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A Arte de Questionar

Rabino Lord
Jonathan Sacks
Introdução

A festa judaica de Pêssach, na qual recordamos nos-


sa jornada rumo à liberdade, é o ritual religioso
mais antigo observado ininterruptamente no mundo.
No decorrer dos séculos, Pêssach nunca perdeu seu po-
der de inspirar a imaginação de sucessivas gerações de
judeus com seu drama revivido anualmente, represen-
tando a passagem da escravidão para a liberdade.
Pêssach é uma festa vibrante e rica em experiências,
tais como comer a matsá, o pão não fermentado da
aflição, e experimentar o maror, as ervas amargas da
opressão. É um ritual praticado não somente na sina-
goga, mas em casa, no seio da família. A noite do Sêder
não é centrada somente no passado; tem a educação
das novas gerações como um de seus focos. A própria
narrativa da Hagadá é construída em resposta às per-
guntas de uma criança – as quatro famosas perguntas
do Ma nishtaná – e, logo em seguida, traz a passagem
que descreve os quatro tipos de filhos e seus diferentes
enfoques sobre a noite do Sêder.
Ao examinarmos minuciosamente o texto dos ca-
pítulos 12 e 13 do Livro do Êxodo (Shemot), quando
Moisés reuniu o povo para avisar que eles finalmente
seriam libertados, nota-se que o tema de seu discurso
eram a nova geração, a educação e o futuro distante.
Enquanto outros líderes talvez preferissem falar sobre
preocupações mais imediatas, as de Moisés eram em
relação ao futuro a longo prazo do povo de Israel.
Ao longo desses dois capítulos, Moisés cita esse
tema três vezes: “E quando teus filhos te perguntarem:
Que rito é este para vós?” (Êxodo 12:26); “E anuncia-

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rás a teu filho naquele dia, dizendo: Por isto o Eterno
me fez sair do Egito” (ibid. 13:8) e “E quando teu filho
amanhã te perguntar, dizendo: Que é isto?” (ibid 13:14).
Moisés não falou sobre liberdade, mas sobre edu-
cação. Ao agir assim, estava enfatizando um ponto fun-
damental. Pode ser difícil escapar da tirania, mas é ain-
da mais difícil construir e manter uma sociedade livre.
O judaísmo é um fenômeno raro: uma fé basea-
da em fazer perguntas – algumas vezes profundas e
difíceis – que parecem abalar as verdadeiras bases da
própria fé. É uma religião que carrega em seu âma-
go a educação dos filhos. Não existe responsabilidade
maior para qualquer pai.
Ao longo da nossa história como judeus, nos vi-
mos espalhados entre as nações do mundo. Confronta-
dos com perseguições, assimilação e diversos desafios
que ameaçaram a nossa existência, provamos ser um
povo obstinado. Somos um povo que não somente su-
pera os obstáculos como, apesar deles, ainda prospera.
Por que isso ocorreu? Porque sabemos que para de-
fender um país é necessário um exército, mas para defen-
der uma civilização é preciso educação. Nossa liberdade
como povo não vem do ambiente físico no qual vivemos;
muito pelo contrário, nossa liberdade começa com o que
ensinamos aos nossos filhos. É por isso que os judeus
se tornaram um povo com paixão pela educação, cujos
heróis são professores e cujas fortalezas são as escolas.
Em nenhuma outra ocasião isto fica mais evidente
do que em Pêssach, quando todo o ritual de transmissão
da nossa história para a próxima geração é estabeleci-
do por meio de perguntas feitas por uma criança. A
lição central de Pêssach é muito simples: encoraje seus
filhos a perguntar e lhes ensine a história da liberdade,
se você quiser que eles nunca a esqueçam.

Rabino-Chefe Lord Jonathan Sacks


A Arte de QuestIonAr
“E quando teus filhos te perguntarem:
Que rito é este para vós?” (Êxodo 12:26)

S ócrates (469 - 399 a.e.c.), o grande filósofo grego,


mentor de Platão, tinha o hábito de fazer perguntas
desconcertantes. Até os dias de hoje o questionamento
persistente em busca de esclarecimento é denominado
método socrático. Devido a esse hábito e a outras coi-
sas mais, ele foi levado a julgamento pelos atenienses,
acusado de corromper os jovens, e sentenciado à morte.
Nada é mais distinto do que o que aprendemos no ju-
daísmo, onde ensinar os jovens a questionar é uma ca-
racterística essencial de Pêssach, a ponto de a Hagadá – a
narrativa – ter de ser feita em forma de resposta a uma
pergunta formulada por uma criança. Se não houver
uma presente à cerimônia, os adultos devem fazer as
perguntas uns aos outros. Se uma pessoa estiver comen-
do sozinha, ela deve perguntar a si mesma. No judaísmo,
a ausência de perguntas não é um sinal de fé, mas de
falta de profundidade. No que diz respeito à criança que
não sabe como perguntar, deve-se ensiná-la a fazê-lo.
Muitos dos costumes da noite do Sêder, como mergulhar
a salsa em água salgada e remover ou repor a bandeja do
Sêder, foram estabelecidos justamente para despertar a
curiosidade dos mais jovens e fazê-los perguntar “por
quê?”. O judaísmo é uma religião de perguntas.
Abraham Twerski, psiquiatra norte-americano, con-
ta que, quando era pequeno, seu professor ficava muito
feliz ao ouvir suas perguntas e dizia que quanto mais
perguntas, melhor. Quando confrontado com uma per-
gunta difícil, ele falava com seu inglês arranhado: “Você
tem razão! Você é 100% razão! Agora eu vou mostrar onde você

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errado.” O físico judeu ganhador do prêmio Nobel, Isi-
dore Rabi, explicou certa vez como sua mãe o levou a
ser cientista: “Todas as outras crianças, ao chegarem da
escola, ouviam a seguinte pergunta: ‘O que você apren-
deu hoje?’ Minha mãe, porém, costumava perguntar:
“Isinho, você fez uma boa pergunta hoje?’” Na ieshivá,
local onde se estuda o Talmud, o melhor elogio que um
professor pode dar a um aluno é dizer “Du fregst a gutte
kasha” – “você levantou uma boa questão”.
E como nasceu essa paixão judaica pelas perguntas?
Isso claramente decorre do fato de Moisés citar três
vezes na Torá a indagação dos mais jovens em busca
de explicações sobre uma prática religiosa, e ainda no
versículo que diz: “E contarás a teu filho naquele dia,
dizendo...” Juntos, esses quatro versículos são a base
do conceito dos quatro filhos mencionados na Hagadá.
Educação não é doutrinação. É ensinar a criança a ser
curiosa, a meditar, refletir e perguntar.
Todo aquele que pergunta torna-se parceiro no
processo de aprendizado. Ele não é mais um recep-
táculo passivo daquele ato, mas um participante ativo.
Perguntar é crescer.
No entanto, fazer perguntas no judaísmo é mais
do que isso – é algo tão profundo que representa um
fenômeno religioso sui generis. Os heróis da fé fizeram
perguntas a Deus, e quanto maior o profeta, mais difícil
era a sua pergunta. Abrahão perguntou: “Aquele que é
o Juiz de toda a terra, não fará justiça?” Moisés inda-
gou: “Senhor, por que fizeste mal a este povo?” Jeremias
questionou: “Tu é justo, ó Eterno, e não posso conten-
der Contigo, entretanto Contigo arrazoarei: Por que
prospera o caminho do malvado?, Por que se sentem
seguros os que agem traiçoeiramente?” O Livro de Jó, o
maior de todos os questionamentos sobre o sofrimento
humano, é um livro de perguntas feitas por um homem;
perguntas às quais Deus responde com quatro capítulos
de perguntas formuladas por Ele mesmo. Os primeiros

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sermões (conhecidos como Ielamdênu) surgiram a partir
de perguntas de um membro da congregação ao rabino.
Um dos estilos clássicos da literatura rabínica é chamado
de Sheelot utshuvot – “perguntas e respostas”. Perguntar
está no âmago da espiritualidade judaica.

A fé religiosa é encarada muitas vezes como ingê-


nua, cega e submissa. Porém, não é esse o caminho
judaico. Judaísmo não é supressão da inteligência críti-
ca. Não há equivalente judaico da famosa máxima do
pensador cristão Tertuliano: Certum est quia impossibile
est – “Acredito porque é impossível.” Muito pelo con-
trário: questionar é uma expressão profunda de fé na
capacidade de compreender o universo e o significado
da vida humana. Perguntar é acreditar que em algum
lugar existe uma resposta. O fato de as pessoas terem
devotado suas vidas ao longo da história para ampliar
as fronteiras do conhecimento é um testemunho pun-
gente do espírito humano e de seu desejo constante de
seguir em frente, mais alto, mais fundo. A nossa fé não
exclui perguntas; muito pelo contrário, as perguntas
testemunham a fé – a história não ocorre por acaso, o
universo não é impossível de ser compreendido. O que
acontece não está baseado numa sorte cega. Pergunta-
mos não porque duvidamos, mas porque acreditamos.

Há três tipos de perguntas que correspondem, cada


uma delas, a um aspecto distinto de Deus, da huma-
nidade e da busca intelectual. A primeira pertence à
esfera de chochmá – sabedoria –, que inclui a indagação
científica, histórica e sociológica. O Rashi interpreta a
famosa frase referente à criação do homem – “à Nossa
imagem e semelhança” – como uma alusão ao “poder
de compreender e discernir”. O Homo sapiens é a úni-
ca criatura capaz de formular a questão “Por quê?”.
Maimônides inclui a compreensão científica e filosó-
fica como parte do mandamento de amar e temer a
Deus, porque quanto mais se compreende o universo,
mais isso inspira o temor a Deus e mais o Arquiteto do
mundo é revelado. Os Sábios estabeleceram uma bên-
ção especial a ser proferida quando se vê um erudito
que se destaca por seu conhecimento (“Bendito sejas
Tu... que concedeste da Tua sabedoria ao ser huma-
no”). O primeiro pedido que fazemos na oração diária
chamada Amidá é “concede-nos o Teu dom da sabedo-
ria, da compreensão e do conhecimento”. A dignidade
humana está intimamente relacionada à nossa habilida-
de de sondar os eventos do Universo em seus aspectos
natural e social. Chochmá é o encontro com Deus atra-
vés da Criação. Tendo feito o homem à sua imagem,
Deus, o Criador, dotou a humanidade de criatividade.
O segundo tipo de pergunta é aquela que fazemos
sobre a Torá, como as quatro perguntas que abrem o
Sêder: “Por que essa noite é diferente das demais?” “Por
que fazemos isso e não aquilo?” “Qual é a razão desta
lei?” Uma das características mais surpreendentes do
hebraico bíblico é que, apesar de a Torá estar repleta
de mandamentos – 613 no total –, não existe nenhuma
palavra bíblica que significa “obedecer”. Em vez disso,
a Torá utiliza a palavra shemá, que significa “ouvir e es-
cutar, refletir, internalizar e responder”. Deus não quer
obediência cega, mas uma resposta que seja fruto da
compreensão. Moisés fala aos israelitas que os manda-
mentos são “a vossa sabedoria e o vosso entendimento
à vista dos povos”, o que implica que eles são acessíveis
à razão humana. Em um momento histórico crucial da
educação para adultos, Ezra, ao retornar da Babilônia,
reúne o povo em Jerusalém e lê publicamente a Torá
com a ajuda dos levitas, cujo trabalho era “esclarecer e
explicar o significado para que o povo pudesse compre-
ender o que estava sendo lido”. O sagrado sábio Hilel,
conhecido por sua gentileza para com todos, apesar des-
se seu traço de caráter, disse: “Uma pessoa ignorante
não pode ser pia.” Quanto mais perguntamos, sonda-
mos e compreendemos a Torá, mais somos capazes de
internalizar seus valores e aplicá-los às novas situações.
A Torá é o encontro revelado com Deus.
Sem dúvida alguma, uma das perguntas mais sin-
gulares do judaísmo e mais associadas à tradição pro-
fética é sobre justiça: Por que coisas ruins acontecem
às pessoas boas? Por que tão frequentemente o mal
parece triunfar? E por que existe tanto sofrimento
e injustiça no mundo? Karl Marx chamou a religião
de “ópio do povo”. Ele acreditava que a fé recon-
ciliava as pessoas com a condição negativa de vida,
com a pobreza, com a doença e com a morte; com a
“penúria da vida”, com a submissão a governadores
tirânicos e com o simples fato de que a vida pode
ser um tipo de desolação, algo válido para a maioria
das pessoas durante a maior parte do tempo. Para
ele, a fé era meramente uma espécie de anestésico
capaz de fazer o insuportável se tornar tolerável, e
que ensinava as pessoas a aceitar as coisas do jeito
que são, porque essa era a vontade de Deus. A re-
ligião, ele argumentava, é o meio mais poderoso já
concebido para manter as pessoas em seu lugar. Ela
difundira a aura da inevitabilidade com relação a um
destino arbitrário. Assim, para que o mundo pudesse
ser transformado – ele argumentava –, a religião pre-
cisava ser abandonada.
Nada poderia ser menos verdadeiro no que diz res-
peito ao judaísmo – uma fé que nasceu quando Deus li-
bertou Seu povo dos grilhões da escravidão. A questão
que ecoa através da história do judaísmo – de Abrahão
a Jeremias, de Jó ao Midrash rabínico, do lamento me-
dieval à prece chassídica – não é de aceitação, mas sim,
de protesto contra a injustiça. Há algumas perguntas
que são respondidas com uma resposta. Mas há outras
que só são respondidas com um ato. Quando se per-
gunta “por que o justo sofre?”, não é com uma simples
explicação que vamos nos reconciliar com as pedras e
flechas que a sorte ultrajante nos lança, e sim, dirigin-
do-nos a Deus com um pedido de atitude por parte
Dele, e, neste processo, descobriremos que Deus pede
de nós a mesma coisa.
Três episódios ocorreram no começo da vida de
Moisés: ele viu um egípcio atacando um judeu e inter-
veio. Ele viu dois israelitas brigando e interveio. Ele viu
pastores não judeus maltratando a filha não judia de
Jetró e tomou uma atitude. Ser judeu é estar preparado
para agir frente as coisas erradas. Quando pergunta-
ram ao Rabino Chaim de Brisk qual era o trabalho de
um rabino, ele respondeu: “Reparar a tristeza daqueles
que estão abandonados e sozinhos, proteger a digni-
dade do pobre e salvar o oprimido das mãos de seu
opressor.” O judaísmo é o ponto de interrogação de
Deus contra as crueldades aleatórias do mundo. É o
Seu chamado para que “consertemos o mundo”, até
que ele se torne um local digno da Presença Divina, e
para que não aceitemos o fato de haver doenças que
não podem ser curadas, pobreza que não possa ser er-
radicada, injustiça que não possa ser reparada. Fazer
a pergunta dos profetas não é procurar uma resposta,
mas se munir de forças para agir. Isto é o significado de
encontrar Deus na redenção.
Esses três tipos de pergunta estão inter-relacio-
nados. Quando usamos de modo conjunto a nossa
compreensão sobre a Criação com os mandamentos
da Revelação, ajudamos a trazer a Redenção. Um ato
por vez, um dia de cada vez – conscientes de que não
cabe a nós completar o trabalho, mas que não pode-
mos nos isentar dele.
Todavia, existem três condições para se fazer uma
pergunta judaica: a primeira é estarmos buscando ge-
nuinamente aprender – e não para duvidar, ridiculari-
zar, descartar, rejeitar. É isso que faz o “filho malvado”
da Hagadá: ele não pergunta motivado pelo desejo de
compreender, mas como prerrogativa para ir embora.
A segunda é aceitar que existem limites para nossa
compreensão. Nem tudo pode ser compreendido em
determinados momentos. Havia cientistas no começo
do século 20 que acreditavam que todas as maiores
descobertas do mundo já haviam sido feitas. Eles se-
quer suspeitavam que nos 100 anos seguintes surgiriam
a Teoria da Relatividade de Einstein, o Princípio da In-
certeza de Heisenberg, o Teorema de Göedel, a Teo-
ria do Big Bang a respeito da origem do Universo e a
decodificação do genoma humano. No âmbito judaico
do século 19, houve muitos judeus alemães e ameri-
canos que não entendiam o significado das preces ju-
daicas que pediam pelo retorno a Tsión e as apagaram
do livro de orações. Esses fatos deveriam inspirar em
nós alguma humildade. Nem tudo na ortodoxia cien-
tífica sobrevive ao teste do tempo. Nem tudo que não
compreendemos no judaísmo permanecerá para sem-
pre incompreensível. Características da vida judaica
que parecem difíceis para uma geração podem conter
grande significado para a próxima geração. A fé não é
oposta às perguntas, mas sim, à certeza superficial de
que conseguimos entender tudo o que existe.

A terceira condição, no que diz respeito à Torá, é


que aprendamos vivendo e compreendamos fazendo.
Que aprendamos a apreciar música escutando-a. Que
aprendamos a apreciar literatura lendo-a. Não existe
uma forma de apreciar o Shabat sem respeitá-lo; um
modo de apreciar as leis de pureza familiar e entender
como podem ajudar no fortalecimento do casamento
sem observá-las. O judaísmo, assim como a música, é
algo que só pode ser compreendido pelo lado de den-
tro, mergulhando-se em seu interior.

Considerando estas ressalvas, o judaísmo é uma


crença que, mais do que qualquer outra, valoriza o inte-
lecto, encoraja as perguntas e nos deixa engajados por
meio de um maior nível de rigor mental. Cada pergun-
ta feita com respeito é o começo de uma jornada em
direção a Deus, e esse hábito tem origem na festa de
Pêssach, ocasião na qual os pais ensinam os seus filhos a
perguntar e, dessa forma, a participar do diálogo inces-
sante entre a compreensão humana e os Céus.
Obras do autor publicadas em português

Uma letra da Torá


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