Você está na página 1de 22

Corpos em Aliança e a Política das Ruas *

Judith Butler

Em "A Política de Gênero e o Direito de Aparecer", 1 sugeri que as políticas de gênero


devem necessariamente implicar o estabelecimento de alianças com outras populações
caracterizadas, de modo bastante abrangente, como populações “precárias”. Sinalizei
 para certas formas de mobilização que buscam estabelecer o direito que minorias de
gênero ou pessoas de gêneros dissidentes têm de andar livremente pelas ruas, de manter
seus empregos, de resistir a assédios, patologização e criminalização. Para que a luta
 pelos direitos das minorias de gênero e sexualidade consista em uma luta por justiça
social – ou seja, para que ela venha a ser caracterizada como um projeto democrático
radical – é necessário tomarmos consciência de que não somos senão uma única
 população, que tem sido e pode vir a ser exposta a condições de precariedade e de
revogação de direitos políticos. 2  Mais que isto, os direitos pelos quais lutamos são
direitos plurais, e esta pluralidade não está previamente circunscrita pela identidade: não
se trata de uma luta à qual somente tais e quais categorias identitárias poderiam
 pertencer, e é certamente uma luta que busca expandir o que estamos querendo dizer
quando enunciamos a palavra “nós”. Deste modo, o exercício público do gênero (o
exercício público do direito ao gênero) já é, poderíamos dizer, desde sempre um
movimento social, um movimento que depende mais fortemente dos laços entre pessoas
do que de qualquer noção de “individualismo”. O objetivo de tal exercício é fazer
oposição àquelas forças e regimes militares, disciplinares e regulatórios que poderiam
nos expor à precariedade. Embora as vidas possam ser tornadas precárias por um grande
número de processos ‘naturais’ de adoecimento e desastre, um fatopermanece(como
constatamos de modo tão dramático em Nova Orleans durante e após o furação Katrina,
em 2005): o modo como as instituições lidam ou deixam de lidar com tais males; como
os desastres naturais, em certas regiões, são passíveis de prevenção apenas para certas
 populações, mas não para outras. Tudo isto conduz a uma distribuição demográfica da
precariedade. Isto é verdade, de forma bastante abrangente, para os pobres e os
desabrigados, mas também para aqueles que estão expostos à avassaladora insegurança
e ao senso de um futuro mutilado, à medida que condições infra estruturais desmoronam
ou que o neoliberalismo substitui as instituições que alicerçam a democracia por uma
ética empresarial, a qual, por sua vez, exorta até mesmo os mais desprovidos de poder a
assumir responsabilidade por suas próprias vidas sem depender de nada ou ninguém
além de si mesmos. Tudo se passapass a como se, sob as condições contemporâneas, houvesse
uma guerra contra a ideia de interdependência, contra aquilo a que em outras ocasiões
me referi como a ‘rede de mãos’ que tenta minimizar a inviabilidade do viver que é
*
  BUTLER, Judith. “Bodies in Alliance and the Politics of Street” in Notes Toward a Performative
Theory of Assembly . Cambridge-Massachusetts: London-England: Harvard University Press, 2015
[tradução para uso didático por Leandro de Oliveira. Belo Horizonte: FAFICH/ UFMG, 2016, mimeo].
1
 Capítulo 01 de Notes Toward a Performative Theory of Assembly.
2
 O termo original, “Disenfranchisement”, designa em um sentido estrito a suspensão do direito ao voto
em regimes democráticos (N. do T.).
vivida por certas vidas. Então, estes conjuntos plurais de direitos – direitos que devemos
encarar como coletivos e incorporados – não são modos de afirmar o tipo de mundo em
que todo e qualquer um de nós deveria ser capaz de viver. Pelo contrário, eles emergem
de uma compreensão de que a condição da precariedade é diferencialmente distribuída,
e que a luta contra
c ontra – ou a resistência a – precariedade tem que estar baseada na demanda
de que as vidas sejam tratadas igualmente e que elas deveriam ser igualmente passíveis
de serem vividas. Isto significa também que a forma da resistência em si, ou seja, o
modo pelo qual comunidades estão organizadas para resistir à precariedade, idealmente
exemplifica os próprios valores pelos quais estas comunidades lutam. Alianças que se
formaram para exercitar os direitos de minorias sexuais e de gênero devem, em minha
visão, formar laços – por mais difícil que isto seja – com a diversidade de sua própria
 população, e todos os laços que isto implica com outras populações sujeitas a condições
de precariedade induzida em nossos tempos. Este processo de construção de conexões,
embora difícil, é necessário porque a população das minorias sexuais e de gênero é ela
 própria “diversificada”, uma palavra que não é precisa o bastante para aquilo que quero
aqui dizer. Este coletivo bebe em fontes de classe social, fontes raciais e fontes
religiosas muito plurais, cruzando comunidades linguísticas e de formação cultural
diversas.
O que estou chamando de “aliança” não é somente uma forma social futura; por vezes
ela está latente, ou por vezes ela é a estrutura de nossa própria formação enquanto
sujeitos, como quando a aliança ocorre dentro de um mesmo sujeito, quando é possível
dizer “Eu mesma sou uma aliança”, ou “eu me alio comigo mesma, ou com minhas
várias vicissitudes culturais”. Isto significa, tão somente, que o “eu” em questão se
recusa a fundamentar um status minoritário ou lugar de precariedade vivida em
detrimento de qualquer outro; é um modo de dizer “Eu sou a complexidade que sou, e
isto significa que eu estou em relação com outros sob formas que são essenciais a
qualquer invocação deste ‘eu’”. Tal visão, que implica a relacionalidade social nos
pronomes de primeira pessoa, nos desafia a lidar com a insuficiência de ontologias
identitárias para pensar sobre o problema da aliança. Pois o ponto central, aqui, não é
afirmar que eu sou uma ‘coleção’ de identidades, mas que eu sou desde sempre uma
assembleia, ou assemblage, adaptação por Jasbir Puar de uma noção de Gilles Deleuze. 3
Contudo, o que talvez seja o mais importante são aquelas formas de mobilização
animadas por uma atenção aumentada ao corte transversal de pessoas sob risco de
 perder seus empregos e terem suas casas tomadas por bancos; a gama de pessoas que
estão diferencialmente sob risco de perseguição nas ruas, criminalização,
aprisionamento ou patologização; o contexto racial e religioso daquelas pessoas cujas
vidas são marcadas como dispensáveis por aqueles que fazem a guerra. Para mim, esta
 perspectiva implica a necessidade de uma luta mais generalizada contra a precariedade,
uma que emerge de um ‘sentir na pele’ 4 a precariedade, vivida como uma morte lenta,
um senso danificado de tempo, ou uma exposição impossível de manejar à perda

3
  Jasbir Puar. Terrorist Assemblages: homonationalism in Queer Times . Durham, NC: Duke
University Press, 2007.
4
 No original, “a felt sense” (n. do T.).
arbitrária, à injúria e à destituição – este é um ‘sentir na pele’ que é, a um só tempo,
singular e plural. O objetivo, aqui, não éarregimentar coletividades em prol de formas
de igualdade que nos submergiriam, todos, em condições igualmente impossíveis de
viver. Pelo contrário:a meta, aqui,consiste em reivindicaruma vida igualmente passível
de ser vivida para todos, que é também colocada em cena por aqueles envolvidos na
tomada de decisões, e que requer a distribuição igualitária de bens públicos. O oposto
da precariedade não é a segurança, mas pelo contrário, a luta por uma ordem política e
social igualitária na qual uma interdependência passível de ser vivida se torne possível –
o oposto da precariedadedeveria, de imediato, ser a condição de nosso autogoverno
enquanto democracia, e sua manutenção continuada deveria ser uma das metas
obrigatórias desta governança em si mesma.
Caso alguém ache que tergiversei para longe do gênero, asseguro que o gênero ainda
está aqui. Pois uma das questões que todo e qualquer grupo representando a
emancipação de mulheres, minorias sexuais e minorias de gênero deve obrigatoriamente
considerar é a seguinte: o que fazer quando governos estatais ou organizações
internacionais buscam defender nossos direitos de modo a explicitamente conduzir
campanhas anti-migratórias (como temos visto na França e na Holanda), ou quando o
Estado atrai atenção para seu histórico de relativos avanços no campo dos Direitos
Humanos de modo a desviar nossa atenção de um histórico atroz de violações no que
diz respeito àquelas populações cujos direitos básicos de autodeterminação, movimento
e assembleia são negados (como no caso da campanha de  pinkswashing   em Israel, que
deslocanosso olhar para longe da vasta criminalidade envolvida em sua ocupação,
confisco de terras e expulsões policiais forçadas)? 5 Por mais que nós desejemos nossos
 próprios direitos ao reconhecimento, devemos necessariamente nos opor a qualquer
implementação de reconhecimento público de nossos próprios direitos que esteja
servindo para encobrir e desviar o foco da massiva alienação de direitos políticos de
terceiros – incluindo, neste caso, mulheres, queers  e minorias sexuais e de gênero que
estão vivendo desprovidas de direitos básicos de cidadania na Palestina. Retornarei a
este tema no capítulo III, onde considero não somente o que significa “se aliar ao
outro”, mas o que significa viver com o outro. Tentarei mostrar adiante que uma política
de aliança resta sobre (e requer) uma ética da coabitação. Contudo, por ora, gostaria de
dizer que, se a alocação de direitos a um grupo é instrumentalizada visando a alienação
de direitos fundamentais de outro, então o grupo ao qual estes direitos são conferidos
está, seguramente, obrigado a recusar os temos pelos quais o direitos e reconhecimento
 político e jurídico estão sendo concedidos. Isto não significa que qualquer um de nós
deva abrir mão de direitos conquistados, mas que nós precisamos necessariamente
reconhecer tais direitos são providos de significado tão somente em meio a uma luta

5
 Nota do Tradutor: a noção de “Pinkwashing” (ao pé da letra, ‘limpeza rosa’) sinaliza para a estratégias
governamentais pelas quais Estados democráticos, ao se apresentarem como amigáveis para com
 populações LGBT, retratariam a si mesmos como “modernos”, cosmopolitas, atrativos para turistas e
 politicamente liberais (apresentando outras populações, como os palestinos, enquanto coletivos bárbaros
que precisariam ser civilizados, justificando deste modo ações violentas junto a tais populações). Ver
PUAR, Jasbir. "Israel's gay propaganda war". The Guardian. 1º de julho de 2010.
https://www.theguardian.com/commentisfree/2010/jul/01/israels-gay-propaganda-war 
mais ampla por justiça social – e reconhecer que, se direitos são diferencialmente
distribuídos, então a desigualdade está sendo instituída através da legitimação e
implementação tática de direitos de gays e lésbicas. Como corolário disto, sugiro que
relembremos que o termo queer   não designa identidades, mas alianças , e que ele é
um bom termo para se invocar à medida que façamos alianças desconfortáveis e
imprevisíveis na luta por justiça social, política e econômica.
Vez após vez, sucessivamente, manifestações de massa ganham lugar nas ruas e nas
 praças, e embora estas sejam frequentemente motivadas por propósitos políticos muito
diferentes, ainda assim algo similar acontece: corpos se congregam, corpos se movem e
falam juntos, e eles reivindicam certo espaço enquanto um espaço público. Seria bem
mais fácil dizer que estas manifestações – ou, de fato, estes movimentos  – são
caracterizados por corpos que se ajuntam para fazer uma reivindicação no  espaço
 público. Contudo, esta formulação presume que o espaço público já é dado, que ele
 já é desde sempre público  e reconhecível enquanto tal. Se não percebermos que,
quando estas multidões se ajuntam, o próprio caráter público do espaço está sendo
objeto de disputa ou até mesmo de luta, estaremos deixando escapar algo do sentido
destas manifestações. Então, embora estes movimentos tenham dependido da existência
 prévia do pavimento,da rua e da praça (e tenham por vezes o bastante se reunido em
 praças tais como a Tahrir Square ,6  cuja história política é potente), é igualmente
verdade que as ações coletivas coletam o próprio espaço, ajuntam e colhem os
 pavimentos, animam e organizam a arquitetura.7  Por mais que se deva insistir na
necessidade de certas condições materiais para a assembleia pública e a fala pública,
 precisamos também questionar como a assembleia e a fala reconfiguram a materialidade
do espaço público e produzem ou reproduzem o caráter público daquele ambiente
material. E quando multidões se movem para fora da praça, para ruelas menores e
 becos, para as vizinhanças em que as estradas ainda não estão pavimentadas, então algo
a mais ocorre.
Em momentos deste tipo, a política não está definida como algo que ocorre
exclusivamente na esfera pública (enquanto algo distinto da esfera privada); ao
contrário, a política cruza estas linhas divisórias por sucessivas vezes, chamando
atenção para o modo como a política já existe dentro de casa, ou nas ruas, ou na
vizinhança, ou de fato naqueles espaços virtuais que não estão limitados pelas
arquiteturas da casa ou da rua. Então, quando refletimos sobre o que significa se agregar
formando uma multidão, uma multidão crescente, e sobre o que significa se mover
através do espaço público de um modo que contesta a distinção entre público e privado,
entãose torna possível perceber alguns dos modos pelos quais os corpos, em sua
 pluralidade, reivindicam o espaço público, encontram e produzem o público
6
  A Tahir Square ("Praça da Liberdade", também conhecida como "Praça dos Mártires") é uma praça
 pública do Cairo, palco de diversas manifestações coletivas em oposição ao governo do presidente Hosni
Mubarak no período que antecedeu a Revolução Egípcia de 2011 (N. do T.).
7
  A autora aqui joga com o sentido, em língua inglesa, das noções de “collect” e “gather”
(correspondentes aos verbos coletar/ juntar em língua portuguesa) e noções correlatas, sugerindo que o
espaço, para se tornar coletivo, precisa ser coletado/ coletivizado pela coletividade que o ocupa (N. do
T.).
confiscando e reconfigurando a matéria dos ambientes materiais. Ao mesmo tempo,
estes ambientes materiais são parte da ação – e no momento em que se tornam suporte
 para a ação, os próprios ambientes materiais também atuam . De modo similar, quando
caminhões ou tanques se tornam inoperantes, e oradores subitamente escalam sobre eles
 para falar à multidão, o instrumento militar se torna em si mesmo um suporte ou
 plataforma para a resistência não-militar. Em tais momentos, o ambiente material é
ativamente reconfigurado e refuncionalizado, para usar a expressão de Brecht. E em
consequência disto, nossas noções de “ação” precisam ser repensadas.
Em primeiro lugar, ninguém mobiliza uma reivindicação de se mover e de se reunir
livremente sem estar já, de fato, se movendo e se reunindo com outros. Em segundo
lugar, a praça e a rua não são apenas suportes materiais para a ação, mas são em si
mesmas parte de qualquer narrativaou interpretação que possamos porventura propor
sobre a ação corporal pública. A ação humana depende de todo tipo de suporte: ela é,
sempre, uma ação amparada. Sabemos, a partir dos  Disability Studies, que a
capacidade de movimento depende de instrumentos e superfícies que tornem o
movimento possível, e que o movimento corporal é sustentado e facilitado por objetos
não-humanos e suas capacidades particulares de agência. No caso das assembléias
 públicas, vemos muito claramente a luta por aquilo que se tornará “espaço público”,
mas também uma luta igualmente fundamental sobre como os corpos serão
amparados no mundo: luta por emprego e educação, luta por distribuição equitativa de
comida, luta por abrigos minimamente habitáveis, luta por liberdade de movimento e
expressão(apenas para listar algumas de suas formas).
Isto, claro, produz um dilema. Não podemos agir sem suportes de algum tipo, e ainda
assim,  precisamos lutar pelos suportes que nos permitem agir , ou que, de fato, são
componentes essenciais para nossa ação. Foi a ideia romana de praça pública que
formou o pano de fundo para a compreensão de Hanna Arendt dos direitos à assembleia
e à liberdade de expressão, à liberdade de ação e de exercício de direitos. Hanna Arendt,
seguramente, tinha tanto a pólis grega quanto o fórum romano em mente quando alegou
que toda ação política requer um “espaço de aparecimento”. Ela escreve, por exemplo:
“a pólis, propriamente falando, não é a cidade-estado em sua localização física; ela é a
organização das pessoas, à medida que esta emerge do agir e do falar em conjunto, e seu
verdadeiro espaço está situado entre as pessoas vivendo juntas com este propósito, não
importando onde elas por acaso estejam”. 8 O espaço “verdadeiro”, então, está situado
“entre as pessoas”, o que significa que, na medida em que uma ação qualquer tem lugar
em um espaço localizado qualquer, ela também estabelece um espaço que pertence, de
direito, à aliança  em si mesma. Para Arendt, esta aliança não está atrelada a sua
localização. De fato, a aliança acarreta sua própria localização, a qual é altamente
 permutável e transponível. Nas palavras dela: “a ação e a fala criam um espaço entre os

8
 ARENDT, Hanna. The Human Condition. Chicago: University of Chicago Press, 1958, p. 198.
 participantes que pode encontrar sua localização apropriada em praticamente qualquer
lugar e qualquer momento”. 9
Então, como deveríamos compreender esta noção de espaço político altamente, senão
infinitamente, transponível? Quando Arendt afirma que a política requer um espaço para
seu aparecimento, ela também afirma que o espaço acarreta a política: “é o espaço de
aparecimento, no sentido mais amplo da palavra (nomeadamente, o espaço onde eu
apareço para outros enquanto estes também aparecem para mim ), o lugar onde os
homens [sic] existem não meramente como outras coisas viventes ou inanimadas, mas
explicitamente  fazem sua aparição”.10  Algo do que ela diz, aqui, seguramente é
verdadeiro. Espaço e localização são criados através de ações plurais. E ainda assim, na
visão dela, a ação (em sua liberdade e seu poder) tem a capacidade exclusiva de criar
localizações. Uma visão deste tipo esquece ou recusa que a ação é sempre amparada, e
que é invariavelmente corporal – até mesmo, como argumentarei, em suas formas
virtuais. Os suportes materiais para a ação não são apenas parte da ação, mas também
são aquilo pelo que se luta, especialmente naqueles casos em que a luta é por comida,
emprego, mobilidade e acesso a instituições. Para repensar o espaço de aparecimento de
modo a compreender o poder e os efeitos das manifestações públicas de nossa época,
 precisaremos considerar mais de perto as dimensões corporais da ação, considerar o que
o corpo requer e o que o corpo pode fazer, 11 especialmente quando precisamos pensar
sobre corpos ajuntados em um espaço histórico que atravessa uma transformação
histórica em virtude de sua ação coletiva. O que os mantém unidos ali, e quais são suas
condições de persistência e de poder em relação a sua precariedade e exposição?
Eu gostaria de pensar sobre este itinerário pelo qual viajamos do espaço de
aparecimento à política contemporânea das ruas. Com estas palavras, não posso ter a
esperança de agregar todas as formas de demonstração que temos visto, algumas das
quais são episódicas, algumas das quais são parte de movimentos políticos em curso e
recorrentes, e algumas das quais são revolucionárias. Espero refletir sobre o que poderia
 juntar estes ajuntamentos, estas manifestações públicas. Durante o inverno de 2011, elas
incluíram manifestações contra regimes tirânicos na África do Norte e no Oriente
Médio, mas também contra a escalada da precarização de populações trabalhadoras na
Europa e no hemisfério sul, assim como as lutas por educação pública nos EUA e na
Europa e, mais recentemente, no Chile, e lutas para tornar a rua mais segura para
mulheres e minorias sexuais e de gênero – incluindo aqui as pessoas trans, cuja aparição
 pública é com muita frequência punível por meio de violência legal e ilegal. Em
assembleias públicas de pessoas trans e queer, alega-se frequentemente que é preciso

9
 Ibid.
10
 Ibid., p. 199.
11
 "O ponto de vista de uma ética é: de que você é capaz, o que você pode fazer? Daí o retorno a esta
espécie de lamento de Espinoza: o que um corpo pode fazer? Nós nunca sabemos antecipadamente o que
um corpo pode fazer. Nós nunca sabemos de que modo estamos organizados e como os modos possíveis
de existência estão embalados dentro de alguém". DELEUZE, Gilles. Expressionism in Philosophy:
Spinoza.  New York, Zone Books, 1992 [p. 217-234]. Esta abordagem difere da dele sob diversos
aspectos, notadamente por considerar os corpos em sua pluralidade, mas também por perguntar: quais são
as condições dentro das quais um corpo pode de fato fazer qualquer coisa?
tornar as ruas mais seguras contra a violência de policiais cúmplices da criminalidade,
especialmente naquelas ocasiões quando, por exemplo, a própria polícia comete os
crimes contra minorias sexuais e de gênero que ela supostamente deveria prevenir.
Manifestações são uma dentre as muitas maneiras pelas quais o poder policial é
sobrepujado, especialmente quando tais assembleias de tornam simultaneamente muito
amplas ou muito móveis ou muito condensadas ou muito difusas para serem passíveis
de contenção pelo poder policial, e quando elas têm os recursos necessários para se
regenerar de imediato.
Talvez estes sejam movimentos anarquistas ou passagens anarquistas, quando a
legitimidade de um regime ou de suas leis é colocada em questão, mas quando nenhum
novo regime legal chegou ainda para tomar seu lugar. Neste tempo de intervalo os
corpos em assembleia articulam um novo tempo e um novo espaço para a vontade
 popular – não uma vontade única e idêntica, não uma vontade unitária, mas uma
vontade que é caracterizada pela aliança entre corpos distintos e adjacentes cuja ação e
cuja inação demandam um futuro diferente. Em conjunto, eles exercem o poder
 performativo de lançar reivindicações ao público, de um modo que não está ainda
codificado na lei e que nunca poderá ser plenamente codificado sob a forma da lei. E
esta performatividade não é somente discurso, mas demandas apresentadas na ação
corporal, do gesto, da movimentação, da congregação, da persistência e da exposição à
 possível violência. Como podemos compreender este agir em conjunto que abre o
tempo e o espaço fora e contra a arquitetura estabelecida e a temporalidade do regime,
que reivindica a materialidade, se ampara em seu suporte, e suga de suas dimensões
técnicas e materiais visando retrabalhar suas funções? Tais ações reconfiguram o que
virá a ser o “público” e o espaço da política.
Meu pensamento se tensiona com o de Hannah Arendt, até mesmo quando me amparo
em seus recursos para tornar mais clara minha própria posição. O trabalho dela suporta
minha ação aqui, mas eu também o recuso sob certos aspectos. A visão de Arendt se vê
embaraçada por sua própria política de gênero, por depender de uma distinção entre os
domínios “público” e “privado” que deixa a esfera da política para os homens e o
trabalho reprodutivo para as mulheres. Se há um corpo na esfera pública, este é
 presumivelmente masculino e desvinculado de suporte; ele é presumivelmente livre para
criar, mas ele próprio não-criado. E o corpo na esfera privada é feminino, estrangeiro,
em envelhecimento ou infantil, e sempre pré-político. Embora Arendt tenha sido, como
aprendemos a partir do importante trabalho de Adriana Cavarero, uma filósofa da
natalidade,12ela compreendia esta capacidade de trazer algo à existência como uma
função do discurso e da ação política. De fato, quando os cidadãos homens entram em
 praça pública para debater questões de justiça, vingança, guerra e emancipação, eles
tomam a iluminada praça pública como dada, como o teatro delimitado para seu
exercício da fala. E a fala se torna a forma paradigmática da ação destes cidadãos
homens, fisicamente lacerada do espaço privado – o qual, por sua vez, existe envolto em

12
 CAVARERO, Adriana. For More than one voice: toward a philosophy of vocal expression.  Palo
Alto, CA: Stanford University Press, 2005.
escuridão, reproduzido por meio de atividades que não são exatamente “ação” no
sentido próprio e público do termo. Os homens transitam daquela escuridão privada à
claridade pública; uma vez assim iluminados, eles falam, e sua fala interroga os
 princípios de justiça que ela própria articula, se tornando em si mesma uma forma de
questionamento crítico e participação democrática. Arendt, repensando esta cena
clássica em meio à modernidade política, compreende a fala como o exercício corporal
e linguístico de direitos. “Corporal” e “linguístico”: como poderíamos nós reconceber
estes termos e seu entrelaçamento, aqui, indo contra e além daquela pressuposição de
uma divisão do trabalho marcada pelo gênero?
Para Arendt, a ação política tem lugar sob a condição de que o corpo apareça. Eu
apareço para outros, e eles aparecem para mim, o que significa que um espaço existente
entre nós possibilita, a cada um de nós, aparecer. Poder-se-ia esperar que aparecêssemos
no interior   de um espaço, ou que somos amparados por uma organização prévia do
espaço. Mas este não é o argumento dela. A esfera do aparecimento não é simples, pois
ela parece aparecer somente sob a condição de um confronto ‘cara a cara’
intersubjetivo. Nós não somos, uns para os outros, meros fenômenos visuais: nossas
vozes precisam ser registradas; logo, precisamos ser ouvidos. Pelo contrário: aquilo que
nós somos, corporalmente, é desde sempre um modo de ser “para” o outro, aparecendo
sob formas que nós mesmos não podemos ver e ouvir; isto nos torna corporalmente
disponíveis para um outro cuja perspectiva não podemos jamais antecipar ou controlar
 plenamente. Enquanto um corpo,eu não existosomente para mim mesma – ou sequer
 primariamente  para mim mesma – mas eu me descubro(se é que chego ame
descobrir)constituída e despossuída pela perspectiva de outros. Então, para que haja
ação política, devo necessariamente aparecer para outros sob modos que não tenho
como conhecer; neste sentido, meu corpo é estabelecido por perspectivas que não sou
capaz de habitar, mas que seguramente me habitam. Este é um ponto importante porque
não se trata, somente, de que o corpo estabeleça minha própria perspectiva; ele também
é aquilo que desloca essa perspectiva e faz deste deslocamento uma necessidade. Isto
ocorre com mais clareza quando consideramos corpos que agem em conjunto. Nenhum
corpo particular estabelece o espaço de aparecimento, mas esta ação, este exercício
 performativo, acontece tão somente “entre” corpos, em um espaço que constituí o vão
entre meu próprio corpo e o corpo de outrem. Deste modo, quando meu corpoage
 politicamente, ele não age sozinho. De fato, a ação emerge do “entre” ( between), uma
metáfora espacial para uma relação que simultaneamente vincula e diferencia.
É tão problemático quanto interessante que, para Arendt, o espaço de aparecimento não
seja um mero dado arquitetônico: “o espaço de aparecimento ganha existência”, ela
escreve, “em qualquer momento no qual os homens estão agregados no modo de fala e
de ação, e deste modo pré-data e precede toda constituição formal do domínio público e
das diferentes formas de governo, ou seja, as várias formas pelas quais o domínio
 público pode vir a ser organizado”. 13 Em outras palavras, este espaço de aparecimento
não é uma localização física que possa ser dissociadada ação plural que o traz à

13
 ARENDT, Hanna. The Human Condition. Chicago: University of Chicago Press, 1958, p. 199.
existência; ele não existe fora da ação que o invoca e o constitui. E ainda assim, se
aceitarmos esta perspectiva, temos que tentar compreender como esta pluralidade que
age é, ela própria, constituída. Como uma pluralidade se forma, e quais amparos
materiais são necessários para tal formação? Quem ingressa e quem não ingressa nesta
 pluralidade, e como tais assuntos são decididos?
Como poderíamos descrever a ação e o status daqueles seres que são desagregados do
 plural? Que linguagem política nós temos reservada para descrever tal exclusão e para
descrever as formas de resistência que quebram e abrem o modo corrente de delimitação
da esfera de aparecimento? Aqueles que vivem fora da esfera de aparecimento seriam as
inanimadas ‘obviedades’ da vida política? 14  Seriam eles mera vida, ou vida nua?
Deveríamos dizer que aqueles que são excluídos são simplesmente irreais, que estão
desaparecidos, que não têm existência de todo – deveriam eles ser banidos teoricamente,
como os socialmente mortos e os meramente espectrais? Se fizermos isto, nós não
apenas estaremos adotando a posição de um regime de aparecimento particular, mas
ratificando esta perspectiva, ainda que nosso desejo seja questioná-la. Tais formulações
 porventura descrevem um estado de se tornar destituído por arranjos políticos
existentes, ou seria esta destituição involuntariamente ratificada por uma teoria que
adota a perspectiva daqueles que regulam e policiam a esfera do aparecimento em si
mesma?
Está em jogo, aqui, a questão de estabelecer se os destituídos se encontram  fora da
 política  e do poder, ou se eles estão de fato vivenciando uma forma específica de
destituição política, paralelamente a formas de agência política e de resistência que
expõem o policiamento das fronteiras da própria esfera de aparecimento. Se
assumíssemos que os destituídos se encontram fora da esfera da política – reduzidos a
formas despolitizadas de existência – estaríamos implicitamente aceitando como
corretos os modos dominantes de estabelecimento de limites do político. Isto, sob certos
aspectos, é um desdobramento da posição Arendtiana (que adota o ponto de vista da
 polis Grega sobre o que a política deveria ser, sobre quem deveria ganhar entrada na
 praça pública, e quem deveria permanecer na esfera privada). Tal visão desconsidera e
desvaloriza aquelas formas de agência política que emergem precisamente naqueles
domínios tidos como pré-políticos ou extra políticos e que invadem a esfera de
aparecimento tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora, confundindo a
distinção entre o interior e o exterior. Pois, em momentos de revolução ou insurreição,
não estamos mais tão seguros sobre o que funciona como o espaço da política, do
mesmo modo como, frequentemente, nos sentimos inseguros sobre em que tempo
exatamente estamos vivendo (dado que os regimes estabelecidos de espaço e tempo se
encontram virados de ponta cabeça, sob formas que expõem sua violência e seus limites
contingentes). Como mencionei anteriormente, isto se torna perceptível quando
trabalhadores sem documentação se agregam na cidade de Los Angeles para
reivindicarem seus direitos de assembleia e cidadania sem serem cidadãos , sem terem
qualquer direito legal para agirem deste modo. Seu trabalho, espera-se, deveria

14
 No original, “the deanimated givens of political life” (N. do T.).
 permanecer indispensávele ocultado ao olhar – logo, quando estes corpos que laboram
emergem na estrada, agindo como cidadãos, eles fazem uma reivindicação mimética à
cidadania  que altera não somente como eles aparecem, mas como a esfera do
aparecimento opera. De fato, a esfera do aparecimento é simultaneamente mobilizada
e desabilitada  quando uma categoria trabalhadora e explorada emerge nas ruas para
anunciar a si própria e expressar sua oposição a seguir existindo como a condição não-
visível daquilo que aparece como “político”.
O ímpeto subjacente à noção de Giorgio Agamben de “vida nua” 15 deriva da própria
concepção de polis na filosofia de Arendt e, eu sugeriria, corre o risco de incorrer neste
mesmo problema: se buscarmos dar conta da exclusão em si como um problema
 político, como parte da política em si mesma, então não dá pra afirmar que, uma vez
excluídos, estes seres carecem de visibilidade ou “realidade” em termos políticos, que
eles não têm qualquer posição social ou política, ou que são banidos e reduzidos a
16
meramente existir   (reduzidos a formas de existência naturalizadas,   cujo acesso à
esfera da ação é obstruído). Nada de tão metafisicamente extravagante precisa
acontecer, se concordarmos que uma das razões pelas quais a esfera do político não
 pode ser definida pela concepção clássica de polis é que esta concepção nos despoja da
 possibilidade de ter e usar uma linguagem para aquelas formas de agência e
resistência assumidas pelos despossuídos . Aqueles que se encontram em posições de
exposição radical à violência, sem contar com proteções políticas básicas sob a forma de
lei, não estão por este motivo situados ‘fora’ do político ou despojados de toda e
qualquer forma de agência. Precisamos, decerto, de uma linguagem para descrever esse
status de exposição inaceitável, mas temos que ser cuidadosos para que a linguagem que
empregamos não despoje ainda mais tais populações de todas as formas de agência e
resistência, de todos os modos de cuidar um do outro ou estabelecer redes de suporte.
Embora Agamben tome de empréstimo ideias de Foucault para articular uma concepção
do biopolítico, a tese da “vida nua” persiste intocada por tal concepção. Como resultado,
é impossível no interior desse vocabulário descrever os modos de agência e ação
assumidos pelos apátridas e pelos desprovidos de direitos, dado que até mesmo a vida
despojada de direitos está, ainda assim, em meio à esfera do político e deste modo não
 pode ser reduzida meramente ao “existir”. Este modo de vida é, com bastante
frequência, zangado, indignado, crescente e resistente. Estar do lado de fora das
estruturas estabelecidas e legítimas da política é, ainda assim, estar saturado por
relações de poder , e esta saturação é o ponto de partida para uma teoria do político que
abarque formas dominantes e subjugadas, que abarque modos de inclusão e legitimação
tanto quanto modos de deslegitimação e supressão.
Por sorte, creio que Arendt não seguia consistentemente este modelo apresentado em A
Condição Humana, motivo pelo qual, por exemplo, no início dos anos 1960 ela se
voltou novamente para o destino de refugiados e apátridas, e veio a afirmar sob uma

15
 AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: sovereign power and bare life . Palo Alto, CA: Stanford Univ.
Press, 1998.
16
 No original em língua inglesa, “forms of givenness” (N. do T.).
maneira distinta o direito de ter direitos. 17 O direito de ter direitos independe, para sua
legitimidade, de qualquer forma de organização. Assim como o espaço de aparecimento,
o “direito de ter direitos” pré-data e precede qualquer instituição política que poderia
codificar ou tentar garantir tal direito; ao mesmo tempo, ele não deriva de qualquer
conjunto de leis naturais. Este direito  ganha existência quando é exercido, e ele é
exercido  por aqueles que agem de maneira orquestrada, em aliança. Aqueles que são
excluídos da política existente, que não pertencem a qualquer Estado-nação ou
formação estatal contemporânea, podem ser considerados “irreais” tão somente por
outros que buscam monopolizar os termos da realidade. E ainda assim, mesmo depois
que a esfera pública foi definida através de sua exclusão, eles agem. Quer tenham sido
eles abandonados à precariedade ou deixados para morrer através de negligência
sistemática, a ação orquestrada, ainda assim, emerge de seu agir em conjunto. E é isto
que nós vemos, por exemplo, quando trabalhadores sem documentos se amontoam na
rua sem qualquer direito legal a isto; quando posseiros reivindicam construções na
Argentina como um modo de exercer o direito a abrigos habitáveis; quando populações
reivindicam uma praça pública que até então pertencera aos militares; quando
refugiados tomam parte em levantes coletivos demandando abrigo, comida e direito a
asilo político; quando populações se ajuntam sem a proteção da lei e sem permissão
 para se manifestar, visando colocar abaixo um regime jurídico criminoso ou injusto, ou
visando protestar contra medidas de austeridade que destroem a possibilidade de
emprego e educação para muitos. Ou quando aqueles cuja aparição pública é, em si,
criminosa – pessoas transgênero na Turquia ou mulheres que usam o véu na França –
aparecem visando contestar este  status criminoso e afirmar seu direito de aparecer .
A lei francesa, que proíbe tanto a exibição religiosa “ostentosa” em público quanto o
ocultamento da face, busca estabelecer uma esfera pública na qual a indumentária
 permaneça um significante do secularismo e a exposição da face se torne uma norma
 pública. A proibição contra o ocultamento da face serve a certa versão do direito de
aparecer, entendida como o direito das mulheres de aparecerem descobertas. Ao mesmo
tempo, ela nega o direito de aparecer para esses mesmos grupos de mulheres,
requisitando a elas que desafiem normas religiosas em favor de normas públicas. Este
ato requerido de desfiliação religiosa se torna mandatório quando a esfera pública é
entendida enquanto esfera que sobrepuja ou nega as formas religiosas de pertencimento.
A noção, prevalente no debate Francês, de que mulheres que vestem o véu não
 poderiam de modo algum estar agindo com base em qualquer espécie de “escolha” faz
operar no debate sobre o véu, incólumes, flagrantes atos de discriminação contra
minorias religiosas que a lei põe em cena. Pois uma escolha que é claramente feita entre
aquelas que vestem o véu consiste em não ceder a tais formas de desfiliação
compulsória  que condicionam a entrada na esfera pública. Aqui, como em outros
lugares, a esfera de aparecimento é altamente regulada. O fato de que estas mulheres
 possam estar vestidas de um dado modo, e não de outro, constitui uma política

17
  A primeira análise dela sobre o direito de ter direitos no contexto de refugiados ocorreu em 1943,
quando ela escreveu "Nós, Refugiados" no The Menorah Jornal . Ver também o breve comentário de
Agamben sobre este ensaio: http://roundtable.kein.org/node/399.
indumentária da esfera pública, mas o “desvelamento” compulsório também o é :
ele é, primeiramente e em si mesmo, um sinal de pertencimento à esfera pública, e
apenas secundariamente (ou privadamente) um sinal de pertencimento à comunidade
religiosa. Isto é especialmente destacado no tocante a mulheres muçulmanas cuja
afiliação a versões variadas dos domínios público, secular e religioso podem muito bem
ser limítrofe ou sobreposta. E isto mostra, de modo particularmente claro, que o que é
chamado de “esfera pública” em tais casos é construído através de exclusões
constitutivas e formas compulsórias de repúdio. Paradoxalmente, o ato de se conformar
a uma lei que requer a retirada do véu é o meio pelo qual uma “liberdade de aparecer” –
decerto altamente comprometida ou até mesmo violenta – se estabelece.
De fato, naquelasmanifestações coletivas que frequentemente sucedem atos de luto
 público – como ocorreu frequentemente na Síria, antes que metade de sua população se
tornasse em refugiados, onde multidões de pessoas em luto se tornaram alvos de
destruição militar – podemos ver como o espaço público existente é confiscado por
aqueles que não têm direito de nele se ajuntar, que emergem de zonas de desaparição
 para tornar certos corpos expostos à violência e à morte no processo mesmo de se reunir
e persistir publicamente. De fato, é o direito à assembleia, livre de intimidação e
ameaça de violência, que é sistematicamente atacado pela polícia, pelo exército,
por gangues contratadas ou mercenários. Atacar tais corpos é atacar o direito em si
mesmo, pois quando estes corpos aparecem e agem, eles estão exercendo um direito
fora, contra e em face do regime .

Embora os corpos ocupando a rua estejam vocalizandosua oposição à legitimidade do


Estado, eles estão também, por ocuparem e persistirem naqueles espaços sem proteção,
lançando seu desafio em termos corporais. Isto significa que quando o corpo “fala”
 politicamente, ele não o faz apenas por meio da linguagem vocal ou escrita. A
 persistência do corpo em sua exposição coloca essa legitimidade em questão, e o faz,
 precisamente, através de uma  performatividade do corpo. 18 A ação e o gesto significam
e falam, tanto enquanto ação quanto como reivindicação; ambos são, em última
instância, inextricáveis. Onde a legitimidade do Estado é colocada em questão
 justamente por este modo de aparecer em público, o corpo, em si, exercita um direito
que não é direito; em outras palavras, ele exercita um direito que está sendo ativamente
contestado e destruído pela força militar e que, em sua resistência à força, articula seu
modo de vida mostrando simultaneamente sua precariedade e seu direito de persistir.
Este direito não está codificado em lugar algum. Ele não é concedido a partir de outro
lugar ou pela lei vigente, mesmo que nesta ou naquela ocasião ele encontre suporte
 justamente ali. Ele é, de fato, o direito de ter direitos, não enquanto lei natural ou
estipulação metafísica, mas como persistência do corpo contra aquelas forças que
 buscam debilitá-lo ou erradicá-lo. Esta persistência requer que se invada o regime
estabelecido do espaço  com um conjunto de suportes materiais, simultaneamente
mobilizados e mobilizantes.

18
 GAMBETTI, Zeynep. "Occupy Gezi as Politics of the Body" in Umut Özkirimli (ed) The Making of a
Protest Movement in Turkey . Basingstoke: Palgrave Pivot, 2014.
Apenas para deixar isto claro: não estou me referindo aqui a um vitalismo, ou a um
direito à vida enquanto tal. Pelo contrário, estou sugerindo que as reivindicações
 políticas que são feitas por corpos à medida que estes aparecem e agem, à medida que
eles recusam e à medida que eles persistem sob condições nas quais este fato,  per si,
ameaça retirar a legitimidade do Estado. Pois na proporção em que corpos são expostos
a poderes políticos, eles também reagem ao fato de estarem sendo deste modo expostos,
exceto naqueles casos em que as próprias condições da possibilidade de reação foram
dizimadas. Embora eu não duvide que seja possível assassinar a capacidade de reagir
em outra pessoa, considero prudente evitarmos tomar essa imagem de total dizimação
como um meio para descrever a luta dos despossuídos. Embora seja sempre possível
que nos enganemos ao exagerar na direção oposta, alegando que onde quer que haja
 poder existe resistência, seria um erro recusar a possibilidade de que o poder nem
sempre opere em conformidade com suas metas, e que formas viscerais de rejeição
 podem transbordar e assumir significativas formas coletivas. Em tais situações, os
corpos são em si mesmos vetores do poder onde a direcionalidade da força pode ser
revertida; eles são interpretações corporalizadas, se engajando na ação em aliança, de
modo a se contrapor a outro tipo e qualidade de força. Por um lado, estes corpos são
 produtivos e performativos. Por outro lado, eles podem persistir e agir somente quando
são sustentados: pelo ambiente, pela alimentação, pelo trabalho, por modos de
socialidade e pertencimento. E quando estes suportes desmoronam e a precariedade é
exposta, eles são mobilizados de um modo distinto, se apropriando dos suportes que
existem de modo a reivindicar que não pode haver vida corporal sem suporte social e
institucional, sem emprego, sem redes de interdependência e assistência/cuidado, sem
direitos coletivos a abrigo e mobilidade. Não somente eles lutam pela ideia de suporte
social e acesso a direitos políticos, mas  sua luta é sua própria forma social . E assim, se
as circunstâncias forem apropriadas, uma aliança começa a colocar em cena – através do
estabelecimento de seus próprios modos de sociabilidade – a ordem social que ela
almeja constituir. E ainda assim, esta aliança não é redutível a uma coleção de
indivíduos e, falando estritamente, não são indivíduos que estão agindo. Além disto, a
ação em aliança acontece precisamente entre aqueles que participam, e este não é um
espaço ideal ou vazio. Esse intervalo é o espaço da socialidade e do suporte, o espaço de
ser constituído em uma socialidade que não é, jamais, redutível à perspectiva de alguém
isolado ou a ser dependente de uma estrutura sem a qual não haveria qualquer vida
durável e passível de ser vivida.
Muitas das manifestações massivas e modos de resistência que temos visto nos últimos
meses não somente produzem um espaço de aparecimento, elas se apossam de um
espaço já estabelecido e permeado por poderes existentes, de modo a lacerar as
conexões existentes entre o espaço público, a praça pública e o regime vigente .
Desde modo, as fronteiras do político são expostas e a ligação do teatro da legitimidade
com o espaço público é rompida; esse teatro já não é mais abrigado no espaço público
de forma não-problemática, posto que o espaço público agora ocorre em meio a uma
outra ação, uma ação que desloca o poder que alega legitimidade se apossando,
 justamente, do campo formado por seus efeitos. Dito de maneira simples, os corpos
na rua reimplantam o espaço de aparecimento de modo a contestar e negar as
formas existentes da legitimidade política  – e à medida que estes corpos ocupam ou
se apossam do espaço público, a história material daquelas estruturas também opera
sobre eles, tornando-se parte de sua própria ação, refazendo uma história enquanto
imersos em meio aos mais concretos artifícios dessa história. Estes são atores
subjugados e empoderados que tentam tomar à força a legitimidade de um aparato
estatal vigente que depende da regulação do espaço público de aparecimento para sua
auto constituição teatral. Ao tomarem à força este poder, um novo espaço é criado, um
novo lugar “entre” corpos, por assim dizer, que reivindica o espaço existente através da
ação de uma nova aliança, e estes corpos são capturados e animados por estes espaços
existentes nos próprios atos pelos quais eles reclamam e ressignificam o sentido de tais
espaços.
Tal luta interfere na organização espacial do poder, o que inclui a alocação e
restrição de posicionamentos espaciais nos quais e através dos quais qualquer população
 poderia vir a aparecer, implicando uma regulação espacial de quando e como a “vontade
 popular” poderia aparecer. Esta visão das restrições e alocações espaciais que incidem
sobre quem poderia aparecer – de fato, sobre quem pode se tornar um sujeito no
aparecimento – sugere uma operação do poder que atua através, simultaneamente, da
forclusão e da alocação diferencial.
O que, então, significa o “aparecer” na política contemporânea? Seria possível examinar
esta questão sem recorrer, em algum grau, à mídia? Se refletirmos sobre o que é
“aparecer”, notaremos que nós aparecemos  para alguém, e que nossa aparição tem que
ser registrada pelos sentidos – não somente os nossos, mas os de outrem. Se
aparecemos, devemos necessariamente ser vistos, o que significa que nossos corpos
 precisam ser vistos e que seus sons vocalizados precisam ser ouvidos: o corpo precisa,
obrigatoriamente, adentrar no campo visual e auditivo de terceiros . Mas não seria
este, necessariamente, um corpo sexuado e que labora, um corpo racializado e
marcado pelo gênero  de alguma maneira? A perspectiva de Arendt, claramente, se
depara com limitações aqui, pois o corpo é, em si mesmo, dividido em um corpo que
aparece publicamente para falar, e outro corpo (sexual, trabalhador, feminino,
estrangeiro e mudo) que é em geral relegado à esfera privada e pré-política. Tal divisão
do trabalho é, precisamente, aquilo que é questionado quando vidas precárias se
aglomeram nas ruas em formas de aliança que precisam lutar para conquistar um espaço
de aparecimento. Se algum domínio da vida corporal opera como a condição isolada ou
repudiada para a esfera de aparecimento, ela se torna a ausência estrutural que
governa e torna possível a esfera pública .

Se nós somos organismos viventes que falam e agem, então estamos claramente
conectados a um vasto contínuo (ou rede) de seres vivos; nós não somente vivemos
entre eles, mas nossa persistência enquanto organismos que vivem depende da
sustentação nessa matriz de relações de interdependência. E ainda assim, nosso falar e
nosso agir nos distinguem como algo separado de outros seres vivos. De fato, nós não
 precisamos saber o que é especificamente humano na ação política, mas apenas
 perceber, enfim, como a entrada do corpo repudiado na esfera política estabelece
simultaneamente a conexão essencial entre os humanos e os outros seres viventes. O
corpo privado, por conseguinte, condiciona o corpo público – não apenas em teorias
como as de Arendt, mas também em organizações políticas do espaço que continuam
sob muitas outras formas (e que são, em certo sentido, naturalizadas na teoria dela). E
embora o corpo público e o corpo privado não sejam totalmente distintos um do outro
(corpos situados na esfera privada por vezes “aparecem” em público, e cada corpo
exposto publicamente tem seus momentos privados), esta bifurcação é crucial para a
manutenção da distinção entre público e privado, e para a manutenção de seus modos
específicos de repúdio e de negação de direitos políticos.
Talvez seja uma espécie de fantasia achar que uma dimensão da vida corporal deva e
 possa permanecer fora de vista, enquanto outra, totalmente distinta, aparece em público.
Será que não haveria qualquer traço do biológico na esfera de aparecimento?
Poderíamos argumentar, acompanhando Bruno Latour e Isabelle Stengers, que negociar
a esfera de aparecimento é, na verdade, uma atividade biológica, pertinente às
capacidades investigativas do organismo? Afinal, não há forma de navegar em um
ambiente ou procurar comida sem aparecer corporalmente no mundo, e não há qualquer
escapatória à vulnerabilidade e mobilidade que o aparecimento no mundo implica – o
que explica certas formas de camuflagem e autoproteção no mundo animal. Em outras
 palavras, não seria o aparecimento um momento necessariamente morfológico, um
momento no qual o corpo arrisca aparecer não somente visando falar e agir, mas para
sofrer e se mover, assim como para se engajar com outros corpos, para negociar um
ambiente do qual depende, para estabelecer uma organização social para a satisfação de
necessidades? De fato, o corpo pode aparecer e significar de modos que contestam a
forma pela qual ele fala, ou contestam até mesmo a fala enquanto sua instância
paradigmática. Seríamos ainda capazes de compreender ação, gesto, quietude, toque e
movimento se eles fossem todos redutíveis à vocalização de pensamentos através da
fala?
Este ato de falar publicamente, mesmo no âmbito daquela problemática divisão do
trabalho, depende de uma dimensão da vida corporal que é dada, passiva, opaca (e,
 portanto, excluída da definição convencional da esfera política). Logo, poderíamos
 perguntar: que regulações impedem o corpo dado ou passivo de transbordar para dentro
do corpo ativo? Existem dois corpos diferentes – e se é esse o caso, que tipo de política
é requerida para manter ambos apartados um do outro? Seriam estas duas dimensões
diferentes do mesmo corpo, ou na verdade o efeito de certa regulação do aparecimento
corporal que é ativamente contestada por novos movimentos sociais, por lutas contra a
violência sexual, pela liberdade reprodutiva, contra a precariedade, pela liberdade de
mobilidade? Aqui, podemos perceber que certa regulação topográfica ou mesmo
arquitetônica do corpo ocorre no nível da teoria. É significativo que seja justamente esta
operação do poder – a forclusão e alocação diferencial da possibilidade e do modo de
aparecer do corpo – que esteja excluída na perspectiva explícita de Hanna Arendt sobre
a esfera política. De fato, a abordagem explícita de Arendt sobre a política depende
daquela própria operação do poder que a autoranão consegue considerar parte da
 política em si mesma.
Então, o ponto em que concordo com Arendt é o seguinte: a liberdade não provém de
mim nem de você, ela pode e de fato ocorre como uma relação entre nós, ou de fato,
uma relação em meio a nós. Logo, não se trata de encontrar a dignidade humana dentro
de cada pessoa, mas pelo contrário, de compreender o humano como um ser relacional e
social, cuja ação depende da igualdade e articula o princípio da igualdade. De fato, da
 perspectiva dela, não há qualquer humano, se não houver igualdade. Nenhum humano é
capaz de ser humano sozinho. E nenhum humano é capaz de ser humano sem agir
orquestradamente com outros e em condições de igualdade. Eu acrescentaria o seguinte:
a reivindicação de igualdade não é somente falada ou escrita, mas feita,
 justamente, quando corpos aparecem conjuntamente, ou ainda, quando através de
sua ação, eles trazem o “espaço de aparecimento” à existência. Este espaço é uma
característica e um efeito da ação, e ele opera, de acordo com Arendt, somente quando
relações de igualdade são mantidas.
Existem, é claro, muitas razões para se desconfiar de momentos idealizados, mas há
também razões para se desconfiar de qualquer análise que seja total e completamente
 blindada contra idealizações. Há dois aspectos das manifestações revolucionárias na
Praça Tahrir que eu gostaria de ressaltar. O primeiro tem relação com o modo pelo qual
uma dada sociabilidade se estabeleceu em meio à praça, uma divisão de trabalho que
rompeu diferenças de gênero, envolvendo revezamento entre aqueles que falavam e
aqueles que limpavam as áreas onde as pessoas dormiam e comiam, desenvolvendo uma
escala de tarefas para que todos mantivessem o ambiente e limpassem os banheiros. Em
suma, aquilo que alguns chamariam de “relações horizontais” entre os manifestantes se
formava fácil e metodicamente: alianças lutando para incorporar a igualdade, o que
incluía uma divisão igualitária do trabalho entre os sexos. Isto se tornou parte da própria
resistência ao regime Mubarak e suas arraigadas hierarquias, incluindo os
extraordinários diferenciais de riqueza entre as pessoas trabalhadoras e os militares e
 patrocinadores corporativos do regime. Deste modo, a forma social da resistência
começou a incorporar princípios de igualdade que governavam não somente o modo e
as ocasiões em que pessoas falavam e agiam para a mídia contra o regime, mas também
o modo como as pessoas zelavam por seus alojamentos em meio à praça, as camas sobre
o pavimento, os postos médicos e banheiros improvisados, os lugares onde as pessoas
comiam e os lugares onde as pessoas eram expostas à violência vinda de fora. Nós não
estamos meramente falando sobre ações heroicas que demandaram tremenda força física
e o exercício de uma retórica política persuasiva. Por vezes, o simples ato de dormir ali,
na praça, era a mais eloquente das afirmações políticas, e deveria até mesmo contar
como uma “ação”. Estas ações foram todas políticas, simplesmente porque elas
rompiam uma distinção convencional entre público e privado visando estabelecer novas
relações de igualdade; neste sentido, elas estavam incorporando, dentro da própria
forma social da resistência, os princípios que elas lutavam para efetivar em formas
 políticas mais abrangentes.
Segundo, em face de ataques violentos ou ameaças extremas, muitas pessoas na
 primeira revolução egípcia de 2009 cantavam a palavra  silmiyya, que provém da raiz do
verbo  salima, que significa “estar são e salvo”, sem ferimentos, sem sequelas, “intacto”
e “seguro”; mas também significa “estar acima de qualquer reprovação”, “inocente”; ou
ainda, estar “correto”, “estabelecido” e “definitivamente comprovado”. 19  O termo
deriva do substantivo  silm, que significa “paz”, mas também, alternativamente, “a
religião do Islã”. Uma variante do termo é hubb as-silm, expressão arábica para
“pacifismo”. Muito frequentemente o entoar de  silmiyya  desponta como uma gentil
exortação: “em paz, em paz”. Embora a revolução tenha sido, em sua maior parte, não-
violenta, ela não foi necessariamente conduzida a partir de uma oposição por princípio à
violência. Ao contrário, o canto coletivo era um modo de encorajar as pessoas a resistir
ao empuxo mimético da agressão militar e das gangues, mantendo em mente o objetivo
mais amplo: a mudança democrática radical. Se ver compelido a um intercambio
violento momentâneo significava perder a paciência necessária para concretizar a
revolução. O que me interessa aqui é o canto, o modo pelo qual a linguagem operava
não para incitar uma ação, mas para restringir outra: contenção em nome de uma
comunidade emergente de pares cujo modo primeiro de fazer política não seria a
violência.
É evidente que todas as assembleias e manifestações públicas que produziram uma
mudança de regime no Egito se amparavam na mídia visando produzir uma percepção
da praça pública e do espaço de aparecimento. Qualquer exemplo contingente de “a
 praça pública” é situado, e é transponível; de fato, tais exemplos parecem ser
transponíveis desde sempre, ainda que nunca plenamente transponíveis. Evidentemente,
não podemos pensar a respeito da transponibilidade daqueles corpos na praça sem a
mídia. De certa maneira, as imagens da Tunísia na mídia prepararam o caminho para os
eventos midiáticos iniciais no Tahrir, e posteriormente aqueles que se sucederam no
Yemen, Bahrain, Síria e Líbia, todos os quais tiveram diferentes trajetórias que ainda
estão em curso. Muitas das manifestações públicas dos últimos anos não foram
direcionadas contra ditaduras militares ou regimes tirânicos, e muitas delas produziram
novas formações estatais ou condições de guerra que são, seguramente, tão
 problemáticas quanto aquelas que foram por elas substituídas. Contudo, em algumas das
manifestações que ocorreram após estes levantes – especialmente aquelas que visavam
formas induzidas de precariedade – os participantes explicitamente se opuseram ao
capitalismo monopolista, ao neoliberalismo e à supressão de direitos políticos, e agiram
deste modo em nome daqueles que são abandonados por reformas neoliberais que
 buscam desmantelar formas de democracia e socialismo, erradicar empregos, expor
 populações à pobreza e minar os direitos básicos à educação pública e moradia.
O cenário da rua se torna politicamente potente tão somente quando, e se, ocorre uma
versão visível e audível da cena comunicada em tempo real ou quase em tempo real, de
tal maneira que a mídia não está meramente reportando a cena, mas é parte da cena e da

19
  WEHR, Hans. "Salima" in Dictionary of Modern Written Arabic, 4th ed. Ithaca, NY: Spoken
Language Services, 1994.
ação; de fato, a mídia é a cena ou o espaço em suas dimensões visuais e audíveis
estendidas e replicáveis. Um modo de falar sobre isto consiste, simplesmente, em dizer
que a mídia estende a cena visual e auditivamente, e participa na delimitação e
transponibilidade da cena. Dito de outra maneira, a mídia constitui a cena em um tempo
e um espaço que incluí e ultrapassa sua instância local. Embora a cena seja (segura e
enfaticamente) local, aqueles que estão em outros lugares têm a percepção de que estão
tendo acesso direto à cena através das imagens e sons que recebem. Isto é verdade, mas
eles não sabem como a edição está sendo conduzida; eles não sabem que cena transporta
e viaja e que cena persiste obstinadamente fora do enquadramento. Quando a cena viaja,
ela está simultaneamente “aqui” e “lá”, e se ela não abrangesse ambas as localidades,
ela não seria a cena que é. Seu caráter local não é negado pelo fato de que a cena é
comunicada para além dela própria e deste modo constituída na mídia global; ela
depende daquela mediação para se tornar o evento que ela é. Isto significa que o local
 precisa ser reencenado fora de si mesmo de modo a se estabelecer como “local”; isto
significa que é somente através da mídia globalizada que o local pode ser estabelecido e
que algo pode realmente acontecer ali. É claro que muitas coisas efetivamente ocorrem
fora do enquadramento das câmeras e outros dispositivos digitais de mídia, e a mídia
 pode, com igual facilidade, implementar a censura em oposição a tais coisas. Há muitos
eventos locais que jamais são registrados e transmitidos, e há algumas razões
importantes pelas quais isto ocorre. Contudo, quando o evento viaja e é capaz de
invocar e sustentar o ultraje e a pressão globais (o que inclui o poder de paralisar
mercados ou romper relações diplomáticas), então o “local” terá que ser estabelecido
repetidamente em um circuito que, a todo instante, excede a localidade.
Ainda assim, persiste algo situado localmente que não viaja e não pode viajar desta
maneira. A cena não poderia ser a cena, se não entendermos que algumas pessoas estão
se arriscando, e o risco incide precisamente sobre aqueles corpos que estão na rua. Se
eles de certo modo são transportados, de outro modo,indubitavelmente, eles são em seu
lugar inicial deixados: segurando a câmera ou o telefone celular; cara-a-cara com
aqueles a quem se opõem; desprotegidos; vulneráveis à injúria e atingidos por injúrias;
senão insurgentes, pelo menos persistentes. É relevante que tais corpos carreguem
consigo telefones celulares repassando mensagens e imagens; deste modo, quando eles
são atacados, o ataque envolve de algum modo a câmera, e com mais frequência do que
se poderíamos imaginar. Pode se tratar de um esforço para destruir a câmera e seu
usuário, ou de um espetáculo produzido pela mídia como advertência ou ameaça. Ou
ainda, pode se tratar de um modo de interromper uma maior organização coletiva. Seria
a ação do corpo separável de suas tecnologias? A tecnologia não estaria ajudando a
estabelecer novos modos de ação política? E, quando a censura ou a violência são
direcionadas contra aqueles corpos, elas também não estão sendo direcionadas contra
seu acesso à mídia, de modo a estabelecer um controle hegemônico sobre que imagens
viajam e que imagens não viajam?

A mídia dominante, é claro, é propriedade de corporações que exercem seus próprios


modos de censura e incitação. Apesar disto, me parece que ainda é importante afirmar
que a liberdade da mídia para transmitir a partir de tais locais consiste, ela própria, em
um exercício de liberdade, e é deste modo uma forma de exercer direitos – em especial
quando se trata de mídia marginal, produzida da rua e evadindo os censores, na qual a
ativação da câmera é parte da ação corporal em si mesma. Este é, sem dúvida, o motivo
 pelo qual tanto Hosni Mubarak quanto David Cameron, separados por um intervalo de
oito meses, defenderam a censura sobre as redes de mídias sociais. Ao menos em certos
casos, a mídia não somente relata movimentos sociais e políticos que estão, de diversas
maneiras, reivindicando liberdade e justiça; a mídia está também exercendo uma destas
liberdades pelas quais o movimento social luta. Não pretendo, com esta alegação,
sugerir que toda a mídia esteja envolvida na luta pela liberdade política e justiça social
(nós sabemos, com certeza, que não é este o caso). É importante, decerto, levar em
consideração qual mídia global está conduzindoo relato, e considerar como ela o faz.
Meu argumento aqui é que por vezes os dispositivos privados de mídia se tornam
globais justamente no momento em que eles sobrepujam formas de censura ao reportar
 protestos, e deste modo tais dispositivos se tornam parte do protesto em si mesmo.
Aquilo que os corpos fazem na rua, quando estão manifestando,é fundamentalmente
conectado àquilo que dispositivos e tecnologias de comunicação estão fazendo quando
“reportam” o que ocorre na rua. Estas são ações diferentes uma da outra, mas ambas
requerem o corpo. Uma maneira específica de exercício de liberdade está conectada à
outra, o que significa que ambas são formas de exercitar direitos e que, conjuntamente,
elas trazem o espaço de aparecimento à existência e asseguram sua transponibilidade.
Embora alguns possam apostar que o exercício de direitos, hoje, ocorre a despeito dos
corpos na rua (alegando que o Twitter e outras tecnologias virtuais conduziram a um
disembodiment   da esfera pública), tendo em parte a discordar desta ideia. Temos que
considerar a importância da mídia que é “feita com as próprias mãos”, a importância
dos telefones celulares que são segurados no alto, produzindo uma espécie de contra
vigilância que incide sobre a ação militar e policial. A mídia requer que aqueles corpos
na rua tenham um evento, ainda que estes corpos dependam da mídia para poderem
existir na arena global. Contudo, quando aqueles com câmeras e acesso à Internet estão
sujeitos ao aprisionamento ou tortura ou deportação, o uso da tecnologia implica o
corpo de formas particularmente eficazes. Não somente a mão de alguma pessoa precisa
clicar e enviar, mas o corpo de alguém está na reta se este “clicar-e-enviar” for
rastreado.20  Em outras palavras, o posicionamento local dificilmente poderia ser
sobrepujado devido ao uso de meios de comunicação que podem, potencialmente,
transmitir pelo globo afora. Se esta conjunção entre a rua e a mídia constitui uma versão
 bastante contemporânea da esfera pública, então os corpos que estãona reta têm que ser
 pensados como situados simultaneamente aqui e ali, agora e depois, simultaneamente
transportados e estacionários, com consequências políticas bastante diferentes
decorrendo destas duas modalidades de espaço e tempo.

20
A expressão original em língua inglesa usada pela autora ("someone's body ison the line", traduzida
aqui como “está na reta”), expressa o sentido de uma presença corporal em situação que põe o corpo
em risco (N. do T.).
É relevante quando a praça pública está lotada até as bordas, quando as pessoas comem
e dormem ali, quando elas cantam e se recusam a ceder aquele espaço(como vimos nos
 primeiros ajuntamentos na Praça Tahrir e continuamos a ver em outras partes do
mundo).É relevante, igualmente, que instalações educacionais públicas tenham sido
ocupadas em Atenas, Londres e Berkeley. No campus de Berkeley, prédios foram
ocupados, e em resposta multas por invasão de propriedade foram emitidas e entregues.
Em certos casos os estudantes foram acusados de depredação de propriedade e
 patrimônio. Estas alegações, em si mesmas, colocaram em questão se a universidade é
 pública ou privada. O objetivo visado pelos protestos (a ocupação dos prédios pelos
estudantes e seu isolamento ali dentro) era um modo para ganhar uma plataforma; de
fato, era um modo de assegurar condições materiais para o aparecimento em
público. Tais ações dificilmente ocorrem quando plataformas eficazes já estão
disponíveis. Os estudantes ali(mas também mais recentemente,no Reino Unido)
estavam se apossando de tais instalações como uma forma de reivindicar que elas
deveriam por direito, agora e no futuro, pertencer à educação pública. Isto não significa
que a ocupação seja justificável em todas as ocasiões nas quais estes prédios sejam
ocupados, mas precisamos ficar alertas àquilo que está em jogo aqui: o significado
simbólico dessas ocupações é de que aquelas construções pertencem ao público , à
educação pública, e é justamente o acesso à educação pública que está sendo
minado pela escalada de anuidades e taxas de matrícula e pelos cortes orçamentários.
 Nós não deveríamos nos surpreender que a forma assumida pelos protestos consistisse
em se apossar dos prédios, reivindicando performativamente a educação pública;
insistindo, literalmente, em obter acesso às instalações da educação pública  justamente
naquele momento histórico no qual este acesso está sendo desativado . Em outras
 palavras, nenhuma lei positiva justifica estas ações que se opõem à institucionalização
de formas injustas ou excludentes de poder. Poderíamos então dizer que estas ações são,
a despeito de tudo, um exercício de direitos, um exercício não-legal que ocorre
 justamente quando a lei falha ou está errada?
O corpo na rua persiste, mas também busca condições para sua própria preservação.
Tais condições, invariavelmente, são sociais, e demandam uma reorganização radical da
vida social para aqueles que experimentam sua existência como uma existência em
 perigo. Se estivermos pensando de forma lúcida, nosso pensamento nos compromete
com a preservação da vida sob alguma forma;consequentemente, a vida a ser preservada
assume uma forma corporal. Em contrapartida, isto significa que a vida do corpo – sua
fome, sua necessidade de abrigo e proteção à violência – se torna um assunto crucial da
 política. Até mesmo as características mais naturalizadas ou não-escolhidas de nossas
vidas não são simplesmente ‘dadas’; elas são dadas na história e na linguagem, em
vetores de poder que nenhum de nós escolhe. É igualmente verdadeiro que uma dada
 propriedade ou conjunto de características do corpo depende da persistência continuada
do corpo. Aquelas categorias sociais que jamais escolhemos atravessam (de certas
maneiras e não de outras) este corpo dado, e o gênero, por exemplo, nomeia
simultaneamente este atravessamento e sua transformação. Neste sentido, aquelas
dimensões mais urgentes e amplamente involuntárias de nossas vidas – incluindoa
fome,a necessidade de abrigo, a necessidade de cuidado médico e deproteção contra a
violência imposta pela natureza ou pelos humanos – são cruciais para a política. Não
 podemos partir do suposto do espaço fechado e bem alimentado da polis, onde todas as
necessidades materiais estão de algum modo sendo objeto de cuidado por terceiros cujo
gênero, raça ou  status tornam inelegíveis para o reconhecimento público. Pelo contrário,
 precisamos não apenas levar estas urgências corporais materiais para a praça, mas tornar
estas necessidades centrais para as demandas da política.
Em minha visão pessoal, uma condição compartilhada de precariedade situa nossas
vidas políticas, ainda que a precariedade seja diferencialmente distribuída. E alguns de
nós, como Ruth Gilmore colocou com muita clareza, estão desproporcionalmente mais
expostos à injúria e à morte precoce do que outros. 21 A diferença racial, por exemplo,
 pode ser rastreada com precisão simplesmenteinspecionando estatísticas de mortalidade
infantil. Isto significa, em resumo, que a precariedade é distribuída desigualmente, e que
as vidas não são consideradas igualmente passíveis de luto ou igualmente valorizadas.
Se, como Adriana Cavarero argumentou, a exposição de nossos corpos no espaço
 público é em essência aquiloque nos constitui(e que estabelece nosso pensamento como
social e incorporado, vulnerável e apaixonado), então nosso pensamento não poderia
chegar a lugar algum sem partir da premissa desta interdependência e entrelaçamento
corporais em si mesmos. O corpo é constituído pelas perspectivas que ele não pode
habitar; outras pessoas veem nossa face e ouvem nossa voz sob formas que nós próprios
não podemos ver. Estamos, neste sentido (corporalmente), sempre “ali”, e ao mesmo
tempo “aqui”; esta despossessão marca a socialidade à qual nós pertencemos. Até
mesmo na qualidade de seres localizados, estamos sempre alhures, constituídos em uma
socialidade que nos excede. Isto estabelece nossa exposição e nossa precariedade, as
formas pelas quais nós dependemos de instituições políticas e sociais para persistir.
 Nestas demonstrações nas quais as pessoas cantam e falam, mas também se organizam
 por cuidado médico e provêm serviços sociais contingentes, seria possível distinguir
aquelas vocalizações que emanam do corpo de outras expressões de necessidade e
urgência materiais? Naquelas situações em que os manifestantes estavam, no fim das
contas, dormindo e comendo em praça pública, construindo banheiros e sistemas
diversos para compartilhamento do espaço, os manifestantes não estão somente se
‘recusando a desaparecer’, se recusando a permanecer em casa ou ir para a casa, e não
somente reivindicando para si próprios o domínio público, agindo de maneira
orquestrada em condições de igualdade. Eles estão, também, sustentando a si próprios
como corpos persistentes com necessidades, desejos e requisições: requisições
arendtianas e contra-arendtianas, para ser precisa (pois estes corpos que estão
organizando suas necessidades básicas em público estão, também, peticionando ao
mundo que registre o que está acontecendo ali, para tornar seu apoio conhecido, e deste
modo adentrar a própria ação revolucionária). Os corpos agiram de forma orquestrada,
mas eles também dormiram em público, e em ambas estas modalidades eles estavam

21
  GILMORE, Ruth Wilson. Golden Gulag: prisions, surplus, crisis and opposition in globalizing
California. Berkeley: University of California Press, 2007.
simultaneamente fazendo demandas e vulneráveis, conferindo organização política e
espacial a necessidades corporais fundamentais. Neste sentido, eles se constituem uns
aos outros enquanto imagens a serem projetadas para todos os que assistiam,
 peticionando nossa atenção e reação de modo a arregimentar uma cobertura de mídia
que não consentisse que o evento em curso fosse abafado ou escapulisse. Dormir no
asfalto não era somente um modo de reivindicar o espaço público e contestar a
legitimidade do Estado, mas também, muito claramente, um modo de colocar o corpo
na reta, em sua insistência, obstinação e precariedade, sobrepujando a distinção entre o
 público e o privado durante o tempo da revolução. Em outras palavras, foi somente
quando aquelas necessidades que deveriam supostamente permanecer privadas foram
expostas dia e noite na praça, e transformadas e imagem e discurso pela mídia, que se
tornou, finalmente, possível estender o espaço e o tempo do evento com tenacidade ao
 ponto de trazer o regime abaixo. Afinal, as câmeras nunca pararam; os corpos estavam
lá e aqui; eles nunca pararam de falar(nem mesmo ao dormir), e deste modo não
 puderam ser silenciados, isolados ou negados: a revolução, de vez em quando, ocorre
 porque todos se negam a ir para a casa, aderindo ao asfalto como o lugar de sua
convergente e temporária coabitação.

Você também pode gostar