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O sarado e o doente

Sarado é o que o nome está dizendo, aquele que se curou. Mas se curou de quê? Do seu próprio corpo, ora. O
cara (ou a cara, talvez; até mais ela do que ele) matricula-se numa academia, submete os tímpanos a uma dieta
de música tecno, o estômago a um tratamento à base de aveia, banana, açaí e complementos alimentares, e
começa a malhar os próprios músculos; isto é, castigá-los, descer o cacete neles, exatamente como o ferreiro faz
com seu lingote em brasa e as crianças do subúrbio com seus judas de palha e pano – pois é daí mesmo que vem
a palavra malhação, de onde mais?Então, se repetir esse ritual com bastante afinco por meses, anos, o indivíduo,
finalmente, sara. Sara tanto que às vezes acaba doente, mas esse paradoxo vamos comentar depois. Por enquanto,
basta ter em mente que sarado é aquele que se curou como se cura um paciente crônico ou um queijo minas, que
nesse processo troca a sua textura molhada, molenga e fofinha (de frescal) por uma constituição seca e rija (de
curado), mais ao gosto do nosso tempo.

Não que sarado seja uma invenção do nosso tempo. Sei que é difícil acreditar, mas a gíria preferida dos malhadores
de hoje, com seu jeitão tão atual quanto um pote de Megamass 2000, é antiguinha. O Aurélio a registra há
décadas, com o sentido, senão exatamente de malhado, de “forte, rijo, resistente”. Sua origem é incerta, mas não
pode haver dúvida sobre o que quer dizer. Como exemplo, o dicionário traz um curioso texto de sabor regionalista
tirado de um livro chamado Tiziu e outras estórias, de Nelson de Faria: “Seu Maneco, cabra sarado, duro que nem
uma aroeira...”. Como não é lícito supor sem forçar demais a barra que o Seu Maneco bombeasse um Nautillus,
acabamos por chegar à conclusão de que também se fica sarado na lavoura. Fisiculturismo e enxada. O que prova
duas verdades complementares: algumas palavras hibernam; somos menos modernos do que gostamos de
imaginar.

Uma primazia, porém, ninguém tira de nossa época: nunca se atribuiu tanto valor a músculos. Houve um tempo
– meninos, eu vi – em que um homem de musculatura apenas funcional ou uma mulher de popô meio gelatinoso
podia sobreviver muito bem na selva social com armas arcaicas: bom papo, senso de humor, informação geral,
elegância, tiradas espirituosas, bons dentes, gosto no vestir. Como garruchas da guerra do Paraguai, porém, essas
armas caíram em desuso: qualquer dia o governo do estado as junta no Aterro e passa um rolo compressor em
cima. No máximo, ainda que raramente, são usadas como acessórios por saradinhas e saradões, no papel de
pálidos coadjuvantes de seus peitorais, glúteos e deltóides. Mas, como não costumam combinar com tais
protagonistas, aos poucos vão saindo de cartaz.

Até aí tudo bem – ou tudo mal, depende – mas resta a pergunta: o sarado sara de quê? Vamos à tese. O escritor
Thomas Mann – um alemão com menos músculos que um gafanhoto – escreveu, em A montanha mágica, essa
frase intrigante: “A doença torna os homens mais físicos, privando-os de tudo que não seja o corpo”. Pois então.
Se a irremediável decadência de todos os seres vivos é, como parece ser, grande inimiga da humanidade nos dias
atuais, sua moléstia de eleição, então está justificado o egoísmo generalizado de mergulhar no próprio corpo e
paparicá-lo, como se paparica um enfermo, não está? Ninguém sara para sempre, mas isso não importa: importa
fazer tudo o que for possível, para remar com todas as forças nesse sentido. Para os radicais, vale até tomar
anabolizante de cavalo e, aí sim, ficar doente, muito doente, mortalmente doente. Mas saradíssimo.

RODRIGUES, Sérgio. “O sarado e o doente”. In: Jornal do Brasil, Revista de Domingo, 2004.

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