associações de
crédito rotativo contradizem claramente a lógica da
ação coletiva: por quê um participante não deserta após
ter recebido o “bolo”? Percebendo esse risco, por quê
alguém seria o primeiro a contribuir?... Mesmo assim,
tais associações prosperam quando não há um Leviatã
pronto para punir a deserção” (Putnam, 1993: 178).
Ora, uma associação desse tipo “só pode
funcionar, como disse Shirley Ardener, se todos os
membros continuarem cumprindo suas obrigações”
(Ardener, 1964 – citada por Putnam, 1993: 178). No
entanto, os membros dessas associações continuam

100
cumprindo suas obrigações em quase todos os lugares
do mundo onde existe crédito rotativo.
Putnam argumenta que “as associações de
crédito rotativo mostram como os dilemas da ação
coletiva podem ser superados mediante o
aproveitamento de fontes externas de capital social...
Não dispondo de bens físicos para dar em garantia, os
participantes na verdade empenham suas relações sociais. Assim
o capital social é usado para ampliar os serviços de
crédito disponíveis nessas comunidades e para
aumentar a eficiência com que aí operam os mercados”
(Putnam, 1993: 179) (n. g.).
O trecho grifado acima fornece uma pista para
entendermos por que esse fator – composto por uma
combinação, até certo ponto desconhecida, de
confiança, regras ou normas de reciprocidade, cadeias
ou redes de relações sociais e sistemas de participação
cívica – pode ser chamado, com alguma propriedade,
de „capital‟ social. Se as relações, empenhadas no caso do
crédito rotativo, são ou podem ser aceitas, inclusive do
ponto de vista da eficiência econômica, como um
equivalente de bens físicos, então elas são uma forma de
capital. Se são relações sociais, então esta forma de
capital é social.

101
4.6 – Confiança social
Putnam trabalha com um conceito de Capital
Social que enfatiza sua característica pública. “Uma
característica específica do capital social – confiança,
normas e cadeias de relações sociais – é o fato de que
ele normalmente constitui um bem público, ao
contrário do capital convencional, que normalmente é
um bem privado” (Putnam, 1993: 180). Como disse
Coleman, “por ser um atributo da estrutura social em
que se insere o indivíduo, o capital social não é
propriedade particular de nenhuma das pessoas que
dele se beneficiam” (Coleman, 1990 – citado por
Putnam, 1993: idem).
Ora, a confiança é um componente básico desse
conceito de Capital Social. Como escreveu Kenneth
Arrow, “praticamente toda transação comercial encerra
um elemento de confiança... Pode-se muito bem
afirmar que boa parte do atraso econômico do mundo
se deve à falta de confiança” (Arrow, 1972 – citado por
Putnam, 1993: 180). E isso vale também para outros
aspectos extra-econômicos da vida social, como
lembrava, em 1803, o economista napolitano Antônio
Genovesi: “não havendo confiança „não pode haver
certeza quanto aos contratos nem, portanto, vigência
das leis‟, e uma sociedade nessas condições vê-se
efetivamente reduzida „a um estado de semibarbárie‟...”
(cit. por Putnam: idem).

102
Com efeito, Putnam observa que “nas regiões
cívicas da Itália, à diferença de Nápoles, a confiança
social sempre foi um elemento básico do ethos que
sustentou o dinamismo econômico e o desempenho
governamental. Geralmente é necessário haver
cooperação – entre o Legislativo e o Executivo, entre
os operários e os administradores, entre os partidos
políticos, entre o governo e a iniciativa privada, entre
as pequenas empresas e assim por diante. Todavia, a
explicitação dos contratos e da fiscalização nesses
casos é amiúde onerosa e impossível, e a coerção de
um terceiro é inviável. A confiança promove a
cooperação. Quanto mais elevado o nível de confiança
numa comunidade, maior a probabilidade de haver
cooperação. E a própria cooperação gera confiança. A
progressiva acumulação de capital social é uma das
principais responsáveis pelos círculos virtuosos na
Itália cívica.
A confiança necessária para fomentar a
cooperação não é uma confiança cega. A confiança
implica uma previsão do comportamento de um ator
independente. “Você não confia em que uma pessoa
(ou uma entidade) fará alguma coisa simplesmente
porque ela disse que irá fazer. Você só confia porque,
conhecendo a disposição dela, as alternativas de que
dispõe e suas conseqüências, a capacidade dela e tudo
o mais, você espera que ela preferirá agir assim” (4.6: 1).
Em comunidades pequenas e coesas, tal previsão pode

103
basear-se no que Bernard Williams denomina
“confiança irrestrita”, ou seja, a que resulta do convívio
íntimo com aquela pessoa. Em contextos mais amplos e
complexos, porém, é preciso haver uma forma de
confiança mais impessoal ou indireta (4.6: 2)” (Putnam,
1993: 180-1).
Aí então Putnam faz a pergunta chave dessa
história toda: “como será que a confiança pessoal se
transforma em confiança social?” (Putnam, 1993: 181).

4.7 – Regras de reciprocidade generalizada


Putnam afirma que “em contextos modernos e
complexos, a confiança social pode manar de duas
fontes conexas: as regras de reciprocidade e os sistemas
de participação cívica... As regras sociais, segundo
James Coleman, transferem do ator para outrem o
direito de controlar uma ação, normalmente porque tal
ação tem “externalidades”, isto é, conseqüências
(positivas ou negativas) para outrem... As regras são
incutidas e sustentadas tanto por meio de
condicionamento e socialização (por exemplo,
educação cívica) quanto por meio de sanções”
(Putnam, 1993: 181).
As regras sociais geralmente são normas sem
força legal, mas as pessoas costumam acatar as regras
para ser aceitas nos coletivos que as estabeleceram.
Essas regras, “que fortalecem a confiança social,

104
vingam porque reduzem os custos de transação e
facilitam a cooperação. A mais importantes dessas
regras é a da reciprocidade [generalizada]... que supõe
expectativas mútuas de que um favor concedido hoje
venha a ser retribuído no futuro” (Putnam, 1993: 181).
E: “A regra da reciprocidade generalizada é um
componente altamente produtivo do capital social. As
comunidades em que essa regra é obedecida têm
melhores condições de coibir o oportunismo e
solucionar os problemas da ação coletiva... A regra da
reciprocidade generalizada serve para conciliar
interesse próprio com solidariedade” (Putnam, 1993:
182).
Para concluir este raciocínio Putnam cita
Michael Taylor: “Num sistema de reciprocidade, todo
ato individual geralmente se caracteriza por uma
combinação do que se poderia chamar de altruísmo a
curto prazo e interesse próprio a longo prazo: eu te
ajudo agora na expectativa (possivelmente vaga, incerta
e impremeditada) de que me ajudarás futuramente. A
reciprocidade é feita de uma série de atos que
isoladamente são altruísticos a curto prazo (beneficiam
outros à custa do altruísta), mas que tomados em
conjunto normalmente beneficiam todos os
participantes” (Taylor, 1982 – Putnam, 1993: 182).

105
4.8 – Sistemas de participação cívica
Putnam diz que “a boa regra da reciprocidade
generalizada em geral está associada a um amplo
sistema de intercâmbio social. Nas comunidades em
que as pessoas acreditam que a confiança será
retribuída, sem que dela venham a abusar, existe maior
probabilidade de haver intercâmbio. Por outro lado, o
intercâmbio contínuo ao longo do tempo costuma
incentivar o estabelecimento de uma regra de
reciprocidade generalizada. Além disso, certos sistemas
de intercâmbio social por si mesmos facilitam a
solução dos dilemas da ação coletiva. Mark
Granovetter assinalou que a confiança é incentivada e a
má conduta desestimulada quando os acordos estão
“inseridos” [“embedded”] numa estrutura mais ampla de
relações pessoais e intercâmbios sociais” (4.8: 1)
(Putnam, 1993: 182) (n. i.).
“Os sistemas de participação cívica são uma
forma essencial de capital social: quanto mais
desenvolvidos forem esses sistemas numa comunidade,
maior será a probabilidade de que seus cidadãos sejam
capazes de cooperar em benefício mútuo” (Putnam
1993: 183). Mas aí ele pergunta por que, exatamente,
essas formas horizontais de interação entre pessoas
numa sociedade – assim como as associações
comunitárias, os clubes e outras organizações da
sociedade civil – “exercem esse poderoso efeito
secundário?” (Idem).

106
A resposta de Putnam vem na forma de quatro
grandes razões:
a) “Elas aumentam os custos potenciais para o
transgressor em qualquer transação
individual”;
b) “Elas promovem sólidas regras de
reciprocidade”;
c) “Elas facilitam a comunicação e melhoram o
fluxo de informações sobre a confiabilidade
dos indivíduos”; e
d) “Elas corporificam o êxito alcançado em
colaborações anteriores, criando assim um
modelo culturalmente definido para futuras
colaborações” (Idem-idem).

4.9 – Relações horizontais e verticais


Este aspecto não é geralmente muito destacado
na obra de Putnam, mas a meu ver ele representa a sua
maior descoberta, se assim se pode falar. Trata-se de
uma diferença básica, entre sistemas de intercâmbio,
formais ou informais, que existem em qualquer
sociedade, que diz respeito ao padrão de conexão que
predominantemente apresentam: os “horizontais” (que
congregam “agentes que têm o mesmo status e o
mesmo poder”) e os “verticais” (que juntam “agentes
desiguais em relações assimétricas de hierarquia e
dependência”).

107
Putnam diz que “quando não há exemplos
anteriores de colaboração cívica bem sucedida, torna-se
mais difícil superar as barreiras da desconfiança e do
oportunismo. Diante de novos problemas que
requerem solução coletiva, homens e mulheres de toda
parte vão buscar soluções no seu próprio passado. Os
cidadãos das comunidades cívicas descobrem em sua
história exemplos de relações horizontais bem-sucedidas,
enquanto os cidadãos das regiões menos cívicas
encontram, quando muito, exemplos de suplicação
vertical.
Um sistema vertical, por mais ramificado e por
mais importante que seja para seus membros, é incapaz
de sustentar a confiança e a cooperação sociais. Os
fluxos de informação verticais costumam ser menos
confiáveis que os fluxos horizontais, em parte porque o
subalterno controla a informação para precaver-se
contra a exploração. E o que é mais importante, as
sanções que resguardam as regras de reciprocidade da
ameaça do oportunismo dificilmente são impostas de
baixo para cima e, ainda que o sejam, dificilmente são
acatadas. Somente um subalterno ousado e
imprudente, sem vínculos de solidariedade com seus
iguais, tentaria punir um superior” (Putnam, 1993: 184)
(n. g.).
Putnam dá como exemplo de sistema vertical o
clientelismo: “As relações clientelistas, por exemplo,
envolvem permuta interpessoal e obrigações

108
recíprocas, mas a permuta é vertical e as obrigações
assimétricas... Além disso [como reconheceram
Eisenstadt e Roninger, 1984: 48-9], os vínculos verticais
do clientelismo “parecem minar a organização grupal e
a solidariedade horizontais, tanto dos clientes quanto dos
patronos – mas sobretudo dos clientes”” (Putnam,
1993: 184) (n. g.) (n. i.).
Ele argumenta: “Dois clientes do mesmo
patrono, sem vínculos diretos, nada têm que hipotecar
um ao outro. Eles não têm interesse em precaver-se
contra a deslealdade recíproca e nem motivo para
temer o isolamento recíproco. Eles não têm
oportunidade de estabelecer uma regra de
reciprocidade nem experiência de colaboração mútua
de que possam valer-se. Na relação vertical entre
patrono e cliente, caracterizada pela dependência e não
pela reciprocidade, é mais provável haver oportunismo,
seja por parte do patrono (exploração), seja por parte
do cliente (omissão). O fato de as articulações verticais serem
menos úteis do que as articulações horizontais para solucionar os
dilemas da ação coletiva talvez seja uma das razões por que o
capitalismo mostrou-se mais eficiente do que o feudalismo no
século XVIII, e por que a democracia revelou-se mais eficaz do
que a autocracia no século XX” (Putnam, 1993: 184) (n.
g.).
Para Putnam “os sistemas de participação cívica
têm mais possibilidades [do que as famílias e os laços
de sangue] de abranger amplos segmentos da

109
sociedade, fortalecendo assim a colaboração no plano
comunitário. Por ironia, como observou Granovetter, os
vínculos interpessoais “fortes” (como parentesco e
íntima amizade) são menos importantes do que os
vínculos “fracos” (como conhecimentos e afiliação a
associações secundárias) para sustentar a coesão
comunitária e a ação coletiva... Sistemas horizontais
extensos porém isolados sustentam a cooperação dentro
de cada grupo, mas os sistemas de participação cívica,
que englobam diferentes categorias sociais, promovem
uma cooperação mais ampla. Essa é também uma das
razões pelas quais sistemas de participação cívica são
parte tão importante do estoque de capital social de
uma comunidade” (Putnam, 1993: 185) (n. i.) (n. g.+ g.
a.).
Putnam, então, conclui que “se os sistemas
horizontais de participação cívica ajudam os
participantes a solucionar os dilemas da ação coletiva,
então quanto mais horizontalizada for a estrutura de uma
organização, mais ela favorecerá o desempenho institucional na
comunidade em geral. (Putnam, 1993: 185). Ele dá como
exemplo de grupos horizontalmente organizados
“clubes desportivos, cooperativas, sociedades de mútua
assistência, associações culturais e sindicatos” e como
exemplos de organizações hierarquicamente
organizadas “a Máfia e a Igreja Católica institucional”.
Mas na verdade clubes profissionais e, sobretudo,
sindicatos, não são, em geral, horizontais, da mesma

110
forma que parte da Igreja Católica, aquela chamada de
“popular” (por exemplo, a rede de comunidades de
base que floresceu, no Brasil e em outras partes da
América Latina, da segunda metade da década de 70 à
segunda metade da década de 80) não são tão
caracteristicamente verticais. Para a Itália pesquisada
por Putnam, entretanto, as coisas devem poder ter sido
vistas assim como ele viu: “Na Itália, o bom governo é
subproduto dos grupos orfeônicos e dos clubes de
futebol, e não do fervor religioso” (Idem).
As conclusões de Putnam contradizem duas
teses, às quais a adesão é mais generalizada do que se
pensa, embora não declaradamente: a tese de
“sociedade forte = economia frágil” e a tese de
“sociedade forte = Estado frágil” (4.9: 1). Os estudos
italianos de Putnam mostraram que “as normas e os
sistemas de participação cívica promoveram o
crescimento econômico, em vez de inibí-lo... as regiões
cívicas cresceram mais rápido do que as regiões onde
há menos associações e mais hierarquia...[de sorte que]
existe uma forte correlação entre associações cívicas e
instituições públicas eficazes” (Putnam, 1993: 186) (n.
i.). “A teoria formulada... [por Robert Putnam] ajuda a
explicar por que o capital social, corporificado em
sistemas horizontais de participação cívica, favorece o
desempenho do governo e da economia, e não o
oposto: sociedade forte, economia forte; sociedade
forte, Estado forte” (Idem) (n. g.).

111
4.10 – Equilíbrios sociais (subordinação `a
trajetória)
Curiosamente Putnam, que usa, como veremos
em seguida, alguns conceitos provenientes das teorias
da complexidade, não incorpora a visão (ou a “lógica”)
da complexidade quando aventa a hipótese de
„equilíbrio historicamente determinado‟ na análise da
evolução, latu sensu, dos sistemas sociais.
Partindo da análise da teoria dos jogos Putnam
conclui que “tanto „desertar sempre‟ quanto „reciprocar
ajuda‟ são convenções fortuitas – ou seja, regras que se
desenvolveram [desde o passado] em certas
comunidades e que, tendo-se desenvolvido dessa
forma, são estáveis, mas poderiam ter-se desenvolvido
diferentemente. Em outras palavras, tanto
reciprocidade/confiança quando
dependência/exploração podem manter unida a
sociedade, mas com diferentes níveis de eficiência e
desempenho institucional. Uma vez inseridos num
desses dois contextos, os atores racionais têm motivos
para agir conforme suas regras. A história determina qual
desses dois equilíbrios estáveis irá caracterizar uma
dada sociedade” (Putnam, 1993: 188) (n. i.) (n. g.).
Na verdade Putnam adota uma “teoria” – de
Douglass North (1990) e outros – do
neoinstitucionalismo econômico, chamada de
“subordinação à trajetória” (“path-dependence”), segundo
a qual – como assinalam, por exemplo, March & Olsen

112
(1989) – “o lugar a que se pode chegar depende do
lugar de onde se veio, e simplesmente é impossível
chegar a certos lugares a partir de onde se está”
(Putnam, 1993: 188).
“A subordinação à trajetória – escreve North –
significa que a história realmente importa. É impossível
compreender as opções de hoje (e precisá-las na
modelagem do desenvolvimento econômico) sem
investigar a evolução incremental das instituições”
(North, 1990 – citado por Putnam, 1993: 190). Essa
idéia de „evolução incremental‟, como veremos mais
adiante, não condiz com o comportamento de sistemas
complexos estáveis afastados do estado de equilíbrio.
No entanto, parte-se aqui da noção de equilíbrio social
ao invés de enfatizar a idéia de estabilidade, e daí as
conclusões neoinstitucionalistas, nas quais Putnam
embarca, apontam para a evolução lenta e
desconsideram a possibilidade da evolução súbita dos
sistemas ao depararem-se com bifurcações – o que
quebraria a path-dependence. Mas não vamos entrar agora
nessa discussão. É preciso entender, de todo modo, o
que Douglass North chama de „instituições‟. Ele
emprega o termo em sentido amplo, para designar “as
regras do jogo numa sociedade” (Idem).
Assim, “os modelos institucionais [regras do
jogo] tendem a auto-reforçar-se mesmo quando são
socialmente ineficientes. Primeiro, quase sempre é mais
fácil para um agente individual adaptar-se às regras do

113
jogo vigentes do que tentar modificá-las. Na verdade
tais regras costumam induzir à formação de
organizações e grupos interessados em suas
imperfeições. Segundo, depois que o desenvolvimento
toma determinado rumo, a cultura organizacional, os
costumes e os modelos mentais do mundo social
reforçam essa trajetória. A cooperação ou a omissão e
a exploração tornam-se entranhadas. As regras
informais e a cultura não só mudam mais lentamente
do que as regras formais, como tendem a remodelá-las,
de modo que a imposição externa de um conjunto
comum de regras formais acarreta resultados
amplamente divergentes” (Putnam, 1993: 189). Putnam
lança mão dessas hipóteses de North porque quer
explicar “como foi que os habitantes da Itália
setentrional e central [ao contrário dos habitantes da
Itália meridional] passaram a buscar soluções
cooperativas para os seus dilemas hobbesianos?”
(Putnam, 1993: 189) (n. i.). Mas como não consegue
explicar isso – a resposta, talvez, “estaria perdida nas
brumas da Idade Média” – evoca o debate „do ovo e da
galinha‟ (“o que causa o que: cultura ou estrutura?”):
“No contexto de nossa argumentação, esse
debate diz respeito ao complicado nexo causal entre as
normas e atitudes culturais e as estruturas sociais e os
padrões de comportamento que configuram a
comunidade cívica. Afora a ambigüidade de “cultura” e
“estrutura”, porém, tal debate parece estar mal

114
colocado. A maioria dos estudiosos isentos reconhece
que as atitudes e as práticas constituem um equilíbrio
de mútuo reforço. As instituições de cunho
cooperativo requerem aptidões e confiança
interpessoais, mas essas aptidões e essa confiança são
igualmente inculcadas e reforçadas pela colaboração
organizada. As normas e os sistemas de participação
cívica contribuem para a prosperidade econômica e são
por sua vez reforçados por essa prosperidade. Todavia,
as questões de causação linear não devem excluir a
análise de equilíbrio. Nesse contexto, o debate do tipo
“o ovo ou a galinha” sobre cultura versus estrutura é
essencialmente infrutífero. Mais importante é entender
por que a história facilita certas trajetórias e obstrui outras”
(Putnam, 1993: 190) (n. g.).
Esta última indagação de Robert Putnam não é
infrutífera, como o é a linha de resposta que enfatiza a
subordinação à trajetória em termos determinantes,
condenando a uma espécie de fadário as sociedades.
Talvez a pergunta deveria ser reformulada para: por
que a história (seja lá o que isso for) facilita certas
trajetórias mais do que outras (que também são
possíveis)? Mas na verdade, a pergunta fundamental
aqui, que Putnam não formulou, seria: como uma
sociedade pode mudar de trajetória (ou seja, como uma
sociedade pode tomar uma trajetória que não é
favorecida pela sua história)? Em outras palavras, nos
termos da pesquisa de Putnam, como a Itália

115
meridional pode adotar um caminho análogo – em
termos de padrão predominante de solução dos
dilemas da ação coletiva – por exemplo, ao da Itália
setentrional? Ou será que não pode? Ou será que a
história proíbe isso?
É curioso que Putnam não faz estas perguntas,
mas ensaia respostas para elas ao admitir – é certo que
sem dizer como, nem, explicitamente, em que medida
isso seria factível - a possibilidade de “criação” de
capital social. Com efeito, ele termina seu estudo com a
frase: “Criar capital social não será fácil, mas é
fundamental para fazer a democracia funcionar”
(Putnam, 1993: 194) (n. g.).
Para sermos inteiramente justos, é bom
reconhecer que Putnam roça de leve o tema. Por
exemplo, numa nota (a antepenúltima) do último
capítulo do livro, ele registra: “Quanto à questão de
saber se a confiança e as relações sociais cooperativas
podem ser “criadas” ou se elas simplesmente são
“encontradas”, ver... [Sabel & Swedberg (1992) e Sabel
(1989) etc.]” (Putnam, 1993: 247; n. 90) (n. i.). Mas
também se refere ao assunto quando trata, no corpo
do último capítulo, dos mecanismos de “acumulação”
do Capital Social, utilizando – surpreendentemente –
ferramentas conceituais bastante avançadas.

116
4.11 – Acumulação, auto-reforço, círculos
virtuosos e viciosos
Com efeito, assim como lança mão da teoria dos
jogos, Putnam também recorre, embora ainda de modo
incipiente, a alguns instrumentos conceituais das
teorias da complexidade, para tratar, sempre de
passagem, desse problema da criação ou geração ou
produção/acumulação/dilapidação do Capital Social.
Em primeiro lugar, no que tange à criação de
Capital Social, deve-se registrar que ele cita Elinor
Ostrom (e supõe-se que concordando com ela) para
dizer que “o capital social não se produz
automaticamente nem espontaneamente” (Ostrom,
1990) – o que aponta para a conclusão de que ele
pode/deve ser produzido, no caso da teoria de
Putnam, penso, não tanto individualmente, por um
sujeito que resolva fazê-lo, porém historicamente, por
uma coletividade que optou por não tomar o caminho
da solução hobbesiana dos dilemas da ação coletiva.
Em segundo lugar, no que diz respeito à
acumulação de Capital Social, Putnam considera que
“tal como sucede com o capital convencional, os que
dispõem de capital social tendem a acumular mais...
Muitas das formas de capital social existentes –
confiança, por exemplo – são o que Albert Hirschman
denominou “recursos morais”, isto é, recursos cuja
oferta aumenta com o uso, em vez de diminuir, e que
se esgotam se não forem utilizados. Quanto mais duas

117
pessoas confiam uma na outra, maior a sua confiança
mútua” (Putnam, 1993: 179).
Em terceiro lugar, no que concerne à
criação/dilapidação de Capital Social, Putnam escreve
que “também outras formas de capital social [além da
confiança], como as normas e as cadeias [redes] de
relações sociais, multiplicam-se com o uso e minguam
com o desuso" (Putnam, 1993: 179) (n. i.). Ele aqui cita
Coleman quando diz que “quanto mais as pessoas
solicitam ajuda mútua, maior a quantidade de capital
social gerada... As relações sociais se extinguem se não
forem mantidas; as expectativas e as obrigações se
esvanecem com o tempo; e as normas dependem da
comunicação sistemática” (Coleman, 1990 – citado por
Putnam, 1993: 179; n. 37). “Por todos esses motivos,
conclui Putnam, cabe esperar que a criação e a
dilapidação do capital social se caracterizem por
círculos virtuosos e círculos viciosos” (Idem).
Putnam volta ao tema ao analisar a “notável
estabilidade” do que chamou de “equilíbrio cívico” do
Norte italiano, mesmo que “seus efeitos tenham sido
de vez em quando prejudicados por epidemias, guerras
e transformações no comércio mundial. No Sul, o
equilíbrio hobbesiano, em tudo oposto ao primeiro [o
cívico], mostrou-se ainda mais estável, porém menos
profícuo. A desconfiança mútua e a transgressão, a
dependência vertical e a exploração, o isolamento e a
desordem, a criminalidade e o atraso reforçaram-se

118
mutuamente nos intermináveis círculos viciosos
examinados... [aqui]” (Putnam, 1993: 191) (n. i.).
As idéias de acumulação e auto-reforço
efetivado por dinâmicas sistêmicas que se
retroalimentam (círculos virtuosos e viciosos) são
características do instrumental analítico das teorias da
complexidade e é muito promissor, ao meu ver, que
Putnam as tenha utilizado – muito embora, como já foi
assinalado aqui, não tenha podido tirar as
conseqüências necessárias de uma abordagem desse
tipo para toda a sua teoria, o que exigiria o abandono
da hipótese da path-dependence, ou, pelo menos, da sua
versão “forte”.

4.12 – As lições tocquevillianas da pesquisa


de Putnam
As lições da experiência italiana são apresentadas
por Putnam da seguinte maneira. “No norte, as regras
de reciprocidade e os sistemas de participação cívica
corporificaram-se em confrarias, guildas, sociedades de
mútua assistência, cooperativas, sindicatos e até clubes
de futebol e grêmios literários. Esses vínculos cívicos
horizontais propiciaram níveis de desempenho
econômico e institucional muito mais elevados do que
no Sul, onde as relações políticas e sociais
estruturaram-se verticalmente. Embora estejamos
acostumados a conceber o Estado e o mercado como

119
mecanismos alternativos para a solução dos problemas
sociais, a história mostra que tanto os Estados quanto
os mercados funcionam melhor em contextos cívicos”
(Putnam, 1993: 190-1). Aduzindo, Putnam observa
que, “praticamente sem exceção, quanto mais cívico o
contexto, melhor o governo” (Idem).
“Pelo lado da demanda – prossegue ele – os
cidadãos das comunidades cívicas querem um bom
governo e (em parte pelos seus próprios esforços)
conseguem tê-lo. Eles exigem serviços públicos mais
eficazes e estão dispostos a agir coletivamente para
alcançar seus objetivos comuns. Já os cidadãos das
regiões menos cívicas costumam assumir o papel de
suplicantes cínicos e alienados. Pelo lado da oferta, o
desempenho do governo representativo é favorecido
pela infra-estrutura social das comunidades cívicas e
pelos valores democráticos tanto das autoridades
quanto dos cidadãos. O que é mais fundamental para a
comunidade cívica é a capacidade social de colaborar
visando a interesses comuns. A reciprocidade
generalizada (não o “farei isso para você porque você
tem mais poder do que eu”, nem o “farei isso para
você agora, se você fizer aquilo para mim agora”, mas
o “farei isso para você agora, sabendo que um dia você
fará algo para mim”) gera vultoso capital social e reforça a
colaboração” (Putnam, 1993: 192) (n. g.).
E assim Putnam chega ao fim,
tocquevillianamente, como começou: “Eis a lição a ser

120
tirada de nossa pesquisa: o contexto social e a história
condicionam profundamente o desempenho das instituições.
Quando o solo regional é fértil, as regiões sustentam-se
das tradições regionais, mas quando o solo é ruim, as
novas instituições definham. A existência de
instituições eficazes e responsáveis depende, no jargão
do humanismo cívico, das virtudes e práticas
republicanas. Tocqueville tinha razão: diante de uma
sociedade civil vigorosa, o governo democrático se
fortalece em vez de enfraquecer” (Putnam, 1993: 191)
(g. a. + n. g.).

4.13 – Outras lições que devemos tirar da


teoria de Putnam
A principal lição que devemos tirar da pesquisa
de Putnam - na verdade da teoria do Capital Social que
ele tenta construir para interpretar sua pesquisa – é o
reconhecimento do papel gerador do padrão de organização.
O ponto forte, ao meu ver, desse livro de Robert
Putnam, é a identificação de dois padrões – horizontal
e vertical – de organização, que produzem, vamos
dizer, cada qual, respectivamente, “capital social
positivo” e “capital social negativo”. Putnam não
utiliza essas expressões, mas as indica ao reconhecer,
por exemplo, que organizações como a Máfia não
produzem Capital Social (positivo), gerando
desconfiança mútua, transgressão, dependência

121
vertical, exploração, isolamento, desordem,
criminalidade e atraso (ou seja, não-Capital Social
(positivo) = “Capital Social negativo”).
Reconhecer que o padrão de organização está
diretamente implicado na produção de Capital Social
não é propriamente uma novidade: Jane Jacobs, por
exemplo, já o havia reconhecido. Porém reconhecer
que um padrão vertical de organização não produz
Capital Social (positivo) me parece a chave para
começar a desvendar porque o atual “modelo”
civilizatório permanece praticamente inalterado há
milênios do ponto de vista da sua capacidade de
replicar sistemas sociais de dominação, caracterizados
pela prevalência de atitudes autocráticas diante da
política e hierárquicas (verticais) diante do poder.
Putnam, por certo, não pretendeu tratar dessa
questão com tal grau de abrangência ou generalidade.
Apenas numa nota fez referência à “instigante
distinção entre culturas políticas baseadas no “pacto”
(acordo voluntário entre iguais) e sociedades
hierárquicas baseadas na conquista” (Putnam, 1993:
246; n. 85), remetendo o leitor para Daniel Elazar
(1991) (4.13: 1).
Enfocaremos este assunto no capítulo 6, ao
tratar dos pressupostos filosófico-antropológicos, que
quase nunca se explicitam, das teorias do Capital
Social, tentando responder a pergunta: por que os seres

122
humanos podem ter a capacidade de constituir
comunidade (ou “sociedades de parceria”)?
Uma outra lição que devemos tirar da pesquisa
de Putnam é que ele parece não encarar o Capital
Social como uma forma de capital humano; não, pelo
menos, em sentido estrito – mas como uma forma de
capital social mesmo. Tanto que afirma: “Para a
estabilidade política, para a boa governança e mesmo
para o desenvolvimento econômico, o capital social
pode ser mais importante até do que o capital físico e
humano” (Putnam, 1993: 192).
Parece redundante e óbvio, mas não é. Isso tem
a ver com o reconhecimento do papel gerador do
padrão de organização, como foi mencionado acima.
Não se trata, apenas, de recursos que são gerados pelas
relações estabelecidas entre seres humanos vivendo em
sociedade, dos quais se aproveitam, mas cuja natureza
permanece sendo humana, quer dizer, atributos
humanos “somados” em virtude de uma coleção de
seres humanos co-presentes praticarem a ajuda-mútua.
Trata-se de recursos que são produzidos por um
fenômeno de nova qualidade, que ocorre quando numa
coletividade humana se estabelecem laços horizontais
(ou redes de conexão), que dão origem a outro tipo de
ente como queria Jacobs (1961), e que só ocorre,
portanto, em determinados tipos de configurações
sociais. Putnam também não chegou a explicitar nada

123
disso, mas suas considerações apontam, ou são
compatíveis, com essa visão.

124
5
____________________
O debate atual sobre os
pressupostos da idéia

Para investigar as tentativas teóricas que foram feitas


sobre o Capital Social deve-se examinar também as
mais recentes, como a teoria do Capital Social de
Fukuyama (1995/1999).
Mas quase ninguém gosta de trabalhar com os
textos de Francis Fukuyama, muitas vezes sequer de
citá-los. Há um preconceito generalizado do tipo “não
li e não gostei”. Esse preconceito começou em 1992,
quando ele publicou um livro bastante polêmico: “O
Fim da História e o Último Homem” (5: 1). Mas não
quero discutir aqui o Fukuyama de 1992 e sim fazer
um registro de que pelo menos os outros dois

125
Fukuyama, de 1995 e 1999, revelaram um pesquisador
do Capital Social que não pode ser ignorado,
sobretudo, como veremos adiante, porquanto é um
dos poucos teóricos que tem investigado os
pressupostos filosófico-antropológicos e biológicos do
conceito.
Vamos começar dando um passeio pelo
Fukuyama de 1995, quando publicou o livro
“Confiança: as virtudes sociais e a criação da
prosperidade”. A tese central do Fukuyama de 1995,
em “Trust”, é a de que “a sociabilidade não emerge
simplesmente de maneira espontânea, uma vez que o
Estado se retraia. A capacidade de cooperar
socialmente depende de hábitos, tradições e normas
anteriores, que servem para estruturar o mercado.
Donde ser mais provável que uma economia de
mercado bem-sucedida, em vez de causa de uma
democracia estável, seja co-determinada pelo fator de
capital social precedente. Se este for abundante, então
tanto a política de mercado quanto a política
democrática prosperarão, e o mercado poderá de fato
desempenhar um papel de escola de sociabilidade que
reforce as instituições democráticas” (Fukuyama, 1995:
377).
Para Fukuyama, “o conceito de capital social
deixa claro por que capitalismo e democracia são tão
intimamente relacionados. Uma economia capitalista
saudável é aquela em que há suficiente capital social na

126
sociedade subjacente que permita às empresas,
corporações, redes e similares auto-organizarem-se. Na
ausência dessa capacidade de auto-organização, o
Estado pode intervir para promover firmas e setores
essenciais, mas os mercados quase sempre funcionam
mais eficientemente quando atores da iniciativa privada
tomam parte das decisões” (Fukuyama, 1995: 377).
Todavia, de onde vem essa capacidade de auto-
organização da sociedade? Fukuyama quer mostrar que
“para as instituições da democracia e do capitalismo
funcionarem apropriadamente, elas têm de coexistir
com outros hábitos culturais pré-modernos que
asseguram seu correto funcionamento. A lei, os
contratos e a racionalidade econômica fornecem uma
base necessária mas insuficiente tanto para a
estabilidade quanto para a prosperidade das sociedades
pós-industriais; elas precisam ser fomentadas
igualmente com reciprocidade, obrigações morais,
deveres em relação à comunidade e confiança, que se
baseiam mais no hábito do que cálculo racional. Essas
premissas não são anacronismos numa sociedade
moderna; pelo contrário, são a condição sine qua non
para o seu sucesso (Fukuyama, 1995: 26).

5.1 – Capital Social


O Capital Social, para Fukuyama, “é uma
capacidade que decorre da prevalência de confiança

127
numa sociedade ou em certas partes dessa sociedade.
Pode estar incorporada no menor e mais fundamental
grupo social, a família, assim como no maior de todos
os grupos, a nação, e em todos os demais grupos
intermediários. O capital social difere de outras formas
de capital humano na medida em que é geralmente
criado e transmitido por mecanismos culturais como
religião, tradição ou hábito histórico. Os economistas
argumentam tipicamente que a formação de grupos
sociais pode ser explicada como resultado de um
contrato voluntário firmado entre indivíduos que
calcularam racionalmente que a cooperação serve aos
seus interesses a longo prazo. Por essa ótica, a
confiança não é necessária à cooperação: auto-interesse
esclarecido, juntamente com mecanismos legais como
contratos, podem compensar a ausência de confiança e
permitir que estranhos criem em conjunto uma
organização que trabalhará em prol de um propósito
comum. Grupos podem ser formados a qualquer
momento baseados no auto-interesse, e a formação de
grupos não depende de cultura.
Mas, embora contratos e auto-interesse sejam
fontes importantes de associação, as organizações mais
eficientes são baseadas em comunidades de valores
éticos compartilhados. Essas comunidades não
requerem contratos e medidas legais extensivos para a
salvaguarda de suas relações, porque um consenso
moral prévio dá aos membros do grupo uma base para

128
a confiança mútua. Isto é, um indivíduo pode decidir
“investir” num capital humano convencional, como
educação universitária ou treinamento para se tornar
maquinista ou programador de computador,
simplesmente inscrevendo-se na escola apropriada. A
aquisição de capital social, em contrapartida, requer
hábito às normas morais de uma comunidade e, no seu
contexto, a aquisição de virtudes como lealdade,
honestidade e confiabilidade. O grupo, ademais, tem
de adotar normas comuns como um todo antes que a
confiança possa tornar-se generalizada entre os seus
membros. Em outras palavras, o capital social não
pode ser adquirido simplesmente por indivíduos
agindo por conta própria. Ele é baseado no
predomínio de virtudes sociais e não apenas
individuais. A propensão à sociabilidade é muito mais
difícil de adquirir do que outras formas de capital
humano, mas por ser baseada em hábito ético, também
é muito mais difícil de ser modificada ou destruída”
(Fukuyama, 1995: 41-2).

5.2 – Confiança e sociabilidade espontânea


Confiança, por sua vez, é, para Fukuyama, “a
expectativa que nasce de uma comunidade de
comportamento estável, honesto e cooperativo,
baseado em normas compartilhadas pelos membros
dessa comunidade. Essas normas podem ser sobre

129
questões de “valor” profundo, como a natureza de
Deus ou da justiça, mas também compreendem
normas seculares, como padrões profissionais e
códigos de comportamento. Isto é, confiamos em que
um médico não nos causará mal deliberadamente
porque esperamos que ele respeite o juramento
hipocrático e os padrões da profissão médica”
(Fukuyama, 1995: 41).
Fukuyama trabalha também com uma variante
do Capital Social, que ele chama de „sociabilidade
espontânea‟. “Em qualquer sociedade moderna,
organizações são constantemente criadas, destruídas e
modificadas. O tipo de capital social mais útil
freqüentemente não é a capacidade de trabalhar sob a
autoridade de uma comunidade ou grupo tradicional,
mas a capacidade de formar novas associações e
cooperar dentro dos termos de referência que elas
estabelecem. Esse tipo de grupo, disseminado pela
complexa divisão do trabalho da sociedade industrial,
mas ainda baseado em valores compartilhados de
preferência a contratos, encaixa-se na rubrica geral do
que Durkhein rotulou de “solidariedade orgânica”. A
sociabilidade espontânea, além do mais, refere-se à
ampla gama de comunidades intermediárias distintas da
família ou das estabelecidas deliberadamente por
governos. Não raro, os governos têm de intervir para
promover a comunidade quando há um déficit de
sociabilidade espontânea. Mas a intervenção estatal

130
apresenta diferentes riscos, uma vez que ela pode
facilmente minar comunidades espontâneas
estabelecidas na sociedade civil” (Fukuyama, 1995: 42).

5.3 – Conseqüências econômicas do Capital


Social
Fukuyama utiliza sua teoria do Capital Social
para mostrar que não é por acaso que americanos,
alemães e japoneses tenham-se posto na vanguarda do
desenvolvimento industrial. “O capital social, escreve,
tem importantes conseqüências para a natureza da
economia industrial que a sociedade for capaz de criar.
Se as pessoas que têm de trabalhar juntar numa
empresa confiarem umas nas outras porque estão todas
operando de acordo com um conjunto de normas
éticas comuns, fazer negócios torna-se menos oneroso.
Tal sociedade terá melhores condições de inovar
organizacionalmente, uma vez que o alto grau de
confiança permitirá que uma grande variedade de
relacionamentos sociais emerja. Donde americanos
altamente sociáveis terem sido pioneiros no
desenvolvimento da moderna corporação em fins do
século XIX e princípios do XX, assim como os
japoneses exploraram as possibilidade de organizações
em rede neste século” (Fukuyama, 1995: 42).
E ainda: “Sociedades com alto grau de confiança
e capital social como o Japão e a Alemanha podem

131
criar grandes organizações dispensando o suporte
estatal. Em outras palavras, ao calcular vantagens
comparativas, os economistas precisam levar em conta
dotes relativos de capital social, bem como formas
mais convencionais de capital e recursos. Quando há
um déficit no capital social, a diferença muitas vezes
pode ser coberta pelo Estado, assim como o Estado
pode retificar um déficit de capital humano
construindo mais escolas e universidades. Mas a
necessidade da intervenção estatal dependerá em
grande parte da cultura e da estrutura social
específicas” (Fukuyama, 1995: 32).
Porém adverte: “Uma sociedade rica e complexa
não nasce inevitavelmente da lógica da industrialização
adiantada. Ao contrário... o Japão, a Alemanha e os
Estados Unidos tornaram-se as potências industriais
líderes do mundo em grande parte porque eram
ricamente dotadas de capital social e sociabilidade
espontânea, não pelo contrário” (Fukuyama, 1995:
166).

5.4 – Conseqüências extra-econômicas do


Capital Social
Embora argumente “que a dotação de capital
social de uma sociedade é fundamental para
compreender sua estrutura industrial e,
consequentemente, seu lugar na divisão capitalista

132
global do trabalho”, Fukuyama reconhece que, “por
mais importantes que sejam esses temas, o capital
social tem implicações que vão muito além da
economia. A sociabilidade também é um suporte vital
para as instituições políticas autogovernadas e é, sob
muitos aspectos, um fim em si mesma. O capital social,
que é praticado como uma questão de hábito arracional
e tem suas origens em fenômenos “irracionais” como
religião e ética tradicional, parece ser necessário para
permitir o funcionamento apropriado de instituições
econômicas e políticas modernas, racionais – fato que
tem implicações interessantes para a natureza do
processo de modernização como um todo”
(Fukuyama, 1995: 345).
Com efeito, “o capital social é essencial à
prosperidade e ao que passou a ser chamado de
competitividade, mas suas conseqüências mais
importantes podem não ser sentidas tanto na economia
quanto na vida social e política” (Fukuyama, 1995:
376).

5.5 – A tese do ‘declínio do capital social


americano’
Fukuyama está preocupado com o que chama de
'declínio no capital social americano‟: “Sociedades
liberais como os Estados Unidos têm tendência ao
individualismo e a uma atomização social debilitante.

133
Como já tivemos oportunidade de observar, há
indícios de que nos Estados Unidos a confiança e os
hábitos sociais que sustentam sua grandeza como
potência industrial se desgastaram significativamente
no último meio século... é possível que as sociedades
percam capital social com o tempo. A outrora
florescente e complexa sociedade civil da França, por
exemplo, foi mais tarde minada por um governo
excessivamente centralizador” (Fukuyama, 1995: 166).
“Os americanos – prossegue Fukuyama mais
adiante – precisam compreender que sua tradição não é
simplesmente individualista e que historicamente as
pessoas se congregaram, cooperaram e acataram a
autoridade de inúmeras comunidades maiores. Embora
o Estado, particularmente em nível federal, possa não
ser em muitos casos o foro adequado para esse senso
de comunidade, a capacidade de obedecer à autoridade
comunal é fundamental para o sucesso da sociedade.
Isso tem implicações tanto para a esquerda quanto para
a direita. Os liberais americanos têm de entender que
não podem tomar a coesão orgânica da sociedade
americana como uma coisa líquida e certa ao tentarem
usar a lei para estender uma igualdade de direitos e
reconhecimento por toda a sociedade. Os
conservadores americanos, por sua parte, têm de
compreender que, antes de reintroduzir o papel do
Estado na sociedade, precisam ter alguma idéia sobre
como regenerar a sociedade civil e encontrar maneiras

134
alternativas de cuidar de seus membros mais
desvalidos” (Fukuyama, 1995: 341).
“Nessas circunstâncias, poderá parecer estranho
soar um alarme, ainda que modesto, sobre as
conseqüências econômicas de um declínio no capital
social americano. Diferentemente de outros tipos de
patologia econômica, o relacionamento causal entre
capital social e desempenho econômico é indireto e
atenuado. Quando as taxas de poupança caem de
repente ou o suprimento de dinheiro é inflacionado, as
conseqüências em termos de taxas de juros ou inflação
são sentidas em poucos anos ou mesmo em poucos
meses, mas o capital social pode ser gasto devagar
durante um longo período de tempo, antes de qualquer
indício de que o fundo esteja secando. Pessoas que
nascem com o hábito de cooperar não o perdem
facilmente, mesmo que a base da confiança tenha
começado a desaparecer. A arte da associação pode
parecer, portanto, bastante saudável hoje, com novos
grupos, associações e comunidades despontando o
tempo todo. Mas grupos de interesses na arena política
ou comunidades “virtuais” no espaço cibernético
provavelmente não substituirão antigas comunidades
morais de valores compartilhados no seu impacto
sobre os hábitos éticos. E, como indicam os casos de
sociedades de baixa confiança... uma vez gasto o capital
social, talvez sejam necessários séculos para recuperá-

135
lo, se é que pode ser recuperado” (Fukuyama, 1995:
342).
E é com essa preocupação que Francis
Fukuyama termina esse seu ensaio de 1995: “Nos
Estados Unidos, o enfraquecimento da autoridade das
associações civis se relaciona com a ascensão de um
Estado forte via tribunais e poder executivo. O capital
[social] é como um trinco que gira melhor para um
lado do que para o outro; ele pode ser dissipado por
ações de governos muito mais rapidamente do que
esses governos são capazes de reconstruí-lo. Agora que
a questão da ideologia e das instituições foi resolvida, a
preservação e a acumulação de capital social ocuparão
o palco central” (Fukuyama, 1985: 383) (n. i.).

5.6 – As duas fontes de Capital Social:


natureza humana e auto-organização
As preocupações de Fukuyama com o declínio
do Capital Social, em “Trust”, são retomadas, quatro
anos depois, em “The Great Disruption” (1999). Aqui ele
está preocupado com “os níveis sempre crescentes de
desordem e atomização social” que assolam “as
sociedades liberais contemporâneas”, a tal ponto que
se pergunta se não estariam tais sociedades “fadadas a
enfrentar níveis crescentes de declínio moral e anarquia
social, até que de algum modo sofram uma implosão...
Será – escreve ele – que os críticos do Iluminismo,

136
como Edmund Burke, estavam certos ao dizer que este
tipo de anarquia era o produto inevitável do esforço
para substituir tradição por razão?” (Fukuyama, 1999:
148).
A resposta de Fukuyama é: “não, pela simples
razão de que nós, seres humanos, somos por natureza
concebidos para criar regras morais e ordem social por
nós mesmos. A situação de ausência de normas – que
Durkhein chamou de anomia – nos é intensamente
desagradável e procuraremos criar novas regras para
substituir aquelas que foram suprimidas. Se a
tecnologia torna determinadas formas antigas de
comunidade difíceis de sustentar, então buscaremos
novas formas e usaremos nossa razão para negociar
arranjos diferentes que irão satisfazer nossos interesses,
necessidades e paixões” (Fukuyama, 1999: 148).
Para sustentar este tipo de resposta Fukuyama
vai desenvolver um esquema explicativo apoiado na
hipótese de que existem “duas fontes amplas de ordem
social [e de Capital Social]: a natureza humana e o
processo espontâneo de auto-organização” (Fukuyama,
1999: 149) (n. i.). E é assim que ele entra no debate dos
pressupostos do Capital Social.
Para Fukuyama, “a ordem e o capital social têm
duas amplas bases de apoio. A primeira é biológica e
emerge da própria natureza humana. Tem havido
recentemente avanços importantes nas ciências da vida,
os quais têm o efeito acumulado de restabelecer a visão

137
clássica de que a natureza humana existe e torna os seres
humanos criaturas sociais e políticas, com grande
capacidade para estabelecer regras sociais... A segunda
base de apoio para a ordem social é a razão humana e
sua capacidade para gerar espontaneamente soluções
para problemas de cooperação social. As capacidades
naturais da espécie humana para criar capital social não
explicam como este surge em circunstâncias
específicas. A criação de determinadas regras de
comportamento é província da cultura e não da
natureza, e no domínio cultural constatamos que a
ordem é, freqüentemente, o resultado de um processo
horizontal de negociação, argumentação e diálogo entre
indivíduos. A ordem não precisa vir de cima para
baixo, de um legislador (ou, em termos
contemporâneos, um Estado) estabelecendo leis ou de
um sacerdote promulgando a palavra de Deus”
(Fukuyama, 1999: 149) (n. g.).
Mas embora Fukuyama diga que “nem a ordem
natural nem a espontânea são suficientes por si sós
para produzir a totalidade das regras que constituem a
ordem social... – elas precisam ser suplementadas em
conjunturas cruciais, pela autoridade hierárquica...” –
ele reconhece que “se olharmos para a história
humana, veremos que indivíduos descentralizados têm
criado capital social por si mesmos continuamente e
conseguido se adaptar a mudanças tecnológicas e
econômicas maiores que aquelas enfrentadas pelas

138
sociedades ocidentais nas duas últimas gerações... Os
seres humanos estão criando capital social hoje no
coração de locais de trabalho e fábricas da mais alta
tecnologia” (Fukuyama, 1999: 149).

5.7 – O debate sobre a origem das normas


A partir desse ponto Fukuyama vai investigar
“de onde vêm as normas”, para estabelecer, por um
lado, a relação entre natureza humana e ordem social e,
por outro, entre ordem social e auto-organização. Esse
caminho investigativo o obriga a passar,
necessariamente, pelo problema das origens da
cooperação (como o problema principal dos
pressupostos do Capital Social), assim como o leva a
encarar a questão das redes (como a questão central do
Capital Social). Em outras palavras, a investigação de
Fukuyama é, na verdade, sobre por que somos capazes
de produzir Capital Social (em virtude de nossa
natureza humana cooperativa) e sobre como podemos
produzi-lo (na forma de ordem espontânea). Mas esses
dois objetos estão co-implicados e parece ser esta co-
implicação que explica o Capital Social.
O assunto é muito complexo e Fukuyama se dá
conta disso. Toda teoria do Capital Social é uma teoria
para mostrar o que ocorre, todo o tempo, nas
sociedades humanas, mas que os humanos, em geral,
não são capazes de ver: a todo momento ordem social

139
(e Capital Social) é gerada de baixo para cima, mas se
perguntarmos às pessoas por que isso acontece “é mais
provável que elas digam que a ordem surge porque
alguém a impõe a sociedade”, de cima para baixo
(Fukuyama, 1999: 155). Então é preciso explicar
também por que as pessoas vêem as coisas assim e essa
explicação não pertence apenas a uma meta-teoria,
porquanto, além de outras razões, inclusive o que faz
as pessoas terem tal percepção parece provir da mesma
fonte que as impede de gerar Capital Social – mas
sobre isso se falará depois. Desde já, porém, Fukuyama
lembra que “Thomas Hobbes, que está na origem do
pensamento político moderno, afirmou que a condição
natural do homem era uma guerra de todos contra
todos e que, para evitar esta espécie de anarquia, o
poderoso Leviatã do Estado era necessário para impor
ordem”... [e] “as pessoas tendem a concordar com
Hobbes quando enfrentam a possibilidade de
desordem” (Fukuyama, 1999: 155) (n. i.).
Foi por isso que Putnam, com razão,
desenvolveu sua teoria do Capital Social como uma
teoria anti-hobbesiana, ou melhor, como uma teoria
para mostrar que a solução hobbesiana dos dilemas da
ação coletiva não era necessária e, mais ainda, que ela
era indesejável do ponto de vista da prosperidade
econômica e da boa governança, enfim, da good society.
Mas o fato das pessoas tenderem
“naturalmente” para a explicação hobbesiana – e isso

140
em todas as faixas do espectro ideológico: “se elas são
progressistas que suspeitam do funcionamento dos
“livres mercados”, elas querem uma ordem imposta
pelo Estado sob o disfarce de um órgão
regulamentador; se são conservadoras tradicionalistas,
freqüentemente elas querem que as pessoas obedeçam
aos ditames da autoridade religiosa” – nada tem de
natural. E é isso que torna o problema tão complexo.
A evolução e a seleção natural criam ordem
espontaneamente, como têm mostrado os que estudam
o comportamento dos sistemas adaptativos complexos
nas duas últimas décadas – vale citar Stuart Kauffman
e o pessoal do Santa Fe Institute – porém a imensa
maioria das pessoas não sabe nada de tais estudos. “O
estudo sistemático de como a ordem, e portanto o
capital social, pode surgir de maneira espontânea e
descentralizada é um dos acontecimentos intelectuais
mais importantes do final do século XX” mas, apesar
disso, a maioria dos cientistas sociais e dos
economistas também não tomaram conhecimento da
novidade (Fukuyama, 1999: 155).
O que torna o problema tão complexo, ademais,
é a crença de que se as normas são socialmente
construídas – crença compartilhada tanto por
economistas de direita quanto por sociólogos de
esquerda e vice-versa – culturalmente encaramos essa
construção como resultado da interação de „unidades
de interesse‟, sejam indivíduos, que competem entre si

141
por recursos, sejam grupos que competem entre si por
poder. Ocorre que, ao que tudo indica, não somos
apenas „unidades de interesse‟ e o fenômeno social
como fenômeno característico do comportamento de
um sistema complexo – como o é a sociedade humana
– não pode ser adequadamente explicado pelo
comportamento de suas partes (ou supostas unidades
atômicas competitivas). Há uma função de integração,
de sinergia, sem a qual não se explica o Capital Social.
Aliás, o que chamamos aqui de partes – sejam
indivíduos ou grupos – não subsistem e, a rigor, nem
existem (etimologicamente, de “ex sistere”: ser fora),
enquanto tais, fora do todo.
Fukuyama, por certo, não chega até aí – como o
faz, por exemplo, Maturana. Tanto é assim que ele
ainda admite que “o egoísmo individual possa ser a
explicação suprema para o desenvolvimento de
qualquer tendência altruísta” (Fukuyama, 1999: 171).
Todavia, ele reconhece que “o problema comum a
todos... [os] relatos liberais clássicos do estado de
natureza [como os de Hobbes, Locke e Rousseau] é
sua suposição de individualismo primordial. Em outras
palavras, todos eles partem da premissa de que os seres
humanos são aquilo que a teórica legal Mary Ann
Glendon [1991] chama de “portadores de direitos
solitários”, isto é, indivíduos sem inclinação natural
para a sociedade, e que se juntam em
empreendimentos cooperativos somente como meio

142
para atingir seus fins individuais” (5.7: 1). Entretanto,
esta não é a única visão filosófica possível da natureza
humana. Aristóteles começa seu livro “Política”
afirmando que o homem é, por natureza, um animal
político, em algum ponto entre um animal e um deus
[Aristóteles, Política, Livro 1: 1253a]. Isto se baseia na
observação de bom senso de que os seres humanos se
organizam em toda parte e em todas as épocas em
comunidades políticas, cujo caráter é diferente em
espécie de outros tipos de estrutura social como a
família ou a aldeia, e cuja existência é necessária para a
completa satisfação daquilo que os humanos desejam
por natureza. Eles não são deuses em potencial, como
assumiu a ala marxista do Iluminismo – isto é, “seres-
espécies” capazes de altruísmo ilimitado. Mas também
não são animais. Por natureza, eles se organizam não
apenas em famílias e tribos, mas também em grupos de
nível mais alto, e são capazes das virtudes morais
necessárias para sustentar essas comunidades. Com
isso a atual biologia da evolução concordaria
sinceramente” (Idem: 176-7) (n. i.).
Ademais, o papel que Fukuyama confere à
cooperação como característica do humano já
representa um avanço considerável em relação ao que
dizem sobre o assunto, por um lado, os representantes
da economia neoclássica moderna e, por outro, os
sociólogos e os antropólogos representantes do
relativismo cultural. Ambos parecem padecer da

143
mesma incompreensão essencial do humano ou,
apenas, de uma compreensão “de bom senso, a
respeito da maneira pela qual as pessoas pensam e
agem” no dia a dia. Pois “a capacidade de criar capital
social por meio de formas elaboradas de cooperação
social talvez seja a maior vantagem que a espécie
humana possui e explica por que a atual população
humana global, de mais de cinco bilhões de indivíduos,
domina de forma tão completa o ambiente natural da
Terra” (Fukuyama, 1999: 172).

5.8 – As relações entre natureza humana e


ordem social
Fukuyama supõe que os resultados desse
processo de seleção da cooperação são codificados
geneticamente e transmitidos, de geração à geração: “as
pessoas que são produtos desta evolução possuem as
tendências cooperativas, por assim dizer, embutidas em
seu tecido cerebral; portanto, elas não precisam
reinventar a roda a cada geração” (Fukuyama, 1999:
172). Embora para a tradição sócio-antropológica,
exageradamente relativista, baseada em Franz Boas, e
mesmo para a correta repulsa humanista diante das
teses da sociobiologia, seja difícil aceitar tal hipótese,
também não é fácil descartá-la diante das “importantes
conclusões relativas à natureza humana sugeridas por
novas descobertas em biologia”, como assinala (sem

144
levar muito adiante) Jack Hirshleiter (1978) (Idem: + n.
15).
Fukuyama assinala que “a maioria dos não-
economistas [diante da surpresa dos economistas “pelo
fato de haver tanta cooperação no mundo”]
responderia que a cooperação ocorre prontamente
porque as pessoas são naturalmente sociáveis e não
precisam de muita análise estratégica para achar
maneiras de trabalhar em conjunto. A biologia da
evolução corrobora esta alegação e provê uma
compreensão muito mais precisa de como esta
sociabilidade surgiu e como se manifesta. Ela mostra
como a criação de regras, o respeito às mesmas e a
punição daqueles que infringem as regras da
comunidade têm uma base natural e como a mente
humana possui capacidades cognitivas especiais que lhe
permitem distinguir entre colaboradores e trapaceiros”
(Fukuyama, 1999: 172) (n. i.). A partir daí Fukuyama
vai se esforçar ao máximo para mostrar que “o
comportamento cooperativo nos seres humanos tem base genética e
não é apenas culturalmente construído” (Idem) (n. g.).
A questão, como se disse aqui repetidas vezes, é
muito complexa. Talvez por isso os teóricos do Capital
Social evitem tanto entrar na discussão dos
pressupostos. Porque o debate sobre os pressupostos
do Capital Social não é propriamente um debate com
conceitos mas com preconceitos e isso se deve ao fato
de que a tradição social darwinista dos séculos XIX e

145
início do XX – com Herbert Spencer e Madsen Grant,
por exemplo – somada, depois, às insanidades nazistas
e, depois, ainda, à sociobiologia, fizeram um uso tão
desastroso das teorias biológicas, quer dizer, dos
paralelos biologicistas, que não apenas sociólogos e
antropólogos, mas todas as pessoas de inspiração
humanista, ficaram chocadas e vacinadas contra
qualquer coisa que pudesse sugerir a existência de
“uma natureza humana estável subjacente ao
comportamento social” que fosse capaz de induzir a
geração de padrões de comportamento social. Este
preconceito levou os estudiosos a estabelecerem um
dogma contra o qual não se podia sequer admitir
discussão: “todo comportamento humano foi
considerado “socialmente construído”, isto é, movido
por normas culturais que moldavam o comportamento
após o nascimento” (Fukuyama, 1999: 167) (n. g.).
Todavia, a partir da segunda metade do século
XX surge uma novidade – uma nova biologia – e
Fukuyama, ao contrário de muitos teóricos do Capital
Social, não só se dá conta do significado disso como
quer ir buscar aí uma parte da resposta para a pergunta,
até então irrespondida por esses teóricos, de por que
os seres humanos podem ter, espontaneamente,
capacidade de cooperar ou propensão inata para
produzir Capital Social.
“Em contraste – escreve Fukuyama – com as
hipóteses completamente relativistas da antropologia

146
cultural, grande parte da nova biologia sugere que a
variabilidade cultural humana não é tão grande quanto
podia parecer à primeira vista. Assim como as
linguagens humanas podem ser infinitamente variadas,
mas refletem profundas estruturas lingüísticas comuns
originárias da área do neocórtex, também as culturas
humanas refletem requisitos sociais comuns
determinados não pela cultura, mas pela biologia.
Nenhum biólogo respeitável negaria que a cultura é
importante e, com freqüência, exerce uma influência
que pode superar os instintos e impulsos naturais. A
própria cultura – a capacidade de transmitir regras
comportamentais através de gerações de maneira não
genética – firmemente instalada no cérebro humano
constitui uma importante fonte de vantagem evolutiva
para a espécie humana. Mas esse conteúdo cultural está
no topo de uma subestrutura natural que limita e
canaliza a criatividade cultural para populações de
indivíduos. O que a nova biologia sugere para os
observadores sensíveis não é o determinismo
biológico, mas sim uma visão mais equilibrada da
interação natureza-criação na moldagem do
comportamento humano” (Fukuyama, 1999: 168).
Escaldado talvez pela conhecimento da histórica
repercussão negativa dos paralelos biológicos,
Fukuyama é cuidadoso: “Em geral, os
comportamentos geneticamente controlados que
influenciam fenômenos sociais como parentesco ou a

147
propensão para formar grupos na sociedade civil são
mediados pela cultura; assim, não se pode fazer
nenhuma conexão causal direta entre, digamos, a
família nuclear e uma disposição genética para a
reprodução. Em seres humanos, muitos dos
comportamentos que parecem estar sob controle
biológico não são impulsos ou instintos deterministas,
mas sim propensões para aprender em determinados
estágios do desenvolvimento de um indivíduo. Mais
uma vez, o exemplo da linguagem é um meio útil para
entender a interação das forças genéticas e culturais. A
capacidade de aprender um idioma parece estar sob
forte controle genético, surgindo na idade de doze
meses mais ou menos e conduzindo à espantosa
capacidade das crianças para adquirir muitas novas
palavras por dia. Esta capacidade dura apenas alguns
anos; crianças que cresceram sem aprender a falar, ou
adultos que procuram aprender novos idiomas, nunca
desenvolvem a mesma fluência que têm as crianças. A
estrutura da linguagem também parece estar presente
no nascimento; as crianças esperam certas
regularidades em regras a respeito de tempos, plurais
etc., sem que isso precise lhes ser ensinado. Por outro
lado, as próprias palavras e grande parte da estrutura
sintática de uma dada linguagem são determinadas
culturalmente, assim como todas as implicações sutis
de certas frases no contexto de uma determinada
cultura. Que as crianças irão aprender determinadas

148
coisas em determinadas épocas, de acordo com uma
determinada estrutura, é estabelecido pela biologia; o
que elas aprendem é domínio da cultura” (Fukuyama,
1999: 168-9) (g. a.).

5.9 – As origens biológicas da cooperação


A hipótese básica de Fukuyama é a de que
“grande parte do comportamento social não é
aprendida, mas faz parte da herança genética...”
(Fukuyama, 1999: 176). Mas aí ele acrescenta: “... tanto
do homem como de seus antepassados macacos”
(Idem), o que o leva a uma incursão na primatologia de
caráter mais duvidoso do que sua recorrência à nova
biologia – ou seja “`as origens da revolução biológica
que está em andamento na segunda metade do século
XX” (Idem: 167) – a qual, no essencial, parece bem
razoável.
Supondo que “talvez a maneira mais fácil de
demonstrar que o comportamento cooperativo nos seres
humanos tem base genética e não é apenas culturalmente
construído, seja observar não os seres humanos, mas seu
parente genético mais próximo, o chimpanzé”,
Fukuyama cai nas especulações de Frans de Waal sobre
“política chimpanzé” – baseadas na suposta capacidade
observada desses animais “se organizarem para
competição e violência grupais” – coisa, como já se
disse, muito discutível, tanto do ponto de vista da

149
interpretação do comportamento desses primatas
quanto do ponto de vista do que se entende por
política (Fukuyama, 1999: 172/4) (n. g.).
Pulando essa parte, entretanto, as conclusões de
Fukuyama sobre a relação entre natureza humana e
ordem social constituem uma boa introdução à
investigação sobre as origens da cooperação: “Se
aceitarmos que a propensão humana para cooperar em
grupos não é apenas socialmente construída ou o
produto de uma escolha racional, e que a cooperação
tem uma base natural ou genética, surge a pergunta de
como a cooperação apareceu” (Fukuyama, 1999: 178).
Para responder esta pergunta Fukuyama vai partir da
premissa de que “é impossível explicar o
comportamento grupal, exceto em termos dos
interesses dos indivíduos que o compõem” – premissa,
segundo ele, compartilhada tanto pela biologia da
evolução contemporânea quanto pela economia
moderna (Idem). Mas se é assim, “como então
explicamos a emergência do altruísmo e do
comportamento social?” (Idem-idem).
Segundo Fukuyama, “os dois principais
caminhos pelos quais os interesses individuais levam à
cooperação social são a seleção por parentesco e a
reciprocidade. A seleção por parentesco, também
chamada de aptidão inclusiva, foi uma teoria
desenvolvida por William Hamilton nos anos 60 [1964]
e popularizada por Richard Dawkins em seu livro “The

150
Selfish Gene” [1989]”. Embora qualquer teoria do
comportamento deva começar com os interesses
próprios dos indivíduos, estes interesses estão em
transmitir seus genes aos filhos e não necessariamente
na sobrevivência da própria criatura. Portanto, afirma
Dawkins, são os genes os egoístas, não os organismos
individuais. Hamilton mostrou que parentes seriam
altruístas uns com os outros na estrita proporção do
número de genes que eles têm em comum... Portanto –
conclui Fukuyama – a sociabilidade humana começa
com o parentesco; o altruísmo existe na proporção do
grau de parentesco” (Fukuyama, 1999: 178) (n. i.).

5.10 – Altruísmo recíproco


No entanto, ele constata que “também existe
claramente comportamento altruísta e cooperativo no
mundo natural entre não parentes”, o que indica que
deve haver outra fonte natural de comportamento
social (Fukuyama, 1999: 178). “Além da seleção por
parentesco, a segunda fonte natural comumente
reconhecida de comportamento social é o altruísmo
recíproco. As teorias biológicas de altruísmo recíproco
tomaram muita coisa emprestada da economia e da
teoria dos jogos para mostrar como a reciprocidade
podia se desenvolver em indivíduos regidos por genes
egoístas, em particular fazendo uso da solução repetida
de Robert Axelrod para o dilema do prisioneiro...

151
Promovendo um torneio de estratégias, Robert
Axelrod [1984] mostrou como uma solução
cooperativa poderia surgir em um jogo iterado (isto é,
repetido) no qual os mesmos jogadores eram forçados
a interagir com o outro repetidamente. Usando uma
estratégia simples de pagar na mesma moeda, na qual
um jogador retribuía cooperação com cooperação e
traição com traição, seguiu-se um processo de
aprendizado no qual cada um deles acabou
reconhecendo que, a longo prazo, a estratégia cooperativa
produzia um retorno individual mais alto do que a estratégia de
traição, e portanto era racionalmente ótima” (Idem:
180-1) (n. i.) (g. a. + n. g.).
Fukuyama assinala que “a teoria dos jogos
evoluiu consideravelmente desde a publicação dos
resultados do torneio de Axelrod, e surgiram muitas
outras estratégias que se mostraram no mínimo tão
estáveis ao longo do tempo quanto a de pagar na
mesma moeda. Mas ela nos diz muito a respeito de
como confiança e cooperação emergem em situações
diferentes, desde os homens aprendendo a caçar juntos
nas sociedades primitivas até as modernas corporações
procurando persuadir os consumidores da qualidade
dos seus produtos. A chave é a iteração: se você sabe
que terá de trabalhar com o mesmo grupo de pessoas
por um período prolongado e sabe que elas irão se
lembrar de quando você foi honesto com elas e
quando trapaceou, então será do seu interesse agir

152
honestamente. Numa situação como esta, uma norma de
reciprocidade irá emergir espontaneamente porque a reputação
passará a ser um ativo” (Fukuyama, 1999: 181-2) (g. a
+ n. g.).
Argumentando que a estratégia iterativa de
Axelrod vale tanto para agentes humanos racionais
quanto para agentes não-racionais (isto é, animais),
Fukuyama constata que “o altruísmo recíproco tem
maior probabilidade de se desenvolver em espécies que
experimentam interações repetidas, tenham vidas
relativamente longas e possuam as capacidades
cognitivas de distinguir colaboradores de traidores com
base numa série de sinais sutis” (Fukuyama, 1999: 182).
Ele cita o biólogo Richard Trivers, que “afirma que
entre os seres humanos se desenvolveram
precisamente esses mecanismos para o altruísmo
recíproco” (Idem). Segundo Trivers (1985), teria
havido, durante nossa história evolutiva recente, “uma
forte seleção sobre nossos ancestrais para desenvolver
uma variedade de interações recíprocas. Baseio esta
conclusão em parte no forte sistema emocional que
subjaz a nossos relacionamentos com amigos, colegas,
conhecidos e assim por diante. Os seres humanos
rotineiramente se ajudam uns aos outros em
momentos de perigo (por exemplo, acidentes,
predação e ataques de outros seres humanos)...
Durante o período pleistoceno, e provavelmente antes,
uma espécie hominídea teria encontrado as

153
precondições para a evolução do altruísmo recíproco:
por exemplo, vida longa, baixo índice de dispersão,
vida em grupos pequenos, estáveis e mutuamente
dependentes e um longo período de cuidados paternos,
conduzindo a contatos extensos com parentes
próximos ao longo de muitos anos” (Trivers, 1985: 386
– apud Fukuyama: Idem). Fukuyama reconhece “que a
história acima é uma daquelas que os sociobiólogos são
freqüentemente acusados de inventar. Mas – retruca –
é preciso perguntar por que o sistema emocional
humano está equipado com sentimentos como raiva,
orgulho, vergonha e culpa, todos os quais entram em
ação em resposta a pessoas que ou são honestas e
cooperam, ou trapaceiam e infringem as regras, em
situações do tipo do dilema do prisioneiro”
(Fukuyama: Idem).
Todavia, Fukuyama registra que há uma outra
fonte de sociabilidade sugerida por antropólogos
evolucionários: a caça coletiva de grandes animais, que
exige esforços cooperativos de várias pessoas e, mais
importante ainda, a conseqüente partilha do alimento. “É
notável que em quase todas as culturas humanas
conhecidas o ato de comer seja, quase sempre, um
evento público. Embora exerçamos a maior parte de
nossas funções corporais privadamente, parecemos ter
um desejo natural de dividir comida com outras
pessoas, de piqueniques da empresa a jantares
familiares. O antropólogo Adam Kuper [1993] destaca

154
que mesmo nos Estados Unidos, onde o
individualismo e a competição regem supremos como
valores culturais, os dois feriados mais importantes são
o Dia de Ação de Graças e o Natal, festas construídas
em torno de grandes banquetes que comemoram não
realizações individuais, mas a solidariedade social.
Tudo isso sugere que as condições ambientais dos
primeiros homens apoiavam o desenvolvimento de
uma propensão para a reciprocidade que não era
simplesmente cultural” (Fukuyama, 1999: 183) (n. i.).

5.11 – Cooperação ou competição?


Partindo da premissa de que os seres humanos
não só aprendem culturalmente como recebem
geneticamente – por algum, alguns ou todos os
motivos apresentados acima – a propensão para
cooperar, vem a pergunta: e a propensão para
competir, também esta viria gravada nos gens
humanos? Em outras palavras, afinal, o ser humano é
inerentemente cooperativo ou competitivo?
Fukuyama vai abordar essa questão de uma
maneira que não rompe com aquela visão do homem
como “átomo de interesse”. Para ele, “o altruísmo
recíproco não é o mesmo que altruísmo tout court. Além
dos parentes genéticos, é difícil achar muitos exemplos
de verdadeiro altruísmo de mão única na natureza...
quase todo comportamento que entendemos por moral

155
envolve troca de mão dupla de algum tipo e confere
benefícios mútuos às partes envolvidas” (Fukuyama,
1999: 184).
A questão é a seguinte: os seres humanos
seriam, “por natureza, ou agressivos, competitivos e
hierárquicos, ou cooperativos, pacíficos e
estimulantes”? Fukuyama responde que “basta pensar
um pouco para ver que essas características
aparentemente dicotômicas estão na verdade
intimamente ligadas entre si em termos evolutivos.
Cooperação e altruísmo recíproco surgiram
inicialmente porque conferiam benefícios aos indivíduos que
os possuíam. A capacidade de trabalhar juntos em
grupos – capital social – constituía uma vantagem
competitiva para os primeiros seres humanos e seus
progenitores macacos, e assim as qualidades que
sustentavam a cooperação grupal se disseminaram. À
medida que os grupos se formam, começa a
competição entre eles, provendo um incentivo para
níveis mais altos de cooperação dentro de cada grupo.
O comportamento social dos chimpanzés... está
relacionado, ao menos em parte, com o fato de eles
precisarem competir uns contra os outros em grupos.
Nas palavras do biólogo Richard Alexander [1990], os
seres humanos cooperam para competir” (Fukuyama, 1999:
184) (n. i.) (n. g.).
O caminho explicativo tomado a partir daqui
por Fukuyama é péssimo. Fazendo um paralelo com a

156
chamada “modernização defensiva”, pela qual “o
aparecimento de uma nova tecnologia militar em um
Estado força as sociedades concorrentes não só a
adquirir a tecnologia mas também a adquirir as
instituições políticas e econômicas necessárias à
produção dessa tecnologia, como poderes fiscais e
regulamentadores, pesos e medidas padronizados e
sistemas educacionais” – o que implica que “a
competição militar externa promove a cooperação
política doméstica” – ele supõe que “o grande tamanho
e o rápido crescimento (em tempo evolucionário) do
cérebro humano estão relacionados com uma série
semelhante de corridas armamentistas entre seres
humanos, tornando assim possíveis a linguagem, a
sociedade, o Estado, a religião e todas as subsequentes
instituições sociais cooperativas criadas pelos seres
humanos” (Fukuyama, 1999: 184-5).
Colaboração ou competição, anjos ou
demônios? – pergunta Fukuyama. Colocada a questão,
inadequadamente, nestes termos, ele vai optar pela
resposta óbvia (e, como veremos no próximo capítulo,
menos lógica): nem uma coisa nem outra unicamente,
ou seja, as duas coisas simultaneamente. “Quando digo
que os seres humanos são sociais por natureza, não
quero dizer que eles são anjos. Isto é, eles não possuem
reservatórios ilimitados de altruísmo, não são
completamente honestos e não têm quaisquer impulsos
especiais que os inclinem para colocar o bem da sua

157
espécie, ou mesmo de números mais limitados de não
parentes, acima do seu próprio bem. A teoria evolutiva
dos jogos explica por que isto ocorre. Mesmo que
pudéssemos imaginar uma sociedade de anjos na qual
todos são totalmente honestos e inclinados a cooperar
com os companheiros em empreendimentos comuns
por razões genéticas ou culturais, essa situação não
seria estável. Sabendo que todos os outros irão manter
seus compromissos, um oportunista poderia ter ganhos
muito maiores do que um grupo de pessoas que não
cooperam. E basta um oportunista muito bem-
sucedido para transformar anjos em mortais comuns e
desconfiados. Isto é verdade no nível genético e
também no cultural: um gene de oportunismo irá se
espalhar entre a população de colaboradores, assim
como o comportamento oportunista irá se espalhar
numa sociedade de pessoas honestas. Isto explica por
que esquemas piramidais têm funcionado
particularmente bem em Utah, onde a honestidade e
credulidade da comunidade mórmon têm sido, algumas
vezes, vergonhosamente exploradas por escroques de
todos os tipos (com freqüência por um companheiro
mórmon, que conhece melhor que a maioria as
vulnerabilidades da comunidade).
Por outro lado – prossegue Fukuyama – uma
sociedade na qual todas as pessoas são demônios que
procuram iludir seus companheiros humanos em todas
as oportunidades também não seria estável. A

158
introdução de um pequeno número de colaboradores
honestos na sociedade de demônios fará com que eles
tenham grandes ganhos às expensas destes. Os
demônios não conseguirão trabalhar uns com os
outros e irão perdendo terreno para os anjos, que são
colaborativos. No exemplo clássico da teoria evolutiva
dos jogos, uma população mista de falcões e pombos
não será estável se todos os pombos forem comidos
pelos falcões; estes se voltarão uns contra os outros
por falta de alimento.
Portanto, o que a teoria evolutiva dos jogos nos
diz é que todas as sociedades terão populações mistas
de anjos e demônios ou, mais precisamente, elas irão
consistir em pessoas com diferentes proporções de
qualidades angelicais e demoníacas ao mesmo tempo.
A proporção de anjos e demônios irá depender dos
retornos de cada um – isto é, as recompensas
resultantes para os anjos que podem cooperar uns com
os outros e para os demônios que têm sucesso em seu
oportunismo” (Fukuyama, 1999: 185-6).
Posta a questão nestes termos, pode-se concluir
que os humanos tiveram que desenvolver,
basicamente, dois tipos de capacidades para poder
sobreviver e prosperar: “capacidades cognitivas
especiais que nos permitissem distinguir anjos de
demônios” e capacidades “emocionais ou instintos
especiais que garantissem um pagamento na mesma
moeda: precisamos premiar os anjos e fazer o possível

159
para punir os demônios” (Fukuyama, 1999: 187).
Assim, “uma razão pela qual o cérebro humano teria se
desenvolvido tão rapidamente foi a necessidade dos
humanos de cooperar, enganar e decifrar o
comportamento uns dos outros”, como sugeriram o
psicólogo Nicholas Humphrey (1976) e o biólogo
Richard Alexander (1974) – para os quais “a parte mais
importante e perigosa do ambiente de um ser humano
passou, rapidamente, a consistir em outros seres
humanos, ao ponto de o desenvolvimento de
qualidades cognitivas para a interação social ter
rapidamente se tornado o requisito mais crítico para a
adequação evolutiva. Depois que os grupos de seres
humanos se tornaram a principal fonte de competição,
desenvolveu-se uma situação de corrida armamentista
na qual não havia limites para o grau de inteligência
exigido para dominar a vida social, uma vez que os
outros atores sociais estavam ganhando inteligência
com a mesma rapidez” (Idem). Fukuyama cita ainda
outros dois psicólogos – John Tooby e Leda Cosmides
– que especulam com “a existência de uma função
cerebral especial e evoluída para resolver problemas
sociais do tipo do dilema do prisioneiro” (Idem: 190).
Fukuyama afirma “que somos bons e agimos de
forma altruísta em grande parte do tempo por
egoísmo” mas não deixa de registrar (sem o confessar
diretamente) uma certa perplexidade diante do fato de
que “as pessoas sempre acreditaram que o

160
comportamento moral é um fim em si mesmo e
reservam sua mais alta aprovação não para os
demônios racionais [ou seja, aqueles que são levados a
um comportamento moral ou altruísta porque este é
do seu interesse], mas para os anjos verdadeiros”, isto
é, aqueles que, de acordo com Kant, seguem uma regra
por amor à mesma, inclusive nos casos em que o
comportamento moral prejudica os seus próprios
interesses. Para responder por que isso acontece,
Fukuyama supõe “que o comportamento moral...
[pode ter] um lugar especial na psique humana”, e
envolve operações mais profundas do que a escolha
racional ou o cálculo utilitarista (Fukuyama, 1999: 191).
Ocorre que o comportamento moral envolve as
emoções. “Em termos da teoria dos jogos, não faz
sentido preocupar-se até a morte por ter violado uma
norma, que é apenas o resultado de um cálculo
racional; contudo, as normas têm uma influência
emocional tão forte que chamamos as pessoas que
calculam seu interesse próprio com racionalidade
absolutamente fria de psicopatas, não de seres
humanos normais” (Fukuyama, 1999: 95). Existem
normas especiais que dizem respeito aos meios
corretos para definir, promulgar e forçar a obediência
às normas comuns. O cumprimento dessas normas
especiais “é muito útil na solução de problemas
cooperativos, parece que desenvolvemos emoções
especializadas para levar os indivíduos a fornecer

161
voluntariamente esse bem comum”; por exemplo, as
pessoas se esforçam “para fazer com que a justiça seja
feita – o tempo todo, e em situações nas quais elas não
têm qualquer interesse direto”: que a justiça seja feita é
uma dessas normas especiais que tendemos a obedecer
e cuja obediência força a obediência de inumeráveis
normas comuns (Idem: 94-5). O aprendizado da
cooperação ao longo de milhares ou milhões de anos
teria levado os humanos a internalizarem normas
especiais como essas associando-as a fenômenos que
ocorrem numa região mais profunda da psique
("límbica") do que aquela que calcula ("neocórtica").
Mas Fukuyama não desenvolve esta hipótese.
Lembra, ao contrário, que “Robert Frank [1988] sugere
outra razão para as emoções terem se tornado tão
intimamente associadas à obediência a normas no
decorrer da evolução do cérebro humano. As emoções
têm a função de resolver o problema de compromisso
digno de crédito em situação de dilema do prisioneiro.
Sabe-se que um jogo de dilema do prisioneiro não tem
uma solução cooperativa a menos que as partes
possam, de alguma forma, se comprometerem
previamente, o que simplesmente transforma o jogo
em outro, de sinalizar um compromisso digno de
crédito. Frank afirma que as emoções servem para
prender os indivíduos em opções que parecem violar
seus interesses de curto prazo, mas servem aos seus
interesses de longo prazo por demonstrarem um

162
compromisso digno de crédito” (Fukuyama, 1999:
196). Novamente aqui, parece prevalecer aquela visão
do indivíduo como “unidade de interesse”.
Fukuyama, entretanto, acredita que seus
argumentos não levam a essa conclusão. Tanto é assim
que ele conclui dizendo que o “cérebro não só contém
mecanismos inatos para detectar desertores e
raciocinar a respeito de contratos sociais; ele também
tem uma estrutura emocional concebida para punir
desertores, mesmo em detrimento de interesses
imediatos. Assim, dizer que os seres humanos são por
natureza animais sociais não é afirmar que eles são
inerentemente pacíficos, cooperativos ou dignos de
confiança, uma vez que eles são com freqüência
violentos, agressivos e enganosos. Significa, em vez
disso, que eles possuem recursos especiais para
detectar impostores e trapaceiros e lidar com eles,
assim como para gravitar na direção de colaboradores e
outros que seguem regras morais. Em conseqüência
disso, eles chegam a normas cooperativas muito mais
depressa do que poderiam prever pressupostos mais
individualistas a respeito da natureza humana”
(Fukuyama, 1999: 196).

163
5.12 – Problemas do paralelo biológico
empregado por Fukuyama
Não são poucas as inconsistências do paralelo
biológico utilizado por Fukuyama. O triunfo do
Estado como padrão hierárquico de organização e
modo autocrático de regulação, por tudo o que se sabe
é, originariamente, o triunfo da competição
culturalmente construída sobre a colaboração
espontânea e, portanto, um fator exterminador de
Capital Social. Ora, do argumento apresentado, pode-
se inferir que foi a competição (“corrida armamentista
primitiva”) que levou à evolução biológica (rápido
aumento de tamanho do cérebro humano), a qual
permitiu, por sua vez, o aparecimento de instituições
como o Estado e, consequentemente, a instalação da
cooperação em escala social (ou seja, à possibilidade de
produção e reprodução ampliada de Capital Social) por
meio de (“subsequentes”) instituições sociais
cooperativas!
Para além dessas flagrantes inconsistências,
porém, Fukuyama cai naquilo que Thompson (1987)
chama de “definição tecnológica da cultura humana”,
na qual a ferramenta – a arma utilizada para matar –
separa fundamentalmente a cultura da natureza,
abandonando a outra vertente explicativa (segundo a
qual é o ato de partilhar o alimento - o qual estabelece
uma relação entre natureza e nutrição - que nos
constitui humanos e nos faz alcançar a plena condição

164
de seres humanos), ou seja, renegando uma “definição
social da cultura humana”.
Com efeito, "na antropologia há duas correntes
radicalmente opostas sobre as origens da cultura
humana. Uma delas é a idéia popularizada por Robert
Ardrey, de que foi a ferramenta que nos tornou
humanos e uma cultura separada da natureza. Sob este
ponto de vista, o ato de matar é aquele que mais
identifica nossa condição de seres humanos. A arma
tem a sua força própria, e arremessa aquele que a
utiliza para um novo nicho ecológico, uma nova
adaptação. E tudo que é deixado para trás nada mais é
que a extirpada natureza do primitivo. A ferramenta...
exatamente como foi mostrada no filme de Kubrick:
“2001 – Uma Odisséia no Espaço”, é semelhante a um
foguete espacial: no momento em que é detonado em
direção aos céus, provoca o inferno àqueles que por
acaso estejam sob ele... Mas há um outro quadro das
origens da cultura humana... Glynn Isaac, em seu
ensaio sobre o comportamento do proto-homínidas de
compartilhar o alimento, nos diz que suas pesquisas
arqueológicas na África levam a crer que o alimento era
transportado de um lugar para outro, onde era
distribuído em condições de relativa segurança. Neste
exemplo, a atitude básica que nos torna humanos é a
partilha do alimento; não é de admirar que os religiosos
entre nós achem que a verdadeira condição humana é

165
alcançada mais plenamente através da comunhão do
alimento...” (Thompson, 1987: 22-3).
Contra os argumentos dos sociobiólogos e
contra o enfoque de Robert Ardrey em “The Hunting
Hypothesis” (1976), segundo o qual “foi somente
quando machos do nosso ancestral semelhante ao
antropóide se dedicaram seriamente à caça que nós
começamos a acelerar em direção à espécie humana...
[e que] “homem é homem e não um chimpanzé, pois
durante milhões e milhões de anos somente nós
matávamos para viver”, deve-se lembrar dos estudos
sobre “O Povo do Lago” de Richard Leakey (1978):
“os humanos não se comportam dessa forma: nós
repartimos nossa comida e nosso argumento é que a
temos repartido durante muitos milhões de anos.
Repartir, não caçar ou colher, foi o que nos fez
humanos” (Leakey e Lewin, 1978: 119/123).
E, se é para continuar lançando mão dos
paralelos biológicos, deve-se lembrar ainda dos
trabalhos de Lynn Margulis, sobre a simbiose na
evolução celular. Margulis, em “Symbiosis and Cell
Evolution” (1981) sustenta que “a escassez de alimento
na natureza provavelmente seleciona os simbiontes
acima dos parceiros individualizados” (apud –
Thompson, 1987: 22). E, por último, como faremos
mais adiante, deve-se lembrar da obra inteira do
biólogo Humberto Maturana, a qual oferece uma sólida
base científica para um paralelo biológico capaz de

166
realmente esclarecer alguma coisa sobre as origens da
cooperação.
O problema, portanto, não está no ato de
recorrer à biologia. Não é que deva ser proibido às
ciências sociais recorrer à biologia para entender
melhor as origens do comportamento humano em
sociedade: esse tipo de coisa cheira a reserva de
mercado de cientistas sociais, além de ser uma tolice –
na medida em que somos mesmo seres biológicos. O
problema está no tipo de biologia a que se recorre. Por
exemplo, como assinalou Thompson, “[Edward O.]
Wilson e [Humberto] Maturana constituem-se duas
figuras opostas. Mas nestas duas diferentes biologias
estão contidas duas idéias diferentes de metodologia,
duas idéias diferentes de ordenação e, implicitamente,
duas idéias diferentes de ordem política. A
sociobiologia nega o valor ontológico do indivíduo –
todo valor se baseia na combinação genética e nas
relações de “capacidade natural de adaptação”. O
indivíduo é simplesmente uma embalagem para o
“gene egoísta”. Esta ótica de organização, das partes
para o todo, é a visão de mundo de uma sociedade
tecnocrata, assim como a percepção de Darwin, a
respeito da luta pela sobrevivência, era a visão do
mundo de uma sociedade industrial... [As idéias de
Margulis sobre a seleção dos simbiontes] não estão em
harmonia com os sistemas de valor de uma sociedade
industrial [e constituem também uma afronta ao

167
Darwinismo Social]. Esta noção de compartilhar o
alimento é realmente fundamental para nossa biologia
e nossa política. Não há descrição mais expressiva do
que a nossa idéia da origem da humanidade, pois a
maneira como alguém vê as origens da cultura humana
é também uma descrição da maneira como esse alguém
deseja ver o futuro da humanidade” (Thompson, 1987:
20/22) (n. i.).

5.13 – Capital Social e auto-organização


Voltemos a Fukuyama. Concluída a primeira
parte da investigação “de onde vêm as normas”, após a
discussão da relação entre natureza humana e ordem
social, Fukuyama vai entrar na segunda parte do seu
estudo, dedicada agora à relação entre ordem social e
auto-organização. “A biologia humana cria a
predisposição para resolver problemas de ação coletiva,
mas as normas e metanormas [aquelas normas
especiais que dizem respeito aos meios corretos para
definir, promulgar e forçar a obediência às normas
comuns] escolhidas por um determinado grupo de
indivíduos, são uma opção cultural, não um produto da
natureza. Assim como os seres humanos nascem com
capacidade para aprender a usar a linguagem, a
linguagem que eles adquirem de fato depende da
cultura na qual eles crescem. Assim, é necessário ir
além das estruturas cognitiva e emocional, que são

168
universais para todos os seres humanos, até as normas
que foram geradas e desenvolvidas por sociedades
humanas” (Fukuyama, 1999: 197) (n. i.).
Fukuyama coloca a questão nos seguintes
termos: “é preciso resolver dois problemas distintos:
como as normas são criadas e como tais normas
evoluem depois de criadas”. Ele propõe então o
seguinte esquema para mostrar as “quatro maneiras
pelas quais as normas podem ser criadas”.
1) Em conseqüência de uma opção racional e
hierárquica; e. g., a Constituição Americana.
2) Provenientes de fontes hierárquicas não
racionais; e. g., os Dez Mandamentos.
3) Como resultado de uma negociação racional e
espontânea; e. g., o direito consuetudinário
anglo-saxão.
4) Surgindo espontaneamente de fontes não
racionais; e. g., o tabu do incesto.
Fukuyama avalia que “grande parte da literatura
sobre ordem espontânea tende a ser anedótica e não
mostra bem com que freqüência as normas são de fato
criadas de forma descentralizada” (Fukuyama, 1999:
202). No entanto, ele abre uma exceção para “a obra
da cientista política Elinor Ostrom, que coletou mais
de cinco mil estudos de casos de recursos comuns, um
número suficiente para lhe permitir começar a fazer
generalizações com base empírica a respeito do
fenômeno. Sua conclusão ampla é que as comunidades

169
humanas, em várias épocas e lugares, têm achado
soluções para a tragédia dos recursos comuns com
muito mais freqüência do que se prevê comumente
(5.13: 1). Muitas dessas soluções não envolvem nem a
privatização de recursos comuns (a solução favorecida
por muitos economistas) nem a regulamentação pelo
Estado (a solução muitas vezes preferida por não
economistas). Em vez disso, as comunidades
conseguiram criar racionalmente regras informais e, às
vezes formais, para dividir recursos comuns de uma
maneira eqüitativa e que não conduz ao seu
esgotamento prematuro. Essas soluções são facilitadas
pela mesma condição que torna solúvel o dilema do
prisioneiro com dois lados: a repetição. Isto é, se as
pessoas sabem que terão de continuar a viver umas
com as outras em comunidades bem limitadas onde a
cooperação continuada será recompensada, elas
desenvolvem interesse por suas próprias reputações,
bem como pela monitoração e punição daqueles que
violam as regras da comunidade” (Idem: 202-3).
Embora “muitos dos exemplos de Ostrom, de
regras relativas à divisão de recursos comuns
envolv[a]m comunidades tradicionais em sociedades
pré-industriais... a auto-aorganização também ocorre
em comunidades desenvolvidas... [pois] também
encontramos comportamento auto-organizador no
coração do moderno e altamente tecnológico local de
trabalho. A corporação do início do século XX e as

170
fábricas e os escritórios que ela criou eram bastiões de
autoridade hierárquica, controlando milhares de
trabalhadores através de um sistema de regras rígidas,
de maneira altamente autoritária. Entretanto, o que
vemos em muitos locais de trabalho contemporâneos é
o oposto: as relações formais, limitadas por regras e
hierarquias estão sendo substituídas por outras, mais
horizontais, que dão aos subordinados maior
autoridade, ou por redes informais. Nesses locais, a
coordenação vem de baixo em vez de ser imposta de
cima, e é baseada em normas ou valores comuns que
permitem aos indivíduos trabalhar em conjunto para
fins comuns sem uma direção formal. Em outras
palavras, ela se baseia em capital social, o qual se torna mais
importante, em vez de menos, à medida que crescem a
complexidade e a intensidade tecnológica de uma economia”
(Fukuyama, 1999: 203) (n. i.) (n. g).
Assim, no esquema proposto por Fukuyama, as
normas geradas espontaneamente – sobretudo as
relativas a auto-organização – são aquelas que se
baseiam no Capital Social, o que parece basicamente
correto. Infelizmente Fukuyama vai voltar atrás ao
associar os limites da espontaneidade à inevitabilidade
da hierarquia, é provável que devido a confusão que
faz entre política (como modo de regulação, que julga
inevitavelmente autocrático, talvez por encará-lo,
hobbesianamente, como atividade de Estado cujo fim é
a ordem) e poder (como padrão de organização, que

171
por algum motivo imagina ser necessariamente
vertical). Voltaremos a esse ponto mais adiante ao
tratar das redes.
Para concluir este capítulo podemos dizer que a
teoria de Fukuyama – sobretudo no que tange às suas
especulações sobre as origens biológicas da cooperação
–, apesar do grande esforço feito por ele, não é
adequada para servir como fonte de pressupostos para
uma teoria do Capital Social. Já que, de um ponto de
vista pós-boasiano, não devemos ser tão sectários e
preconceituosos na rejeição à biologia – sobretudo se
estamos falando da nova biologia – a questão se coloca
assim: a que visão biológica se deve recorrer para
construir novos pressupostos de uma teoria da
cooperação capaz de servir, por sua vez, como base
para uma teoria do Capital Social?
Me inclino neste sentido para a “biologia do
fenômeno social” de Humberto Maturana, que será
abordada no capítulo seguinte.

172
6
______________________
Uma teoria da cooperação

Qualquer teoria do Capital Social é, no que tange aos


seus pressupostos, uma teoria da cooperação. A teoria
biológica do fenômeno social – uma espécie de anti-
sociobiologia e de contra-social-darwinismo –
desenvolvida pelo biólogo Humberto Maturana, pode
fornecer a base para uma teoria da cooperação humana
que melhor corresponda à noção de Capital Social.
Porém a tarefa de extrair, das idéias de
Maturana, uma teoria compreensível da cooperação,
não é trivial porquanto tais idéias ainda estão imersas
em certa obscuridade. Além disso, as inovadoras
abordagens de Maturana, apresentam uma estrutura
conceitual bem mais complexa do que as dos esforços

173
mais conhecidos da investigação contemporânea sobre
as origens da cooperação (e/ou da competição)
realizados por antropólogos, sociólogos, psicólogos e
mesmo por biólogos que trabalham com teorias da
evolução. Ou seja, o debate atual sobre o tema não
abriu espaço para uma análise mais ampliada das idéias
de Humberto Maturana e, assim, não ensejou sua
passagem pelas peneiras das múltiplas interpretações,
que acabam às vezes “domesticando” mas também
aclarando, simplificando, e ubicando os conceitos dentro
de marcos teóricos mais amigáveis.

6.1 – O arcabouço teórico da biologia do


fenômeno social
Ainda que possa representar uma digressão que
vai nos afastar, temporariamente, do nosso objetivo
central, um esforço para sistematizar uma teoria da
cooperação a partir das idéias de Maturana deveria
começar, ao meu ver, pelo esforço de compreender o
arcabouço teórico construído por ele a partir de
meados da década de oitenta (6.1: 1). Considerando
que o leitor não terá muita facilidade em reunir todo
esse disperso material (citado na última nota acima),
vamos transcrever, ao longo do presente capítulo, as
principais passagens dos escritos de Maturana, no
período 1985-1993, que têm a ver com o tema em tela.
Penso que tais passagens são tão importantes para

174
construir novos fundamentos – alternativos a tudo ou
a quase tudo o que comparece no debate
contemporâneo – para uma teoria da cooperação, que
vale a pena correr o risco de ser exaustivo.
Tudo começa com a observação de que parece
haver uma inescapável dualidade no ser humano. Os
seres humanos são seres sociais (vivem o seu ser
cotidiano em contínua imbricação com o ser de outros
seres humanos) e, ao mesmo tempo, são indivíduos
(vivem o seu ser cotidiano como um contínuo devir de
experiências individuais intransferíveis). Uma teoria da
cooperação baseada nas idéias de Maturana é uma
teoria para mostrar que podem existir “sistemas sociais
cujos membros vivem a harmonia dos interesses
aparentemente contraditórios da sociedade e dos
indivíduos que a compõem” (Maturana, 1985a: 72).
Assim, para mostrar que o ser humano individual é
social e o ser humano social é individual, Maturana vai
começar admitindo cinco pressupostos.
O primeiro pressuposto diz respeito ao enfoque
biológico – e não filosófico, sociológico ou psicológico –
que será adotado por ele. Interrogando os critérios
pelos quais se pode aceitar, como científica, uma
resposta para a pergunta: „o que é um sistema social?‟,
Maturana afirma que “as respostas científicas, quer
dizer, as respostas aceitáveis pelos cientistas, devem
consistir na proposição de mecanismos (sistemas
concretos ou conceituais) que, no seu operar

175
(funcionar), geram todos os fenômenos concernidos na
pergunta” (Maturana, 1985a: 72). Baseado neste
critério ele vai propor um mecanismo biológico como
gerador dos “sistemas que exibem, em seu operar,
todos os fenômenos que observamos nos sistemas que
quotidianamente reconhecemos como sistemas sociais”
(Idem) (n. g.).
O segundo pressuposto diz respeito ao conceito de
„ser vivo‟. “Os seres vivos, incluídos os seres humanos,
somos sistemas determinados estruturalmente. Isto
quer dizer que tudo ocorre em nós na forma de
mudanças estruturais, determinadas em nossa
estrutura, seja como resultado de nossa própria
dinâmica estrutural interna, seja como mudanças
estruturais desencadeadas pelas nossas interações com
o meio, porem não determinadas por este último.
Além disso, a conduta (comportamento), observável,
em nós mesmos, por exemplo, não escapa disso, e o
que vemos como comportamento em qualquer ser
vivo, sob a forma de ações em um contexto
determinado é, por assim dizer, a coreografia da sua
dança estrutural. Consequentemente, a conduta de um
ser vivo é adequada somente se suas mudanças
estruturais ocorrem em congruência com as mudanças
estruturais do meio, e isso só ocorre enquanto sua
estrutura permanece congruente com o meio durante
sua sucessão de continua mudança estrutural”
(Maturana, 1985a: 73).

176
Maturana define o conceito de estrutura: a
estrutura de um sistema é sua feitura (ou “fazedura”),
os componentes e relações que o fazem como (ou o
tornam) um caso particular de uma classe. Portanto, a
estrutura ou feitura de um sistema pode mudar sem
que este desapareça, desde que tais mudanças se dêem
com conservação da organização que o define. A
organização de um sistema, por sua vez, consiste nas
relações que o constituem como unidade e definem sua
identidade. Um sistema conserva sua identidade
enquanto conserva sua organização.
Para Maturana – e aqui encontra-se a matriz de
toda a sua construção teórica – “os seres vivos, como
sistemas determinados estruturalmente, são sistemas
que, em sua dinâmica estrutural, constituem-se e
delimitam-se como redes fechadas de produção de seus
componentes a partir de seus próprios componentes e
de substâncias que tomam do meio: os seres vivos são
verdadeiros redemoinhos de produção de
componentes, em virtude do que as substâncias que
tomam do meio, ou vertem no meio, seguem
participando transitoriamente do ininterrupto
intercâmbio de componentes que determina seu
contínuo revolver produtivo. É esta condição de
contínua produção de si mesmos, por meio da
contínua produção e intercâmbio de seus
componentes, o que caracteriza os seres vivos e é isto
o que se perde no fenômeno da morte” (Maturana,

177
1985a: 73). Maturana está se referindo aqui ao conceito
de autopoiesis (autocriação), cuja fundamentação
encontra-se no livro pioneiro – “De máquinas y seres
vivos” – que escreveu com Francisco Varela no início
dos anos setenta (Cf. Maturana e Varela, 1973). Em
suma: “os seres vivos são sistemas autopoiéticos e...
estão vivos somente enquanto estão em autopoiesis”
(Idem).
Qualquer sistema constituído como unidade,
como uma rede de produção de componentes que, em
suas interações, geram a mesma rede que os produz e
constituem seus limites como parte do próprio sistema
no seu espaço de existência, é um sistema autopoiético.
Os seres vivos são sistemas autopoiéticos moleculares
e existem como tais no espaço molecular. Em princípio
pode haver sistemas autopoiéticos em qualquer espaço
no qual possa se realizar a organização autopoiética.
Maturana esclarece, em outro lugar (Maturana
1985b: 58), que “nenhuma classe particular de
moléculas determina por si só as características de um
ser vivo. Um ser vivo é um ser vivo devido a que é um
sistema constituído como unidade em sua organização
autopoiética, não porque esteja composto por um tipo
particular de moléculas. Ao mesmo tempo, um ser vivo
é como é, em cada instante, não porque algum de seus
componentes predetermine como deva ser, senão
porque começou com certa estrutura inicial e teve uma
certa história particular de interações” (Idem). Assim:

178
“a) todo ser vivo se realiza de fato em uma história de
interações; b) se a estrutura inicial de dois seres vivos é
a mesma e eles têm a mesma história de interações,
suas ontogenias como histórias de transformações
estruturais serão idênticas; e, c) se dois seres vivos têm
a mesma estrutura inicial porém distintas histórias de
interações, suas ontogenias como histórias de
mudanças estruturais serão diferentes” (Idem-idem).
O terceiro pressuposto se refere à dinâmica da
mudança estrutural. “Nos sistemas em contínua mudança
estrutural, como os seres vivos, a mudança estrutural
se dá tanto como resultado de sua dinâmica interna,
como desencadeado por suas interações com um meio
que também está em contínua mudança. A
conseqüência disso é que, a partir da estrutura inicial
do ser vivo, ao começar sua existência, o meio já
aparece selecionando nele, ao desencadear mudanças
determinadas em sua estrutura, as conseqüências de
mudanças estruturais que ocorrem ao longo de seu
viver, em uma história de sobrevida que
necessariamente ocorre na congruência do ser vivo e
do meio, até que o ser vivo morra porque esta
congruência se perde” (Maturana, 1985a: 74). Maturana
quer dizer, em suma, que “a estrutura de cada ser vivo
é, em cada instante, o resultado do caminho de
mudança estrutural que seguiu a partir de sua estrutura
inicial, como conseqüência de suas interações no meio
em que lhe coube viver” (Idem).

179
O quarto pressuposto diz respeito à conservação da
organização. “Os seres vivos participam dos fenômenos
que participam como seres vivos somente enquanto a
organização que os define como seres vivos (a
autopoiesis) permanece invariante” (Maturana, 1985a:
74). Isso evoca a existência de uma relação universal:
“algo permanece, quer dizer, algo mantém sua
identidade, sejam quais forem suas mudanças
estruturais, somente enquanto a organização que define
sua identidade não muda. A organização de um sistema
consiste em relações entre componentes que lhe
conferem identidade de classe (cadeira, automóvel,
fábrica de refrigeradores, ser vivo etc.). O modo
particular como se realiza a organização de um sistema
particular (classe de componentes e relações concretas
que se dão entre estes) é sua estrutura. A organização
de um sistema é necessariamente invariante, mas sua
estrutura pode mudar. A organização que define um
sistema como ser vivo é a organização autopoiética.
Por isso, um ser vivo permanece vivo enquanto sua
estrutura, sejam quais forem suas mudanças, realiza sua
organização autopoiética, e morre se, em suas
mudanças estruturais, não se conserva esta
organização” (Idem). Novamente aqui uma relação
universal é evocada: “todo sistema se desintegra
quando, em suas mudanças estruturais, não se conserva
sua organização. Assim, por exemplo, um relógio deixa
de ser relógio (perde sua organização de relógio) se

180
uma das mudanças estruturais é a ruptura de sua
corda...” [Em suma:] “o vivo de um ser vivo está
determinado nele, não fora dele” (Idem-idem) (n. i.).
O quinto e último pressuposto se refere à
conservação da adaptação. “Os seres vivos existem sempre
imersos em um meio com o qual interagem. Além
disso, como o viver de um ser vivo transcorre em
contínuas mudanças estruturais – como resultado de
sua própria dinâmica interna ou desencadeadas pelas
suas interações com o meio – um ser vivo conserva sua
organização em um meio somente se sua estrutura e a
estrutura do meio são congruentes e se esta
congruência se conserva. Se não se conserva a
congruência estrutural entre ser vivo e meio, as
interações com o meio desencadeiam no ser vivo
mudanças estruturais que o desintegram e ele morre.
Essa congruência estrutural entre ser vivo e meio (seja
qual for este meio) chama-se adaptação.
Consequentemente, um ser vivo, vive, somente
enquanto conserva sua adaptação ao meio em que
existe, e somente enquanto, ao conservar sua
adaptação, conserva também sua organização”
(Maturana, 1985a: 75). Mais uma vez é evocada aqui
uma relação universal: “todo sistema existe somente na
conservação de sua adaptação e de sua organização, [e
somente] em circunstâncias nas quais a conservação de
uma envolva a conservação da outra” (Idem) (n. i.).
Em suma, “a estrutura presente de um ser vivo é

181
sempre o resultado de uma história na qual suas
mudanças estruturais foram congruentes com as
mudanças estruturais do meio... [Além disso], todo ser
vivo se encontra onde se encontra em seu presente
como resultado dessa história, em uma contínua
transformação de seu presente a partir de seu presente”
(Idem-idem) (n. i.).
Baseado nesses cinco pressupostos – que
definem o que ele entende por abordagem biológica –
Maturana vai então tentar responder, de modo bastante
inovador, a pergunta: „o que é um sistema social?‟
“Cada vez que os membros de um conjunto de
seres vivos constituem, com sua conduta
(comportamento), uma rede de interações que opera
para eles como um meio no qual eles se realizam como
seres vivos e no qual eles, portanto, conservam sua
organização e adaptação e existem numa coderiva
contingente à sua participação na referida rede de
interações, temos um sistema social” (Maturana, 1985a:
76). A definição é surpreendente. Sobretudo porque,
em seguida, ele sustenta que:
a) “a organização descrita acima é necessária e
suficiente para caracterizar um sistema social;
e,
b) um sistema particular, definido por essa
organização, gera todos os fenômenos
próprios de um sistema social em um marco
de conduta (comportamento) especificado

182
pelo tipo de seres vivos que o integram”
(Idem).
Maturana está se referindo aqui apenas a uma
classe de sistemas: “Esta classe... é o resultado
inevitável das interações recorrentes que se dão entre
seres vivos. E cada vez que [tais interações] se dão com
alguma permanência temos esse tipo de sistemas” os
quais ele denomina de “sistemas sociais porquanto os
fenômenos que neles se dão são indistingüíveis, em sua
forma e modo de geração, dos fenômenos que
observamos nos sistemas que chamamos de sistemas
sociais no âmbito humano” (Maturana, 1985a: 76) (n.
i.) (g. a.).
Daí decorrem seis implicações, de aplicabilidade
universal – válidas, portanto, para qualquer tipo de
sistema social:
Um sistema social conserva a vida dos seus membros. “É
constitutivo de um sistema social o fato de que seus
componentes sejam seres vivos...” Um sistema social
só se constitui se estes seres vivos, no processo de
integrá-lo, conservarem nele sua organização e
adaptação. “Por isso, qualquer tentativa de caracterizar
um sistema social de uma maneira que desconheça que
a conservação da vida de seus componentes é condição
constitutiva do seu operar está equivocada e especifica
um sistema que não gera os fenômenos próprios de
um sistema social. Assim, por exemplo, um conjunto
humano que não incorpora a conservação da vida de

183
seus membros como parte de sua definição operatória
como sistema, não constitui um sistema social”
(Maturana, 1985a: 76).
Um sistema social é caracterizado pelo comportamento
dos seus membros. “Cada sistema social particular, quer
dizer, cada sociedade, se distingue pelas características
da rede de interações que realiza. Assim, por exemplo,
uma comunidade religiosa, um clube, uma colmeia de
abelhas, na medida em que são sistemas sociais são
sociedades distintas, porque seus membros realizam
condutas distintas ao integrá-las (os comportamentos
adequados a cada uma delas são diferentes). Para ser
membro de uma sociedade basta realizar as condutas
que definem seus membros” (Maturana, 1985a: 76-7).
Não existem membros supérfluos num sistema social.
“Na medida em que um sistema social é constituído
por seres vivos, são todos e cada um dos seres vivos
que o integram os que de fato o constituem com o
operar de seus propriedades. Portanto... não há
componentes supérfluos em um sistema social; se um
componente se perde, o sistema social muda. Todo
sistema social está exposto à mudança em virtude da
morte de seus componentes. Além disso, como as
propriedades e características de cada ser vivo estão
determinadas por sua estrutura, na medida em que as
estruturas dos seres vivos que integram um sistema
social mudam, mudam igualmente suas propriedades e
o sistema social que geram com suas condutas também

184
muda” (Maturana, 1985a: 77). Maturana considera um
sistema cuja estrutura muda enquanto conserva sua
organização e sua correspondência com o meio, como
um sistema em deriva estrutural. Em geral a deriva é uma
mudança de posição de um sistema que conserva sua
forma e sua correspondência com o meio em que se
produz a mudança.
As propriedades dos membros de um sistema social são
selecionadas pelos próprios membros desse sistema. “Na medida
em que um sistema social é o meio no qual seus
membros se realizam como seres vivos e o meio no
qual conservam sua organização e adaptação, um
sistema social opera necessariamente como seletor da
mudança estrutural de seus componentes e, portanto,
de suas propriedades. Com efeito, na medida em que
são os componentes de um sistema social os que de
fato o constituem e realizam com sua conduta, são os
componentes de um sistema social os que, com sua
conduta, de fato selecionam as propriedades dos
componentes do mesmo sistema social que eles
constituem. Toda sociedade é conservadora de sua
organização como tal e das características dos
componentes que a geram” (Maturana, 1985a: 77).
Um sistema social é mudado por seus membros. “Em
geral, os componentes de um sistema social podem
participar de outras interações, além daquelas em que
necessariamente devem participar ao integrá-lo, quer
dizer, podem participar de interações fora do sistema

185
social que constituem. Mas se, como resultado de tais
interações, a estrutura dos componentes de um sistema
social muda, de modo que sua maneira de integrá-lo
muda sem destruir sua organização, a estrutura do
sistema também muda. Para um observador, este
sistema aparece como o mesmo sistema, porém
constituído como uma rede diferente de condutas. O
mesmo pode ocorrer com a incorporação de novos
membros em um sistema social, com uma história
prévia de interações independente dele” (Maturana,
1985a: 77).
Todo sistema social está em contínua mudança estrutural.
“Ainda que todo sistema social seja constitutivamente
conservador, todo sistema social está também em
contínua mudança estrutural devido: a) a perda de
membros por morte ou migração; b) a incorporação de
novos membros com propriedades, adicionais àquelas
necessárias para sua incorporação, diferentes das de
outros membros; e, c) a mudanças nas propriedades de
seus membros, que surgem de mudanças estruturais
não desencadeadas (selecionadas) por suas interações
dentro do sistema social que integram, em virtude de
interações realizadas fora do sistema ou como
resultado de sua própria dinâmica interna” (Maturana,
1985a: 77-8). Maturana conclui: “o devir histórico de
qualquer sociedade é sempre o resultado destes dois
processos: conservação e variação” (Idem).

186
Evidentemente estamos aqui diante de uma
profunda reconceituação de sistema social que altera,
também profundamente, a nossa compreensão das
sociedades humanas. Das seis proposições acima,
universalmente válidas para qualquer sistema social,
Maturana vai inferir dez teoremas aplicáveis às
sociedades humanas.
Primeiro. A natureza constitutivamente conservadora
dos sistemas sociais. Se os sistemas sociais são
constitutivamente conservadores, então isso também
ocorre no domínio social humano. “Os membros de
qualquer sociedade humana realizam essa sociedade
com sua conduta e, com ela, continuamente
selecionam em seus membros, antigos e novos, essas
mesmas condutas (comportamentos). Assim, por
exemplo, em um clube, as condutas de seus membros
definem o clube, eliminando dele todos aqueles que
não têm condutas apropriadas e confirmando como
membros todos aqueles que as têm, sendo que
condutas apropriadas são aquelas com as quais, eles
mesmos, os membros do clube, definem o clube. O
mesmo ocorre nas famílias, nas comunidades
religiosas... enfim, em qualquer sociedade humana”
(Maturana, 1985a: 78).
Segundo. Os seres humanos podem ser membros de
vários sistemas sociais. Se, no processo de viver, os seres
humanos realizam, em lugar e/ou tempo oportunos, as
condutas próprias de vários sistemas sociais, então eles

187
podem ser membros desses vários sistemas sociais
simultaneamente ou sucessivamente. “Assim, podemos
ser, imbricadamente e sem contradições, membros de
uma família, de uma comunidade religiosa, de um
clube, de uma nação, por meio das distintas dimensões
do nosso viver. Porém se, ao realizar as distintas
condutas próprias de distintos sistemas sociais, não o
fazemos envolvendo de fato nossas vidas, mas apenas
pretendendo fazê-lo, não somos realmente membros
desses sistemas sociais e estaremos apenas imersos em
suas respectivas tramas condutuais (comportamentais)
até que, ao ser descobertos, sejamos expulsos como
hipócritas e parasitas” (Maturana, 1985a: 78).
Terceiro. A linguagem é o mecanismo fundamental de
interação no operar dos sistemas sociais humanos. “A
linguagem, como característica do ser humano, surge
com o humano no suceder social que lhe dá origem...
A conduta primária de coordenação condutual
(comportamental) na ação sobre o mundo, gerada e
aprendida ao longo da vida dos membros de um
sistema social qualquer, como resultado de suas
interações nesse sistema, é descrita como conduta
lingüística por um observador que vê cada elemento
condutual como uma palavra descritora do mundo ao
assinalar objetos do mundo. Mas nesse operar social
primário não há objetos para os membros do sistema
social, pois eles só se movem na coordenação condutual
da ação que tiveram que adquirir (aprender) ao fazer-se

188
membros dele. No domínio social humano, e como
resultado das interações que têm lugar entre os
membros de uma sociedade humana, há linguagem
quando há recursividade lingüística, quer dizer, quando
um observador vê coordenação condutual sobre
coordenação condutual ” (Maturana, 1985a: 79).
Para Maturana o fenômeno da linguagem tem
lugar quando um observador distingue, nas interações
de dois ou mais organismos, coordenações condutuais de
coordenações condutuais consensuais. Quer dizer, a
linguagem surge quando há recursão (recorrência) no
âmbito das coordenações condutuais. Disso se infere que
a linguagem surge e se dá como fenômeno social, e que
as palavras são coordenações de ação, não entes
abstratos ou referências a entes independentes.
É preciso dizer o que Maturana entende por
recursão (traduzido precariamente aqui por
„recorrência‟): a recursão (recorrência) ocorre cada vez
que uma operação se aplica sobre as conseqüências de
sua aplicação. Assim, por exemplo, quando se extrai a
raiz quadrada de um número e, em seguida, se extrai a
raiz quadrada do resultado, há uma recursão
(recorrência). Já que o exemplo fornecido por
Maturana foi matemático, talvez se devesse usar – no
lugar de recursão (ou de recorrência) – o conceito de
„iteração‟ (literalmente, repetição), que designa o
processo pelo qual uma função opera repetidamente
sobre si mesma, o qual tem sido usado na modelagem

189
matemática de processos onde ocorrem laços de
realimentação (de auto-reforço), como parece ser o
caso.
Cada vez que um observador distingue
interações recorrentes (iteradas) entre organismos
como coordenações de ações num meio, o que o
observador distingue são coordenações condutuais. Cada
vez que o observador distingue coordenações condutuais
que surgem como resultado de uma história particular
de interações, o observador distingue coordenações
condutuais consensuais. O termo consensual, portanto,
indica que a forma das coordenações condutuais é
função de uma história particular.
Maturana supõe que a linguagem tenha surgido
evolutivamente em algum momento há mais de três
milhões de anos na história da linhagem humana. “Há
linguagem quando os participantes de um domínio
lingüístico usam palavras (coordenação condutual
primária) ao coordenar suas ações sobre as distintas
circunstâncias que suas coordenações condutuais
primárias configuram – as quais, aparecem, assim, pela
primeira vez, assinaladas como unidades
independentes, isto é, como objetos. Disso resulta, por
um lado, a produção de um mundo de ações e objetos
que só têm existência e significado no domínio social
em que surgem e, por outro lado, a produção da auto-
observação, que nos leva a distinguir como objetos a
nós mesmos e a nossas circunstâncias, na reflexão que

190
constitui a autoconsciência como fenômeno que
também tem existência e sentido somente no domínio
social” (Maturana, 1985a: 79). Para Maturana, portanto,
consciência e eu são fenômenos sociais na linguagem,
quer dizer, consciência e eu são distinções que não têm
sentido fora do social.
Cabe esclarecer, todavia, o que Maturana
entende por objeto. Com o surgimento da linguagem,
surgem os objetos como recursões (iterações) de
coordenações condutuais consensuais nas quais a
recorrência nas coordenações condutuais oculta as
condutas (comportamentos ou ações) consensuais
coordenadas. Na gramática, os objetos aparecem como
substantivos; são distinções estáticas de ações.
Quarto. O papel fundante da cooperação. Se não
houver recorrência de interações cooperativas, então
não pode existir nenhum sistema social. “Para que um
sistema social exista deve ocorrer a recorrência das
interações que resultam na coordenação condutual de
seus membros; quer dizer, deve ocorrer a recorrência
de interações cooperativas. De fato, se há recorrência
de interações cooperativas entre dois ou mais seres
vivos, o resultado pode ser um sistema social, se tal
recorrência de interações passa a ser um mecanismo
mediante o qual estes seres realizam sua autopoiesis. A
recorrência de interações cooperativas é sempre
expressão do operar dos seres vivos participantes em

191
um domínio de acoplamento estrutural recíproco e
durará tanto quanto este dure.
Conosco, os seres humanos, este acoplamento
estrutural recíproco se dá espontaneamente em muitas
circunstâncias diferentes, como expressão de nosso
modo de ser biológico atual, e aparece para um
observador como uma pegajosidade biológica que
pode ser descrita como o prazer da companhia, ou
como amor, em quaisquer de suas formas. Sem esta
pegajosidade biológica, sem o prazer da companhia,
sem amor, não há socialização humana, e toda
sociedade na qual se perde o amor se desintegra. A
conservação dessa pegajosidade biológica, que na sua
origem a-social é o fundamento do social, na minha
opinião foi, na evolução dos homínidas, o fator básico
na demarcação da deriva filogênica humana que
resultou na linguagem e, através dela, na cooperação e não
na competição, na inteligência tipicamente humana”
(Maturana, 1985a: 80) (n. g.).
Quinto. Toda realidade humana é social. Se toda
realidade humana é social, então só somos indivíduos,
pessoas, enquanto somos seres sociais na linguagem.
“Nossa individualidade como seres humanos é social e
ao ser humanamente social é lingüisticamente
lingüistica, quer dizer, está imersa em nosso ser na
linguagem. Isso é constitutivo do humano. Somos
concebidos, crescemos, vivemos e morremos imersos
nas coordenações condutuais que envolvem as palavras e

192
a reflexão lingüística e, por isso, na possibilidade da
autoconsciência e, às vezes, na autoconsciência. Em
suma, existimos como seres humanos somente num
mundo social que, definido por nosso ser na
linguagem, é o meio no qual nos realizamos como
seres vivos e no qual conservamos nossa organização e
adaptação” (Maturana, 1985a: 80).
Sexto. Mudança individual implica mudança social. Se
a conduta individual de seus membros é o que define
um sistema social como uma sociedade particular,
então as características de uma sociedade somente
podem mudar se a conduta (comportamento) de seus
membros muda. Todavia, “as características dos
membros de um sistema social podem mudar de
maneira não conservadora se estes membros têm
interações fora do sistema. Isso ocorre no domínio
humano de duas maneiras: a) concretamente, em
virtude de encontros fora da dinâmica do sistema
social (em viagens, por exemplo); e, b) em virtude da
reflexão na linguagem.
Os encontros fora do sistema social dependem
da mobilidade de seus membros e da abertura destes
membros para admitir tais encontros. A reflexão na
linguagem ocorre cada vez que nossas interações nos
levam a descrever nossas circunstâncias ao desencadear
em nós uma mudança de domínio que define uma
perspectiva de observação. Isso ocorre principalmente
de duas maneiras: a) por falha no fluir de nossos atos

193
em algum domínio de nosso mundo cultural, ao
interromper-se nosso acoplamento estrutural nesse
domínio; e, b) porque o operar no amor (a simpatia, o
afeto, a preferência) nos leva a olhar as circunstâncias
nas quais se encontra o ser ou objeto amado e a valorá-
las a partir desse amor (preferência). A primeira
maneira de passar à reflexão na linguagem não é
necessariamente social; a segunda, o amor, em
quaisquer de suas formas, envolve as fontes mesmas da
socialização humana e, portanto, o fundamento do
humano.
O significativo da reflexão na linguagem é que
ela nos leva a contemplar nosso mundo e o mundo do
outro e a fazer da descrição de nossas circunstâncias e
das circunstâncias do outro parte do meio em que
conservamos identidade e adaptação. A reflexão na
linguagem nos leva a ver o mundo em que vivemos e a
aceitá-lo ou rechaça-lo conscientemente” (Maturana,
1985a: 81).
Sétimo. A busca da estabilidade de um sistema social
humano. “A estabilidade de um sistema social depende
de que não se interfira com seu caráter conservador.
Por isso, em todo sistema social humano a busca da
estabilidade social leva: a) à estabilidade pela
consciência social, ao ampliar as instâncias reflexivas
que permitem a cada membro uma conduta social que
envolva como legítima a presença do outro como um
igual; ou, b) à estabilidade na rigidez condutual, ao

194
limitar, por um lado, os encontros fora do sistema
social e ao reduzir a conversação e a crítica e, por outro
lado, mediante a negação do amor, ao substituir a ética
(a aceitação do outro) pela hierarquia e pela moralidade
(a imposição de normas condutuais), ao institucionalizar
relações contingentes de subordinação humana”
(Maturana, 1985a: 81).
Oitavo. Identidade individual conservada socialmente.
“Em cada sistema social se conserva a identidade da
classe de seres vivos que o integram. Assim, se os
componentes de um sistema social são formigas, a
identidade que se conserva na dinâmica estrutural do
sistema social é a identidade-formiga. Se os seres vivos
componentes de um sistema social são médicos, a
identidade conservada nos seres vivos componentes
desse sistema social durante sua dinâmica estrutural é a
de médico. Por isso, nossa individualidade como seres
humanos envolve a conservação de nossa vida na
conservação de tantas identidades quantas forem as
sociedades a que pertençamos. Por isso mesmo,
podemos deixar de pertencer a um ou outro sistema
social sem necessariamente nos desintegrarmos como
seres humanos” (Maturana, 1985a: 82).
Nono. O amor como emoção fundante das relações
sociais. “Na medida em que o fenômeno social humano
se funda no amor, relações sociais que dependem do
[ou do modo de] ver o outro que o amor envolve,
como as de justiça, respeito, honestidade e

195
colaboração, são próprias do operar de um sistema
social humano como sistema biológico e, portanto,
pertencem ao quefazer humano cotidiano. Por isso, a
negação dessas relações desvirtua o fenômeno social
humano ao negar seus fundamentos (o amor), e toda
sociedade que faz tal coisa se desintegra, mesmo que
seus antigos membros continuem interagindo em
virtude da impossibilidade de se separarem
fisicamente” (Maturana, 1985a: 82) (n. i.).
Décimo. Relações de trabalho não são relações sociais.
“As relações de trabalho são acordos de produção nos
quais o central é o produto, não os seres humanos que
(o) produzem. Por isso, as relações de trabalho não são
relações sociais. Isso é o que justifica a negação do
humano nas relações de trabalho: ser humano em uma
relação de trabalho é uma impertinência. O fato das
relações de trabalho não serem relações sociais é o que
torna possível a substituição dos trabalhadores
humanos por autômatos e o uso humano no
desconhecimento do humano, que os trabalhadores
ignorantes dessa situação vivenciam como exploração”
(Maturana, 1985a: 82).
Os cinco pressupostos, as seis implicações e as
dez conseqüências expostos acima contêm, segundo
Maturana, “o fundamental de tudo o que se pode dizer
sobre a biologia do fenômeno social”. Sobre esse
material, no entanto, ele ainda faz seis reflexões, a guisa

196
de comentários, que esclarecem o conteúdo, um tanto
complexo e obscuro, de suas proposições.
O primeiro comentário é sobre o fato de que “o
ser humano é constitutivamente social. Não existe o
humano fora do social. O genético não determina o humano,
somente funda o humanizável. Para ser humano é preciso
crescer humano entre humanos. Ainda que pareça
óbvio, esquece-se disso ao se esquecer que se é
humano somente da maneira de ser humano das
sociedades a que se pertence. Se pertencemos a
sociedades que validam, com a conduta quotidiana de
seus membros, o respeito aos mais velhos, a
honestidade consigo mesmo, a seriedade na ação e a
veracidade no falar, esse será nosso modo de ser
humanos e de nossos filhos. Pelo contrário, se
pertencemos a uma sociedade cujos membros validam,
com sua conduta quotidiana, a hipocrisia, o abuso, a
mentira e o auto-engano, esse será nosso modo de ser
humanos e de nossos filhos (Maturana, 1985a: 82) (n.
g.).
O segundo comentário é sobre o caráter
conservador de todo sistema social, em virtude do qual
“toda inovação social encontra, ao menos inicialmente,
resistência e, às vezes, de maneira extrema. Por isso,
uma inovação social se impõe somente por sedução ou
porque novos membros não possam evitar crescer
nela. Por último, como toda sociedade se realiza na
conduta dos indivíduos que a compõem, há mudança

197
social genuína em uma sociedade somente se há uma
mudança condutual genuína de seus membros. Toda
mudança social é uma mudança cultural” (Maturana,
1985a: 83).
O terceiro comentário é sobre o amor. “Todo
sistema social humano se funda no amor, em quaisquer
de seus formas, que une seus membros; e o amor é a
abertura de um espaço de existência para o outro como
ser humano junto a si. Se não há amor não há
socialização genuína e os seres humanos se separam.
Uma sociedade na qual o amor entre seus membros
acaba, se desintegra. Somente a coerção de um ou
outro tipo, quer dizer, o risco de perder a vida, pode
obrigar um ser humano, que não é um parasita, a
sujeitar-se a hipocrisia de conduzir-se como membro
de um sistema social sem amor. Ser social envolve
sempre ir com o outro, e só se vai livremente com
quem se ama” (Maturana, 1985a: 83).
O quarto comentário é sobre a cooperação e a
competição. “A conduta social está fundada na
cooperação, não na competição. A competição é
constitutivamente anti-social, porque, como fenômeno,
consiste na negação do outro. Não existe a
“competição saudável”, porque a negação do outro
implica a negação de si mesmo ao pretender que se
valida o que se nega. A competição é contrária à
seriedade na ação, pois o que compete não vive no que

198
faz, antes se aliena na negação do outro” (Maturana,
1985a: 83).
O quinto comentário é sobre a linguagem. “O
central do fenômeno social humano é que este
fenômeno se dá na linguagem e o central da linguagem
é que somente nela se dão a reflexão e a
autoconsciência. A linguagem, em um sentido
antropológico é, portanto, a origem do humano
propriamente dito, ao invés de sua queda e libertação.
A linguagem tira a biologia humana do âmbito da pura
estrutura material, e a inclui no âmbito da estrutura
conceitual, ao fazer possível um mundo de descrições
no qual o ser humano deve conservar sua organização
e adaptação. Assim, a linguagem confere ao ser
humano sua dimensão espiritual na reflexão, tanto da
autoconsciência quanto da consciência do outro”
(Maturana, 1985a: 83).
O sexto e último comentário é ainda sobre a
linguagem. “Porém a linguagem é também a queda do
ser humano, ao permitir as cegueiras frente ao ser
biológico que trazem consigo as ideologias
[prescritivas, ou] descritivas do que deve ser. Quem
não teve a experiência de dilaceramento interno ao
negar-se a compartilhar ou a ajudar a quem necessita
de ajuda? O fato de que, cada vez que nos negamos a
ajudar ou a compartilhar, recorramos a uma explicação
para justificar nossa recusa, prova, por um lado, que
toda recusa a ajudar ou compartilhar violenta nosso ser

199
biológico básico e, por outro, que nossas ideologias
justificativas nos cegam frente a nós mesmo e aos
demais” (Maturana, 1985a: 84) (n. i.).
Feitas essas reflexões, a conclusão de Humberto
Maturana é a seguinte: “Tudo o que foi dito mostra
que não existe, biologicamente falando, contradição
entre o social e o individual. Ao contrário, o social e o
individual são, de fato, inseparáveis. A contradição que
a humanidade vive neste domínio é de origem cultural”
(Maturana, 1985a: 84). Para Maturana existe tal
contradição cultural em virtude de duas razões
principais: a justificação ideológica da competição pela
sobrevivência, que se deve à sobrecarga ecológica
geradora de escassez (ou de previsível ameaça de
escassez) de recursos de subsistência para todos; e “a
exclusão, que toda sociedade faz, dos que não
satisfazem as condições de pertencimento que a
definem, e que justificamos ideologicamente apesar de
sabermos, por íntima reflexão, que todos os seres
humanos, como tais, somos iguais” (Idem). De sorte
que “os problemas sociais são sempre problemas
culturais, porque têm a ver com os mundos que
construímos na convivência” (Idem-idem: 85).

200
6.2 – O ‘linguagear’, o ‘emocionar’ e o
‘conversar’: três idéias fulcrais na teoria de
Maturana
No quadro do arcabouço teórico apresentado
acima, concluído em meados dos anos oitenta,
Humberto Maturana vai desenvolver, até o final da
mesma década, as idéias fulcrais com as quais, ao meu
ver, pode-se construir uma teoria da cooperação capaz
de servir de base para uma teoria do Capital Social.
Essas idéias fulcrais são três: a) o linguagear; b) o
emocionar; e c) o conversar.
Comecemos com um resumo no qual Maturana
estabelece relações entre estas três idéias, examinando,
em primeiro lugar, como ele trata as relações entre a
linguagem e o conversar. “Estamos acostumados a
considerar a linguagem como um sistema de
comunicação simbólica, no qual os símbolos são
entidades abstratas que permitem movermo-nos num
espaço de discursos, flutuante sobre a concreção do
viver ainda que o representem. Eu sustento que tal
visão surge de uma falta de compreensão da linguagem
como fenômeno biológico. Com efeito, a linguagem,
como fenômeno que nos envolve como seres vivos e,
portanto, como um fenômeno biológico que se origina
em nossa história evolutiva, consiste em um operar
recorrente, em coordenações de coordenações
condutuais consensuais. Disso resulta que as palavras são
nodos de redes de coordenação de ações, não

201
representantes abstratos de uma realidade
independente de nosso quefazer. É por isso que as
palavras não são inócuas e não dá no mesmo que
usemos uma ou outra numa situação determinada. As
palavras que usamos não revelam apenas nosso pensar
mas projetam o curso do nosso quefazer. Ocorre que o
domínio em que se dão as ações que as palavras
coordenam não é sempre aparente em um discurso e
há que esperar a sucessão do viver para sabê-lo. Porém
não é isso que quero destacar e sim o fato de que o
conteúdo do conversar em uma comunidade não é
inócuo para essa comunidade porque arrasta o seu
quefazer... Os seres humanos, somos o que
conversamos: esse é o modo como a cultura e a
história se encarnam em nosso presente. [Por exemplo]
o conversar as conversações que constituem a
democracia é o que constitui a democracia. De fato,
nossa única possibilidade de viver o mundo que
queremos viver é imergindo nas conversações que o
constituem como uma prática social quotidiana...”
(Maturana, 1988f: 105-6) (n. i.).
Em segundo lugar, vejamos como Maturana
trata as relações entre as emoções e o conversar.
“Vivemos uma cultura que desvalorizou as emoções
em função de uma supervalorização da razão, num
desejo de dizer que nós, os humanos, nos
diferenciamos dos outros animais porque somos seres
racionais. Porém o fato é que somos mamíferos e,

202
como tais, somos animais que vivem na emoção. As
emoções não são obscurecimentos do entendimento,
não são restrições à razão; as emoções são dinâmicas
corporais que especificam domínios de ação nos quais nos
movemos. Uma mudança de emoção implica uma
mudança de domínio de ação. Nada acontece conosco,
nada fazemos que não esteja definido como uma ação
de uma certa classe acompanhada de uma emoção que
a torna possível... [“Se queremos entender as ações
humanas não devemos olhar o movimento ou o ato
como uma operação particular, mas sim a emoção que
o possibilita. Um choque entre duas pessoas será
vivido como agressão ou acidente, segundo a emoção
na qual se encontram os participantes. Não é o
encontro o que define o que ocorre, mas a emoção que
o constitui como um ato.”] Disso resulta que o viver
humano se dá em um contínuo entrelaçamento de
emoções e linguagem, como um fluir de coordenações
consensuais de ações e emoções. Eu denomino
conversar este entrelaçamento de emoção e linguagem.
Os seres humanos vivemos em distintas redes de conversações que
se entrecruzam em sua realização em nossa
individualidade corporal. (Maturana, 1988f: 107) (n. i.)
(g. a + n. g.).
Vamos examinar, agora em separado, os três
conceitos.
O linguagear. Linguagear é um neologismo que faz
referência ao ato de estar na linguagem, sem associar

203
tal ato à fala, como ocorre quando empregamos a
palavra „falar‟. “A linguagem, como fenômeno
biológico, consiste em um fluir em interações
recorrentes que constituem um sistema de
coordenações condutuais (comportamentais)
consensuais de coordenações condutuais consensuais.
Disso resulta que a linguagem, como processo, não
tem lugar no corpo (sistema nervoso) dos
participantes, mas no espaço de coordenações
condutuais consensuais que se constitui no fluir de seus
encontros corporais recorrentes.
Nenhuma conduta, nenhum gesto ou postura
corporal particular, constitui, por si só, um elemento da
linguagem – mas só é parte dela na medida em que
pertence a um fluir recorrente de coordenações
condutuais consensuais. Assim, palavras são somente
aqueles gestos, sons, condutas ou posturas corporais,
que participam como elementos consensuais no fluir
recorrente de coordenações condutuais consensuais que
constitui a linguagem. As palavras são, portanto, nodos
de coordenações condutuais consensuais; por isso, o que
um observador faz ao conferir significado aos gestos,
sons, condutas ou posturas corporais, que ele ou ela
distingue como sendo palavras, é conotar ou referir-se
às relações de coordenações condutuais consensuais nas
quais vê que tais gestos, sons, condutas ou posturas
corporais, participam.

204
Nestas circunstâncias, o que um observador vê
como conteúdo de um linguagear particular está no
curso que seguem as coordenações condutuais
consensuais que tal linguagem envolve, em relação
com o momento na história de interações no qual elas
têm lugar, e que, por sua vez, é função do curso que
seguem essas mesmas coordenações condutuais no
momento de realizar-se. Ao mesmo tempo, como nos
encontros corporais os participantes na linguagem
desencadeiam, um sobre o outro, mudanças estruturais
que modulam suas respectivas dinâmicas estruturais,
estas mudanças estruturais seguem cursos contingentes
ao curso que seguem as interações recorrentes dos
participantes no linguagear... Em suma: o que fazemos
em nosso linguagear tem conseqüências em nossa
dinâmica corporal e o que acontece em nossa dinâmica
corporal tem conseqüências em nosso linguagear
(Maturana, 1988a: 88).
O emocionar. Maturana sustenta que “o que
distinguimos como emoções, o que conotamos com a
palavra emoções, são disposições corporais que
especificam, em cada instante, o domínio de ações em
que se encontra um animal (humano ou não), e que o
emocionar, como um fluir de uma emoção para outra,
é um fluir de um domínio de ações para outro. A
barata que cruza lentamente a cozinha e começa a
correr precipitadamente para um lugar escuro quando
entramos, acendendo a luz e fazendo barulho, teve

205
uma mudança emocional, e no seu fluir emocional
passou de um domínio de ações para outro. De fato,
reconhecemos isso também na vida quotidiana ao dizer
que a barata passou da tranqüilidade ao medo. Neste
caso, ao usar os mesmos termos que usamos para
referirmo-nos ao emocionar humano, não fazemos
uma antropomorfização do que se passa com a barata,
senão que reconhecemos que o emocionar é um
aspecto fundamental do operar animal que nós
também exibimos.
Dizer que o emocional tem a ver com o animal
que há em nós não é, certamente, uma novidade; o que
eu agrego, entretanto, é que a existência humana se
realiza na linguagem e no racional, a partir do
emocional. Com efeito, ao propor que se reconheça
que as emoções são disposições corporais que
especificam domínios de ações, e que as distintas
emoções se distinguem precisamente porque
especificam distintos domínios de ações, proponho
que se reconheça que, por esse motivo, todas as ações
humanas, seja qual for o espaço operacional em que
ocorram, fundam-se no emocional porque ocorrem
num espaço de ações especificado a partir de uma
emoção” (Maturana, 1988a: 90).
Maturana vai então mostrar que “o mesmo
ocorre com o raciocinar. Todo sistema racional e, com
efeito, todo raciocinar, se dá como um operar nas
coerências da linguagem a partir de um conjunto

206
primário de coordenações de ações tomado como
coleção de premissas fundamentais aceitas ou adotadas,
explícita ou implicitamente, a priori. Porém ocorre que
todo aceitar a priori se dá a partir de um domínio
emocional particular no qual queremos o que
aceitamos, e aceitamos o que queremos, sem outro
fundamento senão o nosso desejo, que se constitui e se
expressa em nosso aceitar. Em outras palavras, todo
sistema racional tem fundamento emocional, e é por
isso que nenhum argumento racional pode convencer
ninguém que não esteja, já de partida, convencido a
aceitar as premissas a priori que o constituem
(Maturana, 1988a: 90).
É fundamental compreender, que “não é a razão
que nos leva à ação e sim a emoção. Cada vez que
escutamos alguém dizendo que fulano ou sicrana é
racional e não emocional, podemos escutar o substrato
de emoção que está por trás dessa afirmação, em
termos de um desejo de ser ou de obter. Cada vez que
afirmamos ter uma dificuldade no fazer, de fato temos
uma dificuldade no querer que fica oculta pela
argumentação sobre o fazer. Falamos como se fosse
óbvio que certas coisas devessem ocorrer em nossa
convivência com os outros, porém não as queremos e
é por isso que não ocorrem. Ou dizemos que
queremos uma coisa, porém não a queremos e
queremos outra, e fazemos, via de regra, o que
queremos, dizendo que não se pode fazer aquilo [que

207
dizemos que queremos mas não queremos]. Há certa
sabedoria consuetudinária tradicional quando se diz:
“pelos seus atos os conhecereis”. Porém, o que é que
conheceremos observando as ações de outrem?
Conheceremos suas emoções como fundamentos que
constituem suas ações; não conheceremos o que
poderíamos chamar de seus sentimentos, senão o
espaço de existência efetiva no qual esse ser humano se
move” (Maturana, 1988c: 23-4) (n. i.).
Essa distinção entre emoção e sentimento é
fundamental na teoria de Maturana, que é – não se
deve esquecer – uma teoria biológica do fenômeno
social. E, para ele, a emoção é biológica, não
psicológica como o sentimento.
O conversar. “O menino (ou a menina), em sua
concepção, vive imerso no linguagear e no emocionar da
mãe e de outros adultos e crianças que formam o seu
entorno de convivência durante a gravidez e depois do
nascimento. O resultado é que, como embrião, feto,
criança ou adulto, o ser humano adquire seu emocionar
em seu viver congruente com o emocionar dos outros
seres, humanos ou não, com os quais convive.
Habitualmente diríamos que o menino (ou a
menina) aprende a emocionar-se, de uma ou de outra
maneira, como ser humano, com o emocionar-se dos
adultos e crianças (e outros animais) que formam seu
entorno humano e não humano; ele (ou ela) se
alegrará, se enternecerá, se envergonhará, se

208
aborrecerá..., seguindo as contingências das
circunstâncias em que estes [outros seres do seu
entorno] se alegram, se enternecem, se envergonham,
se aborrecem... etc. Como este processo se dá em cada
novo ser humano, junto com a constituição e expansão
dos domínios de coordenações condutuais consensuais
em que participa... linguagear e emocionar se entrelaçam
em um modular-se mútuo como simples resultado da
convivência com outros [seres humanos]... Ao
movermo-nos na linguagem em interações com outros
[seres humanos], nossas emoções mudam segundo um
emocionar que é função da história de interações que
vivemos, e na qual surgiu nosso emocionar como um
aspecto de nossa convivência com outros [seres
humanos], fora e dentro do linguagear. Ao mesmo
tempo, ao fluir nosso emocionar em um curso que
resultou de nossa história de convivência dentro e fora
da linguagem, mudamos de domínio de ações e,
portanto, muda o curso de nosso linguagear e de nosso
raciocinar. A este fluir entrelaçado de linguagear e
emocionar chamo conversar, e chamo de conversação ao
fluir do conversar em uma rede particular de linguagear
e emocionar” (Maturana, 1988a: 92) (n. i.) (g. a. + n.
g.).

209
6.3 – Um novo olhar sobre a evolução
humana
Há aqui um outro olhar teórico sobre o
processo evolutivo, desenvolvido a partir do que
Humberto Maturana (e Jorge Mpodozis) chamaram de
„fenótipo ontogênico‟.
“O humano surge, na história evolutiva da
linhagem hominídea a que partencemos, ao surgir a
linguagem. No âmbito biológico uma espécie é uma
linhagem, ou sistema de linhagens, constituída como
tal ao conservar, de maneira transgeracional na história
reprodutiva de uma série de organismos, um modo de
viver particular. Dado que todo ser vivo existe como
um sistema dinâmico em contínua mudança estrutural,
o modo de viver que define uma espécie, uma
linhagem ou um sistema de linhagens, ocorre como
uma configuração dinâmica de relações entre o ser vivo
e o meio que se estende em sua ontogenia, desde a
concepção até a morte. A tal modo de viver, ou
configuração dinâmica de relações ontogênicas entre
ser vivo e meio, que, ao conservar-se
transgeracionalmente em uma sucessão reprodutiva de
organismos, constitui e define a indentidade de um
sistema de linhagens, Jorge Mpodozis e eu chamamos
fenótipo ontogênico. O fenótipo ontogênico não está
determinado geneticamente, pois, como modo de viver
que se desenvolve na ontogenia ou história individual
de cada organismo, é um fenótipo, e como tal ocorre

210
nessa história individual necessariamente como um
presente que é gerado em cada instante em um
processo epigenético.
O que a constituição genética de um organismo
determina no momento de sua concepção é um âmbito
de ontogenias possíveis, das quais sua história de
interações com o meio realizará uma, em um processo
de epigênesis. Devido a isso, ao constituir-se um
sistema de linhagens, o genótipo, ou constituição
genética dos organismos que o constituem, fica solto e
pode variar, desde que tais variações não interfiram na
conservação do fenótipo ontogênico que define o
sistema de linhagens. Por isso mesmo, se em um
momento da história reprodutiva que constitui uma
linhagem, muda o fenótipo ontogênico que se
conserva, dali para frente muda a identidade da
linhagem ou surge uma nova linhagem como uma nova
forma ou espécie de organismos paralela a anterior.
Nessas circunstâncias, para compreender o que
ocorre na história da mudança evolutiva de qualquer
classe de organismos, é necessário encontrar o
fenótipo ontogênico que nela se conserva e em torno
do qual se produzem tais mudanças. Assim, para
compreender a história evolutiva que dá origem ao
humano, é necessário, primeiro, olhar o modo de vida
que, ao conservar-se no sistema de linhagens
hominídeo, torna possível a origem da linguagem e,
depois, olhar o novo modo de vida que surge com a

211
linguagem, o qual, ao conservar-se, estabelece a
linhagem particular a que nós, os seres humanos
modernos, pertencemos” (Maturana, 1988b: 103-4).
Desta visão, Maturana vai destacar quatro
aspectos:
“a) A origem da linguagem, como um domínio
de coordenações condutuais consensuais, exige uma
história de encontros recorrentes, baseados na
aceitação mútua, suficientemente intensa e prolongada;
b) O que sabemos de nossos ancestrais, que
viveram na África há três e meio milhões de anos,
indica que tinham um modo de viver – em pequenos
grupos formados por alguns poucos adultos, jovens e
crianças – centrado na coleta, no compartilhamento
dos alimentos, na colaboração entre machos e fêmeas
na criação dos filhos, numa convivência sensual e
numa sexualidade de encontro frontal;
c) O modo de vida indicado em b), o qual ainda
conservamos no fundamental, oferece tudo o que é
exigido: primeiro, para a origem da linguagem;
segundo, para que, no sugimento da linguagem, se
constitua o conversar como entrecruzamento do
linguagear e do emocionar; e, terceiro, para que, com a
inclusão do conversar como outro elemento a ser
conservado no modo de viver hominídeo, se constitua
o fenótipo ontogênico particular que define o sistema
de linhagens a que nós, seres humanos modernos,
pertencemos;

212
d) O fato de que os chimpanzés e os gorilas
atuais, cujo cérebro tem dimensões comparáveis as de
nossos ancestrais, possam ser incorporados na
linguagem mediante a convivência com eles [dos
humanos com eles!] em AMESLAN (American Sign
Language), sugere que o cérebro de nossos ancestrais de
três milhões de anos atrás deve também ter sido
adequado para isso” (Maturana, 1988b: 104-5) (n. i.).
“O que diferencia a linhagem hominídea de
outras linhagens de primatas é um modo de vida no
qual o compartilhar alimentos – com tudo o que isso
implica em termos de proximidade, aceitação mútua e
coordenações de ações operadas nos atos de passar
coisas de uns para outros – joga um papel central. É o
modo de vida hominídeo o que torna possível a
linguagem, e é o amor, como a emoção que constitui o
espaço de ações nos quais se dá o modo de viver
hominídeo, a emoção central na história evolutiva que
nos dá origem” (Maturana, 1988b: 105).
Ora, prossegue Maturana, “o modo de viver
propriamente humano se constitui, como já disse,
quando se agrega o conversar ao modo de viver
hominídeo e começa a conservar-se o entrecruzamento
do linguagear com o emocionar como parte do fenótipo
ontogênico que nos define. Ao surgir o modo de vida
propriamente humano, o conversar como ação
pertence ao âmbito emocional no qual surge a
linguagem como modo de estar nas coordenações de

213
ações que ocorrem na intimidade da convivência
sensual e sexual” (Maturana, 1988b: 105). Sinais de que
isso é assim aparecem: a) nas imagens táteis que
usamos para referirmo-nos ao que sentimos nas vozes
da fala: dizemos que uma voz pode ser suave,
acariciante ou dura; b) nas mudanças fisiológicas,
hormonais, por exemplo, desencadeadas com a fala; e,
c) no prazer que temos em conversar e em nos
movermos no linguagear” (Idem).

6.4 – O que funda o humano


Para concluir (dizendo quase tudo de novo,
porém de maneira mais compreensível) vejamos como
Maturana, a partir dessas três idéias fulcrais – o
linguagear, o emocionar e o conversar – define o que
funda o humano.
“Em geral pensamos no humano, no ser
humano, como um ser racional, e freqüentemente
declaramos em nosso discurso que o que distingue o
ser humano dos outros animais é o seu ser racional...
Ao nos declararmos seres racionais vivemos uma
cultura que desvaloriza as emoções, não vemos o
entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção que
constitui nosso viver humano e não nos damos conta
de que todo sistema racional tem um fundamento
emocional. As emoções não são o que correntemente chamamos
de sentimentos. Do ponto de vista biológico o que conotamos

214
quando falamos de emoções são disposições corporais dinâmicas
que definem os distintos domínios de ação em que nos movemos.
Quando alguém muda de emoção, muda de domínio
de ação. Na verdade, todos nós sabemos disso na
praxis da vida quotidiana, porém o negamos, porque
insistimos em dizer que o que define nossas condutas
como humanas é seu ser racional. Ao mesmo tempo,
todos sabemos que quando estamos em uma certa
emoção existem coisas que podemos fazer e coisas que
não podemos fazer, e aceitamos como válidos certos
argumentos que não aceitaríamos sob outra emoção...
Todo sistema racional se constitui no operar com
premissas aceitas a priori a partir de certa emoção.
Biologicamente, as emoções são disposições
corporais que determinam ou especificam domínios de
ações... são um fenômeno próprio do reino animal.
Todos os animais as temos... Falamos como se o
racional tivesse um fundamento transcendental que lhe
dá validade universal independentemente do que
fazemos como seres vivos. Não é assim. Todo sistema
racional se funda em premissas fundamentais aceitas a
priori, aceitas por que sim, aceitas porque alguém gosta
delas, aceitas porque alguém, simplesmente, as aceita a
partir de suas preferências... Todo argumento sem erro
lógico é, obviamente, racional para aquele que aceita as
premissas fundamentais nas quais este argumento se
funda. O humano se constitui no entrelaçamento do
emocional com o racional. O racional é constituído

215
pelas coerências operacionais dos sistemas
argumentativos que construímos na linguagem para
defender ou justificar nossas ações. Habitualmente
vivemos nossos argumentos racionais sem fazer
referência às emoções em que se fundam, porque não
sabemos que eles e todas nossas ações têm um
fundamento emocional, e cremos que tal condição
seria uma limitação ao nosso ser racional” (Maturana,
1988c: 14-19) (n. g.).
Para explicar “porque o fundamento emocional
de nossa razão não é uma limitação... [Maturana vai ter
que fazer referência] à origem do humano e à origem
da linguagem. Para dar conta da origem do humano
temos que começar fazendo referência ao que ocorria
há três e meio milhões de anos. Sabemos, por registros
fósseis, que há três e meio milhões de anos havia
primatas bípedes, os quais, como nós, possuíam
ombros e caminhar ereto, porém tinham um cérebro
muito menor (aproximadamente um terço do cérebro
humano atual). Sabemos também que estes primatas
viviam em grupos pequenos, famílias ampliadas de dez
a doze indivíduos que incluíam bebês, crianças e
adultos. Examinando sua dentadura sabemos que eram
animais comedores de grãos, portanto, coletores e,
presumivelmente, caçadores apenas ocasionais. Tudo
isso indica que esses nossos antecessores
compartilhavam entre si os alimentos e estavam
imersos em uma sensualidade recorrente, com machos

216
que participavam da criação dos filhos, desenvolvendo
um modo de vida que funda uma linhagem que chega
até o presente. Durante a trajetória desta linhagem o
cérebro cresceu de 430cc a 1450 ou 1500 cc”
(Maturana, 1988c: 19) (n. i.).
Após tal introdução, Maturana vai tentar
responder a pergunta que aqui parece ser central: como
surgiu o humano propriamente dito nesse processo e
qual a relação entre isso e o crescimento do cérebro?
“Diz-se, freqüentemente, que a história da
transformação do cérebro humano tem a ver com o
uso de instrumentos, principalmente com o
desenvolvimento da mão em sua fabricação. Não
compartilho desta opinião, pois a mão já estava
desenvolvida nesses nossos antecessores. Me parece
mais factível que a destreza e sensibilidade manual que
nos caracteriza tenha surgido na arte de descascar as
pequenas sementes das gramínias da savana, e na
participação da mão na carícia em virtude da sua
capacidade de amoldar-se a qualquer superfície do
corpo de maneira suave e sensual. Sustento, outrossim,
que a história do cérebro humano está relacionada
principalmente com a linguagem. Quando um gato
brinca com uma bola usa as mesmas coordenações
musculares que nós... O macaco [é capaz de pegar algo
que lhe cai das mãos] com a mesma ou com maior
elegância do que nós, ainda que sua mão não possa se
abrir totalmente como a nossa. O peculiar do humano

217
não está na manipulação mas na linguagem e no seu
entrelaçamento com o emocionar” (Maturana, 1988c:
20) (n. i.).
Surge porém uma outra pergunta: “se a
humanização do cérebro primata tem a ver com a
linguagem, com o que tem a ver a origem da
linguagem? Habitualmente dizemos que a linguagem é
um sistema simbólico de comunicação. Eu sustento
que tal afirmação nos impede ver que os símbolos são
secundários na linguagem. Se vocês estivessem
olhando pela janela duas pessoas sem ouvir os sons
que emitem, o que deveriam observar para concluir
que elas estão conversando? Quando se pode dizer que
alguém está na [ou imerso no processo de] linguagem?
A resposta é simples e todos a sabemos: alguém diz
que duas pessoas estão conversando quando vê que o
curso de suas interações constitui-se em um fluir de
coordenações de ações. Se vocês não vêem
coordenações de ações ou, segundo o jargão moderno,
se vocês não vêem comunicação, nunca falarão de
linguagem. A linguagem tem a ver com coordenações
de ações: não com qualquer coordenação de ação mas
com coordenações de ações consensuais. Ademais, a
linguagem é um operar em coordenações consensuais
de coordenações de ações consensuais” (Maturana,
1988c: 20) (n. i.).
Ora, para Maturana, “o que define uma espécie...
[não é uma configuração genética que se conserva

218
através da história reprodutiva de uma população ou
de um sistema de populações, mas] é um modo de
vida, uma configuração de relações mutantes entre
organismo e meio que começa com a concepção do
organismo e termina com sua morte, e que se conserva
geração após geração como um fenótipo ontogênico,
como um modo de viver em um meio, e não como
uma configuração genética particular. A mudança
evolutiva se produz, segundo tal ponto de vista,
quando se constitui uma nova linhagem ao mudar o
modo de vida que se conserva em uma sucessão
reprodutiva [e não em virtude da mudança na
configuração genética conservada por uma população
ou sistema de populações]. Por isso, na medida em que
a mudança evolutiva se dá através da conservação de
novos fenótipos ontogênicos, o central no fenômeno
evolutivo está na mudança do modo de vida e em sua conservação
na constituição de uma linhagem de organismos congruentes com
sua circunstância e não em contradição com esta última
(Maturana, 1988c: 20) (n. i.) (n. g.).
O humano foi, portanto, fundado por um novo
modo de vida que surgiu com o linguagear, a partir “das
coordenações condutuais de compartilhar alimentos,
passando de uns para outros no espaço de interações
recorrentes da sensualidade personalizada, que trazem
consigo o encontro sexual frontal e a participação dos
machos na criação dos filhos, já presente em nossos
ancestrais há três e meio milhões de anos. Em outras

219
palavras, digo que é na conservação de um modo de
vida onde o compartilhar alimentos, no prazer da
convivência, do encontro e do reencontro sensual
recorrente, no qual os machos e as fêmeas se
encontram na convivência em torno da criação dos
filhos, onde pôde dar-se – e de fato se deu – o modo
de vida em coordenações consensuais de coordenações
de ações consensuais que constituem a linguagem.
Enfim, penso também que o modo de vida no qual as
coordenações condutuais consensuais de coordenações
condutuais consensuais surgem na intimidade da
convivência, na sensualidade e no compartilhar, dando
origem a linguagem, pertence à história da nossa
linhagem há pelo menos três milhões de anos. E digo
isto levando em consideração o grau de envolvimento
anatômico e funcional que nosso cérebro tem com a
linguagem oral” (Maturana, 1988c: 22).
Um resumo do resumo seria o seguinte:
a) “O humano surge, na história evolutiva a que
pertencemos, ao surgir a linguagem,
b) porém se constitui de fato, como tal, na
conservação de um modo de viver particular
centrado:
b1) no compartilhamento dos alimentos,
b2) na colaboração de machos e fêmeas
na criação dos filhos,
b3) no encontro sensual individualizado
recorrente,

220
b4) e no conversar.
c) Por isso, todo quefazer humano se dá na
linguagem,
d) e o que, no viver dos seres humanos, não se
dá na linguagem, não é quefazer humano;
e) ao mesmo tempo, como todo quefazer
humano se dá a partir de uma emoção, nada
humano ocorre fora do entrelaçamento do
linguagear com o emocionar
f) e, portanto, o humano se vive sempre em um
conversar.
g) Finalmente, o emocionar, em cuja
conservação se constitui o humano ao surgir a
linguagem, centra-se:
g1) no prazer da convivência,
g2) na aceitação do outro junto a si,
g3) quer dizer, no amor, que é a emoção
que constitui o espaço de ações no qual
aceitamos o outro na proximidade da
convivência.
O fato de que amor seja a emoção que funda, na
origem do humano, o gozo do conversar que nos
caracteriza, faz com que tanto nosso bem-estar quanto
nosso sofrimento dependam de nosso conversar”
(Maturana, 1988a: 94-5).

221
6.5 – Redes de conversações
Para Maturana, todo quefazer humano se dá em
algum tipo de conversação. Esta afirmativa tem
conseqüências importantes para uma teoria biológica
do fenômeno social, dentre as quais vale destacar a
existência das chamadas „redes de conversações‟.
“Dizer que todo quefazer humano se dá no
conversar é dizer que todo quefazer humano, seja qual
for o domínio de experiência no qual tenha lugar –
desde o domínio que constitui o espaço físico até o que
constitui o espaço místico – se dá como um fluir de
coordenações condutuais consensuais de coordenações
condutuais consensuais, em um entrelaçamento
consensual com um fluir emocional que também pode
ser consensual. Por isso, os distintos quefazeres
humanos se distinguem tanto pelo domínio de
experiência em que têm lugar as ações que os
constituem, como pelo fluir emocional que envolvem,
e de fato se dão na convivência como distintas redes de
conversações (Maturana, 1988a: 95). Mas “existem
tantos tipos de conversações quantos são os modos
recorrentes de fluir no entrelaçamento do emocionar e
do linguagear que se dão nos distintos aspectos da vida
quotidiana... As conversações, portanto, envolvem um
emocionar consensual entrelaçado com o linguagear no
qual comparecem classes de emoções não presentes no
emocionar mamífero fora da recorrência das

222
coordenações condutuais consensuais do linguagear”
(Idem).
Maturana destaca, como alguns desses tipos de
conversações, a cultura e os sistemas de convivência.
“Uma cultura é uma rede de conversações que definem
um modo de viver, um modo de estar orientado no
existir, tanto no âmbito humano quanto não humano,
e envolve um modo de atuar, um modo de emocionar
e um modo de crescer no atuar e no emocionar.
Cresce-se numa cultura vivendo nela como um tipo
particular de ser humano na rede de conversações que
a define. Por isso, os membros de uma cultura vivem a
rede de conversações que a constituem, sem esforço,
como um substrato natural e espontâneo, como algo
dado para alguém apenas em virtude do seu modo de
ser, independente dos sistemas sociais e não sociais a
que possa pertencer” (Maturana, 1988a: 96-7).
Por sua vez, “os distintos sistemas de
convivência que constituímos na vida quotidiana se
diferenciam pela emoção que especifica o espaço
básico de ações nas quais se dão nossas relações com
os outros e com nós mesmos. Assim, temos:
i) Sistemas sociais, que são sistemas de convivência
constituídos sob a emoção do amor, que é a
emoção que constitui o espaço de ações de
aceitação do outro na convivência. Nesse
sentido, sistemas de convivência fundados em

223
uma emoção distinta do amor não são sistemas
sociais;
ii) Sistemas de trabalho, que são sistemas de
convivência constituídos sob a emoção do
compromisso, que é a emoção que constitui o
espaço de ações de aceitação de um acordo para
a realização de uma tarefa. Nesse sentido, os
sistemas de relações de trabalho não são
sistemas sociais;
iii) Sistemas hierárquicos ou de poder, que são
sistemas de convivência constituídos sob a
emoção que constitui as ações de auto-negação e
de negação do outro, na aceitação da própria
subordinação ou da sujeição do outro, numa
dinâmica de ordem e obediência. Nesse sentido,
os sistemas hierárquicos não são sistemas
sociais.
Existem, naturalmente, outros sistemas de
convivência, fundados em outras emoções, porém o
que nos interessa destacar agora é o fato de que cada
um desses sistemas se constitui como uma rede
particular de conversações que configuram um modo
particular de emocionar a partir de uma emoção
definidora básica (Maturana, 1988a: 97).

224
6.6 – O que funda o social
Estabelecido o que funda o humano, Maturana
vai tentar estabelecer o que funda o social.
“A emoção fundamental que torna possível a
história de hominização é o amor. Sei que pode parecer
chocante o que digo, porém insisto: é o amor. Não
estou falando do ponto de vista do cristianismo. Se
vocês me perdoam, direi que, desgraçadamente, a
palavra amor foi desvirtuada, a emoção que esta
palavra conota foi desvitalizada, de tanto se dizer que o
amor é algo especial e difícil. O amor é constitutivo da
vida humana, porém não é nada especial. O amor é o
fundamento do social, porém nem toda convivência é
social. O amor é a emoção que constitui o domínio de
condutas onde se realiza a operacionalidade da
aceitação do outro como um legítimo outro na
convivência – e é esse modo de convivência que
conotamos quando falamos do social. Por isso, digo
que o amor é a emoção que funda o social; sem
aceitação do outro na convivência não há fenômeno
social.
Em outras palavras, digo que somente são
sociais as relações que se fundam na aceitação do outro
como um legítimo outro na convivência e que tal
aceitação é o que constitui uma conduta de respeito.
Sem uma história de interações suficientemente
recorrentes, abrangentes e extensas, onde haja
aceitação mútua em um espaço aberto às coordenações

225
de ações, não podemos esperar que surja a linguagem.
Se não há interações na aceitação mútua, produz-se
separação ou destruição. Em outras palavras, se na história
dos seres vivos existe alguma coisa que não pode surgir na
competição, essa coisa é a linguagem.
Repito o que já disse: a linguagem, como
domínio de coordenações condutuais consensuais de
coordenações condutuais consensuais, somente pode
surgir em uma história de coordenações condutuais
consensuais – e isso exige uma convivência constituída
na operacionalidade da aceitação mútua, num espaço
de ações que envolve constantemente coordenações
condutuais consensuais nessa operacionalidade. Como
também já disse, isso deve ter ocorrido na história
evolutiva de nossos ancestrais; o que sabemos sobre o
seu modo de vida mais provável, há três milhões de
anos, revela que já existia naquela época tal modo de
vida.
Ademais, este modo de vida ainda se conserva
em nós. Com efeito, ainda somos animais coletores, e
isso fica evidente tanto no nosso comportamento nos
supermercados [como nos sentimos à vontade
recolhendo os produtos nas gôndolas e prateleitas],
quanto na nossa dependência vital da agricultura; ainda
somos animais compartilhadores, e isso fica evidente
na criança que tira a comida da boca para dá-la a mãe, e
no que sentimos quando alguém nos pede uma esmola;
ainda somos animais que vivem na coordenação

226
consensual de ações, e isso notamos pela facilidade
com que nos dispomos a participar de atividades
cooperativas, quando não temos um argumento racional
para recusar; ainda somos do tipo de animais cujos
machos participam no cuidado das crias, coisa que
pode ser comprovada pela disposição dos homens para
cuidar dos filhos, quando não têm argumentos
racionais para desvalorizar tal atividade; ainda somos
animais que vivemos em grupos pequenos, o que é
evidente em nosso sentido de pertencer a uma família;
ainda somos animais sensuais, que vivemos
espontaneamente o tocar-se e acariciar-se, quando não
pertencemos a uma cultura que nega a legitimidade do
contato corporal; e, por último, ainda somos animais
que vivemos a sensualidade no encontro personalizado
com o outro, o que fica evidente pela nossa queixa
quando isso não ocorre.
Porém, sobretudo, no presente da história
evolutiva a que pertencemos, e que começou com a
origem da linguagem – quando o estar na linguagem se
fez parte do modo de vida que, ao conservar-se,
constituiu a linhagem Homo a que pertencemos –
somos animais dependentes do amor. O amor é a
emoção central na história evolutiva humana desde seu
início, e toda essa história se dá como uma história na
qual a conservação de um modo de vida no qual o
amor, a aceitação do outro como um legítimo outro na
convivência, é uma condição necessária para o

227
desenvolvimento físico, comportamental, psíquico,
social e espiritual normal da criança, assim como para a
conservação da saúde física, comportamental, psíquica,
social e espiritual do adulto.
Num sentido estrito, os seres humanos nos
originamos no amor e somos dependentes dele. Na
vida humana, a maior parte do sofrimento vem da
negação do amor: os seres humanos somos filhos do
amor... Não estou falando como cristão, não me
importa o que disse o Papa, não estou imitando o que
ele disse, estou falando a partir da biologia. Estou
falando a partir da compreensão das condições que
tornam possível uma história de interações recorrentes
suficientemente íntima para que possa ocorrer a
„recursividade‟ nas coordenações condutuais consensuais
que constitui a linguagem” (Maturana, 1988c: 24-6) (n.
i.).
Quando Maturana fala, que “o amor é o
fundamento do social” ele está se referindo àquela
“pegajosidade biológica” (cuja origem é a-social) que
funda o social porquanto se manifesta como abertura e
conservação de espaços de convivência que englobam
vários indivíduos numa mesma proximidade, a partir
do prazer da companhia, da simpatia, do afeto, da
preferência, mas, fundamentalmente, pela aceitação do
outro. “A emoção que funda o social como a emoção
que constitui o domínio de ações no qual o outro é
aceito como um legítimo outro na convivência, é o

228
amor” (Maturana, 1988c: 27). Destarte, “relações
humanas que não estejam fundadas no amor... não são
relações sociais. Portanto, nem todas as relações
humanas são sociais, tampouco o são todas as
comunidades humanas, porque nem todas se fundam
na operacionalidade da aceitação mútua. Distintas
emoções especificam distintos domínios de ações.
Consequentemente, comunidades humanas fundadas
em outras emoções, distintas do amor, estarão
constituídas em outros domínios de ações que não
serão o da colaboração e do compartilhamento em
coordenações de ações que implicam a aceitação do
outro como um legítimo outro na convivência, e não
serão comunidades sociais” (Idem: 27-8).
Para Maturana, portanto, “os seres humanos não
somos todo o tempo sociais; o somos somente na
dinâmica das relações de aceitação mútua. Sem ações
de aceitação mútua não somos sociais. Com efeito, na
biologia humana, o social é tão fundamental que
aparece a cada instante e por todas as partes”
(Maturana, 1988d: 77).
Como vimos, nem todas as relações
convivenciais são relações sociais. Relações de
trabalho, por exemplo, não são relações sociais. “É
justamente porque as relações de trabalho não são
relações sociais que se requer leis que as regulem. No
marco das relações sociais não cabem os sistemas
legais, porque as relações humanas se dão na aceitação

229
mútua e, portanto, no respeito mútuo” (Maturana,
1988d: 78).
Da mesma forma, relações hierárquicas também
não são relações sociais porquanto “se fundam na
negação mútua implícita, na exigência de obediência e
entrega de poder que trazem consigo. O poder surge
com a obediência e a obediência constitui o poder
como relações de mútua negação. As relações
hierárquicas são relações fundadas na sobrevalorização
e na desvalorização que constituem, respectivamente, o
poder e a obediência e, portanto, não são relações
sociais... O poder não é algo que um ou outro
indivíduo tem, é uma relação na qual se concede algo a
alguém através da obediência – e a obediência se
constitui quando alguém faz algo que não quer fazer,
cumprindo uma ordem. O que obedece nega a si
mesmo, porque, para salvar ou obter algo faz o que
não quer a pedido do outro. O que obedece atua com
contrariedade, e na contrariedade nega o outro porque
o rejeita e não o aceita como um legítimo outro na
convivência. Ao mesmo tempo, o que obedece nega-se
a si mesmo ao obedecer dizendo: “não quero fazer
isso, porém se não obedeço me expulsam ou me
castigam, e não quero que me expulsem ou castiguem”.
Porém o que manda também nega o outro e se nega a
si mesmo ao não encontrar-se com o outro como um
legítimo outro na convivência. Nega-se a si mesmo
porque justifica a legitimidade da obediência do outro

230
em sua sobrevalorização, e nega o outro porque
justifica a legitimidade da obediência com a [ou a partir
da suposição da] inferioridade do outro.
De sorte que as relações de poder e de
obediência, as relações hierárquicas, não são relações
sociais. Um exército não é um sistema social... [ainda
que] entre os membros de um exército possam
efetivar-se relações sociais” (Maturana, 1988d: 76-7) (n.
i.).
Para concluir, Maturana diz “que os fenômenos
sociais têm a ver com a biologia e que a aceitação do
outro não é um fenômeno cultural. Além disso –
prossegue – sustento que o cultural, no social, tem a
ver com a delimitação ou restrição da aceitação do
outro. É na justificação racional dos modos de
convivência onde inventamos os discursos ou
desenvolvemos os argumentos que justificam a
negação do outro” (Maturana, 1988d: 78).

6.7 – Competição ou cooperação?


Baseado neste arcabouço conceitual Maturana
vai bater de frente com as explicações correntes sobre
a natureza competitiva do ser humano, seja nas suas
formas hard (do tipo das hipóteses urdidas pelos
sociobiólogos e pelos socialdarwinistas), seja nas suas
formas mais soft (do tipo das hipóteses cerebradas por
economistas, sociólogos, antropólogos e biólogos da

231
evolução que trabalham, baseados na teoria dos jogos,
com o nonzero, ou melhor, com a non-zero-sumness, com a
racional choice, enfim, com a combinação otimizada entre
competição e colaboração ou com a prevalência da
relação “olho por olho” no longo prazo) (6.7: 1).
Seu esquema explicativo é simples. Se o que nos
torna humanos é a linguagem, e se a linguagem é uma
coisa que, definitivamente, não pode surgir na
competição, então a competição não pode ser
constitutiva do ser humano, nem individual nem
socialmente falando, isto é, individual-e-socialmente
falando o primata bípede que nos antecedeu não se
teria humanizado (ou hominizado) se tivesse vivido
num ambiente predominantemente competitivo.
Maturana sustenta que “o fenômeno da
competição que se dá no âmbito cultural humano e
que implica contradição e negação do outro, não se dá
no âmbito biológico. Os seres vivos não humanos não
competem, deslizam uns sobre os outros e com os
outros em congruência recíproca ao conservar sua
autopoiesis e sua correspondência com um meio que
inclui a presença de outros e não os nega.
Se dois animais se encontram diante de um
alimento e somente um come e, o outro, não, isso não
é competição. E não é [competição] porque não é
central para o que ocorre [inclusive e sobretudo em
termos emocionais] com o que come, que o outro não
coma. Ao contrário, no âmbito humano, a competição

232
constitui-se culturalmente quando o fato de que outro
não obtenha o que alguém obtém é parte fundamental
do [e constitui o próprio] modo de relação.
A vitória é um fenômeno cultural que se
constitui com a derrota do outro. A competição se
ganha quando o outro fracassa diante de nós, e se
constitui quando a perspectiva de que isso ocorra de
fato torna-se culturalmente desejável. No âmbito
biológico não humano tal fenômeno não se dá. A
história evolutiva dos seres vivos não envolve
competição. Por isso, da evolução do humano não
participa a competição, senão a conservação de um
fenótipo ontogênico ou modo de vida, no qual o
linguagear pode surgir como uma variação circunstancial
para sua realização quotidiana que não requer nada
especial (Maturana, 1988c: 21-2) (n. i.).
Por outro lado, observa Maturana, “o ato de
compartilhar não consiste em deixar que o outro coma
ao seu lado. Consiste em transferir o que se tem para o
outro. Eu passo para outro algo que tenho, esse é um
ato de compartilhar.... Somos animais
compartilhadores porque pertencemos a história de
compartilhar. Eu não sei em que momento desses três
milhões de anos atrás, começou o compartilhamento
em nossa linhagem, porém somos animais
compartilhadores” (Maturana, s/d: 71-72). O
compartilhamento é uma forma de colaboração. Logo,
somos animais cooperadores. A cooperação se dá

233
somente e exclusivamente nas relações de mútuo
respeito. A cooperação não se dá nas relações de
dominação e submissão. A obediência não é um ato de
cooperação. Nós somos animais enquanto
pertencemos à história que nos dá origem, porém
somos cooperadores devido a que não temos
impedimentos para cooperar; quando nas relações
amistosas aceitamos o convite para cooperar, sentimo-
nos bem” (Idem).
Maturana confronta também aquelas teorias que
tentam explicar a evolução humana e o (ou: em virtude
do) extraordinário crescimento do cérebro humano, a
partir do desenvolvimento da mão no (e/ou do) uso da
ferramenta, sobretudo da arma utilizada para matar.
Em primeiro lugar ele sustenta que “não é o
tamanho do cérebro o que torna possível a linguagem
[que nos constitui humanos] e sim o modo de
conviver”, o qual jamais teria se conservado sem uma
forte emoção amistosa (base da colaboração) capaz de
permitir a intimidade na convivência com certa
permanência. Se compararmos o homem com o
chimpanzé, veremos que as diferenças genéticas (em
termos de DNA) são muito pequenas, não
ultrapassando os 3%, porém “as diferenças no viver
são superlativas, somos muito distintos” (Maturana, s/
d: 70), ou seja: o fundamental aqui é o fenotípico não o
genotípico.

234
Em segundo lugar ele sustenta que nada obriga
que a mão tenha se desenvolvido mais ao fabricar
instrumentos do que ao debulhar e descascar vegetais
e, sobretudo, ao acariciar sensualmente todas as
concavidades, convexidades e reentrâncias dos corpos
dos semelhantes (tanto dos parceiros sexuais, quanto
dos filhos e de outros membros do grupo). Quem quer
ver uma coisa vê essa coisa, ou melhor, quem tem
medo de ver uma coisa não vê essa coisa – como aqui
parece ser o caso: culturalmente vacinado contra o
contato corporal o pensamento da civilização patriarcal
e predadora não pode admitir a centralidade da
sensualidade na geração continuada do humano.
Em terceiro lugar ele sustenta que o ato de
matar é, ao contrário do que supõe qualquer tipo de
hunting hipothesis, “completamente distinto do ato de
caçar. Se alguém observa as culturas caçadoras vê que
estas culturas consideram o ato de caçar como um ato
sagrado: há agradecimento pelo animal que morre
porque isso produz alimento para a vida. Da morte do
animal se vai obter vida, porém o ato de matar... tem
um caráter totalmente distinto, não se mata... para
comer e sim para exterminar. O ato de matar... é um
assassinato! Quando se mata para exterminar, isso traz
consigo uma emoção completamente distinta, não há
agradecimento, é um ato de apropriação, é
completamente diferente. O artefato que uso, por
exemplo, para caçar... um animal que vou consumir, é

235
um instrumento de caça. Todavia, o instrumento que
uso para matar [e. g.] um lobo [o qual, pelo fato de ter
sido excluído da minha convivência, tornou-se uma
ameaça para os outros animais dos quais me apropriei
e, por conseguinte, inclusive para mim e para meus
semelhantes neste modo de vida que instaurei] é uma
arma. A emoção é distinta e é a emoção com a qual se
usa um instrumento que o torna um instrumento de
caça ou uma arma. No momento em que se mata por
matar aparece a guerra, aparece a inimizade, porém
aparece outra coisa mais: aparece a legitimidade da
solução de um conflito com a total negação do outro,
porque é assim que funciona. A apropriação e a guerra
caminham juntas e se desencadeiam mutuamente
quando da negação do outro se passa à sua eliminação,
quando alguém se apropria do modo de viver do
outro, quando a apropriação se converte em um modo
de vida e quando alguém pode se apropriar de tudo,
das coisas, das idéias, do sexo do outro... O ato de
matar o lobo para excluí-lo da sua comida, não é trivial
na história. As crianças aprendem a fazer isso como
uma coisa normal e isso se transforma em um modo de
viver e, portanto, em uma cultura. Não se aprende
somente a técnica de matar o lobo, se aprende também
a emoção que acompanha o ato, a emoção que
acompanha a apropriação, a emoção que acompanha o
controle. Se se perde a confiança, aparece o controle,
as relações passam a ser relações de controle e com

236
isso temos a multiplicação do patriarcado” (Maturana,
s/ d: 75-6).
Para Maturana, é como se tudo fizesse parte de
um mesmo complexo macro-cultural: “a guerra não
acontece, a fazemos; a miséria não é um acidente
histórico, é obra nossa, porque queremos um mundo
com as vantagens anti-sociais que traz consigo a
justificação ideológica da competição na justificação da
acumulação de riqueza, mediante a geração de servidão
sob o pretexto da eficácia produtiva... Enfim,
afirmamos que o indivíduo humano se realiza na
defesa competitiva de seus interesses porque não
queremos viver sem dar-nos conta de que toda
individualidade é social e só se realiza quando inclui
cooperativamente em seus interesses os interesses dos
outros seres humanos que a sustentam” (Maturana,
1985a: 85).
Maturana sustenta que “foi a conduta dos seres
humanos... que fez do presente humano o que é... ;
vivemos o mundo que vivemos porque socialmente
não queremos viver outro” (Maturana, 1985a: 85). Ora,
impõem-se aqui, inevitavelmente, as perguntas: mas
afinal, que mundo é esse em que vivemos? E, por que
não queremos viver em outro?

237
6.8 – Conversações matrísticas e patriarcais
A resposta de Maturana está baseada numa
hipótese já conhecida, de investigadores heterodoxos
como Riane Eisler (1987) e Ralph Abraham (1989),
baseada em geral na pesquisa arqueológica de Marija
Gimbutas (1991) – mas que também foi aventada,
conquanto apenas tangencialmente, por teóricos do
Capital Social como Robert Putnam – sobre a
existência de grandes tipos, digamos, civilizatórios
(macro-culturais) de sociedades: por exemplo,
sociedades de dominação e sociedades de parceria
(6.8: 1). Segundo algumas versões desta hipótese,
estaríamos vivendo hoje – e nos últimos cinco ou seis
mil anos – imersos em um tipo macro-cultural de
padrão civilizatório de dominação que nega a
colaboração: a cultura patriarcal, caracterizada pela
conservação de “um modo de coexistência que valoriza
a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a
autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a
apropriação dos recursos e a justificação racional do
controle e da dominação dos outros por meio da
apropriação da verdade” (Maturana, 1993: 24).
Para compreender corretamente a hipótese de
Maturana temos que retomar o seu conceito de „redes
de conversações‟. Recordemos que Maturana chama de
conversar ao entrelaçamento do linguagear com o
emocionar e sustenta que todo viver humano se dá em
redes de conversações. Pois bem, “uma cultura é uma

238
rede fechada de conversações, [de sorte] que a
mudança cultural ocorre como uma mudança de
conversações na rede de conversações que a
comunidade que muda vive, e tal mudança surge, se
sustenta e se mantém, na mudança do emocionar dos
membros da comunidade que muda” (Maturana, 1993:
11) (n. i.).
Assim, prossegue Maturana, “o patriarcado
surgiu, precisamente, como uma mudança na
configuração do emocionar que constituía o
fundamento relacional da cultura matrística
preexistente. O resultado foi uma mudança no pensar,
no gostar, no ouvir, no ver, no temer, no desejar, no
relacionar-se... em suma, nos valores conservados
geração após geração; quer dizer, o patriarcado surgiu...
por meio de uma mudança no espaço psíquico em que
viviam os meninos e meninas em crescimento”
(Maturana, 1993: 11).
Vejamos, com mais detalhes, como ele explica
tal processo: “A maneira de conviver conservada,
geração após geração, desde a constituição de uma
cultura como uma linhagem, ou como um sistema de
linhagens que conservam um certo modo de conviver,
fica definida, de maneira fundamental, pela
configuração do emocionar, que define a rede de
conversações que se vive como o domínio particular de
coordenações de coordenações de ações e emoções
que constitui tal cultura como modo de conviver.

239
Por isso, cada vez que começa a conservar-se,
geração após geração, uma nova configuração no
emocionar de uma família, que as crianças aprendem
espontaneamente pelo simples fato de viver nela, surge
uma nova cultura.
A nova configuração do emocionar que funda a
nova cultura não se conserva porque seja vantajosa ou
boa, apenas se conserva, e enquanto se conserva, a
nova cultura persiste e tem história. Em outras
palavras: uma nova cultura surge em uma dinâmica
sistêmica na qual a rede de conversações que a
comunidade em mudança cultural vive, muda guiada e
delimitada precisamente pela nova configuração do
emocionar que começa a conservar-se na
aprendizagem das crianças.
Dizendo ainda de outra maneira: na medida em
que as crianças aprendem a viver no novo emocionar e
a crescer nele, fazem desse novo emocionar o âmbito
no qual seus próprios filhos viverão e aprenderão a
viver a rede de conversações que constitui o novo
modo de conviver.
Ao tentar compreender como surgiu o
patriarcado europeu a que pertencemos como cultura
no presente, o que fazemos é olhar as circunstâncias
do viver que tornaram possível a mudança no
emocionar que, ao mesmo tempo que lhe deu origem
como um modo de conviver, constituiu a dinâmica
relacional sistêmica que levou a sua conservação

240
geração após geração independentemente das
conseqüências que teve. Ao fazer isso não falamos de
forças, pressões, vantagens ou outros fatores que se
usam com freqüência como argumentos para explicar a
direcionalidade do devenir histórico, porque, do nosso
ponto de vista, tais noções não se aplicam à dinâmica
sistêmica da mudança e da conservação cultural”
(Maturana, 1993: 11-2).
É bom ressaltar que, para Maturana, “a história
da humanidade tem seguido e permanece seguindo o
curso do emocionar e, em particular, o curso dos
desejos e não o da disponibilidade de recursos naturais,
ou o curso das oportunidades materiais, ou o curso das
idéias, valores e símbolos, como se estes existissem
como tais em si mesmos. Os recursos naturais existem
somente na medida em que desejamos o que
distinguimos como recursos naturais. O mesmo ocorre
com as idéias, com os valores ou com os símbolos,
como elementos que guiam nosso viver, que existem
nessa condição somente na medida em que aceitamos
aquilo que conotam ou representam. Isso quer dizer
que uma vez que os recursos naturais, os valores, as
idéias ou os símbolos, aparecem em nossas distinções
como fatores ou elementos que guiam o curso de
nosso viver, já surgiu antes, de alguma maneira
independente deles, o emocionar que os fez possíveis
como tais guias do nosso viver. Por conseguinte... para
compreender o curso de nossa história como seres

241
humanos, devemos olhar o curso histórico do
emocionar humano, e para revelar tal curso devemos
olhar a mudança de conversações que surge da
mudança no emocionar, assim como as circunstâncias
que dão origem e estabilizam, em cada caso, a um
novo emocionar” (Maturana, 1993: 10).
Maturana considera dois casos particulares de
culturas, que constituem dois modos diferentes de
viver as relações humanas, caracterizadas por distintas
redes de conversações: a cultura matrística pré-
patriarcal européia e a cultura patriarcal européia.
A palavra matrística é empregada, no texto ora
citado (Maturana, 1993), “com o propósito de conotar
uma situação cultural na qual a mulher tem uma
presença mística que implica a coerência sistêmica
acolhedora e liberadora do maternal fora do autoritário
e do hierárquico. A palavra matrístico, portanto, é
contrária à palavra matriarcal, que significa o mesmo
que a palavra patriarcal, em uma cultura na qual as
mulheres têm um papel dominante. Em outras
palavras... a palavra matrístico é usada
intencionalmente para referir uma cultura na qual
homens e mulheres podem participar de um modo de
vida centrado em uma cooperação não hierárquica,
precisamente porque a figura feminina representa a
consciência não hierárquica do mundo natural a que
pertencemos os seres humanos, em uma relação de
participação e confiança, não de controle nem de

242
autoridade, e na qual a vida quotidiana é vivida em uma
coerência não hierárquica com todo os seres viventes,
mesmo na relação predador-presa” (Maturana, 1993:
19n).
Para começar, Maturana traça o perfil da cultura
patriarcal, quer dizer, da nossa cultura, considerada
civilizada. “Em nossa cultura patriarcal vivemos na
desconfiança e buscamos certeza no controle do
mundo natural, dos outros seres humanos e de nós
mesmos. Continuamente falamos de controlar nosso
comportamento ou nossas emoções, e fazemos muitas
coisas para controlar a natureza ou a conduta dos
outros, na intenção de neutralizar o que chamamos de
forças anti-sociais e naturais destrutivas que surgem da
sua autonomia... Em nossa cultura patriarcal, vivemos
na desconfiança da autonomia dos outros, e estamos
nos apropriando, o tempo todo, do direito de decidir o
que é legítimo ou não para eles, em uma tentativa
contínua de controlar suas vidas. Em nossa cultura
patriarcal vivemos na hierarquia que exige obediência,
afirmando que uma coexistência ordenada requer
autoridade e subordinação, superioridade e
inferioridade, poder e debilidade ou submissão, e
estamos sempre prontos para tratar todas as relações,
humanas ou não, nesses termos. Assim, justificamos a
competição, quer dizer, um encontro de mútua
negação, como a maneira de estabelecer a hierarquia
dos privilégios sob a afirmação de que a competição

243
promove o progresso social ao permitir que o melhor
apareça e prospere” (Maturana, 1993: 25).
Em total contraponto configurava-se, para
Maturana, a suposta cultura matrística. “A cultura
matrística pre-patriarcal européia, a julgar pelos restos
arqueológicos encontrados na zona do Danúbio, dos
Balcãs e na região Egea, deve ter sido definida por uma
rede de conversações completamente diferente da
patriarcal. Não temos acesso direto a tal cultura, porém
penso que a rede de conversações que a constituía
pode ser reconstruída a partir do que é revelado na
vida quotidiana daqueles povos que ainda a vivem, e
pelas conversações não patriarcais ainda presentes nas
malhas da rede de conversações patriarcais que
constitui nossa cultura patriarcal hodierna. Assim,
penso que devamos deduzir, a partir dos restos
arqueológicos mencionados, que o povo que vivia na
Europa, entre sete e cinco mil anos antes de Cristo, era
composto por agricultores e coletores que não
construíam fortificações em seus povoados, que não
apresentavam diferenças hierárquicas entre túmulos de
homens e de mulheres, ou entre túmulos de homens
ou entre túmulos de mulheres” (Maturana, 1993: 25-6).
Ele prossegue. “Também podemos ver que
esses povos não usavam armas como adornos e
depositavam nos lugares cerimoniais místicos (de
culto), principalmente figuras femininas. Além disso,
desses restos arqueológicos podemos também deduzir

244
que as atividades cúlticas (cerimoniais místicos)
estavam centradas no sagrado da vida quotidiana, em
um mundo penetrado pela harmonia da contínua
transformação da natureza, através da morte e do
nascimento, abstraída sob a forma de uma deusa
biológica na forma de uma mulher, ou de uma
combinação de mulher e homem, ou de mulher e
animal” (Maturana, 1993: 26).
Maturana supõe que “na ausência da dinâmica
emocional da apropriação, esses povos não poderiam
ter vivido na competição, uma vez que as posses não
eram elementos centrais da existência. Além disso se,
sob a evocação da deusa mãe, os seres humanos eram,
como todas as criaturas, expressões de sua presença e,
portanto, iguais, nenhum melhor que outro, apesar de
suas diferenças, então não podem ter vivido praticando
ações que excluíam sistematicamente algumas pessoas
do bem-estar que surgia da harmonia do mundo
natural. Penso, por tudo isso, que o desejo de
dominação recíproca não deve ter sido parte do viver
cotidiano desses povos matrísticos, e que este viver
deve ter estado centrado na estética sensual das tarefas
diárias como atividades sagradas, com muito tempo
para contemplar o viver e viver o mundo sem
urgência” (Maturana, 1993: 26).
Nada disso quer dizer, esclarece Maturana, que
as pessoas na cultura matrística não vivessem, também
como nós e nossos antepassados patriarcais, situações

245
geradoras de infelicidade, de dor, aborrecimento e
agressão. Porém, essas pessoas “como cultura,
diferentemente de nós, não viviam a agressão, a luta, a
competição, como aspectos definidores da sua maneira
de viver... A partir desta maneira de viver podemos
inferir que a rede de conversações que definia a cultura
matrística não pode ter consistido em conversações de
guerra, luta, negação mútua na competição, exclusão e
apropriação, autoridade e obediência, poder e controle,
bom e mau, tolerância e intolerância e justificação
racional da agressão e do abuso. Ao contrário, as
conversações de tal rede devem ter sido conversações
de participação, inclusão, colaboração, compreensão,
acordo, respeito e co-inspiração. Não há dúvida de que
a presença destas palavras no nosso linguajar moderno
indica que as coordenações de ações e emoções que
elas evocam ou conotam também nos pertencem, a
nós, agora, apesar de nosso viver na agressão. Com
efeito, em nossa cultura reservamos seu uso para
ocasiões especiais, porque não conotam para nós,
agora, nosso modo geral de viver, ou as tratamos como
se evocassem situações ideais e utópicas, mais
adequadas para as crianças pequenas do jardim de
infância do que para a vida séria dos adultos, a menos
que as usemos nessa situação tão especial que é a
democracia” (Maturana, 1993: 27).
Não cabe reproduzir aqui todos os argumentos
desenvolvidos por Maturana no sentido de mostrar a

246
conservação – ou a supervivência – do emocionar
matrístico na infância patriarcal ulterior, que se
verificaria, segundo ele, inclusive em nossos dias. Mas é
fundamental registrar que, para Maturana, “somente o
surgimento da democracia representou, de fato, uma
ameaça ao patriarcado, porque a democracia surgiu
como uma expansão das conversações matrísticas da
infância de uma maneira que nega as conversações
patriarcais” (Maturana 1993: 52).

6.9 – Uma teoria da democracia


As considerações de Maturana desembocam
inevitavelmente numa teoria da democracia, cujos
elementos centrais serão expostos mais adiante (no
capítulo 10). A democracia seria, para ele, um caso
particular de mudança cultural, uma brecha no sistema
do patriarcado, que surge como uma ruptura súbita das
conversações de hierarquia, autoridade e dominação
que definem todas as sociedades pertencentes a este
sistema. Essa hipótese da “brecha” introduzida no
modelo civilizacional patricarcal pela prática da política
como liberdade, i. e., da invenção da democracia e da
radicalização da democracia como “alargamento da
brecha”, fornece a única base para explicar porque
podem surgir sociedades de parceria no interior de
sociedades de dominação, ou seja, como veremos mais
adiante, porque podem surgir comunidades –

247
compostas por conexões horizontais entre pessoas e
grupos – e porque tais comunidades podem ser
capazes de alterar a estrutura e a dinâmica
prevalecentes nas sociedades, hierárquicas e
autocráticas, de dominação.

6.10 – Uma teoria da cooperação baseada


em Maturana
Há uma teoria da cooperação implícita na
exposição precedente, cujos elementos principais,
apenas elencados, em três conjuntos, de modo não
axiomático, são os seguintes:
Primeiro conjunto: a cooperação está na constituição
do humano.
1 - O que nos torna humanos é a linguagem.
2 - Não é, fundamentalmente, o tamanho do
cérebro o que torna possível a linguagem e sim o modo
de conviver.
3 - O modo de conviver que torna possível a
linguagem jamais teria se conservado sem uma forte
emoção amistosa capaz de permitir a intimidade na
convivência com certa permanência.
4 - Sem uma história de interações
suficientemente recorrentes, abrangentes e extensas,
onde haja aceitação mútua em um espaço aberto às
coordenações de ações, não se pode esperar que surja a
linguagem.

248
5 - A linguagem só pode surgir na cooperação.
6 - A cooperação está na constituição humano.
Segundo conjunto: a cooperação está na fundação do
social.
1 - Só há sistema social se houver recorrência de
interações que resultem na coordenação condutual dos
seres vivos que o compõem quando tal recorrência de
interações passa a ser um mecanismo mediante o qual
estes seres vivos realizam sua autopoiesis.
2 - A cooperação se dá em todas as relações
sociais.
3 - Nem todas as relações humanas são sociais,
tampouco o são todas as coletividades humanas,
porque nem todas se fundam na operacionalidade da
aceitação mútua.
4 - Distintas emoções especificam distintos
domínios de ações.
5 - Coletividades humanas fundadas em
emoções que não estão centradas na emoção amistosa
que permite a intimidade na convivência com certa
permanência – ou o ser com o outro – estarão
constituídas em outros domínios de ações que não
serão o da cooperação e do compartilhamento em
coordenações de ações que implicam a aceitação do
outro como um legítimo outro na convivência e não
serão comunidades sociais.

249
6 - A cooperação não se dá nas relações de
dominação e submissão; a obediência não é um ato de
cooperação.
7 - Afirmamos que o indivíduo humano se
realiza na defesa competitiva de seus interesses porque
não nos damos conta de que toda individualidade é
social e só se realiza quando inclui cooperativamente
em seus interesses os interesses dos outros seres
humanos que a sustentam.
Terceiro conjunto: a competição não funda o social
nem constitui o humano.
1 - Não existe, biologicamente falando,
contradição entre o social e o individual. Toda a
contradição que a humanidade vive neste domínio é de
origem cultural.
2 - A conduta social está fundada na cooperação
e não na competição.
3 - O fenômeno da competição é cultural.
4 - A cultura patriarcal nega a colaboração.
5 - A cultura patriarcal se caracteriza pela
conservação de um modo de coexistência que valoriza
a competição.
6 - O fenômeno da competição não se dá no
âmbito biológico.
7 - Seres vivos não humanos não competem.
8 - Se dois animais se encontram diante de um
alimento e somente um come e, o outro, não, isso não
é competição porque não é central para o que se passa

250
com o que come, que o outro não coma. Ao contrário,
no âmbito humano, a competição constitui-se
culturalmente quando o fato de que outro não obtenha
o que alguém obtém é fundamental para constituir o
modo de relação.
9 - O ato de compartilhar alimentos – uma
forma de colaboração – que está evolutivamente na
origem do humano, não consiste em deixar que o
outro coma a seu lado e sim em transferir o que se tem
para o outro.
10 - A competição tem ganhadores e
perdedores. A competição se ganha quando o outro
fracassa diante de nós, e se constitui (em escala
ampliada) quando a perspectiva de que isso ocorra de
fato, torna-se culturalmente desejável.
11 - A competição não participa da evolução do
humano, que se dá pela conservação de um fenótipo
ontogênico ou modo de vida no qual o linguajear pode
surgir.
12 - A linguagem não poderia ter surgido na
competição.
13 - A competição não pode ser constitutiva do
humano.
Uma teoria da cooperação construída a partir
das assertivas expostas acima resulta algo bastante
distinto de uma teoria da cooperação (ou da
cooperação versus competição) que possa ser extraída
da teoria dos jogos. Na verdade, da teoria dos jogos

251
não pode sair nenhuma teoria da cooperação humana
porque para a teoria dos jogos o homem é,
fundamentalmente, um ser que faz escolhas racionais
enquanto que a cooperação não é motivada por uma
razão mas por uma emoção.
A emoção que nos leva a cooperar não pode ser
completamente rastreada pelo comportamento de
jogadores em jogos iterados: embora jogadores, na vida
real, se movam sempre a partir de emoções – mesmo
quando julgam que estão se movendo pela escolha
racional – o que a teoria dos jogos considera, quando
os jogadores preferem a cooperação a partir da
verificação de que no longo prazo ela é mais vantajosa
(altruísmo instrumental), é a afirmação da razão do
indivíduo como “átomo” de interesse e não como
indivíduo que só se realiza quando seus interesses
tornam-se, em alguma medida, congruentes com
interesses dos outros indivíduos que constituem o
meio social a que pertence. Ora, quando há cooperação
é a “molécula social” de interesse que se realiza. Mas a
consciência de que é a “molécula social” de interesse
que deve se realizar não emerge por força de um
raciocinar e sim de um emocionar, como atestam a
resposta emocional de satisfação que todos obtemos
quando cooperamos e de insatisfação quando somos
chamados a cooperar e não o fazemos. Neste caso, em
geral, nos vemos forçados a arranjar uma explicação
racional para a omissão, ou para a deserção – para usar

252
o jargão da teoria dos jogos. O termo aliás, revela-se
muito adequado: não cooperar é, em certo sentido, uma
deserção social.
O que Maturana diz é que o emocionar que nos
leva a cooperar é propriamente humano porquanto nos
constitui como seres humano-sociais, mas tem raízes
biológicas: existe algo como uma “pegajosidade
biológica” que, manifestando-se já no primata bípede
que nos precedeu, possibilitou a deriva filogênica
humana que resultou na linguagem. Entretanto, o
emocionar que nos leva a competir não tem raízes
biológicas e não pode ser encontrado em nenhum
emocionar animal não-humano. Nenhuma espécie
não-humana compete, ainda que nosso olhar humano,
lançado a partir uma cultura competitiva, interprete o
deslizar dos seres vivos não humanos uns sobre os
outros e uns com os outros – em congruência
recíproca na conservação da sua autopoiesis e da sua
correspondência com um meio que inclui a presença
de outros – como uma forma de competição. Aliás, o
primata bípede que nos antecedeu jamais teria se
humanizado (ou hominizado) se tivesse vivido num
ambiente predominantemente competitivo porque,
neste caso, não poderia ter se firmado uma história de
interações suficientemente recorrentes, abrangentes e
extensas, onde houvesse aceitação mútua em um
espaço aberto às coordenações de ações, para que
surgisse a linguagem.

253
Somente de uma teoria dos jogos que
considerasse a “emotional motivation” (que está na raiz da
rational choice) do ser emocional-racional que é, de fato,
o ser humano, poderia ser derivada uma teoria da
cooperação. Já uma teoria da competição – que não é,
ao contrário do que às vezes se pensa, uma imagem
invertida da teoria da cooperação – seria uma teoria da
cultura para o padrão civilizatório patriarcal em que
vivemos.
Pode-se dizer que a visão de Maturana também
tem lá os seus problemas. Por exemplo, o tratamento
que ele dá à competição não deixa espaço para a
existência do mercado e uma sociedade democrática
sem mercado, nas circunstâncias do mundo atual, é
uma sociedade que não pode realizar a democracia na
esfera da vida econômica e, assim, não pode ser
efetivamente democrática. Se a teoria de Maturana
tivesse que servir de base para um programa para o
estado atual do mundo, esse programa não levaria à
uma sociedade inspirada pelos princípios de
“participação, inclusão, colaboração, compreensão,
acordo, respeito e co-inspiração” (Maturana, 1993: 27)
característicos do modelo não-patriarcal de sociedade,
supostamente mais conformes a “biologia do amor”.
Em outras palavras, não existem mediações nas
elaborações intelectuais de Maturana porque falta
política nas suas teorias, inclusive onde não poderia
faltar: na sua teoria da democracia. Não existindo

254
mediações, não pode haver transição de um estado do
mundo para outro.
Sustento, não obstante, que nada disso invalida
as idéias de Maturana no que essas idéias têm de
fundamental. E divirjo daqueles que querem invalidar
tais idéias com base em preconceitos com relação à
utilização de categorias, consideradas não-científicas,
como, por exemplo, a de „amor‟. Tal como definido
por ele – não como sentimento (psicológico), mas
como emoção que possibilita uma proximidade
continuada sem a qual não teria surgido o linguagear e,
daí, o conversar que dá sequência ao humano
propriamente dito – creio que o conceito está muito
bem colocado.
A reação à utilização de categorias como „amor‟
nas teorias de Maturana, em geral só fazem confirmar
essas teorias. O amor é banido da racionalidade
patriarcal e é deportado para o reino da poesia (de
onde não consegue visto para reentrar na república dos
sábios) porque de fato desorganiza essa racionalidade.
Por outro lado, é sintomático do tipo de civilização em
que vivemos que a gente não se assuste tanto com a
palavra „violência‟ quanto com a palavra „amor‟. Cenas
de assassinato, mutilação, tortura, que nossas crianças
assistem diariamente na TV, não são consideradas
imorais, mas uma cena de uma pessoa beijando
afetuosamente o sexo de outra seria um escândalo para
a respeitável família patriarcal reunida após o jantar,

255
mesmo que tal família, de fato, já não exista mais -
porquanto a hipocrisia e o cretinismo moral que a
caracterizam supervivem como tradição.
Maturana sustenta que relações hierárquicas e de
trabalho que existem em coletivos humanos, não são
relações sociais. Ora, todas as relações que não são
relações sociais – no particularíssimo sentido que ele
atribui à expressão „relações sociais‟ – ou são relações
competitivas ou, pelo menos, são relações que não
induzem a cooperação, sendo que algumas delas
induzem a competição regular e sistemática, como é o
caso das relações hierárquicas. Portanto, para ele, não é
que não possa haver relações competitivas em
coletivos humanos e sim que essas relações não
constituem o propriamente humano; quando tais
relações competitivas se conservam como modo de
vida transmissível culturalmente, acabam por impedir
essa constituição e, no limite, inviabilizam a vida social
humana e a própria vida humana (o que aqui se
confunde, i. e., as duas dimensões – social e individual
do humano – se fundem): nenhum grupo humano com
grau zero de cooperação (ou com grau máximo de
competição: todos sempre competindo com todos em
todas as ocasiões) conseguiria se constituir
sustentavelmente como sociedade humana e não se
poderia dar, nestas circunstâncias, o fenômeno humano,
por assim dizer. Em outras palavras, há um fator
antropológico (que Maturana encara como biológico,

256
também no sentido particularíssimo que atribui ao
termo „biológico‟) fundante das sociedades humanas e
esse fator é a cooperação.
Por outro lado, não me parece correto afirmar
que uma sociedade com grau máximo de cooperação
(ou com grau zero de competição) não conseguiria se
constituir sustentavelmente como sociedade humana.
Essas coisas não são simétricas: cooperação não é
competição negativa, não é competição com sinal
trocado, nem vice-versa. São fenômenos distintos,
embora correlacionáveis a posteriori por razão inversa.
Mas a afirmação do primeiro se não é acarretada pela
negação do segundo tampouco o evita.
Abrem-se aqui dois debates: por um lado, com
os que acreditam que a biologia humana leva a
competição e, por outro lado, com os que acreditam
que o progresso (das várias maneiras como isso é
entendido) ou o desenvolvimento (em geral
confundido com o progresso material – quando se
entende por progresso o crescimento econômico –
aferido este, por sua vez, pelo aumento da quantidade
daqueles bens e serviços, produzidos por uma
sociedade, que podem se realizar como mercadorias)
exigem uma dose diretamente proporcional (de
capacidade) de competição.
O primeiro debate já foi, de certo modo,
abordado no capítulo anterior. Achar que a competição
esteja geneticamente inscrita no corpo humano parece

257
ser mais uma questão de justificação de uma opção e,
portanto, de ideologia moral, do que de observação ou
conclusão científica. Para aumentar a verossimilhança
da hipótese alguns, como vimos, supõem que a
competição já estaria arquivada no genoma de
ancestrais evolutivos da espécie, de vez que também se
verificaria, por exemplo, em primatas não-humanos
(como os chimpanzés).
O segundo debate será objeto do próximo
capítulo.

258
7
_____________________
Competição, cooperação
e desenvolvimento

A questão é a seguinte: o desenvolvimento exige


necessariamente competição? Este debate envolve uma
discussão sobre o conceito mesmo de
desenvolvimento, o qual perde o sentido se for
aplicado comparativamente em padrões civilizatórios
distintos. Por exemplo, não tem sentido dizer que a
aldeia agrícola neolítica era menos desenvolvida do que
a cidadela guerreira dos conquistadores patrilineares
surgida bem depois. Desenvolvimento, tal como o
entendemos hoje, nas suas várias acepções, é um
conceito que não se aplica aos Xavantes, a menos que
deixem de sê-lo (e certamente deixarão de sê-lo se

259
quiserem se desenvolver, em quaisquer dos sentidos
em que o termo hoje é empregado). Se perguntarmos
se as sociedades pré-patriarcais da Europa Antiga –
entre os anos 11 mil e 5 mil – eram mais sustentáveis
do que as sociedades da Europa atual, talvez a resposta
correta, por incrível que pareça, seja sim, mas neste
caso seria forçar um pouco as coisas dizer que as
primeiras tinham um grau maior de desenvolvimento
sustentável.
Em uma de suas vertentes, este debate supõe
que só pode haver progresso em sociedades mercantis
– o que não deixa de ser razoável. Neste sentido, a
competitividade tem a ver com o crescimento do
produto e não seria incorreto dizer que a competição
promove o desenvolvimento (entendido nesses
termos).
Outra questão é saber se o desenvolvimento em
sociedades mercantis implica necessariamente um
extravasamento da competição, da esfera do mercado
(da qual parece ser própria), para a esfera da sociedade,
ou seja, se uma economia de mercado deve ser
necessariamente acompanhada por uma sociedade de
mercado. Uma sociedade vincada na sua base por uma
cultura adversarial – própria do ambiente competitivo
mercantil – seria uma condição necessária para o
desenvolvimento, sobretudo para o desenvolvimento
humano e social, sem o qual, tudo indica, não pode
haver desenvolvimento econômico sustentado, ou

260
corroeria as bases sociais cooperativas inviabilizando o
desenvolvimento humano e social, acarretando
desigualdades e exclusões e derruindo, no longo prazo,
inclusive a possibilidade do crescimento econômico?
Outra questão, ainda, é saber se queremos este
tipo de desenvolvimento.
E, por último, há a questão de saber se uma
sociedade desse tipo é uma sociedade que possibilita a
realização do humano, se ela é humanizante, ou
melhor, se ela representa uma continuidade com as
configurações emocionais que geraram o acidente
humano ou se representa uma ruptura com tais
configurações. Quanto a isso a posição de Maturana é
radical: para ele “através do emocionar da apropriação
o patriarcado cria o espaço psíquico que torna possível
a destruição da colaboração...” (Maturana, 1993: 16) –
conquanto nem tudo esteja perdido, uma vez que os
seres humanos podem tecer novas redes de
conversações que reinstaurem a cooperação na base da
sociedade, aproveitando a brecha na cultura patriarcal
aberta pela democracia.

7.1 – Cooperação e desenvolvimento


Num “capitalismo do Capital Social”, ao invés
de nos centrarmos na competitividade (ou seja, na
capacidade de competição) e nos preocuparmos apenas
com a identificação de vantagens competitivas e com a

261
formação de competitividade sistêmica, nos
centraríamos na cooperatividade (ou seja, na
capacidade de cooperação), e nos preocuparíamos com
a identificação de vantagens cooperativas e com a
formação de cooperatividade sistêmica.
Porém se, por um lado, parece claro que isso
não seria exatamente um capitalismo, por outro lado,
as teorias do Capital Social mostram que sem uma base
de cooperatividade sistêmica não pode se sustentar
uma sólida competitividade sistêmica. Ou seja uma
certa dose de “capitalismo do Capital Social” parece ser
condição para o capitalismo (do capital) propriamente
dito, embora a recíproca não pareça ser verdadeira.
Creio que a questão aqui não tem a ver com a
natureza do mercado capitalista em si, e sim com a
ideologia que tenta transbordar a “lógica” própria
desse mercado para a sociedade. Ainda que qualquer
mercado seja construído socialmente, uma vez
construído adquire um funcionamento próprio,
relativamente autônomo. E o problema está em querer
fazer do funcionamento do mercado um modelo para
o funcionamento da sociedade civil (não-mercantil) e
do Estado, sem atentar para o fato de que estas três
esferas da realidade social possuem racionalidades
distintas.
Essa ideologia mercadocêntrica, chamada
neoliberal, é até capaz de aceitar a tese segundo a qual
deve-se mais cooperar para melhor competir,

262
entendendo ser necessário melhor competir para mais
crescer e mais crescer para mais se desenvolver. Talvez
se possa, entretanto, sem se deixar impregnar por tal
ideologia, assumir a tese de que se deve melhor
cooperar para melhor se desenvolver (e viver melhor),
entendendo ser necessário, às vezes, competir melhor
para crescer mais, quando isso for melhor para mais se
desenvolver (e viver melhor ainda).
Todavia, o centro da questão é saber quem deve
ser competitivo. O fato do mercado ser construído
socialmente não autoriza a conclusão de que um
mercado competitivo só possa ser construído por uma
sociedade competitiva. Uma sociedade mercantil é uma
sociedade que realiza sua vida econômica no mercado e
não, necessariamente, uma sociedade que se transformou
num mercado, sobretudo porquanto existem outras
dimensões da vida social para além da vida econômica,
tão ou mais fundamentais quanto esta última para o
desenvolvimento.
A tese de que a cooperação é necessária para a
competição é problemática. As vezes têm-se a
impressão de que os que defendem esta tese, apenas
admitem ou suportam a cooperação porquanto não
têm como contradizer o fato de que ela aumenta a
capacidade de competição dos grupos, redes, cadeias
ou clusters cooperantes. De qualquer modo trata-se de
uma visão instrumental da cooperação: fazer amigos
aqui dentro para enfrentar os inimigos lá fora é, ao fim

263
e ao cabo, investir na inimizade. Nesta visão, o
irretorquível é a competição. Mas nenhuma realidade
culturalmente construída pode ser inexorável. A
competição própria do mercado é uma construção
humana, como o é o mercado. Não existe nenhum
fundamento transcendente da competição nem é ela
imposta pela natureza, por alguma lei física, biológica,
sociológica, psicológica ou histórica herdada de alguma
instância imune ao emocionar, ao raciocinar e ao agir
humanos.
A estrutura do pensamento neoliberal é mítica:
supõe que o mercado seja uma espécie de mecanismo
cibernético auto-regulador que deriva da própria
natureza do sistema complexo de alocação de recursos
quando os agentes ofertantes e demandantes são
múltiplos. Mas o fato de que, nessas condições e para
tais fins, não tenha surgido ainda nenhum mecanismo
mais eficiente que o mercado, não autoriza a concluir
que esse mecanismo decorra de algum princípio
universal ou histórico, extra-humano ou imanente à
própria história. E nem autoriza a concluir que a
eficiência demonstrada pelo mercado para regular as
atividades econômicas, possa também se verificar na
regulação de atividades extra-econômicas como, por
exemplo, as atividades sociais e governamentais. O
mercadocentrismo que caracteriza a ideologia
neoliberal consiste exatamente nisso: achar que uma
racionalidade própria do mercado deva ser transferida

264
para outras esferas da realidade social que possuem
outras racionalidades.
Em síntese, mercados competitivos são um fator
de desenvolvimento. Sociedades colaborativas são um
fator de desenvolvimento. Sociedades colaborativas
fornecem, em geral, a base para a prosperidade
econômica, ou seja, para o florescimento de mercados
competitivos. Mas não existem evidências de que
sociedades competitivas forneçam a base para
mercados competitivos, quer dizer, de que sejam, nem
desse estrito ponto de vista econômico, fatores de
desenvolvimento. As evidências a esse respeito, aliás,
são contrárias. Além disso, sociedades colaborativas
são fatores de desenvolvimento de todos os pontos de
vista extra-econômicos, sobretudo do ponto de vista
do desenvolvimento social. Em outras palavras:
mercados não produzem Capital Social mas dependem
de Capital Social. Sociedades competitivas, além de não
produzirem, destroem Capital Social. Sociedades
competitivas não fornecem um bom suporte para
mercados competitivos. Sociedades colaborativas
produzem Capital Social. Desenvolvimento social é, de
certo modo, aumento de Capital Social. Sociedades
colaborativas são fatores de desenvolvimento social.
Ora, sem desenvolvimento social não pode haver
desenvolvimento do ser humano-social – que é como
se define a natureza desses seis bilhões de bípedes
implumes que se encontram atualmente na superfície

265
do planeta – e, portanto, não pode haver, a rigor, nem
mesmo desenvolvimento econômico, ainda que possa
haver crescimento.

7.2 – Competição e desenvolvimento


Se chamamos de desenvolvimento ao sucesso
econômico de uma parcela de seres humanos,
agrupados num setor ou localidade – seja um
município, estado, país, região ou continente – sucesso
este advindo de um processo competitivo, em que a
vitória de um grupo significa a derrota de outro, o que
chamamos de desenvolvimento é, na verdade, o
resultado de uma luta? Neste caso, o desenvolvimento
de uma parcela implica sempre o não-desenvolvimento
de outra parcela da humanidade? Se, por exemplo, o
desenvolvimento de uma parcela, trazendo consigo o
enriquecimento dessa parcela, levar ao
empobrecimento de outra parcela da humanidade, do
ponto de vista da humanidade o que se ganhou? Essas
perguntas precisam ser respondidas. Mas para isso é
preciso responder se a competição se dá sempre num
jogo ganha-perde ou se ela também pode se dar num
jogo ganha-ganha.
Em geral os que pensam o desenvolvimento
econômico pensam no desenvolvimento de uma
parcela em competição com outras parcelas e não no
desenvolvimento da soma toda. Se uma parcela puder

266
se aproveitar das debilidades da outra, não deve
pestanejar em fazê-lo. Se puder, por exemplo, trapacear
para levar vantagem numa transação, é considerado
normal que o faça, porque competição envolve
manobras operadas em incongruência com a realidade
como, por exemplo, o discurso inverídico. Por certo,
isso não é próprio somente da competição de mercado.
Em outras formas de competição, como a esportiva,
também se tolera a fraude, a mentira, a deslealdade.
Ninguém condena, para valer e em definitivo, um
jogador de futebol quando argumenta veementemente,
com o juiz da partida, que não cometeu uma falta
desleal que todos viram ser cometida por ele. Tal
comportamento é socialmente aceito como fazendo
parte ds características do jogo: “futebol é assim
mesmo”.
Diz-se que a competição econômica é amoral,
mas o fato é que ela acaba, tal como no exemplo citado
da partida de futebol, envolvendo procedimentos
imorais mesmo. Na esfera econômica, isso não é
próprio do capitalismo, mas do mercado. O mercador
persa mentia descaradamente para transferir uma falsa
mercadoria ao cliente, para vender “gato por lebre”
como se diz. O mercado capitalista aumentou a escala
da trapaça: ainda estou para conhecer alguma grande
empresa da atualidade que não tenha praticado alguma
falcatrua – ou contra o Estado (e, portanto, contra os
contribuintes), ou contra os acionistas, ou contra os

267
concorrentes, ou contra os parceiros, ou contra os
empregados, ou contra os clientes ou consumidores.
Pode-se tentar dizer que não, mas as coisas são assim.
Enquanto essas práticas trapaceiras, arquetípicas
do competitivo, ficam confinadas na esfera das
atividades mercantis, vá lá. (Pode-se sempre dizer que
“as coisas são assim”). Ao mercador trapaceiro não
corresponde necessariamente o cidadão desonesto em
outros campos da sua atividade social. Mas quando, a
conduta que é aceita no mercado, porquanto admitida
como inerente a uma atividade competitiva na qual é
mister “levar vantagem” (a famosa “lei de Gerson”,
entre nós), extravasa para outras esferas da realidade
social, aí então estamos diante de um problema mais
grave. Se a “lógica” do mercado passar a vigorar nessas
outras esferas estaremos diante de uma ameaça aos
fundamentos mesmo do social.
O capitalismo até que civilizou um pouco as
condutas competitivas. O ethos guerreiro dos nobres
medievais, manifestado na sua voracidade pela glória (e
pela riqueza e o poder a ela com certa freqüência
associados), transmigrou para o capitão da indústria na
sua ânsia de maximizar, de qualquer modo, os seus
lucros (e aumentar com isso a sua riqueza e o seu
poder) – um comportamento ainda voraz, por certo,
mas um pouco menos letal. Os séculos XIX e XX
estão marcados pela atividade desses novos guerreiros,
alguns tendo ficado famosos pela obstinação com que

268
se dedicaram a destruir seus concorrentes, não mais
fisicamente, como faziam os cavaleiros assassinos nas
suas gestas genocidas, mas economicamente. Mudou o
meio onde se dá a competição, mudaram as formas de
conquista da riqueza e do poder, mas a arquitetura
psicológica competitiva, contudo, não mudou tanto
assim.

7.3 – A competição pode ficar restrita ao


mercado?
Diante das considerações acima, talvez
devêssemos concluir que a competição devesse ficar
confinada na esfera do mercado. Como já se diz (Blair
e Schroeder, 1999): “queremos uma economia de
mercado e não uma sociedade de mercado”, até onde
isso for possível. Por outro lado, não é razoável pensar
que o mercado (assim como o Estado), vai durar a vida
toda, ou seja, até a extinção do nosso sol (ou até o Big
Crunch, se a humanidade conseguir escapar a tempo
para outro sistema). É razoável pensar que outras
instituições aparecerão, com outras “lógicas” de
funcionamento e outras racionalidades. Não creio,
assim, que a competição seja eterna. Por outro lado,
como caracterizadora da dinâmica de certo domínio de
ação humana, a competição é relativamente recente em
nossa história evolutiva: ocupando, talvez, menos de 0,
2% de todo o tempo, desde que nosso ancestral

269
africano vivia até hoje. As tentativas de fazê-la
caracterizadora de todos ou quase todos os domínios
de ação humana não passaram, até agora, de discursos
ideológicos, histórias de bicho papão para assustar
estatistas senis que parecem ter voltado à segunda
infância, como esses que vivem aterrorizados com o
fantasma do neoliberalismo (Franco, 1995).
Contudo, no fundo no fundo, existem razões
para preocupação: ideologias que justificam e
legitimam a competição como mecanismo selecionador
do mais apto continuam sendo difundidas amplamente.
De minha parte, penso que mesmo se a competição
estivesse inscrita em nossos gens – o que não parece
ser o caso – é improvável que ficássemos aguardando
uma mutação genética natural que superasse tal
característica. Muito antes, creio, arranjaríamos um
modo de erradicá-la biotecnologicamente, ao concluir
que uma sociedade desenvolvida do ponto de vista
humano e social sustentável não pode ser uma
sociedade (predominantemente) competitiva.
A tese de confinar a competição na esfera do
mercado tem, todavia, muitos problemas. O primeiro
problema decorre do fato de que, na realidade, todas as
esferas da realidade social se interceptam e só podemos
vê-las de modo isolado em virtude do nosso modo-de-
ver. Ou seja: é impossível, a rigor, isolar
completamente o mercado do Estado e da sociedade
civil, de sorte que a competição (inclusive aquela

270
tipicamente mercantil) transborda, em alguma medida,
para essas outras esferas. O segundo problema é que,
na verdade, a competição (não necessariamente
mercantil) também se manifesta, como vimos, em
outras esferas extra-mercantis; sobretudo na política:
dois candidatos competem entre si quando se propõem
a ocupar uma mesma vaga, por exemplo.
A competição na política remete à um outro
problema, que tem a ver com o modo de resolver o
conflito que decorre da competição. Aliás, o
mecanismo eleitoral utilizado para resolver a disputa
entre duas pessoas ou grupos que querem ter acesso ao
mesmo posto de poder já faz parte de um modo de
regulação – o modo democrático – que evita desfechos
mais destrutivos dessa disputa (como seriam, por
exemplo, um duelo entre indivíduos ou uma guerra
entre os grupos pretendentes). O modo democrático
de regulação de conflitos é o que preserva, ao máximo,
a integridade dos contendores – uma característica
fundamental do que Maturana define como „sistemas
sociais‟: como vimos, “qualquer tentativa de
caracterizar um sistema social de uma maneira que
desconheça que a conservação da vida de seus
componentes é condição constitutiva do seu operar
está equivocada e especifica um sistema que não gera
os fenômenos próprios de um sistema social”
(Maturana, 1985a: 76).

271
Nesse sentido poder-se-ia afirmar que o modo
democrático é uma espécie de regulação política (mais)
adequada à dinâmica dos sistemas sociais – o que,
talvez, não nos autorize a derivar o primeiro da
segunda, como, às vezes, parece sugerir Maturana.
Diante do fato, inegável, de que nesse tipo de
sociedade em que vivemos há competição em todas as
esferas da realidade humano-social a questão é saber se
em outro tipo de sociedade também haveria
competição. Não a competição eventual – a disputa
entre pessoas e grupos por um mesmo recurso,
genericamente falando, ou por algum título ou
distinção simbólica que confira prestígio e/ou
reconhecimento social – mas a competição sistemática,
aquela que configura o mundo como um campo de
luta pela vida.
Não se sabe. Mas não é impossível imaginar
uma configuração social estável onde não haja lugar
para a competição sistemática. Ora, se é, para os
humanos, possível imaginar isso – então já temos, pelo
menos, uma indicação de que tal tipo de sociedade não
constitui algo totalmente estranho à realidade humana.

7.4 – Visões biológicas competitivas e


colaborativas
Reconhecer que a competição existe nas
sociedades humanas nada tem a ver com pregar a sua

272
imanência ou a sua inexorabilidade, ou especular sobre
sua possível fonte biológica ou genética.
Argumenta-se freqüentemente que o mundo
natural é um campo de luta pela vida. Se o mundo
natural é um campo de luta pela vida (struggle for life),
então seria “natural” pensar que o mundo social
também o é? O darwinismo social e um pouco
também o neo-darwinismo (como, aliás, qualquer
darwinismo, em que pesem os esforços ingentes de
vários bem-intencionados pesquisadores
contemporâneos de “salvar” Darwin, dizendo que ele
nunca disse “isso” ou “aquilo” – mais ou menos assim
como se tentou, durante décadas, livrar Lenin das
conseqüências maléficas dos sistemas políticos
implantados por seus seguidores) induzem à uma
resposta afirmativa a esta questão. O problema, como
já se disse aqui, não é tomar a biologia como geratriz
de comportamentos sociais, o que, sob certo aspecto, é
inevitável uma vez que o homem é um ser biológico
basicamente. O problema está no tipo de biologia que
se toma. Desse ponto de vista todo darwinismo é
social na medida em que foi o comportamento social,
observado num tipo de sociedade, que levou Darwin e
seus seguidores a inferir um comportamento natural,
ou melhor, a interpretar o comportamento natural em
termos de luta. A sociedade inglesa, sob o influxo do
emergente mercado capitalista, apresentava-se de fato
como um campo de luta generalizado e até certo ponto

273
selvagem (aliás, a expressão “capitalismo selvagem”
tem tudo a ver com isso). Pelo que se pode
depreender, a “lei da selva” não saiu da selva para a
“praça do mercado” mas, ao contrário, da segunda
para a primeira como, aliás, já havia reconhecido Marx
em 1862.
Matt Ridley resume de maneira brilhante:
“Thomas Hobbes foi o antepassado intelectual de
Charles Darwin em linha direta. Hobbes (1651) gerou
David Hume (1739), que gerou Adam Smith (1776),
que gerou Thomas Robert Malthus (1798), que gerou
Charles Darwin (1859). Foi depois de ler Malthus que
Darwin deixou de pensar sobre competição entre
grupos e passou a pensar sobre competição entre
indivíduos, mudança que Smith fizera um século antes.
O diagnóstico hobbesiano – embora não a receita –
ainda está no centro tanto da economia quanto da
biologia evolutiva moderna (Smith gerou Friedman;
Darwin gerou Dawkins). Na raiz das duas disciplinas
está a noção de que, se o equilíbrio da natureza não foi
projetado de cima mas surgiu de baixo, não há motivo
para pensar que se trata de um todo harmonioso. Mais
tarde, John Maynard Keynes diria que A origem das
espécies é “simples economia ricardiana expressa em
linguagem científica”. E Stephen Jay Gould disse que a
seleção natural “era essencialmente a economia de
Adam Smith vista na natureza”. Karl Marx fez mais ou
menos a mesma observação: “É notável”, escreve ele a

274
Friedrich Engels, em junho de 1862, “como Darwin
reconhece, entre os animais e as plantas, a própria
sociedade inglesa à qual pertence, com sua divisão de
trabalho, competição, abertura de novos mercados,
„invenções‟ e a luta malthusiana pela existência. É a
bellum omnium contra omnes de Hobbes”” (Ridley, 1996:
284-5).
Na verdade a raiz do problema está nos
pressupostos que tomamos: no caso da contraposição
competição x cooperação, no tipo de biologia da
evolução a que recorremos para construir nossos
modelos de comportamento social. Como a teoria
oficial da evolução – ainda ensinada em quase todas as
escolas do mundo – é o neodarwinismo, acabamos
importando pressupostos não-cooperativos para as
nossas ciências sociais. O neodarwinismo, como se
sabe, é resultado de uma combinação das idéias
originais de Darwin sobre as mudanças evolutivas
graduais com as descobertas de Mandel sobre a
estabilidade genética. “De acordo com a teoria
neodarwinista, toda variação evolutiva resulta de
mutação aleatória – isto é, de mudanças genéticas
aleatórias – seguida por seleção natural” (Capra, 1996:
180). Mas o neodarwinismo não é a única teoria
existente. Existe também a teoria da endossimbiose
seqüencial de Lynn Margulis, para quem “o
neodarwinismo é fundamentalmente falho, não
somente pelo fato de se basear em conceitos

275
reducionistas, que hoje estão obsoletos, mas também
porque foi formulado numa linguagem matemática
inapropriada... [a linguagem] da tradição zoológica...
[acostumada] a lidar apenas com uma parte pequena e
relativamente recente da história da evolução.
Pesquisas atuais em microbiologia indicam
vigorosamente que os principais caminhos para a
criatividade da evolução foram desenvolvidos muito
tempo antes que os animais entrassem em cena”
(Idem: 181) (n. i.).
Para Margulis, a simbiose (“a tendência de
diferentes organismos para viver em estreita associação
uns com os outros e, com freqüência, dentro uns dos
outros, como as bactérias em nossos intestinos”)
cumpre um papel fundamental na evolução: “simbioses
de longa duração, envolvendo bactérias e outros
microorganismos que vivem dentro de células maiores,
levaram, e continuam a levar, a novas formas de vida...
[Assim, ela] vê a criação de novas formas de vida por
meio de arranjos simbióticos permanentes como o
principal caminho de evolução para todos os
organismos superiores” (Capra, 1996: 185) (n. i.).
Examinemos o que diz a própria Margulis. “A
simbiose, termo cunhado pelo botânico alemão Anton
deBary em 1873, é a convivência de tipos muito
diferentes de organismos; deBary na verdade a definiu
como a “convivência de organismos de nomes
diferentes”. Em certos casos a coabitação, existência a

276
longo prazo, resulta em simbiogênese: o surgimento de
novos corpos, novos órgãos, novas espécies. Em suma,
acredito que a maior parte da inovação evolutiva
surgiu, e ainda surge, diretamente da simbiose. Essa
não é a noção mais comum presente na maioria dos
livros didáticos quanto à base da mudança evolutiva.
A simbiogênese, idéia proposta pelo russo
Konstantin Merezhkovsky (1855-1921), refere-se à
formação de novos órgãos e organismos por meio de
incorporações simbióticas... esse é um fato
fundamental na evolução. Todos os organismos
grandes o bastante para que possamos vê-los são
compostos de micróbios antes independentes,
agrupados para formar totalidades maiores. Ao se
fundir, muitos perderam o que em retrospecto
reconhecemos como sua antiga individualidade... Creio
que já consegui convencer muitos cientistas e
estudantes de que partes das células, as organelas,
surgiram simbiogeneticamente, como consequência de
diferentes simbioses permanentes... Atualmente
trabalho na expansão da teoria para mostrar que
organismos maiores, com seus novos órgãos e novos
sistemas de órgãos, também evoluíram pela
simbiogênese. Se os simbiontes se fundem por
completo, se eles se incorporam e formam um novo
tipo de ser, o novo “indivíduo”, o resultado da fusão,
por definição, evoluiu por simbiogênese. Embora o
conceito de simbiogênese tenha sido proposto há um

277
século, somente agora dispomos das ferramentas para
testar a teoria com rigor” (Margulis, 1998: 38.9).
Para Margulis, “a simbiogênese foi a lua que
puxou a maré da vida de suas profundezas oceânicas
para a terra seca e para o ar... Se as pessoas um dia
viajarem por longos períodos pelo espaço, a aventura
nunca será tão artificial e estéril quanto em Jornada nas
estrelas. A visão da engenharia asséptica nos libertando
de nossos companheiros de planeta não é apenas
insossa e tediosa, mas toca as raias do revoltante. Não
importa o quanto nossa espécie nos preocupe, a vida é
um sistema muito mais amplo. A vida é uma
interdependência incrivelmente complexa de matéria e
energia entre milhões de espécies fora (e dentro) de
nossa própria pele. Esses estranhos da Terra são
nossos parentes, nossos ancestrais, e parte de nós. Eles
reciclam nossa matéria e nos trazem água e alimento.
Não sobrevivemos sem “o outro”. Nosso passado
simbiótico, interativo e interdependente, é interligado
por águas agitadas” (Margulis, 1998: 106) (n. g.).
Embora Lynn Margulis esteja se referindo a
processos estritamente biológicos – e por isso mesmo
– a idéia de que, na natureza, “não sobrevivemos sem
o outro” (ou seja, de que só sobrevivemos com-o-
outro) inspira ao pensamento social pressupostos
radicalmente opostos àqueles que são sugeridos pela
idéia de que, para sobreviver, temos que, de algum

278
modo, vencer o outro (isto é, ultrapassá-lo
evolutivamente por melhor adaptação).
Por isso tem razão Fritjof Capra quando assinala
que “a teoria da simbiogênese implica uma mudança
radical de percepção no pensamento evolutivo.
Enquanto a teoria convencional concebe o
desdobramento da vida como um processo no qual as
espécies apenas divergem uma da outra, Lynn Margulis
alega que a formação de novas entidades compostas
por meio da simbiose de organismos antes
independentes tem sido a mais poderosa e mais
importante das forças da evolução. Essa nova visão
tem forçado biólogos a reconhecer a importância vital da
cooperação no processo evolutivo. Os darwinistas sociais do século
XIX viam somente competição na natureza – “a natureza,
vermelha em dentes e em garras”, como se expressou o
poeta Tennyson –, mas agora estamos começando a reconhecer
a cooperação contínua e a dependência mútua entre todas as
formas de vida como aspectos centrais da evolução. Nas
palavras de Margulis e de Sagan: “A vida não se apossa
do globo pelo combate, mas sim, pela formação de
redes” [Margulis e Sagan, 1986: 15] (Capra, 1996: 185)
(n. i.) (n. g.).
Se nossos antropólogos, sociólogos e
economistas passassem a tomar como referência a
produção, por exemplo, de Margulis, Maturana ou
Gould, ao invés de Darwin e seus seguidores, Wilson
ou Dawkins; ou seja, se tomassem como pressupostos

279
outras biologias da evolução, é muito provável que
fizessem outro tipo de ciência social e econômica. E
que, assim, suas interpretações do que ocorre na
natureza não fossem tão projetivas do que observam
na sociedade mercantil.
Quando seres não-humanos chocam-se entre si
no seu processo de aceder a recursos sobrevivenciais
ou reprodutivos – mesmo que uns devorem ou matem
os outros – isso não é um duelo, uma guerra, uma
competição em termos humanos, porque, em
99,999...9% dos casos, não há um „átomo de interesse‟
envolvido em disputa, não há auto-asserção egóica, não
há a emoção de se comprazer no ato de privar o outro
dos recursos necessários à sua subsistência ou de
aniquilá-lo, não há assassinato ou, se houver, como se
diz que há no caso de certos primatas (os 0,00...1%),
essa emoção não é constitutiva do seu viver coletivo a
não ser que, por alguma razão (em geral, não por
acaso, o contato com humanos civilizados), tenha se
estabelecido uma incongruência com o meio, o que
acabará levando tal espécie ou linhagem à extinção em
virtude da impossibilidade de realização da sua
autopoiese. Todos os choques entre seres não-
humanos são, como reconheceu Maturana, resultados
de processos coletivos de realização de autopoiese,
coreografias da dança estrutural que permite a
manutenção e a reprodução de espécies e linhagens em
congruências múltiplas e recíprocas com o meio.

280
Os darwinismos são sociais porque decalcam a
biologia da sociologia desse tipo de sociedade em que
vivemos e nesse tipo de sociedade (do padrão
civilizatório patriarcal) sempre haverá competição, em
algum grau, em todas as esferas da realidade humano-
social. A conclusão é a de que não há como restringir a
competição à esfera do mercado porque não há como
desvencilhar a competição do ser humano realmente
existente, na medida em que somos, em parte,
culturalmente construídos segundo um padrão que tem
se transmitido, de modo não-genético, geração após
geração (pelo menos nos últimos seis mil anos). O que
não quer dizer que não possa haver graus maiores de
cooperação e/ou graus menores de competição nas
sociedades atuais. Nem quer dizer que uma “lógica”
competitiva (como, por exemplo, a do mercado) deva
necessariamente prevalecer nas sociedades civis e nos
governos das sociedades realmente existentes no
mundo de hoje (como preconiza a ideologia dita
neoliberal e outras teorias sub-liberais esposadas por
grande parte dos economistas hodiernos).
As teorias do Capital Social, pelo contrário,
argumentam que graus maiores de cooperação são
mais favoráveis ao desenvolvimento das sociedades
humanas. Ao fazer isso pressupõem que o
desenvolvimento social é condição para o
desenvolvimento, de diversos pontos de vista em que
entendem o termo „desenvolvimento‟, inclusive

281
quando consideram apenas o desenvolvimento
econômico. As teorias do Capital Social não são teorias
para uma sociedade que não existe, mas para as
sociedades realmente existentes, as quais, embora
manifestem, em maior ou menor grau, uma
racionalidade competitiva em todas as suas esferas,
também são pervadidas, em maior ou menor grau, por
uma racionalidade (e por uma emocionalidade!)
cooperativa. Então as teorias do Capital Social dizem o
seguinte: quanto maior for o exercício social da
cooperação mais condições terá uma sociedade de se
desenvolver socialmente e, por conseguinte, mais
condições terá de ensejar a dinamização das
potencialidades e a actualização das capacidades das
pessoas que a compõem – o que redunda numa maior
capacidade de realizar bons governos e de prosperar
economicamente.
Num certo sentido isso vai contra a crença, hoje
bastante generalizada, de que quanto maior o grau de
enraizamento e de abrangência de uma racionalidade
competitiva, mais condições terá uma sociedade de
dinamizar sua economia, crescer e, como
conseqüência, de melhorar as condições de vida de
suas populações. Como essa crença é meio estúpida –
de vez que quem dinamiza a economia não é o capital
físico ou financeiro enquanto coisas, entes objetiváveis
independentemente das relações sociais que os
constituem, mas a qualidade das relações entre as

282
pessoas e de vez que a qualidade dessas relações
depende das capacidades das pessoas e do ambiente
em que estas pessoas se relacionam, o qual deve
fornecer uma base de confiança para que se possa
efetivar qualquer relação economicamente viável e um
lastro de cooperação para que possam tornar-se
economicamente favoráveis seus resultados
(reduzindo-se, por exemplo, as margens de incerteza e
os custos de transação) – adota-se então a hipótese de
que a cooperação é necessária para a competição.

7.5 – Cooperar para competir


Cooperar para competir é um artifício de
pensamento elaborado, na verdade, para salvar a
competição como o fator impulsionador do
desenvolvimento. Mas o que se consegue com isso é
apenas remeter o problema de um nível para outro e
não resolvê-lo.
Vejamos. Uma localidade que coopera consegue
ser mais competitiva do que outra que não coopera e,
com isso, tem mais condições de prosperar
economicamente do que a outra. O mesmo vale para
uma região de um país, para um país, para uma região
do mundo, mas... então, não pode valer para o mundo
todo. Se se coopera para ganhar a competição com um
terceiro, o que ocorrerá quando não existir esse
terceiro que não coopera, ou seja, quando todos

283
cooperarem? Pode-se dizer que ganhará quem
cooperar mais porque terá mais condições para
competir. Mas quem ganhará, afinal: o indivíduo
cooperante ou o coletivo dos indivíduos cooperantes
(ou ambos)? No segundo caso, qual é tamanho desse
coletivo que ganha e ele ganha de quem? É sempre
desejável (ou inevitável) que alguém perca? Se um país
deve impor uma derrota a outro para se desenvolver
mais, o mesmo vale para duas regiões de um mesmo
país? O Norte da Itália pode se “lixar” para o Sul? São
Paulo pode abrir uma guerra fiscal com o Nordeste do
Brasil? Por que não? Porque aqui a competição em
prol do desenvolvimento deve ser enfreada por coisas
como “sentimento de nação” ou “vontade de viver
juntos”? (Se essas coisas são aceitas como válidas,
então é sinal de que devemos abrir mão de mais
desenvolvimento em seu favor?) E por que o mesmo
não valeria para duas regiões do mundo ou para o
mundo todo? Para que a humanidade como um todo
ganhe será preciso arranjar competidores extra-
terrestres, que percam para nós ganharmos?
E se quem deve ganhar é o indivíduo, por que
ele não deveria formar coalizões cooperativas com
indivíduos de outros países para vencer a competição
com indivíduos do seu próprio país (como aliás ocorre
com certa freqüência)? E ainda, na hipótese de
entrarmos em contato com seres não-humanos
inteligentes de outros planetas, o que deveria impedir-

284
nos de fazer alianças com estes seres não-humanos
contra os outros seres humanos? Se o que vale é a
competição para impulsionar o desenvolvimento – a
essa altura um conceito já totalmente desfigurado –
então é o vale tudo?

7.6 – Cooperar e competir


Ultimamente vêm surgindo tentativas de
combinar as duas coisas – cooperação e competição –
por meio de conceitos como “co-opetition”, jogos “win-
win”, jogos em que “the winner doesn‟t take all”.
Economistas heterodoxas, como Hazel Henderson,
sustentam que “os padrões de sustentabilidade têm de
incluir também a ampliação de domínios de interações
humanas de soma não-zero, isto é, jogos do gênero
“ganha-ganha”, e a evolução da cooperação humana”
(Henderson, 2000: 1). Para ela, “tanto a competição
como a cooperação são componentes essenciais nas
sociedades humanas, mas o seu conteúdo e suas
modalidades estão sofrendo mudanças no ambiente
atual de transição para a interdependência global. Na
medida em que nichos ecológicos e sociais são
preenchidos, começam a falhar estratégias de fundo
competitivo do tipo “perde-ganha” – que eram ideais
para densidades populacionais mais baixas e ambientes
inexplorados. Assim sendo, a atual globalização de
mercados e tecnologias ancoradas em tais economias

285
competitivas freqüentemente se torna uma
concorrência implacável, de “perde-perde”, ou conduz
a desfechos da classe “o vencedor leva tudo”. E estes
variam de natureza, desde barcos de pesca
destruidoramente super-eficientes, que juntos
acabaram provocando colapso de empresas pesqueiras,
até a marginalização de países inteiros, que se viram
excluídos de redes financeiras e de informações
(Henderson: Idem + 1995; 1996).
O conceito de “co-opetition”, por sua vez, é uma
tentativa particular de mostrar que pode se estabelecer
um equilíbrio dinâmico entre competição e
cooperação, desde que os competidores/parceiros
estejam articulados segundo um padrão de rede.
Lipnack e Stamps, em “The TeamNet Factor” escrevem
que “há uma grande mudança estratégica ocorrendo na
forma pela qual o mundo faz negócios. Empresas
competem e cooperam ao mesmo tempo. As
vantagens competitivas da cooperação advêm da
realização conjunta de coisas que não podem ser
realizadas isoladamente. A vantagem cooperativa da
competição surge da capacidade de inovação e da luta
pela excelência. “Co-opetition” é uma combinação das
palavras “cooperação” e “competição”. Sendo ou não
transformado em palavra, o termo „co-opetition‟ capta
a dinâmica difícil de descrever que existe entre
independência e interdependência. Esta dinâmica
encontra-se no centro do novo e emergente estilo

286
flexível de organização que tantas empresas estão
procurando seguir. Substituindo com rapidez a antiga
máquina organizacional burocrática e hierárquica, a
organização flexível utiliza a cooperação para transpor
fronteiras, em vez de competir para eliminá-las”
(Lipnack e Stamps, 1993: 12-3).
Lipnack e Stamps dizem que “as redes existem
na criativa tensão que há entre tendências competitivas
e cooperativas, variando sempre entre a auto-asserção
de indivíduos e à integração requerida pelo grupo
como um todo. Dois [dos] princípios [dos TeamNets]
dão suporte à competição, uma tendência auto-
assertiva: participantes independentes e múltiplos
líderes... [E] dois [desses] princípios refletem
cooperação, uma tendência integradora: propósito
unificador e interligações voluntárias. Um quinto
princípio proporciona equilíbrio entre as forças
antagônicas: níveis interativos. A combinação de
“cooperação” e “competição” não constitui uma
contradição desajeitada. A raiz das duas palavras, a
combinação “co-opetition”, literalmente significa
“trabalhar e buscar em conjunto”. Trata-se de uma
feliz combinação do poder da cooperação com o zelo
competitivo que proporciona vantagens a pessoas e
empresas. Numa palavra, “co-opetition” funde forças
complementares, englobando de uma só vez um
complexo sistema de conceitos (Lipnack e Stamps,
1993: 41-2) (n. i.).

287
Tudo bem, mas Lipnack e Stamps não mostram
por que a capacidade de inovar e de conquistar
excelência depende da competição. Por que, por
exemplo, isso não poderia ser promovido por arranjos
emuladores em contextos cooperativos? Haveria
mesmo uma tendência auto-assertiva de indivíduos e
grupos que leva à competição? Qual seria a natureza
dessa tendência? A independência dos participantes e a
multiplicidade das lideranças levam necessariamente à
competição, mesmo no contexto de um padrão de
rede?
A impressão que se tem é que se repete aqui a
crença de que a competição faria sempre brotar o que
há de melhor, tendo, assim, um papel selecionador. O
problema é que a coisa melhor – a melhor proposta, o
melhor produto – freqüentemente revela, aos olhos
dessa ideologia, o melhor indivíduo: o melhor
proponente, o melhor produtor. Ora, aí já estamos,
diga-se o que se quiser dizer, passeando num campo
darwinista de idéias, onde o indivíduo selecionado pela
competição é o mais adaptado porque é o mais
capacitado para fazer a coisa certa em termos
evolutivos, ou seja, a coisa que, ao ser feita, produz
melhor adaptação para quem a faz e esse “melhor” é
sempre relacional, é uma vantagem comparativa, em
relação a quem faz “pior” e tem uma pior adaptação.
Em suma, quem se adapta melhor é sempre o

288
vencedor da competição; o perdedor deve desaparecer
em virtude de déficit acumulado de adaptação.
As ideologias que justificam e legitimam a
competição nesses termos, como as ideologias
darwinistas, alastraram-se de tal forma no meio dos
empreendedores empresariais que até Lipnack e
Stamps, que sempre estão querendo ver um lado
positivo nessas coisas, reconhecem que “ao mesmo
tempo em que “competição” é uma palavra fácil de ser
engolida, “cooperação” é algo que poderia fazer
engasgar alguns homens de negócios” (Lipnack e
Stamps, 1993: 14). Mas por que homens de negócios
têm que “engasgar” quando ouvem falar de
cooperação? E por que “engolem” tão facilmente a
competição? De certo não é porque extraíram
cientificamente, da própria experiência, evidências
suficientes de que a cooperação atrapalharia seus
negócios. A reação é de cunho ideológico. Parece que,
apesar dos esforços de gente como Lipnack e Stamps e
Hazel Henderson, há uma verdadeira paidéia da
competição, um macro-esquema explicativo que se
reproduz difundindo a idéia de que a competição é
fonte de progresso e que não admite que se questione
tal dogma.

289
7.7 – Competição como forma imatura de
cooperação
Uma outra posição neste debate – um tanto
curiosa, sobretudo porquanto elaborada a partir de
uma perspectiva empresarial – é aquela a partir da qual
a competição é tomada como fazendo parte da
cooperação, aos nossos olhos como uma espécie de
cooperação imperfeita, imatura ou impossível de se
realizar plenamente na falta de linguagem ou de auto-
consciência – em suma, como um modo indireto de
cooperar ou de entrar em acordo com alguém na falta
da possibilidade de conversação (Mollner, 1999).
Segundo Terry Mollner “se a natureza é
fundamentalmente cooperativa, então a competição
não pode ser fundamental na natureza. Ela só pode ser
uma forma de cooperação, ou seja, um tipo de cooperação.
Quando observamos com mais cuidado, percebemos
que é assim. É muito parecido com a Terra. Quando
finalmente foi determinado que a Terra era curva
(redonda), o plano foi visto como uma parte da curva,
mas não que era fundamental” (Mollner, 1999: 2)
Mollner argumenta que “se você, como a
maioria dos insetos e dos animais, não tiver a
habilidade da linguagem e da auto-consciência, você
não poderá se comunicar de um modo cooperativo e
direto através da conversação. Por causa desta falta,
você terá somente meios indiretos de entrar em acordo
com alguém. Isto é competição. Uma maneira indireta

290
de chegar a um acordo. Esta é uma forma menos
madura de cooperação comparada com a cooperação
direta através da conversação, mas é mais madura do
que não se chegar a acordo nenhum.
Na natureza, uma briga entre dois cervos
machos para determinar qual é o mais forte e quem vai
acasalar com a fêmea é uma maneira indireta de entrar
em acordo sobre quem vai acasalar com a fêmea.
Quem acasala é o mais forte, porque isto é o melhor
para o bem de todos. Este “processo competitivo” é,
na base, um processo cooperativo. Os dois cervos
machos usando “linguagem de cervos” indireta para
determinar qual cervo se acasalará para o bem de
todos. Se eles tivessem a habilidade que chamamos
linguagem, poderiam ter entrado em acordo através da
conversação. Na ausência da linguagem, eles tomaram
a decisão através do caminho indireto que chamamos
“competição”. O importante é que eles entraram em
acordo, não que eles o tenham feito direta ou
indiretamente - através de conversação ou competição.
A cooperação para o bem de todos é o fundamental”
(Mollner, 1999: 3).
Terry Mollner pergunta-se, então, qual pode ser
“a relação entre competição e cooperação” para dizer
que “assim como o plano só pode existir em um
contexto curvo, a competição só pode existir em um
contexto cooperativo. Como a natureza está em
constante estado de cooperação consigo mesma, para

291
seu próprio bem, a competição, como a conversação, é uma
forma de cooperação, e não algo fundamental na natureza.
Ela é também uma forma menor de cooperação,
embora seja a maior forma de cooperação possível
para as plantas e para os animais, até onde
conseguimos perceber no momento – um pouco de
humildade seria apropriada aqui. Seres humanos,
entretanto, podem cooperar diretamente através do
uso de suas habilidades da linguagem e da
auto-consciência. Esta é uma forma mais madura de
cooperação. É por isso que preferimos acordos a
brigas, amor a conflitos” (Mollner, 1999: 4). Mollner
propõe que, a partir dessa compreensão, paremos “de
promover a competição como o princípio mais
fundamental na natureza, no mercado, na sociedade e
em todas as nossas relações com qualquer outra coisa
ou qualquer outra pessoa” (Idem).
Ele nos convida a refletir: “pare e pense nisto
um minuto. Se todas as pessoas na empresa estiverem
dando prioridade para seus próprios interesses, ser
produtivo será sempre uma preocupação secundária.
Qualquer outra coisa será no máximo uma
preocupação secundária. É isto que frustra tanto os
gerentes. Eles gostariam de estar trabalhando com
pessoas para quem a produtividade fosse a maior
prioridade. Bem, uma mudança de visão de mundo (a
qual me refiro como visão da Era de Relacionamento

292
para distinguí-la da visão da Era Material...) permitirá
que isto aconteça.
Se minha maior prioridade for o bem de todos e
eu admiti-lo pública e orgulhosamente, e se todos na
companhia o fizerem também com sinceridade, teremos
todos exatamente a mesma prioridade. Estaremos unidos no
âmago de nossos seres em tudo o que fizermos. Ser
produtivo será então visto não somente como um
serviço para o bem comum, mas também como a
melhor maneira de obter o bem para cada um,
inclusive para os meus próprios interesses corporais,
porque eu não me vejo mais separado do que me
cerca” (Mollner, 1999: 5).
“Nossa participação no mercado – prossegue ele
– também melhorará muito. Não mais nos basearemos
no mito ingênuo de que o mercado é
fundamentalmente competitivo. Se fosse, estaríamos
todos nos matando. Como isto não acontece, estamos
obviamente trabalhando com alguns acordos
cooperativos, tais como não nos matarmos, dentro dos
quais a competição ocorre como uma atividade
limitada. A competição não é fundamental no
mercado, a cooperação é. As leis governamentais e os
acordos sociais são as regras cooperativas dentro das
quais ocorre a competição. É como se fosse um jogo
de basquete. O foco pode estar na competição, mas as
regras do jogo é que são fundamentais e possibilitam a
ocorrência da competição limitada. Sem acordos,

293
competição sem morte não poderia existir. Se os dois
cervos não concordassem que acasalar com a fêmea é
importante, a competição não seria necessária. E se o
bem de todos não fosse mais importante, eles lutariam
até a morte, e não somente até que um vencedor
estivesse definido, e o perdedor pudesse então se
afastar ainda com integridade física.
Negociantes espertos entendem isto. Eles
estabelecem relações cooperativas com qualquer
pessoa com quem porventura possam precisar fazer
negócios. Em caso de necessidade, eles sabem que é
muito mais fácil entrar em acordo com amigos do que
com estranhos ou inimigos. Quando se consegue
montar as lojas, obter as licenças do Estado, manter
bom relacionamento com bancos e fornecedores etc., é
mais fácil ser bem sucedido e conseguir o tempo e
dinheiro necessários para manobrar, se a concorrência
surgir com um produto ou serviço melhor. Se as
pessoas acreditam que o mercado é fundamentalmente
competitivo, elas não enxergam facilmente a
importância de se manter boas relações com as pessoas
da comunidade, nem com as pessoas dentro da própria
empresa.
E qual é a melhor maneira de se fazer isso? No
fundo todos sabem que darão prioridade para o bem
de todos. E sobre isto nós não temos escolha (faz parte
da natureza). Damos prioridade a nossos próprios
interesses somente porque achamos que temos de

294
sobreviver no mundo adulto que nos cerca. Se
tivermos coragem de proclamar publicamente que
daremos prioridade ao bem de todos em tudo o que
fizermos, a sociedade adulta nos considerará ingênuos.
Entretanto, se tivermos a compreensão acima, sobre a
relação entre competição e cooperação, podemos nos
tornar bons nisso e, tendo em vista a igualdade de
todas as coisas, podemos ter mais sucesso no mercado
como uma empresa comunitária de adultos maduros”
(Mollner, 1999: 6).
A posição de Mollner é interessante, não há
dúvida. Mas trata-se mais de um insight, que precisaria
ser desenvolvido, do que de uma argumentação
consistente sobre a competição como um caso
particular, em termos evolutivos, de cooperação. Por
outro lado, o discurso de Mollner lembra um pouco as
clássicas admoestações patronais que, impregnadas de
comovente piedade, na verdade almejavam o aumento
da produtividade de suas empresas por meio de uma
catequese instrumental da colaboração entre
empregados, sobretudo entre chefes e subordinados e,
entre todos, e o dono.
Além disso, Mollner parece querer “salvar” a
competição, avalizando, de certo modo, por meio de
um paralelo natural, o comportamento competitivo, ao
admiti-lo, inclusive, em seres vivos não-humanos. Com
isso, desconstitui o conceito de competição, próprio de

295
interações culturalmente condicionadas entre
humanos.
Terry Mollner não está fazendo propriamente
uma teoria da cooperação, mas lançando pressupostos
ideológicos para um discurso ético generoso –
impossível, daqui, julgar se aparente ou real, hipócrita
ou não. Ele quer refrear, em nome do bem comum, a
competição pontual com a colaboração generalizada, a
qual não seria própria apenas das racionalidade e
emocionalidade humanas, mas pervadiria todo a
natureza e o próprio universo.

7.8 – Nem anjos nem demônios


Por último, voltando à teoria dos jogos, essa
conversa de que o ser humano é, ao mesmo tempo,
demônio e anjo, falcão e pomba – como gosta de
caracterizar a mentalidade, um tanto infantilizada (no
sentido de tornada socialmente irresponsável) de
alguns estrategistas que vivem se divertindo com jogos
matemáticos – nada tem de científica. De que ser
humano se está falando? Os Ianomanis seriam, ao
mesmo tempo, demônios e anjos? Por que? Milhares
de mães neolíticas, há 8 mil anos, nas margens do
Danúbio, teriam se comportado como falcões, em
virtude de alguma característica intrinsecamente
constitutiva da classe Homo, de alguma predisposição
genética para a competição? Respostas afirmativas para

296
tais questões não são ao menos verossímeis para
qualquer pessoa de bom-senso.
No entanto, a história humana, pelos menos nos
últimos seis mil anos, mostra, à farta, como é possível
produzir demônios e falcões. A julgar pelas condições
atuais de nossa vida social, isso pode ser feito sem
grande dificuldade: basta introduzir padrões de organização
hierárquicos e modos de regulação autocráticos em uma
coletividade humana para que em tal coletividade se instaure a
predação social com tudo o que isso implica em termos
de busca, a qualquer preço, da satisfação de interesses
individuais, guerra, apropriação, sujeição, abuso (uso
forçado de seres humanos por outros seres humanos) e
controle.
Poder-se-ia objetar, argumentando que tais
características da predação social já deveriam estar
presentes, em alguma medida, em uma sociedade, para
que se pudesse instaurar padrões hierárquicos de
organização e modos autocráticos de regulação nesta
sociedade. Por certo a hierarquia e a autocracia
reproduzem socialmente, e em escala ampliada,
demônios ou falcões – mas se a questão é saber como
se produziram, originariamente, hierarquia e autocracia
na humanidade, então o assunto torna-se mais
complexo.
Pode-se adotar três grandes tipos de respostas
para essa questão: a) o tipo de resposta de quem
imagina que as características da predação (ou, pelo

297
menos, uma parte dessas características e fala-se aqui
da predação social, não da predação natural) são
constitutivas da espécie humana e fazem parte de um
patrimônio que, de alguma forma, se transmite
geneticamente geração após geração; b) o tipo de
resposta de quem imagina que as características da
predação social são resultados de configurações
comportamentais adquiridas fortuitamente, mas que,
uma vez adquiridas, se conservaram por meio da
cultura, quer dizer, da transmissão não genética de
comportamentos, geração após geração; e, c) o tipo de
resposta que combina as duas respostas anteriores.
Penso que se deva dizer que (ainda) não há
como resolver definitivamente a questão. Os
argumentos em prol desta ou daquela resposta não são
conclusivos, conquanto, em certo sentido, sejam
reveladores: às preferências por um tipo de resposta
para explicar um comportamento pregresso, associam-
se, em geral, preferências atuais por caminhos a seguir
no futuro. De sorte que não parece fortuita a
coincidência, por exemplo, entre a preferência pela
explicação genética e uma não adesão (ou uma adesão
apenas parcial) à democracia e, sobretudo, à
democratização ou radicalização da democracia.
Já que não há como olhar o passado a não ser
com os olhos do presente e, além disso, sob a
perspectiva de um futuro desejável, na verdade
modificamos o passado para adequá-lo às nossas

298
expectativas e não há ciência que possa ser invocada
para separar uma visão objetiva do passado de toda a
carga de subjetividade que lhe atribuímos quando
tentamos desvendá-lo. Assim, por exemplo, quem vê
competição sistemática na natureza não-humana (ou
mesmo na sociedade humana pré-patriarcal), quem vê
“política chimpanzé”, quem vê guerra entre
artrópodes, está, na verdade, projetando seus modelos
mentais de uma civilização de predadores em
realidades que nada têm a ver com a cultura patriarcal,
hierárquica e autocrática que tem se conservado nos
últimos seis mil anos na maior parte do mundo.
A observação de que nem todos os seres
humanos se comportam como anjos ou como
demônios, ao invés de levar à afirmação de que somos,
ao mesmo tempo, anjos e demônios, deveria levar à
afirmação, muito mais lógica, de que não somos nem anjos
nem demônios. A introdução desse tipo de classificação é
que constitui o problema ao supor que deva existir
bem (altruísmo puro) e mal (egoísmo/altruísmo egoísta
ou instrumental) na constituição do humano, ou um
bem separável do mal em termos ontológicos e não
contingentes. Sim, há uma ordem social que deriva da
separação entre bem e mal e entre pombas
(cooperativas/fiéis) e falcões
(competitivos/desertores), mas esta ordem é cultural –
e, portanto, social mesmo – e não natural.

299
Sustento, baseado em minhas preferências
radicalmente democráticas, que é possível pensar da
seguinte maneira. Como não há nada na natureza
animal, inclusive na humana, que force a competição
sistemática, nem mesmo a escassez de recursos
sobrevivenciais (e aqui tomo a liberdade de generalizar
a suposição de Lynn Margulis, segundo a qual diante
da escassez a natureza tende, no longo prazo, a
selecionar os simbiontes em detrimento dos
predadores), então penso que a competição não deve
ser constitutiva do humano, nem em termos do
genótipo da espécie, nem em termos do fenótipo da
linhagem. Por outro lado, como também não há nada
na natureza animal que impeça a cooperação
sistemática, e sim, pelo contrário, como tão bem nos
mostrou Humberto Maturana, existem, no caso do
humano, condicionantes que ensejam a prática
continuada da cooperação – pelo fato do nosso ser
individual ser social – então imagino que a cooperação
deve ser uma característica fenotípica da linhagem
humana que pode se realizar porquanto não encontra
nenhum óbice genotípico na espécie.
Portanto, resolvo assim a questão: o ser
humano, deixado à sua própria sorte, no mínimo, nada
tem que o impeça de ser cooperativo. Pode, entretanto,
não ser cooperativo, desde que criemos condicionantes
culturais que impeçam a colaboração e induzam
socialmente a competição. Tais condicionantes são,

300
basicamente, de dois tipos: aqueles introduzidos pelo
padrão de organização e aqueles instaurados pelo
modo de regulação dos conflitos (gerados pelo padrão
de organização ou pelo próprio modo de regulação), os
quais determinam, respectivamente, a estrutura e a
dinâmica de todas as sociedades humanas (pelo menos
nos últimos seis mil anos). Pessoas conectadas
horizontalmente segundo um padrão de rede, no
mínimo, não terão motivos para ser competitivas.
Pessoas subordinadas verticalmente umas às outras, no
mínimo terão motivos para não ser cooperativas
(sobretudo em relação às quais devem obedecer, isto é,
agir motivadas pela vontade dos superiores e não pelo
seu próprio desejo). Pessoas que pertencem a
sociedades hierárquicas, que regulam os conflitos entre
superiores e inferiores de modo autocrático, estarão
submetidas a restrições para praticar a cooperação, ou
melhor, para exercer socialmente a cooperação.
Pessoas que pertencem a sociedades que, embora
hierárquicas, tentam regular seus conflitos
democraticamente, poderão praticar socialmente a
cooperação, na exata medida em que tais sociedades
consigam regular, de fato e não apenas em virtude de
princípios declarados em códigos legais (como as
Constituições, por exemplo), seus conflitos
democraticamente.
Nos capítulos 9 e 10 estes assuntos – padrões de
organização e modos de regulação – aqui apenas

301
mencionados, vão receber um tratamento mais
exaustivo. Antes, porém, cabe examinar as origens da
visão de mundo que acompanhou e possibilitou a
criação e a reprodução de sistemas de dominação, que
instauram sociedades que impedem a criação e a
reprodução do Capital Social, como a cultura patriarcal
estudada por Humberto Maturana.

302
8
______________________
Sociedades de dominação
e sociedades de parceria

A investigação dos pressupostos do Capital


Social, sobretudo a partir das considerações de
Humberto Maturana – segundo as quais o ser humano-
social é constitutivamente colaborativo – coloca uma
questão inelutável. Se o ser humano tem uma tendência
básica para cooperar, por que surgiram, no seio das
coletividades humanas, formas hierárquico-verticais de
relacionamento e modos violentos e coercitivos de
regulação dos conflitos inerentes à institucionalização
dessas formas, que coíbem a cooperação e induzem à
competição? E coloca, também, uma outra questão

303
conexa: por que isso tem ocorrido, sistematicamente,
pelo menos nos últimos seis mil anos?
Os trabalhos de Maturana, resenhados no
capítulo 6, reforçam a hipótese de que não somos
necessariamente predadores eco-sociais. Segundo
Maturana, como vimos, foi a cultura patriarcal que,
destruindo as bases colaborativas da cultura matrística,
introduziu um modo de coexistência que valorizou a
competição, tendo resultado daí um universo social
dominado pela guerra, pelas hierarquias e pelo poder.
Todavia, Maturana não esclarece bem a partir de que
momento da história ou da proto-história da nossa
civilização ocorreu esta mudança cultural.
Levantou-se nos últimos anos a hipótese de que
em algum momento do final do quinto milênio (ou no
início do quarto) entramos num dos ramos de uma
bifurcação que nos conduziu a esse tipo de civilização
em que vivemos. Se tivéssemos tomado o outro caminho,
tudo teria sido diferente (Abraham et al., 1989).
Ora, se conseguirmos descobrir alguma coisa
das origens da visão de mundo que acompanhou e
possibilitou a criação desse tipo de civilização em que
vivemos – patriarcal, guerreira e dominadora: a
civilização dos predadores eco-sociais – quem sabe
poderemos imaginar como tudo poderia ter sido
diferente. Se tivéssemos tomado o outro ramo da
bifurcação, quem sabe fossemos hoje algo assim como
simbiontes ao invés de predadores.

304
Talvez não seja possível detectar os rastros de
um simbionte primitivo, se é que ele existiu; ou seja,
apresentar evidências da presença pré-histórica de seres
humanos que viviam em regime de parceria, entre si e
com a natureza. Todavia, parece não ser impossível
imaginar como seria uma civilização de simbiontes
desenvolvidos, ao invés da atual civilização de
predadores desenvolvidos. Este é o motivo pelo qual
vale a pena o esforço de investigar as características
originais do padrão do predador, ou seja, o seu
fenótipo, para tentar, depois, imaginar como seria uma
sociedade de simbiontes desenvolvidos, ou seja, para
cotejar a estrutura e a dinâmica de uma sociedade de
dominação, por um lado e de uma sociedade de
parceria, por outro. Porque sociedade de parceria seria
aquela na qual prevalecem relações de parceria que são,
por definição, relações produtoras de Capital Social.

8.1 – Predador ou simbionte?


Muitas pessoas acreditam que a violência é inata
ao ser humano. Ou, pelo menos, que existiu uma
adaptação evolutiva que favoreceu ao desenvolvimento
de grupos que utilizaram sistematicamente a violência
para instaurar e manter a ordem social. Segundo essas
pessoas, a violência tem uma origem sagrada: o
sacrifício. A idéia de sacrifício humano como
fundamento da ordem social estaria profundamente

305
arraigada no subconsciente religioso. Essa idéia
derivaria de uma tendência para a destruição que seria
própria do ser humano. Para tais pensadores, alguns
grupos humanos foram capazes de se impor aos
demais porque estavam aglutinados pelo poder ritual
de matar. Nesse sentido, o sacrifício teria dado forma à
sociedade, instalando uma ordem inabalável, porque a
espécie humana é aquela espécie dos seres que matam
– como se pode constatar, por exemplo, no livro
“African Genesis” de Robert Ardrey (Ardrey, 1961).
Já estamos tão acostumados com essa visão que
nem nos damos conta da sua crueldade. Quase todo
mundo que assistiu “2001, Uma Odisséia no Espaço”
achou o filme excelente. Mas quase ninguém prestou
atenção ao fato de que a história contada no filme se
baseia, como já assinalamos, numa visão problemática
e perversa. O macaco se transforma em homem
quando mata o outro ser da sua espécie. Usando uma
arma - um osso, transformado em ferramenta para
matar - aquele macaco do filme de Kubrick, como diz
Thompson (1987), dá início ao progresso. A história
do filme “2001” apenas reflete a idéia de que todas as
importantes descobertas tecnológicas primitivas foram
feitas pelo caçador e pelo guerreiro, ao buscarem uma
maneira mais eficaz de matança. Assim, teria sido a
ferramenta utilizada para matar que nos tornou
humanos.

306
A maioria das pessoas é levada a acreditar nessa
idéia porque ela tem uma aparência de verdade
científica. Porém a ciência não nos obriga a acreditar
que a violência seja inerente ou constitutiva da
natureza humana e nem que a civilização tenha se
desenvolvido a partir da arma ou do ato de matar.
Podemos supor que algo aconteceu para que as coisas
passassem a ser assim, o que significa admitir que elas
não foram sempre assim.
Mas é muito difícil desenvolver o ponto de vista
segundo o qual os primórdios da consciência humana
não estão relacionados com a descoberta de armas para
matar. Porque a história que nos contaram nas escolas
e universidades parece mostrar exatamente o contrário.
Com efeito, vários pesquisadores descobriram, nos
túmulos dos períodos egípcio e babilônico, evidências
de sacrifícios humanos em massa. Toda a ordem social
que predominou no mundo nos últimos milênios
parece, desse ponto de vista, estar baseada na prática
instrumental de matar e na imposição deliberada de
sofrimentos aos seres humanos.
Mas é possível pensar que a ordem social
baseada na morte provocada pelas armas e na
destruição desencadeada pela guerra seja apenas um tipo
de ordem social. Alguns pesquisadores imaginam que
esse tipo de ordem não existia, por exemplo, na cultura
Vinca, que florescia nos Balcãs há 7 mil anos atrás
(Gimbutas, 1982).

307
Alguns pesquisadores imaginam que antes da
nossa civilização patriarcal, guerreira e dominadora
existia um outro tipo de sociedade. Uma sociedade na
qual os seres humanos viviam em regime social de
parceria, em relativa harmonia entre si e com a
natureza. Para uma parte de tais pesquisadores foi a
cultura patriarcal de algumas hordas seminômades de
guerreiros (indo-europeus) que destruiu uma cultura
uniforme e pacífica que se estendia por toda a Europa
Antiga, durante vinte mil anos, do paleolítico ao
neolítico (Gimbutas, 1977; 1980; 1982; 1991 e Eisler,
1987). Esse povo teria invadido, dominado e imposto
sua estrutura social hierárquica e autoritária – a
governada por poderosos sacerdotes e guerreiros,
legitimada por deuses masculinos da guerra e das
montanhas, voltada para o desenvolvimento de
tecnologias de destruição – às aldeias agrícolas
neolíticas que viviam em parceria e cultuavam a deusa-
mãe Terra (Idem).
Supõe-se que o poder conduzido pelos invasores
patriarcais era de um tipo muito diferente daquele que
existia nas sociedades agrícolas de parceria. O poder
dos primeiros era um poder de dominar e destruir,
enquanto que o poder nas aldeias neolíticas era uma
capacidade de sustentar e alimentar a vida (Eisler,
1987). O poder dos invasores era baseado na arma.
Eles cultuavam a arma. As armas eram sagradas,
representavam as funções e os poderes de deus e eram

308
adoradas como representações do próprio deus. O
guerreiro e sua arma eram instrumentos divinos.
Ninguém sabe ao certo o que teria acontecido
para que surgisse um povo com tais características.
Ninguém sabe ao certo porque primitivos povos de
caçadores e criadores de animais foram transformados
em invasores “profissionais” que desenvolveram uma
ideologia sacerdotal-militar. Ninguém sabe ao certo
nem onde, nem quando, nem como surgiram esses
predadores, que saíram pelo mundo a fora matando,
mutilando, arrasando aldeias pacíficas, escravizando
povos, deixando por onde passavam um rastro de
destruição social e ambiental.
A hipótese mais difundida para explicar porque
certas tribos primitivas de caçadores ou pastores foram
levadas a se organizar para a guerra e para a conquista,
se baseia na escassez. As tribos de conquistadores que
se espalharam pelo mundo a partir do quinto ou do
quarto milênios viviam provavelmente em ambientes
áridos, em estepes. A escassez de recursos obrigou
essas tribos a se dispersarem para outras paragens, em
busca de água e de comida. Quando essas tribos
entraram em contato com aldeias neolíticas já
estabelecidas – que possuíam, em alguns casos,
abundância de tudo aquilo de que precisavam – houve
conflito. Os invasores logo perceberam a necessidade
de fabricar armas e de se organizar melhor para
conseguir se apropriar do excedente econômico

309
produzido nessas aldeias. Foi aí que começaram a
desenvolver um outro padrão de organização social,
voltado para a guerra, para o saque, para a conquista.
A hipótese da escassez como fator originante do
homem hostil permanece sendo a mais “lógica”,
porque é parte da “nossa lógica” de predadores. Isso
sempre acontece: quando tentamos explicar o passado,
projetamos no passado a cabeça que temos – no caso,
a “cabeça do predador” – imaginando que os povos
primitivos reagiriam “naturalmente” da mesma forma
como nós reagiríamos se estivéssemos no seu lugar.
A hipótese segundo a qual foi diante da escassez
de recursos sobrevivenciais que habitantes das regiões
áridas tornaram-se invasores cada vez mais
organizados de aldeias, tendo tudo começado a partir
daí, é uma explicação que se curva diante do império
das condições objetivas, materiais, econômicas.
Segundo esse ponto de vista, os conquistadores
patrilineares que introduziram uma sofisticadíssima
ordem hierárquica, sacerdotal-guerreira e autocrática
em sociedades agrícolas de parceria mais humanas e
mais sustentáveis, seriam apenas vítimas das condições
climáticas desfavoráveis. Com isso muitos ficam
satisfeitos: o homem hostil é um resultado do clima
hostil. Pronto. Está tudo explicado!
É possível, entretanto, fazer um esforço para
pensar com outra cabeça. Podemos imaginar um
coletivo estável do ponto de vista social e ambiental,

310
que não domine a natureza mas conviva com ela. O
elemento humano desse coletivo não é um parasita ou
um predador, mas algo assim como um simbionte.
Face a escassez de recursos, a reação “natural”
do simbionte é a de aceitar a dissolução da cadeia da
vida que o sustém e, simplesmente, morrer. A atitude
diante da morte é radicalmente diferente quando se
está em sinergia com os elementos que constituem o
sistema que chamamos de vida numa escala mais ampla
(como a das sociedades, dos ecossistemas e do próprio
planeta). Talvez por isso a perda do território e a
devastação dos seus ecossistemas represente de fato a
morte para tribos paleolíticas remanescentes – como as
de alguns de nossos indígenas atuais – mesmo que seus
integrantes continuem respirando, biologicamente
vivos. A tendência dessas tribos tem sido, muitas
vezes, a de se deixarem morrer, não tendo mais filhos
ou, até mesmo, através do suicídio coletivo de seus
membros. Quem não aceita a morte é o predador, que
talvez seja predador por isso mesmo, porque não aceita
a morte.
Quando tentamos explicar o comportamento
dos povos pré-históricos, projetamos no passado a
“cabeça do predador”. Imaginamos que grupos
ameaçados em sua sobrevivência são necessariamente
forçados a saquear, violar, mutilar e destruir outros
grupos. E que, a partir daí, tomando gosto pela coisa,
organizam e sofisticam seu sistema social para a

311
pilhagem e a guerra. O que, por sua vez, traz a
necessidade de domínio permanente para sufocar
conflitos internos que podem desestabilizar a nova
ordem instalada. Segundo o ponto de vista do senso
comum científico, assim se reuniriam os elementos do
poder vertical.
Ora, se a escassez é a origem do homem hostil,
os sistemas de dominação deveriam ter brotado em
muitos lugares onde, certamente, ocorreu escassez
provocada por intempéries e condições climáticas
desfavoráveis. E não apresentariam tantas semelhanças
entre si, como de fato apresentam. O problema para
essa explicação é que os primeiros vinte ou trinta
grandes sistemas de dominação que surgiram entre o
quinto e o segundo milênios antes de Cristo, replicam
o mesmo padrão civilizatório que apareceu
primeiramente em um lugar: a antiga Mesopotâmia.
Isso não pode ser explicado em virtude de
coincidências. E nem, muito menos, pela hipótese de
que a predação eco-social conduz necessariamente a
um tipo único e universal de padrão, como se
existissem leis históricas de evolução ou regressão das
sociedades já traçadas de antemão.
Por mais fantástica que possa parecer resta a
hipótese de que o predador foi gerado numa
constelação particularíssima, que se formou em algum
momento da proto-história sumeriana, possivelmente
entre meados do quinto e o início do quarto milênios

312
a.C. Alguma coisa aconteceu, há seis mil anos atrás...
uma bifurcação. Houve uma experiência fundante, que
abriu um precedente, inventou uma tradição que
induziu a replicação, em outros locais e em outras
épocas, do mesmo “modelo” ao longo dos últimos
cinco milênios, como supôs o matemático Ralph
Abraham no final da década de 80 (Abraham et al.,
1989).

8.2 – A hipótese do precedente sumeriano


A hipótese da bifurcação, mencionada acima, foi
aventada, em termos muito especulativos, pelo
matemático Ralph Abraham. Mas os estudos de
eruditos pesquisadores, como Joseph Campbell e
Samuel Kramer, não parecem contradizê-la.
Com efeito, é surpreendente constatar, como já
o fez há mais de quarenta anos Joseph Campbell
(1959), que os elementos centrais da nossa cultura, dita
civilizada, compareciam numa espécie de modelo ou
protótipo ensaiado em Cidades-Templos-Estados
como Eridu, Nippur, Uruk, Kish, Acad, Lagash, Ur,
Larsa e Babilônia. “Um importante desenvolvimento,
escreve Campbell, repleto de significado e promessas
para a história da humanidade nas civilizações por vir,
ocorreu... [por volta] (de 4.000), quando algumas
aldeias camponesas começaram a assumir o tamanho e
a função de cidades mercantis e houve uma expansão

313
da área cultural... pelas planícies lodosas da
Mesopotâmia ribeirinha. Esse é o período em que a
misteriosa raça dos sumérios apareceu pela primeira vez em
cena, para estabelecer-se nos terrenos das planícies
tórridas do delta do Tigre e do Eufrates, que se
tornariam em breve as cidades reais de Ur, Kish,
Lagash, Eridu, Sipar, Shuruppak, Nipur e Erech... E
então, de súbito... surge naquela pequena região lodosa
suméria – como se as flores de suas minúsculas cidades
subitamente vicejassem – toda a síndrome cultural que a
partir de então constituiu a unidade germinal de todas as
civilizações avançadas do mundo. E não podemos
atribuir esse evento a qualquer conquista da
mentalidade de simples camponeses. Tampouco foi a
conseqüência mecânica de uma mero acúmulo de
artefatos materiais, economicamente determinados. Foi
a criação factual e claramente consciente (isto pode ser afirmado
com total certeza) da mente e ciência de uma nova ordem de
humanidade que jamais havia surgido na história da espécie
humana: o profissional de tempo integral, iniciado e
estritamente arregimentado, sacerdote de templo”. (Joseph
Campbell, 1959: 124.6) (n. i.) (n. g.).
Mais surpreendente ainda é ver que esse modelo
já estava em pleno funcionamento, segundo
interpretações de relatos que ainda não puderam ser
contestadas, a partir do início do quarto milênio. Toda
a obra de Kramer, em particular “A História Começa
na Suméria” (1986), é uma coletânea de evidências

314
sobre as raízes sumerianas do atual padrão civilizatório
patriarcal, guerreiro e dominador (8.2: 1).
Os estudos de Campbell e Kramer reforçam a
idéia segundo a qual os sistemas sociais de dominação,
caracterizados pela prevalência de atitudes autocráticas
diante da política e hierárquicas diante do poder,
surgiram e se desenvolveram em consonância com
atitudes sacerdotais diante do saber e com atitudes
míticas diante da história. A autocracia imposta pelos
monarcas-militares e a hierarquia introduzida pelos
guerreiros-conquistadoras são implicadas por uma
visão mítico-sacerdotal do mundo, que não surge
“naturalmente”, como conseqüência de qualquer coisa
que se pudesse identificar como evolução humana.
Segundo os historiadores, o que ocorreu de tão
notável na antiga Suméria foi (além da escrita, é claro),
o surgimento da cidade – a chamada “revolução
urbana”. Portanto, a Suméria teria sido o berço da
civilização. Mas ao que tudo indica, algum tipo de
civilização já existia há vários milênios. Cidade por
cidade, tínhamos Jericó (fundada talvez entre 8.350 e
7.350), Çatal Hüyük (cujas escavações arqueológicas
retrocederam até a data de 6.250, ou antes) e Hacilar
(que, com certeza, era habitada de 5.700 a 5.000).
O que muitos historiadores não percebem na
Suméria é a afirmação de um novo padrão civilizatório,
em substituição ao padrão (neolítico) anterior. O
notável na antiga Suméria não é a cidade em si, mas o

315
tipo de cidade. O que caracteriza essa cidade sumeriana
é o fato dela ser uma Cidade-Templo.
O precedente sumeriano se refere ao fato de que
o cosmos social na Suméria passou a ser ordenado por
um cosmos sobrenatural. As pessoas não apenas
serviam, mas viviam no Templo (existem registros
dizendo isso: as conhecidas “Tábuas de Fara”). O
muro da cidade não separava somente o conterrâneo
do estrangeiro, porém o sagrado do profano. Ao fazer
isso, promovia uma equivalência de status entre os
conceitos de „outro‟ e „profano‟. Criava-se assim um
pré-curso, um sulco para o futuro: o muro como
símbolo do que afasta e separa do outro (o qual pode
profanar ou tornar impuro o próprio modo de ser).
Sem esse tipo de separação, de cuja gênese social
encontramos um precedente de larga escala na antiga
Suméria, não poderia ter se consolidado a dominação
do poder vertical na terra dos homens.
A chamada “revolução urbana” ocorrida na
antiga Suméria foi, na verdade, um processo de
aprisionamento da vida social pelos muros materiais e
espirituais do Templo-Palácio. Os ritmos da vida social
e pessoal neolítica foram radicalmente alterados,
substituindo-se os elementos naturais que participavam
da existência humana por outros elementos,
“sintéticos”, produzidos em laboratório. Um desses
principais elementos sintéticos ou artefatos eram as
armas. A pedra fundamental da cidade era a arma

316
sagrada (SHU.HA.DA.KU), quer dizer, a arma de uso
restrito, que só os superiores podiam manejar. Os
registros sumérios contêm nomes de armas horríveis: o
“supremo caçador” (SAR.UR), o “supremo
exterminador” (SHAR.GAZ), a “arma com cinqüenta
cabeças letais” (IB). E dezenas de outras, como o
“supremo assassino”, o “olho levantado que
inspeciona a terra”, o “feixe de emissões levantado”.
Para que tantas e tão terríveis armas? Segundo
os textos encontrados, “para destruir as cidades más -
limpá-las da oposição contra o Altíssimo” ou para
“subjugar cidades más em terras estrangeiras”. A
expressão “limpá-las da oposição” diz tudo. A
oposição ou a não aceitação do jugo dos superiores, é
o mal, a sujeira que deve ser limpada porque pode
contaminar o que é puro, que precisa ser mantido
separado para não ser contaminado. Neste caso, a
violação, a destruição e a morte executadas por
intermédio da arma se justificam eticamente. Estão
respaldadas pela moralidade estabelecida pelos
superiores.
Existem registros dizendo que em tempos
imemoriais os DIN.GIR chegaram ao nosso mundo,
escolhendo o sul da Mesopotâmia para se instalar.
Deram a essa região o nome de KI.EN.GIR e ali
fundaram os primeiros povoados. Os DIN.GIR eram
uma espécie de super-homens, imortais ou
extremamente longevos, e possuidores de avançado

317
conhecimento tecnológico, sobretudo de tecnologias
de destruição, que lhes permitiam fabricar armas
terríveis. (Muito tempo depois esses DIN.GIR seriam
chamados de deuses, pela primeira vez pelos gregos).
Esses primeiros registros (de todos que encontramos)
que tratam de lendas sobre as relações entre “deuses” e
homens na terra, são provenientes da Suméria. A
Suméria era a terra de “shumer” – maneira como os
acádios (um povo que veio depois) chamavam
KI.EN.GIR.
Não podemos saber quem eram os DIN.GIR.
Nem mesmo se existiram, de fato, esses seres
diferentes, que vieram de algum outro lugar, sobre os
quais o povo que viveu na terra de “shumer” construiu
suas lendas de “deuses”. Entretanto, os relatos sobre
sua natureza, seu comportamento, suas realizações e
suas façanhas heróicas contêm uma informação
importante: eram seres guerreiros.
As crônicas da corte de AN (posteriormente
denominado Anu pelos acádios) – o ser supremo, o
chefe da dinastia dos DIN.GIR que teria ordenado a
colonização do sul da Mesopotâmia – estão repletas de
intrigas, atentados, golpes de Estado e usurpações
características de qualquer monarquia antiga. Não eram
seres virtuosos esses “deuses” guerreiros, envolvidos
constantemente em disputas terríveis por sucessão e
supremacia, preocupados acima de tudo com a pureza
genética de suas linhagens.

318
O que parece distinguir os DIN.GIR dos humanos
é seu avançado conhecimento, em especial tecnológico.
Seu poder dá a impressão de ter como base a posse de
horríveis tecnologias de destruição. Seu domínio sobre
os homens – como o de EM.LIL, o “senhor do
comando”, herdeiro de AN e chefe da “missão” dos
DIN.GIR na terra sumeriana – estabelece-se claramente
pelo terror. Além do conhecimento avançadíssimo –
ou provavelmente em virtude desse conhecimento –
mais uma coisa distingue os DIN.GIR dos seres
humanos: a sua aparente imortalidade. Isso é que é tão
assustador nos relatos sumérios. Teríamos sido criados
e, depois, colonizados (rigorosamente falando em
termos históricos: civilizados) por seres com uma
estrutura moral deplorável, mas possuidores de uma
alta tecnologia que lhes garantia, inclusive, a
imortalidade. Ou, no mínimo, incomensurável
longevidade.
Os “deuses” sumérios (que logo foram meio que
“copiados” por todas ou quase todas as civilizações
antigas!) não são seres espiritualizados, no sentido que
hoje atribuímos à este conceito. Pelo contrário,
parecem até ser materialistas. Aliás, as lendas sumérias
sobre os DIN.GIR não se parecem nem um pouco com
peças religiosas. Os “deuses” sumérios são hierarcas, às
vezes brutais, genocidas, carnívoros, que ocultam seu
conhecimento para acumular poder e para exercer e
ampliar seu domínio sobre seus pares e sobre os

319
humanos. Além disso, ao que tudo indica, não morrem
facilmente. Aqui parece estar uma das chaves da
questão. A recusa em aceitar a morte (característica
principal de todos os hierarcas-predadores) pode estar
na raiz dessa concepção de “seres superiores”
projetada nos DIN.GIR das lendas sobre a pré-história
sumeriana.
É espantoso que todos os deuses de todas as
civilizações antigas se pareçam tanto. Os mais antigos
textos que encontramos – dos acádios, dos egípcios e
dos indo-europeus; e depois dos assírios e babilônios,
dos cretenses e gregos – contam histórias muito
parecidas de deuses, que confirmam relatos sumérios
anteriores. Do vale do Indo ao Mediterrâneo oriental,
das margens setentrionais do Mar Cáspio ao Golfo
Pérsico, das terras banhadas pelo Nilo ao vale
mesopotâmico, entre o Tigre e o Eufrates, e a leste do
Tigre, e a oeste do Eufrates, as teogonias são
extremamente semelhantes. Amoritas, cananitas,
hurritas, hititas e arianos – todos dizem que existiam
deuses na Terra. Antes dos homens. Os homens teriam
sido criados para servir aos deuses. Em alguns casos
como trabalhadores mesmo. Operários amestrados de
quem os deuses exigiam trabalho, submissão às regras
e oferendas sacrificiais.
Os mais antigos textos que encontramos falam
também que a monarquia e a hierarquia e o sacerdócio
– a “coroa” e o “cetro” e o “bastão”; em suma os

320
elementos do poder vertical que compõem o que
poderíamos chamar de paradigma da tradicionalidade –
foram instituídos entre os homens pelos próprios
deuses.
Ora, se as coisas não se passaram realmente
assim, por que elas foram escritas assim por tantos e
tão diferentes atores? A hipótese mais óbvia é a de que
os antigos “deuses” sumérios foram criados pelos
homens, para legitimar algum tipo de comportamento
dos poderosos da época. Pelo que se pode depreender
dos relatos, esses “deuses” intrigantes, belicosos, que
em geral não amavam a humanidade e nem aos seus
pares, guerreando constantemente entre si e algumas
vezes até executando genocídios de seres humanos, são
parecidos demais com os homens realmente existentes
de uma cultura patriarcal. Em quase nada diferem dos
seres humanos que, segundo a tradição, eles próprios
criaram em termos materiais, dando entretanto a
impressão de que, de fato, por estes últimos é que
foram criados, em termos espirituais. Deuses feitos à
nossa imagem e semelhança...
A explicação parece boa, não há dúvida, ainda
que não responda a todas as questões. A mitologia, a
religião e sobretudo a astronomia da antiga
Mesopotâmia, estão repletas de evidências de uma
súbita e avançadíssima civilização que – como
constatou, perplexo, Joseph Campbell – simplesmente,
apareceu, como que do nada, entre o Tigre e o

321
Eufrates, há seis mil anos atrás. Não há,
aparentemente, nenhuma linha de continuidade entre a
Suméria e as aldeias neolíticas que estão sendo agora
descobertas pelos escavadores, naquela região e em
outras regiões da Ásia e da Europa antiga.

8.3 – O protótipo civilizatório


É surpreendente constatar que os elementos
centrais da nossa cultura, dita civilizada, compareciam
numa espécie de modelo ou protótipo ensaiado em
Cidades-Templos-Estados como Eridu, Nippur, Uruk,
Kish, Acad, Lagash, Ur, Larsa e Babilônia. E o mais
surpreendente ainda é ver que esse modelo já estava
em pleno funcionamento, segundo interpretações de
relatos que ainda não puderam ser contestadas, a partir
do início do quarto milênio. O que permanece para
nós como algo definitivamente desconcertante e, ao
mesmo tempo, revelador, é o fato de ter sido ensaiado
na Suméria, pelo menos entre 3.800 e 1.800 a.C. (para
ficarmos dentro dos limites do tempo histórico) um
modelo social patriarcal, sacerdotal-militar e
monárquico, de cuja gênese não se tem nenhum tipo
de informação.
As mais antigas inscrições sumérias, acádias,
assírias e babilônicas, recolhidas, traduzidas e
compiladas por especialistas de renome, revelam que
os supostos colonizadores da Mesopotâmia fizeram

322
pelo menos cinco coisas notáveis para definir o tipo de
civilização que se espalharia depois: a) instituíram a
monarquia humana, investindo sacerdotes e sagrando
reis como intermediários; b) trouxeram o domínio e a
guerra como forma de suprimir e de resolver conflitos;
c) conceberam armas terríveis (ou assim consideradas);
d) estabeleceram uma moralidade normativa, baseada
na obediência e repressora da sexualidade; e, e)
introduziram na humanidade toda a sorte de restrições,
visando separar o sagrado do profano e o puro
(inclusive em termos genéticos!) do impuro.
Em relação aos surpreendentes relatos sumérios,
talvez estejamos diante de projeções, no passado, feitas
por civilizações bem posteriores. Quem sabe os
babilônios e os assírios – que já possuíam um sistema
de dominação que levou um ou dois milênios para se
estruturar – não estavam apenas tentando legitimar
tudo? E aí inventaram lendas sobre a sua origem,
fabricando mitos sobre os “deuses” sumérios e seus
atributos, que apenas reforçavam e possibilitavam a
manutenção e a reprodução do seu próprio modelo
social dominador.
Neste caso, não teria havido protótipo
sumeriano algum. Mas um “pós-tótipo” (com perdão
do mal-jeito), projetado no passado por sociedades que
já viviam segundo um modelo social dominador. A
hipótese é verossímil, mas esbarra, em um ou outro
lugar, no material encontrado: milhares de tabuinhas de

323
argila, provenientes da Suméria, encontradas pelos
escavadores, que foram datadas pelos métodos mais
avançados que possuímos.
Por outro lado, existem indícios de que os
sumérios não apenas desenvolveram historicamente o
que chamamos de civilização. Eles também
sistematizaram teoricamente um modelo dessa
civilização para ser replicado em outros locais – o que
reforça a idéia de protótipo.
O fato é que meio milênio antes do Egito, um
milênio antes da civilização do vale do Indo, já havia se
realizado na Suméria um modelo social patriarcal,
sacerdotal-militar e monárquico que, de fato, parece ter
sido replicado naquelas duas outras civilizações e que,
até hoje, “ressoa” em nossa civilização dita moderna. E
é muito improvável que um “código replicativo” tão
complexo como o da nossa civilização patriarcal
pudesse ter sido elaborado por alguma horda bárbara,
das que teriam invadido o Ocidente, em levas
sucessivas, do final do quinto ao início do terceiro
milênios (a. C). Lendo os textos, ficamos com a
impressão de que o software já estava pronto no início
do quarto milênio. Pois a história da Suméria não
registra nenhuma evolução do modelo, levando a
pensar que o surgimento da história (não só da
Suméria, mas de todo o mundo dito civilizado) é a
emersão, de uma vez, a materialização, acabada, de

324
uma espécie de protótipo, que poderíamos chamar de
protótipo sumeriano.
É claro que tudo isso é muito especulativo, mas
o que nos interessa, para além do que realmente
aconteceu, é desvelar o significado do que se diz que
aconteceu, ou melhor, interpretar o por que de se dizer
que as coisas aconteceram assim. Nesse sentido, a
mitologia conhecida pode revelar mais do que a
história conhecida (inclusive porquanto esta última
permanece, em grande parte, realmente desconhecida).

8.4 – A mitologia como genética


civilizacional
A genética do que chamamos de civilização
parece ser a mitologia, não a história, se o que
convencionamos chamar de civilização só ocorre após
a introdução da escrita e da revolução urbana na antiga
Mesopotâmia, quer dizer, na Suméria.
Na mitologia sumeriana o homem foi criado
pelos Senhores – os DIN.GIR – para suportar o jugo,
sofrer a fadiga. Já foi criado como trabalhador, escravo
dos deuses. E foi a escravidão do homem que
propiciou a liberdade dos deuses. Num antigo texto -
chamado “A Epopéia da Criação” – Marduk (um
DIN.GIR sumério) fala assim: “Eu produzirei um
primitivo inferior; “Homem” será seu nome. Eu criarei
um trabalhador primitivo; ele será encarregado do

325
serviço dos deuses, para que estes possam ter seu
descanso”.
A “lógica” da coisa é muito clara. O homem é
um ser inferior, servo dos deuses que são seres
superiores. Logo, o homem também deve ser servo
daqueles que foram instituídos na terra como
representantes ou intermediários dos deuses: os
Sacerdotes-Reis! E assim como os seres humanos, nas
primeiras civilizações, não adoravam propriamente a
seus deuses, antes os temiam e trabalhavam para eles
(o termo bíblico avod, traduzido por “adoração”, pode
também significar “trabalho”), assim também deveriam
trabalhar para seus superiores humanos que
representavam os superiores divinos. Sem dúvida, uma
mitologia muito conveniente para os poderosos.
Os relatos sumérios contam que, inicialmente, as
cidades foram governadas pelos próprios “deuses”.
Com o tempo, estes soberanos “divinos” teriam
instituído intermediários entre eles e o povo. Tais
intermediários deveriam ser “como deuses”. A realeza
foi assim introduzida como uma ponte entre os
senhores e a humanidade. A monarquia, desde que
surgiu, já era sacerdotal. Não é a toa que o primeiro
tipo de cidade-Estado que apareceu no planeta foi
justamente a cidade-Templo sumeriana. O objetivo dos
governadores humanos era assegurar o serviço
humano aos “deuses” e transmitir os ensinamentos e
as leis desses mesmos “deuses” ao povo em geral. Os

326
mais antigos registros sobre o assunto, encontrados na
Suméria, dizem que os primeiros reis humanos foram
reis-sacerdotes, que reuniam o poder material (ou
temporal) e o poder espiritual, simbolizados pela coroa
(ou tiara), pelo cetro e pelo bastão (ou cajado) -
símbolos que, significativamente, permanecem até
hoje!
Na antiga Suméria os superiores humanos
tinham a missão de ensinar aos inferiores humanos o
“caminho certo”, os “costumes certos” e a “adoração
adequada”, através de um sistema imposto de regras
práticas de comportamento e normas de moralidade.
Mas a moralidade humana, que regulava a vida dos
inferiores, não era a mesma moralidade dos superiores.
A ortodoxia moral que valia para os homens não valia
para os deuses. Para constatar isso basta ler os relatos
sobre mentiras, tramas, traições, incestos,
manipulações e violações de direitos que compõem as
crônicas das cortes divinas.
A moralidade introduzida na cidade sumeriana
era na verdade (com perdão do trocadilho) uma
“muralidade”. Existiam muros, muitos muros,
separando tudo, para manter a pureza dos lugares que
não deveriam ser profanados. O recinto sagrado era,
inicialmente, (como revela a etimologia da palavra
“sagrado” em lingua suméria), o espaço separado, cujo
acesso era permitido apenas aos superiores ou àqueles
a quem estes designavam.

327
Se existiu mesmo essa “noite dos tempos” em
que o poder vertical foi fundado na terra, ela deve ter
ocorrido entre o quinto e o terceiro milênios a.C. O
período mais provável é o quarto milênio onde, aliás, já
se tem notícia de um sistema de dominação organizado
pelos proto-indo-arianos na planície de Gorgan, no
nordeste do Irã. Porém antes disso um protótipo do
que chamamos de civilização havia sido ensaiado em
Kish e em outras teocracias rigidamente centralizadas
da antiga Suméria (8.4: 1).
Começando pelas Cidades-Templos sumerianas,
a expansão desse tipo de sistema de dominação se deu
no terceiro e no segundo milênios, com os impérios
egípcio, sobretudo na chamada “era das pirâmides”
(entre 2.700 e 2.200), e babilônico, por volta do ano
2.000 (a. C.). Temos também o império hitita na
Anatólia, entre 1.600 e 1.200 (a. C.). O Estado Assírio,
por volta do ano 1.800 (a. C.). E, bem antes, o de
Sargão, entre 2.400 e 2.200 aproximadamente. Todos
eles fazem parte desse tempo inaugural de guerras,
dessa chamada “idade dos heróis” que Jacques Dupuis
disse, com razão, que nada mais era do que uma idade de
predadores e de senhores (8.4: 2).

328
8.5 – Origens espirituais da dominação
social
A constatação de que os sistemas sociais de
dominação, caracterizados pela prevalência de atitudes
autocráticas diante da política e hierárquicas diante do
poder, tenham surgido e se desenvolvido em
consonância com atitudes sacerdotais diante do saber e
com atitudes míticas diante da história., me leva a
pensar que não se pode explicar a dominação social
sem investigar as suas origens espirituais.
Da referência inicial do calendário de Nippur –
introduzido na pré-história da Suméria – aos nossos
dias, já se vão quase seis mil e quinhentos anos. São
mais de seis milênios sob o mesmo “modelo”, onde as
civilizações derivantes do protótipo sumeriano
recombinam padrões básicos em novas constelações.
As matrizes que dão origem a tais padrões, entretanto,
permanecem fundamentalmente as mesmas. É possível
que tenham existido sociedades que escaparam da
reprodução do que se chamou aqui de protótipo
sumeriano, mas apenas em certos aspectos e durante
curtos períodos. Ao que se possa supor, os cretenses e
os hebreus. Talvez algumas remanescências de aldeias
neolíticas na Europa e no Oriente Próximo e de tribos
paleolíticas nas Américas e em outras partes do
mundo. Talvez. Mas o que se chamou de expansão da
civilização indica – não há como negar – um processo

329
de clonagem cultural, cuja matriz nos remete à
Suméria.
Pode-se caracterizar uma civilização pelos seus
padrões socialmente esperados de conduta, ou seja,
pela sua moralidade. A moralidade da nossa civilização
patriarcal tem suas raízes nas separações entre bem e
mal: justo e injusto, puro e impuro, luz e trevas,
sagrado e profano, divino e humano, ordem e caos. A
ordem justa, pura e luminosa, sagrada e boa porque
desejada por deus, pode ser autocrático-hierárquica.
Isso não se questiona. Mas o caos, a (des)ordem que
atenta contra essa ordem, representa a impureza que
deve ser purificada, as trevas que devem ser
iluminadas, a profanação do sagrado – um atentado à
vontade de deus. Este mal que deve ser combatido
pelo “bom combate” é uma disfunção, um desarranjo
funcional no interior do sistema. Ou do esquema.
Esse esquema mítico continua informando
nosso sentido de moralidade em plena época moderna.
Pelo menos a metade dos desenhos animados que
nossas crianças assistem diariamente na TV, o replicam
diretamente. Isso para não falar na maior parte dos
filmes de ficção científica, que projetam modelos
semelhantes no futuro. Não importa se estamos no
século XXV ou no quinto milênio depois de Cristo: lá
encontraremos quase sempre imperadores ou barões
envolvidos em confrontos de casas e dinastias, heróis

330
“brancos” em guerra contra vilões “negros”. É o
futuro mais longínquo replicando a tradicionalidade.
Nesse modelo do “hierarca-bom x hierarca-
mal”, o hierarca bom legitima a atitude hierárquica
diante do poder. O justo monarca legitima as
autocracias. O “guerreiro da luz” legitima a existência
da guerra e, consequentemente, o emprego e a
fabricação da arma.
O padrão de contraposição “bem x mal” está
tão entranhado no inconsciente da humanidade, ou
naquilo que foi chamado de “alma do mundo”, que
imaginamos que a dinâmica da psique funciona assim
porque espelha uma ordem cósmica mais geral, na qual
todas as coisas – minerais, vegetais, animais, homens,
anjos e deuses – estão inseridas sistemicamente. De
sorte que sequer desconfiamos de que isso possa ser
uma característica, antrópica, introduzida por aquele
que vê o universo e, ao vê-lo, (re)cria a realidade a
partir do modo-de-ver ou do modo-de-interagir. E
sequer suspeitamos que este modo-de-interagir possa
ter sido introduzido em algum momento da história,
sendo próprio não do cosmos nem da espécie humana,
e sim do tipo de civilização.
Existe de fato uma mesma tradição por trás das
manifestações culturais da nossa civilização patriarcal.
Por meio dessa tradição, os códigos replicativos ou as
mensagens-padrões que encontramos na mais remota
antigüidade (considerada civilizada) são transmitidas

331
para outras regiões do tempo, chegando inclusive aos
nossos dias. Essa tradição se faz presente não apenas
nos filmes infantis de desenho animado e nas obras de
ficção científica, mas também nos monumentos
arquitetônicos, como a nova pirâmide de vidro do
Louvre, em Paris, no desenho industrial de armas e
veículos, no funcionamento das escolas, no tipo de
família, nos rituais das igrejas.
Existe realmente uma sabedoria nas vertentes de
pensamento e ação conduzidas pela tradição. E
também uma rigorosa moralidade baseada em códigos
de justiça. Porém a sabedoria conduzida pela tradição é
uma função do tipo de civilização que originou essa
tradição. Como se fosse um reflexo do mundo recriado
por esta civilização. Da mesma forma, os códigos de
pureza e justiça contidos na tradição são adequados à
reprodução deste modelo civilizatório.
Para além das doutrinas da tradição, o
paradigma da tradicionalidade verticalizou o mundo
“povoando” todo o universo simbólico – ou aquilo
que já foi chamado de “mundo da psique” – com
formas que não concorrem para o estabelecimento de
um cosmos social que mantenha as mesmas
propriedades em todas as direções mas, pelo contrário,
privilegiam a direção vertical. Não é por outro motivo
que achamos que Deus está em cima e que o Céu está
em cima; o caminho evolutivo é sempre pensado como
uma subida e o regressivo como uma descida. São

332
camadas e camadas de interpretações simbólicas,
depositadas uma sobre a outra, milênio após milênio.
Basta entrar num templo de qualquer ordem espiritual
tradicional para se perceber com que profundidade o
universo simbólico está marcado pela direção vertical.
Nessas construções - sobretudo da tradição ocidental,
herdeira do simbolismo templário babilônico, i. e.,
sumério – o caminho que nos conduz para deus,
representado em geral por um triângulo, passa entre as
duas colunas que se elevam do piso plano. E então
encontramos o triângulo com o vértice para cima,
sobre o quadrado, o pentagrama verticalmente
orientado e muitas outras “orientações” que
“norteiam” o desenvolvimento dos rituais e das
práticas mágicas.
O conteúdo ideológico que estes símbolos
encarnam está inegavelmente associado à idéia de um
poder vertical, do qual a pirâmide é o mais expressivo
exemplo. E há ainda as escadas, muitas escadas,
introduzidas por primeiro pelos templos sumérios - os
zigurates: pirâmides feitas de escadas, com degraus
representando graus de subida; ou de descida.
Diz-se que os símbolos e os rituais tradicionais
correspondem a arquétipos do inconsciente coletivo.
Pode ser. Mas se for assim, eles entraram (ou foram
implantados a partir de algum momento) nesse
inconsciente ou nem sempre tal inconsciente existiu!
Com efeito, não temos nenhuma indicação maior da

333
presença desses símbolos nas sociedades paleolíticas ou
neolíticas anteriores ao quinto milênio. Caso venhamos
a encontrar tais indicações teremos que re-datar nossa
“noite dos tempos”, recuando-a até o momento em
que ocorreu a implantação. Ou em que surgiu o
inconsciente, o que, de certo modo, é a mesma coisa.
Ora, só existe inconsciente porque os homens
deixaram de ser conscientes de algumas coisas. Existe
um inconsciente coletivo porque os seres humanos
deixaram, coletivamente, de ser conscientes das
mesmas coisas. É possível supor, como fez o
matemático Ralph Abraham, que os seres humanos
tenham deixado de ser conscientes de algumas coisas
em virtude de uma regulação sobre o que deveria e o
que não deveria ser admitido como válido numa
determinada sociedade. Segundo essa hipótese, o
inconsciente teria uma função social: abrigar aqueles
conteúdos que, algum dia, já foram conscientes, mas
que, a partir de um dado momento, deixaram de ser
úteis para a reprodução do tipo de organização
societária existente (Abraham et. al., 1989: 23)
Podemos imaginar várias situações em que
determinados conteúdos da consciência deixaram de
ser úteis ou passaram mesmo a ser indesejáveis. Vamos
supor que um grupo epipaleolítico primitivo passe a
viver numa horda de conquistadores nômades. Para
este tipo de organização societária já não teria tanta
importância a consciência das sinergias entre os

334
elementos minerais, o clima, as estações, as fases da
lua, os períodos do dia – enfim, os ritmos da natureza
e os seres vivos. Mas, pelo contrário, tudo isso poderia
ser vital para uma aldeia agrícola neolítica.
Outro exemplo: para uma cidadela de guerreiros
patrilineares não seria funcional a consciência das
relações entre o papel nutriz das mulheres e a
administração do excedente econômico alimentar. Mais
um exemplo: a consciência da importância da livre
expressão da sexualidade, para evitar desfechos
destrutivos dos conflitos sociais, poderia causar sérios
prejuízos a qualquer sistema de dominação baseado na
propriedade privada, na família monogâmica e no
direito de herança.
A consciência de que a morte não é o fim da
vida, mas a sua transformação (e a conseqüente
ausência do medo da morte) seria inaceitável para um
poder que se mantém pela ameaça de tirar a vida aos
que não se submetem às suas normas. Para este poder
também seria inaceitável a consciência de que fazem
parte da mesma totalidade as diferenças entre os seres
humanos (de idade, sexo, naturalidade, cultura, aspecto
ou condição física e psíquica), bem como os
comportamentos desviantes, não sendo necessário
separar, enquadrar, hierarquizar, discriminar – ou seja,
ordenar o sistema através de julgamentos.
A consciência de que não existem bem e mal,
ordem e caos, ou melhor, um bem separável do mal e

335
uma ordem separável do caos, impediria a montagem
de qualquer sistema de dominação. A ereção de um
poder vertical exigiu que toda essa consciência
imergisse, virasse inconsciência!
Nos porões da consciência expurgada de
determinados conteúdos ocorreram transformações
desencadeadas pela tensão entre consciente e
inconsciente. Estas transformações modificaram os
elementos submersos, desnaturalizando-os,
desmaterializando-os, vertendo-os em símbolos
polarizadores, sempre em busca de uma unidade
perdida. Estabeleceu-se então uma dinâmica
psicológica baseada em contraposições. A quebra da
unidade psíquica gerou pares de opostos em todos os
campos e setores da vida. E o mundo foi “recriado”
com base nesses pares de opostos, foi modificado,
antropicamente, para se adaptar à nova dinâmica.
Depois que a sua unidade psíquica foi quebrada,
o homem passou a ver oposição e conflito em tudo.
Tudo virou uma questão de lado. O lado da ordem (do
bem, da vida, do belo, da luz, da sabedoria, do
verdadeiro, do justo e do perfeito) e o lado do caos (do
mal, da morte, da feiura, das trevas, da ignorância, do
falso, do injusto e do imperfeito). O nosso lado (dos
homens, dos heterossexuais, dos jovens, dos sãos, dos
fortes, dos heróis, dos conterrâneos) e o lado dos
outros (das mulheres, dos homossexuais, dos velhos,
dos doentes, dos fracos, dos vilões, dos estrangeiros).

336
O nosso lado não pode deixar se contaminar
pelo lado dos outros. Tem que se manter separado,
puro. O nosso lado não pode se deixar vencer pelo
lado dos outros. Tem que vencê-lo, destruí-lo ou
dominá-lo e subordiná-lo, quer dizer, submetê-lo à
nossa ordem. As matrizes e os padrões do nosso
“modelo” civilizatório foram geradas assim. O bem
separado do mal e a ordem separada do caos são
pressupostos do protótipo civilizatório surgido na
bifurcação pré-histórica diante da qual não tomamos o
caminho do simbionte. São conseqüências – ou
fenômenos acompanhantes – de um consciente
separado do inconsciente. São características do
predador! Todos os nossos esquemas interpretativos e
normativos baseiam-se nessas contraposições.
Todos nós somos seres cindidos interiormente.
Há uma cisão interior que é necessária aos sistemas de
dominação. O predador é o homem cindido
interiormente. É um produto da quebra da unidade
sinérgica do simbionte. Preda porque quer recuperar,
devorando, suas contrapartes, num ritual antropofágico
em busca da unidade perdida. É por isso que nos
apegamos tanto à guerra do bem contra o mal. Mas o
problema, como disse Schmookler, é que o recurso da
guerra é em si o mal (8.5: 1).
Segundo a psicologia analítica a psique cindida
precisa de guerras e competições porque possui uma
sombra. O problema é: como surgiu esse arquétipo da

337
sombra? Ela nasceu conosco? Por que teria nascido?
Precisamos de fato dessa “sombra”? O problema é se
alguém precisa dela! Se a sombra não for uma
característica da espécie humana, então ela entrou em
nós em algum momento. Quer dizer, alguma
constelação particular só teria conseguido se reproduzir
se nós nos transformássemos em seus agentes
reprodutores. Para tanto, fez-se necessário que tal
arquétipo se implantasse abaixo do nível da
consciência, para que pudesse emergir como um
complexo capaz de possuir indivíduos e sociedades. Se
isso de fato é assim então a pulsão básica que leva o
homem a matar é a mesma que leva à ereção dos
sistemas de dominação.
Mas o ser humano não é hostil por natureza. O
homem hostil é próprio de um determinado tipo de
civilização: a civilização dos predadores eco-sociais.
Uma sociedade de parceria não necessitaria dessa
dinâmica para se reproduzir.
Criamos a civilização dos predadores eco-sociais
tendo atitudes sacerdotais e hierárquicas diante do
saber e do poder; e tendo atitudes autocráticas diante
da política. Se estas atitudes não se desenvolvessem
não existiria o homem hostil. Mas é necessário
descobrir o que, precisamente, nestas atitudes,
modificou o mundo do simbionte enquanto uma outra
possibilidade civilizacional.

338
Existem algumas pistas. Na nossa civilização
patriarcal substituímos a natureza pela tecnologia e a
vida pelo conhecimento da vida. Esta foi uma típica
operação mágico-sacerdotal. Por outro lado,
desenvolvemos aquela característica hierárquico-
autocrática de trocar a relação sinérgica com as coisas,
os seres e as pessoas, pelo domínio sobre elas.
Ao constituir um paradigma de tradicionalidade
introduzimos um padrão de ordem separada do caos.
Essa ordem era, num certo sentido, alienígena, porque
foi introduzida em dissonância com aquilo que
poderíamos chamar, metaforicamente, de “ritmos de
Gaia” (8.5: 2). Quer dizer, era uma ordem estranha à
ecologia planetária. Era uma ordem baseada em
tecnologia.
Pode-se argumentar que foram as inovações
técnicas que possibilitaram o progresso humano, pelo
menos em termos materiais. Como seria o mundo sem
a roda, por exemplo? Porém, antes, seria bom refletir
um pouco sobre o que significa progresso humano.
Vamos pegar o exemplo da roda. Hoje já temos
evidências de que a roda, não por acaso, foi utilizada
pela primeira vez em larga escala na Suméria, como
meio de transporte pelo território. Mas quase ninguém
percebe que a introdução da roda – principalmente da
roda feita com aros, logo usada, também não por
acaso, nos carros de guerra – foi a materialização de
um modelo de ordem, circular, eterna, para perenizar o

339
mundo construído pela tecnologia, congelando os
fluxos transformadores do mundo natural.
A introdução da tecnologia alterou a dinâmica
do simbionte. A tecnologia introduzida pelo atual
modelo civilizatório não era neutra. Não existe essa
coisa de “tecnologia neutra”, da qual se possa fazer
bom ou mal uso. O uso da coisa está ligado à coisa,
quer dizer, ao modo como ela foi feita, ao porque ela
foi feita, e às alterações que isso acarretou no mundo.
Até onde sabemos foi a partir da Suméria que se
estabeleceu uma tecnoarquia, ou seja, uma ordem
técnica que condensava um modo-de-interagir com o
mundo. Por outro lado, ainda que não exista tecnologia
neutra, o problema não está na tecnologia em si ou
mesmo apenas no seu emprego, mas no modo como
ela foi introduzida, como (não) foi disponibilizada; ou
seja, o problema está na tecnoarquia.
Através da tecnoarquia o mundo foi criado
como que pela segunda vez, estabelecendo-se novas
dinâmicas interativas entre os seus elementos,
sobretudo novas relações entre abundância e escassez.
A escassez passou a ser administrada pela economia
política do poder totalitário, passou a ser a fonte
mesma desse poder. Isso não aconteceu apenas na
Suméria, mas no Egito faraônico, na China antiga e no
Perú incaico e em quase todos os lugares onde se
materializou um padrão patriarcal de sociedade.

340
Uma coisa é dizer que os impérios não teriam
podido se manter sem o controle dos insumos básicos:
a terra, a água, os alimentos e as fontes de energia.
Porém outra coisa é dizer que a escassez foi
introduzida também pela tecnologia urbana, hidráulica
e agrícola, e que, sem esta escassez (programada, em
certa medida) de recursos sobrevivenciais, os sistemas
de dominação não teriam podido se reproduzir.
A introdução da tecnologia acarretou uma
desestabilização vital nas sociedades. E isso era
justificado, em termos míticos, pelo sacerdote. O
sacerdote prescrevia os procedimentos mágicos para
aplacar as forças misteriosas que, se não fossem
satisfeitas, poderiam trazer a fome, a doença, a
catástrofe, a morte. A precária ordem, imposta, do
mundo construído, exigia grandes sacrifícios para se
manter.
O mago-sacerdote egípcio conhecia os ciclos das
enchentes do Nilo mas ocultava esse conhecimento do
povo ignorante, quer dizer, do povo que ele mesmo
mantinha ignorante ao ocultar este e outros
conhecimentos. Então o mago-sacerdote egípcio exigia
conformidade à ordem para que uma inundação não
destruísse as plantações dos camponeses. Mas nada
disso era natural ou necessário. O modelo hidráulico
redistribuidor de água em canais de irrigação,
construídos e controlados pela tecnologia faraônica,
criava o perigo ao adensar povoamentos em locais de

341
risco, numa proporção que ia muito além daquela
exercida pela natural atração das terras mais férteis. No
entanto, se o povo não vivesse sob a ameaça do perigo,
como poderia ser recompensado pela sua aquiescência,
sendo salvo do perigo? E como poderia ser castigado
por sua desobediência à ordem, sendo abandonado ao
perigo?
O conhecimento tecnológico ocultado pelos
sacerdotes nas primitivas sociedades de dominação era
mágico porque de fato tecnologia é magia, no sentido
mais profundo do conceito. Ou seja: tentativa
instrumental de ajuste da estrutura e da dinâmica do
mundo a fim de influenciar a configuração de causas
que produzirão mudanças de fluxos, segundo
procedimentos anti-ecológicos latu sensu, ou não-
holísticos. A magia-tecnologia constituiu um modo
pelo qual a ordem invasiva do poder vertical foi
penetrando no caos da vida e pelo qual a consciência
de Gaia do simbionte foi fragmentada e estes
fragmentos foram reprimidos e alocados num
inconsciente. O eco-logos, a consciência da inserção
numa mesma totalidade com o meio ambiente, foi
substituído pelo saber (que é uma falsa consciência),
mágico-tecnológico, do eco-nomos. Ou seja, pelo
conhecimento da própria ordem imposta à natureza
face à escassez e geradora de escassez para o presente e
para as gerações futuras.

342
Seis mil anos depois da introdução da ordem
tecnológica, os resultados desse modo-de-interagir com
o mundo não se apresentam animadores. O saber do
eco-nomos não nos livrou da fome, das doenças, das
catástrofes ou da morte. Devastamos grande parte dos
nossos recursos, desequilibramos consideravelmente os
ritmos de Gaia e estamos, realmente, ameaçados de
extinção como espécie.
Enquanto estiver em vigência o paradigma da
tradicionalidade, prosseguiremos avançando como
predadores, imaginando ainda (sob o influxo de um
imaginário mítico) que todos os nossos carecimentos
serão providos pelo desenvolvimento tecnológico. E
acreditando que esse desenvolvimento poderá,
magicamente, fornecer os meios para o crescimento
ilimitado num mundo finito.
Dizer que a dominação social tem origens
espirituais significa dizer que o poder vertical foi
introduzido na terra dos homens pelos próprios
deuses, ou seja, pela idéia que certos povos antigos
tinham da divindade como instância superior à
humanidade.
Os relatos mais antigos que encontramos falam
de deuses que exigiam dos homens trabalho e
obediência às normas. Que aceitavam sacrifícios e
instituíam intermediários na sua relação com o povo.
Que diferenciavam-se dos homens pelo conhecimento
(tecnológico-mágico) e pela imortalidade (ou grande

343
longevidade). Que separavam-se dos seres humanos,
restringindo o acesso destes últimos aos seus espaços e
equipamentos de circulação, moradia e vivência. Que
mantinham a pureza de seus corpos (principalmente
em termos reprodutivos, genéticos), ocultando seus
conhecimentos (em especial aqueles conhecimentos
relativos à geração e manutenção da vida) e proibindo
o manuseio de suas ferramentas e armas. Assim eram,
por exemplo, os “deuses” sumérios, os quais forneciam
o modelo para a vida na terra e forneciam, também, o
modelo para a busca espiritual dos seres humanos: ao
invés de constituir humanidade, perseguir a super-
humanidade. Ultrapassar os limites do humano
(sobretudo o seu limite maior: a morte) tendo acesso
aos conhecimentos que só os deuses possuíam. Para
exercer a sabedoria, o poder e o domínio sobre coisas,
seres e pessoas, como os deuses exerciam. E para
serem imortais, como os deuses o eram. Depois disso
parece que todos querem subir para os céus – que é a
casa dos deuses. Isto é, a casa da vida, onde não se
morre. Todos querem galgar os (de)graus da escada em
busca de conhecimento e imortalidade.
Até hoje este modelo ainda vige em todos os
sistemas de sabedoria da tradicionalidade. De modo
que podemos dizer, sem medo de errar, que a
mensagem-padrão foi transmitida com pleno êxito para
as mais distantes regiões do tempo! Isto é o que se
chama de tradição.

344
Isto é a tradição: ao nos transformarmos naquilo
que eram os deuses antigos, repetimos o padrão
concebido no passado, quer dizer, repetimos passado.
Com isso, trancamos o futuro. É assim que nasce o
poder! Sim. Os deuses sumérios são deuses necessários
à ereção do poder vertical. Como todos os deuses não-
humanizados, levam necessariamente à sistemas de
dominação.
O que chamamos de poder é uma relação que
transforma diferenças em separações. Poder vertical é
aquele que estabelece uma ordem sagrada (hierarquia)
na qual o futuro é afastado e colocado acima das
possibilidades humanas. Sagrado queria dizer, no
princípio sumeriano, restrito, reservado, separado. Para
montar uma hierarquia é necessário separar o homem
do seu futuro. Essa operação de separação do futuro
foi realizada com a introdução, nas esferas espirituais
da humanidade, de uma certa idéia de deus. Os
sistemas de dominação do poder vertical só podem se
instalar: a) se deus estiver fora da história, mas
determinando a história; b) se deus estiver acima dos
homens; c) se deus estiver no passado: como um
criador, do mundo e do homem e, portanto, como um
ordenador do cosmos; d) se deus instituir
intermediários humanos na sua relação com os
homens; e, e) se deus exigir ou aceitar sacrifícios
humanos oferecidos por tais intermediários (que
inicialmente eram os reis-sacerdotes).

345
A maneira pela qual o deus-do-Êxodo, dos
profetas hebreus, teve que ser modificado para
possibilitar o domínio dos reis e dos sacerdotes em
Israel constitui talvez o melhor exemplo histórico da
necessidade, que têm os sistemas de dominação, de
implantar uma certa idéia de deus (ou de futuro
humano) para se instalar. Aquele deus dos profetas
hebreus era um deus histórico, que não exigia culto e
que caminhava à frente do povo, estando pois, a rigor,
no futuro. Ora, se deus estiver no futuro, então o
poder vertical não consegue se materializar, uma vez
que o seu Reino é utopia, é não-lugar. Logo, os
homens não podem representá-lo num reino concreto,
aqui-e-agora.
Acabamos nos transformando naquilo que eram
os deuses sumérios, exceto por um “detalhe”: a
imortalidade. Aqui parece estar o segredo! Ao falar da
relação do homem com o seu futuro estamos falando
da sua relação com a morte. Mas ao perseguir igualar-
se ao modelo, super-humano, do ser que não morre, o
homem envereda por um dos ramos da bifurcação que
conduz ao poder vertical. A ânsia de imortalidade, de
escapar da transformação da morte para ser igual a um
deus, leva o homem a querer paralisar o fluxo da vida,
construindo para si um mundo imune à corrupção do
tempo. Um mundo separado, reservado, conservado,
no qual as possibilidades de futuro são congeladas.
Neste mundo a utopia vira mito e o mito vira crença e

346
a crença repetida pelo rito cava um sulco por onde
devem escorrer as coisas que ainda virão.
O homem constrói monumentos à perenidade,
que ele mesmo não possui: sobretudo templos e
túmulos. Cerca seus espaços de vivência. Separa-os dos
demais espaços, para não ser contaminado pela
impureza que pode apressar a dissolução da ordem que
sustenta a sua vida biológica e social. É assim que
nasce a cidade murada e fortificada, que é inicialmente
um templo mesmo. E, logo depois, também um
túmulo. No templo o homem tenta, desesperadamente,
comunicar-se com a fonte da vida – sempre em busca
da imortalidade. Como não consegue, entrega-se ao
túmulo consagrado, esperando alcançar uma outra
vida.
É porque não aceita a transformação da vida que
o homem resiste e teme a morte. Resiste ao fluxo que
substitui e recombina os elementos vitais numa
totalidade mais abrangente. Imaginando que a
dissolução do seu ego seja a derrota suprema, o
fracasso derradeiro, o homem luta para manter a
integridade da ordem das coisas, afim de repetir as
mesmas constelações de eventos e objetos que o
sustentaram no passado e até aqui. E aí repete
indefinidamente o passado, desafiando as estações e os
ritmos naturais. Tudo passa, mas eu não posso, porque
não quero, passar. Assim fala o ego do predador!

347
Temendo a morte o homem passa a cultuar a
morte. Cultua a morte porque quer ficar separado da
morte. O culto da morte se exerce pelo sacrifício da
vida. O medo da morte, que leva ao culto da morte, leva
o homem a matar. O instrumento fundamental do culto
da morte é a espada que tira a vida. Sim, a espada que
separa, com a qual Marduk (o deus da ordem), cortou
Tiamat (a deusa do caos); isto é: ordem separada do
caos. A espada alquímica (simbolo da separatio) que corta
o ovo que porta e alimenta a vida, levando à operação
chamada coagulatio, através da discriminação e do
julgamento. Com efeito, todas as obras que os seres
humanos realizam para escapar da morte ou resistir ao
fluxo transformador da vida são coagulações,
materializações, cristalizações, congelamentos de fluxos.
Sejam essas obras zigurates, pirâmides, muralhas
colossais cercando templos-palácios – e todas as
organizações piramidais erigidas para manter a ordem,
como o Estado, por exemplo.
O culto da morte é um culto da ordem. A ordem
do mundo construído tem que ser mantida, custe o que
custar. Para aplacar as forças ameaçadoras da dissolução,
instaura-se o sacrifício, a oferenda ritual do sangue, do
suor e das lágrimas de vítimas propiciatórias. Os
sofrimentos infligidos a essas vítimas fornece a energia
necessária para alimentar o sistema, mantendo “vivas”
as realizações que o ego externalizou. Os poderosos não
torturam apenas porque querem obter informações

348
estratégicas. A violação pela tortura é um ato ritual. A
câmara de tortura é uma espécie de dínamo, central de
energia, usina. É assim que o poder adquire uma
característica maligna: quando impõe, de modo
deliberado e instrumental, sofrimentos aos seres
humanos para perpetuar um sistema de dominação. E é
por isso que, para qualquer humanismo, inclusive para a
ética marxiana (Heller, 1982: 129), aliviar o sofrimento é
a chave para a construção da humanidade ou a redenção
do humano.
O predador é o ser possuído por mitos e
complexos. Se fossemos simbiontes não haveria esta
possessão, mesmo porque não existiria qualquer coisa
como um “inconsciente coletivo”. O que chamamos de
inconsciente coletivo parece ter sido a forma pela qual
os seres humanos se tornaram coletivamente
inconscientes de algo como uma “alma do mundo”, a
qual, em virtude disso tornou-se, ela própria,
inconsciente, uma vez que a sua consciência eram os
seres humanos.
A “alma do mundo” primitiva poderia ser
concebida como uma espécie de “mente de Gaia” se
entendemos por isso uma expressão das interações
sinérgicas que se processavam no interior da totalidade
homem-natureza. Ocorre, entretanto, que essa “alma
do mundo” não era humana, ou completamente
humana. Uma vez remetida para os porões da
consciência, ela ficou lá tentando se comunicar

349
conosco através de formas simbólicas. Como não
podíamos entender tal linguagem, preenchemos estas
formas sem conteúdo com o conteúdo fornecido pelos
padrões do tipo de civilização que predominou nos
últimos seis mil anos. Inculcados pela repetição
sacerdotal, milênio após milênio, tais conteúdos
criaram o homem civilizado à imagem e semelhança
dos deuses necessários ao sistema dominador.
Os arquétipos de que tanto se fala são na
verdade formas simbólicas preenchidas com o
conteúdo dos padrões da sociedade de dominação. O
ancião; a grande mãe (matrona, a ânima); o mago (o
ânimus); o herói (guerreiro); o poderoso rei; o guia
(velho sábio, rei-criança-deus sacrificado, o self); a
meretriz (donzela); o trapaceiro (hermafrodita); a
sombra, o ego e a persona; e, por último, o corpo
exilado do espírito (a jovem mulher coroada) – todos
esses (os de sempre), são os tipos básicos de
arquétipos. Mas agrupados numa constelação que foi
replicada pela tradição em todos os sistemas de
sabedoria, este conjunto de arquétipos acabou
constituindo um esquema. Um esquema de relações
organizadoras capaz de conter todas as possibilidades
do que foi, é e será na existência, normatizando não
apenas o presente e o passado, mas também o futuro.
Foi assim que a coisa toda se manteve,
automaticamente porque inconscientemente. Essa foi a
maneira pela qual a tradicionalidade capturou o

350
mundo, aprisionou-o, suprimindo a história como
campo aberto à novas possibilidades civilizacionais.
Não é a toa que as vertentes de pensamento
ligadas à tradição não se dão muito bem com a história.
Elas de fato não gostam muito das transformações que
podem acontecer na história, sem que ninguém
planeje, sem que exista um plano, uma inteligência
superior organizando tudo, quer dizer, fazendo valer a
sua ordem.
O próprio Jung reconheceu que a definição e a
orientação do inconsciente são funções que só foram
adquiridas numa fase relativamente recente da história
humana e que, mesmo hoje, estão bastante ausentes
nos povos primitivos. São suas palavras, textualmente.
Portanto, a psicologia analítica supõe que existam
adaptações que são necessárias à sobrevivência num
mundo civilizado e que só foram adquiridas pela
humanidade com sacrifício muito grande. Sem essa
adaptação nem a ciência nem a sociedade poderiam
existir, pois ambas pressupõem a garantia de
continuidade do processo psíquico. A sobrevivência
depende da continuação adaptativa, do desdobramento
(ou evolução) que ocorre, partindo do inconsciente até
chegar ao consciente.
O inconsciente coletivo passou a ter a função
psico-social de adequar o ser humano ao tipo de
civilização estabelecida. As mensagens simbólicas
emitidas por este inconsciente já continham os

351
elementos de dominação do poder vertical, dando a
impressão de que os arquétipos eram constitutivos da
própria espécie humana. Até mais do que isso. Por
exemplo, o rei com sua coroa e o seu cetro, o mago
com seu bastão, o herói guerreiro com sua espada
transformaram-se em modelos da criação, não apenas
do homem mas do próprio cosmos.
Jung afirma que os símbolos tradicionais – como
a espada, por exemplo – são uma antiga herança
humana, mas não revela como esta herança foi
adquirida. Não diz que tal símbolo (no caso da espada)
pode ter sido introjetado a partir de determinado tipo
de organização social. Pelo contrário, deixa a questão
da origem de símbolos como estes e de seus
correspondentes arquétipos imersa nas mesmas
brumas de onde, também, teriam brotado os instintos.
O problema é que ao imaginar que a evolução humana
se dá pelo desdobramento do inconsciente, ao achar
que o inconsciente contém todas as combinações que
com o tempo e condições favoráveis virão à luz no
consciente, Jung formulou, na verdade, uma teoria da
adaptação ao tipo de civilização gerada com base na
separação entre consciente e inconsciente. Tanto é
assim que, para ele, a neurose a psicose são padrões de
inadaptação.
Estamos ainda tão envolvidos por esse modo-
de-ver baseado na separação entre consciente e
inconsciente (que afinal não é de Jung, nem de outros

352
psicólogos e mitólogos, mas de todos os sistemas de
sabedoria da tradicionalidade) que nem desconfiamos
de que, talvez, não exista um modelo, universal e
único, de civilização, ao qual, obrigatoriamente, temos
de nos adaptar. E sequer nos lembramos de perguntar
se, de fato, precisamos disso para existir como espécie
humana e para realizar a nossa humanidade.
Tão profundo foi o sulco escavado que até hoje,
já no início do século XXI, mesmo os que anunciam
uma “nova era” não conseguem se desvencilhar do
esquema ancestral que constela sempre os mesmos
arquétipos segundo um padrão determinado. Essas
pessoas vivem tecendo múltiplas variações e
recombinando indefinidamente os elementos internos
desse esquema, mas nunca rompem com ele. Sem
conseguir romper com a réplica do mundo criada pelo
paradigma da tradicionalidade, os arautos da “nova
era” acabam, quase sempre, anunciando “um novo
reino dos velhos magos”. Podemos constatar isso
examinando os milhares de títulos da chamada
literatura espiritualista contemporânea.
Se quisermos algum dia ter a volta do simbionte,
o esforço humano deverá concentrar-se em tornar
novamente consciente a “alma do mundo”, agora para
humanizá-la, transformando-a numa “alma humana do
mundo” ou na “alma da humanidade”. Esta é uma
possibilidade, imaginada, de futuro, que, realizada,
corresponderia à uma verdadeira mutação

353
civilizacional. Não podemos saber se isso significaria o
fim dos mitos, mas talvez significasse o fim do poder
do mito sobre os seres humanos e da possessão dos
complexos.
Com uma “alma do mundo humanizada”
certamente não poderia existir na terra dos homens o
poder vertical. O mundo do simbionte eco-social não
seria presidido pela separação que transforma
diferenças em desigualdades e gera o fenômeno do
poder dominador. O fim da separação é o fim da
espada e do muro, como geratrizes da realidade cindida
entre sagrado (nós, os amigos) e profano (eles, os
inimigos). O fim da espada é o fim da guerra como
instituição permanente, que supostamente espelha uma
realidade cósmica imutável, simbolizada pelo combate
arquetípico entre o heroi-guerreiro e o vilão-guerreiro
e, portanto, tida e mantida por inevitável. O fim do
muro é o fim das cercas fortificadas que estão na
origem da Cidade-Templo-Palácio-Estado e que hoje
ainda permanecem nas fronteiras entre países. Mas
seria também o fim daquelas instituições que operam
como centros reprodutores de costumes, normas de
moralidade e crenças com o objetivo de adaptar o ser
humano ao tipo de sociedade patriarcal e dominadora.
Em outras palavras, seria o fim das instituições
que não produzem Capital Social, que privatizam
Capital Social ou que produzem Capital Social
“negativo”. Por outro lado, seria a oportunidade para o

354
florescimento de novas instituições horizontais,
constituídas com base na cooperação, constitutivas de
uma sociedade de parceria, como veremos mais
adiante.

8.6 – Um novo modo-de-ver as origens da


cultura civilizada
As considerações precedentes, é bom repetir,
decorrem, em grande parte, de um exercício de
imaginação. Elas constituem um ensaio sobre um novo
modo-de-ver as origens da cultura civilizada. Para estabelecer
um novo conceito de Capital Social me parece
fundamental fazer esse exercício – imaginar
possibilidades alternativas ao “modelo” patriarcal –
porquanto acabamos pensando sempre a partir de
pressupostos não-científicos (i. e., que não podem ser
validados no âmbito do sistema racional que sobre eles
se constrói), que raramente discutimos quando
trabalhamos em nossas teorias sociais, que reforçam o
paradigma civilizacional predominante.
Por outro lado, há também um motivo político
para esta exercitação: talvez a melhor maneira de criticar
as coisas de que não gostamos é imaginando como
desejaríamos que elas fossem. Imaginar e desejar um
futuro alternativo é condição para realizá-lo. O que,
certamente, é a melhor forma de mudar as coisas de que
não gostamos.

355
Para tanto, não é necessário falar de realidades e,
muitas vezes, nem de tendências verificadas hoje em
dia. Ao colocar a idéia de que as coisas não precisam
continuar sendo como foram, estamos exercendo uma
poderosa crítica ao nosso tempo. Imaginar um
desejável futuro alternativo significa, de algum modo,
desestabilizar a situação do mundo atual. Pois quando
as pessoas começam a vislumbrar a possibilidade do
novo, o velho pode começar a se preocupar. Levantar
novas possibilidades é contribuir para que as coisas não
continuem sendo como são. É, em certo sentido, criar
futuro.
Se o futuro imaginado e desejado for realizado
antecipatoriamente, isto é, se algumas pessoas – e
depois outras, e cada vez mais gente – começarem a se
comportar como se este futuro já tivesse chegado, então
ele deixa de ser futuro e passa a ser presente. Neste
caso, a mudança do velho para o novo terá se
consumado.
De qualquer modo, se quisermos alterar alguma
coisa no presente, temos que fazer uma viagem de ida
e volta ao futuro. Pois que o futuro vem antes do
presente. Ou seja: para chegar a um (novo) presente –
que não seja apenas repetição de passado – é
necessário, antes, passar pelo futuro.
Quando comecei a escrever este texto estava
plenamente convencido das idéias que acabei de expor
acima. Mas agora, que me aproximo do seu final, me

356
dou conta de que não basta imaginar e desejar um
futuro melhor para antecipá-lo através de ações
concretas. É necessário, também, modificar o passado (na
medida em que isso significa, sempre, modificar nossa
visão do passado – o qual, ainda que não tendo
existência objetiva, influencia decisivamente nossa
visão do futuro).
O simbionte é, obviamente, uma imagem de
futuro projetada no passado. Na verdade ele não pode
voltar, porquanto nunca existiu enquanto alternativa de
projeto civilizatório. Existiram, provavelmente,
agrupamentos humanos que não se caracterizavam pela
predação eco-social, embora não deixassem de colidir,
eventualmente, com a natureza e entre si, por recursos
sobrevivenciais. Em alguns casos talvez se possa dizer
que a dinâmica de certos grupos de coletores
paleolíticos e de algumas aldeias agrícolas neolíticas se
aproximava de um padrão de simbiose, uma vez que os
seres humanos inseridos nesses coletivos se
beneficiavam mutuamente da sinergia estabelecida com
o meio ambiente em consonância com os ritmos
naturais. As águas, o ar, o solo, o clima e os
organismos vivos compunham uma totalidade
biocenótica eco-equilibrada que possibilitava, durante
determinados períodos, um efeito antrópico não-
desarmonizante. Socialmente falando, também é muito
provável que uma cultura basicamente cooperativa
tenha predominado nesses agrupamentos humanos por

357
certo tempo. Durante tais períodos, às vezes bastante
longos, é possível que tenham existido, de fato,
sociedades de parceria, como quiseram ver Riane Eisler
(1987) e Humberto Maturana (1993).
Projetamos a imagem do simbionte no passado
justamente para dizer que essa poderia ter sido uma
alternativa civilizatória, se os seres humanos tivessem
tomado o outro ramo da bifurcação, ao invés daquele
que nos levou às sociedades de dominação. Ora,
quando projetamos a imagem do simbionte no
passado, modificamos o passado, modificando também
o nosso futuro.

8.7 – Sociedades de parceria e Capital Social


A presumível inexistência de sociedades de
parceria, relativamente estáveis e duráveis para poder
servir como paradigma alternativo de um outro projeto
civilizatório – não-patriarcal –, em nosso passado pré-
histórico, não implica que tais sociedades não tenham
existido, de modo mais ou menos embrionário,
eventual, localizado ou fugaz, em eras pretéritas, desde
que grupos de primatas começaram a tecer redes de
conversações, tornando-se, a rigor, humanos no
sentido atual em que o termo se aplica à nossa
linhagem. Nem significa que tais sociedades não
possam ter existido em épocas mais ou menos recentes
– notadamente do período neolítico e mesmo depois

358
da chamada revolução urbana – nem que não possam
existir no presente ou vir a existir no futuro.
Sociedades de parceria são, afinal, sempre
comunidades, ou seja, coletividades constituídas a
partir da cooperação gerada por um emocionar que
acolhe o outro no próprio espaço de vida
“produzindo” com-vida. Como vimos, é a cooperação
que gera „capacidade de comunidade‟, quer dizer,
capacidade de constituir e de viver em comunidades,
capacidade de realização de projetos comuns entre
indivíduos, grupos ou organizações singulares, com
interesses e opiniões diferentes. E nada impede que
existam comunidades em sociedades não-comunitárias,
digamos assim. Em outras palavras, nada impede que
sociedades de parceria floresçam como subregiões de
um conjunto maior, em circunstâncias em que este
último não possa ser caracterizado, enquanto tal, como
uma sociedade de parceria.
Poder-se-ia dizer que se existem seres humanos
que manifestam tal emocionalidade – geratriz da
cooperatividade –, não se formarão comunidades
somente se houver algo que impeça a ampliação social
da cooperação. Assim, a pergunta: „por que os seres
humanos cooperam?‟ está mal-colocada; dever-se-ia
perguntar o contrário: „por que seres humanos, em
determinadas circunstâncias, deixam de cooperar?‟ uma
vez que para cooperar não é necessário ter um motivo,
em termos instrumentais, mas para não-cooperar é

359
preciso, certamente, que exista algo impedindo a
cooperação.
Existem, todavia, muitos níveis de complexidade
do que chamamos de comunidade: um grupo primitivo
de sapiens provavelmente apresentará um padrão
organizacional e um modo de regulação de conflitos
também primitivos: a “vida” dessas comunidades não
apresentará, por exemplo, propriedades de
automanutenção e seu “metabolismo” não será
sofisticado ao ponto de admitir regras democráticas de
solução de conflitos. Por certo, haverá pouca geração
de Capital Social, o que não quer dizer que haverá
geração de Capital Social “negativo”, como no caso de
existirem padrões hierárquicos de organização e modos
autocráticos de regulação instalados. Talvez não seja
mesmo muito adequado denominar tais coletividades
de sociedades de parceria; certamente, mais
inadequado ainda seria classificá-las como sociedades
de dominação.
Se existirem grupos que privatizam Capital
Social, como é o caso da família monogâmica, é sinal
de que já se instalaram padrões hierárquicos de
organização e modos autocráticos de regulação. Não é
por acaso que a família monogâmica tenha surgido, ao
que se sabe, na mesma época do que a Cidade-Templo-
Estado monárquica mesopotâmica. Família
monogâmica e Estado são realidades coetâneas. Neste

360
caso já estamos na presença de sociedades de
dominação.
Porém mesmo na presença de instituições que
“privatizem” Capital Social (como a família
monogâmica) ou que produzam Capital Social
“negativo” (como as ordens militares), ou seja, mesmo
em sociedades de dominação, podem existir
comunidades, neste caso sem que a sociedade como
um todo se estruture com base em comunidades e
possa ser caracterizada por isso. Ilhas de parceria num
mar de dominação terão, naturalmente, muitas
dificuldades para se manter, para crescer e para se
“reproduzir” – mas poderão fazê-lo em certas
circunstâncias. Não fosse assim, não teria sobrado
nenhuma herança de nossa infância matrística – para
usar as expressões de Maturana.
Muitos fatores devem comparecer, conjunta e
interligadamente, para possibilitar a formação de
comunidades como instituições sociais determinadas,
sobretudo quando inseridas em sociedades de
dominação. Nestas boundary conditions, digamos assim,
talvez não seja possível a ampliação social da
cooperação a não ser aproveitando brechas abertas
pela livre invenção humana – como é o caso, veremos
mais adiante (no capítulo 10), da invenção da
democracia. Ademais, parece ser necessário que
pessoas e grupos possam conectar-se com pessoas e
grupos de modo horizontal. Na ausência dessa

361
possibilidade não pode se dar a emersão de sociedades
de parceria, como também veremos no próximo
capítulo.
O fato é que se não existissem sociedades de
parceria não poderia haver Capital Social. Se existe
Capital Social “positivo”, de qualquer qualidade ou em
qualquer quantidade, é sinal de que existem – ainda que
embrionariamente, eventualmente, localizadamente ou
fugazmente – sociedades de parceria, ou seja,
comunidades como conjuntos cimentados pela
cooperação. Só não existiria Capital Social (“positivo”)
se conseguíssemos impedir qualquer tipo de ligação
horizontal entre pessoas e grupos, se
hierarquizássemos a sociedade a tal ponto que todos os
seres humanos passassem como que a ocupar um
“degrau da escada”, quer dizer, um grau diferente de
poder – o que constitui uma tarefa impraticável, a não
ser nos esquemas míticos que consubstanciam as
tradições sacerdotais e monárquico-militares. Isso
significa que as conexões em rede entre pessoas e
grupos constituem uma das chaves para a
compreensão do processo pelo qual o Capital Social
pode ser gerado numa dada coletividade. Devemos
voltar a nossa atenção agora, portanto, ao chamado
padrão de rede.

362
9
______________
O padrão de rede

Capital Social tem a ver com rede e isso se sabe, pelo


menos, há quarenta anos. Para não falar das
considerações fundadoras de Tocqueville que, como
vimos, evidenciam pioneiramente o papel político da
teia associativa composta por miríades de organizações
da sociedade na constituição do bom governo e na
prosperidade econômica, a primeira pessoa a usar a
expressão „Capital Social‟ com o seu sentido atual,
definiu-o como rede (Jacobs, 1961). E o maior
divulgador do conceito constatou que as relações que
geram Capital Social não são as que seguem um padrão
hieráquico-vertical (Putnam, 1993). No debate dos
pressupostos, tanto Maturana (1985-1993) quanto

363
Fukuyama (1999) introduzem o padrão de rede para
explicar como se formam e/ou como operam os laços
cooperativos – isto é, produtores de Capital Social –
entre as pessoas de uma determinada cultura ou
sociedade; o primeiro com as “redes de conversações”
(pelas quais, talvez, uma cultura possa ser vista como
um sistema autopoiético) e o segundo ao mostrar que
as redes são uma forma de Capital Social na qual os
indivíduos estão relacionados entre si por normas e
valores comuns, além dos laços econômicos – normas
e valores estes, entretanto, fundamentais para a
aumentar a qualidade e a produtividade nos processos
econômicos da sociedade pós-industrial, como
veremos imediatamente a seguir.

9.1 – Capital Social e rede


Francis Fukuyama, num texto escrito
originalmente em fevereiro de 1997 (e dois anos depois
inserido em “The Great Disruption”), estabeleceu
interessantes relações entre Capital Social e redes. Ele
começa afirmando que “as corporações centralizadas e
autoritárias têm fracassado pela mesma razão que
levou ao fracasso os estados centralizados e
autoritários: elas não conseguem lidar com os
requisitos informacionais do mundo cada vez mais
complexo que habitam. Não é por acaso que as
hierarquias começaram a ter problemas precisamente

364
ao mesmo tempo em que as sociedades em todo o
mundo estavam fazendo a transição de formas de
produção industriais para formas de alta tecnologia e
baseadas na informação” (Fukuyama, 1999: 205).
Partindo daí Fukuyama vai constatar que “os
problemas que afligem as organizações grandes e
hierárquicas não são banais e é razoável pensar que o
empowerment e a autoridade dentro delas irá continuar.
Mas surge um novo problema: coordenar as atividades
de todos os participantes numa organização
descentralizada, na qual funcionários de nível baixo
possuem poderes recém-adquiridos. Uma solução é o
mercado, onde compradores e vendedores
descentralizados conseguem resultados eficientes sem
controle central. A loucura da terceirização nas
empresas americanas durante os anos 90 é um esforço
para substituir controle hierárquico por relações de
mercado. Mas a troca no mercado gera custos de
transação e, de qualquer maneira, as empresas não
podem organizar suas funções essenciais como
mercados, com todos competindo com todos. A outra
solução para o problema de coordenação de
organizações altamente descentralizadas é a rede, uma
forma de ordem espontânea que emerge como
resultado das interações de participantes
descentralizados, sem ser criada por qualquer
autoridade centralizada. Para que as redes produzam
realmente ordem, elas dependem necessariamente de

365
normas informais tomarem o lugar das organizações
formais – em outras palavras, do capital social”
(Fukuyama, 1999: 206-7).
Fukuyama chega a estabelecer uma certa
equivalência entre as noções de rede e de Capital
Social, o que não o deixa muito distante da primeira
pessoa a usar este último conceito: como vimos, para
Jane Jacobs, as redes são o Capital Social. Mas ele
discute o uso generalizado e impreciso do termo rede:
“sociólogos têm usado o conceito de redes há anos e
às vezes expressam contrariedade pelo fato de os
professores de escolas de administração estarem agora
reinventando a roda. Porém a definição de rede
comumente usada pelos sociólogos é extremamente
ampla e abrange mercados e hierarquias como são
entendidos pelos economistas. Contudo há uma
notável falta de precisão no uso do termo rede entre os
especialistas gerenciais. Redes são comumente
consideradas diferentes de hierarquias, mas muitas
vezes não está claro como diferem dos mercados...
Algumas pessoas tratam a rede como uma categoria de
organização formal na qual não existe nenhuma fonte
formal de autoridade soberana, enquanto outras a
entendem como um conjunto de relacionamentos
informais ou alianças entre organizações, cada uma das
quais podendo ser hierárquica, mas ligadas entre si por
relacionamentos contratuais verticais. Os grupos
keiretsu japoneses, as alianças de pequenas empresas

366
familiares na Itália central e os relacionamentos da
Boeing com seus fornecedores são igualmente vistos
como redes” (Fukuyama, 1999: 208-9).
Ele parte então para uma definição: “se
considerarmos uma rede não um tipo de organização
formal, mas capital social, teremos muito mais
discernimento a respeito da sua verdadeira função
econômica. Por esta visão, uma rede é uma relação
moral de confiança: uma rede é um grupo de agentes
individuais que têm em comum normas ou valores além daqueles
necessários às transações habituais de mercado” (Fukuyama,
1999: 209).
Esta definição, chama a atenção Fukuyama, tem
duas características importantes. A primeira
característica é a de que “uma rede é diferente de um
mercado na medida em que as redes são definidas por
suas normas e valores comuns. Isto significa que as
trocas econômicas dentro de uma rede serão realizadas
em bases diferentes daquelas das transações em um
mercado... A troca entre membros de uma rede é
diferente... [das trocas de mercado, pois estes] estão
muito mais dispostos a se engajar em trocas recíprocas
além das trocas de mercado – por exemplo, conceder
benefícios sem esperar benefícios imediatos em troca”
(Fukuyama, 1999: 210) (n. i.). A segunda característica
da definição fukuyamaniana de rede é a de que “uma
rede é diferente de uma hierarquia porque se baseia em
normas comuns informais, não numa relação formal de

367
autoridade” (Idem) – ainda que, como sabemos, não
seja só o aspecto formal que caracterize uma
hierarquia, mas a forma como se distribui o poder.
Mas a visão de Fukuyama faz sentido para seus
argumentos, que são principalmente econômicos. “O
capital social – escreve ele – é de fato importante para
determinados setores e certas formas de produção
complexa precisamente porque as trocas baseadas em
normas informais podem evitar os custos das
transações internas das grandes organizações
hierárquicas, bem como os custos das distantes
transações externas. A necessidade de trocas informais
e baseadas em normas torna-se mais importante à
medida que bens e serviços tornam-se mais complexos,
difíceis de avaliar e diferenciados. A importância
crescente do capital social pode ser vista, por exemplo,
na mudança da fabricação, de baixa para alta
confiança” (Fukuyama, 1999: 215).
Para Fukuyama, “a fábrica pós-fordista requer
um grau mais elevado de confiança e capital social que
o local de trabalho à moda de Taylor com suas regras
abrangentes” quando não havia “necessidade de
confiança, capital social ou normas sociais informais...
[porquanto era] dito a cada trabalhador onde ele
deve[ria] ficar, como mover seus braços e pernas e
quando parar e, de modo geral, não se esperava que ele
apresentasse qualquer grau de criatividade ou
julgamento. Os trabalhadores eram motivados por

368
incentivos puramente individuais, fossem recompensas
ou punições, e eram facilmente intercambiáveis uns
com outros” (Fukuyama, 1999: 217-6) (n. i.). Em
outras palavras, ele está dizendo que o taylorismo
fordista não precisava de Capital Social e, em certo
sentido e em certa medida, destruia ou impedia que
fosse gerado Capital Social.
A produção pós-fordista, entretanto, não pode
funcionar bem com o velho sistema urdido pelo
engenheiro Frederick Winslow Taylor porque é uma
produção em que a “alta confiança” é uma exigência da
produtividade e da qualidade. Fukuyama dá o exemplo
da indústria automotiva de nossos dias, que melhorou
em muito a produtividade e a qualidade dos produtos –
“a razão é que as informações locais são processadas
muito mais perto da sua fonte: se um painel de porta
de um fornecedor não se encaixa adequadamente, o
operário designado para fixá-lo ao chassis tem
autoridade e incentivo para fazer com que o problema
seja resolvido em vez de deixar que a informação se
perca enquanto viaja acima e abaixo por uma longa
hierarquia gerencial” (Fukuyama, 1999: 217).
Outros exemplos, sobretudo baseados na nova
indústria de tecnologia da informação, só vêm a
confirmar – para Fukuyama – a importância crescente
do Capital Social, e não apenas dentro de cada
empresa: por trás do competitivo complexo
tecnológico-industrial do Vale do Silício existe “uma

369
ampla gama de redes sociais ligando indivíduos de
diferentes empresas nos negócios de semicondutores e
computadores” (Idem: 218). Se tais redes não
existissem, as empresas não poderiam ter prosperado
como prosperaram, porquanto, entre outras coisas, são
elas que permitem o trânsito dos conhecimentos
tácitos e das avaliações de integridade, de fornecedores
e potenciais parceiros, baseadas em confiança adquirida
(em geral a partir de antecendentes e experiências de
trabalho comuns) sem os quais os projetos de cada
empresa nem se polinizariam mutuamente, nem teriam,
a baixo custo, as informações necessárias para saber
quem contratar, a quem se associar etc.
Pois bem. Tudo isso é Capital Social –
estimulado, sobretudo, pela complexa tecnologia da
informação, que envolve “a integração de um grande
número de tecnologias de produto e de processo
altamente avançadas”. Temos aqui um argumento, de
fundo basicamente econômico, para mostrar: a) que as
mudanças introduzidas pelas novas tecnologias da
informação na era pós-industrial, acarretam – ou, pelo
menos, ensejam – a formação de conexões horizontais
entre pessoas e grupos, de redes sociais informais que
produzem Capital Social; b) que os novos padrões
produtivos da sociedade da informação precisam de
Capital Social em quantidade maior do que, antes,
necessitava a economia industrial; e c) que, na era da
informação – e não apenas nas sociedades pré-

370
industriais – as comunidades têm um papel e voltam a
assumir importância (inclusive econômica), ainda que
sejam, como diz Fukuyama, comunidades sui generis,
constituídas a partir da troca de informações, porém
baseadas, como qualquer comunidade, “em respeito
mútuo e confiança” (Fukuyama, 1999: 219).
Fukuyama trabalha, como vimos, a partir de
uma visão basicamente econômica: o Capital Social e a
rede como uma forma de Capital Social são constituídos,
por certo, por normas e valores extra-econômicos, mas
a impressão que fica é que tudo isso é tomado pelo
lado da funcionalidade econômica. Com efeito, para ele
“a rede é a versão corporativa contemporânea da
organização espontânea”: certamente a preocupação
predominante aqui é a de desvendar a relação entre
Capital Social e mercado.
Fukuyama acredita que as empresas possam
produzir Capital Social, mas reconhece que isso
provavelmente não se dará em contextos sociais de
baixo Capital Social – e é aqui que está o ponto: “as
redes são simplesmente uma forma de capital social na
qual os indivíduos estão relacionados entre si por
normas e valores comuns, além dos laços econômicos.
Até certo ponto, as empresas podem criar capital social
incutindo determinados valores comuns em seus
funcionários. Mas este costuma ser um processo longo
e custoso e, de qualquer modo, uma empresa sozinha não
pode criar laços sociais que ligam seus funcionários com aqueles

371
de outras empresas. Para isso ela precisa se basear no capital
social que existe na sociedade ao seu redor, o qual pode ou
não existir. As redes auto-organizadas têm maior
probabilidade de emergir quando as pessoas na sociedade
possuem outras instituições comunitárias fortes e não estão
divididas por classes, etnias, religiões, raças ou quaisquer outras
categorias” (Fukuyama, 1999: 232) (n. g.).
Com isso, Fukuyama já teria dito o fundamental.
Infelizmente, a partir daí ele vai começar a argumentar
sobre o que chama de “deficiências de redes” para
tentar concluir com a imprescindibilidade da hierarquia
centralizada, especulando com coisas como a suposta
existência de um Homo Hierarchicus (“as pessoas, por
natureza, gostam de se organizar de forma hieráquica” –
e o grifo é dele, como se isso não fosse função do
padrão civilizatório em que vivemos), confundindo,
como já dissemos, política com exercício do poder (de
Estado), policy (hobbesiana) com politics (spinoziana).
Sob tais lentes ele avalia mal contribuições
fundamentais aportadas ao tema por teóricos como
Castells: “alguns visionários como Manuel Castells,
autor de The Rise of the Network Society, declararam que
estamos à beira de uma ampla mudança da hierarquia
autoritária para redes e outras estruturas de poder
radicalmente democratizadas” (Fukuyama, 1999: 231).
Ora, Castells – já veremos adiante – nem é um
visionário, (no sentido pejorativo que fica implícito,
porém bem claro, para quem ler o capítulo intitulado

372
“Os limites da espontaneidade e a inevitabilidade da
hierarquia” do “The Great Disruption”) nem diz
exatamente isso.

9.2 – Redes e comunidades em uma


sociedade pós-industrial
Parece óbvio que as comunidades numa
sociedade pós-industrial deverão ser diferentes das
comunidades de uma sociedade pré-industrial. No
entanto, é preciso, antes, perguntar se existe mesmo
esse novo tipo de comunidade numa sociedade pós-
industrial e, se existe, como essas novas comunidades
se constituem e que papel cumprem. Serão, por
exemplo, apenas heranças vestigiais com nova
roupagem, enclaves de tradicionalidade readaptados
num mundo pós-moderno? Ou poderão ser, também,
ou coadjuvantemente, ou principalmente, novos
agentes de mudança? Se a capacidade a que se refere o
conceito de Capital Social é, basicamente, uma
„capacidade de comunidade‟, como isso se materializa?
Em outras palavras, como as novas comunidades
realmente existentes na sociedade contemporânea – se
é que existem – geram (ou são geradas) ou acumulam
(e reproduzem) Capital Social? E o que a emersão, pós-
industrial, do padrão de rede, tem a ver com tudo isso?
Uma parte dessas questões já foi respondida por
Francis Fukuyama (1999) e por Manuel Castells (1996).

373
E penso que uma parte da outra parte ainda pode ser
respondida a partir das respostas deste último.
Manuel Castells (1996) pressentiu, nas novas
comunidades culturais da emergente sociedade em
rede, novos agentes da mudança social. Na conclusão
do segundo volume da trilogia “A Era da Informação:
Economia, Sociedade e Cultura – O Poder da
Identidade”, Castells faz uma declaração impactante
sobre o “caráter sutil e descentralizado das redes de
mudança social”, que nos impede de perceber uma
espécie de revolução silenciosa que vem sendo gestada
na atualidade (Castells, 1996b: 426).
É supreendente como Castells, seguindo por
outros caminhos investigativos, chega às mesmas
conclusões que os estudiosos da mudança que se
apoiam nas teorias da complexidade, corroborando a
hipótese, também esposada aqui, segundo a qual um
padrão de “organização e intervenção descentralizada e
integrada em rede, característica dos novos
movimentos sociais” é o “principal agente” da
mudança hoje (Castells, 1996b: 426). Com efeito,
escreve ele: “Pelo fato de que nossa visão histórica de
mudança social esteve sempre condicionada a
batalhões bem ordenados, estandartes coloridos e
proclamações calculadas, ficamos perdidos ao nos
confrontarmos com a penetração bastante sutil de
mudanças simbólicas de dimensões cada vez maiores,
processadas por redes multiformes, distantes das

374
cúpulas de poder. São nesses recônditos da sociedade,
seja em redes eletrônicas alternativas, seja em redes
populares de resistência comunitária, que tenho notado
a presença dos embriões de uma nova sociedade,
germinados nos campos da história pelo poder da
identidade” (Idem: 427).
Para Castells, “uma nova estrutura social e „a
carne e os ossos‟ de nossas sociedades estão sendo
constituídas” por um processo histórico marcado pela
formação de novas “identidades de resistências
comunais e de identidades de projeto” que a “lógica da
sociedade em rede”, contraditoriamente, permite
emergir (Castells, 1996b: 423).
Grande parte dessas identidades que estão
emergindo como novos agentes de mudança social são,
inicialmente pelo menos, identidades de resistência.
Em torno dessas identidades constituem-se as novas
comunidades culturais que resistem às formas
hegemônicas pelas quais se processam a globalização e
a reestruturação do capitalismo, à idolatria da
tecnologia e do consumo predador e ao patriarcalismo,
como os novos movimentos localistas, ambientalistas e
feministas, por exemplo. No entanto, Castells supõe
que novas identidades de projeto podem surgir a partir
dessas identidades e comunidades de resistência.
“Novas identidades de projeto não parecem surgir de
identidades anteriores presentes na sociedade civil da
era industrial, mas sim a partir de um desenvolvimento

375
das atuais identidades de resistência” (Castells, 1996b: 420)
(g. a.). E, neste momento em que vivemos, “a principal
questão passa a ser o surgimento... [dessas] identidades de
projeto, potencialmente capazes de reconstruir uma
nova sociedade civil e, enfim, um novo Estado” (Idem)
(n. i.) (g. a.).
Constituídas, em princípio, em torno de
identidades defensivas, “que servem de refúgio e são
fontes de solidariedade”, as novas comunidades da era
da informação são culturais, porque “são construídas
culturalmente, isto é, organizadas em torno de um
conjunto específico de valores cujo significado e uso
compartilhado são marcados por códigos específicos
de auto-identificação...” (Castells, 1996b: 84). “É
possível, conclui Castells, que dessas comunas, novos
sujeitos – isto é, agentes coletivos de transformação
social, possam surgir, construindo novos significados
em torno de identidades de projeto. Na verdade diria que,
dada a crise estrutural da sociedade civil e do Estado-
Nação, pode ser esta a principal fonte de mudança
social no contexto da sociedade em rede” (Idem: 86)
(g. a.).
Para Manuel Castells, em síntese, a passagem
para uma sociedade pós-industrial (a “era da
informação”) enseja, ainda que não determine, o
surgimento de um novo tipo de comunidade (as
“comunas culturais da era da informação”). E é
possível, conquanto não seja obrigatório, que surgindo

376
inicialmente como comunidades de resistência, tais
atores sociais se transformem em sujeitos coletivos de
mudanças ao se constituírem como identidades de
projeto.
Para Castells isso não vai necessariamente
acontecer: “o surgimento de identidades de projeto...
não é uma necessidade histórica” (Castells, 1996b: 86).
Mas pode acontecer, quer dizer, a “lógica” da transição
para a era da informação permite – e, até certo ponto,
contraditoriamente, induz – que aconteça.
Castells, embora prometa, não explica bem
“como e por que novos sujeitos [proativos] podem ser
formados a partir dessas comunas culturais reativas...”,
mas fornece algumas pistas a respeito, ao tratar, por
exemplo, de um tipo particular de formação de
identidade, a territorial, ou seja, da comunidade local
(Castells, 1996b: 86) (n. i.). Com efeito, diante do bem
conhecido (ou mais propagado do que realmente bem
conhecido) processo de “desaparecimento da
comunidade, primeiro em razão da urbanização, e
depois por causa da suburbanização” observa-se uma
reação: “as pessoas resistem ao processo de
individualização e atomização, tendendo a agrupar-se
em organizações comunitárias que, ao longo do tempo,
geram um sentimento de pertença e, em última análise,
em muitos casos, uma identidade cultural, comunal”
(Idem: 79).

377
Em alguns casos, essas “comunidades
constituíram seus próprios „estados de bem-estar
social‟... à base de redes de solidariedade e
reciprocidade...” (Castells, 1996b: 82). Ou seja, o que
ele está dizendo é que essas comunidades tornaram-se
usinas de Capital Social. Mas Castells não trabalha com o
conceito de Capital Social e não parece perceber a
importância de tal fenômeno na transformação da
sociedade, quando recai, em certas passagens, numa
visão da confrontação de grandes forças como parteira
das grandes mudanças. Por isso ele conclui que “as
comunidades locais, construídas por meio da ação
coletiva e preservadas pela memória coletiva,
constituem fontes específicas de identidade. Essas
identidades, no entanto, consistem em reações
defensivas contra as condições impostas pela desordem
global e pelas transformações, incontroláveis e em
ritmo acelerado. Elas constróem abrigos, mas não
paraísos” (Idem: 84).
Ora, não se trata mesmo de construir paraísos.
A passagem de comunidades de resistência para
identidades de projeto não exige a construção de
paraísos, nem de projetos totalizantes, nem de
“movimentos sociais de maior porte capazes de
articular transformações na nova sociedade emergente
nas últimas duas décadas” – de cuja ausência ele
reclama (Castells, 1996b: 82). Diante da falência dos
movimentos classistas, de cunho corporativo e político,

378
Castells afirma que “não restou nenhuma outra
alternativa ao povo senão render-se ou reagir com base
na fonte mais imediata de auto-reconhecimento e
organização autônoma: seu próprio território. Assim,
surgiu o paradoxo de forças políticas com bases cada
vez mais locais em um mundo estruturado por
processos cada vez mais globais” (Idem: 80).
Todavia, na conclusão do terceiro volume da
trilogia, intitulado “Fim de Milênio” (1996c), Castells
fornece mais elementos para a compreensão da
“transição da identidade de resistência à identidade de
projeto”, quando argumenta que “mesmo os
movimentos sociais pró-ativos visando à
transformação do padrão global de relações sociais
entre as pessoas, tal como o feminismo, ou entre as
pessoas e a natureza, como o ambientalismo, iniciam-
se com a rejeição dos princípios básicos em que nossas
sociedades são construídas: patriarcalismo,
produtivismo. É natural que haja todos os tipos de
nuanças na prática dos movimentos sociais... mas,
fundamentalmente, os princípios de autodefinição,
uma das fontes de sua existência, representam um
rompimento com a lógica social institucionalizada. Se
as instituições sociais, econômicas e culturais de fato
aceitassem o feminismo e o ambientalismo,
transformar-se-iam na essência. Utilizando uma palavra
antiga, seria uma revolução” (Castells, 1996c: 429).

379
Castells alerta, contudo, para um perigo: a
fragmentação – já prenunciada pela quase totalidade
das projeções ficcionistas do tipo Blade Runner – da
sociedade em rede. O fato dos novos movimentos
sociais serem constituídos inicialmente como
comunidades de resistência, em muitos casos
rejeitando “as instituições do Estado, a lógica do
capital e a sedução da tecnologia” significa que eles não
são aceitos por essas instituições nem pela cultura
dominante. Destarte, “o problema fundamental
suscitado pelos processos de mudança social que são
na maior parte externos às instituições e aos valores da
sociedade, na forma em que esta se encontra, é que eles
poderão fragmentar-se e não constituir a sociedade.
Em vez de instituições transformadas, teríamos
comunas de todos os tipos. Em vez de classes sociais,
presenciaríamos o surgimento de tribos. E no lugar de
interação conflituosa entre as funções do espaço de
fluxos e o significado do espaço de lugares poderemos
observar o entrincheiramento das elites globais
dominantes em palácios imateriais feitos de redes de
comunicação e fluxos de informação. Enquanto isso,
as pessoas teriam sua experiência confinada a múltiplos
locais segregados, sua existência subjugada e sua
consciência fragmentada. Sem nenhum Palácio de
Inverno para ser tomado, focos de revolta poderão
eclodir, transformados em insensata violência diária”
(Castells, 1996c: 429).

380
Nessas circunstâncias, Castells avalia que “a
reconstrução das instituições da sociedade pelos
movimentos sociais culturais, colocando a tecnologia
sob o controle das necessidades e desejos das pessoas,
parece requerer um longo caminho a partir das comunas
construídas com base na identidade de resistência até o auge de
identidades de novos projetos nascidos dos valores acalentados
nessas comunas” (Castells, 1996c: 429) (n. g.). As novas
comunidades são encaradas aqui como incubadoras da
mudança social. Os “novos caminhos da
transformação social” passam por esse processo de
gestação de novos valores, desenvolvidos a partir da
resistência no ventre da sociedade em rede – sociedade
cuja “lógica” de funcionamento permite tal gravidez
(reafirmo sempre isso com mais ênfase do que
Castells) – que dão a luz a novos projetos. Mas “para
que essa transição da identidade de resistência à
identidade de projeto se realize, conclui ele, será
preciso surgir uma nova política. Será uma política
partindo da premissa de que a política informacional é
posta em prática predominantemente no espaço da
mídia e luta contra símbolos, embora se ligue a
questões e valores nascidos da experiência de vida das
pessoas na Era da Informação” (Idem: 430).
Castells não diz que política seria essa, com base
em que ela deveria ser articulada e, enfim, o que
deveria ser feito. Mais do que isso, ele se recusa a
responder a questão do “Que Fazer?” argumentando

381
que “cada vez que um intelectual tenta tratar dessa
questão e elaborar uma resposta séria, segue-se uma
catástrofe” (Castells, 1996c: 436). Ele diz, com razão,
que já viu “tanto sacrifício malconduzido, tantos
impasses causados por ideologia e tantos horrores
provocados por paraísos artificiais de política
dogmática, que desej[a] exprimir uma reação salutar
contra a tentativa de conceber a prática política de
acordo com a teoria social ou, a esse respeito, com a
ideologia... [Por isso] basta de metapolítica, basta de
“maîtres à penser” e basta de intelectuais com tal
pretensão” (Idem: 436-7) (n. i.). No entanto, o
fundamental aqui é que Manuel Castells reconhece que a
saída é de natureza política. E dá uma pista importante: “A
era da globalização da economia também é a era da
localização da constituição política. O que os governos
locais e regionais não têm em termos de poder e
recursos é compensado pela flexibilidade e atuação em
redes. Eles são o único páreo, se é que existe algum, para o
dinamismo das redes globais de riqueza e informação”
(Idem: 435) (n. g.). Rede contra rede, ou melhor, redes
dentro de redes: a política capaz de transformar as
instituições da sociedade global em rede, tem que ser
também uma política de construção de redes cujos
nodos e elos são as novas comunidades culturais, uma
política capaz de transformar novos valores e práticas,
gestados a partir da experimentação dessas
comunidades de resistência, em novos projetos para o

382
mundo, projetos esses que podem ser amplificados,
pelos mecanismos próprios da rede e pela
aninhamento dessas redes em outras redes, formando
redes de redes, ou melhor, inter-redes.
Voltamos assim ao princípio, ao ponto de
partida pelo qual começamos a examinar Castells: na
nova sociedade em rede, a dinâmica da mudança é
outra. Agora ela tem “caráter sutil e descentralizado”,
articula-se por meio de “redes de mudança”, baseia-se
na introdução de inovações – coisa que sindicatos e
partidos políticos não têm mais potencial para fazer.
Penso que, no fundamental, Manuel Castells
captou as grandes tendências de mudança na sociedade
pós-industrial: o poder da identidade, pelo qual se
“constróem interesses, valores e projetos, com base na
experiência... As identidades fixam as bases de seu
poder em algumas áreas da estrutura social e, a partir daí,
organizam sua resistência ou seus ataques na luta
informacional pelos códigos culturais que constróem o
comportamento e, consequentemente, novas instituições”
(Castells, 1996b: 424) (n. g.).
Embora o linguajar possa não ser o mais
conforme ao novos conceitos, os conceitos são,
substantivamente, novos. “A nova forma de poder reside
nos códigos de informação e nas imagens de representação em
torno das quais as sociedades organizam suas instituições e as
pessoas constróem suas vidas e decidem o seu comportamento”
(Castells, 1996b: 423) (g. a.). Este é “o poder na Era da

383
Informação... a um só tempo identificável e difuso”
(Idem). Logo, as estratégias e os agentes da mudança
também terão que ser difusos, como as redes, que
agora “representam os verdadeiros produtores e distribuidores de
códigos culturais... em suas múltiplas formas de
intercâmbio e interação. Seu impacto sobre a sociedade
raramente advém de uma estratégia altamente
articulada, comandada por um determinado núcleo.
Suas campanhas mais bem-sucedidas, suas iniciativas
mais surpreendentes, normalmente resultam de
“turbulências” existentes na rede interativa de
comunicação em múltiplos níveis...” (Idem-idem: 426)
(g. a.).
Se tivesse dado curso a tais reflexões – que
considerou especulativas – talvez Castells chegasse a
concordar, mais explicitamente, com conclusões
extraídas das teorias da complexidade, segundo as
quais pequenas mudanças de comportamento que se
instalam como perturbações periféricas e são
amplificadas por mecanismos de retroalimentação de
reforço do próprio padrão de rede, como forma de
organização de sistemas complexos afastados do
estado de equilíbrio, podem levar à mudanças globais.
Das reflexões de Castells podemos tirar muitas
lições novas que corroboram o ponto de vista adotado
aqui, e que podem ser resumidas na correlação,
estabelecida por ele, entre comunidade-rede-inovação
= mudança numa sociedade pós-industrial. Essa

384
correlação constitui, ao meu ver, o principal
fundamento para um novo conceito – e para um novo
emprego do conceito – de Capital Social.

9.3 – Rede, comunidade e Capital Social


Rede, comunidade e Capital Social são conceitos
congruentes. Redes formam comunidades, ou
comunidades se caracterizam por apresentarem um
padrão de rede: pessoas conectadas horizontalmente
com pessoas a partir de normas e valores comuns, por
“laços fracos” (quer dizer, não consanguíneos, não
genéticos) e por ligações não-imediatamente-
interessadas (isto é, extra-econômicas). Redes são
Capital Social (ou são uma forma de Capital Social).
Comunidades “produzem” Capital Social.
Todavia, valeria isso para qualquer tipo de
comunidade e para qualquer tipo de rede? Estamos
falando de comunidades que se articulam como redes e
de redes que são formadas como comunidades, com
base em valores livremente compartilhados.
Cabe agora perguntar, o que constitui, afinal,
esse tipo de padrão organizacional caracterizado pela
interação horizontal, “fraca” e extra-econômica, que
chamamos de rede.
Em um texto produzido para debate na Rede de
Criação da AED – Agência de Educação para o
Desenvolvimento (9.3: 1), Cássio Martinho (2001)

385
escreve que, “como Castells, pode-se definir
sumariamente o que é uma rede. “Rede é um conjunto
de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma
curva se entrecorta” (Castells, 1996a: 497). A mesma
estrutura é assim descrita por Euclides Mance, ao
abordar as redes sociais: “trata-se de uma articulação
entre diversas unidades que, através de certas ligações,
trocam elementos entre si, fortalecendo-se
reciprocamente, e que podem se multiplicar em novas
unidades, as quais, por sua vez, fortalecem todo o
conjunto na medida em que são fortalecidas por ele,
permitindo-lhe expandir-se em novas unidades ou
manter-se em equilíbrio sustentável. Cada nódulo da
rede representa uma unidade e cada fio um canal por
onde essas unidades se articulam através de diversos
fluxos” (Mance, 2000: 24). Eis um desenho. Adicione-
se à imagem construída por Castells e Mance um
aspecto tridimensional, na qual vários nós ligam-se uns
aos outros por meio de várias linhas. Se quisermos ser
mais realistas, imaginemos ainda esse emaranhado de
nós e linhas agora em movimento, com novos elos
sendo criados entre nós, novos nós sendo adicionados
à figura, nós e linhas desaparecendo, tudo se
reconfigurando e se realinhando com as sucessivas
adições e subtrações dos elementos. Por fim, para
garantir complexidade à figura, consideremos nós e
linhas ora existindo de um jeito, ora existindo de outro,
ora não existindo, conforme a circunstância ou

386
conforme a interação existente ou presumida entre os
nós, o alcance ou a amplitude das linhas” (Martinho,
2001).
Martinho se esforça para mostrar que a
compreensão do padrão de rede implica um
extravasamento dos limites dos modelos conceituais
tradicionais de organização. “Redes são estruturas
plásticas, dinâmicas e indeterminadas, no sentido de
que sua configuração é flexível e regida por
mecanismos de auto-regulação, à maneira dos sistemas
adaptativos. Redes não têm centro, isto é, qualquer
ponto da rede é um centro em potencial. Redes são
entidades fluidas, indefinidas (num sentido deleuziano
do termo), isto é, não-delimitadas, não-circunscritas e
não-descritas conforme as taxionomias existentes
(nisso as redes são coetâneas da realidade virtual, da
androginia, das chamadas culturas híbridas e de outros
fenômenos sociais pós-modernos)” (Martinho, 2001).
Martinho acrescenta, corretamente, “que a teoria
(ou a prática) de redes tem acentuada conotação
política de afirmação da liberdade e da democracia,
uma vez que considera a ordem como objeto de
reinvenção permanente. Saindo do campo filosófico
para o da política, temos então a rede como uma
forma, melhor seria dizer, um processo de organização
social tremendamente apto a responder às exigências
de flexibilidade, descentralização e democracia do
mundo contemporâneo, permitindo, por princípio e na

387
sua base, o exercício da auto-determinação e da
autonomia: “a morfologia da rede... é uma fonte de
drástica reorganização das relações de poder” afirma
Manuel Castells (Castells, 1996a: 498). Nesse sentido,
aqui cabe ressaltar que rede não é só o desenho, a
estrutura, pelo qual se dão as relações, mas um modo
como elas se realizam. Não podemos nos esquecer de
que manter o foco do olhar sobre a ligação entre as
coisas significa por em consideração o como das ligações
e não somente sua morfologia” (Martinho, 2001).
A partir daí Martinho vai tentar apresentar uma
sistematização das características da rede: valores e
objetivos compartilhados; vontade; autonomia (ou
interdependência); participação; multiliderança;
descentralização; e múltiplos níveis (9.3: 2). Modelos
semelhantes foram desenvolvidos por teóricos de
network, como Robert Müller, Buck Fuller, Robert
Smith, Luther Gerlach e Virgínia Hine, todos muito
citados no “The Networking Book” de Jessica Lipnack e
Jeffrey Stamps (1986).
Para concluir, Martinho assinala que “as redes
tem aparecido como um modo de organização
orgânico das instituições de tipo novo da sociedade,
como, por exemplo, as entidades do terceiro setor. É
também um modo organizativo compatível com
iniciativas de alto teor de criatividade e inovação, na
medida em que atributos caros aos processos de
invenção – como a autonomia, a impermanência da

388
ordem, a indeterminação e a flexibilidade – são
elementos constitutivos da idéia de rede. Para autores
como Castells, a própria contemporaneidade pode ser
definida, entre outras coisas, pelo “estar em rede”,
sendo esse um dos traços que caracterizam esta época.
“Redes são instrumentos apropriados para a economia
capitalista baseada na inovação, globalização e
concentração descentralizada; para o trabalho,
trabalhadores e empresas voltadas para a flexibilidade e
a adaptabilidade; para uma cultura de desconstrução e
reconstrução contínuas; para uma política destinada ao
processamento instantâneo de novos valores e
humores públicos; e para uma organização social que
vise a suplantação do espaço e a invalidação do tempo”
(Castells, 1996a: 497). Para Castells, “redes constituem
a nova morfologia social de nossas sociedades, e a
difusão da lógica de redes modifica de forma
substancial a operação e os resultados dos processos
produtivos e de experiência, poder e cultura” (Idem).
Nesse sentido, para aqueles que pretendem influir nos
processos sociais, de maneira a reorientar programas e
decisões políticas e a implementar soluções de caráter
inclusivo, democrático e emancipatório, abordar o
fenômeno das redes (quiçá aprender a operá-las) torna-
se de fundamental importância. Para iniciativas de
fomento ao desenvolvimento humano e social
sustentável, esta é uma ação necessária e decisiva”
(Martinho, 2001).

389
O que é relevante notar é que as redes
subvertem, de fato, o padrão vertical de organização (e
não apenas maquiam o poder autoritário, como gostam
de alegar os diversos tipos de conservadores,
refratários tanto às mudanças quanto às mudanças do
modo de ver as mudanças). Esta é, ao meu ver, a
principal razão pela qual o Capital Social é gerado por
um padrão de rede, mesmo quando, muitas vezes, os
sujeitos conectados em rede não intencionem isso.
Capital Social não se gera, não se acumula, não se
replica – não, pelo menos, numa escala ampliada – em
sistemas hierárquicos. Ou melhor, quanto mais
hierarquizado for o padrão organizativo de um sistema,
menos se gera, menos se acumula e menos se replica o
Capital Social.
Por outro lado, “a participação em redes de
conexões, como escreveu Robert Muller (1992), torna-
se, sem dúvida alguma, uma forma importante de
democracia”, uma democracia praticada “do modo
biológico correto” (9.3: 3). Com efeito, acrescenta ele,
“conforme caminhamos para o terceiro milênio, talvez
a participação em networks se torne a nova democracia,
um novo elemento importante no sistema de
governança, um novo modo de vida nas complexas e
miraculosas condições globais do nosso estranho e
maravilhoso planeta vivo, girando e circulando no
universo prodigioso numa encruzilhada de infinidade e
eternidade” (Idem).

390
As redes, como padrão de organização,
constituem o “corpo”, a morfologia de uma
democracia democratizada ou radicalizada – modo de
regulação ou “metabolismo” predominante das novas
comunidades de projeto emergentes no mundo pós-
industrial, usinas geradoras e reprodutoras de Capital
Social na era da informação e na sociedade do
conhecimento.
Cabe investigar agora, portanto, o chamado
modo democrático.

391
10
__________________
O modo democrático

Além do padrão de rede, há um elemento sem o qual –


definitivamente – não pode ser produzido ou
reproduzido o Capital Social. Este elemento é o modo
pelo qual os conflitos que ocorrem numa dada
sociedade são solucionados. E este modo se refere aos
supostos de Tocqueville, ou seja, à democracia.

10.1 – Capital Social e democracia


Capital Social não se gera, não se acumula, não
se replica – não, pelo menos, numa escala ampliada –
em sociedades autocráticas. Ou melhor, quanto mais

392
autocrática for uma sociedade, menos se gera, menos
se acumula e menos se replica o Capital Social.
Nos deparamos aqui, todavia, e mais uma vez,
com a questão “do ovo e da galinha”: afinal, é a
democracia que permite a criação ampliada de Capital
Social ou, pelo contrário, sem certa dose de Capital
Social nenhuma sociedade poderia suportar um regime
democrático?
Ao que parece ambas as alternativas estão
corretas. Sem certa dose de Capital Social nenhuma
coletividade pode experimentar um processo
democrático, o qual exige aceitação da legitimidade do
outro como sujeito de conversações numa esfera
pública. Por outro lado, esta dose de Capital Social,
inicial, vamos dizer assim, não se expandirá fora de um
regime democrático. Além disso, parece também que
quanto mais direta e participativa for a democracia
mais será favorecida a reprodução do Capital Social.
Portanto, se deve falar aqui de processos democráticos
democratizados ou radicalizados, tais como os
observados por Tocqueville na América de meados do
século XIX e, antes, tais como os observados nas
origens gregas da democracia, mais do que nas
democracias realmente existentes do século XX, muito
embora nestas últimas muito mais do que nas
autocracias ainda remanescentes.
Porém, como Anthony Giddens percebeu com
clareza, a própria “democratização da democracia

393
depende também da promoção de uma vigorosa
cultura cívica. Mercados não produzem esse tipo de
cultura. Um pluralismo de grupos de interesse
específico tampouco o pode fazer. Não deveríamos
conceber a sociedade como dividida em apenas dois
setores, o Estado e o mercado – ou o público e o
privado. No meio, há a área da sociedade civil, que
inclui a família e outras instituições não econômicas. A
construção de uma democracia das emoções é parte de
uma cultura cívica progressista. A sociedade civil é a
arena em que atitudes democráticas, entre as quais a
tolerância, têm de ser desenvolvidas. A esfera cívica
pode ser fomentada pelo governo, mas é, por sua vez,
a base cultural dele” (Giddens, 1999: 86-7). E
referindo-se ao aprendizado democrático das
sociedades totalitárias (possivelmente numa referência
não-explícita à Rússia), Pierre Lévy afirma “que a única
via para a democracia passa por um longo aprendizado
coletivo do direito, da autonomia, da reciprocidade e da
responsabilidade” (Lévy, 1994: 80) (n. g.) – ou seja, de
uma certa acumulação de Capital Social.
A questão é muito complexa e, para examiná-la,
teríamos que reexaminar as origens da democracia sob
o ponto de vista dos pressupostos do conceito de
Capital Social.
A democracia está fundada no princípio de que
é possível aceitar a legitimidade do outro, ou seja, de
que os seres humanos podem gerar coletivamente

394
projetos comuns de convivência que reconheçam a
legitimidade do outro. Ao contrário da autocracia,
onde o modo predominante de regulação do conflito
passa pela negação do outro, por meio da violência e
da coação, a democracia é, como disse Maturana, um
sistema de convivência “que somente pode existir
através das ações propositivas que lhe dão origem
como uma co-inspiração em uma comunidade
humana” (Maturana, 1993: 62) pelo qual se geram
acordos públicos entre pessoas livres e iguais num
processo de conversação que, por sua vez, só pode se
realizar a partir da aceitação do outro como um livre e
um igual.
Hannah Arendt já havia reconhecido essa
ruptura com a autocracia que representou a introdução
da democracia pelos gregos, a partir da conversação
que aceita o outro e não da violência e da coação que o
exclui. Por isso, diz ela, "a polis grega trilhou um outro
caminho na determinação da coisa política. Ela formou
a polis em torno da ágora homérica, o local de reunião e
conversa dos homens livres, e com isso centrou a
verdadeira 'coisa política' - ou seja, aquilo que só é
próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos
negavam a todos os bárbaros e a todos os homens
não-livres - em torno do conversar-um-com-o-outro, o
conversar-com-o-outro e o conversar-sobre-alguma-
coisa, e viu toda essa esfera como um símbolo de um
peitho divino, uma força convincente e persuasiva que,

395
sem violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo
decidia" (Arendt, 1950?: frag. 3c) (g. a.).
Segundo Maturana, "a democracia surgiu na
praça do mercado das cidades-estado gregas, na ágora,
na medida em quem os cidadãos falavam entre si
acerca dos assuntos da sua comunidade e como um
resultado de suas conversações sobre tais assuntos. Os
cidadãos gregos eram gente patriarcal no momento em
que a democracia começou a acontecer de fato como
um aspecto da praxis do seu viver cotidiano... Sem
dúvida todos eles conheciam e estavam pessoalmente
preocupados com os assuntos da comunidade acerca
dos quais falavam e discutiam. De sorte que o falar
livremente sobre os assuntos da comunidade na ágora,
como se estes fossem problemas comuns
legitimamente acessíveis ao exame de todos, com
certeza começou com um acontecimento espontâneo e
fácil para os cidadãos gregos.
Porém na medida em que os cidadãos gregos
começaram a falar dos assuntos da comunidade como
se estes fossem igualmente acessíveis a todos, os
assuntos da comunidade se converteram em entidades
que se podiam observar e sobre as quais se podia atuar
como se tivessem existência objetiva em um domínio
independente, isto é, como se fossem "públicos" e, por
isso, não apropriáveis pelo rei.
O encontrar-se na ágora ou na praça do mercado
fazendo públicos os assuntos da comunidade ao

396
conversar sobre eles, chegou a converter-se em uma
maneira cotidiana de viver em algumas das cidades-
estado gregas... Mais ainda, na medida em que esse
hábito de tornar públicos os assuntos da comunidade
se estabeleceu, por meio das conversações que os
tornava públicos, de uma maneira que
constitutivamente excluía estes assuntos da apropriação
pelo rei, o ofício de rei se fez, de fato, irrelevante e
indesejável.
Como conseqüência, em algumas cidades-estado
gregas os cidadãos reconheceram esta maneira de viver
por meio de um ato declaratório que aboliu a
monarquia e a substituiu pela participação direta de
todos os cidadãos em um governo que manteve a
natureza pública dos assuntos da comunidade, implícita
já nessa mesma maneira cotidiana de viver; e isso
ocorreu mediante uma declaração que, como processo,
era parte dessa maneira de viver. Nessa declaração a
democracia nasceu como uma rede pactuada de
conversações que:
a) realizava o Estado como um modo de coexistência
comunitária no qual nenhuma pessoa ou grupo de
pessoas podia apropriar-se dos assuntos da
comunidade, e que mantinha estes assuntos sempre
visíveis e acessíveis à análise, ao exame, à
consideração, à opinião e à ação responsáveis de
todos os cidadãos que constituíam a comunidade
que era o Estado;

397
b) fazia da tarefa de decidir acerca dos diferentes
assuntos do Estado, responsabilidade direta ou
indireta de todos os cidadãos;
c) coordenava as ações que asseguravam que todas as
tarefas administrativas do Estado fossem assumidas
transitoriamente por meio de um processo de
escolha no qual cada cidadão tinha que participar,
como um ato de fundamental responsabilidade"
(Maturana, 1993: 53-4) (n. g.).
Para Maturana, "o fato de que numa cidade-
estado grega, como Atenas, nem todos seus habitantes
fossem originalmente cidadãos, senão que o fossem
somente os proprietários de terras, não altera a
natureza fundamental do acordo de coexistência
comunitária democrática como uma ruptura básica das
conversações autoritárias e hierárquicas de nossa
cultura patriarcal européia... E o fato de que
democracia é, de fato, uma ruptura na coerência das
conversações patriarcais, ainda que não as negue
completamente, se faz evidente, por um lado, na
grande luta histórica por manter a democracia, ou por
estabelecê-la em novos lugares, contra um esforço
recorrente por re-instalar, em sua totalidade, as
conversações que constituem o estado autoritário
patriarcal e, por outro lado, na grande luta por ampliar
o âmbito da cidadania e, portanto, a participação no
viver democrático para todos os seres humanos,

398
homens e mulheres, que estão fora dela" (Maturana,
1993: 53-5).
Não se pode dizer porque as coisas aconteceram
exatamente assim, ou seja, tentar justificar o
aparecimento da democracia entre os gregos a partir de
uma avaliação distintiva do nível do seu Capital Social
inicial. A democracia – reconheceu o próprio Maturana
– é “uma obra [arbitrária] de arte, um sistema de
convivência artificial, gerado conscientemente”
(Maturana, 1993: 62) (n. i.). Ou seja, aconteceu na
Grécia porque os gregos quiseram que acontecesse.
Não é provável que as sociedades gregas tivessem mais
Capital Social do que todas as outras sociedades da
época. Simplesmente aconteceu na Grécia o que
poderia ter ou não acontecido em outro lugar, ainda
que não poderia ter acontecido em lugares onde não
houvesse condições mínimas para uma convivência
continuada entre iguais, onde inexistisse uma dose
mínima de liberdade para o conversar entre muitos
sujeitos ao mesmo tempo e, portanto, alguma dose de
Capital Social inicial deve estar co-implicada no
surgimento da democracia. Em sistemas autocráticos
muito verticalizados, sociedades possuídas por alto
grau de fundamentalismo e teocracias rígidas,
certamente não poderia ter surgido a democracia
porque em tais sociedades o poder hierárquico destrói
o Capital Social ou não deixa que ele se acumule num
espaço mais ampliado do que o de organizações

399
nucleares, como o das famílias. Ora, a democracia não
surge nos espaços privados, das casas, mas nos espaços
do povo, como a praça – e não é sem qualquer razão
que surge na praça do mercado, isto é, num lugar onde
se realiza uma atividade livre no sentido de que o seu
desfecho é aberto. A atividade mercantil, como a
atividade política, tem um fim imprevisível – ninguém
pode dizer com certeza, de antemão, o que ocorrerá
com a mercadoria, das mãos de quem sairá e nas mãos
de quem irá parar, quando a oferta e a demanda são
múltiplas, tal como ninguém pode dizer, com certeza e
de antemão, qual das opiniões prevalecerá ou qual será
a resultante da interação de opiniões diversas, quando
as opiniões apresentadas são múltiplas.
Pode-se afirmar que o padrão civilizatório
patriarcal – hierárquico, guerreiro e dominador – não é
favorável à democracia da mesma forma que não é
favorável à produção, acumulação e reprodução do
Capital Social. Mais difícil de justificar é a afirmação de
que este padrão não é favorável à democracia porque
não é favorável à produção, acumulação e reprodução
do Capital Social, pois isso equivaleria a dizer que a
democracia é função do Capital Social – mas,
pensando bem, creio que também se possa dizer isso,
em certa medida.
Para haver democracia é preciso haver Capital
Social, o que não acrescenta muita coisa, pois sem
Capital Social não pode haver nenhuma forma estável

400
de coletividade humana, de sociedade. Então teríamos
que dizer, para dizer alguma coisa, que sem certa dose
mínima de Capital Social não pode haver democracia,
mas aí não teríamos como mensurar esta “quantidade”
mínima, inicialmente requerida para que uma sociedade
pudesse vivenciar uma experiência democrática.
Mesmo assim, a declaração permanece válida: sem uma
dose mínima de Capital Social, por suposto maior do
que aquela necessária para haver sociedade humana,
não pode haver democracia.
Pulando algumas passagens na argumentação
poderíamos dizer que quanto maior for o nível do
Capital Social mais condições terá uma sociedade de
aprofundar e ampliar o processo democrático e é nessa
medida que se pode afirmar que a democracia é função
do Capital Social.
Portanto, o aprofundamento e a ampliação da
democracia, vale dizer, a democratização da
democracia, como reconheceu Giddens (sem usar a
expressão „Capital Social‟), depende do Capital Social e
isso é relevante porque acrescenta alguma coisa tanto
para uma teoria da radicalização da democracia quanto
para uma teoria do Capital Social.
Por outro lado, o Capital Social não pode se
expandir – se acumular e se reproduzir – na ausência
de um processo democrático e, mais ainda, na ausência
de um processo de democratização da democracia.

401
A circularidade do argumento parece refletir
aqui a circularidade do processo. Mais Capital Social
gera mais (condições para a experimentação da)
democracia, que gera mais (condições para a expansão
do) Capital Social. Porém Capital Social não é a mesma
coisa que democracia: o primeiro se refere a uma
capacidade (de comunidade) e a segunda a um modo (de
regulação de conflitos). Mas o modo aqui corresponde
à capacidade. Sem capacidade de comunidade não se
pode regular conflitos segundo o modo democrático e
sem a solução democrática dos conflitos a capacidade
de comunidade não se afirma, antes se esvai.
Para compreender melhor o processo de
acumulação e reprodução do Capital Social deve-se,
assim, compreender melhor a natureza da democracia e
o processo de seu aprofundamento e ampliação, isto é,
o processo de democratização ou radicalização da
democracia.

10.2 – A natureza do político


Antes de qualquer coisa precisamos examinar o
que é a política. Tudo começa com a constatação de
que existem diferenças entre os seres humanos e entre
grupos de seres humanos. Diferenças que podem ser
de sexo, idade, condição física e psíquica, raça,
nacionalidade, língua, costumes, cultura enfim. E de
que existem relações (entre seres humanos e entre

402
grupos de seres humanos) que transformam diferenças
em separações. Estas relações são relações de poder.
As relações de poder impõem separações entre
superiores e inferiores: entre ricos e pobres, entre
sábios e ignorantes e entre fortes e fracos. Estas
separações co-implicam conflitos. Conflitos políticos, em
sentido restrito, são aqueles co-implicados na
separação entre fortes e fracos. Conflitos políticos, em
sentido generalizado, são aqueles co-implicados em
quaisquer separações entre superiores e inferiores.
Chamamos propriamente de política ao modo de
resolver conflitos políticos.
Mas por que existe política no mundo? Existem
duas respostas clássicas para esta pergunta. A resposta
do chamado realismo político é a seguinte: porque
existem conflitos (os conflitos políticos, no sentido
restrito) que se não forem solucionados acarretam a
decomposição da ordem social (do Estado ou da
ordem internacional). A política, sob este primeiro
ponto de vista, seria então o uso daquele tipo de poder
capaz de resolver estes conflitos.
Mas que tipo de poder seria este? Novamente, a
resposta clássica realista seria: aquele que se caracteriza
pela exclusividade do uso da força, exclusividade
resultante da monopolização da posse e do uso dos
meios com que se pode exercer a coação física.
As definições de política e de poder político
implicadas nesta primeira resposta promovem quase

403
que uma equivalência entre os conceitos de poder
político e poder estatal, militar em última instância.
Com efeito, se caracterizarmos o poder político pela
posse de instrumentos mediante os quais se exerce a
força física, este poder (coator stricto sensu) é o poder
militar (e esses instrumentos são as armas).
Aqui, obviamente, a política está sendo definida
pelo meio - o uso do poder político - e não por algum
fim que possa ter. Pode-se, entretanto, coerentemente
com esta primeira definição, arranjar um fim para a
política que seja compatível com esse meio que a
caracteriza: e esse fim só pode ser a manutenção da
ordem, uma vez que, deste ponto de vista, o poder
político só entra em cena para a manutenção da ordem,
ou para o estabelecimento de uma (outra) ordem.
Vamos agora retomar a pergunta de por que
existe política no mundo. Uma segunda resposta,
alternativa à do realismo político seria: porque existem
conflitos (os conflitos políticos) que se não forem
solucionados impedem a convivência pacífica entre os
seres humanos (que vivem em sociedade). A política,
sob esse outro ponto de vista, seria então a "arte" de
impedir que o tecido social se deteriore através de um
modo de solução dos conflitos que evite o seu
desfecho violento.
Aqui a política continua sendo definida pelo
meio: o emprego de um "modo" de resolver conflitos
que evita a guerra. E este meio continua sendo

404
compatível com o fim: agora representado pela paz ou
pela convivência pacífica entre os seres humanos.
Segundo as duas respostas acima a política é o
que é: o uso do poder político para impedir a
desordem ou o emprego de um modo de resolver
conflitos para evitar a guerra; ou seja, a manutenção do
domínio (do Estado) ou a manutenção do "tecido
social"; a "ciência" do estrategista ou a "arte" do
tecelão para usar as expressões platônicas (em "As
Leis").
A partir desse ser da política "descobre-se" para
ela um fim compatível com a sua natureza: a ordem ou
a paz. Todavia, as possibilidades da ordem injusta e a
da paz dos impérios, revelam que estes fins atribuídos
à política definem aquilo que, até hoje, a política foi, ou
seja: a velha política.
Há aqui uma sutil armadilha. Ao querer definir a
política descritivamente, pelo que ela é, e não
prescritivamente, pelo que ela deveria ser (para ser uma
boa política), na verdade está se querendo que a
política seja sempre como foi, ou como se diz que
sempre foi: a manutenção da ordem (e da paz). Manter
a ordem (e a paz) é, assim, coerentemente, manter
também a velha política.
Todavia, seria possível uma terceira resposta,
essencialmente diferente das duas anteriores? Ou seja,
pode existir uma nova política? E, em caso afirmativo,
que política seria esta?

405
Existem classicamente (na teoria política) dois
modos básicos de encarar e resolver conflitos políticos.
O modo que caracterizamos como autocrático, para o
qual o conflito é uma disfunção que precisa ser
corrigida pela supressão do pólo conflitante (ou do
pólo responsabilizado como conflitante pelo sujeito
político autocrático). E o modo que se denominou de
democrático, para o qual o conflito é próprio da
realidade histórico-social (pelo menos em determinadas
fases de seu desenvolvimento) e tem que ser regulado
através da prevalência da posição majoritária
(respeitados os direitos das posições minoritárias).
Contrariamente à concepção de Weber, de certa
forma endossada por Bobbio, Michelangelo Bovero
admite que pode existir alguma coisa como um fim
para a política. Mas diante do realismo político, para o
qual a política é essencialmente conflito – "combater,
afirma Carl Schmitt, para preservar o próprio modo de
vida peculiar", o inimigo político, a alteridade que
representa "a negação do próprio modo de existir" e
pelo qual a política é definida eminentemente pelo fim
da "sobrevivência do grupo, a conservação (e a
afirmação) da sua identidade" (Schmitt, 1932: 51-62) –
Bovero faz a pergunta-chave: "a política é luta ou
impedir a luta? É combater por si próprio, ou resolver
e superar o conflito antagônico e impedir que volte a
surgir? Certamente – diz ele – ninguém poderia jamais
querer negar que existem lutas propriamente políticas:

406
mas trata-se de estabelecer se a luta (ou melhor, a luta
extrema na qual se manifesta a oposição amigo-
inimigo, como diria Schmitt) deve ser considerada, por
si própria, política, se representa a essência da política,
isto em razão de que tudo o que é político toma
sentido e se revela como tal, ou antes se a própria luta
adquire significado político somente na perspectiva da
sua superação, ou seja, em vista da instituição de
alguma ordem que impeça o reaparecimento de
conflitos antagônicos" (Bovero, 1988: 56).
Os argumentos baseados no fato de que a
política realmente praticada no mundo é aquela que foi
definida por Carl Schmitt como esfera das relações
amigo-inimigo, ou seja, como "arte da guerra",
orientada portanto para a solução militar, quer dizer,
para um modo que segue um paralelo militar na
solução política do conflito (a política como
continuação da guerra por outros meios, na fórmula
inversa de Clausewitz), não são, a rigor, muito
consistentes. A constatação de que a política tem sido
sempre (ou quase sempre) praticada assim, não
autoriza a conclusão de que ela será sempre assim e,
muito menos, de que ela é assim "por natureza". Além
de ser discutível a afirmação de que a política tenha
sido sempre assim, é improvável que a política esteja
submetida a leis objetivas de funcionamento, como a
hidrodinâmica e a genética (se é que estas disciplinas o
estejam).

407
O "conceito do político" de Schimitt é uma
ideologia do político. Pode-se afirmar que tanto a
teoria schimittiana da política quanto a política
praticada nos Estados (inclusive nos regimes tidos por
democráticos) "decorrem" predominantemente do que
chamamos de matriz monárquico-militar, refletem a
mesma atitude diante da política. Ou seja, como em
qualquer ideologia, o estudo retrata o objeto do estudo
e tenta, de certa maneira, promovê-lo como único e
universal objeto.
Para Bovero, como vimos, o fim da política, ou
o seu papel, é evitar que os conflitos antagônicos (ou
extremos, como ele diz) destruam a coesão ou
inviabilizem a convivência do coletivo humano; ou
seja, institui uma ordem para evitar a guerra ou a
solução violenta, destrutiva, dos conflitos, que pode
levar à desagregação e à desconstituição do grupo
social. Mas como distinguir a instituição da ordem
(política) para evitar o desfecho destrutivo dos
conflitos, da idéia de manutenção da ordem que
constitui o fim clássico hobbesiano do Estado (e, por
decorrência, da política)?

10.3 – A natureza da democracia


Historicamente o fim atribuído à política que se
contrapôs aos fins clássicos da ordem ou da paz foi a
liberdade. A justificação moderna da democracia ideal

408
é fruto da segunda metade do século XVIII. Ela se
baseia na idéia de liberdade como autonomia
(Rousseau, 1762). As raízes filosóficas desta idéia
podem ser encontradas no pensamento de Spinoza
(1670), para o qual o fim da política é a liberdade. E
não a ordem e paz, como pensava Hobbes (1651).
Ordem e paz como fim da política leva à
autocracia. Não é a toa que de Bodin a Hegel -
passando por Locke, Vico, Motesquieu, Kant e pelo
próprio Hobbes - a quase totalidade dos pensadores da
política, nos três séculos após Maquiavel, eram
favoráveis à monarquia e contrários à democracia.
Tradicionalmente, as nossas atitudes diante da
política são autocráticas. A atitude autocrática do ser
humano diante da política é uma atitude originalmente
monárquico-militar. Não é a toa que os primeiros
Estados se organizaram politicamente sob regimes
monárquicos dirigidos por chefes militares. Monarquia
é reino conquistado e mantido “pela espada e pelo
sangue”. É sempre domínio de um rei sobre os seus
súditos; ou império, de um povo sobre outros povos.
Independentemente das formas históricas
através das quais a autocracia se materializou, atitude
autocrática é toda aquela que concebe a ordem como
fim da política. A ordem que se mantém no presente é
a que se herdou do passado e a que se espera que vá
persistir no futuro. Trata-se, portanto, de uma matriz
de repetição de passado que compõe, se se pode falar

409
assim, um paradigma de tradicionalidade, no sentido
em que Anthony Giddens (1990) emprega o termo.
A atitude autocrática diante da política está
ligada a uma visão mítica da história. Na autocracia
acredita-se que a ordem espelha um modo ou modelo
“natural” de organização, inerente à natureza humana,
à desígnios extra-humanos ou à própria história. Então
essa ordem deve ser mantida pela política para que
alguma determinação superior ou exterior à simples
vontade humana possa se cumprir. Assim, a política
autocrática pressupõe um combate constante pela
preservação da ordem. Daí que ela considera a guerra
como instituição permanente, ainda quando diga que
seu objetivo final é a paz.
Na mentalidade autocrática o conflito é
considerado uma disfunção do sistema ou um desvio
da sua finalidade. Os conflitos devem ser eliminados
porque eles subvertem a ordem e podem destruir a
paz. Para eliminar os conflitos, a visão autocrática
adota um caminho: eliminar os sujeitos que ela avalia
serem os seus causadores. Ou seja, eliminar os agentes
responsáveis pelos conflitos, que são aqueles que vão
contra a ordem estabelecida. Para eliminar os
responsáveis pelos conflitos é preciso fazer guerra
contra eles. Na autocracia, portanto, a guerra é uma
atividade constante feita em nome da paz; quer dizer:
em nome da estabilidade do domínio interno, exercido

410
sobre o próprio povo, ou da manutenção do império
externo, exercido sobre outros povos.
A atitude autocrática diante da política também
se relaciona intimamente com a atitude hierárquica
diante do poder. O chefe monárquico – o príncipe – é
um padrão que se confunde com o do chefe militar.
Uma das principais características desse padrão
composto é a não-aceitação do conflito. Para o
autocrata-hierarca o conflito é inaceitável. É
insuportável mesmo conviver com o conflito. O
conflito tem que ser suprimido da vida coletiva (e da
vida individual). Tem que haver culpados pelos
conflitos. Estes culpados são os inimigos que devem
ser desativados: mortos, presos ou incapacitados de
opinar, discordar, questionar e se manifestar.
A atitude autocrática diante da política
representa o domínio do passado. A manutenção da
ordem é sempre a manutenção de uma ordem
pregressa. O que congela as possibilidades de
constituição do novo, de uma nova realidade humana
no mundo.
Como recusa à atitude autocrática surgiu uma
outra atitude diante da política: a atitude democrática.
Enquanto o pensamento autocrático encara o conflito
como um defeito a ser reparado pela supressão do
agente supostamente causador do mal-funcionamento
do sistema, a visão democrática aponta para um modo
de regulação dos conflitos que pressupõe a convivência

411
com o conflito. Para a atitude democrática a superação
das condições geradoras do conflito não se confunde,
tal como na guerra, com a eliminação de algum (ou de
alguns) dos pólos conflitantes. Na democracia os
conflitos são regulados pela vontade majoritária,
através de mecanismos de verificação das opiniões
existentes numa dada coletividade. Para a atitude
democrática é necessário que essas opiniões possam se
manifestar diretamente. A democracia é, portanto, uma
atitude baseada na liberdade de opinião, na política
como esfera da opinião e na liberdade como fim da
política.
A visão democrática se relaciona intimamente
com o pensamento profético-utópico. Não é por acaso
que o registro mais antigo de uma política feita a partir
do povo, quer dizer: a partir de uma opinião coletiva –
e não pelo príncipe – coincide com o registro mais
antigo de uma atitude utópica diante da história, escrito
possivelmente pelo profeta Amós (c. 750 a.C.). Trata-
se do relato bíblico de uma assembléia que teria sido
realizada por volta de 1.200 a.C., nos arredores da
cidade de Siquém, na Palestina. Nesta assembléia teria
sido tomada a decisão de não organizar Israel como
Estado. Tal decisão não foi adotada com base na
unidade nacional ou étnica dos diferentes grupos
presentes à reunião e sim a partir de uma visão
projetiva, de futuro: conhecendo o Estado, o povo
reunido em Siquém resolve viver socialmente sem ele,

412
celebrando entre si um pacto de recusar submeter-se a
um reinado humano (que era a forma de Estado
conhecida até então).
A atitude democrática diante da política também
está indissoluvelmente ligada às idéias e às práticas de
autonomia. A concepção moderna de democracia
surge, como vimos, na segunda metade do século
XVIII, baseada na idéia de liberdade como autonomia.
Liberdade como autonomia é o fundamento utópico
da democracia que se difunde a partir do movimento
profético das revoluções do século XVIII, anunciando
um novo futuro para o mundo. Não é difícil perceber
porque a atitude democrática diante da política é uma
matriz de projeção de futuro que compõe o paradigma
da modernidade e gera o padrão do representante.
Na autocracia a política é um monopólio do
príncipe. Não é uma esfera de atividade pública. A
política autocrática da tradicionalidade é exercida num
espaço local: o domínio do príncipe. O príncipe exerce
o seu domínio a partir de uma perspectiva também
local. Ele joga o local contra o global; o seu povo
contra os outros povos, os amigos contra os inimigos.
A política do príncipe tem sempre um objetivo:
preservar a ordem, porque essa ordem é o espelho de
uma outra ordem, desejada por deus ou conforme às
leis da natureza ou da história, para que um
determinado desígnio se cumpra.

413
Na democracia dos modernos a política é
exercida por representantes que atuam em nome do
povo. Quer dizer, não é o todo o povo que faz política
institucionalmente e sim apenas alguns representantes
em seu nome. A política democrática da modernidade
é exercida num espaço global e sob uma perspectiva
também global. A democracia vale, em princípio, para
todas as sociedades humanas. É um projeto para o
mundo e deve ser “aplicada” no espaço genérico do
mundo para que se realize aquele ideal utópico de
materializar a liberdade como autonomia.
Mas se a democracia como auto-governo é o
modo que se relaciona à concepção de autonomia
como "definição" de liberdade, o problema é que a
liberdade é um fim inatingível. O reino da liberdade
pressupõe um "fim dos tempos" situado num futuro
sempre futuro, ou o fim da história.
Pode-se dizer que quando optamos pela
democracia ideal dos modernos contra a autocracia,
fazemos uma opção ética, que pressupõe uma
definição teleológica e prescritiva da política: a boa
política é a democrática porque é a que leva a mais
liberdade. Perseguimos então uma utopia: a utopia da
liberdade. E imaginamos que a democracia é o modo
de realizar, no campo da política, o valor, julgado
supremo, da liberdade. Trata-se, porém, de uma
realização assintótica: a pátria da liberdade é como a
estrela polar dos navegantes. Pode orientar a jornada,

414
mas a ela praticamente nunca se chega. Assim, o fim da
democracia ideal não é o presente, mas o futuro. Pois
que nunca estarão esgotadas todas as possibilidades de
liberdade de um coletivo humano.
Quando se fala da finalidade da democracia fala-
se de um futuro. É uma fala pelo futuro, um anúncio
profético, uma ante-visão da fé. A democracia ideal
dos modernos não é, no que tange aos seus fins, um
regime presentificável. Além disso, a tradução do ideal
de liberdade como autonomia, que fundamenta a idéia
de democracia como auto-governo, não inclui a
dimensão do outro, pressupondo, no limite, a
possibilidade de um ser-sem os demais.
Destarte, a atitude-matriz democrática, que
funda a modernidade em termos políticos, inspira um
regime impresentificável. Não é por acaso que o que se
chama hoje em dia de democracia, pouco tem a ver
com este "modelo" ideal que se opôs à autocracia. Pois
o que se chama na atualidade de democracias são as
repúblicas ou os governos representativos. Tratam-se
de democracias resignadas a ser – em virtude dos
obstáculos apresentados pela extensão e complexidade
dos Estados contemporâneos – regimes menos-
autocráticos possíveis, mas não de regimes que
superaram a autocracia.
A democracia realmente existente constitui-se,
então, como um modo de exercer o poder político e
uma forma de governo permeada por enclaves

415
sacerdotais (de tradicionalidade): especialistas de
representação política (que dominam as "técnicas"
eleitorais, não somente as normas mas os
procedimentos que tendem a garantir a eleição e a
reeleição de mandatários) e especialistas de execução
política (que dominam as "técnicas" legislativas,
executivas e judiciárias). O exemplo mais flagrante
encontra-se precisamente no aparato jurídico do
Estado moderno. A legitimidade dos tribunais (que
continuam, estranhamente, sendo chamados de cortes
nas democracias) provém do suposto ou efetivo saber
jurídico de seus integrantes. Em algum países existe
inclusive uma suprema corte, a quem a própria
Constituição delega o poder de interpretar ela própria
(a Constituição) soberanamente, o que significa nada
menos do que a legitimação (e a legalização) para o
exercício de um poder autocrático. De mesma forma,
são autocráticas a quase totalidade das instituições,
mecanismos e procedimentos da burocracia estatal,
para não falar do status ainda mantido pelas forças
armadas.
Assim, no interior de um regime cuja finalidade
seria realizar, no campo da política, o valor supremo da
liberdade – se considerarmos sua justificação
doutrinária – predominam institutos cuja finalidade
última é manter a ordem. Ou seja, predomina o que
chamamos de atitude monárquico-militar diante da
política, que é uma matriz de um paradigma de

416
tradicionalidade. De sorte que o modelo utópico de
democracia ideal da modernidade jamais se
materializou realmente, a não ser em alguns momentos
ou melhor, em alguns processos fugazes, dentre os
quais aquele captado por Tocqueville na América do
meio do século XIX.
Estas são as razões pelas quais torna-se
necessário radicalizar a democracia ou democratizar a
democracia, como prefere Giddens (1999). E estas
também são as razões pelas quais o Capital Social não
pode ser gerado, acumulado e reproduzido, em grande
volume e em escala ampliada, a não ser por meio e no
interior desses processos radicalmente democráticos.

10.4 – A radicalização da democracia


A radicalização da democracia baseia-se,
arbitrariamente, como a própria democracia, em
algumas idéias para um aprofundamento e uma
ampliação dos processos democráticos que ocorrem
nas sociedades contemporâneas. De um ponto de vista
de quem está interessado em investigar as relações
intrínsecas entre Capital Social e radicalização da
democracia penso que se deva destacar o seguinte
conjunto de idéias – frutos, tal como a democracia, da
livre invenção humana.
A primeira idéia, já mencionada anteriormente, é a
de que é possível aceitar a legitimidade do outro, ou seja, a de

417
que os seres humanos podem gerar coletivamente
projetos comuns de convivência que reconheçam a
legitimidade do outro. Ora, projetos comuns de
convivência são comunidades. Esta idéia comunga,
portanto, com o próprio conceito de Capital Social que
é uma capacidade de constituir comunidades. Ou seja,
a idéia fundante da democracia coincide com o que se
chama de Capital Social, ou melhor, com aquilo a que
o conceito de Capital Social se refere.
A segunda idéia é a de que ninguém é dono da verdade.
A verdade do outro (ou seja, o que ele julga como
verdade para si) pode ser tão legítima quanto a nossa e
o seu direito de propô-la ao debate é, definitivamente,
tão legítimo como o nosso.
Essa idéia, em parte decorrente da anterior –
uma vez que aceitar que a verdade do outro seja
exposta a nós significa aceitar a legitimidade do outro –
abre a possibilidade para a convivência continuada dos
diferentes, sendo, assim, a base da conversação sem a
qual não há possibilidade de democracia. Mas também
a possibilidade de convivência continuada é a condição
para que se gere e se acumule Capital Social.
A terceira idéia é a de que nenhuma ideologia política é
mais verdadeira ou correta do que outra por motivos científicos.
A política não trata com verdades; a política não é
ciência; e nem a ciência, por sua vez, trata com
verdades. A democracia aceita qualquer ideologia

418
política que não leve a um mundo onde haja lugar para
a legitimação da negação do outro.
Pelas mesmas razões anteriores, esta condição
da política democrática favorece ao processo de
formação de Capital Social na medida em que um
mundo onde a negação do outro possa ser encarada
legítima de alguma forma ou sob algum aspecto é um
mundo avesso à formação de Capital Social. “A
democracia é uma obra de arte política-cotidiana que
exige atuar no saber que não somos donos da verdade
e que o outro é tão legítimo como nós. Mais ainda, tal
obra exige a reflexão e a aceitação do outro e,
sobretudo, a audácia de aceitar que as diferentes
ideologias políticas devem operar como distintos
modos de olhar os espaços de convivência... [que, se]
permitem descobrir distintos tipos de erros, [é apenas
para propor a]... tarefa comum de criar um mundo de
convivência no qual a pobreza e o abuso são [os] erros
que se quer corrigir” (Maturana, 1988d: 82) (n. i.).
A quarta idéia é a de que a democracia é uma aposta
ontológica na capacidade política dos seres humanos se
conduzirem a partir de suas livres opiniões. A democracia é
uma aposta – baseada na aceitação da imprevisibilidade
da política – de que é melhor a liberdade da opinião do
que a ordem do saber. Com efeito, não se pode provar
que a resultante do entrechoque de múltiplas opiniões
que refratam interesses distintos e, em muitos casos,
contrários, existentes numa sociedade onde se exercita

419
um processo democrático de decisão seja melhor, para
o presente e para o futuro daquela sociedade, do que a
decisão tomada por apenas algumas pessoas portadoras
de conhecimentos acumulados sobre a matéria que está
sendo objeto da decisão. No entanto, abolir a liberdade
de opinião, substituindo a imprevisibilidade da política
pelo planejamento qualificado e informado dos
portadores do saber, conduz à autocracia. Pois onde
não existe lugar para o acaso também não há lugar para
a liberdade. Se existe sempre um plano diretor regendo
tudo, a liberdade não passa de uma liberdade de
concordar – o que nega a idéia de liberdade.
“O viver em democracia exige aceitar que não
cabe projetar o desenho de uma ordem social porque
ela [a democracia] é, de fato, uma conspiração fundada
no desejo de convivência. Ao pretender desenhar uma
ordem social abrimos espaço para a tirania, porque nos
erigimos em sabedores do dever ser social e exigimos
que os outros sejam dessa ou daquela maneira que nós
consideramos apropriada...” (Maturana, 1988d: 85) (n.
i.). A aposta de que os seres humanos podem se
conduzir a partir da sua livre opinião – que define a
democracia política como liberdade de opinião contra a
autocracia iluminada como ordem dos sábios, como
toda autocracia o é em alguma medida – é uma aposta
de que os seres humanos deixados a si mesmos saberão
formar coletivos convivenciais estáveis, não tendo uns
que assumir a tutela de outros, em nome de seu

420
suposto saber e em virtude do seu efetivo poder, para
regular heteronomamente os conflitos. Ou seja, é uma
aposta contra a inexorabilidade da solução hobbesiana.
Ora, esta é a aposta do Capital Social – como tão bem
nos mostrou Putnam.
A quinta idéia é a de que a política democrática não é a
continuação da guerra por outros meios e sim um modo de
regular conflitos que visa a instauração e a manutenção
da paz, embora não seja só isso. A política não é um
mecanismo para solucionar diretamente confrontos de
interesses porque a política não regula interesses a não
ser na medida em que esses interesses se apresentam
no espaço da conversação política como opiniões,
sendo a democracia baseada na liberdade para que os
portadores de opiniões possam apresentá-las. Assim, se
a democracia é, constitutivamente, liberdade de
opinião, a política democrática é um modo de regular
pacificamente a interação das opiniões diferentes (que
quase sempre refratam interesses distintos e,
freqüentemente, contraditórios) da variedade de
sujeitos interdependentes que constituem um todo
social.
Sobre esta quinta idéia, por tudo o que se expôs
aqui, não seria necessário fazer nenhum comentário: a
violência e a coerção, próprias da guerra e da “arte da
guerra” na política, que são medidas inversas do estado
democrático de uma sociedade, são também medidas
inversas de Capital Social. Como diz Maturana,

421
“vivemos uma cultura que valida a competição e a luta
e freqüentemente dizemos que a democracia é a livre
luta pelo poder. Isso é um erro... nossa tarefa é fazer da
democracia uma oportunidade para colaborar na
criação cotidiana de uma convivência fundada no
respeito, que reconhece a legitimidade do outro...”
(Maturana, 1988d: 82).
A sexta idéia é a de que a democracia não é o regime da
maioria mas um regime de minorias. Não se pode aceitar
que a democracia seja o regime da maioria porque isso
seria aceitar a “lei do mais forte” quando a força é
medida pelo número de votos. Pelo contrário, a
democracia é um regime onde as minorias podem ter
condições de apresentar suas opiniões com a mesma
liberdade que a maioria e podem sempre se manifestar
e se fazer representar na proporção da sua importância
reconhecida e do seu peso aferido na coletividade.
Esta idéia se refere à diversidade e à necessidade
de sua manutenção por meio de um pacto político – o
acordo fundante da democracia – que impeça a ereção
de um poder autocrático, mesmo dentro de um regime
democrático e em nome de um princípio
aparentemente democrático: a vontade da maioria. Mas
é evidente que um pacto dessa natureza co-implica um
grau de cooperação – e, portanto, de Capital Social –
entre os membros da sociedade, um enfreamento
assentido da competição que tenderia, como tende na
prática das democracias realmente existentes,

422
pervadidas por enclaves autocráticos, a cassar ou ao
menos cercear as possibilidades de expressão e de
representação das minorias.
A sétima idéia é a de que não é necessário conquistar
hegemonia para implementar um projeto político democrático.
Hegemonia, entendida quer como comando, quer
como infusão ideológica, não é compatível com
democracia. A sociedade não precisa ser dominada por
alguém ou “ganha” para uma determinada ideologia
para que possa regular a sua vida social, enfrentar os
seus problemas ou desenvolver as suas potencialidades.
Assim, não é necessário conquistar hegemonia (sobre
outrem) para implementar um projeto político, a
menos que este projeto não seja democrático. Para
implementar um projeto político democrático, pelo
contrário, é sempre necessário, em alguma medida,
compartilhar hegemonia – o que nega a idéia de
hegemonia.
Esta idéia guarda relação com a anterior, mas
conota um sentido diverso – mais próximo daquele já
referido no comentário à quarta idéia. Em suma, ela
diz respeito à capacidade da sociedade de se auto-
conduzir, a partir da política democrática, em torno de
uma identidade de projeto que pode ser construída
endogenamente, mas só o fará na medida do seu
Capital Social, ou seja, na medida da sua capacidade de
constituir uma comunidade de projeto.

423
A oitava idéia é a de que política democrática tende a
ser, cada vez mais, sinônimo de política de alianças. O
aumento da complexidade, quer dizer, da diversidade,
da organização e da conectividade social, na
contemporaneidade, com a emersão da sociedade-rede,
produz, continua e aceleradamente, novas minorias, as
quais não conseguem mais se expressar em regimes de
maioria, que ainda extraem sua legitimidade da relação
entre uma minoria de fato governante e a maioria
massificada governada. Na medida em que as massas
vão deixando de ser totalidades indiferenciadas, vão
complexificando a sua estrutura interna e vão passando
da condição de objetos para a de sujeitos políticos, são
as múltiplas minorias que passam a formar as maiorias,
em configurações temporárias de geometria variável.
Nestas circunstâncias, a democracia se afirma, cada vez
mais, como um regime de minorias, ou seja, como um
modo de regulação de conflitos que exige a constante
composição e recomposição de maiorias a partir da
variedade de sujeitos coletivos que se posicionam
diferentemente face aos diversos temas submetidos à
sua apreciação. Isso exige a formação, simultânea e
sucessiva, de múltiplos sistemas flexíveis de alianças
como condição de governabilidade (democrática), a
qual não poderá mais ser conquistada e mantida,
autocraticamente, nem a partir de normas impositivas-
punitivas, nem em virtude da gravitatem dos chefes.

424
Esta idéia não apenas guarda relação com a
anterior, como é uma conseqüência da anterior. Na
democracia não pode haver um sujeito que possa
conduzir sozinho a sociedade – até porque isso seria,
por definição, autocracia – e quanto mais aumenta a
complexidade social, mais difícil se torna privatizar o
comando político ou exercer o poder a partir da
vontade de um ou de poucos. Mas a alternativa da
política de alianças não surge como expediente
instrumental, para aumentar a força de um sujeito a
partir da sua posição maior de força dentro de um
conjunto de forças menores as quais, somadas à sua
força, conferem-lhe então a condição de força
hegemônica no conjunto da sociedade. Pois ocorre que
uma tendência, já captada no desenvolvimento da
complexa sociedade em rede, é a de que no futuro
nenhuma força individual consiga manter-se por muito
tempo numa condição de prevalência, mesmo que faça
todas as alianças possíveis – a menos que suprima ou
restrinja a democracia, o que também será cada vez
mais difícil de fazer numa complexa sociedade em
rede. Cada força individual terá, assim, que
compartilhar com outras forças as tarefas de
coordenação política e terá de fazê-lo a partir dos
mesmos motivos que a fazem aceitar o jogo
democrático, ou seja, isso tende a fazer parte de um
novo pacto democrático ampliado ou democratizado,
para as sociedades que caminharem nessa direção. Ora,

425
por razões que a essa altura da discussão dispensam
justificativas, terão mais chances de caminhar nessa
direção as sociedades que conseguirem acumular mais
Capital Social.
A nona idéia é a de que o vencedor não pode levar tudo.
A verificação democrática não pode ser uma luta da
qual resultem vencedores (que ficam com tudo) e
vencidos (dos quais se retira tudo). Não existe nenhum
fator intra-político que determine que a regulação
política deva ser competitiva-excludente, ou seja, que
consagre como legítimos opiniões ou representantes
que obtiverem a maioria das indicações e condene
como ilegítimos os que ficarem em minoria. É mesmo
difícil de justificar, se não impossível de explicar, por
que alguém (ou alguma proposta) que obteve, por
exemplo, 50,1% dos votos, seja considerado
totalmente mais legítimo do que outro representante
(ou outra proposta) que atingiu “apenas” 49,9% dos
votos. Por que deverão se sentir representados por um
governante eleito e empossado, que obteve 5 milhões
de votos, os eleitores do candidato que atingiu
4.999.999 votos? Como se pode compreender o
desaparecimento ou a cassação desta vontade coletiva?
Parece óbvio que, em sã consciência, ninguém pode
concordar com isso: simplesmente aceita-se a regra
porquanto aceita-se, antes, a meta-regra de que deve
haver regras, baseada esta última, por sua vez, num
preconceito, ideológico, de que as coisas não poderiam

426
funcionar de outra maneira, ou seja, não sem regras
mas sempre sem uma (“aquela”) dada regra. Destarte, a
verificação política equipara-se a uma competição, na
acepção esportiva mesmo do termo, ou seja, naquele
triste sentido que George Orwell assinalava para o
esporte, como uma “guerra sem mortes”. Glória e
eterna memória para o que chega em primeiro lugar na
corrida, mesmo que por 1 milionésimo de segundo,
esquecimento coletivo e algumas vezes opróbio, para o
segundo.
Ora a idéia de que o vencedor não pode levar
tudo, radicaliza a democracia porquanto a faz retomar
o seu princípio fundante: a manutenção da convivência
entre os participantes. Por que alguém não pode ter
porcentagem de vitória, por que uma proposta não
pode apresentar (como disse Tenzin Giatzo, o XIV
Dalai Lama, em comunicação pessoal a uma platéia
reunida para ouví-lo na Universidade de Brasília, em
1999) porcentagem de razão? Objetar-se-á que isso
tornaria a regulação democrática impraticável, mas a
alegação não parece ser correta: é sempre possível –
desde que abramos mão, não de regras, mas de uma
determinada regra, por exemplo, a do comando uni-
pessoal em troca de instâncias colegiadas de
coordenação – fazer composições proporcionais. Uma
chapa de candidatos que, por exemplo, obteve 60%
dos votos para um coletivo composto de dez pessoas,
colocará nessa instância 6 pessoas, enquanto que a

427
outra chapa, que alcançou 40% dos votos, terá
asseguradas 4 vagas. Da mesma forma, pode-se sempre
tentar aglutinar propostas que obtiverem quantidades
diferentes de votos ou, quando isso não for possível,
pode-se sempre partir para uma nova proposta que
substitua as propostas anteriormente conflitantes,
utilizando-se métodos de construção progressiva de
consensos. Evidentemente, tais processos não se
podem dar sem colaboração, apenas por força da
norma – o que coimplica certa dose de Capital Social e
o que também vale para as duas próximas idéias
expostas a seguir.
A décima idéia é a de que a votação nem sempre é a
forma mais democrática de escolha. Quando está em jogo
uma disputa por indicação de nomes para ocupar
postos eletivos dentro de um mesmo âmbito
organizacional, definido por pacto ou acordo coletivo
sobre os fins – por exemplo, para escolher delegados
ou dirigentes de uma organização política, constituída a
partir da identidade de projeto – tanto o rodízio quanto
o sorteio, puro ou misto (combinado com votação),
podem se revelar formas mais democráticas de escolha,
evitando a formação de tendências e frentes
instrumentais (quase sempre articuladas apenas em
função da conquista e da manutenção do poder), as
quais introduzem no espaço democrático a “lógica”
autocrática da contraposição amigo x inimigo. Ao
contrário, tanto no caso do rodízio como no caso do

428
sorteio, inclusive quando combinados entre si, ou
combinados com alguma forma de votação, há uma
aceitação preliminar do pressuposto dos pares ou
iguais: se alguém é bom o suficiente para constituir um
pacto de convivência, não pode ser mau o suficiente
para ser excluído das funções inerentes à representação
ou regulação política da coletividade constituída com
base neste pacto. Ademais, quando, por exemplo, há
empate em uma decisão por votação, quase sempre o
sorteio é mais democrático do que a atribuição,
conferida a uma pessoa, do poder de decidir (pelo
chamado “voto de Minerva”).
A décima primeira idéia é a de que a construção de
consenso é sempre preferível à disputa por votos como processo
democrático de decisão. O abuso do recurso da votação –
utilizado, indistintamente, tanto em questões
substantivas quanto procedimentais – introduz, com
freqüência, a “lógica” autocrática do jogo ganha-perde
(um jogo de guerra), configurando maiorias e minorias,
vencendo sem convencer, acumulando ressentimentos
e, com isso, dando margem à formação de tendências
que tenderão sempre a se comportar com base na
relação amigo x inimigo (uma relação de guerra), por
motivos instrumentais e, muitas vezes, não-racionais.
Utilizar o recurso da votação antes de tentar construir
o consenso implicar renunciar à mais importante
dimensão – a dialógica – da política democrática,
baseada nas possibilidades criativas da conversação e

429
na sua capacidade de constituir comunidades de
projeto. A votação imposta sistematicamente como
modo de regulação majoritária da inimizade política
não é, em essência, um recurso muito democrático e só
deveria ser adotada como procedimento extremo,
quando não houvesse condições de exaurir as
possibilidades do diálogo na construção de uma
proposta comum em torno da qual a inimizade se
transforma em amizade política.
A décima segunda idéia é a de que todo centralismo é
autocrático. Qualquer tipo de centralismo, ou seja, de
exigência incondicional de obediência à vontade do
chefe ou de um comando colegiado, ou à vontade de
uma instância eleita, introduz um mecanismo
autocrático, mesmo se em relação a questões decididas
por ampla maioria. Decisões democráticas devem ser
acatadas por aqueles que concordam com elas ou que,
mesmo discordando do seu conteúdo ou da sua forma,
admitem, entretanto, a necessidade de acatá-las em
função de valores e objetivos que estimam estar em
jogo, cabendo ao processo democrático ensejar a
possibilidade de convencimento ou de geração das
decisões as mais consensuais possíveis. Assim,
nenhuma organização política que imponha, por
exemplo, fidelidade aos seus membros mediante
sanção ou ameaça do uso de sanção pode ser
radicalmente democrática, uma vez que fidelidade, na
política como em qualquer outro campo da atividade

430
humana, só é efetiva se for conquistada e consentida,
jamais imposta. Via de regra o que está em jogo aqui
não é o fortalecimento da democracia mas o
fortalecimento do poder (autocrático) dos chefes.
Organizações regidas com base no centralismo são –
invariavelmente – organizações “pobres” de Capital
Social.
A décima terceira idéia é a de que é legítima a
desobediência política. Relações hierárquicas, relações de
subordinação, que exigem obediência, baseiam-se na
negação do outro. A democracia não pode aceitar que
alguém faça alguma coisa que não quer ou deixe de
fazer alguma coisa que quer, em virtude de sanção ou
ameaça de sanção proveniente de instância hierárquica.
Portanto, é legítima a desobediência política e ninguém
é obrigado a acatar uma decisão com a qual não
concorde ou mesmo concordando, ou não, não queira
acatar, por medo de sanção, ainda que tal decisão tenha
sido tomada por maioria. Mas sempre que,
discordando, se acata, destroi-se uma parte do Capital
Social envolvido numa relação. Obediência nada tem a
ver com colaboração, que pressupõe adesão voluntária,
seja por concordância, seja por resultado de
convencimento ou por livre assentimento.
A décima quarta idéia é a de que não se pode
democratizar a sociedade sem democratizar a política. A
radicalização da democracia implica a democratização
de todas as dimensões da vida social – em especial a

431
democratização da riqueza, do conhecimento e do
poder – o que exige, por sua vez, a democratização da
política. Do contrário caberia a alguém democratizar a
sociedade para e pela sociedade, o que nega o objetivo
de democratização da sociedade. Pois democratização
pressupõe exercício democrático, participação
democrática e, por conseguinte, constituição de novos
sujeitos democráticos, o que só é possível no interior
mesmo de um processo democrático.
A décima quinta idéia é de que só se pode alcançar a
democracia praticando democracia. Não é possível tomar um
atalho autocrático para uma sociedade democrática. A
democracia é, simultaneamente, meio e fim,
constituindo-se, portanto, como alternativa de presente
e não apenas como modelo utópico de futura
sociedade ideal. Não se pode chegar a uma sociedade
democrática a não ser por meio do exercício da
democracia.
Finalmente, a décima sexta idéia é a de que já é possível
radicalizar a democracia. Radicalizar a democracia é fazê-
la: não somente formal, mas substancial; não apenas
política, mas também social; e, ao lado de
representativa, direta e cada vez mais participativa.
Praticamente não há mais impossibilidade para tornar a
democracia cada vez mais substantiva, social, direta e
participativa. O último impedimento, de natureza
material, para democratizar o poder de decidir, está
sendo agora superado pelo vertiginoso

432
desenvolvimento tecnológico nas áreas de
comunicação e informação, o qual fornece o suporte
infraestrutural para a instalação da e-ágora e de outros
mecanismos e processos de co-governo, por meio do e-
governo e da e-democracia.
As novas tecnologias da informação e
comunicação, quando aplicadas ao padrão de
organização, aumentam a conectividade horizontal
entre pessoas e grupos, podendo ensejar novas formas
de organização em rede, constituindo, assim, um
poderoso instrumento de geração do Capital Social.
Quando aplicadas à regulação política, elas ofertam o
suporte para a radicalização ou a democratização da
democracia, para estimular a participação e a
descentralização e para distribuir o poder de decidir
por meio da introdução de processos inéditos de e-
política e, enfim, de „democracia em tempo real‟, o que,
por sua vez, permite acelerar o processo de geração e
reprodução de Capital Social numa escala ampliada.

10.5 – A democracia em tempo real


Pierre Lévy escreveu, em 1994, um livro
chamado “Inteligência Coletiva. Por uma antropologia
do ciberespaço”, no qual introduz os elementos de
uma teoria da democracia em tempo real que
constituem, no seu conjunto, uma crítica radical da

433
democracia realmente existente, quer dizer, de uma
democracia autocratizada ao invés de democratizada.
Lévy começa lembrando que “as infra-estruturas
de comunicação e as tecnologias intelectuais sempre
mantiveram estreitas relações com as formas de
organização econômicas e políticas... O nascimento da
escrita está ligado aos primeiros Estados burocráticos
de hierarquia piramidal e às primeiras formas de
administração econômica centralizadas (imposto,
gestão de grandes domínios agrícolas etc.). O
surgimento do alfabeto na Grécia antiga é
contemporâneo ao aparecimento da moeda, da cidade
antiga e, sobretudo, da invenção da democracia: tendo
a prática da leitura se difundido, todos podiam tomar
conhecimento das leis e discutí-las. A imprensa tornou
possível uma ampla difusão de livros e a existência de
jornais, base da opinião pública. Sem ela, as
democracias modernas não teriam nascido. Além disso,
a imprensa representa a primeira indústria de massa, e
o desenvolvimento tecnocientífico por ela promovido
foi um dos motores da Revolução Industrial. A mídia
audiovisual do século XX (rádio, televisão, discos,
filmes) participou do surgimento de uma sociedade do
espetáculo, que transformou as regras do jogo tanto na
cidade como no mercado (publicidade)” (Levy, 1994:
59-60).
Levy assinala que existem relações profundas
entre as novas tecnologias de comunicação e a política.

434
“A sólida interação entre as técnicas de comunicação e
as estruturas de governo viu-se confirmada por vários
eventos políticos recentes. Bem adaptados à mídia
unidirecional, centralizadora e territorializada, os
regimes autoritários tiveram dificuldade em resistir às
redes telefônicas, aos satélites de televisão, ao fax, às
fotocopiadoras, a todos os instrumentos que
estimulam uma comunicação descentralizada,
transversal e não-hierarquizada. Os meios de
comunicação de massa contemporâneos, ao difundir
em larga escala todo tipo de idéias e representações,
põem em questão os estilos de organização rígidos e as
culturas fechadas ou tradicionais” (Levy, 1994: 60).
Ora, argumenta ele, “depois de nossas sociedades
experimentarem os poderes críticos e
desterritorializantes da mídia clássica, por que não
experimentariam as capacidades de aprendizado cooperativo,
de urdidura e reconstituição do laço social de que dispõem os
dispositivos de comunicação para a inteligência
coletiva?” (Idem) (n. g.).
Sem usar os mesmos termos empregados aqui,
Pierre Levy está falando da nova base tecnológica,
ofertada pelas ICTs, para a geração e a reprodução do
Capital Social e, assim, para a radicalização da
democracia e vice-versa. “As inovações técnicas abrem
novos campos de possibilidades que os atores sociais
negligenciam ou apreendem sem qualquer predeterminação
mecânica. Um vasto campo político e cultural, quase

435
virgem, abre-se para nós. Poderíamos viver um desses
momentos extremamente raros em que uma civilização
inventa a si própria, deliberadamente. Mas essa
abertura talvez não dure muito. Antes de nos engajar
às cegas em vias irreversíveis, urge imaginar,
experimentar e promover, no novo espaço de
comunicação, estruturas de organização e estilos de
decisão orientados para um aprofundamento da democracia.
O ciberespaço poderá se tornar um meio de exploração
dos problemas, de discussão pluralista, de evidência de
processos complexos, de tomada de decisão coletiva e
de avaliação dos resultados o mais próximo possível das
comunidades envolvidas” (Levy, 1994: 60-1) (g. a.).
A partir daí Levy vai tentar mostrar a
inadaptação dos governos aos problemas políticos
contemporâneos, sobretudo no que tange a utilização
das novas tecnologias da informação. “Os
procedimentos de decisão e avaliação hoje em uso
foram propostos para um mundo relativamente estável
e em uma ecologia da comunicação simples. Ora, a
informação é hoje torrencial ou oceânica. O hiato entre
o caráter diluviano dos fluxos de mensagens e os
modos tradicionais de decisão e orientação faz-se cada
vez mais evidente. Os sistemas de governo ainda
utilizam majoritariamente técnicas de comunicação
molares [midiáticas, burocráticas]. A administração
recorre com mais freqüência à gestão clássica – lenta e
rígida – por meio da escrita estática. De modo geral, só

436
se serve da informática com o objetivo de racionalizar
e acelerar o funcionamento burocrático, raramente
com o objetivo de experimentar formas de organização
ou tratamento da informação inovadoras,
descentralizadas, mais flexíveis e interativas. Quanto
aos políticos, seu espaço de comunicação e de
pensamento encontra-se totalmente polarizado pelos
meios de comunicação de massa: jornais, radio e
televisão” (Levy, 1994: 61-2) (n. i.).
Levy sustenta que, enquanto isso, “para
responder à aceleração da mudança, um uso maciço
das técnicas digitais de simulação, de acesso à
informação em tempo real e de comunicação interativa
pode se revelar muito útil, entre as mãos de todos os
cidadãos” (Levy, 1994: 62) (g. a.). Ele supõe que “certas
técnicas de construção interativa e de visualização de
espaços de significação emergentes permitiriam
caminhar nesse sentido. O uso generalizado dessas
“ágoras virtuais” melhoraria sensivelmente a
elaboração das questões, a negociação e a tomada de
decisão em coletivos heterogêneos e dispersos” (Idem).
Para Pierre Levy, “a mobilização das competências
sociais é uma exigência indissociavelmente técnica e
política. A democracia só progredirá explorando da
melhor forma as ferramentas de comunicação
contemporâneas. De modo simétrico, o
aprofundamento da democracia no sentido da
inteligência coletiva constituiria uma finalidade ao

437
mesmo tempo socialmente útil e (acreditamos nós)
capaz de suscitar entusiasmo entre os administradores
do ciberespaço. O uso socialmente mais rico da informática
comunicacional consiste, sem dúvida, em fornecer aos grupos
humanos os meios de reunir suas forças mentais para constituir
coletivos inteligentes e dar vida a uma democracia em tempo real”
(Idem-idem) (g. a.).
Depois de responder à objeção, recorrente, de
que a ágora virtual seria reservada à elite –
argumentando que o sufrágio universal também exigia
a alfabetização dos cidadãos e que, nem por isso, se
propôs abolí-lo e que “a capacidade mínima para
navegar no ciberespaço se adquirirá provavelmente em
tempo muito menor que o necessário para aprender a
ler” – Levy sustenta que “o ciberespaço cooperativo deve ser
concebido como um verdadeiro serviço público. Essa ágora
virtual facilitaria a navegação e a orientação no
conhecimento, promoveria trocas de saberes, acolheria
a construção coletiva do sentido, proporcionaria
visualização dinâmica das situações coletivas,
permitiria, enfim, a avaliação por múltiplos critérios,
em tempo real, de uma enorme quantidade de
proposições, informações e processos em andamento.
O ciberespaço poderia tornar-se o lugar de uma nova
forma de democracia direta em grande escala” (Levy,
1994: 63-4) (g. a.).
Para Levy, “a democracia representativa pode
ser considerada uma solução técnica a dificuldades de

438
coordenação” de vez que foi praticamente impossível,
à época do nascimento das democracias modernas,
manter espaços, permanentes ou muito freqüentes, de
discussão, de decisão ou de consulta, que atingissem
simultaneamente milhões de cidadãos dispersos em
extensos territórios. Mas isso não significa que
devamos renunciar ao ideal da democracia ateniense,
pois “o ideal da democracia não é a eleição de
representantes, mas a maior participação do povo na
vida da cidade. O voto clássico é apenas um meio. Por
que – pergunta ele – não conceber outros, com base
no uso de tecnologias contemporâneas que permitiriam
uma participação dos cidadãos qualitativamente
superior à que confere a contagem de cédulas
depositadas nas urnas?” (Levy, 1994: 64).
Levy critica o caráter apenas quantitativo dos
mecanismos atuais da consulta (sim ou não), das
pesquisas de opinião (nas quais a participação dos
cidadãos têm apenas efeito estatístico) e das eleições
(que só ocorrem a cada quatro ou cinco anos e nas
quais “os indivíduos que depositaram na cabine votos
idênticos são praticamente intercambiáveis, mesmo
que deparem com problemas bem distintos e que seus
argumentos e posições se distribuam segundo mil
nuanças”). Pelo contrario – argumenta – “um
dispositivo de democracia direta em tempo real, no
ciberespaço, permitiria a cada um contribuir de maneira
contínua para a elaboração e o aperfeiçoamento dos

439
problemas comuns, para a abertura de novas questões,
para a formulação de argumentos, para enunciar e
adotar posições independentes umas das outras sobre
grande variedade de temas. Os cidadãos desenhariam
juntos uma paisagem política qualitativamente tão
variada quanto quisessem, sem ficar limitados de saída
por grandes separações molares entre partidos. A
identidade política dos cidadãos seria definida por sua
contribuição à construção de uma paisagem política
perpetuamente em movimento, e pelo apoio que
dariam a determinados problemas (que eles julgam
prioritários), a determinadas posições (às quais eles
aderem), a determinados argumentos (que eles
retomam por conta própria)... Não se participaria mais
da vida da cidade “fazendo número”, acrescentando
peso a um partido ou conferindo legitimidade superior
a um porta-voz, mas criando diversidade, animando o
pensamento coletivo, contribuindo para a elaboração e
a resolução dos problemas comuns” (Levy, 1994: 65).
Para mostrar como deveria funcionar essa nova
democracia, Levy faz uma interessante comparação
com um coral polifônico. “A democracia em tempo
real visa a constituição do “nós” mais rico [em
contraposição aos “nós” pobres, que enunciam
proposições monótonas, repetições de palavras de
ordem em manifestações, jargões de identidade de
militantes do mesmo partido] cujo modelo musical
poderia ser o coral polifônico improvisado. Para os

440
indivíduos, o exercício é especialmente delicado, pois
cada um é chamado ao mesmo tempo a: 1) escutar os
outros coralistas; 2) cantar de modo diferenciado; 3)
encontrar uma coexistência harmônica entre sua
própria voz e a dos outros, ou seja, melhorar o efeito
de conjunto. É necessário, portanto, resistir aos três
“maus atrativos” que incitam os indivíduos a cobrir a
voz de seus vizinhos, cantando demasiado forte, a
calar-se ou a cantar em uníssono. Nessa ética da
sinfonia, o leitor terá percebido as regras da
conversação civilizada, da polidez, ou do savoir-vivre – o
que consiste em não gritar, em ouvir os outros, em não
repetir o que eles acabam de dizer, em responder-lhes,
em tentar ser pertinente e interessante, levando em
conta o estágio da conversa... Essa nova democracia
poderia assumir a forma de um grande jogo coletivo, no qual
ganhariam (mas sempre provisoriamente) os mais cooperativos, os
mais urbanos [ou com mais civilidade], os melhores
produtores de variedade consonante... e não os mais hábeis em
assumir o poder, em sufocar a voz dos outros ou em captar as
massas anônimas em categorias molares” (Levy, 1994: 67) (g.
a. + n. g.) (n. i.).
Contra os que temem que a ágora eletrônica
ensejaria possibilidades monstruosas de fraude ou
controle, Pierre Levy adverte que o seu papel “não é o
de decidir no lugar das pessoas (nenhuma relação com
os grotescos projetos de “máquinas de governar”), mas
o de contribuir para produzir o agenciamento coletivo

441
de enunciação... [mesmo que necessite da participação
de facilitadores ou mediadores com a função de
calcular e recalcular] em tempo real, o discurso
paisagem do grupo, de modo a deformar o menos
possível a singularidade dos enunciados individuais”
(Levy, 1994: 68) (n. i.).
Para Levy “não se trata... de formular um
programa, de dar um “conteúdo” à democracia em
tempo real, mas apenas de indicar uma maneira de
fazer, de esboçar algumas regras do novo jogo” (Levy,
1994: 69). Na verdade, Levy, sem empregar as
expressões que usamos, está delineando os princípios
desse “novo jogo”, aqui chamado de radicalização ou
democratização da democracia – amplificador de Capital
Social: “as ágoras virtuais da democracia... [em tempo
real] – afirma ele – ajudam as pessoas e os grupos a se
reconhecer reciprocamente, a se encontrar, a negociar,
a estabelecer contratos” (Idem: 72), enfim, a manter
um processo coletivo de conversação que amplia
socialmente a cooperação e, portanto, produz e
reproduz Capital Social.
Levy mostra a relação intrínseca entre a
democracia democratizada da ágora virtual e o padrão
de organização. Ele diz que “a organização não pode
ser pensada sem seu complemento desorganizador: a
conexão transversal... Mundos virtuais de significações
partilhadas poderiam favorecer todas as formas de
conexões diagonais e de livre negociação, sem passar

442
por representantes... É somente porque as moléculas
sociais puderam notar reciprocamente sua
singularidade – e porque os processos em curso
tornaram-se visíveis – que reagrupamentos
imprevistos, desejos de colaboração, de deslocamentos e de
troca podem vir a tona” (Levy, 1994: 72) (n. g.).
Para Levy “a idéia de uma democracia em tempo
real não tem nada de paradoxal, uma vez que a
democracia é, por natureza, em tempo real. Em sua
acepção mais comum, de fato, ela se contrapõe à
arbitrariedade do tirano, ou ao poder de uma minoria,
e estabelece uma lei válida para todos e decidida por
todos (ou, pelo menos, pela maioria) – o que significa
que o objetivo da democracia é realizar e conservar a
autonomia do grupo de cidadãos: a cidade dá a si suas
próprias leis. Ora, a autonomia, como hoje a
compreendemos, é incompatível com a resignação ao
fato consumado. Supõe uma aptidão à mudança, ao
questionamento, ao aprendizado. O ser autônomo tem a
potência para escapar de seu passado, recusa-se a ser
estreitamente determinado. Soberano, pode modificar
a lei instituída ou atribuir-se outra... A democracia é
por excelência o regime político do “presente para um
futuro”, por oposição a um presente fixo, dominado
por um passado ou por uma transcendência
(heteronomia). A expressão “democracia em tempo
real” é, portanto, pleonástica, uma vez que a
democracia visa por essência a decisão coletiva no

443
presente e a permanente reavaliação das leis... se hoje
só recorremos à deliberação e à decisão do cidadão de
tempos em tempos, isso não decorre dos princípios da
democracia. A delegação periodicamente renovada é
um paliativo, na impossibilidade de dar vida a uma
inteligência coletiva ininterrupta. Uma vez que as
ágoras virtuais poderiam abrir espaços de
comunicação, de negociação, de surgimento de uma
fala coletiva e de decisão em tempo real, existem cada
vez menos argumentos “técnicos” para perpetuar o
despotismo fragmentado que constitui a delegação”
(Levy, 1994: 75-6) (g. a.).
Levy volta à crítica à política realmente existente
para responder aos que objetam que a democracia em
tempo real não resolve os problemas do tempo de
maturação do fazer político nem os problemas da
continuidade desse fazer. “Observemos, para começar
– diz ele – que são os governos efetivos, ou seja, os
representantes eleitos, que se subordinam ao tempo
curto e entrecortado da mídia. A ausência de visão e de
política a longo prazo provém da combinação entre
representação... e televisão... O sistema é tal que os
representantes só visam se reeleger, e utilizam para isso
a mídia, que os submete à sua instantaneidade, à sua
ausência de memória e de projeto. A política
espetáculo personaliza vergonhosamente as questões,
fascina os cidadãos, atomiza-os, massifica-os, não lhes
propicia influência alguma sobre os assuntos da cidade.

444
Deve-se distinguir muito claramente entre a
democracia em tempo real, que poderá se desenvolver
no ciberespaço, e a política midiática, que se baseia no
tríptico infernal televisão/pesquisas eleitorais/eleições.
A democracia em tempo real não tem nada a ver com a
emissão de televisão seguida do voto por Minitel.
Inscreve-se, pelo contrário, na construção lenta mas
contínua de um debate coletivo e interativo, no qual
cada um pode contribuir elaborando questões,
refinando as posições, emitindo e ponderando
argumentos, tomando e avaliando decisões” (Levy,
1994: 76).
Uma política descontínua, acrescenta Levy, nasce
da relação infantil entre categorias irresponsáveis que
reivindicam para si mesmas sem preocupar-se com a
coletividade, por um lado, e tomadores de decisão que
só respondem a essas reivindicações em função de
cálculos eleitorais a curto prazo, por outro. A
democracia em tempo real instaura, pelo contrário, um
tempo de decisão e de avaliação contínua, no qual um coletivo
responsável sabe que será confrontado no futuro com
os resultados de suas decisões atuais” (Levy, 1994: 77)
(g. a.).
Levy também responde às objeções daqueles
que vêem o perigo do totalitarismo numa democracia
em tempo real. “Se nos entendermos sobre o sentido
das palavras, ela [a democracia em tempo real] não tem
nada de totalitarismo. Orwell enunciou de modo

445
maravilhoso a fórmula do totalitarismo: Big Brother is
watching you. A política midiática simplesmente inverte a
fórmula do totalitarismo: em vez de organizar a
vigilância constante dos indivíduos pelo partido-Estado
do ditador, ela fixa os olhos de cada um sobre as
estrelas políticas. Todos olham para os mesmos: o
presidente, os ministros, os jornalistas, os “midiáticos”.
Só se vê a eles, só se fala deles. Ora, a democracia em
tempo real organiza não a visão de um poder sobre a
sociedade e as pessoas (totalitarismo), não o espetáculo
do poder (regime midiático), mas a comunicação da
comunidade consigo mesma, o conhecimento de si do
coletivo. Ao fazê-lo, ela suprime a justificação do
poder. Pois é precisamente quando o coletivo não
conhece a si mesmo, não controla sua própria
dinâmica e não consegue produzir enunciados
complexos que um poder é “necessário”. Para se
manter, esse poder procura incessantemente impedir o
surgimento de uma inteligência coletiva que levaria a
comunidade a prescindir dele” (Levy, 1994: 78) (g. a. +
n. g.).
Levy conclui, abordando, sem nominar, a
temática central do Capital Social ao discutir a questão
do poder vertical. “Os totalitarismos... como o
fascismo, o nazismo, o stalinismo, o maoísmo,
distinguiram-se... pela invasão da vida social pela
problemática do poder, pelas práticas reeditadas sem
limite de dominação, sujeição pela louca proliferação,

446
nos menores recônditos do campo social, das cadeias
de dependência, de obediência e de submissão. Que a
política, a arte, a ciência, a língua, a produção e a troca,
que quase tudo o que vincula só esteja estruturado,
polarizado de cima a baixo de hierarquias e pirâmides
por toda parte reproduzidas com obstinação fractal, ao
longo de redes indefinidamente ramificadas, pela busca
e conservação do poder, eis o que caracteriza
efetivamente as chamadas sociedades “totalitárias”... e
eis porque elas só conseguem, mais cedo ou mais
tarde... destruir-se a si próprias. Quando as práticas
mafiosas do grupo no poder destroem a civilidade, a
retirada do partido dominante só deixa atrás de si a
proliferação do banditismo e da desordem. A única via
para a democracia passa por um longo aprendizado
coletivo do direito, da autonomia, da reciprocidade e
da responsabilidade” (loc. cit.) (Levy, 1994: 80).
Enfim, segundo ele, existem razões suficientes,
inclusive do ponto de vista prático, para se adotar
outro padrão organizacional, mais horizontal, mais
compatível com uma democracia democratizada a
partir do suporte ofertado pelas ICTs: “as tecnologias
da informação e da coordenação se aperfeiçoaram o
suficiente para que as vantagens conferidas a uma
comunidade por uma estrutura de autoridade forte não
compensem mais o desperdício de recursos humanos e
o bloqueio da inteligência coletiva inerentes ao
exercício do poder. Para se tornar potente, um grupo

447
humano deve doravante desinvestir as hierarquias, no
grupo e fora dele” (Levy, 1994: 82) (n. g.).
As idéias de Pierre Levy sobre democracia,
resenhadas aqui, fornecem mais argumentos para
mostrar a relação entre radicalização da democracia e
Capital Social.
Os óbices para uma democracia democratizada
não derivam mais de impedimentos de natureza técnica
– o ciberespaço torna possível a democracia em tempo
real, quer dizer, um modo de regulação que se exerça
no presente, libertado do passado ou da tradição
autocrática.
Todavia, talvez nunca tenha sido,
fudamentalmente, de natureza material ou técnica, o
impedimento para a democratização da democracia.
Sempre é possível democratizar mais: na ausência de
computador, e-mail, Internet e ICQ, isso poderia ter
sido feito, por exemplo, por meio do telefone, por que
não? Bastaria que cada pessoa recebesse uma senha e
que quem não possuísse um aparelho utilizasse uma
central instalada num centro comunitário ou um
"orelhão" (é claro que com telefonia robotizada seria
mais fácil). Na ausência de telefone, isso poderia ser
feito por meio de telegramas, sinais de fumaça ou
tambores (perdendo interatividade e simultaneidade, é
óbvio, mas podendo levar em conta imputs mais
freqüentes do que uma eleição quadrianual – a qual,
também, nada tem de interativa). É claro que

448
tecnologias mais avançadas de comunicação, sobretudo
interativas e em tempo real, introduzem mudanças
qualitativas no modo de regulação, mas isso não quer
dizer que tecnologias menos sofisticadas não possam
ser (ou não pudessem ter sido) usadas para
democratizar procedimentos e processos de discussão
e decisão políticos.
Quero dizer com isso que as objeções à
democratização são de natureza cultural, constituem
heranças autocráticas, supervivências ancestrais de um
protótipo civilizacional de predadores que
permanecem pressionando "por dentro" para fechar a
brecha aberta no sistema patriarcal pela democracia. A
democracia, desde que foi inventada, viu-se, assim,
sempre disputada por duas tendências: a que quer
radicalizá-la, aprofundá-la e ampliá-la e a que quer
superficializá-la e restringi-la. Ou seja, não existe
somente o processo de democratização da democracia.
Existe também o processo inverso, de autocratização
da democracia (10.5: 1).
Segundo Pierre Levy um modo de regulação
democratizado (a democracia democratizada que ele
denomina, enfatizando corretamente um seu atributo-
essência, de "democracia em tempo real") co-implica
um padrão de organização não-hierárquico-vertical.
Em outras palavras, exige conexão horizontal; ou seja,
co-implica a existência de rede, comunidade; ou seja,
co-implica produção de Capital Social.

449
Os impedimentos para a democratização da
democracia provêm dos impulsos para a sua
autocratização, para fechar a brecha – é a sociedade de
dominação tentando se perpetuar, são as mensagens
emitidas no remoto passado querendo se materializar
como padrões de comportamentos: como reconheceu,
genialmente, Norbert Wiener, "um padrão é uma
mensagem e pode ser transmitido como tal" (Wiener,
1950: 95). Quando esse padrão é transmitido para
outras regiões do tempo, então o processo pelo qual
isso ocorre recebe o nome de tradição.
Ora, a tradição desse tipo de civilização em que
vivemos não é democrática mas autocrático-
hierárquica. A democratização é um processo de
desconstituição da autocracia, uma afirmação da
liberdade humana que só faz sentido diante da
existência de um processo de autocratização – i. e., de
afirmação de uma ordem pregressa – que congela,
cristaliza (e em estruturas cristalinas tetraédricas),
impede que o tecido social mantenha uma dinâmica
viva, quer dizer, cresça, se mantenha e se reproduza
por si mesmo conquistando sustentabilidade; em outras
palavras, que impede a geração e a ampliação do
Capital Social.
A relação entre Capital Social e sustentabilidade
será o tema do próximo capítulo.

450
11
__________________________
Capital Social, sustentabilidade
e comunalidade

Quando tentamos aplicar o conceito de


sustentabilidade à coletividades humanas vem sempre a
tona um assunto muito polêmico: o paralelo entre
sociedades e seres vivos. O paralelo é meio inevitável
na medida em que os seres vivos – organismos e, numa
visão ampliada, ecossistemas – constituem talvez os
únicos sistemas realmente sustentáveis que
conhecemos. Mas a analogia entre organismos e
sociedades, promovida quase sempre para legitimar
autocracias, quando não a seu serviço, não tem boa
história e por isso sociólogos e antropólogos resistem
bastante à comparação. Todavia, também aqui vale o
que já se disse várias vezes neste livro: a adequação ou

451
inadequação da recorrência à biologia depende do tipo
de biologia a que se recorre. Na verdade grande parte
dos motivos relevantes para se resistir a paralelos entre
processos sociais e biológicos diz respeito as maneiras
de ver tais processos.

11.1 – Sistemas sociais e sistemas vivos


O que é a vida? Para Lynn Margulis e Dorion
Sagan “dois processos distinguem a matéria viva da
inerte: a autopoiese e a reprodução. O termo autopoiese
deriva dos radicais gregos auto (“próprio”) e poiesis
(“criação”). As entidades que metabolizam, isto é, que
mantêm e perpetuam quimicamente a sua identidade
apesar das constantes perturbações ambientais, são
consideradas autopoiéticas (Varela e Maturana, 1974).
Os progressos da bioquímica e da biologia molecular
permitem-nos agora identificar em pormenor a base do
fenômeno autopoiético a que chamamos “vida”. As
transformações do composto de carbono pelas
proteinas enzímicas constituem a base do
metabolismo. Estas transformações ocorrem
constantemente nos seres autopoiéticos, sempre
alimentados pela luz ou por algum tipo de energia
química. Assim, o metabolismo é o mecanismo da
autopoiese... (Margulis e Sagan, 1986: 33). Autopoiese e
reprodução – as duas principais características da vida
– são coisas diferentes porém interdependentes: “não

452
temos conhecimento de nada deste mundo capaz de se
reproduzir que não seja autopoiético... A autopoiese
ocorre para manter um organismo durante a sua
própria vida, mas por si mesma, a autopoiese não
garante que um organismo evidencie continuidade
genética ou que as características de um qualquer
organismo se mantenham fielmente ao longo do
tempo. A reprodução é o processo que asssegura a
continuidade genética. Mas a autopoiese subsiste como
processo primário” (Idem: 34).
Todavia, o que realmente se reproduz nos
sistemas vivos? O que se reproduz não é diretamente o
indivíduo vivo enquanto matéria mas a informação, o
código replicativo capaz de produzir outro corpo
material semelhante, isto é, com o mesmo código. “É
necessário herdar a biotecnologia do progenitor se um
organismo pretender adquirir ou produzir moléculas de
alimento, enzimas produtoras de ácido nucléico, e
assim por diante. Dentro de uma célula, o DNA na
presença de pequenas moléculas (que conhecemos pelo
nome de “alimentos” ou “nutrientes”) e enzimas
específicas chamadas “polimerases” formam uma
segunda molécula idêntica de DNA. Esta propriedade
de cópia do DNA, a que damos aqui a designação de
“réplica”, é a base de toda a reprodução celular
autopoiética. O conhecido processo de aumento do
tamanho de qualquer organismo depende basicamente
do processo de cópia do DNA. No interior das células

453
do organismo em crescimento, o DNA é copiado,
originando-se o RNA que contém a informação
armazenada naquele DNA, e a partir desse RNA
formam-se novas proteínas. A célula absorve o
alimento e processa-o de acordo com as instruções nos
seus DNA e RNA, duplica de volume e por fim divide-
se. A molécula única de DNA transformou-se em duas
por réplica, a célula única duplicou por via da
reprodução” (Margulis e Sagan, 1986: 35). Mas nos
sistemas vivos – como as células – nada disso pode
acontecer sem autopoiese: “a autopoiese é... um
requisito prévio absoluto para a reprodução. Talvez
seja porque os sistemas autopoiéticos estão sempre
duplicando o seu DNA e produzindo mais outras
moléculas grandes que, a dado ponto, tendem a
reproduzir-se” (Idem: 36).
Os tipos de relações entre os componentes de
um sistema – ensejadas por um padrão organizacional
– são fundamentais para que tal sistema possa ser
considerado como um sistema vivo, ou seja, um
sistema que se automantém e que se reproduz. Ora,
essas são, exatamente, as características básicas de um
sistema sustentável. Sustentabilidade, como já havia
assinalado em outro lugar, “diz respeito... a um padrão
de organização de um sistema que se mantém ao longo
de tempo em virtude de ter adquirido certas
características que lhe conferem capacidades
autocriativas... Ser sustentável tem a ver com uma

454
dinâmica, que começa agora a se revelar com a
ascensão do pensamento sistêmico, de rede
autocatalítica, autocriativa ou autopoiética (Maturana e
Varela, 1972).
Embora, rigorosamente falando, a noção de
autopoiese (autocriação) se aplique somente a sistemas
moleculares vivos, é possível imaginar sistemas
autopoiéticos não-moleculares. “Assim, por exemplo –
diz Maturana – é possível que uma cultura seja um
sistema autopoiético, que existe em um espaço de
conversações, porém é uma cultura, não um ser vivo”
(Maturana, 1994 16): (11.1: 1).
Segundo esse ponto de vista, um organismo,
parte de um organismo, um ecossistema, uma
sociedade ou até o planeta Terra [na verdade, não
propriamente o planeta, mas Gaia, quer dizer, nas
palavras de uma das autoras da hipótese – Lynn
Margulis – “a série de ecossistemas em interação que
compõem um simples e enorme ecossistema na
superfície da Terra” (Margulis e Sagan, 1998: 114)]
(11.1: 2) podem ser considerados como sistemas
sustentáveis, à medida que possuam um padrão de
organização de uma rede autopoiética, não exatamente
no sentido em que Humberto Maturana cunhou a
expressão, mas em um sentido metafórico ou
metonímico, como alerta Francisco Varela (Varela,
1994: 53). Os autores da noção de autopoiese,
sobretudo Varela, não parecem concordar com a

455
tendência de expandir a idéia além da biologia, para
outros âmbitos, como tem feito Niklas Luhmann na
sociologia (Luhmann, 1984).
De qualquer modo, é inegável que a
"descoberta" do padrão de organização de rede
autopoiética em sistemas celulares lança nova luz sobre
a discussão da sustentabilidade. Seres vivos simples,
como células, que são, de fato, sistemas autopoiéticos
moleculares, são sistemas sustentáveis. Percebeu-se que
"o ser vivo não é um conjunto de moléculas, mas uma
dinâmica molecular, um processo que acontece como
unidade separada e singular como resultado do operar,
e no operar, das diferentes classes de moléculas que a
compõem, em um interjogo de interações e relações de
proximidade que o especificam e realizam como uma
rede fechada de câmbios e sínteses moleculares que
produzem as mesmas classes de moléculas que a
constituem, configurando uma dinâmica que ao
mesmo tempo especifica em cada instante seus limites
e extensão" (Maturana, 1994: 15).
Ora, tal dinâmica se aproxima bastante daquela
observada, com menor grau de precisão, no operar dos
ecossistemas, que não são, imediatamente pelo menos,
sistemas moleculares, mas que também apresentam um
padrão de organização "circular" ou em rede fechada
no qual "a função de cada componente consiste em
participar da produção ou da transformação dos outros
componentes da rede. Dessa maneira, a rede,

456
continuamente, cria a si mesma. Ela é produzida pelos
seus componentes e, por sua vez, produz esses
componentes" (Capra, 1996: 89).
O que chamamos de sustentabilidade, portanto,
é o resultado de um padrão de organização, observado
inicialmente em ecossistemas – e, depois, mais
precisamente, em sistemas moleculares vivos, como
células – mas que também pode ser encontrado, mutatis
mutandis, em outros sistemas complexos.
Observando os ecossistemas descobrimos que
eles apresentam características que lhes conferem
sustentabilidade, características como:
interdependência, reciclagem, parceria, flexibilidade e
diversidade, as quais também comparecem, de algum
modo, em sistemas moleculares vivos Talvez o que
chamamos de sustentabilidade seja uma espécie de
resultante da incidência simultânea de características
como estas, quer dizer, o resultado da sua combinação,
como defende Fritjof Capra (Capra, 1996: 231-5).
É possível supor que comunidades humanas que
apresentem características "correspondentes" análogas
tenham mais chances de ser sustentáveis, quer dizer,
sejam comunidades nas quais podemos satisfazer
nossas aspirações e nossas necessidades sem diminuir
as chances das gerações futuras de fazê-lo também.
Ao fazer a suposição acima estamos
pressupondo que existe um elo entre comunidades
ecológicas e comunidades humanas baseados na nova

457
visão, fornecida pelo pensamento sistêmico, de que
ambos sistemas exibem princípios básicos de
organização análogos de um certo ponto de vista. Isso
nada tem a ver com paralelos mecânicos biologicistas
que se fazia antigamente entre sociedades humanas e
coletividades de animais” (Franco, 2000a: 45-50).
Parece que, definitivamente, sociedades não são
organismos, como assinala, com razão, Fritjof Capra.
“Regimes políticos totalitários têm, com freqüência,
restringido gravemente a autonomia de seus membros
e, ao fazê-lo, despersonalizou-os, desumanizou-os.
Desse modo, as sociedades fascistas funcionam mais
como organismos, e não é uma coincidência o fato de
as ditaduras, muitas vezes, gostarem de usar a metáfora
da sociedade como um organismo vivo” (Capra, 1996:
171). O que não quer dizer, como assinala ele, que
sistemas sociais não possam apresentar analogias fortes
com organismos e com ecossistemas de um certo
ponto de vista: o ponto de vista do padrão de
organização de sistemas complexos que possuem
certas propriedades autocriativas – o padrão de rede.
“Até agora, a maior parte das pesquisas na teoria
da autopoiese tem se relacionado com sistemas
autopoiéticos mínimos – células simples, simulações
por computador e as recém-descobertas estruturas
químicas autopoiéticas. Muito menos trabalho tem sido
dedicado ao estudo da autopoiese de organismos
multicelulares, de ecossistemas e de sistemas sociais.

458
As idéias correntes a respeito dos padrões de rede
nesses sistemas vivos ainda são, portanto, muito
especulativas [Fleischaker, 1992 e Mingers, 1995].
Todos os sistemas vivos são redes de componentes
menores, e a teia da vida como um todo é uma
estrutura em muitas camadas de sistemas vivos
aninhados dentro de outros sistemas vivos – redes
dentro de redes. Organismos são agregados de células
autônomas porém estreitamente acopladas; populações
são redes de organismos autônomos pertencentes a
uma única espécie; e ecossistemas são teias de
organismos, tanto de uma só célula como
multicelulares, pertencentes a muitas espécies
diferentes. O que é comum a todos esses sistemas
vivos é que seus menores componentes vivos são
sempre células, e portanto podemos dizer com
confiança que todos os sistemas vivos, em última
análise, são autopoiéticos. No entanto, também é
interessante indagar se os sistemas maiores formados
por essas células autopoiéticas – os organismos, as
sociedades e os ecossistemas – são, em si mesmos,
redes autopoiéticas” (Capra, 1996: 170) (n. i.).
Capra não responde diretamente. Cita um trecho
de um livro de Maturana e Varela (“A Árvore de
Conhecimento”) para dizer que a questão permanece
em aberto: “o que podemos dizer é que [sistemas
multicelulares] têm fechamento operacional na sua
organização: sua identidade é especificada por uma

459
rede de processos dinâmicos cujos efeitos não
abandonam a rede. Mas, com relação à forma explícita
dessa organização, não falaremos mais” (Maturana e
Varela, 1984: 130 ) (n. i.).
Capra assinala que a questão de se “os sistemas
sociais humanos podem ou não ser descritos como
autopoiéticos... tem sido discutida muito extensamente,
e as respostas variam de acordo com o autor. O
problema maior é que a autopoiese só foi definida com
precisão para sistemas no espaço físico e para
simulações, por meio do computador, em espaços
matemáticos. Devido ao “mundo interior” dos
conceitos, das idéias e dos símbolos que surgem com o
pensamento, com a consciência e com a linguagem
humanos, os sistemas sociais humanos existem não
somente no domínio físico, mas também num domínio
social simbólico. Desse modo, uma família pode ser
descrita como um sistema biológico, definido por
certas relações de sangue, mas também pode ser
descrita como um “sistema conceitual”, definido por
certos papéis e parentescos que podem ou não
coincidir com quaisquer parentescos de sangue entre
os seus membros. Esses papéis dependem das
convenções sociais e podem variar consideravelmente
em diferentes períodos de tempo e em diferentes
culturas. Por exemplo, na cultura ocidental
contemporânea, o papel do “pai” pode ser
desempenhado pelo pai biológico, por um pai adotivo,

460
por um padrasto, por um tio ou por um irmão mais
velho. Em outras palavras, esses papéis não são
características objetivas do sistema familiar, mas são
construtos sociais flexíveis e constantemente
renegociados” (Capra, 1996: 171).
Recolocando a questão, Capra pergunta: “dada a
existência simultânea dos sistemas sociais em dois
domínios, o físico e o social, terá sentido, de qualquer
modo, aplicar a eles a concepção de autopoiese e, se
tiver, em que domínio deveria sê-lo?” (Capra, 1996:
172). Capra registra que, depois de deixar,
cautelosamente, a questão em aberto em “A Árvore do
Conhecimento”, Maturana e Varela divergiram a esse
respeito. “Maturana não concebe os sistemas sociais
humanos como autopoiéticos, mas sim como o meio
no qual os seres humanos realizam sua autopoiese
biológica por intermédio do “linguageamento”
(“languaging”) [Maturana, 1988 – cit. por Capra 1996:
172]... [enquanto que] Varela sustenta que a concepção
de uma rede de processos de produção, que está no
próprio âmago da definição de autopoiese, pode não
ser aplicável além do domínio físico, mas que uma
concepção de “fechamento organizacional” pode ser
definida para sistemas sociais. Essa concepção mais
ampla é semelhante à da autopoiese, mas não
especifica processos de produção [Varela, 1981 – cit.
por Capra, idem]. A autopoiese, na visão de Varela,
pode ser vista como um caso especial de fechamento

461
organizacional, manifesto no nível celular e em certos
sistemas químicos” (Idem) (n. i.).
Há quem pense diferente. Capra assinala que
“outros autores têm afirmado que uma rede social
autopoiética pode ser definida se a descrição de sistemas
sociais humanos permanecer inteiramente dentro do
domínio social. Essa escola de pensamento foi
introduzida na Alemanha pelo sociólogo Niklas
Luhmann, que desenvolveu a concepção de autopoiese
social de maneira consideravelmente detalhada. O
ponto central de Luhmann consiste em identificar os
processos sociais da rede autopoiética como processos
de comunicação: “os sistemas sociais usam a
comunicação como seu modo particular de reprodução
autopoiética. Seus elementos são comunicações que
são... produzidas e reproduzidas por uma rede de
comunicações e que não podem existir fora dessa
rede” [Luhmann, 1990]. Por exemplo, um sistema
familiar pode ser definido como uma rede de
conversas que exibe circularidades inerentes. Os
resultados de conversas dão origem a mais conversas,
de modo que se formam laços de realimentação auto-
amplificadores. O fechamento da rede resulta num
sistema compartilhado de crenças, de explicações e de
valores – um contexto de significados – continuamente
sustentado por mais conversas. Os atos comunicativos
da rede de conversas incluem a “autoprodução” dos
papéis por cujo intermédio os vários membros da

462
família são definidos e da fronteira do sistema da
família. Uma vez que todos esses processos ocorrem
no domínio social simbólico, a fronteira não pode ser
uma fronteira física. É uma fronteira de expectativas,
de confidências, de lealdades, e assim por diante. Tanto
os papéis familiares como as fronteiras são
continuamente mantidos e renegociados pela rede
autopoiética de conversas” (Capra 1996: 172) (n. i.).
Ora, do ponto de vista que venho adotando, a
questão não se coloca precisamente assim. Não faz
sentido perguntar se as sociedades são meios nos quais
os seres humanos realizam sua autopoiese, ou se são,
“apenas”, sistemas com fechamento organizacional ou,
enfim, se são mesmo sistemas autopoiéticos, se não se
perguntar – antes – qual o tipo de sociedade de que se
está tratando. A aldeia agrícola neolítica, a cidade-
Templo-Estado sumeriana, a pólis grega dos anos 300
a. C., um feudo bretão medieval, a sociedade londrina
do final do século XIX, uma tribo indígena ainda
isolada na selva amazônica no início do século XX,
uma mega-metrópole no final do segundo milênio e
uma comunidade de projeto do século XXI – todas
essas coletividades podem ser consideradas como
sociedades humanas, mas o que há de comum entre
elas, que permite a aplicação dessa mesma
denominação a todas, não é tão relevante, para o
problema em tela, como o que há de diferente.
Sustento que existem coletividades humanas cuja

463
estrutura e cuja dinâmica apresentam características
que se aproximam mais das características de um
sistema vivo e existem sociedades humanas que se
afastam mais de tais características. A aldeia neolítica se
aproxima mais; a cidadela-guerreira dos conquistadores
patrilineares se afasta mais. A Atenas de Péricles se
aproxima mais do que a Roma de Calígula. As cidades
russas do século XIX se afastam mais do que as suas
contemporâneas comunas da Nova Inglaterra. A União
Soviética dos anos 30, tal como a Alemanha nazista,
mas também como o Perú incaico, o Egito faraônico e
outras ideocracias ou teocracias, se afastam mais do
que tudo o que já se viu na face da Terra.
Pois bem. O que há de dessemelhante entre tais
coletividades humanas, que é relevante para a questão
em debate? Certamente não será a época, de vez que o
kairós civilizacional das sociedades, por assim dizer,
não pode ser determinado por uma calendário geral
(kronos) estabelecido a partir de um olhar histórico
retrospectivo. Existiram na antigüidade sociedades que
foram mais modernas – como as comunidades
proféticas do norte da Palestina por volta dos
setecentos a. C, ou a Creta minoica – do que
sociedades que vieram bem depois, como, para
aproveitar exemplos já dados, a Roma imperial e a
União Soviética stalinista. E o sistema social em que
viviam Eliseu e seus conterrâneos no norte da Palestina
apresentava características que se aproximavam mais

464
das características dos sistemas vivos do que o dos
romanos e o dos soviéticos. Possivelmente também
não será o chamado progresso técnico: para continuar
com exemplos já citados, a tecnologia hidráulica
faraônica era bem superior, além de anterior, à dos
cretenses, mas e daí? Os sistemas sociais em que
viviam aqueus e egípcios possuíam características
comuns que os afastavam mais das características dos
sistemas vivos do que o do cretenses (pelo menos
antes destes últimos terem sido invadidos pelos
aqueus).
Sustento, assim, que o que é relevante, para o
tema que examinamos aqui, é o padrão de organização
e o modo de regulação. Quanto mais verticais e
hierárquicos forem os sistemas sociais menos se
aproximam suas características das características dos
sistemas vivos. Quanto mais autocráticos forem os
sistemas sociais menos se aproximam suas
características das características dos sistemas vivos.
Dizendo a mesma coisa de outra maneira: sistemas
mais comunitários se aproximam mais; sistemas menos
comunitários se afastam mais; sistemas mais
democráticos se afastam menos; sistemas menos
democráticos se aproximam menos.

465
11.2 – Capital Social e comunalidade
Pelo que vimos nos capítulos anteriores, a chave
para decifrar o enigma é o Capital Social. Quanto
menos Capital Social é produzido por um sistema
(social) menos se aproximam suas características das
características de um sistema vivo. Todavia, quais
seriam, fundamentalmente, tais características? Com
certeza, um certo arranjo particular de conexões entre
componentes – que chamamos de padrão de rede; e
uma certa dinâmica particular, pela qual tais
componentes interagem e se transformam ou
“metabolismo” – que chamamos de modo de
regulação. Nas células e nos organismos vivos o
metabolismo é o mecanismo da autopoiese. Nos
sistemas sociais como poderiam ser vistas tais
características? Analogamente, como padrão de
organização em rede – ou seja, sistema de conexões
horizontais entre pessoas e grupos; e como modo
democrático de regulação das interações – ou seja,
como sistema de convivência que enseja a conservação
dinâmica, a interdependência e a integridade dos
membros, pessoas ou grupos, que compõem a
sociedade. Se tal sistema de convivência impuser a
dependência ao invés da interdependência, se induzir
interações destrutivas que coloquem em risco a
manutenção ou a integridade dos componentes – isso
significa que o modo de regulação não poderá mais
garantir o funcionamento da rede enquanto tal. Neste

466
caso, o próprio padrão de rede vai se desfazendo e,
então, o sistema social vai perdendo (ou não vai
adquirindo) aquelas características que o aproximam
das características de um sistema vivo.
Podemos fazer tal suposição sem ter resolvido,
ainda, a espinhosa questão da autopoiese em sistemas
sociais. Como disse Francisco Varela, há um obstáculo,
talvez incontornável, para reconhecer autopoiese stricto
sensu em sistemas sociais, e esse obstáculo se refere à
ausência, nas sociedades, do processo de produção
física de componentes. Mas existem razões suficientes
para dizer que sociedades podem apresentar
características análogas às de um sistema vivo ainda
que não apresentem, do ponto de vista físico, um
processo autopoiético. E existem razões para dizer que
existem sociedades que apresentam características mais
próximas das características de um sistema vivo do que
outras. E que esta diferença de proximidade se refere
aqui ao padrão de organização em rede e ao modo de
regulação democrático. Quanto mais em rede se
organiza uma sociedade e quanto mais democráticos
são seus processos regulatórios, mais próxima, por
assim dizer, ela está de um sistema vivo. Em outras
palavras: quanto mais comunidades existirem numa
sociedade e quanto mais intenso e abrangente for o seu
processo de democratização, mais ela se comporta como
se fosse um sistema vivo, ainda que, a rigor, não o seja
do ponto de vista físico.

467
Para designar esse processo social de
“aproximação” da estrutura e da dinâmica da vida – em
nada separável, para efeitos do presente modo de
olhar, do que chamamos de sustentabilidade –
utilizamos a expressão „comunalidade‟. Comunalidade
é uma comunidade que atingiu um grau de
complexidade tal que a combinação do seu padrão de
organização (em rede) com o seu modo de regulação
(democrático) lhe confere características análogas às da
autopoiese, características inclusive de reprodução.
Como afirmam Margulis e Sagan, “não temos
conhecimento de nada deste mundo capaz de se
reproduzir que não seja autopoiético” (loc. cit.). Ora,
uma comunidade em processo de tornar-se
comunalidade é capaz, em certo sentido, de se
reproduzir – não, por certo, fisicamente, mas
socialmente. O que é reproduzido neste caso é o Capital Social
– as redes e o seu dinamismo baseado em cooperação ampliada e
auto-regulada – impulsionando a criação e replicação de novas
redes e inter-redes em outros rincões da sociedade. Neste
sentido metafórico poder-se-ia afirmar que as
comunalidades são sistemas autopoiéticos, mas não se
poderia afirmar que (todos os tipos de) sociedades
humanas o são, nem mesmo em sentido metafórico.
Para resumir. Vivemos em sociedades de
dominação, características do padrão civilizatório
patriarcal. Nesse tipo de sociedade não podem se
estabelecer comunalidades a não ser através da brecha

468
aberta pela invenção da democracia e na medida em
que ocorrer o processo de democratização ou
radicalização da democracia – o qual provoca um
alargamento dessa brecha.
A cooperação, característica dos humanos, leva à
constituição de sociedades de parceria, isto é, de
comunidades, mesmo dentro das sociedades de
dominação. Na medida em que aumenta a
complexidade social – isto é, a diversidade, a
organização e a conectividade – se tais comunidades
adotam o padrão de rede e o modo de regulação
democrático, estas redes vão também adquirindo, no
que tange a aspectos organizacionais, tais
características, transformando-se em sistemas
semelhantes a sistemas adaptativos complexos. Se o
modo de regulação acompanhar este processo, ou seja,
se a democracia for sendo democratizada ou
radicalizada no interior dessas comunidades,
transformando a sua dinâmica interna, do ponto de
vista regulacional, num processo cada vez mais
complexo, as comunidades vão se transformando em
comunalidades – ou seja, para usar a expressão de
Jacobs, em “entidades [socialmente] vivas” –
convertendo-se, assim, em coletividades sustentáveis.
A fórmula da comunalidade é, portanto, alguma
coisa como: comunalidade = rede adquirindo
características autopoiéticas + democracia se
radicalizando. As redes constituem o “corpo” e a

469
democracia o “metabolismo” das comunidades. Na
medida em que este “corpo” (ou estrutura) vai se
tornando mais complexo e que esse “metabolismo”
(ou dinâmica) vai se tornando também mais complexo,
assumindo, cada vez mais, um papel auto-regulador, as
comunidades vão se tornando como que entidades
socialmente “vivas”: ou seja, comunalidades.
O Capital Social está implicado nisso tudo, de
vez que é a partir da ampliação social da cooperação
que podem se constituir comunidades, que podem se
tecer redes, que pode ser inventada a democracia e que
podem ter continuidade os processos de
democratização da democracia.
Surgidas comunalidades, mesmo que
perifericamente dentro de sociedades de dominação,
elas passam a se reproduzir. Este é o processo pelo
qual o Capital Social pode se reproduzir socialmente,
transformando por dentro a sociedade.
No centro de tudo está, portanto, a noção de
comunalidade. Capitalizar socialmente uma sociedade é
criar condições para a geração de comunalidades!
Gerar comunalidades é, em outras palavras, para
manter a metáfora com o processo vital, criar
condições para a automanutenção (ou autopoiese), o
crescimento e a reprodução de comunidades, ainda que
sempre se deva tomar algum cuidado com os paralelos
biológicos – mesmo em se tratando, como é o caso, de

470
biologias não mecanicistas, como as de Maturana e
Margulis.

11.3 – Sustentabilidade e comunalidade


A questão da sustentabilidade, em que pesem
recentes esforços de cientistas sociais de conferir um
estatuto próprio das ciências sociais para o conceito, é
uma questão que tem mais a ver com as teorias dos
sistemas – e com uma teoria sistêmica do Capital Social
– do que com as teorias sociológicas clássicas. Diga-se
o que se quiser dizer, sustentabilidade é uma função de
integração, dos múltiplos ciclos de realimentação e das
interações que ocorrem dentro de uma rede. Quando
aplicada à sociedades, “sustentabilidade é uma função
do tipo de dinâmica sistêmica que se instala num
processo de desenvolvimento. Uma dinâmica sistêmica
sustentável se instala quando os fatores de
desenvolvimento interagem em ciclos fechados,
percorrendo círculos virtuosos, ou seja, formando
laços de realimentação de reforço” (11.3: 1). Tudo isso
tem a ver com interações sinérgicas entre vários
fatores, com autocatálise, com congruências
continuamente redesenhadas com o meio, de redes
aninhadas dentro de redes – em suma, com coisas que
o pensamento sociológico tradicional, linear e
mecanicista, não pode nem captar nem compreender.

471
Só pode ser sustentável o que se articula em rede
– com interdependência ao invés de dependência, com
diversidade no lugar de uniformidade, com
flexibilidade e não com fixidez; só pode ser sustentável
o que se autoregula; só pode ser sustentável o que
muda em congruência com o meio; e, portanto, só pode
ser sustentável o que muda.
O que se chama de desenvolvimento sustentável
deveria ser entendido como o processo de mudança pelo qual
uma coletividade humana pode se transformar numa
comunidade sustentável, isto é, numa comunalidade.
Sim, porque desenvolvimento é mudança social, como
veremos no próximo capítulo.

472
12
____________________
Desenvolvimento como
mudança social

Parece já estar suficientemente claro, a esta altura, que


não pode haver nenhuma espécie de desenvolvimento
sem desenvolvimento social. E que desenvolvimento
social corresponde sempre à geração, ampliação ou
reprodução, alteração da composição, em termos de
qualidade e/ou de quantidade, daquilo que se chama
Capital Social.
Se quero constituir sociedade tenho que partir
de um certo patamar de “acumulação” de Capital
Social – ou seja, de cooperação ampliada socialmente;
se quero transformar a sociedade tenho que alterar a
composição, ou a quantidade e a qualidade deste

473
Capital Social. Ora, como vimos anteriormente, tanto o
“acúmulo” quanto a alteração da composição do
Capital Social dependem do padrão segundo o qual o
poder se distribui numa sociedade e do modo como
essa sociedade regula seus conflitos.
Por conseguinte, deveria ter ficado claro que
desenvolvimento implica sempre mudança social em
termos do padrão de organização e do modo de
regulação predominantes existentes numa dada
sociedade. E que, portanto, neste sentido,
desenvolvimento social é, fundamentalmente, um
problema de poder e de política.
Portanto, Capital Social – tal como antecipado
pelo seu principal precursor – é um conceito
essencialmente político. Não se pode gerar Capital
Social sem fazer política e todos os programas de
investimento em Capital Social são, em suma,
programas políticos, ou seja, programas que implicam
alterações de natureza política.
Todavia, as formas pelas quais se processa a
mudança social nas complexas sociedades
contemporâneas são muito diferentes das formas pelas
quais imaginávamos que tal mudança poderia ocorrer,
como veremos a seguir.

474
12.1 – As novas dinâmicas da mudança
social
Dissemos anteriormente que a partir do ano
2000 o debate sobre o Capital Social tende a ser
recolocado, em parte porque o conceito deve ser
reconstruído a partir de outro ponto de vista - o das
teorias da complexidade. Dissemos também que tais
esforços mais atuais se baseiam em pressupostos
lançados ainda na década passada, por exemplo, por
pessoas como Robert Axelrod (1994; 1997), Kenneth
Arrow (1994) e Steven Durlauf (1997) (12.1: 1).
John Durston é um pesquisador que já entrou
nesse novo debate. Sua grande contribuição foi ter
visto “que a teoria dos sistemas complexos adaptativos
ajuda a entender como as instituições humanas podem
operar em níveis de organização que excedem à soma
das atividades individuais das pessoas que as
compõem. De fato, escreve ele, a intenção de explicar
o funcionamento de uma comunidade humana ou de
um mercado em termos de estratégias de decisões
racionais individuais é um exemplo dos limites do
enfoque “subsociologizado”. Pelo contrário, quando se
diz que as redes densas são uma condição necessária
para a emergência do capital social (Coleman, 1990 – cit.
em Portes, 1998), se está tocando em uma qualidade
chave dos sistemas complexos, que ajuda a explicar

475
porque o capital social é uma característica das
comunidades” (Durston, 2000: 23).
“A teoria da complexidade – prossegue Durston
– trata da dinâmica de um sistema baseado em agentes,
como o são todas as sociedades humanas (Cowan et
all., 1994). Nesta visão, os sistemas sociais nunca
tendem naturalmente para o equilíbrio, senão que as
estratégias de múltiplos atores sociais coevoluem
constantemente, as vezes lenta, outras vezes
rapidamente, e as relações e instituições sociais
emergem desta coevolução (Arrow, 1994). O conceito
de equilíbrio dos sistemas econômicos e sociais foi
questionado pelas versões mais recentes desta teoria
dos sistemas adaptativos e complexos baseados em agentes,
aplicável a uma ampla gama de áreas, dos ecossistemas
aos mercados... Esta linha teórica, de desenvolvimento
recente, coloca dois questionamentos, provenientes da
teoria da complexidade, ao conceito de equilíbrio dual
de Putnam e North. Em primeiro lugar, como afirma
Durlauf, a dependência da trajetória [path-dependence] só
se mantém até que o sistema receba um novo impacto”
(Durlauf, 1997) (n. g.) (n. i.). Inicialmente esse impacto
pode até ser limitado, porém se ele consegue modificar
a estrutura de oportunidades de distintos atores, as
mudanças resultantes de comportamento podem
terminar apagando as antigas trajetórias e criando
outras novas. Em segundo lugar, Kenneth Arrow
afirma que a teoria da complexidade demonstrou que

476
as instituições econômicas e sociais não são um
produto de planejamento nem da tendência ao
equilíbrio, mas derivam da evolução simultânea das
estratégias de numerosos agentes que interagem tanto em termos
de colaboração quanto de competição. Portanto, um sistema
pode manter-se estável por um tempo, até que uma
massa crítica de agentes perceba uma mudança, opte
por novas estratégias e descubra como aplicá-las para
que se adaptem às dos demais. Esta mudança de
estratégias pode dar origem a uma etapa de transição
gradual dentro do sistema, na qual uma mudança
institucional muito rápida abre novos caminhos,
contrariamente ao que ocorre no caso das mudanças
lentas, unidirecionais e conservadoras, que se dão
enquanto subsiste a dependência de uma trajetória”
(Durston, 2000: 23).
“O capital social quando está presente é um
atributo destes sistemas sociais, porque influi na
sustentabilidade sistêmica das instituições comunitárias.
Em particular, relações com um forte conteúdo de
intercâmbio cooperativo e de esforço compartilhado
podem contribuir para o fortalecimento do sistema
institucional comunitário” (Durston, 2000: 23).
Durston conclui dizendo: “O capital está no sistema”
(Idem) (n. g.).
Pois bem. A proliferação, conquanto periférica,
das novas comunidades de projeto, locais ou setoriais,
na emergente e complexa sociedade da informação, é

477
capaz de “contaminar” as sociedades em que estão
inseridas, alterando seus padrões de organização e seus
modos de regulação, quer dizer, transformando “por
dentro” essas sociedades. Isso acontece em virtude da
reprodução do Capital Social gerado nessas
comunidades e ampliado em escala social. Ao que
parece é um processo em que pequenos estímulos são
amplificados, por meio de laços de realimentação de
reforço, introduzindo perturbações sistêmicas,
instabilidades que levam à criação de novas formas de
organização. Os acontecimentos novos que
desencadeiam esse processo são mudanças de
comportamento, inicialmente ensaiadas por pequenos
grupos periféricos, mas que podem se ampliar na
medida em que o comportamento desses grupos
consiga gerar padrões auto-replicativos. Nesse caso, o
sistema todo é afetado com grande rapidez, mudando
coletivamente o comportamento de seus componentes.
O que acontece é que, em virtude da existência
da brecha democrática, as sociedades de dominação,
hierárquicas e autocráticas, derivantes do modelo
patriarcal, são perturbadas pela disseminação de novos
comportamentos coletivos baseados na cooperação
socialmente ampliada e auto-regulada – ou seja, por
redes que se tecem e entre-tecem segundo uma
dinâmica que não pode mais ser controlada pelos
antigos modos de regulação.

478
O que está acontecendo hoje, de fato, é que o
avanço das novas tecnologias da informação e da
comunicação está ensejando, com uma amplitude e
uma intensidade jamais vistas na história, a superação
das barreiras do espaço-tempo que impediam a
conexão horizontal entre pessoas e grupos a partir de
propósitos livremente compartilhados e não
possibilitavam processos interativos em tempo real.
Em outras palavras, as ICTs ao quebrarem a
possibilidade de controle a partir de hierarquias
centralizadas, estão sucateando os mecanismos pelos
quais se mantinha o estado de equilíbrio da velha
sociedade, ferindo de morte o seu padrão de
organização e o seu modo de regulação ainda
vigorantes. Evidentemente, dada a prevalência dos
sistemas de dominação, as mudanças do padrão
hierárquico e do modo autocrático não ocorrerão
espontaneamente, apenas por obra das novas
tecnologias, sendo necessário que novos agentes
humanos – ou agentes portadores de novos
comportamentos – almejem e trabalhem pela mudança.
Porém tais agentes não conseguirão produzir tal
mudança sem se articularem, eles próprios, em redes e
inter-redes e na ausência de processos democráticos. E
para que as redes formadas por esses agentes possam
se reproduzir e para que os processos democráticos
que regem suas iniciativas possam se radicalizar e
generalizar, numa velocidade exigida pela mudança,

479
isto é, para que as inovações não sejam absorvidas e
reabsorvidas pelo velho sistema, é preciso aproveitar o
suporte oferecido pelas ICTs.
A mudança já está acontecendo. As maneiras
como estão se articulando diversos segmentos da nova
sociedade civil, do chamado terceiro setor (i. e., nem
Estado, nem mercado) são uma prova disso:
comunidades de projeto de base local (como
territorialidades que adotam visões de futuro coletivas
e implementam projetos integrados e sustentáveis de
desenvolvimento) e de base setorial (como grupos
pacifistas, ambientalistas, feministas etc.) constróem
suas redes e inter-redes, ampliam socialmente a
cooperação e, com isso, difundem e reproduzem novos
comportamentos, lançando os germens de novas
normas sociais. Os governos não possuem mais
nenhum mecanismo para conter a expansão dessas
novas comunidades de projeto, as quais não respeitam
mais as fronteiras entre os países – configurando, no
plano mundial, uma nova sociedade civil global e, no
âmbito dos velhos Estados, embriões daquilo que
Tocqueville chamou de governo civil.
Dentro em breve surgirão comunidades que não
respeitarão mais os modos pelos quais as sociedades de
dominação impedem o livre exercício da imaginação
criadora, subvertendo os esquemas de controle do
saber promovidos pelas elites acadêmico-sacerdotais,
por castas que se condecoram mutuamente com títulos

480
de Masters e Doctors, que reprovam liminarmente como
conhecimento não-válido, inverdade ou heresia, tudo o
que foge dos seus cânones porque não consegue tirar o
“passaporte espistemológico” exigido e aceito. Na
sociedade do conhecimento teremos comunidades de
livres produtores de conhecimentos que se recusarão a
adotar uma atitude genuflexória em relação à tradição.
Essa mudança, aliás, já está acontecendo no
ciberespaço, criando uma nova cultura, não mais
verticalmente subordinada à tradição. Como assinalou
Pierre Levy, “as tradições desdobravam-se na diacronia
da história. Os intérpretes, operadores do tempo, elos
entre as linhagens evolutivas, pontes entre o futuro e o
passado, reatualizavam a memória, transmitiam e
inventavam, num só movimento, as idéias e as formas.
As grandes tradições intelectuais ou religiosas
construíram pacientemente as bibliotecas de
hipertextos às quais cada geração acrescentava seus nós
e seus laços. Inteligências coletivas sedimentadas, a
igreja ou a universidade costuravam os séculos um ao
outro. O Talmude faz medrar os comentários dos
comentários, nos quais os sábios de ontem dialogam
com os da véspera. Longe de deslocar o tema da
“tradição”, a cibercultura o inclina num ângulo de 45
graus para situá-lo na sincronia ideal do ciberespaço. A
cibercultura encarna a forma horizontal, simultânea,
puramente espacial da transmissão. Para ela, o tempo é
uma decorrência. Sua principal operação é conectar no

481
espaço, construir e estender os rizomas do sentido”
(Levy, 1998: 5.3). Segundo Levy a cibercultura
“preserva a universalidade dissolvendo a totalidade. Ela
corresponde ao momento que nossa espécie, pela
planetarização econômica, pela densificação das redes de
comunicação e de transporte, tende a formar uma
única comunidade mundial, ainda que essa comunidade
seja – e quanto! – desigual e conflituosa” (Idem) (n. g.).
Instituições que privatizam Capital Social,
constituídas com base na solidariedade entre iguais,
como a família monogâmica – que erige um muro,
baseado em “laços fortes” (sanguíneos ou genéticos)
para separar os iguais dos diferentes, criando ilhas de
ajuda-mútua contra o mundo exterior – ou como as
corporações, conformadas a partir da identidade de
interesses econômicos, de uns contra outros, também
não deverão permanecer incólumes diante da
ampliação social dos “laços fracos” e extra-econômicos
que sustentam a constituição e permitem a proliferação
de redes e comunidades.
Instituições que produzem Capital Social
“negativo” (ou exterminam Capital Social) como
ordens hieráticas, sacerdotais e militares, que têm a
função de exercer e legitimar a coação e o abuso, quer
pelo impedimento do livre exercício da sexualidade e
da imaginação criadoras, quer pela instauração da
guerra como instituição permanente e pelo uso
sistemático da violência como modo de resolver

482
conflitos terão, pelo que se pode antever, crescentes
dificuldades para se sustentar em sociedades cada vez
mais pervadidas por redes e comunidades produtoras
de Capital Social numa escala ampliada.
Ora, se tudo isso não representa uma mudança
social, aliás de proporção jamais vista na história
conhecida, não sei o que se deva assim chamar.
É óbvio que as dinâmicas (ou os novos modos
de olhar estas dinâmicas) pelas quais ocorrem tais
mudanças são bem diferentes do que rezavam as
cartilhas revolucionárias dos dois últimos séculos. Na
verdade, com exceção do anarquismo e dos utopismos
de inspiração anarquista, o que se chamava de
revolução social era, quase sempre, revolução estatal.
Eram, quase sempre, movimentos hobbesianos –
destruidores e não produtores de Capital Social – pelos
quais almejava-se tomar o poder de Estado para então,
a partir desse poder vertical, impor mudanças numa
suposta estrutura da sociedade. O padrão de
organização, o desenho pelo qual se distribuía o poder
na sociedade permanecia, contudo, inalterado, quando
não se verticalizava, se hierarquizava ainda mais. O
modo de regulação, os processos pelos quais os
conflitos políticos eram resolvidos, permanecia
também inalterado, quando não se autocratizava ainda
mais. As chamadas sociedades pós-revolucionárias do
século XX constituíram, assim, sumidouros de Capital
Social, “buracos negros” que sugavam a matéria

483
cooperativa gerada espontaneamente pelas comunidades
humanas remanescentes em seu seio: nelas não se
permitia as redes, o livre compartilhamento de
propósitos, a liberdade de opinião et pour cause, a
distribuição (horizontal) do poder e o exercício
(dialógico) da política. Não constituíam, assim, nem
mesmo em sentido metafórico, entidades socialmente
“vivas” (ou sustentáveis), mas o oposto disso:
cristalizações, congelamentos de fluxos, coisas que
quebram, deixadas a si mesmas desmancham, que só se
mantêm pela força, pela ininterrupta intervenção das
estruturas verticais de poder. Uma semana sem isso e lá
se foi a Romênia, para dar um exemplo caricatural.
Curiosamente, nas sociedades que, pelo
receituário revolucionário-estatista, deveriam ser
destruídas, ainda que tenham permanecido –
fundamentalmente – com o “corpo” e o
“metabolismo” das sociedades de dominação,
floresceram processos de democratização que
permitiram a geração e a acumulação de Capital Social,
porque a brecha aberta pela democracia ensejou o
estabelecimento de momentos de liberdade nos quais
foram tecidas redes que, embora limitadamente, se
reproduziram. Não foi o capitalismo o responsável por
isso; simplesmente ocorreu que, não sendo proibidos,
surgiram e se expandiram a sociedade civil e o
mercado.

484
Pois bem. Conquanto as memórias das respostas
à clássica questão não sejam as melhores, é inevitável
repetir a pergunta: „o que fazer?‟ para apostar nesta
nova dinâmica da mudança social; ou, em outras
palavras: como investir no Capital Social?

12.2 – Como investir em Capital Social


Antes de mais nada é preciso dizer que investir
em Capital Social, ao contrário do que possa parecer à
primeira vista, não é cuidar dos problemas sociais que
afetam uma sociedade. Disponibilizar, por exemplo,
um conjunto, amplo e eficaz, de programas universais
de saúde e de educação públicas – medidas necessárias
para aumentar o nível do capital humano – não é
suficiente para aumentar o Capital Social. Se fosse
assim Cuba apresentaria um dos maiores estoques de
Capital Social do planeta, e não um dos menores.
Ao contrário do que julgam, ingenuamente, policy
makers e economistas, de governo ou de oposição,
Capital Social não é resultado direto de muito capital
humano ajuntado, pela simples razão de que o „social‟
não é construído pelo somatório dos indivíduos. Ou
seja, há uma função sistêmica, que diz respeito à
natureza do fenômeno social; que, por conseguinte,
determina a natureza do Capital Social; e que, portanto,
define a natureza dos investimentos nesse tipo de
“capital”.

485
A partir do que foi exposto anteriormente é
possível mostrar que constituem programas de
investimento em Capital Social, todos os programas: de
incentivo a formação de redes e de inter-redes;
baseados na parceria; que ampliam uma esfera pública
não-estatal; que descentralizam a gestão, distribuem o
poder de decidir e estimulam o co-governo; e que
democratizam procedimentos.
Um exemplo de uma classe de programas de
investimento em Capital Social pode ser dado pelas
diversas formas de indução ao desenvolvimento local –
baseadas em parcerias entre iniciativas do Estado, do
mercado e da sociedade civil, na articulação intra e
intergovernamental e na convergência e integração das
ações – que tenham como objetivo a conquista da
sustentabilidade. É o caso, por exemplo, do que vem
sendo chamado de Desenvolvimento Local Integrado
e Sustentável – abreviadamente, DLIS. Com efeito, o
DLIS constitui um exemplo típico de uma estratégia
baseada no investimento em Capital Social. Tanto a
concepção do processo de DLIS, quanto as
emergentes especulações sobre seus possíveis
indicadores, revelam que o Capital Social não é apenas
um fator que se deve fortalecer para promover o
desenvolvimento, mas sua variação sinérgica pode ser
capaz de captar a dinâmica sistêmica dos processos de
desenvolvimento que perseguem a sustentabilidade
servindo, portanto, como uma espécie de índice

486
integrado do desempenho e do impacto desses
processos nos seus vários aspectos: econômico,
empresarial e humano, além, é claro, de social (12.2: 1).
Em geral a maior parte dos programas
elaborados ou promovidos e executados pelos
governos ainda estão muito longe desta concepção. Os
programas, sobretudo os programas sociais existentes
em todos os países do mundo ainda são, na sua maior
parte, programas de desinvestimento em Capital Social, ou
seja, são programas: centralizados; baseados
unicamente na oferta estatal, sem exigência de
contrapartidas e sem parcerias; assistencialistas;
administrados por estruturas hierárquico-verticais,
controlados por uma burocracia que se alimenta das
carências que supostamente quer suprir; clientelistas,
que geram dependência dos beneficiários; e rígidos,
que não se deixam afetar pelas inovações que
desencadeiam e que, assim, não modificam seu
desenho original. São programas mortos para
sociedades mortas; ou, em outras palavras, são
programas que impedem a gestação, o nascimento e o
crescimento de comunalidades.
Todos os problemas sociais alvos de programas
sociais são, fundamentalmente, problemas políticos –
problemas de falta de empoderamento, por assim dizer
(na ausência de um termo melhor) – que não podem
ser solucionados sem alterações nos padrões de
organização que canalizam a distribuição do poder

487
numa sociedade e sem alterações nos modos de
regulação pelos quais os conflitos políticos são
resolvidos por default nessas sociedades. Portanto, os
problemas sociais não terão soluções sociais se não
tiverem solução política; em outras palavras, os
problemas sociais não serão resolvidos sem programas
políticos, como o são os programas de investimento
em Capital Social: um conceito, como vimos,
essencialmente político.
Para quem quer investir no Capital Social, não
existe receita, mas se pudesse existir uma orientação
genérica ela seria mais ou menos assim: construa
comunalidades em vários níveis – articulando em rede
pessoas e grupos humanos e praticando formas diretas
e participativas de democracia: isso certamente gerará
Capital Social. Continue fazendo isso e acumulará, cada
vez mais, Capital Social. Articule então inter-redes e
amplie a democracia em tempo real no interior desse
espaço ampliado: isso, certamente, reproduzirá Capital
Social numa escala ampliada.
Quem fizer isso estará construindo condições
para o desenvolvimento com uma eficiência e uma
eficácia muito maiores do que quem estiver
preocupado apenas em impulsionar o crescimento
econômico, promover o aparecimento de empresas ou
distribuir renda por meio de programas
compensatórios estatais – fórmulas que, sobretudo

488
quando praticadas isoladamente, já anunciaram há
muito tempo sua falência.
Quem fizer isso – ou seja, investir em Capital
Social – estará, entretanto, introduzindo uma
perturbação sistêmica, cujo sentido último não é nada
menos do que a transformação da sociedade. Estará
atuando como agente político de uma revolucionária
mudança social, de modo, porém, bastante diferente
do que queriam fazer os revolucionários que deram
plantão nos dois séculos passados.
Porque na era da informação passa a valer o que
chamo (sem autorização do autor) de equação de Castells:
„comunidade-rede-inovação = mudança social‟. Os
processos pelos quais pode se realizar, hoje, aquilo que
chamávamos, ontem, de revolução, são processos de
inovação que introduzem alterações no padrão de
organização (o padrão de distribuição de poder na
sociedade) e no modo de regulação (o modo como os
conflitos são resolvidos nessa sociedade). Inovações
que introduzem perturbações organizacionais e
regulacionais no sistema constituem estímulos que
podem ser amplificados transformando a sociedade
toda – desde que se dêem no sentido da formação de
redes e da radicalização da democracia.

489
Epílogo

A sociologia é uma disciplina datada: ela nasce


para tentar descrever e compreender as mudanças –
verificadas nas normas sociais – decorrentes da
passagem de uma “onda” civilizatória para outra, vale
dizer, das sociedades agrícolas para as sociedades
industriais. Como assinala, com razão, Francis
Fukuyama, “virtualmente todos os grandes pensadores
sociais do final do século XIX – inclusive Tönnies,
Maine, Weber, Emile Durkheim e Georg Simmel –
dedicaram suas carreiras à explicação da natureza dessa
transição” (Fukuyama, 1999: 21). Ora, no dealbar do
século XXI vivemos outro tipo de mudança – para
uma sociedade pós-industrial, da informação e do
conhecimento – que está modificando velozmente as
normas sociais que funcionavam no período histórico
anterior. A mudança em que estamos imersos na

490
atualidade altera não só o desenho da sociedade
contemporânea como, também, torna impotentes os
esquemas teóricos voltados, fundamentalmente, para
explicar a passagem de gemeinschaft para gesellschaft:
Agora trata-se de explicar, entre outras coisas, a volta a
novos tipos de gemeinschafts, características da
sociedade-rede, num mundo interligado, sem-distância,
por miríades de unidades co-presentes. Parece evidente
que a dinâmica a ser desvendada passa a ser outra e
que a sociologia tradicional, iluminista, querendo
surpreender mecanismos, mais ou menos fixos, ocultos
por trás das aparências dos fenômenos sociais, não seja
mais adequada para captar quase nada disso.
As novas teorias do Capital Social acabarão por
substituir a velha sociologia – uma disciplina do século
XIX – desde que, de fato, consigam fornecer sistemas
explicativo-analíticos capazes de captar a complexidade
das sociedades humanas contemporâneas e de
compreender as relações que configuram seus
dinâmicos padrões organizacionais. Trata-se, agora,
não apenas de desvelar supostas „estruturas‟ ocultas,
mais ou menos fixas, infra ou sobre-determinadas por
fatores econômicos, de um lado, e político-ideológicos
e culturais, de outro – por meio das quais interagiriam
„forças sociais‟ para produzir certas variedades de
fenômenos – e sim de reconhecer padrões de relações
capazes de gerar comportamentos coletivos de agentes
sistêmicos.

491
Tudo indica que esta matéria passará, daqui para
frente, às mãos de antropólogos do ciberespaço, de
investigadores da complexidade social a partir das
teorias da complexidade – como a teoria do caos – e,
possivelmente, dos novos teóricos do Capital Social,
ou seja, daqueles que lançarão mão dos novos recursos
conceituais fornecidos pelas ciências contemporâneas
para tentar compreender os significados inéditos da
transição atual, não mais como frutos de causações e
determinações provocadas por algum mecanismo, mas
como funções sistêmicas ligadas aos padrões de
organização e aos modos de regulação prevalecentes,
que se referem ao “corpo” e ao “metabolismo” das
novas comunidades emergentes, como, aliás, já haviam
pressentido os dois principais precursores do conceito
de Capital Social: Alexis de Tocqueville e Jane Jacobs.

492
Notas
________________

(1.3: 1) Não penso que a ciência lida com a verdade, que


seja possível ao conhecimento científico alcançar uma
certeza absoluta e final ou fornecer uma compreensão
completa e definitiva da realidade, seja lá o que isso for.
Mas ainda que todas as elaborações teóricas que
compõem as hipóteses científicas sejam provisórias e
todos os dados obtidos experimentalmente sejam
aproximados e, portanto, não se possa estabelecer uma
correspondência exata entre as descrições e os
fenômenos descritos, penso que as descrições fornecidas
pela ciência devam revelar padrões de comportamento,
teias de relações que não são apreensíveis pelo olhar não
científico. Não imagino que as descrições fornecidas pela
ciência sejam puramente objetivas, i.e., independentes
dos sujeitos que as constróem. O processo de
conhecimento implica uma interação entre objeto e
sujeito, entre fenômeno e observador, entre a coisa que
está sendo estudada e as elaborações construídas para
descrever seu comportamento. O conhecimento é o
resultado dessa interação e, portanto, a maneira como

493
conhecemos condiciona o que conhecemos, se mistura
com o que conhecemos, de sorte que não se pode, a
rigor, separar o processo de conhecimento da descrição
que resulta desse processo. De certo modo todo
conhecimento é criado pelo conhecedor e o próprio
objeto do conhecimento – supondo que este objeto
exista independentemente do sujeito que conhece – é
recriado como objeto conhecível pela interação com o
sujeito.

(1.3: 2) Restaria saber se um conhecimento pode ser


considerado objetivo, ou seja, válido não apenas para um
sujeito mas para qualquer sujeito nas mesmas
circunstâncias, porque captou um padrão de
comportamento de uma realidade que existe por si
mesma, independentemente da existência de
observadores, ou porque o processo de conhecimento
implicado naquele conhecimento gerou um padrão de
reconhecimento que é identificado por quaisquer
observadores nas mesmas circunstâncias. Em outras
palavras, ao compartilharem o mesmo conhecimento de
um objeto os conhecedores estão validando a
objetividade do conhecimento, de tipo científico, sobre
um objeto ou estão apenas se reconhecendo como
observadores do mesmo tipo - o tipo científico de
conhecedores de objetos? Mas vamos deixar de lado essa
questão, que está longe de ser trivial, para enfocar,
voltando ao texto principal, o que deveríamos chamar de
ciência hoje.

494
(1.3: 3) Muito embora envolva uma abstração que só
tenha sido formalizada matematicamente por Euler (o
conceito de 'F'), de vez que Newton trabalhava com a
idéia de vis motrice impressae, ou seja, impulsão ('F. t',
onde t é o intervalo de tempo em que a força F atua,
porém ele não separava o F do t e isso é muito
relevante tanto para uma análise de fundamentos, quer
dizer, para uma discussão semântica sobre o status dos
constructs da mecânica newtoniana, quanto para o debate
epistemológico sobre o tipo de conhecimento que pode
ser obtido pela física).

(1.4: 1) E que algumas vezes apresentam um


comportamento caótico quando olhadas isoladamente.

(2.4: 1) Na minha opinião deve-se também usar o


argumento de que a consciência de que uma perturbação
que ocorra com um dos nodos de uma rede pode ser
amplificada por laços de realimentação, afetando a rede
toda, é a base de uma consciência de comunidade, para
concluir, como fiz em outro lugar, que a consciência de
comunidade é uma consciência da interdependência,
quer dizer, a consciência de que o “sucesso” de todos
depende do “sucesso” de cada um e vice-versa (ver
Franco, 2000a: 54). Outro caminho possível seria, talvez,
tomar o ponto de vista ético tradicional, que parte do
indivíduo, para mostrar que confiança, reciprocidade e
cooperação são valores cujo exercício requer um "senso
de dever moral que pressupõe uma forma de vida em
comum que inclua um acordo sobre os fins" (Xavier,
1997). Como qualquer ética ou moralidade isso

495
pressupõe, por sua vez, um marco comunitário e
envolve uma forma qualquer de vida compartilhada.

(2.5: 1) Durston, ao que eu saiba, tem sido uma das


poucas pessoas a perceber esta natureza sistêmica do
Capital Social, que ele chama de “capital social
comunitário”, distinto de um suposto “capital social
individual”. Segundo ele, “o capital social individual se
manifesta principalmente nas relações sociais que a
pessoa tem, com conteúdo de confiança e reciprocidade, e se
expande através de redes egocentradas. O capital social
coletivo ou comunitário, em contraste, se expressa em
instituições complexas, com conteúdo de cooperação e
gestão” (Durston, 2000: 21). Mas penso que não se
deveria adotar tal distinção, entre um capital social
individual e, outro, coletivo. Ou, se quisermos admitir a
existência desse aspecto individual do Capital Social –
que pode ser apropriado pelo indivíduo em seu próprio
benefício e acumulado individualmente “como crédito...
na forma de reciprocidade difusa que pode ser reclamada
em momentos de necessidade a outras pessoas para as
quais [tal indivíduo] realizou... serviços e favores em
qualquer momento no passado” (Idem) – penso que se
deveria mostrar melhor a sua relação intrínseca com o
Capital Social comunitário, ou seja, com aquele que diz
respeito a “normas e estruturas que conformam as
instituições de cooperação grupal... que tendem a
produzir a satisfação de necessidades... [coletivas] a um
custo menor do que em forma individual, ou que seria
impossível produzir de outra maneira... [e que] não é
propriedade de ninguém...” (Idem-idem: 22) (n. i.). Se a
relação intrínseca entre as duas coisas não for mostrada,

496
então estamos falando de duas coisas, quer dizer, não
estamos falando de um mesmo conceito. Voltaremos
ainda a esse ponto.

(2.6: 1) Bordieu define Capital Social como um


"agregado de recursos, reais ou potenciais, ligados à
posse de uma rede durável de relações, mais ou menos
institucionalizadas, de reconhecimento mútuo" (Bordieu,
1985). E Coleman fala de "recursos sócio-estruturais que
constituem um ativo de capital para o indivíduo e
facilitam certas ações de indivíduos que estão dentro
dessa estrutura" (Coleman, 1990).

(3.1: 1) Por exemplo, diz-se que segundo Robert


Putnam, Jane Jacobs (1961) foi a primeira pessoa a usar
a expressão 'Capital Social' no livro "Morte e Vida das
Grandes Cidades Americanas". Mas Francis Fukuyama
(1995: 384n.), que fez o registro acima, em "Confiança:
as Virtudes Sociais e a Criação da Prosperidade", refaz a
referência, quatro anos depois, em "A Grande Ruptura:
a Natureza Humana e a Reconstituição da Ordem
Social" (1999: 31), dizendo que "a expressão capital social
foi pela primeira vez utilizada por Lyda Judson Hanifan
em 1916, para descrever centros comunitários de escolas
rurais". Já o próprio Putnam (1993: 241n.), em "Making
Democracy Work: Civic Traditions in Modern Italy", diz que
James Coleman (1990), em "Foundations of Social Theory",
"atribui a Glenn Loury (1977; 1987) a introdução do
conceito". Ou seja, há um “disse-que-disse” sobre as
fontes meio generalizado entre os pesquisadores.

497
(3.1: 2) Ainda se deveria lembrar aqui de Albert
Hirschman (1977; 1982; 1984).

(3.1: 3) Além do próprio Portes, já citado, Patrícia


Landolt (1996), Jonathan Fox (1996), J. Hagan, R.
MacMillan e B. Wheaton (1996), Stephan Knack e Philip
Keefer (1996), Margaret Levi (1996), Jimy Sanders e
Victor Nee (1996), Michael Schudson (1996), John Clark
(1996); James Putzel (1997), John Harriss e Paolo de
Renzio (1997), M. Foley e R. Edwards (1997), I.
Kawachi, B. Kennedy e K. Lochner (1997), Stephan
Baas (1997), Hedy Nai-Lin Chang (1997), Kenneth
Newton (1997), Jay Teachman, Kathleen Paasch e Karen
Carver (1997), Partha Dasgupta (1988 – segundo
Gambetta, 1988 cit. por Putnam, 1993; e 1997 – segundo
Fukuyama, 1999), Gabriel Salazar (1998), Michael
Woolcock (1998), Vicente Espinoza (1998), Larissa
Lomnitz (1998), Paul Bullen e Jenny Onyx (1998), James
Joseph (1998), Ismail Serageldin (1998), E. Wall, G.
Ferrazzi e F. Schryer (1998), John Durston (1999; 2000),
Seymor Lipset e Gabriel Lenz (1999) e Bernardo
Kliksberg (1998; 1999; 2000), entre outros.

(3.1: 4) Por exemplo, por pessoas como Robert Axelrod


(1984; 1994; 1997), Kenneth Arrow (1972; 1974; 1988;
1994), Arthur Brian (1988) e Steven Durlauf (1997). É
necessário lembrar também de todos os estudiosos da
confiança e dos chamados dilemas da ação coletiva,
como Diego Gambetta (1988) e Michael Taylor (1976;
1982) – em especial da teoria dos jogos, como o já citado
Axelrod e Robert Sugden (1986).

498
(4.6: 1) Confira Dasgupta, Partha. “Trust as a commodity”
in Gambetta, Diego (ed.). “Trust: making and breaking
cooperative relations”. Oxford, Blackwell, 1988; pp. 50-1 –
cit. por Putnam, 1993: 180n.

(4.6: 2) Confira Williams, Bernard. “Formal structures and


social reality” in Gambeta (op. cit.: pp. 8.12) – cit. por
Putnam, 1993: 181n. Putnam acrescenta que “Glenn
Loury observou que a dependência em relação à
confiança pessoal pressupõe que os indivíduos não
sejam igualmente confiáveis, ao passo que a confiança
social pressupõe que a estrutura da situação seja mais
importante do que o caráter pessoal” (Putnam, 1993:
243).

(4.8: 1) Confira Granovetter, Mark (1985). “Economic


action and social structure: the problem of embeddedness”,
American Journal of Sociology 91: 498, nov. 1985 – cit. por
Putnam, 1993: 243.

(4.9: 1) Na verdade tratam-se de teses estatistas. Putnam


assinala que “estudiosos do desenvolvimento político
[como Samuel Huntington, 1968] também já haviam
afirmado anteriormente que a mobilização social e a
participação política das massas reduzem a estabilidade e
a eficácia das instituições governamentais” (Putnam,
1993: 245) (n. i.).

499
(4.13: 1) Essa discussão da distinção entre “sociedades de
parceria” e “sociedades de dominação”, já colocada por
outros pesquisadores, será recolocada por mim no
capítulo 8. Por enquanto é bom registrar que qualquer
coisa como o que Putnam chama de “cultura política” se
baseia sempre num “paradigma civilizatório”. No caso
das culturas políticas predominantes em sociedades de
dominação – ou hierárquicas, como ele escreveu – este
paradigma (de tradicionalidade) de fato verticalizou o
mundo, “povoando” todo o universo simbólico com
formas que não concorrem para o estabelecimento de
um cosmos social isotrópico mas, pelo contrário,
privilegiam a direção vertical.

(5: 1) Desconfio que muito pouca gente leu – ou leu


até o fim, ou compreendeu – o famoso “The End of
History and the Last Man” (1992). Na verdade o livro
sucedeu a um artigo publicado no verão de 1989, no The
National Interest, no qual Fukuyama cometeu a
imprudência de falar em “fim da história” e, mais ainda,
de consignar a expressão no título da obra. Para
acadêmicos da esquerda ou oriundos da esquerda, que
transformaram o marxismo de “profissão de fé” em
profissão mesmo, isso não pode representar nada menos
do que uma ameaça às suas carreiras, e ameaça baseada
numa heresia suprema. Porque a história (muitas vezes,
mal-disfarçadamente com „H‟ maiúsculo) cumpre a
função, na visão mítica marxiana da história esposada
por essas pessoas, de um substituto para a Providência
derrocada. A tal ponto que boa parte desses intelectuais
que compraram “O Fim da História”, se não foram
capazes de chegar de fato “ao fim da história”, não

500
deixaram por isso de proferir seus prematuros
julgamentos.

(5.7: 1) Confira Glendon, 1991: 47-75 – cit. por


Fukuyama, 1999: 176n.

(5.13: 1) Fukuyama esclarece, em outro lugar, que “os


chamados recursos comuns que são divididos nas
comunidades – recursos como pastagens, locais de
pesca, florestas, água do subsolo, o ar que respiramos –
constituem problemas de cooperação especialmente
difíceis porque eles estão sujeitos àquilo que Garret
Hardin [1968] chamou de “a tragédia do que é comum”
(Hardin, 1968: 1243-8 cit. por Fukuyama, 1999: 200).
Esses recursos comuns são bens públicos que podem ser
gozados por um grupo de pessoas, independente do
esforço individual aplicado à sua criação ou manutenção
e estão sujeitos a externalidades positivas ou negativas
(um indivíduo que ceva um rio beneficia não só a si
mesmo, mas também a qualquer outro que lá pesque;
por outro lado, ele pode poluir o rio e impor um custo
social ao restante da comunidade)” (Fukuyama, 1999:
200) (n. i.).

(6.1: 1) Uma teoria da cooperação baseada nas idéias de


Maturana pode ser tentada sobretudo a partir da
“Biologia do Fenômeno Social” (1985a), um pequeno
texto, basilar, publicado originalmente em alemão, e dos
seguintes trabalhos: “De Máquinas e Seres Vivos.
Autopoiesis: a organização do vivo” (1973) com Francisco
Varela García; “A Árvore do Conhecimento” (1984),

501
com Francisco Varela; “Herança e Meio Ambiente”
(1985b), material docente inédito, escrito com Jorge
Luzoro G.; “Ontologia do Conversar” (1988a);
“Linguagem e Realidade: a origem do humano” (1988b),
conferência organizada pela Sociedade de Biologia do
Chile em 3 de novembro de 1988; “Um olhar sobre a
educação atual da perspectiva da biologia do
conhecimento” (1988c), publicado na coletânea
“Emoções e Linguagem em Educação e Política” (1990);
“Linguagem, Emoções e Ética na Atividade Política”
(1988d), publicado na coletânea acima, da qual também
consta um capítulo intitulado “Perguntas e Respostas”
(e) e uma “Epítome” (f), ambas, suponho, da mesma
data; “O Sentido do Humano” (1991), coletânea de
entrevistas, prefácios, cartas, conferências e artigos –
sobretudo as entrevistas “Onde?” (1989a), “Conviver
para Conhecer” (1990a), “Convivência, aceitação e
criatividade” (1991a), e “Um novo propósito de
convivência” (1991b), o prefácio a “O Cálice e a
Espada” (1990b), a carta “Quando se é humano?”
(1990c), a conferência “Fundamentos Matrísticos”
(1989b) e os artigos “Utopia e Ficção Científica” (1990d)
e “Iniciativa Planetária: a paz [vista] de fora da guerra”
(1988e); “Amor e jogo: Fundamentos Esquecidos do
Humano. Do Patriarcado à Democracia” (1993),
coletânea de textos, alguns com Gerda Verden-Zöller,
que começaram a ser escritos em 1988 – sobretudo a
“Introdução” e o “Epílogo e Reflexões Finais” (de
ambos) e as “Conversações Matrísticas e Patriarcais” (de
Maturana); e “A democracia é uma obra de arte” (s. d.),
alocução em uma mesa redonda organizada pelo
Instituto para o Desenvolvimento da Democracia Luís
Carlos Galán, da Colômbia, da qual possuo agora apenas

502
uma cópia da cópia que me foi entregue pessoalmente
pelo autor, infelizmente sem data; e, por último, o
prefácio de Humberto Maturana à segunda edição da
versão em espanhol do “De Máquinas e Seres Vivos.
Autopoiese: a organização do vivo”, intitulado “Vinte
Anos Depois” (1994).

(6.7: 1) Deve-se examinar, por exemplo, a obra mais


recente de Robert Wright, 2000: “Nonzero” e também o
seu livro anterior “The Moral Animal” (1994).

(6.8: 1) Ver capítulo 8 e (4.13: 1).

(8.2: 1) Há um vasto conjunto de sumeriologistas – ou


de autores que escreveram sobre a Suméria ou sobre a
Mesopotâmia antiga – ao qual o leitor pode recorrer se
estiver realmente interessado em se aprofundar no
assunto. A lista é por demais exaustiva e por amor a
brevidade não vou expô-la aqui com as referências
completas. Além de Samuel Noah Kramer, Albright e
Amiet. Barton, Billerbeck, Borger, Bosanquet, Breasted e
Buren. Campbell, Chiera, Childe e Contenau. De
Morgan, Deimel e Delaporte. Ebelin, Epping e Erman.
F. Jean, Falkenstein, Finegan, Forbes, Fossey e
Frankfort. G. Smith, Gordon, Gray, Gressman, Gurney
e Güterbock. Hall, Harper, Hartner, Heidel, Heinrich,
Hilprecht, Hommel e Horne. J. Smith, Jacobsen,
Jastrow, Jensen e Jeremias. King e Kugler. Lambert,
Landesberger, Langdon, Leemans, Lengruber e
Luckenbill. Martin, Martiny, Maspero, Millard e Moret.

503
Neugebauer. Ollwight, Oppenhein e Oppert. Pallis,
Parrot, Pinches, Poebel, Polyhistor, Price e Pritchard. R.
C. Thompson, Radau, Rawlinson, Redslob e Reiner.
Sarton, Sayce, Scheil, Schlobies, Schneider, Scholtz,
Shileiko, Sin, Sitchin, Soden, Stechini e Strassman.
Thomas e Thureau-Danging. Virolleaud. Waerden,
Watelin, Weidner, Weissbach, Winckler, Witzel, Wood e
Woolley. Zimmer. E pode consultar também Adams,
Baumann, Beek, Bergh, Bermant, Bibby, Black, Bottero,
Braidwood, Brice, Brinkman, Burney, Carter, Collon,
Cooper, Crawford, Curtis, Dalley, Ellis, Fagan, Frankel,
Gabriel, Glubok, Grayson, Hartman, Hauptmann,
Herrmann, Hirmer, J. e D. Oates, Johansen, Kleiss,
Kupper, La Fay, Larsen, Lloyd, Mallowan, Matthiae, Mc
Call, Mellaart, Metz, Moorey, Moortgat, Nissen, Parpola,
Perkins, Pettinato, Piotrovskii, Porada, Postgate, Powell,
Reade, Redman, Ringgren, Roaf, Roux, Safar, Saggs,
Singh, Sollberger, Stolper, Strommenger, Teissier, Weiss,
Wilford, Winstone e Wolkstein. Para quem o tempo é
escasso recomendo, a leitura das seguintes obras de
Kramer: “Emmerkar and the Lord of Aratta” (1952); “From
the Tablets of Sumer” (1956); “Sumerian Mythology” (1961);
“The Sumerians” (1963) e a coletânea “Mythologies of the
Ancient World” (1961); ou, pelo menos, o “History Begins
at Sumer” (1959), citado no texto e referido na
bibliografia.

(8.4: 2) Ver Dupuis, Jacques (1987). “Au nom du père, une


histoire de la paternité”; p. 97.

504
(8.5: 1) Ver Schmookler, Andrew Bard. “O
reconhecimento de nossa cisão interior” in Zweig,
Connie e Abrams, Jeremiah (1991). “Ao Encontro da
Sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza
humana”; pp. 211-4.

(8.5: 2) Ver (11.1: 2).

(9.3: 1) AED – Agência de Educação para o


Desenvolvimento é um programa público brasileiro com
o propósito geral de aumentar a capacidade de gestão e a
capacidade de empreender de micro e pequenas
empresas, governos locais e organizações do terceiro
setor, sobretudo quando inseridos em processos de
desenvolvimento integrados e sustentáveis. A AED é
constituída pelo SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio
a Micro e Pequenas Empresas em parceria com a
Comunidade Ativa da Casa Civil da Presidência da
República, com o PNUD – Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento, com a UNESCO –
Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura e com a ARCA – Sociedade do
Conhecimento, uma Organização da Sociedade Civil de
Interesse Público. Para maiores informações consulte os
sites www.aed.org.br e www.aed-arca.org.br.

(9.3: 2) “Considerando a construção de uma rede social


(isto é, composta por indivíduos ou grupos de
indivíduos, organizados em instituições ou não),
podemos elencar alguns elementos fundamentais para o

505
desenho e o funcionamento de uma rede, sem os quais
ou bem a articulação não se trata de rede ou bem a rede
existirá de maneira parcial ou insuficiente: I - Valores e
objetivos compartilhados: o que une os diferentes membros de uma
rede é o conjunto de valores e objetivos que eles estabelecem como
comuns. Aqui vale ressaltar a distinção que Célia Schlithler
faz entre agrupamento e grupo, para compreender que
não basta a existência de objetivos comuns para se
constituir rede, mas uma orientação comum em relação
a determinados objetivos. Schlithler dá o exemplo de um
agrupamento de pessoas numa fila de ônibus: todas
compartilham o mesmo objetivo (tomar o ônibus), mas
não se constituem propriamente num grupo.
Compartilhar objetivos é condição necessária mas não
suficiente para construir uma rede; para além disso é
necessário comungar valores e um modo de
funcionamento em rede. II - Autonomia: cada integrante
mantém sua independência em relação à rede e aos demais
integrantes. Numa rede não há subordinação. Este talvez
seja o principal elemento dificultador dos processos de
articulação que se auto-denominam redes. Para muitos
projetos (e muitas lideranças), a autonomia é
insuportável (às vezes, a autonomia de outrem; outras
vezes, a própria autonomia). Na rede, cada nó vale ao
mesmo tempo por dois: possui e preserva sua própria
identidade (seus propósitos específicos, seu modus
operandi, sua política) e representa e agencia o projeto
coletivo da rede. Sua relação com os demais parceiros é
de eqüidade e parceria. O reconhecimento é de que o
outro é um igual e, ao mesmo tempo, diferente. Não
pode haver subordinação. A rede funciona pela
cooperação entre diferentes. III - Vontade: ninguém é
obrigado a entrar ou permanecer numa rede. O alicerce da rede

506
é a vontade. IV - Participação: a cooperação entre os integrantes
de uma rede é o que a faz funcionar. Uma rede só existe
quando em movimento. Sem participação, deixa de
existir. Ou a rede nasce de um legítimo e reconhecido
desejo de participação e de construção ativa de um
projeto coletivo ou não é rede. A organização em rede
não se impõe como “modelo organizacional” de cima
para baixo. Praticamente, o “modelo” emerge como
decorrência da interconexão de entes autônomos e que
preservam sua autonomia. Como a rede é fruto da
vontade coletiva, deixa de existir quando essa vontade
morre. Curiosamente, a rede é um ser que nem sempre
busca perpetuar-se. V - Multiliderança: uma rede não possui
hierarquia nem chefe. A liderança provém de muitas fontes.
As decisões também são compartilhadas. VI -
Descentralização: uma rede não tem centro. Ou melhor, cada
ponto da rede é um centro em potencial. A mágica do
funcionamento em rede tem um nome bastante
conhecido no universo das estruturas verticais de gestão,
mas aqui é devidamente resgatada em seu significado
original: a coordenação. Numa rede, a ordem é sempre
co-produzida pelos parceiros; decisões são co-decididas.
Lideranças diversas coabitam o mesmo espaço-tempo da
rede, cuja estrutura lhes fornece as condições e os
pressupostos (valores e objetivos compartilhados) para
orientar as tomadas de decisão. Cada integrante da rede
tem um nível de poder, enquanto a rede toda detém
todo o poder. A capilaridade e extensão da rede
impedem qualquer tentativa de controle central por um
só integrante, mesmo porque, em rede, todos já são
empoderados por definição, e não há concessão ou
delegação de poder a outrem, pois não é preciso. VII -
Múltiplos níveis: uma rede pode se desdobrar em múltiplos níveis

507
ou segmentos autônomos, capazes de operar independentemente do
restante da rede, de forma temporária ou permanente, conforme a
demanda ou a circunstância. Sub-redes têm o mesmo "valor
de rede" que a estrutura maior à qual se vinculam. Como
não há poder central, os pressupostos são partilhados e
as decisões circulam, as ações (e seus efeitos) que se
realizam em parte da rede são o resultado de toda a rede.
A rede imprime a qualidade do todo em cada mínima
parte. Por isso, uma parte, um subconjunto ou um nível
da rede mantêm os mesmos atributos constitutivos da
rede inteira. Parte da rede, por inércia dos membros,
pode morrer. Se outra parte vive, vive a rede inteira”
(Martinho, 2001).

(9.3: 3) Citado em Lipnack e Stamps (1986: 190-1).

(10.5: 1) Talvez seja possível mostrar que a tensão entre


autocratização e democratização aparece de várias
formas na história das sociedades humanas, sendo uma
delas a forma de tensão entre competição e cooperação.
Seria muito útil se isso pudesse ser feito pois poria um
remate nessa besteira, tão repetida, de que o homem por
natureza é simultaneamente – porque "originalmente" –
competitivo e cooperativo. Admitir tal axioma de
ideologia moral seria, então, como admitir que as
sociedades humanas são inerentemente – porque
"originalmente" – autocráticas e democráticas a um só
tempo. O que pareceria um absurdo, de vez que a
autocracia foi uma construção cultural tardia, assim
como a democracia também o foi, e mais tardia ainda

508
porquanto nasceu como uma afirmação da liberdade
humana diante da autocracia.

(11.1: 1) No prefácio de Humberto Maturana à segunda


edição da versão em espanhol do “De Máquinas e Seres
Vivos. Autopoiese: a organização do vivo”, intitulado
“Vinte Anos Depois”, ele escreve que “desde a primeira
publicação deste livro, tem-se formulado a possível
existência de sistemas autopoiéticos em outros âmbitos
fora do domínio molecular. Esta pergunta não se deve
responder de forma singela. Certamente, é possível
distinguir, entre os seres vivos, sistemas autopoiéticos de
diferentes ordens, segundo o domínio no qual estes se
efetuam. Em tal distinção, as células são sistemas
autopoiéticos de primeira ordem enquanto elas existem
diretamente como sistemas autopoiéticos moleculares, e
os organismos somos sistemas autopoiéticos de segunda
ordem, pois somos sistemas estabelecidos como
agregados celulares. Sem dúvida, é possível falar de
sistemas autopoiéticos de terceira ordem ao considerar,
por exemplo, o caso de uma colméia, ou de uma colônia,
ou de uma família ou de um sistema social como sendo
um agregado de organismos. Porém, ali o autopoiético
resulta do agregado de organismos e não é definitório ou
próprio da colméia, ou da colônia, ou da família, ou do
sistema social, como a classe particular de sistema que
cada um desses sistemas é. Ao destacar e colocar ênfase
no caráter autopoiético de terceira ordem de tais
sistemas, quanto tal autopoiese é de fato algo
circunstancial em relação à constituição de seus
componentes, e não os que os define como colméia,
colônia, família, ou sistema social, o próprio de cada um

509
deles como sistema fica oculto. Assim, por exemplo,
ainda que é indubitável que os sistemas sociais sejam
sistemas autopoiéticos de terceira ordem pelo simples
fato de serem sistemas constituídos por organismos, o
que os define como o que são, enquanto sistemas
sociais, não é a autopoiese de seus componentes, mas a
forma de relação entre os organismos que os compõem,
e que notamos na vida cotidiana no preciso instante em
que os diferenciamos em sua singularidade como tais ao
usar a noção de “sistema social”. O que não se pode
esquecer nem deixar de lado, é que estes sistemas
autopoiéticos de ordem superior se realizam através da
realização da autopoiese de seus componentes. Além disso,
temos que reconhecer que também podem realizar-se
sistemas autopoiéticos de ordem superior que sejam ao
mesmo tempo sistemas autopoiéticos de primeira ordem
em seu próprio direito. É possível que isso aconteça
com muitos organismos, se os processos moleculares
transcelulares e intracelulares, que os realizam, resultam
em seu conjunto estabelecendo uma rede autopoiética
molecular de primeira ordem que se intercepta com a
realização das “autopoiesis” moleculares particulares,
próprias das diferentes células que os compõem. Se este
fosse o caso, os organismos existiriam como totalidades
autopoiéticas em dois domínios de fenômenos
diferentes, e estariam sujeitos, em sua realização como
tais, à conservação simultânea de duas dinâmicas
autopoiéticas de primeira ordem diferentes, uma a
celular de seus componentes, e a outra a orgânica
sistêmica de sua condição de totalidade. O mesmo
aconteceria com os sistemas que chamamos sociais, se
eles fossem também, como totalidades, entes
autopoiéticos de primeira ordem, coisa que em minha

510
opinião não o são. Tampouco os sistemas sociais são
sistemas autopoiéticos em outro domínio que não seja o
molecular. Sem dúvida, não o são no domínio orgânico,
já que nesse domínio o que define o social são relações
de conduta entre organismos. Também não o são, ou
poderiam sê-lo, em um espaço de comunicações, como
propõe o distinguido sociólogo alemão Niklas Luhmann,
porque em tal espaço os componentes de qualquer
sistema seriam comunicações, não seres vivos, e os
fenômenos relacionais que implicam o viver dos seres
vivos, que de fato destacamos na vida cotidiana ao falar
do social, ficariam excluídos. Eu diria ainda mais que um
sistema autopoiético, num espaço de comunicações, é
semelhante ao que distinguimos ao falar de uma cultura”
(Maturana, 1994: 10-20).

11.1: 2 A contribuição de Margulis (juntamente com


Lovelock), denominada hipótese Gaia, sofreu – e ainda
sofre – muitas restrições por parte do pensamento
científico oficial. “Gaia... é um nome conveniente para
um fenômeno que abrange toda a Terra: o ajuste de
temperatura, acidez/alcalinidade e composição gasosa.
Gaia é a série de ecossistemas em interação que
compõem um simples e enorme ecossistema na
superfície da Terra... não é um único organismo... não é
uma noção vaga e exótica de uma mãe Terra que nos
acalenta. A hipótese Gaia é ciência. Conforme
pressuposto na teoria Gaia, há poucas formas pelas quais
a superfície do planeta se comporta como um sistema
fisiológico. Entre os aspectos fisiologicamente
controlados estão a temperatura superficial e a
composição dos gases reagentes, inclusive o oxigênio, e

511
pH ou acidez-alcalinidade” (Margulis e Sagan, 1998: 113-
4.116). A reação à hipótese Gaia, na verdade, é uma
reação ao padrão de rede, um apego – tradicionalista – à
concepção de controle centralizado por um chefe ou
cérebro central (mainframe). Com efeito, os críticos de
Gaia dizem “que nenhum ser planetário pode agir de
forma consensual se não tiver controle consciente...
[mas] Gaia, como a rede entrelaçada de toda vida, está
viva, atenta e consciente em vários graus, em todas as
suas células, corpos e sociedades. De forma semelhante
à propriocepção, os padrões de Gaia parecem ter sido
planejados, mas ocorrem na ausência de qualquer
“chefe” ou “cérebro” central” (Idem: 118.9) (n. i.). O
que parece estar em jogo aqui não é somente o
conteúdo, substantivo, da hipótese científica de Margulis
e Lovelock, mas os modelos mentais de um padrão de
organização hierárquico e de um modo de regulação
autocrático, próprios das sociedades de dominação.

(11.3: 1) “Desenvolvimento sustentável é aquele que leva


à construção de comunidades humanas sustentáveis, ou
seja, comunidades que buscam atingir um padrão de
organização em rede dotado de características como
interdependência, reciclagem, parceria, flexibilidade e
diversidade. Observar como as características acima
comparecem nos ecossistemas para tentar estabelecer
seus "correspondentes" nas comunidades humanas é
uma tarefa que... a rigor, talvez não possa mesmo ser
feita sem que se avance na compreensão mais geral do
comportamento dos sistemas complexos organizados
em rede... Os esforços empreendidos nos últimos anos
pelos que trabalham com a chamada Agenda 21 Local

512
estão baseados na idéia de que a conquista da
sustentabilidade passa pela implementação local de
processos de desenvolvimento orientados por princípios
que, em suma, expressam se não todas pelo menos
algumas das características mencionadas acima. Em
geral, entretanto, não se verifica todas as implicações do
que a aplicação desses princípios significaria em termos
de ampliação do próprio conceito de sustentabilidade.
Pode-se dizer que a interdependência – a dependência
mútua de todos os processos que ocorrem num sistema
complexo que adota como padrão organizativo o de
uma rede autopoiética – tende a se manifestar nas
coletividades humanas que possuem um ethos de
comunidade. Somente num contexto de comunidade se
pode ascender à consciência do papel, vital para a
continuidade do sistema, que cumprem as múltiplas
relações que se estabelecem entre seus membros. A
consciência de que uma perturbação que ocorra com um
dos nodos de uma rede pode ser amplificada por laços
de realimentação afetando a rede toda é a base de uma
consciência de comunidade. A consciência de
comunidade é uma consciência da interdependência,
quer dizer, a consciência de que o sucesso de todos
depende do sucesso de cada um e vice-versa. É possível
sustentar, o que não se fará aqui por motivos de espaço,
que a interdependência constitui uma característica
atribuível às comunidades que resolvam assumir a
universalização da cidadania como principio orientador
da sua prática social. Da mesma forma, processos que
incorporem a característica da reciclagem podem ser
mais facilmente planejados no âmbito local. No âmbito
local podemos ter a visão de que padrões sustentáveis de
produção e consumo devem ser cíclicos para ser

513
sustentáveis, tendendo para um padrão de emissão zero de
resíduos, ou seja, fazendo com que os resíduos de uma
atividade produtiva se transformem em insumos para a
atividade produtiva seguinte, conservando, assim, as
condições ambientais herdadas. É quase automática a
conclusão de que a reciclagem constitui uma
característica atribuível às comunidades que resolvam
assumir um processo de desenvolvimento
comprometido com a conquista da sustentabilidade. As
relações de parceria – que se manifestam por meio da
tendência para formar associações, para estabelecer
ligações, para cooperar – também podem ser melhor
celebradas em comunidades, onde cada parceiro conhece
as possibilidades e as necessidades dos outros parceiros.
Nas localidades onde ocorrem processos de
desenvolvimento baseados em parcerias entre múltiplos
atores governamentais, empresariais e sociais, pode-se
dizer, metaforicamente é claro, que os parceiros
coevoluem, estabelecendo entre si relações em que todos
ganham. Um sistema será sustentável na medida da sua
flexibilidade e da sua diversidade. O papel da diversidade
está estreitamente ligado com a estrutura em rede do
sistema. Um sistema diversificado será flexível, pois
contém muitas partes com funções sobrepostas que
podem, parcialmente, substituir umas às outras. É
possível sustentar, o que também não se fará aqui, que
flexibilidade e diversidade constituem características
atribuíveis à comunidades humanas que resolvem
assumir a radicalização democrática da sua esfera
pública. Não é usual que se tente estabelecer algum tipo
de nexo conotativo entre sustentabilidade e democracia
e cidadania como sugerimos acima. Em geral tais
conceitos são justapostos ou elencados em conjunto

514
numa lista de exigências para a transição para um novo
padrão de desenvolvimento aceitáveis pelos defensores
do desenvolvimento sustentável, mesmo por aqueles que
apreendem sustentabilidade nas suas acepções mais
estritas de sustentabilidade ambiental ou por aqueles que
tomam este conceito vulgarmente, como sinônimo de
durabilidade de entes ou processos ambientais, sociais,
econômicos, culturais, político-institucionais etc. Ocorre
que, na concepção destes últimos, talvez não possa
mesmo existir relação conotativa alguma entre tais
conceitos” (Franco, 2000a: 50-6 )

(12.2: 1) Uma apresentação sumária de uma teoria do


DLIS poderia ser feita assim. Desenvolvimento local é o
fenômeno pelo qual tornam-se dinâmicas
potencialidades locais por meio da interação de fatores
humanos, sociais, econômicos, físicos e ambientais. Local
é qualquer âmbito sócio-territorial delimitado pela
permanência de um campo estável de interação de
agentes humanos. Todo desenvolvimento pode ser
encarado como desenvolvimento local. Potencialidades são
predisposições para a realização de certos domínios de
ações. Potencialidades diferentes indicam distintos
domínios de ações possíveis. Potencialidades locais
dizem respeito à diversidade: se todos os locais fossem
iguais, não faria sentido o conceito de desenvolvimento
local e, a rigor, nem de local. Potencialidades locais
podem ser encaradas como vantagens relativas ou
comparativas, quer dizer, de uma localidade em relação a
outras localidades. Fatores do desenvolvimento são cinco
tipos de recursos que podem ser encarados como
diferentes formas de capital: o Capital Humano (H), o

515
Capital Social (S), o Capital Empresarial (E), o Capital
Tradicional ou Renda (R) e o Capital Natural (N). „H‟ se
refere a recursos associados à disponibilidade de
conhecimento e à distribuição da capacidade de criá-lo e
recriá-lo (envolvendo, portanto, a saúde, a alimentação e
a nutrição, a educação, a cultura e a pesquisa). „S‟ se
refere aos recursos associados à existência de redes de
conexão entre pessoas e grupos que promovem a parceria
(i.e., o reconhecimento mútuo, a confiança, a
reciprocidade, a solidariedade e a cooperação) e o
empoderamento (ou seja, à democratização do poder que se
efetiva com o aumento da possibilidade e da capacidade
das populações influírem nas decisões públicas). „E‟ se
refere aos recursos associados à distribuição da riqueza,
ou seja, à democratização do acesso à propriedade
produtiva. „R‟ se refere aos recursos associados ao
produto (PIB) e à distribuição da renda. „N‟ se refere aos
recursos ambientais herdados e à capacidade de utilizá-
los, conservá-los dinamicamente, regenerá-los e recriá-
los. Desenvolvimento Local Integrado é uma classe de
dinâmicas sistêmicas que se instala quando ocorrem, em
determinada localidade, num dado intervalo de tempo,
variações positivas, simultâneas ou sucessivas,
correlacionáveis, dos fatores de desenvolvimento.
Existem muitos tipos de dinâmicas sistêmicas, que
podem se instalar num processo de desenvolvimento,
caracterizadas pela natureza dos ciclos formados pelas
interações entre os fatores de desenvolvimento.
Teoricamente podem existir ciclos abertos e ciclos
fechados; ciclos completos (envolvendo todos os fatores
de desenvolvimento) e ciclos incompletos; ciclos lineares
(envolvendo cada fator de desenvolvimento apenas uma
vez) e ciclos complexos e reverberantes ou de

516
autoreforço (envolvendo cada fator de desenvolvimento,
salteadamente, mais de uma vez, ou com repetição
seqüencial). Nas localidades realmente existentes onde
ocorrem processos de desenvolvimento todos os ciclos
são complexos. Sustentabilidade é uma função do tipo de
dinâmica sistêmica que se instala num processo de
desenvolvimento. Uma dinâmica sistêmica sustentável se
instala quando os fatores de desenvolvimento interagem
em ciclos fechados, percorrendo círculos virtuosos, ou
seja, formando laços de realimentação de reforço.
Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável (DLIS) se refere
apenas a uma subclasse de dinâmicas sistêmicas (da
classe do Desenvolvimento Local Integrado)
caracterizada pela instalação de ciclos completos
fechados (círculos virtuosos). O DLIS pretende produzir
um diferencial resultante da sinergia ensejada pelo
processo, simultâneo ou sucessivo, num dado intervalo
de tempo, de investimento em todos os fatores do
desenvolvimento. A variação positiva de cada fator do
desenvolvimento deve ser maior - ao final de um dado
intervalo de tempo em que ocorreram investimentos em
todos os fatores - do que o investimento direto realizado
no respectivo fator. Para induzir a instalação do tipo de
dinâmica sistêmica que constitui o DLIS utiliza-se uma
metodologia, lato sensu (por simplificação por vezes
também chamada de DLIS), capaz de promover o
investimento simultâneo ou sucessivo, em um dado
intervalo de tempo, em todos os fatores do
desenvolvimento. O processo de investimento em todos
os fatores do desenvolvimento só gerará um diferencial
resultante de sinergia se responder a demandas
articuladas entre si em função da coerência com um eixo
orientador do desenvolvimento escolhido pelos agentes

517
do sistema social local onde está sendo implementada a
metodologia do DLIS. O eixo orientador do desenvolvimento é
resultante da escolha, feita pelos agentes locais, de uma
vocação principal da localidade. A escolha da vocação
principal é feita, no decorrer de um processo de
planejamento participativo, a partir da opção por um
caminho de desenvolvimento que expresse o desejo de
futuro da localidade, desde que este caminho tenha se
revelado viável a partir de um processo de diagnóstico
participativo que identifique condições favoráveis à sua
escolha. Condições favoráveis à escolha de uma vocação
são potencialidades que podem ser dinamizadas. A
indução promovida pela metodologia do DLIS prevê, em
seqüência não necessariamente imediata, entre outras, as
seguintes ações: formação de um fórum de DLIS,
composto por agentes locais (ou similar) encarregado de
coordenar todo o processo de DLIS na localidade;
elaboração participativa de um plano de
desenvolvimento local a partir de um diagnóstico
participativo local; elaboração de uma proposta de
agenda de prioridades locais (ou similar) extraída do
plano de desenvolvimento local; negociação, entre o
fórum de DLIS e organizações governamentais e não
governamentais de todos os níveis, da proposta de
agenda de prioridades locais e conseqüente celebração
de um pacto de desenvolvimento local com base na
agenda negociada; implementação da agenda pactuada; e,
como ações finais do processo (de indução ao DLIS) -
oferta de microcrédito produtivo e instituição de uma
agência autônoma de desenvolvimento na localidade ou
microregião. A metodologia do DLIS visa induzir a
instalação de ciclos completos fechados com as
seguintes características: seqüências iniciais SH ou HS;

518
seqüências terminais ER-S ou ER-H; pelo menos uma
seqüência intermediária SE. (Excluído o fator 'N',
teoricamente o ciclo completo fechado mais simples que
responde aos objetivos da metodologia do DLIS seria o
ciclo linear HSER-H. Em ordem de complexidade
crescente, os ciclos que a metodologia do DLIS quer
induzir seriam (excluído sempre o fator 'N'): com cinco
elementos, SHSER-S e HSSER-H; com seis elementos:
SHSSER-S e HSSSER-H; SHHSER-S e HSHSER-H;
SHESER-S e HSESER-H; SHRSER-S e HSRSER-H;
com mais de seis elementos teremos ciclos e multi-ciclos
fechados dos tipos: SH...SER-S e HS...SER-H;
SH...SE...HER-S e HS...SE...HER-H; SH...SE...EER-S e
HS...SE...EER-H; SH...SE...RER-S e HS...SE...RER-H.).
O DLIS pode, assim, ser interpretado, principalmente,
como um programa de investimento em Capital Social e
em Capital Humano - daí o requerimento das seqüências
iniciais SH ou HS - que espera como resultado a
instalação de laços de realimentação positiva nestas duas
variáveis, segundo as seqüências terminais ER-S e ER-H.
O DLIS espera a geração (endógena) de renda (e não
apenas a transferência exógena de renda), coisa que só
pode se dar, de modo sustentado, se houver realização
da propriedade produtiva enquanto tal - daí a exigência
da presença da mesma seqüência ER nas seqüências
terminais. O DLIS exige pelo menos uma seqüência
intermediária SE, o que significa que ele parte da
premissa de que o Capital Social é necessário à
prosperidade econômica; em outras palavras, há aqui a
hipótese de que um incremento do Capital Social (S) é
necessário para induzir, por efeito de sinergia, um
incremento correspondente de Capital Empresarial (E),
segundo uma proporção que não se pode conhecer a

519
priori em termos genéricos. Considerando que todos os
ciclos realmente existentes são complexos, qualquer ciclo
fechado completo terá repetição de S, o que significa que
em todos os ciclos (realmente) possíveis que atendem às
exigências do DLIS (expostas acima), haverá pelo menos
um epiciclo fechado em S (retroalimentação de S) e/ou
um autoreforço de S. Isso significa, por sua vez, que se o
DLIS, como foi dito, é um programa de investimento em Capital
Social e em Capital Humano, ele também é um programa de
indução do desenvolvimento baseado, fundamentalmente (em última
e irredutível instância), na capacidade do Capital Social de criar
ambientes favoráveis à sinergia; ou ainda, em outras palavras, de
desencadear fluxos sinérgicos que tornam possível o crescimento
sucessivo (e no limite simultâneo) de todos os fatores do
desenvolvimento.

520
Bibliografia

A lista abaixo, organizada em ordem alfabética e, quando


mais de um de seus ítens se refere a um mesmo autor ou autora,
por ordem de prioridade das primeiras edições mais antigas dos
livros ou artigos citados (expondo-se sempre o ano entre
parêntesis, após o prenome do autor ou autora), contém um
material considerável para qualquer pesquisa teórica sobre o
conceito de Capital Social, seus pressupostos e suas implicações.
Pode ser muito útil. Com otimismo, afirmo que, se não pude ler
a maioria das obras elencadas aqui, boa parte das quais já
consegui reunir, guardo o propósito de fazê-lo nos próximos
dez anos.

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O autor

Completei meio século de existência em meados do ano 2000.


Mas não cheguei até aqui em movimento retilíneo uniforme.
Aos 14 anos apaixonei-me pela Teoria da Relatividade,
depois de adotar, como uma espécie de missal, uma obra de
divulgação sobre a cosmologia einsteiniana, adquirida por meu
pai na feira do livro que acontecia todo o inverno na Cinelândia,
no Rio de Janeiro. Me lembro bem porque fazia frio naquela
noite de junho de 1964.
Aos 18 anos ingressei no Instituto de Física da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Leite Lopes, o antigo
diretor, acabara de ser cassado pela Ditadura Militar. Alexandre
Sérgio da Rocha, o novo diretor – um heterodoxo físico teórico
admirador da filosofia sankhia – me apresentou ao meu
primeiro mestre em filosofia da ciência: Plínio Sussekind Rocha.
Plínio era kantiano e um kantiano do tipo de Bertrand Russell
(não o dos “Problemas da Filosofia”, de 1912, mas o Russell da
maturidade, de “O Conhecimento Humano”). Plínio, Alexandre,
um outro professor da física, Sérgio Murilo Abraão e mais dois
colegas: Marco Antônio Sperb Leite e Fernando Buarque de
Nazaré – formamos uma espécie de grupo de filosofia, que se

548
reunia semanalmente na casa do primeiro (que também fora
cassado pela Ditadura e vivia num apartamento cheio de livros
até o teto, na Cruz Vermelha) e na sala do segundo, no Fundão,
de onde comandávamos a resistência contra os professores que
estavam voltando dos USA para implantar uma pós-graduação
em Estado Sólido e Física de Partículas. Nós não gostávamos de
nada disso. Cosmologia, Mecânica Teórica, Lógica,
Fundamentos da Física, Teoria do Campo – eram a nossa praia.
Éramos os teóricos, os filósofos, contra os experimentalistas.
Durante este tempo dediquei-me também à militância
estudantil, o que me valeu, juntamente com outras atividades
menos ortodoxas ainda, uma saída de cena, para o Sul de Minas,
durante o governo Médice. Voltei, casado com Raquel, ao Rio e
à UFRJ, no final de 1974. Lecionei em vários colégios. E na falta
de qualquer perspectiva política, mudei-me para Goiás em 1977,
onde fiquei até 1988. Em Goiás, vivi com o povo da terra numa
periferia durante 7 anos. Retomei o trabalho político, fundei
uma ONG que produzia textos de educação política. Nessa
periferia, na época uma favela, nasceu Mariana, minha primeira
filha. Nessa época também publiquei meu primeiro livro:
“Autonomia e Partido Revolucionário” (1985), um
questionamento à teoria leninista da organização.
Em 1988 fui para São Paulo, dirigir a Fundação Nativo
da Natividade e, depois, dediquei-me integralmente a atividades
político-partidárias não-clandestinas, as quais já desenvolvia
desde 1981: ao todo fiquei 14 anos envolvido com essa história
de direção de partido (legal). Isso tudo me cansou bastante,
tanto que, já no início da década de 90, comecei a “viajar” por
outros temas. Publiquei, em 1990, “A Nova Geração: Crise e
Reflorescimento”, um livro sobre o papel desempenhado pelos
mitos na estruturação dos padrões coletivos de apreensão do
mundo e de ação sobre o mundo.

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Vim para Brasília às vésperas do ano novo de 1992,
fundei o Instituto de Política em 1993, juntamente com Roberto
Aguiar, à época diretor do Centro de Estudos Avançados e
Multidisciplinares da UnB. Publiquei, em 1995, “Ação Local: A
Nova Política da Contemporaneidade”, em 1997, “O Novo
Partido: a Crise da Forma-Partido Tradicional e o Surgimento
de Novos Sujeitos Políticos na Sociedade Brasileira”, em 2000,
“Porque precisamos de Desenvolvimento Local Integrado e
Sustentável” e “Além da Renda: A Pobreza Brasileira como
Insuficiência de Desenvolvimento”. Em setembro de 2000
comecei a escrever um outro livro, chamado “Capital Social”,
que esperava terminar ainda no primeiro trimestre de 2001 e que
agora, em junho, afinal, vem à luz.
Publiquei nos últimos 8 anos muitos artigos e outros
livros que, por amor a brevidade, não mencionarei aqui. Em
1994 e 1995 desempenhei o papel de Secretário-Executivo
Nacional da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela
Vida (que ficou conhecida como Campanha da Fome ou
Campanha do Betinho). Por causa disso, trabalhei articulado
com o antigo Conselho Nacional de Segurança Alimentar
(CONSEA) no Governo Itamar Franco e, depois, logo no
dealbar do Governo Fernando Henrique, fui nomeado
Conselheiro no Conselho da Comunidade Solidária, onde
conheci Ruth Cardoso. Com Ruth e Miguel Darcy de Oliveira
componho hoje o Comitê Executivo deste Conselho.
Entrementes, fui consultor de muitas instituições
internacionais e nacionais, participei de muitos projetos
governamentais e não-governamentais, ajudei a elaborar ou a
coordenar novos programas, dentro os quais quero citar a
Interlocução Política do Conselho da Comunidade Solidária –
que gerou, entre outras coisas, a Nova Lei do Terceiro Setor
(Lei 9790/99) e a estratégia de indução ao Desenvolvimento
Local Integrado e Sustentável (Programa Comunidade Ativa).

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No SEBRAE, sob a direção do amigo Sérgio Moreira, ajudei a
montar o programa de desenvolvimento local (PRODER-
Especial) e, desde 1999, a AED – Agência de Educação para o
Desenvolvimento. A partir do Instituto de Política, juntamente
com Juarez de Paula e outros amigos, coordenei a articulação do
Fórum Brasil Século XXI – um longo processo que começou,
em 1993, na UnB, compreendeu várias conferências e
articulações nacionais e que teve sua formalização no “Encontro
Ano 2000” (que ocorreu em Brasília entre 10 e 13 de agosto).
Meu tempo em Brasília, felizmente, está durando
bastante e espero que continue assim. Conheci muitas pessoas,
fiz muitas amizades e vivi belos amores e um que perdura, se
aprofunda e me parece definitivo. Durante este tempo, aliás,
nasceu, em Minas, minha primeira neta, Catarina, filha de uma
outra filha que tive com Raquel, em 1981, Maria Augusta. Tive
ainda, com Isabel, uma filha que agora está com oito meses,
Helena, linda. E quero ter mais alguns filhos ou filhas.
Meu interesse teórico e prático se volta, atualmente, para
a elaboração e a disseminação de um novo paradigma de
desenvolvimento para o século XXI – baseado na priorização
dos investimentos em capital humano e em Capital Social – e
para a articulação de uma nova alternativa política que se afaste
tanto do estatismo, regressivo e contra-liberal, quanto do
chamado neoliberalismo; uma nova via, comprometida com a
radicalização da democracia, a universalização da cidadania e a
conquista da sustentabilidade. Continuo, entretanto, apaixonado
pela cosmologia einsteiniana, mas isso agora parece estar se
transformando, cada vez mais, num amor platônico.

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