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QUESTÕES PEDAGÓGICAS
PRIMEIRA PARTE
Noções Gerais
* *
CAPITULO PRIMEIRO
DA MITOLOGIA À CIÊNCIA HISTÓRICA.
§ 1. A palavra História.
Y■I/XH NIKA
Foi na Grécia que nasceu aquêle desêjo desinteressado de sa-
ber que ainda hoje em dia constitui um dos elementos mais carac-
terísticos da nossa civilização. Os primeiros sábios, — é difícil de-,
cidir se eram filósofos ou cientistas, — davam vários nomes a essa
,
§ 2. Os primórdios da historiografia.
(2) . — Os chamados filósofos pré-socráticos devem ter empregado o têrmo "história" "
nas suas publicações, mas não possuímos fragmento algum que tenha conser-
vado a palavra.
•■•
— 409 —
(3): — Hesíodo, poeta grego (século VIII a. C.) escreveu dois poemas didáticos: a.,
Teogonia e Obras e Dias (uma espécie de calendário para uso dos lavradores,
rico em sentenças moralistas e preceitos práticos) .
. — Strabo, Geographica, I 2, 6. — Strabo (Estrabão) era geógrafo e historiador
grego (63 a. C. — 19 d. C.). Perderam-se, infelizmente, as obras históricas
désse sábio sensato e equilibrado.
. — Hecataeus Milesius, Fragmentum 332, in Fragmenta Historicorum Graecorum, -
edd. C. et Th. Müller, Bibliotheca Didotiana, vol. I, pág. 25 .
— 410 —
§ 3. A historiografia grega.
,(13) . — A obra de Políbio contava 40 livros, dos quais possuimos I-V completos, e o
resto em fragmentos, por vêzes bastante extensos. — Nos livros MI trata
da pré-história de Roma e Cartago; nos livros III-XXIX dos acontecimentos
entre 221 e 168; nos livros XXX-XL narra as conquistas romanas até o ano
144. — O livro XXXIV é inteiramente consagrado a questões geográficas.
.(14). — Chegaram até nós os livros I-V (tempos míticos, anteriores à guerra troiana)
e XI-XII (480-302 a. C.), e numerosos fragmentos.
415) . — Possuimos ainda os livros I-X completos, XI incompleto, e o resto em frag-
mentos extensos.
— 414 —
§ 4. A historiografia latina.
. — Os dies fasti são mais ou menos comparáveis aos nossos "dias úteis"; neles o
pretor podia pronunciar uma sentença judiciária, e o povo podia cuidar dos
seus negócios políticos e privados, coisas essas que eram proibidas nos dies.
nefasti. Os dies nefasti não eram "dias' nefastos ou negros", na acepção mo-
derna da palavra. Ristes eram chamados dies atri ou religiosi: aí eram come--
moradas as catástrofes públicas, por exemplo 18 de julho que era dies ater por
três motivos: 447 a. C., derrota do exército romano nas margens do rio Crê-
mera (os 300 Fábiosl ); 387 a. C., batalha do Alia (vitória dos gauleses sôbre-
os romanos; 64 d. C., o Imperador Nero incendiou grande parte da cidade.
. — Cícero, De Oratore, II 12, 52.
(18a). — Cf. Servius, ad Aeneidem, I, 373.
. — Encontram-se os fragmentos de Catão em Historicorum Romanorum Fragmenta,.
ed. H. Peter, Lipsiae, 1883.
416 —
420). — Cato, Fragmentum 77: Non lubet scribere, quod in tabula apud pontificam
maximum est, quotiens anona cara, quotiens lunae aut solis lumine caligo aut
quid obstiterit.
( 21) . — Não sabemos ao certo se Catão conseguia omitir também os nomes dos heróis
pré-históricos, venerados como divinos em Roma, por exemplo Rômulo. A
nosso ver, é pouco provável.
(22) . — Cf. Cato, Fragmenta, 83; 88; 95, etc.
423) . — Cf. Titus Livius, Ab Urbe Condita, XXVI 49, 3: adeo (ei) nulius mentiench
modus est.
— 417 —
(27) . — Os Annales descreviam a época desde a morte de Augusto (14 d. C.) até a --
morte de Nero (68) . Possuimos completos os livros I-IV, incompletos V e -
VI (reinado de Tibério); completos XI-XV (os fins do reinado de Cláudio
e os primeiros anos de Nero), e incompleto XVI.
(28). — Plinius, Epistulae, VI 16. — O mesmo Plínio escreve, outra vez, a seu amigo ,
(VII, 33,3): Augurar, nec me fallit, ougariam, histoiras tuas immortales futuras.
— 419
§ 5. As crônicas.
L
Nos fins da Antigüidade abaixou o nível cultural e científico:
os intelectuais, em vez de fazerem pesquisas pessoais, contentavam-
se em compilar as obras clássicas, que se iam revestindo de um
prestígio quase dogmático. A ciência, renunciando ao ideal de pro-
gredir, sofria de esclerose, e era baseada em livros de segunda mão:
manuais e enciclopédias. Repetiam-se as palavras dos grandes mes-
tres, amiúde mal entendidas e quase sempre conhecidas indireta-
mente. A historiografia partilhava a triste sorte das outras ciências
e artes: era a época das sinopses, dos resumos, dos manuais, aos
quais, em geral, faltava todo o senso histórico. A decadência não
estava no fato de haver manuais, — enciclopédias e manuais são
os companheiros indispensáveis de uma velha cultura, — mas na
sua péssima qualidade, prova da diminuição do espírito crítico, e
no fato de não existirem, ao seu lado, obras históricas e pes-
quisas originais. A historiografia era reduzida a tabelas cronoló-
gicas, regressando assim ao seu ponto inicial. Os cristãos, pouco in-
teressados em investigar o passado pagão, contribuiarn muito para
o desenvolvimento do novo gênero: as crônicas. Interessava-lhes
saber de que maneira se enquadrava a história do povo eleito na
história profana dos gentios. Devemos reconhecer que esta tentativa
de alargar o horizonte histórico constituia uma novidade e podia
ter sido um progresso considerável. Mas os cristãos, filhos de uma
cultura moribunda,, harmonizavam a história sagrada e a história
profana bastante desleixadamente, introduzindo muitos erros na
historiografia. Não eram pesquisadores mais críticos do que seus
— 421 —
§ 6. A Renascença e o Humanismo.
O CONCEITO DA HISTÓRIA
§ 8. A definição.
A. O OBJETO MATERIAL.
§ 9. Os atos humanos.
cannot get any farther, proves that he has not a mind as man has
B. O OBJETO FORMAL.
§ 12 . O tempo.
— Pe. Leonel Franca, A Crise do Mundo Moderno, Rio de Janeiro, 1951, pág. 21.
— S. Augustinus, Confessiones, XI 14, 2. — Cf. J. Balmes, Filosofia Fundamen-
tal (Obras Completas, Barcelona, Biblioteca Perenne, 1948, vol. I, pág. 788):
El tiempo es una cosa muy difícil de explicar; quien nega sernejante dificulted,
manifieste beber meditado muy p000 sobre el fundo de le cuestión. — Cf.
Pascal (ed. citada), pág. 170. S6bre o "tempo histórico", cf. L'Hornme et
l'Histoire (=Artes du VIe Congrès des SoCiétés de Philosophie de langue fran-
çaise), Presses Universitaires de France, 1952, págs. 51-81.
— 433 —
(2) . — John Henry Cardinal Newroan, A Grelou-nor. of Asserir,. Longmans, Green ar..
Co, New York, London, Toronto, 1947, pág.• 219.
— 441 —
(4). — Sir Walter Raleigh (1552-1618), um dos grandes heróis marítimos da Ingla-
terra, era favorito da rainha Elisabeth I (The Virgin Queen), em cuja honra
apelidou a nova colônia norte-americana de Virgínia (1585). Sob o reinado
de Jaime I foi acusado de haver conspirado contra o trono, condenado à morte
(1603) e perdoado, mas ficou prêso na Tower até o ano 1616. Em 1618
foi morto por causa de unia expedição malograda.
443
(5) . — Terentius, Heauton Timoroumenos, 77. — Cf. o epíteto inglês, aplicado se,,
Shakespeare: the myriad minded man.
(6). — Cf. § 66, I.
445
(dência que é quase impossível ignorá-las e muitas vêzes nos ofus-
cam a vista para descobrirmos as causas remotas. Ninguém dú-
vida, por exemplo, de que as indulgência, pregadas por Tetzel na
Alemanha, foram uma das causas ocasionais da revolta de Lute-
ro . Mas as causas remotas levam-nos muito mais longe, e aí
surgem geralmente as dificuldades. O nosso conhecimento das
causas históricas é muito pobre, como havemos de expor mais
adiante (7) . Mas vale a mesma regra que já formulamos aci-
ma: a procura das causas históricas não é um ato subjetivo e ar-
bitrário, e sim obedece às boas regras da lógica e da filosofia, ve-
rificáveis para outros.
c) A apreciação dos fatos históricos é outra questão, que
pretendemos expor na terceira parte dêste livro (8) . Basta dizer-
mos aqui que os próprios fatos não se explicam a si mesmos, mas
que é o historiador, — o espírito humano, — que lhes dá certo
aprêço. Em virtude de quê? Em virtude de certa filosofia, "mun-
dividência" ou credo religioso, cujos princípios, se não podem ser
julgados pela história, podem e devem ser examinados por uma
,ciência superior: a filosofia ou a teologia. E quais as normas que
são aplicadas por essas ciências? São, mais uma vez, argumentos ob-
jetivos ou evidências.
VI. Restam dificuldades quanto à objetividade da histó-
ria: bem o compreendemos. As páginas anteriores pretenderam
.apenas introduzir o leitor no problema mais árduo da nossa ciên-
cia: em outros parágrafos dêste livro tornaremos a discutí-lo (9).
Por enquanto basta sabermos que o valor da interpretação histó-
rica depende de argumentos objetivos, mas que a argumentação
_histórica difere foto caelo de uma demonstração matemática . A
história não lida com abstrações, mas com fatos concretos: aí está
„a maior dificuldade. E o objeto próprio das ciências "puras" é o
universal e o necessário; não o particular e o contingente, que é o ob-
jeto da história. Resumindo, podemos dizer: o conhecimento his-
tórico tem valor objetivo e universal neste sentido: para ser uni-
versal basta que possa ser admitido e aceito por todos os que
se ocupam da mesma matéria, e para ser objetivo basta que o
adiantamento da ciência não o aniquile por completo, mas o apro-
funde e integre numa nova síntese. Um exemplo prático: Tucídi-
des formulou há 2500 anos com grande perspicácia as causas da
:guerra peloponésia . A historiografia moderna não modificou es-
sencialmente a interpretação do grande ateniense, pôsto que lhe
enriquecesse e aprofundasse o sentido (10).
exemplo "o homem medieval", são muitas vêzes tratados por prin-
cipiantes como verdadeiras abstrações. O mestre,, porém, mane- ,
( 10) . — Cf. G. Isaye, apud L'Homme et l'Histoire, pág. 21: La justification critique-
des principes immuables peut progresser, en utilisant la rétorsion comine
tère. Et de plus, il est poosible de feire des progrès en précision. Un juge-
ment peut se présenter á juste titre comme tzniversellement vrai à tuz mo-
ment oìr l'on ignore encore une certame distinction . Y a-t-il alors "ré--
vision" de ce jugement? Une précision nouvelle, oui . Une correction, non;
car le jugement n'avait pas pris position à l'égard d'une distinction qu'il
ignorait, dont il faisait abstraction . Cette bois, il ypassage de l' ignorence-
r
à la connaissance, non de l'erreur à la vérité. L'histoire de la pensée
donc la temporalité avec la certitude , • ,
CAPÍTULO QUARTO
plos da história . Não possuem o rigor das leis físicas, cujo fun-
cionamento podemos repetir à vontade. L'histoire ne se répète
jamais. A verdade expressa pelas "leis históricas", aproxima-se
muito perto da sabedoria popular, contida num provérbio . Não
desprezamos nem a sabedoria dos provérbios nem a da história,
mas cumpre que lhe conheçamos a natureza e não a equipare--
mos a uma fórmula matemática ou a uma lei física. As leis his-
tóricas não nos permitem nenhum cálculo exato sôbre o futuro
processo da humanidade.
Para um esprit géométrique pode ser decepcionante tal con- -
ceito da causalidade histórica: ao examinar de perto o objeto pró-
prio da história, deverá reconhecer que cada uma das disciplinas-.-
exige o seu método e necessita de um conjunto de conceitos es-
peciais.
Terminando, podemos dizer que a causalidade histórica, em----
bora longe de esgotar a realidade histórica, não é uma constru-
ção arbitrária do espírito humano, mas um conhecimento frag-
mentário da realidade e possui valor objetivo . Por sabermos as -
causas de um fenômeno histórico compreendemos não só a cone--
xão lógica entre dois fenômenos, mas reconstruimos também algo
da realidade objetiva, ainda que a reconstrução seja forçosamen-
te deficiente.
Revista de História 10
— 452 —
A. O ASPECTO SOCIAL.
(7). — Cf. o célebre livro de José Ortega y Gasset: La Rebelión de las Mesas (1930.—
— 457 —
Cisma foi de 483 a 519 (o chamado Cisma de Acácio). Nos séculos VIII-IX
houve a questão das imagens e do Filioque; em 968 o Cisma de Fócio; em
1054 a separação definitiva (o Grande Cisma de Miguel Cerulário).
;(13). — A Reforma protestante de Lutero (1483-1546), Calvino (1509-1564) e Zwínglio
(1484-1531).
459 -7,
. — Santo Agostinho convidou Orósio a escrever tal história universal, cf. § 77.
• — Os jesuítas editavam, desde 1703, as Lettres édifiantes, relatórios anuais das
suas atividades missionárias, em que exaltavam principalmente a aptidão natu-
ral do povo chinês para o Cristianismo. — Um dos primeiros a tomar conhe-
cida a China na Europa foi Joseph-Marie Amyot, S. J. (1718-1793) .
. — Voltaire, Essai sor les Moeurs et l'Esprit des Nations, Avant-Propos, no fim.
— 465 —
B. O ASPECTO INDIVIDUAL.
§ 23. O indivíduo na história.
ca. O povo como tal não faz versos nem elabora um sistema filo-
sófico. A pessoa humana não é simplesmente o expoente da socie-
dade, mas incorpora-se nela de maneira espiritual . O fim da socie-
dade não coincide, se não em parte, com o da pessoa, que tem os
seus direitos invioláveis. O homem, é verdade, necessita da socie-
dade, mas esta precisa mais ainda do homem, da personalidade,
que nela se integra e a transcende ao mesmo tempo . Há sempre-
certa tensão entre a sociedade e a pessoa, por vêzes até conflitos
trágicos. O homem medíocre, que possui pouca "personalidade",
escolhe geralmente o caminho do menor esfôrço, acomodando-se de-
boa vontade às exigências justas ou injustas da coletividade. Se a
"personalidade" se lhe adapta, fá-lo por motivos bem diferentes: -
consciente do seu lugar no conjunto social toma uma livre decisão-
em virtude de certos valores objetivos que a sociedade representa.
Mas acontece também que se revolta contra ela, com seus protes-
tos, seus atos, suas palavras, sua atitude. Insurge-se contra as ten-
dências necessàriamente niveladoras de tôda a convivência huma-
na, ora por ressentimento ou orgulho, ora por obedecer a um impe-
rativo da sua consciência.
Por dois motivos, então, a pessoa merece a atenção dos histo-
riadores: por seu valor intrínseco e por causa da influência que exer-
ce sôbre o processo histórico, para o bem e para o mal. Assim se
explica a popularidade que goza uma biografia bem escrita, em tô-
das as camadas da sociedade. O homem interessa-se sempre pela
homem, e tem a tendência de admirá-lo e amá-lo, ou então, de- '
(23a). — A palavra "biografia" encontra-se urna única vez na literatura grega, num optas- ,
culo do último neoplatônico Damáscio (século VI): Vita Isidori VIII. Até os
fins do século XVII preferia-se: "Vita", ou "Vida", etc. — Na Inglaterra
foi introduzida "biography" pelo poeta Joha Dryden (1683), na Alemanha "I3io-
graphie" em 1709, expressão sancionada pela Académia française só em 1762.
(24) . — Cf. Plutarchus, Vitae Aemilii et Timoieontis 1; Vitae Alexandri et Caesaris
1; Vitae Cimonis et Lueulli 2; Vitae Dernetrii et Antonii 1.
— Possuimos ainda 23 pares de biografias, além de duas isoladas, consagradas.
aos Imperadores romanos Galba e Otão. Perderam-se pelo menos 4 Vitae..
— Cf. Plutarchus, Vitae Aemilii. et Tirnoleontis 1, e Moralia pág. 85B.
— Pela Editôra das Américas (São Paulo). A tradução é de. -vários autores.-
468
C. O ASPECTO CRONOLÓGICO.
(38). — Ou então, chegaram textos escritos até nós, mas ainda não somos capazes de
decifrá-los (por exemplo a escrita minóica de Creta), ou de entendê-los (por
exemplo a língua etrusca) . Cf. § 41, II.
-- 471 —
(43). — A divisão da história egípcia por 31, dinastias remonta à obra histórica dcr-
sacerdote Maneton (século III a. C.), que escrevia em grego. Encontram-se.
os fragmentos da sua história em Fragmenta Historicoram Graecorum II, págs_
511-615.
. — Florus, Epítome I, Freei'. 4; Amtniattlis Marcellinus, Return Gestartun XIV
6, 3-4; S. Augustinus, De Vera Religione, XXVI, 48.
• — O romano Varrão dividia a história em três períodos: a época duvidosa (da -
início ao dilúvio), a época mítica (do dilúvio à primeira 'Olimpíada,' em- 776
a. C.), e a época histórica. Cf. Censorinus, De Die Natali 21, 1.
— 473
<54). — Em 476 foi deposto o último Imperador romano (Rômulo Augústulo) pelo
capitão germânico Odoacro; em 313 Constantino Magno concedeu a liber-
dade aos cristãos (Édito de Milão); em 529 São Bento fundou o mosteiro
de Monte Cassino, e foram fechadas, por ordem do Imperador Justiniano, as
antigas escolas filosóficas em Atenas; em 800 Carlos Magno foi coroado Im-
perador em Roma pelo papa Leão III; em 31 a. C. o helenismo "oriental",
representado por Antônio e Cleópatra, foi derrotado por Augusto, símbolo do
Ocidente latino.
— 476 =
§ 28. Os estilos.
(55) . — G. Vasari, Vite de' pià eccellenti pintori, etc., Introduzione, c. III.
--- 477 —
<56) . — Atualmente divide-se a história grega muitas vêzes nestes períodos: a época
micênica (até 1200 a. C.), a Idade Média (±1200-650), a época clássica
(±650-338), a época belenística (338-146), a época romana (146 a. C. —
330 ou 395 d. C.), e a época bizantina (330 ou 395-1453).
— 478 --
D. O ASPECTO CULTURAL.
(57) . — Lembramos umas linhas de Molière (Théâtre Complet, Paris, 1883, vol. VIII,.
págs. 305-306):
Et non du fade gout des ornements gothiques,
Ces monstres odieux des siècles ignorants,
Que de la barbarie ont produits les torrents,
Quand leur cours, inondant presque toute la ferre,
Fit à la politesse une mortelle guerre,
Et, de la grande Rome abattant les rarnparts,
Vint avec son empire étouffer les bem= arta.
Cf. N. Boileau, L'Art Poétique II 22.
479
tão uma forte reação, a exigir que se estudassem também outros fe-
nômenos culturais na sua evolução e mútua conexão. Inaugurou-se
a história da civilização, que poderíamos dividir em duas partes: a
história geral e as histórias particulares.
A história geral da civilização abrange, em tese, tôda a
matéria histórica, sem excluir a política e os dados biográficos. Mas
a focaliza de maneira bem diferente. Interessam-lhe nada menos:
que os acontecimentos políticos própriamente ditos, as várias reali-
zações artísticas e científicas, a estrutura social e os costumes do
povo, a vida econômica e religiosa,• etc. Ou antes, para a história
da civilização a política não passa de um dos numerosos fenômenos•
importantes do passado. Voltaire foi um dos primeiros a cultivar
êsse gênero de historiografia, escolhendo por tema o século áureo
de França: Le Siècle de Louis XIV . A obra, que presta bastante
atenção às invenções úteis e ao progresso das artes mecânicas e das
ciências, interessa-nos hoje mais por ser uma tentativa nova do que
por sua profundidade, e o mesmo se pode dizer do seu Essai (58)
A partir do século passado a história da civilização chegara a ser
gênero tão comum que acabou por ocupar também um lugar nos
livros didáticos. Destacamos aqui dois trabalhos modelares entre•
os muitos que poderíamos mencionar: A Cultura da Renascença na
Itália, do historiador suiço J. Burckhardt (1a. edição de 1867), e
O Outono da Idade Média, do historiador holandês J. Huizinga (1a.
edição de 1924) . As duas obras foram várias vêzes reeditadas nas
línguas originais, e traduzidas para muitos outros idiomas. As obras ,
E. O ASPECTO MATERIAL.
A MESTRA DA VIDA
. — Clio seecla retro memorat sermone soluto, e Clio gesta canens transactas tem--
pora reddit, assim começam dois poemetos, consagrados aos ofícios das nove
Musas e muito populares na Idade Média: êste de um poeta anônimo, aquêle-
de Florus (século II d. C.) . — Cf. E. Baehrens, Poetae Latini Minores,
(Lipsiae 1871 e 1882), vol. III pág. 242, e vol. IV 279. — Os nomes das.
nove Musas são enumeradas, pela primeira vez, por Hesiodus, Theogonia, 77-79..
. — Aristóteles, Poetica, 9. — O moralista Sêneca observa (Quaestiones Naturales
III Praef. 5): Consempsere se quidam, dum acta regula extemorum compo.
nunt quaeque pess., invicem ausique sunt populi. Quanto satius est sua mala,
erstinguere quem aliena posteris tradere?
. — Por exemplo na sua obra histórica: De Republica Atheniensitnn.
(4)• — Por exemplo Dicearco (±300 a. C.) que escreveu a primeira história da civili-
zação grega ( :"Vida da Hélade"), e Aristóxeno de Tarento (século III) que
passa pelo pai da biografia literária.
(5). — Cícero, De Oratore, II 9, 36. — Cf. as palavras de Políbio (Historiae I 1,.
1): "Os homens não possuem corretivo melhor do que o conhecimento dos.
fatos do passado".
( 12 ) . — 122.1;7sac'artIes,1, D2isco
. urs de ta Méthode (Paris, Finam:clarim), 1935, pág. 6.
- 487 -
,413). — Pe. Antônio Vieira, História do Futuro, Ed. e Publ. Brasil, São Paulo, 1937,
pág. 32.
.414) . — Cf. § 3, IV.
488 —
. — O têrmo "filosofia" não deve ser entendido aqui no seu sentido técnico.
. — Cícero, De Oratore, II 15, 62.
(19). — Fénelon escreveu em 1714 Lettre sur les Occupations de l'Académie française-
(publicada em 1716), cujo capítulo VIII é intitulado: Projet d'un Traité sur
O autor adere, como é muito natural . no seu tempo, à história
l'Histoire.
"pragmática", cf. logo no início: L'Histoire est né4 trunoins três importante:
c est elle qui nous montre les grands exemples, qui fait servir les vices mê-
mes des méchants à l'instruction des bons, qui débrouille les origines et qui
explique par quel chemin les peuples ont passés d'une forme de gouverne-
ment à une autre.
— 490 —
, -(20) . — John Henry Cardinal Newman, Literatura, in The Ideei of a University, Lon-
don-New York, etc., 1939, pág. 285.
— 491 —
`histórico", mesmo que não seja "artista", pela leitura constante dos
grandes historiadores e por contínuos exercícios práticos.
Quanto ao segundo ponto: a história não é ciência natu-
ral, podemos ser breves, visto que já falamos repetidamente nesse
assunto. Sob a influência do Positivismo e Evolucionismo parecia
que a história ia sendo absorvida pela sociologia ou pela biologia.
"Era a época das chamadas leis históricas, interpretadas no sentido
da física: relações constantes (e, às vêzes, consideradas como abso-
lutamente necessárias) entre dois fenômenos: só a esta condição
a história mereceria o título soberbo de "ciência". Assim pensavam,
na França, Taine (21); na Inglaterra, Henry Thomas Buckle (22);
na Alemanha, Karl Lamprecht (23). Os três foram grandes his-
toriadores, e seria uma injustiça dizer que não tenham contribuído
para o progresso da nossa ciência. Não podemos, porém, concor-
dar com os seus pressupostos filosóficos. A história é uma ciência
eminentemente descritiva, tendo por objeto os atos humanos, que
são concretos e singulares. Na terceira parte dêste livro pretende-
mos aprofundar essa noção.
O historiador examina sem preconceito as várias dou-
trinas, os vários ideais e as várias formas de vida nos tempos pas-
sados, esforçando-se por "reviver" as experiências alheias. Conse-
gue colocar-se mentalmente no lugar das pessoas históricas, ou me-
lhor: com certo sentimento doloroso percebe que jamais o conse-
guirá por completo, visto que é sempre da sua própria "situação"
"histórica que procura aproximar-se de outras culturas. Assim vai
avaliando cada vez mais o valor relativo da sua própria concepção
da vida e do mundo. Aí ameaça o perigo do relativismo histórico ou
do "historicismo", que consiste em eliminar tôdas as normas abso-
lutas do processo histórico. Conseqüentemente, cada período teria
direito à sua moral, à sua verdade, a seu Deus, e a seus ídolos.
Não existiriam normas objetivas, sendo que elas seriam apenas fa-
ses de uma evolução mecânica ou biológica, ou então seriam deter-
minadas por sua "fôrça existencial". Em Spengler encontramos a
expressão clássica do historicismo moderno: "Não há verdades eter-
nas. Tôda e qualquer filosofia é apenas expressão da sua época, e
só a ela pertence" (24), e: "Nenhuma frase de Heráclito, Demó-
crito ou Platão é verdadeira para nós, a não ser que a tornemos
verdadeira" (25).
— 493
QUESTÕES PEDAGÓGICAS
SEGUNDA PARTE •
A Investigação Histórica.
....ubi plus utilitatis invenies quam decoris....
Cassiodorus, De Orthographia.
CAPITULO PRIMEIRO
OBSERVAÇÕES PRELIMINARES.
(10) . Cf. Revista de História, Ano II, n.o 7 (págs. 111-141), e n.0 8 (págs. 253-
269; págs. 345-364; págs. 433-442) .
— 443 —
A HEURISTICA.
(10) . — Possuímos dêle e dos seus amigos 931 cartas (818 do próprio Cícero), re-
partidas entre várias coleções: Ad Atacam, ad Familiares, ad Quintum Fre-
trem, ad Brutum, etc.
— Possuímos dêle centenas de cartas, dirigidas a quase todos os contemporâneos
importantes (por exemplo Lutero, Tomas More, papas, etc.), e editadas em
9 volumes por P. W. Allen (Oxford, 1906-1938).
— Possuímos dêle mais ce 12.000 cartas (por exemplo a Frederico II da Prús-
sia, a Catarina II da Rússia, etc.).
— Correspondance de Napoléon I (32 volumes. Pc,ris, 1858-1870).
— Dois exemplos de Memórias, consagraôas a grandes personagens são: Le Mémo-
rial de Sainte-Hélène, editado em 8 volumes pelo Conde de Las Casas (1822-
1825), e Gespriiche mit Eckermann (=Conversações Ge Goethe com seu se-
cretário Eckermann), editado cio 3 volumes (1836-1848).
<15). — Júlio César, quando cônsul (59 a. C.), fêz publicar diàriamente os chamados
Acta Diurna, os quais traziam comunicados oficiais, mas também outras no-
tícias, e até um setor da "vida social": precursor na Antigüidade dos jornais
modernos (cf. Suetonius, Divus Julius, 20). Ao que parece, subsistiram até
o início co século IV. Em Pequim (China) havia certa espécie de jornais
já no século X. — Na Europa os jornais datam da época da Renascença
(principalmente na Itália e na Alemanha): tinham sua origem em publicações
ocasionais e avulsas, que só depois (a partir de 1600) começaram a sair com
maior regularidade( por exemplo, mensalmente ou semanalmente) e a ser
numeradas. Nos meados do século XVI vendiam-se em Veneza as Notizie scritte,
trazendo notícias da Bôlsa, ao preço de uma gazzetta (=2 soldi; daí a palavra
"gazeta"). Na Alemanha saíram, no mesmo século, nada menos de 877 "re-
— 449 —
§ 39. Os Restos.
Os Restos são todos os outros vestígios do passado, capazes
de nos darem informações históricas. Não foram feitos com o fim
de transmitirem conhecimentos históricos à posteridade, e essa cir-
cunstância lhes dá um grande valor objetivo. Uma vez provada a
autenticidade dos "restos", merecem nossa plena confiança, visto
que não mentem. Mas não mentem porque não falam; a tarefa do
,
(53). —, A pec.ra, que data do ano 196 a. C., quando um dos Ptolomeus reinava no
Egito, acha-se atualmente no British Museum em Londres.
. Angelo Mai (1782-1854) descobriu, por exemplo, grande parte do tratado de
Cícero De Republica, e as cartas de Frontão, o mestre e amigo do Imperador
Marco Aurélio (século II) .
. — D. Germain Morim O. S. B. (1861-1947) descobriu muitos sermões de San-
to Agostinho e de outros Padres da Igreja (Cesário de Arles) .
. — A "certidão Cie batismo do Brasil" foi publicada, pela primeira vez, em 1817,
pelo Pe. Manuel Aires de Casal na sua Corografia Brasílica.
. — Cf. 57 III a.
. — São as contas do faraó Ramsés III (1200 a. C.), bote no British Museum.
— 459 —
( 69). Nesta Donatio o Imperador Otão II confirmava as doações, feitas pelos caro-
I íngios aos papas. A primeira é de Pepino-o-Breve ( 756 ), em que cedia
ao papa 21 cidaC.es na Itália.
('O) — Só em 1784 concluiu-se a remessa dos documentos de Avinhão para Roma.
( 71 ) . — A História dos Papas de L. Von Pastor, abrange o período dos fins da Ida-
de Média ( Martinho V, 1417-1431) aos inícios da história contemporânea
(Pio VI, 17754799 ) . A Obra inteira tompõese ,4e 26 volumes ( 18864933 ) •
( 72 ) . — Cf. Diodorus Siculus, Bibliotheca, I 49, 53. Esta biblioteca continha apenas
livros teológicos e místicos.
- 46 2'.
. Em Alexandria havia duas grandes bibliotecas, uma das quais estava incor-
porada no "Museu" (cf. 47 I) . O total dos livros teria sido de 700.000
"volumes". Quando urna das duas foi destruída, por ocasião das guerras de
César no Egito (47 a. C.), teria sido abastecida novamente pela biblioteca
de Pérgamo. Segundo outros autores, esta biblioteca teria mudado para Ro-
ma. — Não sabemos ao certo qual foi o fim definitivo das bibliotecas ale-
xandrinas. Uns julgam que foi em 273 4. C. (revolta dos egípcios contra o
Imperador Aureliano), outros acreditam numa decadência demorada e gra-
dativa, outros ainda dão crédito à lenda de que teriam si(, usados os livros
para aquecer o banho (.e Ornar II, quando êste calif aem 643 tomara a ci-
dade, dizendo: "Se êstes livros divergem do Alcorão, são nocivos; se com
êle concordam, são supérfluos".
. — A biblioteca de Pérgamo, fundada pelos atélidas, uma dinastia helenística,
contava ±200.000 volumes. — Outra biblioteca importante era a de Antio-
quia na Síria.
-- 463 ---
Á CRITICA HISTÓRICA.
§ 43. Crítica externa e crítica interna.
B 1 recentiores
H
CX G
U FV K recentiores
B é um códice, escrito na segunda metade do século VIII na
Itália do Sul, que depois passou para a Alemanha (atualmente em
Bambergo) e deu origem ao códice U (século XII), atualmente no
Vaticano. O códice M (século X, atualmente em Paris) deve ter
sido composto igualmente na Itália do Sul, e apesar de se aproxi-
mar em alguns pontos do texto BU, representa uma tradição não
diretamente dependente dêle. Duas fontes, O e E, hoje perdidas,
podem ser reconstruídas mediante a confrontação de três manuscri-
tos delas derivados: F (século IX, escrito em França, atualmente em
Florença), V(século IX, escrito em França, atualmente em Valen-
ciennes), e K (séculos IX-X, escrito no mosteiro de S. Gall) le-
vam-nos ao conhecimento de fonte O; Q (século XI, escrito na Ba-
viera, atualmente no Vaticano), C (século IX, escrito em Fulda,
atualmente em Cassel), X (século X, escrito na Baviera atualmen-
te em Wurzburgo), e G (século X, escrito na Alemanha, atualmen-
te em Wolfenbüttel) levam-nos ao conhecimento de E. Por causa
de certos indícios, que não podemos expor aqui, é muito provável
que as duas fontes, e e remontem a uma fonte comum, igualmen-
te perdida e acima indicada pela letra grega A. Afinal, possuimos
vários manuscritos de data mais recente (codices recentiores), que
devem sua origem a duas fontes diferentes: 4) (perdida) e H (sé-
culo IX, atualmente em Hereford, Inglaterra, e muito provavel-
mente uma cópia de um exemplar irlandês) . Essas duas tradições
nasceram na França meridional e nas Ilhas Britânicas.
IV. A Restauração do Texto.
Uma vez feita a árvore genealógica dos vários manuscritos
sobreviventes (a recensio), torna-se mais fácil a restauração, se não
. — Neste livro Cassiodoro dá uma introdução metódica aos estudos bíblicos e pa-
trísticos, e trata das ciências auxiliares (as sete artes liberales).
. O sterrima foi feito por R. A. B. Mynors (Oxford, 1937, p. LVI t.'a ed. de
Cassiodori In s titutiones), e é reproduzido aqui com algumas ligeiras morá-
ficações. Por exemplo marcamos todos os códices "hipotéticos" com caracte-
res gregos, e os sobreviventes com maiúsculas latinas.
471 —
(45). Boécio escreveu áste livro nos fins da, sua vida, quanc prêso em Pavia. A
Consolatio foi urna das, obras mais' populares da Idade Média, traC.uzida vá-
rias vêzes para tôdas as, línguas européias.
. — Codex Augiensis 106 (atualmente em Carlsruhe), que remonta a, fontes do sé-
culo VI.
. — Por exemplo W. H. Smith, Bacon and Shakespeare (1857) e Delia Bacon
(1856) .
(48). — Ben Jonson, no necrológio_ consagrado ao poeta, dizia dêle: he, had srnall
Latin and less Greek .
= 477—
(58). Cf. 5 38 V.
— "Escólios" são anotações gramaticais, literárias e históricas, tiradas das obras
dos antigos filólogos. A maior parte dêles se refere a Homero, aos líricos e
aos dramaturgos.
. — Aí era seguica, também sob a influência dos Estóicos, a interpretação ale-
górica dos textos antigos. — Nos tempos cristãos trocaram-se os papéis: Ale-
xandria tomou-se o centro da "alegorese" bíblica, e Antioquia preferia a in-
terpretação literal.
(61). — Cf. 4 II d.
(62) . — Por exemplo as palavras do Papa Gregário I (Epistula V 53a): ...quis in-
dignum vehementer existimo, ut verba caelestis oraculi restringem sub re-
gulis Donati. Negue enim haec ab ullis interpretibus in Scripturae Sacrae
auctoritate serviste sunt.
— 480 —
Exemplos
ut crederes <hoc> esse conscriptum o editor acrescentou hoc (73) ;
ut crederes [hoc] esse conscriptum o editor "deliu" hoc, lição,
transmitida pelos manuscritos;
ut crederes * * esse conscriptum sumiram-se uma ou mais pa-
lavras entre crederes e cons-
criptum;
ut crederes +++ esse conscriptum é essa a "lição" dos manus-
critos, mas o editor conside-
ra-a errada sem saber como-
deve emendá-la.
§ 48. Falsificações.
(82) . — A título de curiosidade damos aqui alguns característicos dos últimos papas:
Crus de Craca (Pio IX), Lumen in Caelo (Leão XIII), lgnis Ardens (Pio
X), Rangi° Depopuiata (Benedito XV), Fides Intrepida (Pio XI), Pastor
Angelicus (Pio XII) . Depois da morte de Pio XII há de haver ainda 6
papas, dos quais o último, Pedro de Roma, .governará a Igreja durante uma
grande perseguição: et tunc erit finis.
— 486 —
(91). — Em latim clássico, homo servia, embora excepcionalmente, também para in-
dicar uma mulher, cf. Cícero, Ad Familiares, IV 5, 4.
. — Cf. 47 I, n. 59. — No século VI d. C., Fulgêncio (cf. 4 VII), escreveu
um comentário alegórico sôbre a Eneida: Expositio Vereilianae Continentiae
sectmdum Philosophos Moralis, que chegou aos nossos dias.
. — Por exemplo Santo Agostinho e Gregório I, dois exemplos bem conhecidos.
-- 490 —
(96) . —'O número 4as vítimas de um bombardeio é geralmente exagerado pelos sobre-
viventes, logo depois da catástrofe: a segunda guerra mundial o provou. —
Quando Heródoto (Historiae, VII 60) avalia o número de peões persas a in-
vadirem a Grécia em 480 a. C., em 1.700.000 (cf. VII 56), comete um
grave êrro de inexatidão, porque tamanho exército não podia ser abastecido
naquele tempo.
— 492
A Crítica de Sinceridade.
A Crítica de Contrôle
Tendo à nossa disposição apenas uma testemunha a res-
peito de certo acontecimento histórico, não podemos aplicar a Crí-
tica de Contrôle. Devemos contentar-nos em submetê-la a tô'das
as fases da Crítica Histórica, descritas acima, e não encontrando
motivos sérios para lhe pôr em dúvida a veracidade, podemos nela
acreditar. Ao se apresentarem, porém, dúvidas numa dessas fases,
não podemos chegar a um assentimento firme ou à certeza, mas jul-
gamos o fato provável ou possível, conforme a natureza da nossa
dúvida, ou até como improvável ou impossível.
Dispondo de mais testemunhas, devemos confrontá-las umas
com as outras. Distinguimos aqui entre o contrôle direto e o indi-
reto .
O contrôle direto torna-se possível apenas quando uma
testemunha, — explicitamente, — confirma, corrige ou contradiz
o depoimento de outra . Pressupõe, portanto, que as testemunhas
se conheciam. Excluimos de antemão, como meio de contrôle, aque-
las testemunhas, que plagiaram mais ou menos literalmente um do-
cumento anterior, falando aqui apenas em testemunhas, que, inde-
pendentemente uma de outra, podiam conhecer a verdade de um
fato histórico. Quando um acontecimento é confirmado por uma
ou mais testemunhas, podemos ter dêle certeza; quando é corrigi-
do, pode ser que uma das duas tenha prestado mais atenção a cer-
tos aspectos ou pormenores do fato testemunhado; quando é im-
pugnado, merecendo as duas testemunhas igualmente nossa fé, te-
mos que escolher: geralmente adianta pouco o meio-têrmo entre os
dois depoimentos. Qual dos dois é mais provável e mais conforme
a mentalidade da época? Muitas vêzes não poderemos chegar a
uma conclusão definitiva, devendo-nos contentar em registrar as
contradições com um non liquet. Um dos maiores pecados contra
-- 493 --
AS CIÊNCIAS AUXILIARES.
(1) . — A palavra "filologia" tem muitos sentidos: muitas vêzes é empregac:.'a como•
sinônima de lingüística ou glotologia; aqui é usada numa acepção mais larga:
o conjunto das disciplinas que contribuem para a restauração, o exame crítico
e a interpretação metódica de um texto ou de um grupo de textos.
— 496 —
(2)• — A imperfeição inerente a unia tradução foi assinalada, pela primeira vez, pelo
tradutor grego do livro Eclesiástico, no ano 132 a. C.: " . . porque as pala-
vras hebraicas perdem muito da sua fôrça quando transladadas para outra lín-
gua" (Prólogo) .
497 —
A. CRONOLOGIA.
§ 52. A éra.
No sentido próprio da palavra, a "éra" (9) é a contagem con-
tínua de anos a partir de certo fato (autêntico ou supostamente)
histórico; num sentido mais amplo, é todo e qualquer sistema de
indicar os anos para distinguí-los de outros anos. E' escusável dizer
como é importante o conhecimento das diversas éras, empregadas
nos documentos: ignorando-as, estamos sujeitos a cometer muitos er-
ros ao datar um fato do passado. Agora que se segue universal-
mente a éra cristã, é-nos quase impossível imaginar quanta confusão
lavrava outrora na cronologia: autores antigos precisavam de uma
descrição prolixa para indicar com precisão um ano aos seus leito-
res. Lembramos uma passagem do Evangelho de São Lucas (III, 1-
2): "Ora, no ano décimo quinto do império de Tibério César, sendo
Pôncio Pilatos governador da Judéia, e Herodes tetrarca de Gali- -
léia' e Felipe, seu irmão, tetrarca da Ituréia e da província de Tra-
conites, e Lisânias tetrarca da Abilina; sendo príncipes dos sacer--
— Trata-se aqui dos livros sibilinos que, segundo a tradição, teriam sido vendi-
dos por uma profetisa a um dos reis romanos; foram destruídos, em 83 a .C.,
por um incêndio do Capitólio. Então o Senado enviou deputados ao Oriente
para recolherem novos oráculos sibilinos. Quinze sacerdotes ficaram encarregados
de guardar os livros e de consultá-los, surgindo circunstâncias difíceis para o
Estado Romano.
— Cf. Censorinus, De Die Natali, XVII 9.
— "Estilo" é o têrmo técnico para indicar a data que passa pelo primeiro dia
do ano.
— Filo de ,Alexandria diz que o equinó -io da primavera é o símbolo e a ima-
gem daquele Início Absoluto, em que Deus organizou o mundo (De Septenario,
19). -- Cf. Julianus Imperator, Oratio, V p. 168 C-D.
<33). — Martinus Bracarensis, De Correctione Rusticorum 10. — Para pormenores,
cf. J. van den Bessela
ar, Quaestiunculae Chronologicae (Anuário da Faculdade-
de Filosofia "Sedes Sapientiae" da PUCSP, 1953, pp. 163-178).
— 506 —
§ 54 Os meses.
— Anteriormente era no dia 15 de março (de 222 a 153 a. C.); nos tempos
iniciais da República, no dia 1.. de maio.
— A palavra "mês" (latim: mensis) é cognata com moon em inglês (:"lua").
— Angustas (grego: "Sebastós", cf. Sebastópolis") quer dizer: "veneranc.'o, ma-
jestoso".
- 507—
§ 55. A semana.
(42) . — Na AntigüidaGe clássica por exemplo: as sete cidades que disputavam entre
si a honra de serem o lugar de nascimento de Homero; as sete colinas de Ro-
ma; os sete sábios; as sete maravilhas do mundo; os sete reis de Roma, etc.
— Os nomes dos sete dias da semana não se ligam aos nomes mitológicos G'e Zeus,
Marte, etc., mas aos nomes astrológicos dos planetas.
— Nessa época renasceu a astrologia, principalmente sob a influência do filósofo
estóico Posidônio, o qual era influenciado por especulações neopitagóricas.
— São visíveis as influências dessas antigas teorias na obra de Dante.
— O sistema helenístico era bem diferente dos sistemas "clássicos", desenvolvidos
por Filolau (pitagórico, século V a. C.), Platão e Aristóteles. — Em ,1781
foi descoberto o planeta Urano, em 1846 Neptuno, e em 1930 Plutão. Alétn
disso conhecemos hoje uns 1.300 planetas pequenos, dos quais o primeiro foi
destóberto em 1801. '
--- 510 —
semana.
Português: Espanhol: Francês: Latim:
Domingo Domingo Dimanche Dominicus (-ca),
2a. feira lunes lundi feria II
dies Iunae
3a. feira martes mardi feria III
dies martis
4a. feira miércoles mercredi feria IV
dies mercurii
5a. feira jueves jeudi feria V
dies jovis
$a. feira viernes vendredi feria VI
dies veneris
sábado sábado samedi sabbatum
dies saturni
IY . O Ano grego .
(59) . — Segundo alguns, teria sido inventada a octaéride pelo astrônomo grego Eu-
doxo (século IV); é muito mais provável, porém, que remonte aos babilô-
nios e tenha sido introduzida na Grécia já no século VII a. C.
— Segundo outras fontes, a estrutura do ciclo de Metão seria um pouco dife-
rente, e teria o total de 6.935 dias.
— A octaéride tinha 2.922 dias (8x354+3x30 dias) . Neste ciclo havia 99 luna-
ções, conforme o calendário, de modo que o prazo decorrido entre duas
luas novas, sempre segundo o calendário, era de 29, 5151 dias, enquanto que,
na realidade, é de 29,5306 dias. A diferença monta, cada lunação, 0,0155
dias; nas 99 lunações da octaéride, 1,5345 dias. Ao cabo de ±10 octaérides
(=80 anos), a lua cheia caía no primeiro dia do mês, que devia ser neo-
menía (=lua nova) .
— Cf. 54 I.
O Calendário Republicano.
O Ano Muçulmano.
O Ano Eclesiástico.
O Ano Eclesiástico da Igreja Ocidental começa no primeiro do-
mingo do Advento, isto é, no quarto domingo que precede à festa
de Natal. A data depende, pois, do dia da semana em que cai Na-
tal, e varia de 27 de novembro para 3 de dezembro, os dois limites.
A data da Páscoa, que é festa móvel, depende da data da pri-
meira lua cheia que se segue ao equinócio primaveril. Visto que
êste se pode verificar no período de 21 de março a 18 de abril,
a Páscoa pode ser celebrada em 36 datas diferentes: de 22 de mar-
ço a 25 de abril. Seria interessante acompanharmos a história do
cômputo pascal através dos séculos, mas tal exposição, mesmo que
se limitasse às linhas gerais, ocuparia muito espaço, incompatível
com os fins dêste trabalho.
(72) —. Muitas das festas cristãs são adaptações de festas pagãs, cristianizadas e pro-
vidas de outro significado, por exemplo Natal era o dia de Mitras (Sol In-
victus), e Purificação (2 de fevereiro) era a festa da lustração da Cidade
(Amburbalia), etc.
-518—
B. A PALEOGRAFIA.
V. A Escrita Latina .
VI. A Estenografia.
C. A EPIGRAFIA.
§ 58. Inscrições.
(96) . — Cf. Francisco Isoldi, A Epigrafia, in Revista de História, III 9 (1952 ), págs.
89-105.
— 526 ---
çada com uma escôva para o papel entrar nas cavidades das letras.
Ou então, não havendo água, cobre-se a fôlha com plumbagina, es-
fregando-a depois com uma escôva: as letras ocas aparecem em
branco, destacando-se dos fundos escuros.
II. A Interpretação das Inscrições.
A Interpretação das Inscrições exige muita erudição. Precisa-
mos dominar a língua (ou o dialeto) em que foi redigida a nossa
inscrição; conhecer a ortografia da época e do local, e — o que é
mais difícil ainda, — adivinhar a verdade sob todos os possíveis
erros ortográficos; completar as abreviaturas que são muito fre-
qüentes, etc. A cronologia e a história das instituições de certo po-
vo podem-nos ajudar muitíssimo para relacionarmos a inscrição com
determinados acontecimentos ou personagens já conhecidos. As
abreviaturas, e as fórmulas fixas, encontradiças em inscrições, pre-
cisam ser minuciosamente estudadas, o que pode ser de suma im-
portância para a restauração de um texto mutilado.
III. Algumas Inscrições importantes para a historiografia são:
O Código Penal do rei Hamurabi, soberano da Babilônia
(97). E' uma pedra de 225 cm de altura, cujo texto cuneiforme es-
tabelece severas penalidades contra os infratores das leis que pro-
tegem a propriedade, segundo o princípio da retaliação: ôlho por
ôlho, dente por dente. Foi descoberto, em 1901, pelos franceses
em Susa, e acha-se atualmente no Louvre, em Paris.
Num rochedo de Behistum (Pérsia), o rei Mario I (522.-
486 a. C.) fêz gravar uma inscrição gigantesca em três línguas, con-
tendo um relatório dos seus atos reais. Essa inscrição, descoberta:
em 1835 por Sir Henry Rawlinson, foi de suma importância para
a decifração dos cuneiformes.
A Pedra de Roseta, cf. § 41 II b.
Na Itália foram descobertas algumas inscrições em dia-
letos itálicos, cognatos com o latim. Mencionamos aqui as Tabulae
Eugubinae, descobertas em 1444, trazendo um texto úmbrico, que
chegou a ser decifrado e interpretado completamente só no início
do século passado. Para os nossos conhecimentos do antigo osco
— outro dialeto itálico, bastante parecido com o latim — foi im-
portante o descobrimento da Tabula Bardina, em 1793, e do Cip-
pus Abellanus, em 1745. Essas inscrições vieram a nos ensinar
qual é o lugar ocupado pelo latim entre as antigas falas itálicas
(97) . — O rei Hamurabi não reinou de 1955 a 1912 a. C., como se admitia antiga-
mente, mas uns 250 anos depois: fato provado por recentes escavações na
Mesopotâmia.
-- 527,--
D. A LINGÜÍSTICA.
(99). — De Rossi foi o grande mestre da arqueologia cristã. Escreveu por exemplo
Roma Sotterranea, em 3 volumes (1864-1877) .
. Por exemplo o povo usava a palavra bucca (=os, lat. cl. ), cf. "a bôca"
(port.) e "la bouche" (fr.); cf. também caballus (=equus, lat. cl. , cf. "o
cavalo" (port.) e "le cheval" (fr.) . A essas diferenças lexicológicas acrescen-
tavam-se divergências sintáticas, fonéticas e morfológicas.
. — O antigo germânico nos é conhecido pela versão "gótica" da Bíblia, feita pelo
bispo Úlfilas (século IV d. C.), da qual nos chegaram completos os Evange-
lhos e as Cartas de- Paulo.
. O antigo eslavo (=eslavo eclesiástico, ainda usado na liturgia ortodoxa c.a Rús-
sia e da Bulgária) remonta ao século IX (versão da Bíblia por S. Cirilo,
o qual com S. Metódio" foi o apóstolo dos eslavos) .
— 529 —
Bopp não foi o primeiro a ver o parentesco do sânscrito com o grego e o la-
tim. Já no século XV/, o italiano F. Sassetti, e no século XVIII, o jesuíta
francês Coeurdoux e o inglês W. Jones, tinham chamado a atenção dos erudi-
tos para êsse fato. Mas Bopp foi o primeiro a fazer pesquisas sistemáticas e
a descobrir leis fonéticas e morfológicas.
( 104) . — O sânscrito clássico data de ±400 a. C. (Panini); o védico, uma fase anterior
da mestria língua, é riquíssimo em flexões, seus elementos mais antigos re-
montam aos séculos XIII ou XIV a. C.
(105) . — As línguas românicas, germânicas, eslavas, celtas (por exemplo o irlandês, o
bretão, o gaélico, etc.), bálticas( por exemplo o lituânio; esta língua é muiti›
arcai-a, e possui grande valor para a reconstrução do indo-europen) . Algumas
línguas européias tem origem diferente, por exemplo o basco na Espanha, o
finlandês e o húngaro.
-(106) . — Os antepassados dos iranianos e hindús chamam-se geralmente árias ou arianos;
constituem o ramo oriental da família indo-européia. — O têrrno "ária" ou
"ariano" (literalmente: "o melhor", cf. ar-istocrata)) emprega-se, de vez em
quanc:o, também para indicar o conjunto dos indo-europeus.
,( 107) . Por exemplo a palavra "cinco": pánça, em sânscrito; pénte, em grego; penque =
qtrinqüe, em latim; &rd, em gótico; assim também a palavra "pai": pirá, em
sânscrito; patér, em grego; páter, em latim; fádar, em gótico. Essas duas sé-
ries já mostram que o p inicial do indo-européu passou pata f em gótico.
•108) . — O berço dos indo-europeus é uma questão discutida: além das duas hipóteses,
dadas acima, são indicadas também as tetras da- Asia Central ou o Cáucaào,
ao que parece, com menos probabilidade.
— 530 --
E. A ARQUEOLOGIA.
. — E' o deus bem conhecido dos romanos: Juppiter= Diespiter (—"Pai da Luz").
Cf. em sânscrito: Dyéuspitar, em grego: Zeus (=Dyéus), e em germânico:
Ziu ou Tiu (cf. inglês: Tues-day), mas êste último cedeu o seu lugar a ou-
tras divindaces.
— Por exemplo catem (scr.), hekatón (gr.), centum (lat.) e hund (gót.); tôdas
essas palavras, que significam 100, têm a mesma raiz. — Mas 1.000 apre-
senta-se-nos sob formas diferentes: chiliot (gr., cf. quilo-grama), mine (lat.)
e thousand (inglês), três palavras de origem diferente.
. — O francês Fustel de Coulanges escreveu, em 1864, um interessante livro sôbre
as raízes indo-européias de alguns costumes entre os gregos hindús, e romanos:
La Cité Antique. A obra foi traduzida para o português (Lisboa, 1950 7 ), e
embora superada em muitos pontos por pesquisas modernas, continua a ser.
importante.
. Das palavras gregas: "archaiós" (=antigo) e "lógos" (=disciplina) .
— 531 —
— Além das invasões que sofreu na Antigüidade (nos tempos de Sula e, depois,
durante a Migração dos Povos), Atenas foi tomada pelas franceses e venezia-
nos na época das Cruzadas, pelos turcos (1456), etc.: êstes transformaram o
Pártenon numa mesquita. Em 1687, êsse templo magnífico foi bombardeado
pelos venezianos. Em 1801-1802, Lord Elgin despojou-o dos relêvos e troas-
portou-os para o British Museum (Lord Elgin Marbles).
— Rosna foi tomada, em 410 d. C., pelos gôdos, que saquearam a cidade du-
rante quatro dias; em 455 pelos vândalos (daí: "vandalismo"). Nos meados
do século VI, mudou várias vêzes de dono (bizantinos e ostrogodos), e ficou
algum tempo sem habitantes.
— Em 801 houve um terremoto em Roma, que prostrou as colunas do Foro de
Trajano: não havia dinheiro para a restauração.
— Durante o Cativeiro dos Papas em Avinhão, Roma tinha ±20.000 habitantes;
na sua época áurea, ±1.000.000. — Mas cf. F. Lot, La Fin du Monde Anti-
que, etc., Paris, 1951, pp. 79-80, que reduz o número dos habitantes de Roma
para 300.000.
— Esses três fatôres tiveram conseqüências lastimáveis principalmente nos países
ocupados pelos muçulmanos: África do Norte, Grécia. Asia Menor, Constanti-
nopla, etc.
— Em 1632, o Papa Urbano VIII, da família dos Barberini, tirou as traves de
bronze do pórtico do Panteão para a fundição de 80 canhões! — Daí o ditado:
Quod non fecerunt barbari, fecerunt Barberini. — O Amphitheatrum Flavium
(acabado em 80 d. C.) ficou com o nome "Colosseum" por causa do colôsso
de Nero (altura de 36 metros), erguido na frente do enorme prédio (obra do
escultor Zenodoro). Na Idade Média havia um ditado: Quamdiu stabit Coliseus,
stabit et Roma; quamdiu cadet Coliseus, cadet et Roma; quamdiu cadet Roma,
cadet et mundus. Até 1750, quando o Papa Benedito XIV consagrou o Co-
liseu à memória dos mártires cristãos que aí teriam sido massacrados, as ruí-
nas, dêste edifício, do qual subsiste ainda a terça parte, forneciam material
abundante para novas construções.
(119). — Lucanus, Pharsalia, IX 969.
(120) • — Já em 1719 tinha sido descoberta uma parte de Herculâneo. — As escava-
ções metódicas das duas cidades começaram só em 1861 (Fiorelli, e depois,
Spinazzola e Maiuri); em 1906 estava desentulhada a metade de Pompéia.
— 532 —
— Tróia I é urna aldeia neolítica (3.000 a. C.); Tróia II tinha muralhas enor-
mes (±2400-±- 1900); Tróia III-V são insignificantes; Tróia VI é a cidade
homérica (destruíaa no século XIII ou XII a. C.); Tróia. VII á fundação dos
eimérioa (século VIII a. C.); Tróia VIII é cidadezinha grega, e Tróia IX
(//ium) é colônia romana. — São êsses os resultados das novas escavações,
realizadas pela Universidade de Cincinnati (Estados Unidos) em 1931.
— Só depois W. Dõrpfeld verificou que era Tróia VI.
— Por que os arqueólogos se vêem obriga d - oa a cavar? Porque outrora se cons-
truía um novo edifício em cima dás ruínas de um antigo, e uma nova cidade
em cima de uma antiga (por exemplo Tróia!). Outrossim, também á náltf-
reza faz com que, derrubada tuba construção, aí sé sobreponham camadas 'de
poeira e areia, solo fértil .para á Vegetação. Daí a diferença do nível. A Londres
Moderna fica á 8 bú 10' Metros acima da Londinius romana.
— 533 --
F. A GEOGRAFIA.
(129). — Para urna discussão crítica dos fatôres geográficos na história humana, cf.
Henri Berr, En Marga de l'Histoire Universelle, Paris, 1934 (pp. 64-83).
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (II)", In: Revista
de História, São Paulo, nº 21-22, pp 439-535, jan./jun. 1955. Disponível em:
http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/021-022/A016N021E022op.pdf
— 535 —
QUESTÕES PEDAGÓGICAS
INTRODUÇÃO AO ESTUDOS
HISTÓRICOS (III).
TERCEIRA PARTE
A Síntese Histórica
Nature is whole in her least things exprest,
Nor know we with what scope God builds the worm.
Our towns are copied fragments from our breast;
And all man's Babylons strive but to impart
The grandeurs of his Babylonian heart.
CAPITULO PRIMEIRO
(6) . — Dos hindus, pouco interessados nos fenômenos passageiros e enganadores dêste
mundo visível, conhecemos melhor a história da filosofia do que a história
política. Como é diferente o interêsse do mundo clássico!
(7). — P. Valéry, Variété IV, Paris, Gallimard, 1947, pág. 132.
— 190 —
nada, mas muito provável nas linhas gerais, de certos fatos histó-
ricos mal documentados, — reconstrução essa que, em alguns casos,
confina com a certeza. Tampouco é pura fantasia a hipótese na
história como o é em outras disciplinas: apesar dos seus elementos
subjetivos pode ser considerada como o prolongamento das regras
e dos métodos da Crítica Histórica, a basear-se no bom senso e a
lidar com argumentos que se prestam a uma apreciação objetiva.
No mais das vêzes, não deve sua existência a um raciocínio discur-
sivo, ainda que êste a siga geralmente, mas é produto quase espon-
tâneo de certa intuição, — um pressentimento vago, — que só de-
pois vai procurando uma justificação metódica. Não raro acontece
que uma hipótese é confirmada por descobertas posteriores. E' o
privilégio dos grandes historiadores formular grandes hipóteses:
abrem elas novos horizontes, estimulam outros a investigarem a mes-
ma matéria, provocam protestos de adesão ou de reprovação. Em
uma palavra, são elas que fazem progredir a ciência histórica. Dis-
se um poeta alemão: "As construções dos reis dão muito trabalho
aos operários" (13) . Com efeito, os reis entre os historiadores: um
Mommsen, um Taine, um Alexandre Herculano, fecundaram a his-
tória não apenas com suas análises penetrantes ou com sua erudi-
ção extraordinária, nem sequer com seus métodos aprimorados, mas
também com suas hipóteses, algumas das quais se tornaram o ob-
jeto de muitos anos de discussões e estudos. Longe de serem in-
falíveis, mas sempre luminosas, constituem uma nova tentativa, ade-
qüada às exigências da época, de compreender uma certa série de
acontecimentos históricos. Amiúde precisam ser modificadas ou cor-
rigidas, às vêzes até são abandonadas, mas quase nunca sem adian-
tarem a ciência . Uma grande hipótese, ainda que superada por no-
vas descobertas ou novas pesquisas, deixa seus vestígios em sínteses.
posteriores, sendo que a ciência nunca regressa por completo a uma
fase anterior: neste ponto a história não é diferente das outras dis-
ciplinas.
Distinguimos aqui entre duas espécies de raciocínio: o negativo
e o positivo, para depois falarmos da imaginação .
I. O Raciocínio Negativo.
a) Os Motivos Humanos.
b) Os Fatos Exteriores.
— Cf. & 15 I; 16 V a.
— W. Shakespeare, Hamlet, Act I, Scene 5. — O poeta diz: "philosophy", e não
"psychology".
— 197 —
III. A Imaginação.
CONCEITOS HISTÓRICOS
(1) . -- Cf. $ 13 II; $ 16 VII; $ 17 II. — Veja também Dr. René Voggensperger,
Der Begriff der Geschichte ale Wissenscheft im Lichte aristotelisch-thomistischer
Prinzipien, Paulusverlag, Freiburg in der Schweiz, 1948, págs. 41-49.
— 200 —
III. Organismos.
(5) . — A idéia remonta ao filósofo alemão Herder, como havemos de ver no 92;
mas a aplicação conseqüente do princípio foi feita, pela primeira vez, pelo his-
toriador dinamarquês Nils Treschkow (1751-1833) no livro: "Princípios da:
Filosofia da História" (1811), obra que nos é inacessível.
— 202 —
is a living whole, from its roots in the soil and in the simple instinc-
tive life of the shepherd, the fisherman, and the husbandman, up
to its fllowering irr the highest achievaments of the artist and the
philosopher; just as the individual combines in the substantial unity
of his personality the animal life of nutrition and reproductieo with
the higher activities of reason and intellect (6) .
IV. Evolução.
(g). __. Jean Rapine, no Préface do ano 1676; a peça data de 1669.
— 206 —
§ 66 . A causalidade na História.
Os que, impressionados pelo prestígio das ciências "exatas",
admitem delas uma única espécie, — as matemáticas e as físicas,
— 207 —
. — Por exemplo Alfredo Ell's Júnior, na Revista de História, III 10 (1952), pág.
349.
. — Paul Harsin, Cotrunent on écrit Liège, 1944, pág. 127. — Subs-
tituímos, nas palavras citadas, o têrmo déterraine por produit.
-2G3 —
I. A Personalidade.
(15) . — Lembramos aqui uma anedota comunicada por Cícero (in De Senectute, III
8): Themistocles fertur Seriphio cuidam in jurgio respondisse, cum ille disis-
set non eum sua, sed patriae gloria splendorem assecutum: Non hercule, inquit,
si ego Seriphius essem, nec tu, si Atheniensis, clarus umquam fuisses. Cf..
Herodotus, Historiae, VIII 125 (lição um tanto diferente) e Plutarchus, Vita,
Themistoclis, XVIII.
— 211 --
II. O Acaso.
muitas vêzes descobrir certa ordem em fatos que outrora nos pa-
reciam caprichosos, disparatados, incoerentes, "fortuitos". E' que
a proximidade nímia nos ofusca a vista. O que dantes se nos afi-
gurava como uma pluralidade caótica, acaba muitas vêzes por
se mostrar uma unidade a certa distância . Destarte chegamos a -
entrever uma ordem íntima, a qual atribuímos — conforme a nos-
sa religião, ou filosofia, ou mundividência, — a uma disposição ' •
— Cf. Augustinus, De Ordine, 1 2: Sed hoc pacto si quis tem minutum cerneret,
ut in vermiculato pavimento nihil ultra unius tessellae modulam acies ejus
valeret ambire, vituperaret artif icem velut ordinationis et compositionis igna-
rum eo quod varietatem lapillorum perturbatam putaret, a quo illa em-
blemata in unius pulchritudinis fatiem congruentia simul cerni collustrarique
non possent..
— Cf. P. Vendryès, De la Probabilité en Histoire, L'Exemple de PExpédition
d'Égypte, Paris, Alb:n Michel, 1952.
CAPITULO TERCEIRO
FINS E VALORES
Os atos hüillatii5ã têtal urn fim .(1):- °nine 'agans-- agit propter
finem. Na medida de nos ser conhecido o fim, ficamos capaci-
tados para descobrir o "sentido" de certo ato ou de certa série
de atos que deve levar para êsse fim. Ao acompanharmos os di-
versos atos sucessivos de um indivíduo na vida cotidiana: correr
ao ponto de ônibus, ficar esperando numa fila comprida, viajar
num veículo superlotado, passar muitas horas consecutivas no mes-
mo local, etc., não lhes compreendemos o sentido a não ser que lhes
saibamos o fim, por exemplo, sustentar-se a si próprio e a sua fa-
mília. Desde que conheçamos o fim, tornam-se "significativos" os
atos singulares: sem êsse conhecimento, todos êles nos poderiam
parecer absurdos, incoerentes e caóticos. O fato de estarem subor-
dinados os atos a um fim, não exclui a possibilidade de haver fins
secundários (por exemplo, chegar ao escritório a tempo) nem a
subordinação do fim principal a um fim universal (por exemplo,
motivos religiosos eu éticos): há uma hierarquia de fins.
a) A Criação.
divin. Mais s'il est divin, il n'est pas Dieu. L'erreur mythologi-
que (e dos panteístas) porte exactement sur l'être du monde. Si
une source est divine, elle n'est par une déesse. Elle est divine en
tant qu'elle est; mais en tant qu'elle est source, elle n'est que na-
ture (8). Se Deus é a causa essendi de tôdas as criaturas, é-lhes
também a causa agendi: participam elas, em escalas diferentes, do
ser divino como também da ação divina. A Criação não acres-
centa mais ser ou mais ação a Deus, mas faz apenas com que haja
mais entes e mais agentes, todos êles substancialmente dependen-
tes do Ser Divino e da Ação Divina. A Providência não é uma
"intervenção" (9) da parte de Deus nos negócios mundanos: as
coisas criadas possuem sua própria perfeição, sua própria causalida-
de, — que correspondem ao seu grau de ser, — mas essa perfeição
e essa causalidade elas as devem exclusivamente ao ato criador de
Deus. Tanto a ação determinada das coisas irracionais como a livre
atividade da pessoa humana são "criaturas", mas por isso não deixa
de ser livre a atividade humana como também não deixa de ser de-
terminada a ação determinada das coisas irracionais (10). Tôda
a ação de criaturas deriva de Deus (Causa primeira e transcen-
dente) e, ao mesmo tempo, da sua própria natureza (causa secun-
dária e imanente).
Reza a primeira linha da Bíblia: "No princípio criou Deus o
céu e a terra"; o Cristianismo, prosseguindo uma tradição judaica,
introduziu a noção de um Início Abosluto (11) como também a de
. — Paul Rostenne, La Foi das Athées, Paris, Plon, 1953, pág. 81.
. — A expressão "intervenção divina" é muito antropomorfa: nada se efetua que
não seja, na sua essência e na sua existência, totalmente dependente de
Deus: uma "intervenção divina" não tira Deus do seu repouso, obrigando-o a
fazer um novo esfôrço; não afeta a imutabilidade divina nem lhe custa maior
energia ou nova iniciativa, sendo a realização de um decreto eterno. Nous
parlons d'intervention -spéciale de Dieu parca que Peffet à obtenir dépasse
manifestement ia puissance productrice des causes secondaires laissées à leur
jeu normal (J. Renié, Les Origines de Pliumanité, Lyon-Paris, Vitte, 1950,
pág. 83) .
. — Summa Theologica, I q. 22 a. 4, ad 1-um: . . . effectus divinae providentiae
non solum est aliquid evenire quocumque modo, sed aliquid evenire vel con-
tingenter, vel necessario. Et ideo even:t infallibiliter et necessario, quod divina
pravidentia disponit evenire infallibiliter et necessario; et evenit contingenter,
quod divinae providentiae ratio habet ut contingenter eveniat. — Cf. De
Veritate, XI 1, Resp.: Prima causa ex eminentia bonitatis suae rebus aluis
confert non solum quod sint, sed etiarn quod causae sint.
(11). — Que o mundo teve um início (a chamada creatio in tempore), é um dado
da fé; filosèficamente falando, um mundo "perpétuo" é possível, o que não
lhe tira a necessidade absoluta de ser criado por Deus. A questão foi muitas
vêzes discutida por São Tomás, por exemplo na Summa Theolog!ca, I q. 46,
onde diz (art. 1): Non est necessarium rnundum semper fuisse, cum ex vo-
luntate divina processerit; quamvis possibile fuerit, si Deus voluisset; nec
demonstrativa hoc probari ab aliquo umquam potuit, e (art. 2): Mundum
incepisse sola lide tenetur; nec demonstratve hoc sciri potest; sed id credere
maxime expedit. — Mesmo que o mundo fôsse "perpétuo", não seria coeterno
com Deus, pois, como diz Boécio (De Consolatione Philosophirte, V Prosa
VI 2): Aeternitas... est interminabilis vitae teta simul et perfecta possessio,
e êste nunc stans só cabe a Deus; mas o mundo é o nunc fluens em que
há constante sucessão de momentos fugidios: Aliud est enfim per intermi-
nebilem duci vitam, quod mundo Plato tribuit, aliud interminabilis vitae
totem pariter complexum esse pressentiam, quod divinae mentis proprium esse
manifestum est (ibidem, VI 7).
— 218 —
dos por tantos santos. São êstes não uma maldição às obras cria-
das, e muito menos ainda uma tentativa de aniquilar a existência,
mas antes um esfôrço heróico de recuperar o equilíbrio humano,
perturbado pelo pecado original. Todo o ser deriva de Deus; tôdas
as coisas criadas participam, em escalas diferentes, do ser divino,
conforme seu grau de ser; tôdas as coisas, por mais íntimas que se-
jam, possuem o seu valor; por isso tôdas elas merecem nosso amor,
mas um amor ordenado. Amaldiçoar a matéria com certos platô-
nicos, ou pior ainda, amaldiçoar a existência com algumas seitas
oiientai3, e urna ati ■tuat que não se compadece com o Cristianismo
genuíno.
III. Problemas.
progresso espiritual? Mais uma vez: são vãs e fúteis nossas espe-
culações, confrontadas com os eternos decretos de Deus: "Quanto
os céus estão elevados acima da terra, assim se acham elevados os
meus caminhos acima dos vossos caminhos, e os meus pensamentos
acima dos vossos pensamentos" (Isaías, LV 9).
Outrossim, os dados da Revelação cristã, por mais importantes
que sejam, relacionam-se diretamente com a história da eterna
Salvação do gênero humano (19) e afetam só indiretamente e de
longe a interpretação da história profana, que possui sua realidade
e sua autonomia no seu próprio terreno. Foi-nos revelado o sen-
tido de alguns atos do drama histórico, são-nos garantidos divina-
mente alguns fatos fundamentais (por exemplo, a unidade do gê-
nero humano, a Queda do primeiro homem, a educação divina do
povo eleito, a Redenção, a continuação da obra redentora pela
Igreja), mas êsses dados não nos permitem uma visão pormenori-
zadà da história humana, que continua misteriosa em numerosos,
ou melhor: em quase todos os pontos. Como explicar que "cultu-
ras" parecem nascer, florescer, murchar e morrer? como explicar
as grandes catástrofes históricas? como harmonizar, — Zn concreto,
— os fins secundários e imanentes do mundo criado com seu fim
universal e transcedente? O homem, ser histórico, não se pode ar-
rogar uma posição "meta-histórica" perante os fatos singulares do
processo histórico.
Para o fiel o dogma cristão não é um passe-partout, capaz de
resolver diretamente todos os problemas científicos que, no decur-
so dos séculos, se podem apresentar ao espírito humano. Não nos
dispensa de empregarmos nosso intelecto nem nos desanima a fa-
zermos investigações metódicas e racionais. A fé cristã não destrói
a natureza humana nem a despreza, mas a pressupõe e a levanta:
é, no dizer do Papa Leão XIII, um sidus amicum, a orientar os pes-
quisadores para certas verdades divinamente garantidas e a pre-
veni-los contra certas conclusões errôneas ou precipitadas. A scien-
tia cum fide, ideal empolgante do intelectual cristão, é autônoma
nos seus princípios e métodos, mas autonomia não é idêntica a li-
berdade absoluta ou independência completa: o pesquisador cristão
tem a obrigação de controlar os seus resultados, — possivelmente
errados, quem o contestará? — à luz da verdade revelada, que é
infalível (20). Destarte se possibilita ao cristão uma investiga-
— Em grego "soteriologia" (:soteríosalvação"); daí o objetivo: "soteriológico".
— Cf. Leo PP. XIII, na Encíclica Aeterni Patris, 21-22: In iis autem doctrinarum
capitibus, quae percipere humana intelligentia naturaliter potest, aequum plane
est, sua methodo, suisque principüs et argumentis uti philosophiam: non ita
tamen, ut auctoritati divinae sese audacter subtrahere videatur. Imo, cum corta-
tet, ea, quas revelatione innotescunt, certa veritate po/lere et quae adver-
santur pariter cum recta ratione pugnare, noverit philosophuscathoiicus se lidei
aimul et rationis jura violaturum, si conclu
sionem afiquem amplectatur, quem
revelatae doctrinae repugnam intellexerit. (Cf. também Denzinger, 1635; 1649;
1797; etc.).
— 222 —
I. O Fato do Progresso .
. — A.-D. Sertillanges, Saint nomes d'Aquin, Paris, Flarnmarion, 1931, pág. 56.
. — Para êsses conflitos veja-se R. Aubert, The Freedom of The Catholic Historiar„
in Truth and Freedom, Duquesne University, Pittsburgh & Nauwelaerts, Lou-
vain, 1954, págs. 79-89.
(23). — J. Maritais,, Religion et Culture, Paris, Desclée De Brouwer, 1930, pág. 30..
— 223 —
a atenção. E' uma herança da Éra das Luzes, que pretendia ter des-
coberto o derradeiro sentido da história por meio de uma obser-
vação racional e "científica" dos fenômenos históricos, investigan-
do-lhes as leis imanentes. Ratio liberata facit omnia nova: a Razão,
libertada dos preconceitos dogmáticos de uma fé superada e da ti-
rania de uma tradição ignorante, mudaria a face da terra . No fun-
do, o Mito do Progresso é mais uma crença pseudo-religiosa do que '
(24). — Cf. J. Maritain, Théonas, Paris, Nouvelle Libra'rie Nationale, 1925, págs. 116-
142. — O autor brasileiro, Tristão de Athayde (..---Alceu Amoroso Lima), pu-
blicou um artigo interessante sabre o Progresso na revista francesa La Vie
lntellectuelle, XVI (1932, fasc. 1-2), págs. 54-82. — Cf. também E. Mounier,
La Petite Peur du XXe Siècle, Neuchatel — Paris, 1948, págs. 97-152; e Paul^
Ricoeur, Histoire et Vérité, Paris, Éditions du Seuil (Collection: "Esprit"), 1955,
págs. 80-102.
. — K. Ldwith, Meaning in History, The University of Chicago Press, 1950, pág. 61..
. — Assinalamos aqui apenas um artigo meio otimista de Robert C. rollock, pu-
blicado na revista americana Thought (XXVII, 1952, págs. 400-420): Freedom-
and History.
— 224 —
— 228 —
. — L. Von Ranke: "Man hat der Historie das Amt, die Vergangenheit zu richten,
die Mitwelt zum Nutzen zukünftiger Jahre zu belehren, beigemessen: so hoher
Arater unterwindet sich gegenwãrtiger Versuch nicht: er will bloss seigen, wie
es eigentlich gewesen (na Einleitung da sua obra: Geschichte der romanischen
und germanischen Villker) — As palavras grifadas já se encontram em Lu-
cianus, Quomodo Historia Conscribenda, 41.
. — Max Bloch, Introducción a la Historia (tra. esp.), México-Buenos Aires, 1952,
pág. 110. — Ao que parece, a aversão de muitos a julgamentos históricos (por
exemplo, de Valéry e Bloch) é originada por uma pedante historiografia didá-
tica, que julga poder dar, a cada passo, prêmios e castigos e que tem a pre-
tensão ingênua de tirar ensinamentos "cientificamente provados" dos fatos his-
tóricos.
. J. Huizinga, Sobre el Estado Actual de la Ciencia Histórica, (trad. esp., de
Maria de Meyere), Tucuman, s.d., pág. 56.
— 229 —
I. A Filosofia da História.
.(52). — Citamos aqui apenas alguns livros modernos: K. Ldwith (cf. nota 22); Reinold
Niehuhr (Faith and History, 1949); Karl Barth (Kircbliche Dogmatik); O.
Cullmann (Christ et le Temps, 1947). — Cf. a série de seis conferências, pro-
feridas pelo professor Otto A. Piper na Universidade de São Paulo, que agora
estão sendo publicadas na Revista de História, V 19 e seguintes, sob o título
de: A Interpretação Cristã da História.
(53). — Aristóteles Metaphysica, I 2, 8. — Cf. Strabo, Geographica, I 8.
— 235 —
II. A Mundividência.
I. A Autonomia da História.
— 239 —
III. Conclusão.
(S8). — Leo PP. XIII, Seepenumero Considemntes, 17 (carta pontifical do ano 1883,
quando os arquivos do Vaticano iam ser franqueados) .
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (IV)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 24, pp 499-533, out./dez. 1955. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/024/A011N024.pdf
QUESTÕES PEDAGÓGICAS
QUARTA PARTE
CAPITULO PRIMEIRO
, GREGOS, JUDEUS E CRISTÃOS
(3) . — Há outra possibilidade: explicar o processo histórico pelo Acaso, cf. § 67 II.
— 501 —
(7) . — A palavra Kdsmos significa "ordem" (com uma noção inerente de "beleza")
e "mundo", portanto: "o mundo ordenado e organizado". ,
(8). — Nêmesis quer dizer: "aquela que mede, distribui, proporciona" (as coisas a
cada um conforme lhe convém) . — Cf. Heródoto, I 43, 1: "Depois da saída
de Sólon, apoderou-se de Creso a terrível Nêmesis divina, a meu ver, porque
se julgava o mais feliz de todos os homens".
-503—
— 504 —
(21). Mas também êle não chegou à idéia cristã da Criação nem
ao Providencialismo cristão: como todos os antigos, é politeísta
(ou panteísta dinâmico?), visto que o yno (a Divindade Supre-
ma), a Mente e a Alma do Mundo são entes divinos: assim como
Deus está além do Ser, assim a matéria, privação absoluta e prin-
cípio do mal, está aquém do Ser; outrossim, a Criação não é livre
ato de Deus, mas um processo necessário de emanações divinas,
em que o Espírito,, atingindo forçosamente o limite final, se trans-
forma em matéria, o Bem no mal, e a Luz nas trevas; e afinal,
Plotino, separando a Providêncià do Uno, coloca-a na Mente Di-
vina, primeira emanação do Uno.
y) Para Aristóteles, Deus é a causa final, não a causa efi-
ciente do mundo. E' o pensamento do pensamento, inteiramente
separado do mundo (22). Se existe um movimento ascendente
do mundo para Deus, não há descida alguma de Deus para o mun-
do, o qual, no pensamento cristão, existe apenas por participar do
ser divino. Pois, se Deus é o absolutamente Separado do mun-
do, o mundo não é separado de Deus (cf. § 68 IIa), e Deus, ao
pensar-se a si próprio, conhece tudo, porque nada possui inteli-
gibilidade a não ser por participar da essência divina. Para o Es-
tagirita, porém, a matéria impensável, princípio do contingente,
do particular, do concreto, — coisas rebeldes a todo e qualquer
conceito abstrato, — não deve sua existência ao Ato Puro que é
Deus, mas é eternamente independente dêle. No seu sistema, o
Kósmos sem. Deus não é menos inconcebível do que Deus sem o
inundo. Le philosophe ne distingue pas entre le nécessaire absolu,
qui est Dieu même, et le nécessaire dérivé, qui est l'ensemble de
la création avec ses grands rouages (23). Por ser a matéria irre-
conciliável com a ordem inteligível que deriva de Deus, o mundo
histórico, que é o terreno do contingente (cf. também § 31 I, nota
2), subtrai-se à Divina Providência . Deus sublunaria rzon curat,
sendo-lhe indiferente a sorte humana. O nosso globo está sujeito
ao Acaso, ou então, a certas leis imanentes.
8) O Providencialismo fica eliminado por completo no sis-
tema de Epicuro, que "explica" o mundo pelo Acaso. Existem
deuses, sim, mas moram lá• nos imensos intermúndios sem se preo-
cuparem do destino humano. As religiões fizeram muito mal à
<24) . — Lucretius, De Rerum Natura, I 110. — Cf. A.-J. Festugière, Épicure et ses
Dieux, Paris, Presses Universitaires, 1946.
. — Os Estóicos contituiam uma escola filosófica, fundada por Zenão e Crisipo
(séculos IV-III a. C.), que professava um materialismo panteísta e tinha
sobretudo preocupações éticas. Por reunir-se no "Pórtico" de Atenas (grego:
stoé), ficou com o nome de "Estoa".
— A Academia é a Escola de Platão: nome de uma chácara, perto de Atenas
e consagrada ao semi-deus Akádemos, comprada pelo filósofo por volta de
387, onde lecionou até o ano da sua morte (347) •
<27) . — A escola peripatética é a de Aristóteles, visto que o mestre costumava dar
aula passeando (grego: peripetéin = "passear") .
— Cf. Cícero, De Natura Deorum, 11 -24, 64. — Daí as etimologias ineptas dos
estóicos que "racionalizavam" os nomes dos deuses tradicionais, por exemplo:
Krónos (= Saturnus) = Chrónos (=- "tempo"); Juppiter = Juvans Peter.
— Cícero, De Natura Deorum, II 65, 164.
(29a). — Cf. Seneca, De Providentia, V 8: Quid est boni viri? Praebere se fato.
Grande solatium est cum universo rapi. Quitiquid est quod nos sic vivere, sic
mori jussit, eadem necessitate et deos alIigat. Irrevocabilis humana pariter
ac divina cursos vehit.
— Epictetus, Dissertationes, II 5, .25. — Epicteto 60-±140 d. \ C. ) era
um liberto, que se converteu ao Pórtico e vivia divulgando e popularizando
a doutrina da escola. Não deixou livro algum, mas seu discípulo Arriano
(também conliecido como historiador das campanhas de Alexandre Magno)
publicou os ensinamentos do mestre, servindo-se de anotações estenográficas.
— 510 —
(31). — Cícero, De Natura Deorum, II 66, 167. — Cf. o adágio jurídico dos romanos:
Mínima non curat praetor.
(32) • — Ch. Moeller, Sagesse grecque et Paradoxo chrétien, Tourna:-Paris, Casterman,
1948, pág. 95.
(33). — E' a cegueira (grego: ate). — Cf. o provérbio latino: Deus quem perdere
vult, prius dementat (cf. Scholia in Sophoclis Antigonen, 620).
<34). — Cf. Ch. Moeller (in opere citato, pág. 93, nota 1): Seul Euripide a entreva
le "video meliora proboque, deteriora sequor" (Ovidius, Meternorphoses, VII
20-21; cf. Rom., VII 21)... Aristote a vu la même chose dans se critique
de la vertu-scIence (de Sócrates, cf. § 75 II). Mais c'est là une vue apore-
dique, restée sans écho. Elle ne va pas au delé, du reste, d'une constatation
de fait, sur la difficulté de suivre "le juste" quand on i'a vu. Il n'y a pas
sentiment de l'impuissance totale à feire le bien. Jamais un grec n'aurait
ima,giné pareille "détréliction" de I'homme... — Cf. também L. Rougier,
Celsa, ou Le Conflit 4e la Civilisation Antique et du Christiardsrne
Paris, Editions du Siècle, 1925, págs. 67-75.
— 511 —
(50) • — Por exemplo, na China, na Mesopotêmia, na índia, etc. — Cf. Paul Duhem,
Le Sysferne do Monde, Paris, 1913, Vols. I-II.
— Hesiodus, Opera et Dies, 174-175: "Oxalá, não pertencesse eu a esta geração,
mas tivesse morrido antes ou nascido depois!"
— Eudemus, fragm. 51 (in Fragm. Philasophorom Graecorum, ed. Mullachius,
III pág. 250; cf. C. J. de Vogel, Greek Philosophy, Leiden, 1950, I pág. 11).
— Nemesius, De Nature Honainis, 38.
— 517 —
(59a). — O conto de Plutarco foi recentemente tratado também por Ernesto Grassi tTn
"Diálogo" I 1, págs. 9-12) e interpretado como a "morte do mito". Mas, para
êste "phil ó-mythos", a morte de Pan não é uma libertação gloriosa, e sim um
acontec'mento desa stroso.
(60) . — Êxodo, III 14. — A palavra hebraica é "Jahvé", menos corretamente "Je-
hová". Aos judeus era proibido pronunciar êsse nome sagrado de Deus; por
isso usavam o têrmo "Adonai" (= meu Senhor"). — Os filósofos gregos fa-
lam repetidamente em "to on" (= "aquilo que é"), e não em "ho ôn" (=
"aquêle que é"), não chegando a atribuir a Deus a personalidade, ou, pelo
menos, muito raras vêzes, e sem repercussão observável na sua atitude re-
ligiosa.
(61). — A conclusão metafísica foi tirada por numerosos Padres da Igreja, dos quais
citamos aqui S. Augustinus (Enarratio in Psalmum CXXXIV 4): Sublatis
de medio omnibus quibus appeilari possit et dici Deus,. Ipsum Esse se vacar!
respondit; et tamquam hoc esset ei nomen: "Hoc dices eis", inquit: "Qui est,
misit me". /ta enim ille est, ut in ejus comparatione ea, quae lacta sunt, non
sint. Illo non comparai°, sunt, quoniam ab illo sunt; llli comperata, non sunt,
quis verem esse incommutabile est, quod ate solus est.
--- 520 —
. — Ao lado dessas idéias pessimistas sôbre o Xeól, onde redire quemquarn neéant,
percebemos, no decurso dos séculos também vozes mais esperançosas, por
exemplo nos Salmos, XLIX e LXXIII .
. — Cf. Jó, XXXVIII-XXXIX, e São Paulo, Rom, IX 20: "O' homem, quem
és tu, para replicares a Deus? Porventura o vaso de barro diz a quem o fêz:
Por que me fizeste assim?"
— 523 —
d) O Messianismo.
Jahvé protegia visivelmente seu povo eleito, quando o liberta
va do jugo egípcio e o apossava na terra de Canaã. Nesses fatos
históricos, que demonstram bem o poder do Deus de Israel, basea-
va-se a esperança dos judeus. Deus é fiel à palavra dada e, apesar
de todos os pecados de chefes e populares, há de realizar seus pla-
nos mediante o povo eleito. Haverá uma constante redução de
fiéis, mas sempre subsistirá um resto, do qual Deus se servirá, ao ,
manifestar-se ao mundo para o bem da humanidade inteira . "O
resto que ainda subsiste" (cf. IV Reis, XIX 4) há de ver nascer
no seu meio o Messias, que um dia proferirá sua terrível sentença
contra os gentios, fazendo plenamente justiça a seu povo. Então
se iniciará a gloriosa época de Israel, o reino messiânico, a última
fase da história humana: "O lobo e o cordeiro pastarão juntos, o
leão e o boi comerão palha; e o pó será para a serpente o seu ali-
mento. Não haverá quem faça mal, nem cause mortes em todo o
meu santo nome, diz o Senhor" (Isaías, LV 25). Então Jahvé
esmagará os maus, e glorificará os bons, pois a salvação não se li-
mitará ao sangue de Abraão: "E acontecerá que todo o que invo-
car o nome do Senhor será salvo; porque a salvação se achará, como
o Senhor disse, sôbre o monte Sião e em Jerusalém, e entre os res-
tos que o Senhor tiver chamado" (Joel, II 32). O reino messiâni-
co, — não uma repetição de um movimento circular, imanente ao
Kósmos, mas uma inovação completamente original, devida à von-
tade soberana de um Deus transcendente, fiel à sua palavra, —
eis o sentido da história. Daí a esperança firme dos judeus na vinda
do Messias, a crescer continuamente, apesar de êles viverem num
período de decadência política e de humilhação perante os seus ini-
migos. "Oxalá romperas tu os céus e desceras de lá! (Isaías,
LXIV 1).
O messianismo dos judeus tem uma longa história, durante
a qual se vai precisando a promessa divina: aqui podemos assina-
lar apenas alguns dos seus pontos culminantes. Vê-se a primeira
alusão ao Messias nas palavras do chamado "Proto-Evangelho"
(Gên., III 15): "Porei inimizades entre ti (a serpente) e a mu-
lher, e entre a tua posteridade e a posteridade dela. Ela (68) te
pisará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar". Anun-
cia-se aqui, embora em têrmos vagos, a vitória definitiva do bem
sôbre o mal, e a salvação prometida tem Caráter universal. Quan-
do Abraão não hesita em sacrificar seu filho Isac a Jahvé, êste
lhe renova as promessas, já feitas anteriormente, dizendo: "Por
mim jurei, diz o Senhor: porque fizeste tal coisa, e não perdoaste
a teu filho único por amor de mim, eu te abençoarei e multipli--
. — Cristo não veio destruir a lei ou os profetas, mas sim para os cumprir (cf .
Mt., V (17) . Os dois Testamentos são do mesmo Deus, cf. Augustinus (Contra
Adimantum, XVII 2): Haec est brevissima et apertissima difterentia duorum
testamentorum: timor et amor: illud ad vetarem, hoc ad novum hom:nem per-
tinet; utrumque temer: unias bei misericordissima dispensatione prolatum atque
conjunctum.
. — Cf. $ 68 II a; â 73 II b; etc. — Cf. também A. Grégoire, S. J., brema-
nence et Transcendance, Bruxelles-Paris, 1939.
. — As duas verdades simétricas: a transcendência e a imanência divinas, não se
acham no mesmo plano; no Deus transcendente não há relação real com o
Universo, e sua imanência não é uma emanação necessária.
— 528 —
— Cf. os textos colecionados por C. J. de Vogel (cf. nota 52), págs. 134-139.
— Aristóteles (ia Ethica Nicomacheia, In 5; cf. VII 3) distancia-se da dou-
trina de Sócrates, e admite a responsabilidade humana por seus atos.
— Salmo, XVIII 13. — O significado dêsse passo deve ser: "Quem conhece
tôdas as suas falhas"7, :nas a interpretação dada acima é tradicional nos Padres.
— E' significativo o' fato de ter sido formulada e definição de "pessoa" a pro-
pósito das disputas cristológicas. Cf. § 17 III b, nota 3.
—, Cf. A. Toynbee; Greek Civiliration and Character, ("A Mentor flook",
New York, 1953, pág. VI): For them (os cronistas medievos) the history
et menlcind appeared, through the christian lens, as EM interlude played, in
Time, and upon the backéround ol Eternity. It begon at e definite moment
with the Creation ol the World; it wes to end, equally abruptly, with the
Last Judgment.
— 530 —
(83) . — últimamente pela Encíclica Humani Ge/leria do Papa Pio XII (1950).
— 532 —
tural. Diz São Paulo: "Mas Cristo ressuscitou dos mortos, sendo
êle as primícias dos que dormem; porque, assim como a morte
veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição
dos mortos. E, assim como todos morreram em Adão, assim tam-
bém todos serão vivificados em Cristo" (I Cor., XV 20-22). Eis
o fundamento teológico da solidariedade humana. O homem não
é parcela exígua de um conjunto abstrato (por exemplo, da raça,
do proletariado, da humanidade), mas todos nós somos irmãos de
Cristo que se fêz homem para nós podermos tornar-nos filhos de
Deus. E assim como Cristo "se humilhou, feito obediente até à
morte, e morte de cruz" (Fil., II 8) e lavou os pés aos apóstolos
(Ev. João, XIII 1-17), assim os homens devem imitar o exemplo
divino em servir uns aos outros. "Na verdade, vos digo que tôdas
as vêzes que vós fizestes isto a um dêstes meus irmãos mais pe-
queninos, a mim o fizestes" (Mt., XXV 40). O amor ordenado ao
próximo (83a) concreto (cf. "o bom samaritano", Lc., X 26-37)
é o segundo mandamento da Nova Lei (Mt., XXII 39) e, aos
olhos do cristão, ato sumamente religioso.
VI. História Sagrada e História Profana.
A verdadeira história, a mais real, porém a mais escondida,
é a história sagrada: a das obras de Deus relativa à nossa salva-
ção. Não é idêntica à histórica eclesiástica, que lhe representa
apenas os aspectos exteriores e visíveis: é uma historia abscondita,
um diálogo íntimo entre Deus e as almas. As maravilhas de san-
tificação que Deus efetuou no Velho e no Novo Testamento, não
cessaram depois da Ressurreição (84): continuam a viver entre
nós os magnalia Dei (Atos, II 11), mas êles se subtraem aos olhos
humanos, menos em alguns casos, garantidos pelo magistério in-
falível da Igreja. Dessa história verdadeiramente mística descre-
veu a origem, o desenvolvimento e o fim Santo Agostinho na obra
De Civitate Dei (cf. § 76).
A história profana, que nos fala de Impérios, de batalhas, de
conquistas humanas no terreno das ciências, artes e técnicas, não
tem valor religioso prÓpriamente dito para o cristão, ao contrário
do grego, cujo universo era divino e cuja civilização, apesar de
todos os seus elementos humanistas, possuia feições profundamen-
te religiosas. Cristo separou definitivamente as duas esferas, di-
zendo: "Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus"
(Mt., XXII 21). O Cristianismo não se identifica com nenhuma
civilização histórica, — não é grego, nem latino, nem russo, nem
(83a). — O Marxismo por exemplo str:rifica o homem concreto atual ao homem abstrato
do futuro: Pateai pomo, vivat humanitas! — E Nietzsche apregoava o amor
ao "longínquo".
(84) . — Augustinus, De Cateellizandis Rudibus. XXIV 45.
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (IV)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 24, pp 499-533, out./dez. 1955. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/024/A011N024.pdf
— 533 —
QUESTÕES PEDAGÓGICAS
INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS (V).
QUARTA PARTE
CAPITULO SEGUNDO
A CIDADE DE DEUS.
§ 76. A resposta de Santo Agostinho. .
Os primeiros cristãos viviam na expectativa ansiosa da segun-
da vinda do Senhor e faziam pouco caso da vida política e cultural,
aliás, constituíam uma minoria exígua e sofriam muitas vêzes perse-
guições. Mas à medida que o Império se ia cristalizando, tendiam
a situar a parousia num porvir mais •remoto e a tornar-se mais
conscientes das suas obrigações para com o Estado, a sociedade e
a cultura. Às perturbações sociais e políticas, que atravessou a
cikouméne entre 180 e 284 d.C., pôs têrmo o braço forte do Im-
perador Diocleciano, o último perseguidor da Igreja. A obra de res-
tauração foi continuada por Constantino, o autor do Édito de Tole-
rância, promulgado em Milão (313 d. C.) . Mas a ordem, restabe-
lecida pelos dois Imperadores enérgicos, era a de um prisão, e a
tranqüilidade a de um cemitério: não deviam sobreviver ao século
IV. Em 376, o mundo civilizado presenciou com pavor o início da
Grande Migração dos Povos. Dividido o Império em duas meta-
des (1), o Ocidente era prêsa fácil para os bárbaros, que iam in-
vadindo o território romano de todos os lados (2). Em 410 deu-se
a grande catástrofe: Roma, a cidade invencível, que em oito sécu-
los não tinha visto nenhum conquistador estrangeiro (3), foi tomada
pelos visigodos do capitão Alarico. Foi enorme a repercussão que
(1) . — Cf. § 21 I, nota 14. — A bipartição da dignidade imperial remonta aos dias do
Imperador-filósofo Marco Aurélio (161-180), e toma-se comum desde Diocle-
ciano (2 Augusti e 2 Caesares) . Só em 364, a bipartição tomou o caráter de
uma divisão do próprio Império, a qual se tornou definitiva em 395 (se fa-
zemos abstração do breve período de Restauração, sob o Imperador Justiniano) .
— Em 406 várias tribos germânicas (vândalos, burgundos, suevos e alanos) atra-
vessaram o 'Reno, invadindo a Dália e as Espanhas; os visigodos, saindo da
Mésia (=Bulgária), infestaram a . Itália três ou quatro vêzes no primeiro de-
cênio do século V; a Britânia, invadida pelos anglos e saxões, foi abandonada
pelas legiões romanas em meados do mesmo século.
— Foi em 387 a.C. que Roma fôra tornada pelos gauleses: Vae victis!
— 492 —
I. A Composição da Obra.
A primeira parte da obra (livros I-X) é de natureza apologé-
tica: nela o autor refuta as incriminações e pretensões do paganismo.
Na segunda parte (livros XI-XXII) dá uma visão teológica da his-
tória e da sociedade (8) .
Roma é uma cidade perecível, construída por mãos humanas,
tôdas essas construções têm o seu fim. Sempre nos impressionam
mais as calamidades atuais do que as do passado: o que Roma so-
freu, sofreu conforme o mos hostium, aplicado em tôdas as épocas
a todos os derrotados por todos os vencedores, também pelos pró-
prios romanos. Não eram catastróficas, nos tempos idos, as conquis-
tas romanas para outros povos? (9) É ilegítimo responsabilizar o
— O Império cristão, preparado por Constantino, data do ano 380: Édito do Im-
— Augustinus, Sermo, CV 12
perador Teodósio, cf. Codex Theodosianus, XVI 1,2.
— Augustnus, Sermones, LXXXI, CV e CCXCVI. — CL Sermo de Excidío Urbis,
in Migne, PL XLII, 715 sqq.
— A obra compõe-se de 22 livros (661 capítulos, com numerosíssimas digres-
sões), e foi escrita de 411. a 426/7. — Documentação abundante relativa
ao De Civitate encontra-se em Miscelânea "Universitas" (da Fac. de Filos.,
etc. de Sorocaba), I, 1955 (. págs. 55-90), artigo de lavra do autor dêste livro.
— Cf. Augustinus, Retractationes, II 43.
— Já Cícero (in De Republica, III 13,10) disserra: Quae sunt patriae commoda
nIsi alterius civitatis .aut gentis incommoda?
— 493 —
— Santo Agostinho acha muito provável que Platão tenha possuído um conheci-
&mento, embora indireto, dos livros sagrados, cf. De Civitate Dei, VIII 11.
— Ibidem, VIII 10,1.
— Cf. Augustinus, Confessiones, VII 21: Non habent illae paginae vultum pie-
tatis illius, lacrimas confessionis, sacrificium Tuum, spiritum contritum et
hamiliatum, populi salutem, sponsam civitatem, cerram Spiritus Sancti, pocu-
lum Pretii nostri.
— O maniqueísmo, seita rel'giosa, foi fundado pelo persa Mani, degolado por or-
dem do rei persa Bahram em 276. Originariamente um sistema pagão, influen-
ciado por elementos heterogêneos (persas, babilônios e budistas), acabou por
pedir emprestados elementos cristãos e, principalmente, gnósticos. O mani-
queísmo ensina um dualismo metafísico: dois Reinos eternos, — o divino
(a Luz) e o diabólico (as Trevas), — combatem-se eternamente; a matéria
é má em sí; no fim do mundo, o Reino das Trevas será aniquilado pelo Reino da
Luz. — O maniqueísmo sobreviveu até à Idade Média (Cátaros ou Albigenses).
— 495 —
. — A obra foi por êle adotada na Bibliothèque Positive, figurando 'aí no quarto
lugar da quarta secção: 1) A Ética e a Política de Aristóteles; 2) A Bíblia;
3) O Alcorão; 4) A Cidade de Deus; 5) Le Discours de l'H:stoire Universelle,
de Bossuet; 6) Esquisse Historique des Progrès de l'Esprit Humain, de Coa-
dorcet.
. — Augustinus, De Civitate Dei, XXII 30,5; De Catechizandis Rud'bus, XXII 39;
De Diversis Quaestionibus, LXXXIII, 58,2-3; De Genesi contra Manichaeos,
I 35-42. — Cf. § 26 VII.
. — Augustinus, De Civitate Dei, XII 12-14, e 17.
(37). — Ibidem, V 18,3: Revelante Testamento Novo, quod in Vetere velatum luit...;
cf. Quaestiones in Heptateuchum, II 83: In vetere novum latet, et in novo
vetus patet. — Daí possuir caráter profético- o Velho Testamento, cf De Di-
versis Quaestionibus LXXXIII, 58, 2.
(38) . — Augustinus, De Civitate Dei, XII 21: XVI 8, 1-2.
.(39). — Dos gregos mencionamos Justino e Clemente de Alexandria; entre os latinos,
Ambrósio e o poeta Prudêncio.
— 500 —
011 motivo nenhum para idealizar a Idade Média nem para a consi-
derar como modêlo perfeito de valor absoluto para tôdas as épocas,
não é menos absurdo desacreditá-la como um período de barba-
rismo. Não podemos entrar aqui na discussão desta questão que'
quase nunca é tratada com a devida calma, nem sequer com os neces-
sários conhecimentos históricos. Basta dizermos aqui que o univer-
salismo medieval, a abranger todos os valores numa ordem hierár-
quica e objetiva, bem como sua visão teocêntrica nos parecem con-
cepções grandiosas, bem capazes de nos encherem de sentimentos
de saudades. Mas a luz resplandescente do ideal nos deve esconder
a presença de numerosas sombras na realidade medieva .
No dizer de Gilson(53), a concepção medieval da história
n'est ni ceife d'une décadence continue, puisque, au contraire, elle
affirme la réalité d'un progrès collectif et régulier de l'humanité
comine telle, ni celle d'un progrès indéfini, puisque elle affirme, au
contraire, que le progrès tend vers sa perfection comme vers un fin;
elle est bien plutôt Phistoire d'un progrès orienté vers un certain
terme. Os medievais, bem conscientes da sua situação histórica,
julgavam-se no setor da filosofia, das ciências e das artes, tributá-
rios dos antigos, e bem sabiam que seu Sacro Império -vera um
precursor no Império profano dos Césares; essas e muitas outras
heranças longe de os condenarem a uma vida inerte e vegetativa,
obrigavam-nos constantemente a um esfôrço original: o de enqua-
drá-las harmônicamente na sua concepção cristã do mundo e de
continuar uma gloriosa trEdção secular. É verdade, não possuiam o
"senso histórico" na acepção moderna da palavra, mas dêle se
aproximavam muito mais do que os antigos, devido à sua apreci-
ação positiva do processo histórico; tampouco chegavam a uma
"filosofia da história" prèpriamente dita (54 ) . Predominava uma
visão teológica da história, inspirada pela obra agostiniana (55) .
Neste parágrafo pretendemos falar de Joaquim de Fiore, cujos
livros revelam uma ruptura com essa tradição secular.
I. Joaquim de Fiore ( 1140-1202 ), abade de um mosteiro
cisterciense na Calábria, partindo de uma noção pouco ortodoxa
da Santíssima Trindade, dividia a História em três períodos
(status), cada um dos quais devia ser a manifestação de uma das
três Pessoas divinas (56) . A época do Pai começou com Adão e
(58a) . — Por isso Joaquim pertence, suo modo, — aos chamados "quiliastas" ou
"milenários", seitas heterodoxas que acred , tam na vinda de um reino messiâ-
nico (de 1000 anos, cf. Apocalipse, XX) neste mundo, antes da consuma-
ção dos tempos. Ass'm opinavam, na Antigüidade cristã, por exemplo Lac-
tâncio e Tertuliano (montanistas!), e nos tempos modernos, por exemplo os
adventistas e os mormões.
(59). — O cálculo é baseado nestas especulações: São Mateus (I 27) dá 42 gerações
de Abraão a Cristo. Ora, 42 gerações, cada uma de 30 anos. fazem 1260 anos,
a duração de um período joaquino. Também o Apocalipse (XI 3; XII 6) fala
em períodos de 1260 anos. Joaquim pertencia, portanto, à quadragésima ge-
ração depois de Cristo.
. — Joaquim admitia dois Anticristos: um no fim do segundo período, o outro
no fim da h'storia.
. — Dante, Paradiso, XII 140-141.
— 506 --
— 507 —
tuosius orbem, terrae irradiet, cui ab Illo sole praefectus est, qui est
omnium spiritualium et temporalium gubernator (70) .
As tendências imperialistas do De Monarchia, compreensíveis
numa época em que as usurpações da política papal provocavam
uma reação forte (Bonifácio VIII), prejudicaram a boa reputação
opúsculo de Dante: freqüentemente impugnado durante a Idade
Média, o tratado foi pôsto no Index Librorum Prohibitorum (século
XVI), do qual o tirou só o Papa Leão XIII.
(70) . — Ibidem, III 16. — Cf. E. Gilson, Dante et Ia Philosophie, Paris, Vrin, 1952 2,
págs. 163-222 .
CAPITULO TERCEIRO
DA TEOLOGIA A FILOSOFIA DA HISTÓRIA
§ 80. A Renascença
Originàriamente, o têrmo "Renascença" ou "Renascimento"
indicava apenas um novo estilo nas belas artes, inspirado pelos mo-
numentos da Antigüidade e oposto ao estilo "gótico" ou "bárbaro"
da Idade Média: nasceu na Itália e espalhou-se, aos poucos, por
outros países europeus, onde, porém, nunca chegou à popularidade
de que gozava na terra da sua origem. Como outros têrmos esti-
lísticos (cf.. § 28), acabou por designar uma época histórica (sé-
culos XV e XVI), que marca uma profunda incisão na vida cul-
.
c,
(5) • — Julían Marías, La Filosofia en sus Textos, Editorial Labor, Barcelona, 1950,
I pág. 697.
— 512 —
IV. A Reforma.
( 15 ) . — Principalmente Max Weber, in Die protestantische E thik und der Geist des
Kapitalismus (= "A Ética do Protestantismo e o Espírito do Capitalismo" )
. — Sobretudo em Florença e Veneza. — Cf. os Medic . , família de banqueiros em
Florença, e também o nome da moeda "florim".
. — A . Fanfan', • Catholicism, Protestantism and Capitalism, London, Sheed & Ward,
1939, págs. 205-206 (trad. ingl. da obra ital'ana: Cattolicesimo e Protestart-
tesimo nella Formazione Storica dei Capitalismo) .
•
— 515 —
(18) — Nicolau de Cura nasceu em Cues sôbre o Mosela, na Alemanha " (1401), e fa-
leceu em 1461 em Todi (Itália). Seu nome original era Chrypffs ou Krebs. —
Cf. Lívio Teixeira, Nicolau de, Cusa (in "Coleção da Revista de História" II) e
Oeuvres choisies de Nicolas de Cues (ed. Maurice de' Gandillac), Paris, Aubier,
1942, págs. 359-363.
(19). — Na obra Concordia Astronomiae cum historica Veritate (1414), em que pre-
dizia para o ano 1789: multae tunc et magnae et mirabiles altercationes futurae
sunt, maxime circa leáes et sectas.
. — Mencionamos ainda as profecias obscuras de Michel de Nostre-Dame (= Nostra-
damus) (1503-1566), astrólogo francês, de descendência judia. O frade
dominicano Tommaso Campanella (1568-1639) predizia o fim do mundo para
o ano 1600.
. — Há quem defenda o autor de amoralismo, mas os argumentos alegados não nos
parecem convincentes; cf. E. Cassirer, El Mito del Estado, Fondo de Cultura
Económica, México-Buenos Aires, 1947, págs. 166-193. — Segundo outros,
;Aí,'
Rousseau é um déles, — Maquiavel teria dado esse retrato hediondo de
um príncipe para torná-lo repugnante, sendo republicano disfarçado, como nô-lo
mostram os Discorsi.
-517 —
emente l'uomo di virtà (22), que não despreza meio algum• para
alcançar seus fins: será justo ou injusto, clemente ou cruel, reli-
gioso ou ateu, conforme o exigirem as circunstâncias. Pois tam-
bém a religião não passa de um instrumento (23) nas mãos do
príncipe para poder dominar e enfrear a estúpida multidão: o autor
ataca sobretudo o Cristianismo, que ensinaria apenas a sofrer e a
tolerar as injustiças (24) . Tem má reputação o capítulo XVIII,
onde Machiavelli diz que o príncipe deve cumprir sua palavra
sômente quando o puder sem se prejudicar a si mesmo; contudo,
fica-lhe bem conservar as boas aparências: A uno principe, adunque,
non è necessario avere in fatto tutte le soprascritte qualità, ma
è bene necessario parere di averle. Anzi, ardirà di dite questa, aven-
dole e osservandole sempre, sono dannose, e parendo di averle, sono
utili; come parere pietoso, fedele, umano, intero, religioso, ed essere;
ma stare in modo edificato con l'animo, che bisognando non essere,
tu (25) possa e sappi mutare il contrario. E hassi ad intendere
questo, che uno principe, e massime uno principe nuovo, non pua
osservare tutte quelle cose per le quali gli uomini sono tenuti buoni,
sendo spesse necessitato, per mantenere lo stato, operare contro alia
fede, contro alia caritó, contro alia umanitá, contro alia religione.
Por isso mesmo, o príncipe dominará a arte de hipocrisia, sendo que
a ralé julga apenas pelas aparências. Todos os conselhos são abo-
nados com numerosos exemplos da história antiga e contemporânea.
E o livro termina por uma calorosa exortação a Lourenço II para
livrar a Itália do jugo estrangeiro.
Maquiavel não foi o primeiro, — nem seria o último, — a justi-
ficar e a glorificar o "homem forte", não incomodado por escrúpulo
algum: já na Antigüidade, o sofista Trasímaco, combatido por
Platão, emitia teorias semelhantes dizendo: "Eu digo não ser nada
a justiça senão o proveito do poderoso" (26) . A realidade política
Piri• de tôdas as épocas vem a confirmar, infelizmente, a exatidão
(34) . — A obra foi reeditada em 1951 por Les Presses Universitaires. em Paris.
(35). Methodus, pág. 227 B (da edição citada na nota anterior) .
(36) . — O Barroco é, nos países católicos, a época do catolicismo (aparentemente)
triunfador sôbre as heresias (Contra-Reforma!) e conquistador de novos con-
tinentes (América Latina, índia, China, Japão); até o absolutismo se reveste
de feições religiosas (na Espanha de Filipe II; Bossuet escrevia um tratado
Politique tirée de l'Écriture Sainte, em que defendia a monarquia absoluta
como o regime político ordenado por Deus; o rei, possuindo um droit divin,
_ não é responsável a nenhum de seus súditos, devendo prestar contas só a Deus);
é a época das devoções populares, das concentrações maciças, dos sermões im-
9r. pressionantes, e também dos retiros e dos "exercícios" espirituais (Ignácio de
Loyola, 1491-1556); e afinal é a época de certas tendências heterodoxas mal
reprimidas: o jansenismo, o quietismo, e o galicanismo.
— 520 —
(37) — "Delfim" (francês: Dauphin), título dado aos príncipes herdeiros da França,
desde 1349 até 1830. — Bossuet consagrou-se onze anos (1670-1681) à edu-
caçio do filho de Luís XIV, e seu discípulo faleceu em 1711. Fénelon (1651-
1715) foi nomeado educador•do filho do Dauphin em 1689; também êste (que.
era neto de Luís XIV) não subiu ao trono, mas morreu em 1712.
— 521 —
— Cf. § 22 I; § 86 II.
— Utilizamo-nos da edição de Fausto Nicolini (Bari, 19534 ): La Scienza Nuova
Second,: giusta l'Edizione del 1744.
'48). — La Scienza Nouva, 331.
(49). — Ibidem, 141-142: L'umano arbitrio, di sua natura incertissimo, egli si accerta
e determina coi senso comune degli uomini d'intorno tale umane necessitá o
urlitá... II senso comune è un giudizio senz'alcuna ritlessione, comunemente
sentito da tutto un ordine, da tutto un popolo, da tutta una nazione o da tutto
il áener ameno.
524 —
— Ibidem, 7.
— Ibidem,345.
— Ibidem, 379 e 391. — A palavra é de Vergilius, Ecloga, III 60.
— Ibidem, 1108.
— Ibidem, 2. — Três fatos fundamentais, encontrados entre todos os povos: a
religião, o matr'mônio e a sepultura dos mortos, apontam para um principio
comuna di vero, que é a Providência, cf. La Scienza Nuova, 333.
— Ibidem, 1108.
— 525 —
. — Ibidem, 241.
. — Vico fala do ricorso no Libro Quinto (1046-1096) .
— .526 —
social.
V. Com efeito, por mais contrário que Vico fôsse ao ponto
de partida cartesiano, não conseguiu esquivar-se por completo ao
espírito racionalista da época. Católico convicto, acreditava na
Providência cristã, no Deus dos patriarcas e dos profetas, a revelar-
se ao homem durante o processo histórico; mas não sabia integrá-la
de modo harmônico no seu sistema científico. Ao que parece, para
êle, a Providência cristã era objeto da fé, não da ciência. Eis
•
— 527 —
QUESTÕES PEDAGÓGICAS
QUARTA PARTE
católica aos golpes dos inovadores não estava à altura dos seus ad-
versários; que muitos apologistas defendiam posições antiqüadas e
identificavam certas verdades humanas com a Verdade revelada;
que numerosos autores católicos preferiam discussões estéreis e po-
lêmicas políticas com seus correligionários a um estudo aprofun-
dado e sincero dos problemas, que lhes eram propostos pelos revo-
lucionários; que não poucos, afinal, comprometiam a santidade da
religião por confundirem o Cristianismo com a sua posição social
privilegiada.
Eram trágicas as conseqüências da medida eclesiástica tomada
contra Galileu (5): devido a essa condenação, a Igreja ia perden- k4
(5). — Cf. Fr. Dessauer, Der Fall Galli& und Wir, Frankfurt am Main, 1951 3 .
— 187 --
V. O Deísmo (6).
O Deísmo reconhece a Deus como o Arquiteto do Universo,„
no qual Ele produz e mantém uma ordem admirável (7), mas re-
cusa-se a admitir a "intervenção divina" (cf. § 68 II) nos aconte-
cimentos humanos. O Universo, uma vez criado e provido de leis
invariáveis, é deixado entregue às suas próprias fôrças imanentes„„
tornando-se impossíveis milagres e tôda e qualquer Revelação so-
brenatural. Deus passa a ser, por assim dizer, o rei constitucional
do mundo, tendo de respeitar incondicionalmente as leis que o re- •
Aqui não falaremos nem dos inglêses nem dos holandeses, se-
não de passagem. Os §§ 85-89 serão consagrados aos franceses, os
,§§ 90-92 aos alemães, e os §§ 93-94 à Reação católica.
A. O FILOSOFISMO FRANCÊS.
§ 85. Os primórdios.
Tese inocente e, em nossos dias, até banal. Mas, nos dias de Fon-
(17) . — Fontenelle nada fazia senão divulgar, de maneira elegante, as idéias do erud'to
médico holandês Antoon Van Dele (1638-1708): De Oraculis Veterum Ethni-
corum (1683) . •
, (18) . — Fontenelle fazia a mesma coisa em L'Origine des Fables (1686): as fábulas
são alucinações de espíritos contemplativos que ingênuamente atribuem fenô-
menos mal compreendidos à ação de sêres superiores; artistas e poetas tor-
nam-se cúmplices por propagar essas invenções quiméricas de uma época não
científica. O autor não fala nas "fábulas cristãs", mas suas insinuações dão a
entender que a explicação racionalista é de alcance geral.
(10) . — Por exemplo Bossuet e Huet. — Pierre-Daniel Huet (1630-1721), teólogo e
apologista francês, adversário de Descartes, com tendências pietistas, educador
do Delfim (textos clássicos ia usura Delphini), e autor de muitas obras, das
quais mencionamos a Demonstratio Evangeiica (1679) .
— 191 —
até que foi, finalmente, posta no caminho reto por Descartes. Fon-
tenelle escapa ao ceticismo da sua juventude por professar, nas nu-
merosas publicações da sua idade madura, uma confiança quase
§ 86. Voltaire.
•
-- 194 —
§ 87. Montesquieu.
(42) . Para êle, como para os estóicos, — não era Políbio seu mo-
dêlo admirado? — o mundo é o efeito de uma causa racional e
única, que contém em si a concatenação lógica das causas parti-
culares. Assim se explica de maneira muito natural a história do
povo romano. Os romanos conquistaram o mundo, graças à sua
férrea disciplina militar, ao seu amor pela liberdade, à sua vida
frugal, à sua legislação sábia, e o desaparecimento dêsses fatôres
tornou-se desastroso para o Império. La vertu (-= patriotismo sa-
crificado, desêjo de glória, etc.) ia diminuindo, à medida que o Im-
pério se ia estendendo a países fora da Itália. Pouco interessa a
Montesquieu a religião romana, e quando encontra no seu caminho
o Cristianismo, fala dêle com reserva e com certo embaraço.
III. Na sua obra principal, L'Esprit des Lois (1748), o autor
desenvolve a idéia fundamental das Considérations. Montesquieu
procura entender um problema que já era discutido apaixonada-
mente pelos sofistas gregos: as instituições e as leis, tão diferentes
entre os diversos povos, devem ser interpretadas em função de um
ideal absoluto (a justiça eterna ou a razão universal), ou devem
ser consideradas como expressões de uma vontade arbitrária? Por
outras palavras: as leis das nações se baseiam na natureza (grego:
phf/sis), ou na convenção (grego: ,nómos)? Montesquieu não se
conforma com esta alternativa, mas dá uma resposta original, que
já anuncia a concepção orgânica da história. O "espírito das leis"
decorre logicamente do "espírito" de cada povo, o qual é constituída
pelo total de fatôres empíricos, tais como o clima, o solo, o nível
de cultura, os costumes, a religião, etc. Urna lei, por mais capri-
chosa que pareça, pressupõe sempre uma relação íntima com êsses
fatôres naturais, e o bom legislador leva êstes em consideração com
o fim de realizar o melhor resultado para um povo concreto que
vive nestas circunstâncias concretas. As leis são, portanto, deter-
minadas por "causas gerais" de caráter físico ou moral, mas por isso
não são necessidades absolutas, e sim relativas, visto serem diferentes
entre si as "causas gerais". As leis serão boas, não na medida de
realizarem as normas absolutas da Justiça, mas na medida de se
harmonizarem com as normas relativas, ditadas pelo clima e pela
situação do país, como também pelos costumes do povo. Assim se
explica a diversidade das leis e da sua eficiência (43).
Montesquieu foi o primeiro a introduzir na filosofia da histó-
ria o conceito de "lei", — têrmo equívoco, ora empregado no sen-
tido de lei física, ora no de obrigação moral ou jurídica, ora no de
princípio matemático ou até metafísico. São estas as palavras Mi-
(48a). —Ibidem, XI 6.
(48b) . — Quintilianus, Institutio Orataria, E 10, 1. — E' bem possível que a palavra
"enkyklios paidéía", na Grécia antiga, tenha significado: "educação comum,
corrente".
(49). — Cf. H.-I. Marrou, Saint Augustin et la FM de la Culture Antique, Paris,
Boccard, 1948, págs. 228-229.
(50) . — Pierre Bayle (1647-1706), filósofo francês que, desde 1681, vivia em Rotter-
dam; mudou várias vêzes de religião e de filosofia para terminar num ceti-
cismo destrutivo.
— 201 ----
a) Turgot.
Com 23 anos de idade, o então seminarista Turgot proferiu,.
em 1750, dois discursos brilhantes na Sorbonne, chamados: Dis-
cours sur les avantages que I'établissement du Christiarrisme a pro-
cure au gene humain, e Discours sur les progrès successifs de res.
prit humain. No primeiro, o orador assinala as visíveis vantagens
(51) • — Jacques Necker (1732-1804), financista e ministro francês (1777-1781, e
1788-1789), partidário do mercant lismo; pai de Madame de Staël (cf. nota
97) .
— 202 —
b) Condorcet.
(58a). — Cf. Rousseau, Discours de 1750 (I): Voilà comment le luze, la dissolution
et Pesclavage ont été de tout temps le châtiment des efforts orgueil1eux que
nous avons faits pour sortir de I'heureuse ignorance af la sagesse éternelle
nous avait placés.
(59)• — Rousseau não pretende dar uma reconstrução de fatos históricos, mas antes
uma hipótese, ou melhor ainda, um mito. Mas se considerarmos êsse mito pai-
cológicamente; na consciência individual, l'état de nature é uma realidade
efetiva. Diz o autor (no exórdio do Discours sur ?Origine, etc.): Commen-
çons dons pour écarter tous les feita, car ils ne touchent point à la question.
11 ne faut pas prendre les recherches dans lesquelles on peut entres sur ce
sujei pour des véritéks historiques, mais seulement pour les raisonnements hy-
pothétiques et conditionnels, pisas propres à éclaircir la nature qu'à en mon-
trer la véritable origine, et semblables à ceux que font tous les jours nos
physic:ens sur la formation du monde.
—Discours sur ?Origine, etc. I: ...on pourrait dire que les sauvages ne sont
pas méchants précisément parce qu'ils ne savent pas ce que c'est qu'être
bons; car ce n'est ni le développement des lumiàres, ni le frein de la loi,
mais le calme des passions et l'ignorance du vice, qui les empêchent de mal
feire. "Tanto pisas In illis proficit vitiorum •ignoratio quem in his cognitio
virtutis”. — Além disso, o homem do estado de natureza tinha como virtude
positiva: la piêfé, disposition convenable à des êtres aussi faibles et sujeis
à autant de maus que nous le sommes...: elle précède en lui l'usage de
toute réflexion, et (est) si naturelle que les bêtes mêmes en donnent quel-
quefois des signes.
Ibidem, 1: Ce fut par une providence três sege que les lacultés qu'il avait
en puissance, ne devaient se développer qu'avec les occasions de les exer-
cer, afin qu'elles ne lui fussent ni superflues et à charge avara le temps, ni
fardives et Mutiles au besoin. 11 avait dans le seul instinct tout ce qu'il lui
fallait pour vivre dans l'état de nature; il n'a dans une raison cultivée que
ce qu'il lui faut pour vivre en société.
(59c) . — Ibidem, I.
— 205 —
natureza humana.
III. Pois a natureza quer que o homem seja livre: L'homme
est né livre, et partout il est dans les Lera (60). Qual a saída dessa
situação insuportável e indigna do homem? Rousseau vê muito bem
ser inexiqüível um retôrno radical ao estado primitivo da humani-
dade. No Contrat Social (1762) empenha-se em solucionar o ár-
duo problema, sempre no sentido de salvar, na medida do possível,
as vantagens de l'état de nature. A liberdade e a igualdade, dois
direitos inalienáveis do indivíduo humano, que lhe foram extorqui-
dos pela sociedade e pelo Estado, lhe devem ser restituídas, enquan-
to o permitir o bem-estar de todos. No seu estado de natureza, o
homem dependia apenas das coisas, não dos seus semelhantes, o
que é humilhante, visto que o homem nasce livre: na sociedade do
futuro, o homem dependerá apenas da lei, expressão impessoal da
volonté générale, sem estar sujeito às postergações atuais da sua li-
berdade por parte dos homens. La volonté générale, meio-têrmo
entre a realidade e a norma ideal, prescinde de tôdas as vontades
particulares bem como de todo e qualquer interêsse particular. Sem-
pre justa e infalível, visa só ao verdadeiro bem comum, sendo muito
diferente de la volante de tous, que é o total dos interêsses parti-
—Ibidem, II: La métallurgie et l'agriculture furent les deux arts dont l'in-
vention produisit cette grande révolution. Pour le poète, c'est l'or et l'argent,
mais pour le philosophe, ce sont le fer et le blé qui ont civilisé les hommes,
et perdu le genre humain.
— Ibidem, II.
(60). — Rousseau, Da Contrat Social, 1 2.
206 —
(61) . — Ibidem, I 6.
(62). — Ibidem, I 8.
(63) . — John Locke (cf. § 84 II), o exaltador do regime liberal, estabelecido na In-
glaterra pelo rei Guilherme III (cf. nota 15), expunha suas idéias nos Two
Treatises on Government (1689) : segundo êle, o contrato social não cria
direitos novos, mas o indivíduo procura na sociedade a garantia de seus
direitos naturais e inalienáveis, pelos quais os direitos do govêmo ficam 1;-
mitados; surgindo conflitos entre o govêrno e o povo, prevalece a suprema
vontade da nação. — Quanto a Hobbes, cf. nota 14 dêste capítulo.
(64). — Porém, no Contrai Social, IV 8, censura o Cristianismo, qui ne prêche que
servitude et dependance. Son esprit est trop favorable à la tyrannie pow
qu'elle n'en profite toujours. Les vrais chrétiens sont feita pour être esclaves;
ils /e savent et ne s'en émeuvent guère; cette courte vie a trop per' de
prix à loura yeux• Une société chrétienne, à force d'être parfaite, manqueraii de
liaison. — Cf. § 81 II, nota 18. — O argumento já foi combatido per
Santo Agostinho, Epistola, CXXXVI.
— 207 —
B. A "AUFIKLÃRUNG" ALEMÃ.
— Cf. Lessing, in Eine Duplik I: "Se Deus segurasse na mão direita tôda a ver-
dade, e na mão esquerda apenas o desêjo sempre vivo de verdade, e me
dizendo: "O' Pai celeste, dai-me isto! A verdade pura ó só para Vós!"
e dizendo: "O' Pai celeste, dai-me isto ! A verdade pura é só para V.5s!"
— No drama Faust de Goethe (I 1224-1237), o herói interpreta as palavras
iniciais do Evangelho de João ("No princípio era o Verbo" = grego: Lógoz)
como: "No início era a Ação" Um Anfang war die Tat).
(72a). — Lessing, na Hamburgische Dramaturgie, impugnava o drama clássico da es-
cola francesa, ridicularizando-lhe as três regras, a artificialidade, e exprobran-
do-lhe falta de imaginação e de "interioridade" (alemão: Innerlichkeif, outra
palavra significativa do vocábulo alemão!). — A tendência anti-francesa en-
contra-se também nas obras de Herdar, Goethe, Hegel, etc.
<73). — O mito do Volk der Dichter und Denker foi criado pelas publicações de J. X.
Musaeus (1735-1787) e de Jean-Paul Fr. Richter (1763-1825); Madame
de Staël (cf. nota 97) contribuiu muito para o divulgar nos países latinos.
§ 91. Lessing.
-- Ibidem, 59.
-- Ibidem, 91.
— 213 —
§ 92. Herder.
(81). — Traduzido para o francês, em 1943, por Max Rouché, sob o título de:
Une Autre Philosophie de l'Histoire (Paris, Aubier); nossas citações são
t:radas da versão francesa.
. — Herder, Une Autre Philosophie, etc., pág. 119.
. — A exposição de Herder é pouco clara: há continuidade, ou mera sucessão
entre a cultura antiga e moderna? Ora fala na "árvore da humanidade", cujo
tronco crescido é a civilização romana, e cujos ramos são constituídos pela
cultura medieva (ibidem, pág. 227); ora, predominando a metáfora das "ida-
des", antec i pa uma idéia de Spengler, e a Idade Média seria um recomêço
absoluto (ibidem, pág. 165 e 195-197) .
214 —
(87) . Kant criticava severamente esta obra de Harder, reconhecendo-lhe uma gran-
de sagacidade em descobrir analogias e uma fecunda imaginação, mas expro-
brando-lhe a tendência de explicar obscurum per obscttrius (in "Sãmtliche
Werke", Insel-Ausgube, I pág. 253). — Quanto a Kant, cf. Kant, la Philosophie
de l'Histoire, (Opuscules), Introd. et Trad. par St. Piobetta, Paris, Aubier,
1947. E o "olimpico" Goethe (in Mazimen und Reflezionen): "Creio no triun-
fo final da Humanitãt: só tenho mêdo de que o mundo se transforme num gran-
de hospital, onde um sirva de enfermeiro a outro"-; e numa carta a Zelter
(27-VII-1807): "Escuto com muito interêsse, quando uma pessoa me comu-
nica o quanto perdeu, ou receia perder: não me custa consolá-lo. Mas, quando
os homens lamentam a perda de "um todo" (ein Ganzes), que ninguém jamais
viu e pelo qual ninguém jamais se preocupou, estou prestes a perder a paciência,
e custa-me muito não ficar descortês ou não passar por um egoísta". — Sôbre
Goethe e a história, cf. K. Lhwith, Von Hegel zu Nietzsche, Stuttgart, 1953,
págs. 239-251.
— Herdar, Idéias, etc., II 4.
— Ibidem, IX 5, e IV 6.
— Ibidem, V 7.
— 216 —
por se aproximar o mais perto possível do fim, que lhes foi propos-
to por Deus. Nenhuma dessas-tentativas tem êxito perfeito: cada
qual representa apenas um aspecto particular de uma realidade di-
vina e inesgotável. A morte de certas civilizações históricas é o
nascimento de outras culturas juvenis. Contudo, Herder julga pro-
vável um lento progresso no processo histórico, pelo menos, visto
na sua totalidade (91): a Humanitãt será, num futuro distante,,
mais duradoura e geral do que agora . A religião, pregada por Je-
sus, foi um passo muito importante rumo ao ideal da Humanitãtp,
mas o Cristianismo histórico, principalmente o Catolicismo, detur-
pou a mensagem sublime do Mestre (92).
III. Em outras obras de Herder, que não podemos analisar
aqui, encontramos umas idéias que tiveram grande repercussão na
historiografia e na filosofia da história.
•
Um povo é um organismo, e todos os seus produtos devem
ser entendidos à luz dessa unidade orgânica. Também a poesia é
produto nacional, impossível de importar ou de exportar. Dante
não seria Dante, se tivesse vivido na Inglaterra da rainha Elisabeth, ,
. Ibidem, XV 4.
. — Ibidem, XVII '1.
. — Cf. § 73 I e. — Kalokagathía (kalós = "belo", e, agatliós — "bom" era o ,
ideal do Neo-Humanismo alemão, que visava ao antigo ideal— helênco de um
"bom espírito" num "belo corpo", ou de maneira mais geral: uma combinação
harmônica de "interioridade" (Innerlichkeit) com a "exterioridade" (Formvollen--
dung): — W. Von Humboldt (1767-1835), irmão do descobridor Alexandre
Von Humboldt (1769-1859), era um dos principais representantes dessa cor-
rente. O mesmo escreveu (1821) über cl2e ~gabe des Geschichtschreibers
"Sôbre a Tarefa do Historiador"), em que defende uma idéia dinâmica,.
da historiografia.
(95). — Herder, Idéias, etc. XX 4.
— 217 —
C. A REAÇÃO CATÓLICA.
§ 93. Joseph de Maistre.
A palavra "reação" não soa bem aos ouvidos dos homens mo-
dernos: são qualificados de "reacionários" os inimigos da liberda-
de, do progresso social, da tolerância, da democracia. E já que todo
mundo se arroga o direito de interpretar à sua livre vontade êsses
conceitos, carregados de potências mágicas, tende a tachar de rea-
cionário qualquer um que tenha a triste coragem de interpretá-los
em sentido diferente. Com muita razão escreve N. Berdiaïev: Ce
(97) . — Madame de Staêl (1766-1817) = Germaine Necker, filho do ministro Necker
(cf. nota S1), publicou, em 1813, De l'Allemagrze, em que formulava uma
oposição romântica entre o "espírito religioso" dos nórdicos, capazes de en-
tusiasmo, e o "espírito pagão" dos meridionais, racionarstas e egoístas.
— 219 —
vie d'un coquin: je ne l'ai jamais été; mais celle d'un honnête hom-
me est abominable (110) .
Ao dogma da liberdade ilimitada, contrapõe os princí-
pios da autoridade e da ordem, chegando a dizer: S'il était permis
d'établir des degrés .d'importance parmis choses d'institution di-
vine, je placerais la hiérarchie avant le dogme, tant elle est indis-
pensable au maintíen de la foi (111) . A autoridade, expressão da
'ordem e da unidade, é uma instituição divina, que foi sendo der-
rubada sucessivamente pela Reforma, pelo galicanismo, e afinal pe-
ia Revolução, — três movimentos históricos em que o autor vê
apenas fôrças destrutivas. Por tôda a parte podemos verificar na
natureza inanimada a ordem, a apontar para uma Inteligência cria-
dora e governadora. Encontrâmo-la também na marcha da história
humana: é a Providência. A ordem deve ser estabelecida livre-
mente pelo homem no govêrno das nações e na organização da vida
social: ora, ela é inconcebível sem a autoridade. Tôda e qualquer
tentativa humana de indagar independentemente a verdade ou de
estabelecer autônomamente uma organização social e política re-
sultou num malôgro deplorável. A autoridade civil em questões hu-
manas é supostamente infalível: a infalibilidade de ordens militares,
sentenças judiciárias, disposições legais, etc. é uma exigência im-
prescindível para o bom funcionamento da vida social, e prática-
mente aceita por tôdas as sociedades que não queiram perecer. A
autoridade papal em assuntos religiosos é infalível em virtude de
uma promessa divina. Assim de Maistre opõe três espécies de au-
toridade às teses niilistas da Revolução: a autoridade divina, a atuar
misteriosamente no govêrno universal do mundo: a Providência; a
.autoridade de origem divina, mas exercida por um homem de modo
infalível: a do papa; e a autoridade, igualmente de origem divina,
exercida também por um homem, de modo supostamente infalível:
-.a do rei.
— Ibidem, I.
— Considérations, I.
— Lettre au Baron Vignet des Étoles (do ano 1794): Si la monarchie vJus pte
reit forte à mesure qu'elle est plus absolue, dans ce cas, Naples, Madrid,
Lisbonne, etc., doivent vous paraitre des gouvernements vigoureux.
— 224 —
(116). — Principe Générateur, Préface: L'histoire cependant, qui est la politique ex-
périmentale, démontre que la monarchie hérédieire est le gouvemement le
plua stable, le pies heureux, le pies natural é Phornme; et la monarchie éieo.
tive, au contraire, la pire espèce des gouvernements connus.
,(117). — De Pape, II 8.
— Ibidem, II 10.
(118a). —Cf. Fr. Elias de Tejada, Donoso Cortés, in "Revista da Universidade Católica
de São Paulo", III 5 (1953), Págs. 73-86 .
— P. J. Proudhon (cf. § 97 II) escrevera (ia Systéme des Contradictiona Éce•-
nomiques, Prologue, III): Nous sommes pleins de la Divinité, "Joyis orneia
plena" (cf. § 83, nota 52): nos monumento, nos traditions, nos lois, nos idées,
nos langues et nos sciences, tout est infecté de cette indélible superstition
hors de laquelle il ne nous est pas donné de parler ai d'agir, et sano laquelle
nous ne pensons seulement pas.
--- 225 —
Cortés: Nada hay aqui que pueda causar sorpresa, sino la sorpresa
de Mr. Proudhon. La teologia, por lo mismo que es la ciencia de
Dios, es el Océano que contiene y abarca todas las ciencias, así co-
rno Dios es el Oceano que contiene y abarca todas las cosas (120).
A diminuição da fé traz forçosamente consigo a aberração da inte-
ligência humana: as coisas visíveis podem ser explicadas apenas por
coisas invisíveis, as coisas naturais apenas por coisas sobrenaturais.
Pois, no fundo, tôda e qualquer questão humana envolve uma ques-
tão divina. Deus criou a ordem, e o homem perturbou-a, pelo peca-
do de Adão e por seus pecados pessoais. Deus restabeleceu a ordem,
mandando seu Filho à terra, obra redentora que depois é continua-
da pela Igreja. El orden pasó del mundo religioso al mundo moral,
y del mundo moral al mundo político (121). O homem tornou a
perturbar a ordem, apostatando da Igreja de Deus. As soluções,
propostas pelo liberalismo (122) e pelo socialismo (123), são ine-
ficientes, porque provêm do orgulho e do pecado. Entre la verdad
y la razón humana, después de la prevaricación del hombre, ha pues-
to Dios una repugnancia imortal y una repulsión irrvencible. . En-
tre la razón humana y lo absurdo hay una afinidad secreta, un paren-
tesco estrechísimo; el pecado los ha unido con el vínculo de un
indisoluble matrimonio (124). A única solução dos problemas so-
ciais e políticos que atormentam a Europa agonizante, é o retôrno
aos princípios divinos do Catolicismo: el orden universal está en
que todo se ordena armoniosamente para aquel fin supremo que ima
puso Dios a la universalidad de las cosas . El supremo fin de las co-
sas consiste en la manifestación exterior de las divinas perfecciones
(125) . Ora, no mundo a Ordem Divina é representada pela Igre-
ja Católica, o Corpo Místico de Cristo, a única instituição a possuir
uma perfeita humanidade: separar-se dela é igual a afastar-se do
Deus-Homem, e por isso mesmo da verdadeira humanidade: a dig-
nidade humana reside exclusivamente na Encarnação: Yo de mí sé
decir que si mi Dios no hubiera tomado carne en las entravas de una
mujer, y si no hubiera muerto en una cruz por todo el linaje humano,
— Citamos esta e outras obras de Cortés segundo a edição do Dr. Don Juan
Juretschke (in BAC = Biblioteca de Autores Cristianos, I-II, Madrid, 1946).
— O texto a que se refere esta nota, encontra-se nas Obras, I pág. 347.
— Ibidem, II pág. 358.
— Ibidem, II pág. 446: De todas las escudas, ésta es la más estéril, porque
es la menos docta y Ia más egoísta. Como se ve, - nada sabe de la naturaleza
dei mal ni del bien; apenas rena noticia de Dios, y no tiene noticia ninguna
del hombre... Esta escuda no domina sino suando la sociedad desfallece; el
período de su dominación es aquel transitorio y fugitivo en que el mundo no
sabe si irse con Barrabás o con Jesus y está suspenso entre una afirmación
dogmática y una negación suprema.
( 123 ) . — Ibidem, II págs. 449-470 (principalmente contra Proudhon).
— Ibidem, II pág. 379; cf. 402 (onde prec'sa seu pensamento) e pág. 441
(onde resume desta maneira): La ciencia de los misterios, si bien se mira,
no viene a ser otra cosa sino la ciencia de todas las soluciones.
— Ibidem, II pág. 528.
el reptil que piso con mis pies seria a mis ojos menos despreciable
que el hombre (126) .
Donoso Cortés tinha pouca confiança na conversão do mundo
aos princípios do Evangelho, os quais êle próprio confessava com
tanta convicção e propagava com tanto afinco: preocupava-o o fu-
turo sombrio da Europa, no qual previa "o grande dilúvio". Escre-
via a seu amigo, Gabino Tejado: Mi libro ha salido a la luz lucra
de tiempo: ha salido antes y debía salir después del diluvio. En
el diluvio se ahogarán todos, menos yo: es dicer, las doctrinas de
todos, menos las mias. Mi gran época no ha llegado aún, pero va
a llegar. Ya verá usted que naufragio y cómo todos los náufragos
buscan refugio en el puerto (127) . 0 livro, escrito em estilo es-
plêndido e paradoxal, é fraco quanto à base filosófica (o autor des-
preza completamente a razão humana não iluminada pela Reve-
lação!), provocava grande escândalo, também entre os católicos.
O abbé Gaduel, Vigário Geral da diocese de Orleans, combatia-o
numa série de artigos, publicados na revista: Ami de la Religion;
defendia-o vigorosamente, no jornal L'Univers, o militante jorna-
lista Louis Veuillot (1813-1883), que traduzia as obras do espa-
nhol para o francês. El Ensayo, submetido ao juízo da Santa Sé,
não foi condenado. Contudo, não se pode negar que o livro de Cor-
tés, apesar de conter páginas sublimes, era incapaz de enfrentar os
ataques do racionalismo pós-kantiano.
O autor, que era estadista e diplomata, não hesitava em prefe-
rir a ditadura do govêrno à ditadura da plebe (128), a. decisão mi-
litar dos exércitos às discussões estéreis dos parlamentos, pois el
mal está en los gobernados: el mal está en que los gobernados han
llegado a ser ingobernables (129) . Contudo, Cortés não era apenas
"profeta do passado" nem reacionário vulgar: via mais claramente
do que a maioria de seus contemporâneos, a urgência da solução do
problema social e econômico, da qual dependeria a sobrevivência
da Europa (130) . Além disso, revelava, na sua correspondência e
nos seus discursos, uma rara perspicácia na interpretação dos acon-
tecimentos políticos dos meados do século XIX, e possuía um dom ,
— 228 —
QUESTÕES PEDAGÓGICAS
QUARTA PARTE
CAPITULO QUINTO
V. A Técnica (13).
(13) . — Por que os gregos tão maravilhosamente prendados M .10 chegaram a uma
cultura técnica tal como a conceberam os tempos modernos? Ao que parece,
dois fatõres contribuiram para o fato de se desenvolver relativamente pouo
a técnica na Antigüidade: a superabundância de escravos (mão-de-obra ba-
rata), e um certo desprêzo concomitante por todo trabalho manual, desqua-
lificado de "servil". Para os gregos era mais elevada uma ciênc a na medida
de ela se manter mais "pura" e "especulativa" (cf. Plato, Philebus; Arisroteles,
Ethica Nicom., e Plutarchus, Vita Marcelli, XIV) . — Mas não nos parece
temerário afirmar que o Cristianismo, por naturalizar o natureza e por lhe
tirar o encanto de um ser d'vino (cf. § 73 II f), criou condições mais favo-
ráveis a pesquisas físicas do -que o antigo paganismo.
VI. A Igreja.
A. O IDEALISMO.
(23a). — Cf. K. Rahner, L'Église a-t-elle encore se chance?. Paris. Les Éditoos du
Cerf, 1953; J. Leclercq, Penser chr4tiennement notre Temtps, Paris, Téqui, 1951.
(24). — Cf. G. K. Chesterton, Orthocloxy (London, 1934!!), pág. 119: The world is
not a lodging-house at Brighton, which we are to leave because it is mise-
rabie. . (pág. 128): No one doubts that an ordinary man can get on w:th
this world: but we demand not strength enough to get on with it, but strength
enough to get it on. Can he hate it enough to change it, and yet love it
enough to think it worth changing? — Sublime paradoxo do Cristianismo!
•
— 422 —
d. Hegel, o Obscuro.
(25). — Sôbre Kant e a história, 'cf. Eug. Imaz, Kant: Filosofia de la Historia, Mó-
x:co, 1952. — Cf. A. Xisto de Queiroz, in Kriterion, 27-28 (1954), págs.
32-37.
(26) . — J. G. Fichte (1762-1814) dirigia-se, em 1807-1808, ao povo alemão, nos
seus famosos "Discursos" (Reden an dia deutsche Nation): neles exorta seus
patrícios, abatidos pelos reveses da guerra contra Napoleão, a soerg-ier-se
moralmente, e exalta até delir: o o valor incomparável da nação e da cultura
alemãs: o povo germânico virá a ser o regenerador do mundo inteiro.
(27 ) . — F. W. J. Schelling (1775-1854) elaborou vários sistemas, impossíveis de
caracter:zar em algumas linhas. Basta dizer que, no fim da sua carreira, pro-
pendia para teorias místicas e teosóficas; a natureza é a humanização de Deus,
e a história o processo de divinização do homem. A existência das coisas
individuais é apostasia das Idéias divinas, e por isso pecado. Mas o mal
não pode ser eterno: é apenas uma fase de transição do Absoluto, que se
manifesta, se contempla e se redime.
(28) . — Alemão: Nur einer hat micte versfanden, und der hat mich missver,danden.
— 423 —
II. A Idéia.
Base do sistema é esta convicção: "Tudo o que é real, é ra-
cional, e inversamente, tudo o que é racional, é real". A tese quer
dizer, entre muitas outras coisas, que nada escapa ao intelecto
humano, o qual está perfeitamente à altura da realidade . Hegel
é racionalista à outrance, julgando-se capaz de entender tôda a
realidade: o abstrato e o concreto, o finito e o infinito, excluiu termi-
nantemente o mistério. Ao considerarmos esta frase do filósofo, é im-
portante não perdermos de vista que, para Hegel, o acento cai, não na
realidade, mas na racionalidade: a realidade é composta de ele-
• mentos ideais, que são adegiiadamente, embora sucessivamente,
inteligíveis para o homem (Idealismo absoluto) . O método racio-
nalista de Hegel é essencialmente apriorístico, não indutivo ou
experimental: para êle, as experimentações científicas possuem só
valor acessório, que consiste em demonstrar que a natureza não
se podia comportar de outra maneira a não ser em conformidade
com as regras estabelecidas pela razão . Só a filosofia é saber au-
têntico e total.
A única Realidade, fora da qual não existe nada, é a Idéia,
o único objeto da filosofia.: para Hegel, a lógica se converte na meta-
física. A Idéia é o Pensamento pensante. Mas tenhamos cuidado de
não a identificar com o Deus dos cristãos. Êste se pensa a si mesmo,
e por ésse ato conhece tudo, visto que nada é cognoscível a não ser
por uma participação da essência divina; a Idéia hegeliana não é o
Ato Puro, absolutamente distinto do mundo, mas com èle coinci-
de (panteísmo) . Além disso, conhece tudo, — inclusivamente a
si mesmo, — só potencialmente, sendo que no início, de fato, não
conhece nada. Por outras palavras, Deus não é, mas vem a ser
(alemão: Gott im Werden), chegando a atingir sua plena auto-
realização e sua perfeita auto-consciência só no fim do processo
histórico. Para Hegel, o Absoluto realiza-se graças a um processo
ininterrupto de fenômenos relativos; para o cristão, a totalidade
de fenômenos relativos pressupõe uma relação real e necessária,
( 29 ) . — Boa leitura iniciadora é F. Grégoire, Aux Sources de la Pensées de Marx:
Hegel-Feuerbach, Louvain-Par' s, 1947. — Cf. também E. Blo ^h, El Pen-
samiento de Hegel, México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1949,
e P. Roques, Hegel, Sa Vie et ses Oeuvres, Paris, Alcan, 1912.
( 30 ) . As obras principais de Hegel são : A Fenomenologia do Espírito ( 1807 ) ; A
Ciência da Lógica, ( 1821-1816 ) ; A Enciclopédia das Ciências Filosó-
ficas ( 1817 ); Os Princípios da Filosofia do Direito (1 . 821 ) . — Depois da
morte do mestre, seus alunos publicaram os apontamentos das aulas beroli-
nenses, por exemplo: A Filosofia da História (editada por E. Gans e K. Hegel,
1840 ) . — Nestas páginas citamos a Jubilêumausgabe, publicada em 20 vo-
lumes ( com índices copiosos) por H. Glockner ( Stuttgart, 1927-1930) •
— 424 —
V. A Filosofia da História.
Destaquemos agora alguns elementos da filosofia hegeliana,.
relativos à filosofia da história.
. — Segundo Hegel, a liberdade é a necessidade resconhecida, ou absorvida, pela
canse .éncia; a necessidade é cega apenas enquanto não é conhecida. Não pode
haver conflitos entre a liberdade e a racionalidade: as duas constituem o nú- •
c/eo mais íntimo do nosso ser. — No sistema hegel:ano, não há lugar nem
para o livre arbítrio pràpriamente dito, nem para a cont ngência; os dois .
são momentos dialéticos (necessários) subordinados à lei universal e iacional
do Eterno Movimento necessário.
. — Hegel, Filosofia do Direito (Vol. VII, pág. 37): Wenn die Philosophie ihr
Grau :m Grau malt, dann ist eine Gestalt des Lebens alt Acworden, und mit
Grau in Grau lüsst sie sich nicht verjüngen, sondern nur erkennen; die
der Minerva beginnt erst mit der einbrechenden Dãrnmerung ihren Flug.
— 428 —
b) O Estado.
(39) . — Esta palavra é do poeta alemão Fr. Von Schiller, in Resignation (1784) .
(40). — Alexandre o Magno é o mais belo indivíduo de todos os tempos, segundo He-
gel; foi êle que derrotou definitivamente o mundo oriental. — César, servindo
ás suas ambições e agindo contra a constitu ção romana, realizou, ao atraves-
sar o Rúbicon, o que teve de ser realizado. --i Quando Hegel, em 1806,
(batalha de Iena), via Napoleão, falava dêle como "da Idéia Un . versal mon-
tado a cavalo".
. — Partindo do ditado: // n'y a point d'héros pour les valeis de chsmbre, Hcgel
diz (in Die Vernunft in der Geschichte, ed. G. Lasson, Leipzig, 1930', pág. 81):
Für einen Kammerdiener gibt es ke'nen Helden. ., nicht aber da-um. weil
dieser ke'n Held, sondem weil jener der Kammerdi ener ist... Für den Kam-
merdiener gibt es den Helden nicht: der ist für die Welt, die Wirklichkeit, die
Geschichte.
. — Ibidem, pág. 83: So haben soiche welthistor'schen Individuen allerd;ngs in
ihren grossen Interessen, heilige Rechte, ieichtherzig, flüchtig, momentan,
rücksichtslos behandelt, eine Behandlungsweise, die moralischem Tad,' ausge-
setzt ist. Aber ihre Stellung überhaupt ist als eine andere zu fassen. Eme
grosse Gestalt, die da einherschreitet, zertritf manche unschuidige Blume, muss
auf iterem Wege manches zertrümmern.
. — A.-D. Sertillanges, Le Christianisme et les Philosophies, Paris, Aubier, 1941,
II pág. 211.
— 432 —
c) A Arte.
d) A Religião.
Numa obra de arte, Deus se manifesta à consciência in-
dividual como um Todo, mas mediante a religião, Deus se
-manifesta à sociedade, tornando-a consciente do Espírito Abso-
luto. Contudo, a religião, por necessitar de símbolos e por
apelar não só para o pensamento, mas também para a intui-
ção sensível (alemão: die Anschauung), não poderia ser a expres-
são adeqüada do Todo: é o terreno da "representação" (alemão:
die Vorstellung), o meio-têrmo entre as imagens da arte e a pura
'noção" filosófica (alemão: der Begriff). Só na filosofia, o Espí-
rito está completamente de volta a si, chegando a conhecer a ver-
dade na sua unidade necessária. Também a religião cristã é ge-
radora de razão: suas verdades sobrenaturais, envolvidas em ima-
gens e símbolos, são originàriamente irracionais, mas despertam
inevitavelmente a reflexão, devido à qual se transformam em ver-
dades racionais, em "saber absoluto". A religião é, por assim di-
zer, o último trampolim para as regiões superiOres da filosofia.
-O Cristianismo de Hegel é uma religião racionalizada, destituída
de mistérios, ou melhor, uma religião de mistérios diluídos em con-
ceitos filosóficos. Alguns dogmas cristãos prestam-se muito bem
a uma interpretação gnóstica: o mistério da Santíssima Trindade
se enquadra perfeitamente no esquema hegeliano de tríades, e a
Encarnação prepara o homem para a "apoteose" final. Mas esta apo-
teose não é obra redentora de um Deus transcendente nem se re-
fere a uma vida além-túmulo; a apoteose hegeliana é o têrmo
-final da história humana. neste mundo.
As religiões primitivas dos povos orientais são naturalistas
-e deterministas: Deus é concebido como um ente submerso na na-
tureza e destituído de liberdade, ou então como uma vontade es-
tranha ao homem. Nas religiões clássicas (dos judeus, gregos , e ro-
manos), podemos verificar um esfôrço para elevar a Deus acima
da natureza: Ele vai-se revestindo de uma individualidade espi-
ritual (alemão: Religionen der geistigen Individualitãt). Mas o
Cristianismo é a religião absoluta: Deus se manifesta ao homem
como Espírito Puro, na forma de um homem. Quem diz Espírito,
diz liberdade: o Cristianismo, já não permitindo que o homem de-
pendesse dos seus semelhantes ou de coisas exteriores, aboliu a
-escravatura e os oráculos. A idéia cristã, originàriamente existindo
'só nos corações dos indivíduos, tendia necessariamente a concreti-
zar-se na realidade. Foi essa a tarefa histórica dos povos români-
e) A Filosofia.
(Thales worde 640 vor Christus geboren), — seiner ernstha`testen Arbeit, eich
selbst objektiv zu werden, sich zu erkennen: Tantae molis erat, se ipsam
cognoscere mentem! (cf. Vergilius, Aeneis, I 33) .
— Hegel, Logik, II 3 (Bd. V, pág. 228): Man kann daher von der teolo-
gischen Tritigkeit sagen, dass in ihr das Ende der Anfang, die Folge der
Grund, die Wirkung die Ursache sei, dass sie ein Werden des Gewordenen
sei, dass in ihr nur das schon Existentierende in die Existenz komme, usw.
— Cf. págs. 350-351.
— F. Grégoire (cf. nota 29), págs. 130-131.
— 436 —
B. O MARXISMO.
— 438 —
II . O Materialismo.
Já nos séculos XVII e XVIII, alguns folósofos tinham sus-
tentado o materialismo (por exemplo, Hobbes, na Inglaterra; d'Hol-
bach e de la Mettrie, na França). Ésse materialismo, em geral,
tributário do antigo epicurismo e favorecido pelo grande surto
das ciências físicas, tinha cunho mecanicista, isto é, o movimento
da matéria era explicado • por fatôres externos, não por uma fôrça
auto-dinâmica da matéria'. Era radicalmente determinista, isto
quer dizer, excluia sistematicamente todo e qualquer movimento
finalista da matéria.
a) Um dos iniciadores do Materialismo moderno, embora
não em sua forma vulgar (55), foi Ludwig Feuerbach (56), dis-
cípulo de Hegel. Para êste, a única realidade é a Idéia que, num
processo dialético, atinge sua plena realização no Espírito Abso-
luto; para Feuerbach, a única realidade é a matéria que, num
processo dialético, se organiza em formas cada vez mais perfei-
tas para, finalmente, atingir a consciência no homem e a plena
perfeição na sociedade humana. Hegel, embaraçado pelos casos
concretos da natureza (= "a exteriorização do Espírito"), fala na
"inadeqüação da realidade ao conceito"; Feuerbach, invertendo es-
sa tese, fala na "inadeqüação do conceito à realidade". Os dois
são racionalistas, mas Hegel segue preferencialmente o método de-
dutivo e apriorístico, ao passo que Feuerbach dá mais valor ao
método indutivo e experimental.
(54) . — Bruno Bauer (1809-1862), autor de "Um Ultimato" (1841) e muitos
outros livros, acabou por ser ateu.
" • , (55) -. Apesar de ter escrito a famosa frase: "O homem é o que come" (aia:não:
Der Mensch ist was er isst, 1850), Feuerbach combatia o materialismo vul-
gar do século XVIII (utilitar . sta e sensual), e considerava sua filosofia co-
mo a síntese do materialismo francês e do idealismo alemão. Seu "huma-
nismo absoluto" é de inspiração religiosa, sendo não a simples negação, mas
a Authebung das religiões anteriores (cf. Conste) . Feuerbach era "ateu
piedoso" (Stirne) .
(56). Ludwig Feuerbach (1804-1872), autor de "A Essência do Cristian•smo" (Das
Wesen des Christentums) (1841) e de "Noções Básicas da Filosofia do Fu-
turo" (1843), e outros livros. — Mais fêz conhecimento da primeira des-
sas obras já em 1842, leitura que o impressionou profundamente.
— 439 —
III. O Socialismo.
(59) . — L. Feuerbach, in Sãmtliche Werke, II pág. 318: Der einzelne Mensch für
sich hat das Wesen des Menschen weder in sich els moralischem, noch in
sich als • denkendem Wesen. Das Wesen des Menschen ist nur in der Ge-
meinschaft, in der Einheit des Menschen mit dem Menschen enthalten, —
eine Einheit, die sich aber nur auf die Realitat des Unterschieds von IcIr
Du stiitzt
(60). — Ibidem, II pág. 388: Gott war meie erster Gedanke, die Vernunft mem.
zweiter, der Mensch mein dritter und letzter Gedanke
. — Jacobus Moleschott (1822-1893), de or . gem holandesa, escreveu entre outras
obras: "O Círculo da Vida" (1852); ai encontramos expressões tais como:
"Sem fósoforo (= o elemento químico) nada de pensamento", pois: "èste é
um movimento da matéria". Tudo é matéria, e a matéria reveste-se, num
processo cíclico, de formas dif
erentes, mas sempre fica igual quanto à massa
e à energia.
. — Karl Vogt (1817-1895), autor do livro "A Fé do Carvoeiro e a Ciência"
(1855), onde lemos: "O cérebro segrega o pensamento como os rins segre-
gam a urina".
(63).. — Louis Büchner (1824-1899), autor de um livro mutíssimo popular no sé-
culo passado, intitulado: "Energia e Matéria" (Kraft und Stoff) (1854) •
(64) • — Le Dantec era um dos divulgadores das idéias materialistas e cientistas do
professor alemão E. Haeckel (1834-1919), que escreveu (1899) "Enigmas
do Universo" (WeltrZitsel), Bíblia positivista das ..:lasses semi-cultas.
— Pealo Mantegazza (1831-1910), autor de Igiene dell'Amore, e de Fisiologia.
dell'Amore (1873) .
— Cf. Pe. Leonel Franca, Noções de' História da Filosofia, Rio de Janeiro, Agir,.
1952'", págs. 197-201.,
— 441 —
Diz Engels: The dialectic of Hegel was placed upon its head'
(by Marx); or rather, turned off its head, on which it was stan-
ding before, and placed upon its feet again (82) . Em que' consis-
te essa inversão?
a) O Realismo.
Dissera Hegel: "O critério da realidade é o racional"; dizia.
Marx: "A norma da verdade é a realidade". Marx, acusando He-
gel de "subjetivismo" (83) ou, ao menos, de "abstracionismo" (84),
transportou o acento do "pensamento" para a "realidade extra-
mental", e essa realidade concebia-a da maneira mais concreta
possível (cf. Feuerbach, § 97 II a) . Afirmava apaixonadamente
a existência objetiva das coisas extra-mentais, e a prioridade das
mesmas sôbre nosso pensamento. Igualmente declarava ser apto
nosso intelecto para se apoderar progressivamente da realidade,
não mediante um raciocínio abstrato e apriorístico, mas por meio
de uma análise científica e experimental da realidade concreta.
The idea is nothing else than the material world reflected by hu-
man mind, and translated finto forms of thought (85). Em rigor,
esta frase poderia ser interpretada no sentido do adágio aristoté-
lico-tomista: Nihil est in intellectu, quod prius non fuerit in sensu..
Mas, na realidade, há um abismo que separa as duas afirmações:
Marx considera a matéria como a única •realidade, ao passo que o
tomista admite também a existência do 'espírito, realidade abso-
lutamente distinta da matéria.
— H. Lefèbvre, Le Marxisme (in Collection "Que Sa's-je?", Paris, Prc-sses
Universitaires, 1954, pág. 14). — O mesmo autor escreveu também: Le Ma--
tdcialisme Dialectique, Paris, Alcan, 1939. — Apreciações do Marxismo. fei-
tas por católicos, são, por exemplo, os livros de E. Boas, lntroduction au
Marxisme,. Colmar-Paris, 1954, e de M. Duquesne, Brèves Réflexions sur
l'Athellisme Marxista, Paris, Téqui, 1953.
Engels, •euerbach, etc., pág. 53. Cf. Marx, Capital, II pág. 873 (ed. Eden '
& Cedar Paul, London, 1930).
— Na realidade, Hegel não era, de forma alguma, "subjetivista"; veja F. Gré--
goire, in opere citato (cf. nota 29), págs. 69-71 e 178.
— Cf. R. Vancourt, Marxisme et Pensée Chrétienne, Paris, Bloud & Gay, 1948,
pág. 32, nota 2.
— Marx, Capital, Preface, Volume I, pág. XXX.
— 445 —
b) O Materialismo.
c) O Ativismo.
(98) . — Cf. R. Vancourt (nota 84), págs. 152-158, e H. Lefèbvre, La Marxisme, pág.
101.
(99) . — Cf. F. Grégbire, La Pensée Communiste, III pág. 26, e págs. 54-57. O autor
fr ∎ sa, ao que parece, com muita razão, que os passos em que Marx se refere
ao progresso indefinido, tratam do chamado "comun'smo negativo", hoje muitas
vêzes indicado com o tétano "socialismo" ou "ditadura do proletariado", a fase
anterior ao período final da história que é o comunismo total ou "positivo".
(100). — Marx, Theses on Feuerbach, III.
— 449 —
, Engels, Feuerhach, et-., pág. 54: The great basic thought that the world is
not to be comprehended as a complex of ready-made thing s, but as a coiss.3lex
of processes, in which the th'nes apparently stable no le- ss thals their mind-
images in our heads, the concepts, go through an ininterrupted chsnge of co-
min4 finto being and passing away, in which in spite of all seeming accidents
and of all temporary retrogression, a progressive development asserts itself irt
the end .
. Marx, Grife of Political Economy, Introduction, ed. Eastman (cf. nota 80),
págs. 10-11, e XIII. — O leitor repare na terminologia incoerente (condi-
tions e determines).
. — Marx-Engels, Manifesto (ed. Eastman, pág. 341): What else does the his-
tory of ideas prove than that intellectual production changes in character in
proportion as material production is changed? The ruling ideas of each age
has ever been the fdeas of the ruling class. — O fato de muitas pessoas acre-
ditarem na existência de "verdades eternas" durante a longa história da hu-
manidade é explicado pelos autores como uma prova de haver existido até
agora sempre um antagonismo entre as diversas classes sociais. — O Marxismo
não nega, porém, a repercussão das "ideologias" sôbre a realidade; principal-
mente a religião é um "ep . fenórneno" perigoso e atrasador, razão porque deve
ser combatida na fase atual do capitalismo moribundo, e destruída pela di-
tadura do proletariado.
b) As Alienações do Homem.
Dissera Hegel: "Deus não é, mas vem a ser"; dizia Marx: "O
homem não é, mas vem a ser". E assim como o Espírito Abso-
luto de Hegel se realiza mediante um processo necessário e dia-
lético de "exteriorizações" ou "alienações" relativas, assim o ho-
mem ideal de Marx vem a ser mediante um processo necessário
dialético de luta do homem contra o não-humano. Por outras
palavras, é através do não-humano que o homem se desenvolve
atinge sua plena maturidade. Só depois de ficar alienado de
si, poderá regressar a si mesmo, redescobrindo-se num plano supe-
rior, em que tôdas as aquisições de estados anteriores estarão con-
servadas e sublimadas. Nesta idéia reconhecemos fàcilmente uma
aplicação da lei triádica de Hegel.
O homem ideal, concebido por Marx, produz bens materiais
culturais em plena liberdade, e trabalha à sua completa satis-
. —As fôrças produtivas são: a fôrça física dos operários, a energia da natureza,
e principalmente os instrumentos e as máquinas. Cf. Marx, Capital, I pág.
170.
. — Marx, Misère de la Philosophie, II (Deuxième Observat'on) .
(105a) . — Cf. Engels, Feuerbach, etc., pág. 60: But while in ali earlier periods the
investigation of these driving causes of history was almost impossible, — on
account of the complicated and concealed interconnections between them and
their effects, — our present period has so lar simplified these interconnec-
tions that the riddle could be • solved
— 451 — ,
4
— 454 —
d) O Proletariado (118).
qu'il doit être? Tout! Dizia Marx que le quatrième état, — o pro-
letariado, — era predestinado a tornar-se tudo justamente por
ainda não ser nada. O operário atual, simples mercadoria, viven-
do alienado dos produtos do seu trabalho, da natureza, da socie-
dade e do próprio trabalho; o operário completamente desumani-
zado e embrutecido pelo capitalismo, tem a função dialética de ,
criar o homem ideal do futuro: o homem coletivo. O proletaria-
do, em virtude de não defender interêsses particulares, é a classe
privilegiada que traz em si os germes do vindouro "homem• uni-
versal": através do proletariado a humanidade inteira chegará ao
seu grandioso destino e ao têrmo final da sua evolução histórica,.
em que o homem individual viverá completamente reconciliado
com seu trabalho, com a natureza e com a sociedade.
Antes de se poder iniciar a fase final da história, será necessá-
rio inaugurar, como fase de transição, a ditadura do proletariado,.
muitas 'vêzes chamada: a fase socialista, da qual o mundo moder-
no, desde 1917, possui um exemplo na União Soviética da Rússia..
O proletariado vencedor estabelecerá uma ditadura imposta pela
fôrça, e desapropriará todos os meios de produção, antigamente ,
na posse de poucos capitalistas, para pô-los a serviço de um Es-
tado•totalitário. Este fiscalizará e dirigirá tôda a vida social e eco-
nômica. Todos deverão trabalhar, e cada um receberá um salário
conforme o valor do trabalho realizado: a remuneração deixará_
de ser uma esmola. O indivíduo, já não podendo explorar o tra-
balho de outrem, pelo fato de tôda a produção industrial e agrí-
cola pertencer ao Estado, ficará acostumado a trabalhar e a com-
portar-se como membro da coletividade. Ao Estado socialista ca-
berá reprimir dràsticamente tôda e qualquer tentativa "reacioná--
ria" de restabelecer o regime burguês. Sendo necessário, não 3e
absterá das medidas, mais enérgicas para extirpar radicalmente os,
resíduos subsistentes do período capitalista, e as diversas ideolo-
gias nocivas (principalmente a religião).
Mas êsse regime de socialismo estatal há de terminar, — não
se pode predizer com exatidão, quando. Com o desaparecimen-
to das antigas classes sociais e com a morte das ideologias supe-
radas, finar-se-á também o Estado, e aí: society (may) inscribe
on its banners: "From everyone according to his faculties, to eve-
ryone according to his needs" (121) . Estarão extintos os últimos,
vestígios da Propriedade Privada e, conseguintemente, da explo-
ração econômica e de tôda e qualquer discriminação social. To-
dos serão operários, e todos serão proprietários; o trabalho inteli-
gente e livre não será um simples meio de' viver, mas uma neces-
(121) . — Marx, The Criticism of The Gotha Program (ed. Eastman), pág. 7.
— 457 —
V. Elementos Místicos.
. — Chr. Dawson, Relig'on and The Modern State, New York, 1936.
. — A.-D. Sertillanges, Le Christianisme et les Philosophies, Paris, Aubier, 1941,
II, pág. '220.
. — Cf. R. Vancourt (in opere citato), págs. 225-249.
— 459 —
§ 99 . Do Marxismo ao Bolchevismo .
I. As Internacionais.
<132) . — Em 1903 fundaram Keir Hardie e outros socialistas inglêses o Labour Party,
partido isento do Marxismo doutrinário; na segunda metade do século XIX,
a Inglaterra possuía uma legislação social mais avançada do que a maior parte
dos outros países europeus; as Igrejas tinham sido muito ativas entre os
operários (o Cardeal Mann'ng, os anglicanos Maurice e Kingsly, etc.); e
afinal, a índole prática do povo britânico é avêssa ao doutrinarismo no ter-
reno político e social. Esses e outros motivos podem explicar o fracasso do
Marxismo na Inglaterra.
.(133) . — Cf. G. A. Wetter, O Materialismo Diallctico Soviético (nota 91), passim;
e N. Berdyaev, The Origin of Russían Communsim, London, 1934.
(134). — Os líderes socialistas, reunidos em Bruxelas (julho de 1914), aprovaram quase
unâninemente uma resolução no sentido de votar contra os créditos de guerra;
uma vez chegados à sua pátria, quase todos capitularam. A natureza é mais
forte do que a doutrina!
— 462 —
C. O POSITIVISMO.
§ 100. O sistema de Comia.
Hegel elaborara, na Alemanha, uma imponente filosofia da
história; pouco tempo depois, semelhante tentativa foi feita, na
França, por Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier Comte (1798-
I. Ordem e Progresso.
Ao progresso constante das ciências e da técnica, nos últimos
dois ou três séculos, não tem correspondido, segundo Comte, um
progresso no setor social e político. Com a desagregação do mundo
medieval, verificou-se um divórcio lastimável entre a Ordem e o
Progresso, latente, passageiro e espontâneo no início para se tornar
aberto, crônico e metódico a partir da Grande Crise de 1789. Des-
de aí, a Europa, — e principalmente a França, — vive num estado
de anarquia mental: todos se insurgem contra todos, disputando-se
o terreno revolucionários turbulentos e déspotas retrógrados. La
maladie occidentale consiste em separar o Progresso da Ordem. Ur-
ge encerrar-se o período revolucionário, e a tarefa histórica do Po-
sitivismo será a de reconciliar Condorcet com de Maistre. L'ordre
devient alors la condition permanente du progrès, tandis que le pro-
grès constitue le but continu de l'ordre (144). Não há Progresso
sem Ordem, e a Ordem é impossível sem a união de vontades, sen-
timentos e idéias. Na Idade Média existia uma admirável ordem
— As principais obras de Comte são: Cours de Philosophie Positive, I-VI (1830-
1842); Discours sur l'Esprit Positif (1844); Système de Politique Positive
(I-INT (1851 - 1854) ; Catéchisme Positiviste (1852).
— J. Cruz Costa, Augusto Comte e as Origens do Positivismo, São Paulo, 1951,
pág. 7; boa leitura iniciadora na obra de Comte é o trabalho de L. Lévy-
Bruhl, La Philosophie d'Auguste Comte, Paris, Alcan, 5e. Edition; cf. tam-
bém a obra já citada de H. de Lubac (nota 106); R. de Boyer de Sainte
Suzanne, Essai sue Pensée Religieuse d'Auguste Com te, Paris, Nourry,
1923; Evaristo de Morais Filho, Posição de Augusto Comte na Histór'a da
Filosofia, in "Revista Brasileira de Filosofia", V 2 (1955), págs. 222-269.
• (144). — Comte, Système, etc., I pág. 105. — Muitas vêzes encontramos, na obra
de Comte, esta fórmula: Le progrès n'est que le développement de l'ordre.
— A Ordem e o Progresso são dois aspectos inseparáveis do mesmo prin-
cípio, ou melhor, a harmonia entre êles é a expressão st3ciológ'ca da grande
lei geral, segundo a qual a atividade das partes se reconcilia sempre com a
existência do todo. Cf. as notas de Ch. Le Verrier na sua edição do Discours,
Paris, Garnier, 1949, II págs. 138-142.
— 465 — .
:Revista de História n. 0 28
— 466 —
. — Por mais necessário que seja êste estado como fase de transição, Comte
chega a dar-lhe valor inferior ao do estado teológico, visto que o espírito
metafísico é essencialmente crítico e destruidor.
. — O espírito positivo, uma vez chegado à sua maturidade, nunca mais abandona
as noções científicas e relativas para regressar ao absolutismo dos tempos idos,
cf. Comte, Discours, etc., I. 1 (éd. Le Verfer): Personne, sans doute, n'a
jamais démontré logiquement la non-existence d'Apollon, de Minerve, etc.,
ni ceife des fées orientares ou des diverses créations poéltiques; ce qui n'a
nullement empêché l'esprit humain d'abandonner irrévocablement les dogmes
antiques, quand ils ont enfie cessé de convenir à Pensemble de sa situation.
Essas questões teológicas e metafísicas tornam-se, com o tempo, vides de sens,
e têm de desaparecer necessária e definitivamente.
<151) . — Comte, Cours, etc., I pág. 16: Le caractère !andamento! de la philosophie
est de regarder tous les phénomènes comine assujeftis à des lois naturelles
invariables, dont la découverte précise et la réduction au moindre nombre
possible sont le but de tous nos efforts, en consideirant comme absolument
inaccessible et vide de sens pour nous la recherche de ce qu'on appelle les
causes, soit premières, soit finares. — E, falando da lei de gravitação, o
autor diz (Ibidem, pág. 11): Quant à déterminer ce que sont en elles-mêmes
cette attraction et cette pesateur, quells en sont les causes, ce sont des
questions que nous regardons toutes comine insolubles.. que nous abati-
donnons avec raison à l'imagination des théologiens ou aux subtilités des mé-
taphysiciens.
— 467 —
V. A Sociologia Estática.
(185) . — A maior parte dos proletários nunca conseguirá demonstrar as verdades po-
sitivas; mas, assim como um marinheiro acredita cegamente na aplicação
de certas proposições matemáticas, assim o proletário dos tempos vindouros
acreditará nos preceitos sociológicos e morais dos sacerdotes.
( 186) . — Comte, Système, etc., I pág. 370: Nous travaillons surtout pour nos succes-
seurs, et nos principales satisfactions proviennent de nos prédécesseurs. Cha-
gue génération produit, au delà de ses propres besoins, des richesses ma-
térielles destinées à facilitei le travail et à préparer la subsistance de la
suivante .
(187) . A religião comtiana é relativa ao sujeito humano, e só a êle, cf. Comte,
Catecismo Pozitivista (trad. bras. de M. Lemos, Rio de Janeiro, 1905):
"Nós não a (= a Deusa Humanidade) adoramos... como ao antigo Deus,
para fazer-lhe cumprimentos, mas a fim de a servir melhor aperfeiçoando-
nos"; contudo, o "relativo" comtiano torna-se, na realidade, um "absoluto".
— Comte detestava o ateísmo (une émancipat'on insuffisante) e o panteís-
mo (une parodie du Positivisme) como representantes do espírito meta-
físico, que é destrutivo, crítico e orgulhoso; êsse espírito deve ser superado
pelo Positivismo.
4188) — Cf. Comte, Système, etc., V pág. 305: Quoique son domaine social do:ve
se borner d'abord aux populations occidentales et à celles qui en dérivent,
se foi est assez réelle et assez complète pour convenir également à Coutes
les partias de la p/anète humaine. Mas o fundador do Positivismo pensa,
antes de mais nada, em converter á nova religião a cultura ocidental, he-
rança de Carlos Magno (a França, a Itália, a Espanha, a Inglaterra e a
Alemanha)
(189). — Thomas Henry Huxley, físico inglês (1825-1895), um dos primeiros adep-
tos de Darwin, representante típico do "cientismo" inglês. Seu neto é Aldous
Huxley, romancista notável dos tempos modernos (por exemplo: Breve New
World, 1932) .
— 478 —
VII. Conclusão.
(201). — Cf. R. Jolivet, Traité de Philosophie, Lyon-Paris, Vitte, 1946•, 511 págs.
118-122.
(202) . — Cf. Leonel Franca, A Crise do Mundo Moderno, Rio, Agi,r pág. 98, nota
106: "Não é possível inferir do conhecimento - da natureza humana uma norma
de ação sem a supor ordenada, isto é, obra de uma inteligência orientada para
um fim. O conhecimento que se liMta a observar fatos não pode exprimir-se
senão em indicativos. A moral fala em imperativo. Não há como transformar
um é em um deves. O conteúdo da norma e a sua fôrça obrigatória trans-
cendem os domínios do empirismo puro".
Á203) . Cf. Leonel Franca, in Noções, etc., págs. 275-285.
(204) . — A. Cresson, Auguste Comte (na Coleção "Philosophes", editada por E. Bréhier)
Paris, Presses Universitaires, 195, págs. 70-71.
— 483 —
I. O Cientista Misantropo.
remettre son autorité à des représentants, fêter des dieux sans s'en-
fermer dana les formules d'une dogme, sans se courber sous la ty-
rannie d'une toute-puissance surhumaine, sans s'absorber dans la
contemplation d'un être vague et universel (222) . Aos quinze anos,
Taine tinha perdido a fé, e nas suas obras prova freqüentemente
uma crassa ignorância do dogma cristão; nas suas afirmações con-
cernentes ao Cristianismo encontramos muitas prevenções infantis
que não deixam de nos estranhar num trabalhador consciencioso e
autor excepcionalmente proba (223) . Ao contrário da maior parte
dos seus compatriotas, sentia pouca simpatia para o Catolicismo
(224), mas admirava sobremaneira o Protestantismo que teria re-
vivificado e renovado o velho mundo: a religião reformada forme
avec la science les deux organes et comme le double coeur de la
vie européenne (225) .
— 488 —
réponse: c'est que Pierre avait du génie, et que Thomas n'en avait
pas. Et pourquoi Pierre Corneille a-t-il eu du génie? Question inso-
luble, et que la théorie de la race, du milieu et du moment n'a
pas fait avancer d'un pas (234) . E' duvidoso, porém, que Taine
com sua teoria tenha tido a pretensão de explicar o "indivíduo" na
história (235): a objeção em si é justa, mas talvez não possa ser-
dirigida contra Taine, embora devamos reconhecer que o autor se-
serviu muitas vêzes de expressões fortes capazes de originar tal
eqüívoco.
. — Por exemplo, Taine, Littérature anglaise, II pág. 155: Tout vient du dedans
chez lut (Shakespeare), je veux dire de son âme et de son génie; les cir-
constances et les dehors Mont contribué que médiocrement à le développer.
Desta maneira fala também de Dante, Beethoven e M'guel-Ângelo.
. — V. Giraud, Essai sur Taine, Paris, Hachette, 1912, pág. 123.
. — Para a discussão dêste problema cf. Paul Neve, La Philosophie de Taine,.
Louvain-Paris-Bruxelles, 1908, pág. 123.
. Renan, antes da guerra de 1870, admirava muito a Alemanha, na qual via.
"um santuário, onde tudo é puro, sublime, espiritualmente belo e comovente".
— 489 —
I. O Cientismo.
l'a emporté: pendant rrIVIVe ans, on t'a traitée d'idole, ô Vérité; pendant
mine ans, le monde a été un désert, oà ne germait aucune fleulr. Le monde ,
ne sere sauvé qu'en revenant à toi, en. répudiant ses attaches barbares. . .
Tout n'est ici que symbole et sonde. .,. Ne rien aimer, ne rien heir abso-
lutement, devient alors une sagesse. Pouvons-nous sans folie outrecuidance
croire que I'avenir ne nous jugera pas comme nous jugeons le passé?
— Renan, Avenir de la Science, pág. 476.
— lbidem, pág. 60.
— Ibidem, pág. 154, e 157. — Cf. R. Allier, La Philosophie d'Ernest Renen„
Paris, Alcan, 1903, pág. 50.
— Renan, L'Avenir de la Science, pág. 259.
— 492 —
D. O EVOLUCIONISMO.
III . O Transformismo.
Mais importante ainda para a compreensão do sistema de
Spencer é o Transformismo ou o Evolucionismo (273) .
mosa doutrina da "luta pela vida" (struggle for life). Na dura luta
pela existência, poderá manter-se apenas aquêle indivíduo ou
aquela espécie que conseguir ajustar-se adeqüadamente às condi-
ções do seu ambiente. Os fracos sempre perdem, e os fortes sem-
pre vencem: é a seleção natural, ou the survival of the fittest (280).
São desenvolvidas, conservadas e transmitidas a outras gerações só
aquelas qualidades que se mostraram úteis para a subsistência e para
a vitória. Darwin, apesar de ficar cada vez mais influenciado por
seus admiradores (Huxley, cf. nota 189) indiscretos e determinis-
tas, atribuía a causa fundamental dessas transformações (as quais
abrangem também o homem) a Deus: não podia convencer-se de
que essa pujante série de acontecimentos pudesse ser o resultado
do cego acaso. Esta frase de Darwin (in The Descent of Man,
1871) é amiúde esquecida pelos adeptos e pelos impugnadores
do transformismo darwiniano.
c) Finalizando, mencionamos aqui o astrônomo e matemáti-
co francês Pierre-Simon Marquis de Laplace (1749-1827), discí-
pulo de Condorcet. Laplace e Kant (281) formularam uma cos-
mogonia científica, segundo a qual o nosso sistema solar seria o
resultado de uma evolução lenta de uma nebulosa primitiva e caó-
tica.
I. O Cognoscível e o Incognoscível.
— Spencer, Epifome, I 61; cf. I 23: From the fact that the successively deeper
interpretations of nature which constitute advancing knowledge are merely
successive inclusions of special truths in general truths, and of general truths
in truths still more general; it obviously fo4lows that the most general truth,
not admitting of inclusion in any other, does not admit of interpretation.
— Spencer, First Principies, pág. 48: Ultimate Scientific Ideas, then, are re-
presentativo of realities that cannot be comprehended, Atter no matter how
great a progress in the colligation of facts and the establishment of genera-
lizations ever wider and wider, the fundamental truth remains as much beyond
reach as ever.
— Ibidem, pág. 65, onde Spencer opõe o "fenômeno" ao "númeno" (cf. Kant:
die Erscheinungen, und das Ding an sich), dizendo: The Noumenon, everywhere
named as the antithesis to the Phenomenon, is necessarily thought of as an
actuality. It is impossible to conceive that our knowledge is a knowledge
of Appearances only, without at the same time assuming a Reality of which
they are appearances; for appearance without reality is unthinkable.
{290). — William Hamilton (1788-1856) escreveu três artigos na Edinburgh Review
(1829-1833), nos quais, sob a influência de Kant, afirmava a insuficiência
total da razão humana de conhecer the Unconditioned, que pode ser apenas
objeto de uma ignorância douta; o homem encontra na sua moralidade mo-
tivos para crer na existência de Deus.
<291 ) . — H. L. Mansel (1820-1871) tenta, no seu livro The Limits of Religious
Thought, desmascarar as incoerências e as contradições internas dos conceitos
que a inteligência humana forma a respeito de Deus.
<292). Nem sequer podemos afirmar que Deus seja Pessoa ou infinita, cf. , Spencer,
First Principies, pág. 80: As writes Mr. Mansel. "It is our duty, then,
to think of God as personal; and it is our duty to believe that He is infinito".
Now if there be any meaning in the foregoing argumenta, duty requires us
neither to affirm nor deny personality. Our duty is to submit ourselves to the
established limita of our intelligence, and not perversely to rebel against
them. — Deus é, segundo Spencer, objeto de uma "consciência indefinida".
{ 293 ) . — Ibidem, pág. 81 .
-501—
. — Sôbre a analogia entis, questão tornada muito atual em nossos dias pelo
teólogo protestante Karl Barth (que declara ser esta a marca divisória entre
o Catolicismo e o Protestant'smo), cf. o livro do teólogo brasileiro Tei-
xeira-Leite Penido, Le Rôle de I' Analogie en Théologie Dogmatique, Paris,
1931.
. — Spencer, First Principies, pág. 321: Evolution is an integration of matter
and concomitant dissipation of motion; clur.'ng which the matter passes from
an indefinite, incoherent homogeneity finto a relatively definite, coherent he-
terogeity; and during which the retained motion undergoes a parallel trens-
formation. A prime.ra parte desta fórmula (a passagem do homogêneo à
heterogêneo) devia-a Spencer ao zoologista alemão K. E. Von Bãr (1792-
1876) .
— 503 --
— Spencer, Epitome, V 2.
— Ibidem, V 99-106.
— 507 —
— Ihidem, IV 162.
-- Da palavra latina Manes (= "almas dos mortos"), não da palavra melanésia
mana ou maná, empregada pelos etnólogos para indicar o conjunto de fôr-
ças sobrenaturais que operam num objeto ou numa pessoa.
— Spencer, Epitome, IV 189.
— Ihidem, IV 197.
— Cf. § 76, I, nota 11. — O Everemismo, adotado por muitos Padres da Igre-
ja para explicar a crença nos deuses pagãos, encontrâmo-lo por exemplo no
sermão interessantíssimo do primeiro bispo de Portugal, Martinus Braca-
rensis, De Correctione Rusticorum, 9: Ecce tales fuerunt illo tempore isti
perditi honores, quos ignorardes rustioi per ocEnventilorres suas peasimes
honorabant, quorum vocabula ideo sibi daemones adposuerunt, ut ipsos quasi
deos colerent et sacrifício illis offerrent et ipsortzm facto imitarentur, quoruM
nomina invocobant.
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (VII)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 28, pp 413-509, out./dez. 1956. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/028/A006N028.pdf
— 509 ---
ciência, visto que o homem não possui faculdade para poder afir-
mar ou negar algo a respeito do Absoluto. Em última análise, são
tentativas humanas de venerar, sob formas e conceitos diferentes,
o Incognoscível. In each there is something right more or less dis-
guised by other things wrong... To supposle that these multiform
conceptions should be one and all absolutely groundless, discredits
too profoundly that average human intelligence from which all our
individual intelligences are inherited (323) . A cortina que nos es-
conde o Grande Mistério, nunca será levantada .
QUARTA PARTE
(Continuação)
CAPITULO SEXTO
(6) . — Uma apreciação do ideal democrático, feita por um tomista, saiu há pouco
em versão portuguêsa: Yves Simon, Filosofia do Goyérno Democrático, Rio
de Janeiro, Agir, 1955 (título do original: Philosophy of Democratic Go-
vernment).
— 125 —
(23). — Cf. A. Dondeyne, in op. cit., pág. 25: La conscience est essentiellement inten-
tionnelle. Cela veut dire qu'elle est d'abord et d'emblée &ire-ao-monde, visse
do monde, rapport actif à l'autre-que-la-conscience. . La vie intentionnelle de
la conscience présente la forme d'une relation dia lectique entre une "noesis"
et un "noema , les deux s'appelant et se constituant l'un ?nutre dans une
indissoluble unité.
(24) . — A não ser que contenha elementos contraditórios, por exemplo, a essência de
um "círculo redondo" é um absurdo e, por isso mesmo, impossível de realizar;
o círculo redondo nada é, e ao nada não cabe nem essência nem existência.
— Há, portanto, essências realizáveis em si, mas inexistentes, por exemplo, a
do centauro; e essências realizadas em entes individuais, por exemplo, a da
lâmpada.
— 134 ---
(24a) . — Cf. Sanctus Thomas, De Potentia, p. 7, art. 2, ad 9-um: Esse est actualitas
omnium actuem et propter hoc est perfectio omnium perfectionum; cf. Corram.
in 17 Lib. Sent., Dist. 3, q. 1, art. 1 r Qtüdditas est sicut potentia, et suum
esse acquisitum est sicut actua.
— 135
— 142 ---
. — Era esta a opinião da "escola mitológica", fundada por Max Müller (1823-
1900), filólogo de origem alemã, professor em Oxford desde 1850. Segundo
êle, o mito nasce da exuberância da linguagem primitiva, tão rica em me-
táforas que o homem era espontaneamente levado a personificar as misteriosas
fôrças da natureza. Nomina numina.
. — O homem sente-se dependente de fôrças que muito lhe superam as capacidades,
e que o enchem de um temor respeitoso ou "numinoso"; a divindade se lhe
afigura como um numen tremendum, cf. a palavra de Statius, Thebais, III 661:
Primus in orbe deos keit timor. — Esse "temor a Deus", inseparável de tôda
e qualquer religião, mias bem diferente de "mêdo" e de "angústia", aprofun-
dou-o o judaísmo pelas noções da transcendência absoluta e da santidade ab-
soluta de Deus, em oposição à condição do homem, o qual é criatura e peca-
dor: o Cristianismo completou-o por frisar muito mais do que o judaísmo e
qualquer paganismo, o "amor a Deus" como base da religião.
— 144 —
— Cf. W. Jaeger, The Theology of The Early Greek Philosophers, Oxford, 1947
(sobretudo os Chapters II-IV).
Plato, Phaedrus, 219D-220A. — No cárcere, Sócrates ocupava-se em compor
as fábulas de Esopo e o hino a Apolo, cf. Phaedo, 60D-61B.
— A religião de Só.:rates continua sendo assunto discutido; remetemos o leitor
ao livro de Antônio Tovar, Sor-rate. Se Vie et Son Temps, Paris, Payot, 1954
(trad. franc. de uma obra espanhola), onde encontrará abundante bibliografia
e documentação.
— Alguns mitos de Platão são: o Demiurgo como Criador (Timaeus, 27D-30C);
a Teogonia (ibidem, 40D-41B); a criação do homem (ibidem, 41B-43B); o
Juízo Final (Gorgias, 523A-527E); o livre arbítrio do homem (Respublica,
614B-621D); o mito da Caverna (ibidem, 514A-517C); Atlântida (Timaeus,
21A-25D, e Critias, 108E-120D).
— Simbólica, e não alegórica. Nem todos os pormenores do mito precisam set
conforme a verdade, cf. Plato, Pahedo, 1.14D.
(53a) . — Por que Anaxágoras? Porque êste filósofo foi o primeiro a admitir um princí-
pio espiritual (grego: Nous = Espírito) na criação e na conservação do mun-
do; por isso mesmo, Anaxágoras parecia a Aristóteles "um sóbrio no meio de
ébrios que falavam à-toa" (Aristóteles, Metaphysica, III 984b = Diels, A 58) .
Sócrates, porém, não se mostrava contente com a elaboração prática dêste
princípio por Anaxágoras, cf. Plato, Phaedo, 97C-99D.
-- 149- —
Revista de História n. 0 29
— 162 —
. — Ibidem, pág. 147: "Por heroísmo entende-se sair fora dos limites habituais.
Neste mundo é por vêzes necessário que as coisas saiam fora dos limites...
Sem uma intervenção heróica, nem Concílio de Nicéia, nem destronamento dos
merovíngios, nem Constituição inglêsa, nem Reforma, nem revolta dos Países-
Baixos, nem América livre. O que conta é quem intervém, como e em nome
de quê".
. Ibidem, pág. 157: "A característica mais fundamental do autêntico jôgo... é
que em determinado momento êste cessa. Os espectadores retiram, os atores
tiram as máscaras, a exibição acabou. E aqui é que se revela o mal do nosso
tempo. E' que hoje, em muitos casos, o jôgo nunca acaba e daqui o não ser
verdadeiro jôgo. Houve uma contaminação de efeitos remotos entre jôgo e ati-
vidade séria. As duas esferas começam a misturar-se".
(94). — Ibidem, pág. 95. — Cf. o célebre silogismo de Aristóteles (in Protreptictts,
fr. 50), que damos aqui em latim: Si est philosophandum, est philosophandrurn
si non est philosophandum, etiarn est philosophandum; omnino ergo est philo..
sophandum.
--- 164 —
(95). — Der Mensch und die Kultur (= "O Homem e a Cultura"), Stockholm, S.
Bermann-Fischer, 1937; Conditions for e Recovery of Civitizetion, in The Fort-
nightly, April, 1940; a obra póstuma: Geschonden Wereld (= "O Mundo Muti-
lado", 1945) .
--- 165 —
C. OS PROFETAS.
§ 110. O tremendo risco da fé .
À primeira vista, poderia causar estranheza o fato de ver irl.•
cluída, em nossa resenha de filósofos da história, a figura do pen-
sador religioso &ken Aabye Kierkegaard (1813-1853) . Sua c. ,r-
tribuição direta para a "filosofia da história" é mínima ou nula; en-
tretanto julgamos conveniente consagrar-lhe um parágrafo por es-
tes dois motivos: foi êle um dos primeiros a pôr a descoberto, de ma-
neira impiedosa, o burguês satisfeito; em segundo lugar, deve êle
ser considerado como o profeta do existencialismo moderno . Kier-
kegaard ilustra bem a tese de que os problemas religiosos têm sua
repercussão nos problemas culturais: desmascarava o cristão "es-
peculante", e outros, seguindo-lhe o exemplo, em terreno diferente,
- 1 68 ----
171 —
cleo mais íntimo do seu "Eu" que é divino. O homem ético pode
encontrar-se numa situação excepcional ou melhor num caso-li-
mite tal como Abraão que se via obrigado pelo próprio Deus a
sacrificar seu filho: evidentemente uma ordem imoral. Há mais:
homem ético, na sua tentativa de construir sua autonomia, vai
descobrindo que tudo é possível para êle e por êle, chegando a
considerar sua autonomia como uma autonomia total, o que equi-
vale a dizer: uma revolta contra Deus; na medida em que se des-
cobre nas suas possibilidades infinitas, descobre-se na sua auto-
nomia total, que é revolta contra Deus, e pecado. O homem é "s:"
apenas enquanto opta por si mesmo contra Deus. Daí sua angús-
tia a constituir com a liberdade e o pecado uma trindade insepa-
rável; pois a liberdade se lhe afigura como um perigo pavoroso e
pecado — ato necessário para se afirmar a si mesmo e, ao mrv-
mo tempo, o "nada", — origina nele uma vertigem. "Vertigem
diante do que não é, mas poderá ser pelo uso de uma liberdade
que não se experimentou e que não se conhece, a angústia do es-
pírito assemelha-se à vertigem física, naquilo que ela simultânea-
mente encerra de temor e de atração, de simples vislumbre da pos-
sibilidade e também de terrível encanto. Espécie de antipatia sim-
pática ou de simpatia antipática, a angústia é o desêjo do que se
teme, temor do que se deseja. E' nesta mistura de coisas opostas,
cheia de mágica fascinação (o encantamento da serpente do Gê-
nesis) que tem lugar o primeiro pecado" (116).
c) O Estádio Religioso.
A ética condena o pecador, mas é incapaz de nos premunir
contra êle; o pecado nos individualiza e isola; só Deus pode li-
bertar-nos dêle e fazer-nos participar da sua universalidade, o que
significa o descobrimento da nossa interioridade mais íntima e pes-
soal; a consciência religiosa, perante a qual o homem nada impor-
ta e só Deus importa, instala no homem paradoxalmente o "Eu"
divino. O homem é tocado por um remorso total que nunca mais
deixa; entrega-se confiantemente a Deus, e começa a levar uma
existência autêntica. Pois "existir", para Kierkegaard é "existir pe-
rante Deus", isto é, estar em relações pessoais com o nosso Criador
Redentor .
V . Credo guia absurdum (117) .
Kierkegaard via no Evangelho uma mensagem "existencial",
não uma doutrina especulativa; a maior parte dos cristãos se, com-
— R. Jolivet, As Doutrinas Existencialistas, (cf. nota 14), págs. 57-58.
Cf. Tertullianus (155-220), no opúsculo De Carne Christi, 5 (onde replica
a um infector veritatis): Parce unicae spei totius orbis! Quid destruis necessa-
rium dedecus lidei? Quodcumque Deo indignum est, mihi expedit. Selvus sum,
si non confundar de Domino meo... Alias non invenio meterias confusionis,
quere me per contemptum ruboris probent bene impudentem et felicitei stultum.
7
•1 4
Natus est Dei Filias: non pudet guia pudendum est; et mortuus est Die Filius:
prorsus credibile est guia ineptum est; et sepultus restSrresit: certum est guia
impossibile.
— II Reis, XII 5-7. Cf. Horatius, Safira, I 1, 69-70:
Quid rides? Mutato nomine de te labuta narratur.
Cf. as palavras de M. de Corte, citadas acima § 105 III.
—. Teodicéia (das palavras gregas: theós = deus, e dikaiós = justo) quer dizer:
"e justificação de Deus (no govêrno do mundo"); o têrmo foi forjado por
Leibniz (1646-1716) nos Essais de Th&dicée . , e tinha originàriamente signi-
ficado apologético (Leibniz se dirigia contra o cético P. Bayle); hoje, a palavra
designa muitas vêzes aquela parte da metafísica que trata do conhecimento
natural de Deus.
--- Jó, Capítulos XXXVIII-XLI.
— R. Jolivet, introduction, etc., pág. 63.
--- 175.--
181 ---
. Sócrates, nas suas conversas com os poetas, chegava à conclusão de que êles
criavam suas obras não em virtude de uma sabedoria, e sim graças a um
certo dom natural e a seu "entusiasmo" (cf. nota 137), como os adivinhos:
pois também êstes falam muitas coisas belas sem delas possuirem um conhe-
cimento racional, cf. Mato, Apologia Socratis, 22A-C; /o, 533D-534E.
. Só no segundo período da sua carreira filosófica, mostrava Nietrache certa
estima pela figura de Sócrates (sobretudo em Humano demasiado Humano).
. — Nietzsche, A Ciência Jocosa, no. 125.
-- 182
(150) . — E', segundo Platão, a doutrina do sofista Cálicles (personagem, muito provà-
velmente, não histórico, mas criado pelo filósofo ), cf. Plato, Gorgias, 482C-
4860, onde lemos: "A lei foi inventada pela massa em vista dos seus próprios
interêsses. Para amedrontar os fortes e para impedi-los de o subjugarem, o
homem da massa lhes diz que tôda e qualquer superioridade é feia, e que a
injustiça consiste cabalmente em querer elevar-se acima dos outros. Mas a
natureza nos ensina que, não só entre os animais como também entre os ho-
mens, o critékio da justiça consiste na capacidade do forte de governar o fraco".
( 151 ) . Nietzsche, A Genealogia da Moral, I 8-9.
— 186 —
. — Nietzsche, Assim falava Zaratustra, III (capítulo final: Das Ja-und Amen-
Liecl).
. — Por exemplo, Guyau (1854-1888):
Puisque tout se ressemble et se tient dans ?espace.
Tout se copie aussi, j'en ai peur, dans le temps;
Ce qui passe revient, et ce qui revient passe:
C'est un cercle sans fin que la chalne des ans...
E Shelley (1792-1822) in Deltas:
Oh, ccase! must bate and death return?
Cesse! must men kill and dy?
Cease! drain not to its dregs the um
Of bitter prophecy!
The world is weary of the past,
Oh, might it die or rest at last!
(161). — Nietzsche, Assim falava Zaratustra; III (in Der Genesende) .
— 189 —
(162) . — Cf. Plato, Phaedo, 118A, onde as últimas palavras de Sócrates cão: "O'
Cristão, ainda estamos devendo um galo a Esculápio (o deus da saúde); não
esqueças de lho sacrificar". Segundo uma interpretação moderna (muito duvi-
dosa, e desmentida pelo testemunho de autores antigos), Sócrates teria consi-
derado o sacrifício de um galo a Esculápio como um ato de gratidão, visto que
a vida é uma doença.
(162a). — Cf. Assim falava Zaratustra, II 15:
Vonde der unbefleckten Erkenntniss (=_. "Sôbre o Conhecimento Imaculado") .
— 190 —
com sua amável ironia comunica-nos que os per .sas medem o valor
de povos estrangeiros pelo grau de vizinhança com a Pérsia: quanto
mais próximos aos persas, tanto mais os estimam; quanto mais afas-
tados dêles, tanto menos os avaliam (169). Quem viaja muito
com os olhos desimpedidos, acaba sendo prudente e experimentado,
e já não acredita na superioridade absoluta ou inferioridade abso-
luta de povo nenhum. Por isso Heródoto, apesar de ser grande pa-
trióta e sincero admirador das façanhas feitas pelos gregos, prin-
cipalmente pelos atenienses, fala com muita franqueza nas virtudes
dos "bárbaros" e nos vícios dos "gregos".
Tal sublime isenção de ânimo não pode ter sido a qualidade
do povo grego na sua totalidade; não podemos descrever aqui a
história do "nacionalismo grego", mas temos motivos de sobejo para
acreditar que a maior parte dos helenos concordava plenamente com
as palavras de Ifigênia, figura dramática de Eurípides: "Convém
que os gregos dominem sôbre os bárbaros, e não os bárbaros sôbre
os gregos. São aquêles uma raça de escravos, ao passo que êstes
nasceram livres" (170) . Até espíritos esclarecidos, tal como Aris-
tóteles (171), defendiam a "escravatura natural" dos bárbaros, pre-
conceito êsse inveterado contra o qual eram improfícuos os protes-
tos ocasionais de alguns indivíduos raros. No ano 380, o retor Isó-
crates afirmava: "Tanto supera nossa cidade (isto é, Atenas) os
demais homens na arte de pensar e de falar que seus discípulos se
tornaram os mestres dos outros; é devido a ela que o nome dos gre-
gos já não indica a raça, mas certa disposição do espírito, e que são
chamados de gregos antes os que compartilham conosco a cultura
do que aquêles que conosco têm em comum a mesma origem fí-
sica" (172) . Estas palavras têm sido muitas vêzes mal interpre-
tadas: para Isócrates, os bárbaros, e principalmente os persas, eram
os inimigos naturais do povo grego (173); o retor não via num bár-
baro, por mais helenizado que fôsse, um "grego"; suas palavras sig-
nificam que, entre os helenos, só pode ser verdadeiramente "grego"
quem possua a formação ática (174).
As conquistas de Alexandre Magno modificaram profunda-
mente a vida política cultural dos gregos; o grande rei, homem im-
petuoso e destruidor de esquemas convencionais, colimava a fusão
entre os diversos povos do seu Império e fazia caso de mostrar acs
(207a). —Quem defendia o "poligenismo" do gênero humano, no século XIX, era sobre-
tudo Ludwig Gum)plowicz (1830-1909), autor do livro Rassenkampf (= "A
Luta das Raças, 1883), e outras obras.
— Ibidem, I pág. 143.
— Ibidem, I pág. 220.
— Ibidem, I pág. 223.
— 204 —
degenerando por causa das suas uniões com raças inferiores (no
Egito e na China) ou com grupos secundários e degenerados da ra-
ça branca (por exemplo, na Grécia e ern Roma) . Os árias invaso-
res da Índia, para quem "branco" era idêntico a "belo" e que insti-
tuíram o regime das "castas", foram derrotados pelos budistas, con-
seqüência da infiltração de sangue inferior, a manifestar-se, por
exemplo, na prioridade da moral budista à ontologia . Os gregos ho-
méricos, os "aqueus" (dos quais de Gobineau tinha conhecimentos
muito exíguos, já que escrevia sua obra antes das escavações feitas
por Schliemann e Dõrpfeld), são árias puros como também os es-
partanos, o que logo se vê pela instituição espartana dos hilotas e
dos periecos; mas êstes árias encontraram, no país conquistado por
êles, muitos habitantes pertencentes a raças inferiores, principal-
menfte de origem semítica, e êste último elemento foi-se desenvol-
vendo em detrimento dos árias castiços. Sintomas da decadência
grega são: a república e a democracia, a dedicação à pedis, e não ao
sangue, a ginástica praticada por jovens nus, etc. O autor mostra
grande admiração pelo gênio artístico dos gregos que continuava a
existir na época da sua decadência racial, tout en réservant son
respect pour des choses pias essentielles (219), e até mesmo chega
a atribuir a sensibilidade estética e a paixão intelectual dos gregos
à influência do sangue semítico (sic!), mas êste equilíbrio precário
devia perder-se com a afluência de ondas cada vez mais numerosas
e arrasadoras de asiáticos, levando a Grécia à plena decadência
moral, política e intelectual (219a). A história romana, tal como
é apresentada por de Gobineau, é muito mais complexa e• impos-
sível de expor em poucas linhas: basta dizermos aqui que para a
formação da Roma republicana não contribuiram os árias castiços,
mas só famílias secundárias da raça branca, e que a Roma imperial
acabou por semitizar-se, devendo sua longa duração exclusivamen-
te à boa organização das suas legiões.
V. Perspectivas Sombrias.
Foi então que apareceram os germanos, árias quase puros, in-
devidamente desqualificados de "bárbaros" ou apresentados como
(219). — lbidem, II pág. 45.
(219a) . — O historiador alemão J. Ph. Fallmerayer (1790-1861), homem bastante via-
jado na Grécia e no Oriente Próximo e autor de um livro intitulado: "Sôbre
a Origem dos Gregos Modernos" (1835) (obra conhecida de de Gobineau),
sustentava a tese de que os gregos modernos não são os descendentes dos gre-
gos clássicos, e sim de albanos e eslavos. Assim procurava explicar a dege-
neração cultural e moral dos gregos nos tempos modernos. Esta tese, aliás
mal fundamentada, era um golpe ao "filelenismo" europeu dos primeiros de-
cênios do século XIX que idealizava loucamente os gregos clássicos e os gregos
modernos (então envolvidos na sua guerra de independência contra a Turquia)
por causa dos gregos clássicos. Esta guerra (1822-1830) atraía muitos entu-
siastas para a Grécia, um dos quais foi o célebre poeta britânico Lord Byron
morto (1824) no sítio da cidade de Missolonghi.
— 207 —•
(232) . — Chamberlain, Oie Grundlagen, etc., I pág. 312s Ein Bastardhund ist nicht
se!tcn sehr klug, jedoch niornals zuverltissig, sittlich ist er stets ein Lump.
Andauernde Promiskuit.iit unter zwei hervorragenden Tierrassen liihrt
ausnahmslos zur Vernichtung der hervorragenden Merkn(sle von beiden! Warum
solhe die Menschheit eine Ausname bilden? EM KircherwMer mochte das wohl
wiihnen: steht es abar einem hochangesehenen Natarforscher (Chamberlain
pensa aqui em R. L. x. Virchow, 1821-1902) Éut an, das Gewicht seiner
grossen Eintlusses in die Wagschale mittelalterlichen Aberglaubens und Unwissens
zu werfen?
lbidem, I págs. 353-360. — Cf. § 3 V g.
— O autor (ibidem, II pág. 870) divide os fenômenos da vida social em três
grupos: 1) o Saber (Descobrimentos, descobertas, invenções e ciências); 2)
Civilização (Indústrias, Economia,. Política e Igrejas); 3) Cultura ("Mundi-
vidência", inclusive Religião e Moral; as Artes) .
--- 211 .=
que o dia exige a noite, assim a maravilhosa obra positiva feita pe-
los gregos e pelos romanos exigia um complemerlIto negativo; foi
Israel que o deu. Para que se enxerguem as estrêlas, precisa apa-
gar-se a luz do sol; para atingir a verdadeira grandeza, para adqui-
rir a grandeza trágica, a única capaz de proporcionar um conteúdo
vital à história, o homem devia tornar-se consciente não só da sua
fôrça, como também da sua fraqueza" (236).
A grandeza dos gregos está em terem descoberto o "homem".
O homem nasceu na Hélade, o homem capaz de se tornar cristão;
entre o "saber", a "civilização" e a "cultura" (cf. nota 234) estabele-
ciam os helenos uma harmonia inigualável, a qual, nos tempos mo-
dernos, se encontra apenas entre os germanos. O humanismo é, até
certo ponto, também o ponto fraco dos gregos: não se interessavam
o bastante pelas regiões fora do homem, e muito menos ainda pelas
esferas acima do homem . Pouco dotados do gênio político e do es-
pírito prático, eram essencialmente artistas e poetas. Platão é o
apogeu da filosofia grega: é filósofo-poeta, o Homero entre os pen-
sadores, a "dar forma" (alemão: gestalten) simbólica aos seus pen-
samentos; Aristóteles é principalmente grande como pesquisador da
natureza, contrabalançando assim com seu realismo o idealismo exu-
berante dos seus patrícios. Os gregos não eram bons metafísicos, no
sentido moderno da palavra, sendo que suas faculdades artísticas
e plásticas eram rebeldes ao pensamento puro; tampouco eram bons
teólogos ou moralistas (demonologia!); a escolástica jesuítica, essa
peste negra da filosofia moderno, Item sua origem nas cavilações es-
téreis de Aristóteles. Os gregos eram esplêndidos filósofos, no sen-
tido inglês da palavra: Platão é comparável ao philosopher Goethe,
Aristóteles ao philosopher Newton. Além da faculdade do pensa-
mento puro, faltava aos gregos a honestidade: não tinham firmeza
de caráter, veracidade, patriotismo abnegado ou moralidade eleva-
da . Nas suas obras artísticas embelezavam mentirosamente seus
feitos patrióticos, que na realidade eram muito duvidosos: já o sa-
bia Juvenal que dizia: creditur quidquid Graecia mendax audet
in historia (237). A raça helênica, o resultado feliz de cruzamen-
tos de raças, começou a degenerar com Aristóteles, processo êsse
que ia tomando proporções calamitosas na época do helenismo quan-
do havia miscigenação quase ilimitada: in Syros, Parthos, Aegyptios
degenerarunt (238).
Os talentos dos romanos eram menos brilhantes, limitando-se
quase exclusivamente a organizarem e a administrarem o mundo;
(236) . — Ibidem, I pág. 51.
— Juvenalis, Satirae, X 173-175; Sextus Aurelius Victor, De Caesaribus, III
12; cf. Sallustius, De Catilinae Conjuratione, VIII 1-4.
— Titus Livius, Ab Urbe Condita, XXXVIII 17, 11 (o autor latino fala nos
macedônios).
-- 213 —
— 218 —
— 219 —
QUESTÕES PEDAGóGICAS
QUARTA PARTE
(Continuação)
CAPITULO SÉTIMO
a) O Batismo de Vladimiro.
O Novo Estado nascera fora do âmbito da Cristandade latina
(os varegues ainda eram pagãos), mas entretinha intensas relações
comerciais com o Império cristão de Bizâncio. Segundo a lenda,
Vladimiro o Grande (980-1015), querendo dar ao seu povo uma
religião superior, mas hesitando entre o judaísmo, o Islam e o Cris-
tianismo, teria enviado embaixadores a "todos os países do mundo"
para se informar das qualidades de cada uma dessas crenças. Ao
ouvir a resposta dos maometanos que lhe proibiam o uso de vinho,
Vladimiro teria protestado: "O povo russo gosta de alegrar-se: não
podemos viver sem o vinho!" Tampouco lhe aprazia a resposta dos
judeus a dizerem-lhe que viviam na "diáspora" por causa da ira
divina. Oscilando entre Roma e Bizâncio, o grão-duque teria optado
pela fé "ortodoxa", porque os mensageiros que haviam assistido às
cerimônias pomposas na Aya Sophia, lhe traziam êste comentário:
"Nunca vimos espetáculo tão impressionante: já não sabíamos se
estávamos no céu ou na terra". Por várias razões, esta lenda tão
encantadora na sua simplicidade poderia servir de ponto de partida
para um ensaio sôbre a alma russa; mas os fatos que ela nos comu-
nica não resistem a um exame crítico. Em fins do século X, ainda
não existia uma ruptura oficial e definitiva entre as duas Igrejas, de
(3). — Alguns livros de fácil acesso sôbre a história da Rússia são: P. Pascal, His-
toire de la Russie des Origines à 1917, Paris, 1949 (na coleção: "Que
Sais-Je?"); W. Kirchner, An Outline History of Russia, New York, Barnes
8s Noble, Inc., 1952 2; Bernard Pares, Russia, Its Past and Present, New
York ("A Mentor Book"), 1952 2 ; Helena Isvolski, Alma da Rússia, Rio de
Janeiro, Editôra Ocidente Ltda., 1944 (trad. port. de um livro escrito em
inglês: The Soul of Russia, 1943) .
— 137 —
modo que uma escôlha entre Roma e Constantinopla seria uma al-
ternativa anacrônica. Além disso, sabemos com certeza que Vladi-
miro foi batizado, não em Quérson por monges bizantinos, e sim em
Kiev (no ano 987 ou 988) por sacerdotes indígenas de obediência la-
tina, dois ou três antes de desposar Ana, a irmã do Imperador Ba-
sílio II (4) . O número de cristãos já não era insignificante no seu
ducado (5), de modo que Vladimiro não encontrava muita oposição
ao impor a nova religião ao seu povo (menos em Nóvgorod) . Se-
ja como fôr, devido à proximidade relativa de Bizâncio, aos gran-
des interêsses econômicos e às numerosas aventuras guerreiras que
ligavam o grão-duque ao basileus, foi a êste e não ao Papa em Roma
que se dirigiu Vladimiro para obter missionários. Aos monges gre-
gos que evangelizavam a Rússia, acrescentaram-se logo elementos
do clero búlgaro que aí introduziram o velho eslavo como lingua-
gem litúrgica (6) .
Nada mais errôneo do que pensar que a Rússia quievana, des-
de as suas origens, tenha vivido num clima de hostilidade ao Oci-
dente. During the earlier period — in the eleventh and twelfth
centuries — the Christian peoples of Eastern Europe occupied an
intermediate position between the Latin West end the Byzantine
East; and though they were divided by their religious and cultural
sympathies, the division was not an exclusive one (7). Kiev servia
de intermediária entre Roma e Bizâncio. Fatôres econômicos, po-
líticos e religiosos uniam-na aos dois mundos. Nos séculos XI e
XII, era considerável o intercâmbio de relações amigáveis entre a
côrte dos grão-duques e a Cristandade latina (8): missionários la-
tinos e embaixadores papais eram bem recebidos na cidade à beira
do Dniepre; muitas princesas russas eram casadas com príncipes eu-
ropeus: na Hungria, Polônia, Escandinávia e até na França (9) .
b) O Grande Cisma de Bizâncio (10).
— Cf. L. Bréhier, Vie et Mort de Byzance, Paris, Michel, 1948, págs. 222-223.
— Já Belga ou Olga, a viúva de Igor I e regente durante uns 25 anos (945-
969), era cristã e estava em contacto com Otão I, o Imperador ocidental
(936-973), a quem pediu um bispo e sacerdotes.
— O rei dos búlgaros Bóris (852-888) batizou-se com seu povo esni 864; desde
870, a Igreja búlgara, devido a intrigas do patriarca Fócio, obedecia a Cons-
tantinopla; por volta de 886, discípulos de São Metódio, expulsos da Morávia,
refugiaram-se na Bulgária onde foram bem acolhidos; daí em diante, o velho
eslavo (e não o grego) era a língua oficial da Igreja búlgara; em 1018, a
Bulgária foi aniquilada pelo Imperador Basílio II ("o Bulgaroctónos"); foi
então que muitos búlgaros fugiram para a Rússia onde, a pedido do grão-du-
que Iarosláv, traduziram os livros litúrgicos, até então gregos, para o eslavo.
• — Chr. Dawson, Reliáion and The Rise of Western Culture, London-New York,
Sheed & Ward, 1951 2, pág. 139.
. — Chr. Dawson, opere citato, págs. 119-140; H. Isvolski, opere citato, Capítulo
I; A. Toynbee, A Study of History, VIII págs. 401-402.
. — Ana, filha de Iarosláv de Kiev, casou-se com Henrique I, o rei da França
(1031-1060), e levou consigo um Evangelho eslavo, hoje guardado em Reims.
(10). — Sôbre Bizâncio, cf. Ch. Diehl, Histoire de l'Empire Byzaritin, Paris, 1919; L.
Bréhier (veja nota 4); excelente é o estudo do russo A. Vasiliev, História de
— 138
leólogo, que acabava de readquirir C.pla, fizera as pazes com a Igreja latina
(no Concílio de Lião); a união, que se baseava nos mesmos princípios que
depois seriam adotados por Florença (cf. Denzinger, n.os 460-466), foi des-
feita em 1282.
. — Entre êles se destacava a figura do monge grego Máximo de Atos (por
volta de 1550), convidado por Moscou a traduzir e a corrigir os livros sa-
grados. Êste inimigo figadal do "latinismo", que tinha conhecimentos pessoais
do mundo ocidental, exprobrava aos católicos paganismo por causa da filo-
sofia escolástica que se inspirava pelas obras do "pagão" AristOteles . Foi prin-
cipalmente êle que envenenou os russos ingênuos de grande número de pre-
conceitos absurdos sôbre os latinos.
. — Depois da morte do último rurícida (1598), houve uma época de perturba-
ções políticas na Rússia ("os falsos Demétrios"!), das quais se aproveita-
vam os poloneses: êstes conseguiram até conquistar Moscou, onde comete-
ram muitos atos cruéis.
. — Esta união (1595) reconciliava os rutenos (súditos da PcXônia, desde
1569) com Roma e concedia aos "uniatas" o rito eslavo; mos desde o iní-
cio, a união era contrariada pelos magnates da Polônia; a Rutênia oriental
(com Kiev) foi reintegrada na Rússia no ano 1667 (= Ucrânia) .
(38). — Apolináris de Laodicéia (século IV), ao combater o Arianismo que negava
a natureza divina de Cristo, caiu no extremo oposto, chegando a negar a
natureza humana de Cristo, no sentido pleno da palavra: Cristo teria assu-
mido apenas um corpo humano, não o espírito humano. Aos olhos dos bi-
zantinos e de Filoteu, o costume latino de consagrar pão sem fermento (que
remonta aos séculos VIII-IX), simbolizava a heresia apolinária dos latinos:
"o corpo humano sem a alma humana".
— 145 —
d) Os Raskólniki (47) .
Em 1652, Nikon, homem erudito e de largas vistas, mas a
quem faltavam duas virtudes importantes. a paciência e o tacto,
subiu ao trôno patriarcal de Moscou. Já como metropolita de
Nóvgorod empenhara-se em elevar o nível teológico e cultural da
Igreja russa, e uma vez chegado à dignidade de patriarca, espe-
rava poder realizar plenamente seus planos de reforma, tanto mais
quanto podia contar com o apôio do seu amigo, o Czar Alexéj (48).
Aos olhos de Nikon, a Igreja nacional se achava numa situação de-
soladora: suas relações pessoais com os teólogos gregos, conven-
ceram-no de que a ortodoxia russa era obscurantista e atrasadíssi-
ma . Também o contacto com os ucranianos de Kiev, sempre su-
periores aos moscovitas em assuntos, de patrística e teologia (49),
levavam-no a essa opinião; e não era inegável a superioridade dos
poloneses, dos quais os russos tomaram forçadamente conhecimen-
to na época das perturbações?
Em 1654, houve um Sínodo em Moscou, freqüentado também
por vários prelados gregos, no qual foi decretada uma revisão radi-
cal dos livros sagrados em conformidade aos textos gregos: também
alguns costumes eclesiásticos divergentes da Igreja de Bizâncio
haviam de ser postos de acôrdo com os da Igreja-Mãe (50) . Es-
sas medidas provocaram uma tempestade de indignação entre os
fiéis e o baixo clero da Rússia. Nikon, acusado de "bizantinismo"
e até de "latinismo" (por causa das suas simpatias para com os
ucranianos), não recuava de recorrer ao braço secular (embora
tivesse, inicialmente, a intenção de livrar a Igreja do jugo do Es-
tado) para dar cabo dos seus adversários (51). O patriarca foi
deposto num segundo Sínodo (1666) que incorreu na resolução
contraditória de aprovar as reformas eclesiásticas e de renegar a
pessoa de Nikon, já antes abandonado pelo Czar. O Estado triun-
fara mais uma vez sôbre a Igreja.
Milhões de fiéis recusavam-se a obedecer à resolução do Sí-
ncdo, muito embora o govêrno czarista perseguisse rudemente os
não-conformistas, submetendo-os a taxas especiais, expondo-os a dis-
criminações sociais e políticas, e condenando-os, em alguns casos, à
prisão ou até à fogueira (52) . Nascera o raskol, o cisma interno da
Igreja russa, a manter afastados da vida nacional milhares e milha-
res de pessoas: o número de ratikólniki era, no século XIX, avaliado
em 15 a 20% da população total. O raskol russo é fenômeno bas-
tante complexo, originado e sustentado por causas diversas. Muitos
sectários eram conservadores radicais, tanto mais fanáticos quanto
mais ignorantes, e inclinados a atribuir um valor mágico aos costu-
mes tradicionais; outros eram xenófobos cegos que viam em todo e
qualquer contacto com o estrangeiro um perigo letal para a orto-
doxia russa, a Terceira e a última Roma; para muitos, o cisma era
um protesto contra as ingerências do Estado nos negócios da Igre-
ja; não poucos agiam sob a influência de idéias protestantes, pietis-
tas e racionalistas. Unidos só negativamente por causa da sua luta
comum contra o Czar, no qual muitos viam o Anticristo, começaram
a ramificar-se em inúmeras seitas (53), logo depois de terminado o
calor do primeiro combate. O raskol, ameaça muito séria para a
unidade do povo russo, anuncia outro cisma interno, o que foi cria-
do por Pedro o Grande.
. — Pedro, quando moço, já gostava de passar muitas horas no bairro dos es-
trangeiros em Moscou, onde admirava o artesanato e a técnica da Europa.
— Depois fêz duas viagens pela Europa (1697-1698, e 1716-1717); em
Zaandam (Holanda) trabalhava num estaleiro; visitou várias côrtes euro-
péias, • guardando o incógnito; teve encontros com diversas personagens ilus-
tres da sua época (por exemplo, Leibniz, Boerhaave e van Leeuwenhoek) .
. — Em 1718, Pedro torturou bàrbaramente seu filho Alexéj, que se opunha
às reformas do seu pai; o Czarevitch, aliás um libertino sem fibra, logo
depois morreu.
. Até então, a Rússia seguia a Éra Bizantina (cf. § 52 III d) e começava
o Ano Novo no dia 1 de setembro; a Revolução bolchevista introduziu o
Ano Gregoriano (cf. § 56 V, nota 70).
— O alfabeto de Cirilo contava 43 caracteres; Pedro reduziu (em 1708) o
número das letras russas a 36, e a Grande Revolução (em 1918) a 33; cf.
§ 57 IV e.
— Pedro aboliu o Conselho dos boiares (cf. nota 30); a nova classe de nobres
era hereditária mas sujeita a serviços obrigatórios (campanhas militares,
responsabilidade pelos impostos, etc.).
— "Sankt Petersburg" (até o nome é estrangeiro!) foi fundada em 1703; desde
1712 era a capital da Rússia; em 1914, seu nome foi mudado em "Potro-
grad"; em 1918, cedeu seu lugar de capital a Moscou; em 1924, ficou com
o nome de "Leningrad".
(60) . O Imperador fazia representar óperas burlescas, em que a Igreja, os sa-
cramentos e a hierarquia eram ridicularizadas; até organizava "missas de
Baco".
— 151 —
(71). — Quase todos os autores de que pretendemos falar neste capítulo foram ví-
timas do regime autoritário; Khomiakóv e Soloviév não podiam publicar mui-
tos dos seus livros na Rússia; Dostoïevski foi condenado a trabalhos for-
çados; Berdiáïev foi relegado para uma cidade ao norte do país (1900-1903);
Tchaadáïev foi oficialmente declarado mentecapto e confiado aos cuidados
de um médico; Tolstoi, autor de fama mundial, não era pessoalmente mo-
lestado pela polícia, mas estava terminantemente proibido de divulgar suas
idéias n'ilistas.
(72) . — A "intelliguentzia" rusea não é idêntica à classe dos intelectuais em outros
países, mas designa o conjunto de tôdas as pessoas "esclarecidas", pertencentes
a quaisquer classes sociais, que se ocupam intensamente com o problema social e
político.
(72a). -- Célebres descrições da vida russa, durante o século XIX, encontram-se nos
grandes romances de Tolstoi bem como no romance maravilhoso de N. Gogolj
"As Almas Mortas" (obra inacabada, 1842) e no de Iván Gontcharóv "Obló-
mov" (1852) . Leia-se também o conto encantador de Nikoloj Lieskow: "O
Clero de Stárgorod" (1872).
(73). — No dia 22 de janeiro de 1905, milhares de homens e mulheres, liderados
pelo pope Gapon, pretendiam manifestar as queixas do povo ao Czar em
St. Petersburg; era mais uma procissão religiosa do que uma passeata po-
lítica: os manifestantes não tinham armas nem perturbavam a ordem pú-
blica, =tas cantavam hinos religiosos e eram precedidos por icones sagradas;
o Czar estava ausente; centenas de manifestantes inermes e inocentes foram
brutalmente mortos pela soldadesca.
— 155 —
. — R. Grousset, Silan de l'Histoire, Paris, Plon, 1954, pág. 97; cf. H. Massis,
Déiense de 1'Occident, Paris, Plon, págs. 75-79, e O. Spengler, )(abre der
Entscheidung. München, Beck. 1953, págs. 46-49.
. — A "alma russa" — é quase desnecessário lembrar o leitor, não existe, no
sentido próprio da palavra; é urna "tipologia" dentro do quadro das ciências
morais, à qual não se pode atribuir o rigor de um conceito abstrato ou de
uma lei necessária (cf. 13 II; 16 II; § 17 II; 65 I-II) — O livro
clássico sôbre a alma da Rússia foi escrito por 'Th. G. Masaryk em 1913
(o primeiro presidente da Checoslováquia), obra traduzida para o inglês:
The Spirit of Russia, I-II, New York, 1919; cf. também Dr. Simon Frank,
Die russische Weltanschauung, Charlottenburg, 1926.
— 160 —
— tf. B. Pares, op. cit., pág. 27: A German in drink boasts, a Russian mur-
murs that he is a miserable sinner.
(88a). —Cf. Bakúnin (§ 99 IIa) e as palavras do poeta russo V. L. Briússov (1873-
1924):
Tout périra, peut-être, sares laisser de vestiges,
Tout ce que nous seuls avons connu.
N'importe! enforme un hymne de bienvenue
A vous qui allez m'anéantir
(apud M. Hofmann, Histoire de la Littérature Russe, Paris, Payot, 1934,
pág. 634).
— N. Berdiaev, 'Le Seres de Ia Création, Paris, Desclée De Brouwer, 1955, pág.
413.
(94) . — Os ortodoxos não negam o "eticismo" dos ocidentais, mas afirmam que estes,
quando honestos, castos ou filantropos, não praticam essas virtudes por mo-
tivos religiosos, e sim por motivos humanos; no Oriente, a moral como tam-
bém a fé são concebidas como partes integrantes do serviço religioso que o
homem deve prestar a Deus.
(94a) . —, Cf. Apocalipse, X 5-6: "E o anjo... levantou a sua mão ao céu, e jurou
por aquêle que vive pelos séculos dos séculos... que não haveria mais
tempo".
-- . 165
buts laborieux ici sur terre, mais aussi dans la consommation glo-
rieuse des cieux (95)
A Ressurreição gloriosa de Cristo é a garantia divina da nossa
futura transfiguração: eis porque a ortodoxia oriental considera .
. — G. Thils, Théologie des Réalités Terrestres, Paris, Desclée De Brouwer, 1946 2,.
I pág. 104; cf. também J. Pieper, La Fin des Temps, Paris, Desclée De,
Brouwer, 1953.
. — Cf. N. Arseniev, La Saiote Moscou, Les Éditions du Cerf, 1948, págs. 20-33.
— N. Gogolj escreveu, no fim da sua =ren•al literária, um opúsculo admi-
rável: "Meditações sôbre a Divina Liturgia" (1852) .
. — Mas, ao lado do dualismo oriental, encontramos na. Rússia também um "mis-
ticismo telúrico" (cf. nota 90), talvez influenciado (via Bizâncio) pelos mis-
térios da antiga Grécia. Esta tendência pode originar uma transfiguração num.
plano naturalista, como se verifica em alguns pensadores modernos da Rússia..
— 166 --
(104). — Segundo alguns gnósticos, há grande número de "éones" (até 365, o número
dos dias do ano); a Divindade Suprema, juntamente com os diversos "éones",
constitui "a plenitude divina" (grego: pléroma) . Muitos gnósticos não fa-
lam em "emanação", mas, caindo nos erros de um pensamento grosseiramen-
te mitológico, falam em "procriação", acreditando em "éones" masculinos e
femininos. — A demonologia gnóstica foi de grande importância para a evo-
lução do Neo-platonismo posterior (Jamblico e Proclo).
--- 169 —'
I. As Cartas Filosóficas.
Piotr Iákovlevitch Tchaadáïev (1794-1856) provocou, em 1836,
um grande escândalo pela publicação da sua primeira "Carta Filo-
sófica" (107) . O autor, que tinha conhecimentos pessoais da Eu-
ropa (108) e era profundamente influenciado pelas obras de de
Maistre, de Bonald e de Chateaubriand, sustentava a tese de que
a Rússia pertencia nem ao Ocidente nem ao Oriente, mas vivia
num isolamento infecundo. "Se nosso Império não se estendesse
do Estreito de Beringue até o Oder, ninguém teria notado a nossa
existência . Até certo ponto, não fazemos parte do organismo hu-
mano, e existimos apenas para dar algumas lições negativas à hu-
manidade . Nenhum pensamento fecundo brotou do solo estéril da
nossa pátria, nenhuma verdade universal surgiu em nosso meio. O
silogismo é-nos desconhecido, e a tradição não existe entre nós. O
povo russo vive só no presente, sem passado e sem futuro; sua cul-
tura é um produto bruscamente importado sem que tenha podido
inviscerar-se na mentalidade dos indivíduos e da coletividade . So-
mos filhos ilegítimos, sem laços com os nossos antepassados: o que
se tornou instinto ou hábito entre outros povos, nós somos obriga-
dos a inculcá-lo a marteladas; crescemos, mas não amadurecemos".
Como explicar a estagnação da vida russa? A resposta de Tchaa-
dáïev não deixa nada a desejar em clareza. O objetivo da história
humana, dirigida pela Divina Providência, é o estabelecimento do
Reino de Deus no mundo, e o instrumento de que a Providência
se serve, é o Cristianismo, o herdeiro legítimo do povo eleito: o
Cristianismo transforma todos os interêsses particulares dos ho-
mens nos seus próprios interêsses. Ao examinarmos as formas his-
tóricas do Cristianismo oriental e ocidental, podemos verificar que
só a Igreja de Roma, por ser una, universal e social, corresponde
às condições de uma religião ideal. A Europa ocidental, guiada
pelo Cristianismo católico, apresenta-nos o espetáculo impressionan-
te de um progresso ininterrupto, ainda que ultimamente tenha sido
prejudicada pela Reforma desagregadora; niesmo assim, a Europa
continua a ser uma unidade espiritual, e a progredir em vários se-
tores da cultura. A Igreja Romana, a superintender a vida política
e social da Europa medieva, a organizar as cruzadas, a rezar, nos
— As "Cartas Filosóficas" (havia delas oito) eram originàriamente destinadas
a uma senhora russa (Iekaterína Pánova) e escritas em francês; já tinham
circulado muito tempo entre os amigos do autor, quando êste, em 1836, en-
controu disposto a publicá-las em russo o redator da revista "O Telescó-
pio"; a publicação não foi além da primeira carta, devido à intervenção do
govêmo. Em 1862, o jesuíta russo, o Príncipe Gagárin, publicou as
Oeuvres Choisies de P. Tchaadaev, em Paris.
— Tchaadáïev acompanhara Alexandre I na sua campanha européia (1813-1814);
depois visitou outra vez a Europa (1824-1826), demorando-se algum tempo
na Itália, na Alemanha, na França e na Inglaterra.
— 171 —
§ 120. Os eslavófilos.
O Eslavofilismo é um movimento romântico, nascido por vol-
ta de 1830, que se opõe à ocidentalização da Rússia e preconiza
o regresso às grandes tradições nacionais; em, muitos pontos, é uma
corrente análoga ao Romantismo europeu, do qual recebeu nume-
rosos e fortes impulsos. La ruine des traditions morales et religieu-
ses sous la poussée des idées européennes était la partie la plus
néfaste de l'oeuvre accomplie par l'Occidentalisme. Les défendre,
les remetttre en honneur, leur rendre une action éclairée et fécon-
de sur la vie et la pensée russe, devait être le but principal, l'âme
de l'école nationaliste (118). O Eslavofilismo russo, inaugurado
por um grupo de autores talentosos e idealistas, desde o comêço,
não era livre de certos exageros nacionalistas e acabou por dou-
trinar um nacionalismo estreito e estúpido.
I. Kireïévskij (119) .
O fundador da escola foi Iván Vassílievitch Kireïévskij (1806-
1856), uma das figuras mais simpáticas e abertas de todos os esla-
vófilos. Depois de atravessar uma fase de indiferença religiosa e
de Ocidentalismo moderado (120), redescobriu o caminho para a
ortodoxia e para as tradições nacionais, sob a influência da sua es-
posa muito piedosa e dos monges de Optina (cf. § 116 III b) . O
autor abomina o Racionalismo, em alue vê só decadência e podri-
dão: muito semelhante a certos existencialistas, impugna o pensa-
mento lógico abstrato e defende "o saber vivo" (cf. § 117 I) . O
conhecimento da verdade é um ato dinâmico e criador que nasce
de uma união de tôdas as nossas fôrças morais e espirituais, tais
como o pensamento, o coração, a consciência, o senso estético e o
amor; o pensamento abstrato e discursivo mutila a realidade, e,
quando não acompanhado e iluminado pelas outras faculdades, atro-
fia o homem, privando-o de uma visão integral e orgânica de Deus,
dos homens e do mundo. E' sobretudo nos Padres da Igreja Orien-
cava, em 1847, uma obra em que defendia um conceito religioso da cultura,
Bielinski atacou-o veementemente como "defensor do cnute, apóstolo da ig-
norância e do obscurantismo, e panegirista de uma moral mongólica". Esta
carta tão odiosa e injusta, que circulava clandestinamente nos meios revo.
lucionários, foi lida num conventículo de anarquistas por Dostoïevski, o que
lhe custou quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria (1849) .
. — Michael Bakúnin (1814-1876), cf. § 99 II.
. — A. Gratieux, A. S. Khomiakov et le Mouvement Slavophile, Paris, Les Édi-
tions du Cerf, 1939, I pág. 58. — Do mesmo autor: Le Mouvement Sla-
vophile à la Veille de la Révolution, ibidem, 1953.
. — Cf. B. Zenkovsky, I págs. 231-254; N. O. Losski, págs. 11-26; N. Arseniev,
págs 65-79.
. — Em 1832, o autor publicou, depois de ter viajado e estudado na Alemanha,
um artigo sensacional sôbre o "Século XIX" (na revista "O Europeu", que
logo depois foi proibida), em que declarava: "A Rússia se acha num beco
sem saída, visto que não participa do patrimônio cultural da antiga Grécia
que, com o desmoronamento do mundo antigo, foi salvo pela Igreja Ro-
mana e transmitido aos povos da Europa".
— 174 —
(128) . — Cf. A. Gratieux, op. cit., 'II pág. 209: La nécessité est l'apanage de la ma-
tière; elle s'incarne dans la civilisation kouschite, et se manifeste, dans le
monelé religieux, par la doctrine des elinanations et le symbolisme de la gá
nération, dans le monde philosophique par un rationalisme exclusif qui cher-
che, dans Perechsiinement dialectique des concepts, la note suprême de la
vérité.
. (129) . — O vocábulo russo, slovo, relacionado com "eslavo", quer dizer: "palavra".
— 177 —
. — Cf. A. Gratieux, op. cit., II pág. 95: L'âme des Slaves est naturellement
religieuse et chrétienne; et quand ia foi leur apparat, ils offrirent le rare
exemple "d'un peuple qui n'attend pas le christianisme mais qui va au-
devant".
. — Num art'go intitulado "A Rússia e a Revolução" (1848) Tiútchev escre-
via: La Russie est avant tout PEnfpire chrétien. Le peuple russe est
chrétien nan seulement par Porthodoxie des croyances, mais par quelque
chose de plus intime encore que la croyance: ii l'est fiar cette faculté de
renoncement et de sacrifiee qui est comine le fond de sa nature morale
(apud A. Gratieux, op. cit., II pág. 128, nota 1).
(148). — Numa poesia escreve (apud M. Hofniann, Histoire de la Littérature Russa,
Paris, Payot, 1934, págs. 595-596):
O, ces misérables villages,
O, cette indigente nature,
Terre de longue patience,
Terre de notre peuple russa! ...
Le fiar regard de l'étranger
Ne peut comprendre et déceler
Ce qui perca et luit en secret
Parmi ton humbie nudité.
Accablé du poids de la croix,
Le 'Roi du Ciel, en hurnble esclave,
T'a parcourrue, terra natale,
Totite entière, en 'te bénissant.
— 182 —
s
(157) . O próprio autor era epiléptico e diz . a que aos ace sos de epilepsia costuma-
vem preceder uns momentos de lucidez extraordinária o Michlthie,
o herói do romance "O .1dióta''r é' 'ó tàl ópiléticó
---- 185 —
. — Exemplos de figuras nas obras do outor que pecam friamente contra a luz .
são Raskólnikov (em "Crime e Castigo"); Rogojine (em "O Idiota"); Sta-
vroguine (em "Os Demônios"); Ivan Karamazov e Smerdiakov (em "Os .
IrMãos Karamazov") .
. — Exemplos são Marmeladov (em "Crime e Castigo"), a prostituta Sôniit,
(ibidem), o mentiroso Stepan Trofimovitch (em "Os Demónios"), Lebedev
(em "O Idiota"), Fèddr e , DMitri Karamazov (em "Os Irmãos Karamazov")'.
(162). Exemplos são o Staretz Sóssimsi e seu aluno Aliocha Karamazov (em "Os. .
Irmgos Káramazov") .; .0" Príncipe' Michk,,ri (em "O Idiota") é Mais inexpe-
riente do ,tnal 'do què místico; aléM diSsO, finito "ingênuo", e , tem traços
doentios; é epilético como Dostoievski::',..
--- 186 —
c) A Lenda do Grão-Inquisidor.
O sofrimento omnipresente neste mundo, se para alguns é
meio de purificação, para outros é motivo de revolta contra Deus.
O tipo de tal revoltado é Ivan Karamazov, o frio racionalista, o
. — Palavras de Sóssima (em "Oos Irmãos Karamazov") .
. — Cf. as palavras de Marmeladov (em "Crime e Castigo") : "Ele fará justiça a
todos nós, e nos perdoará aos bons e aos maus, aos sáb ∎ os e aos simples...
depois dirá: "Vinde também; vós, os bêbedos, fracos e impudentes!" E nós
chegaremos sem mêdo e nos colocaremos diante dêle. Então dirá: "Vós,
porcos, vós que vos assemelhais aos brutos, vinde a Mim!" E dirão os sá-
bios e os prudentes: "Senhor, por que deixais vir a Vós também êstes?"
Ele responderá: "Deixo-os vir, porque nenhum dêles se julgava digno de
se aproximar de Mim". E estenderá as mãos sôbre nós, e nós nos ajoelha-
remos com muitas lágrimas, e compreenderemos tudo! Sim, então tudo
compreenderemos, e todos tudo compreenderão! ... O' Senhor, venha o Vos-
so Reino!" — E, em outro lugar: "Não há pecado humano tão vil que seja
capaz de esgotar a misericórdia divina".
(165) . — Mas, visto que à parousia há de preceder a vinda do Anticristo, Dostoïevski
acredita também nas fôrças obscuras que se amontoam "no fim dos tempos":
seu romance "Os Demônios" retrata as tentativas dos ateus e niilistas para
se apoderarem dêste mundo; êste romance profético descreve uns aspectos
diabólicos da Revolução russa.
— 187 ---
(165a). Cf. as palavras de Rieux (em La Peste de A. Camus, Paris, Gallirnard, 1947,
pág. 179): Et je refuserei jusqu'à la mort d'aimer cette création ou des en-
!tants sont torturés.
— 188 —
. — Cf. Mt., IV 1-11; Mc., I 12-13; Lc., IV 1-13. — A primeira tentação (na
ordem relatada por São Meteu) é: "Dize que estas pedras se convertam em
pães" (prosperidade material); a segunda é: "Lança-te daqui abaixo!" (mi-
lagres feitos com o intento de impressionar os homens e de lhes mostrar a
necessidade de adorar a Deus); a terceira é: "Tudo isto te darei, se, pros.
trado. me adorares" (a autoridade humana em vez do amor divino) .
. Cf. R. Guardini, op. cit., págs. 125-171.
-(168) . Dostoïevski desenvolveu a idéia do "omni-homem" russo principalmente por
ocasião das festas do poeta russo Púchkin (1880); seu discurso, que era
uma réplica indireta a um discurso anterior proferido pelo romancista "oci-
dentalista Turguénïev, foi recebido com aplausos de um entusiasmo deliran-
te; "as festas de Púchkin" constituem e apoteose do romancista nacional
Dostoïevski; suas palavras foram, porém, severamente criticadas pelo publi-
cista Constantino Leontiev (1831-1891) . Outra glorificação da Rússia en-
contra-se no "Diário de um Escritor" (1876) . Al. Túchkin (1799-1837),
autor do poema "Eugênio Onegin", do romance "A Filha do Capitão" è de
• raluitas outras obras de grande valor
, elevcat a' literatura russa ao nível da li-
teratura européia.
--- 189 —
(169) . — Mas em "Crime e Castigo" lemos: "O homem russo é um homem vasto, vasto
como seu país, horrivelmente inclinado a tudo quanto é quimérico e desorde-
nado; é uma grande infelicidade ser vasto sem possuir gên'o particular". —
Em "Os Irmãos Karamazov" Dostoïevski quis retratar três Rússias diferentes:
Dmitri é o símbolo da Rússia caótica (ignorante, pecaminoso, mas humilde
e sofredor); Ivan reflete a Rússia "ocidentalista" (inteligente, friamente ra-
cionalista, sem fé); Aliocha é a imagem da Rússia futura (bondoso, com-
preensivo, cheio de fé otimista e místico).
— Cf. as palavras de Dostoïevski ao autor francês de Vogüé (op. cit., pág.
270) : Nous avons le génie de toues les peuples et en plus génie russa;
dono nous pouvons nous comprendre et vous ne pouves nous comprendre,
e esta frase do mesmo autor (1878): "Todos os homens devem-se tornar rus-
sos, russos antes de mais nada. Se a idéia nacional da Rússia é ser "omni-
homem", todos os homens devem-se tornar russos". — E' .o reverso da medalha!
— Cf. o poema de Tiútchev, § 120 III, nota 148.
— 190 —
b) O Misticismo Naturalista.
Tolstoi se pôs a estudar a Bíblia para conhecer as raízes da
fé do povo: estudo pessoal e feito sem intermediários que pode-
riam deturpar ou embrulhar a mensagem evangélica. "Comecei a
crer na doutrina de Jesus, e mudou-se completamente minha vida",
diz o autor . Tolstoi acreditava na doutrina moral do Evangelho
sem acreditar na Pessoa Divina de Jesus: a "religião" tolstoiana
era Cristianismo sem Cristo, eticismo sem implicações dogmáti-
cas de ordem sobrenatural. A essência da doutrina de Jesus es-
tá, segundo o autor, no Sermão da Montanha ("As Oito Bem-
Aventuranças") e principalmente neste versículo: "Eu, porém, vos
digo que não resistais ao mal, mas, se alguém te ferir na tua face,
apresenta-lhe a outra" (177) .
A verdadeira religião, ensinada por Deus, não é revelação de
um Deus exterior às coisas, e sim a plena compreensão da nossa
vida interior, a qual faz parte da Vida Universal. "O Reino de
Deus está dentro de vós" (Lc., XVII 21); todos os homens, também
os mais simples, os mais incultos e os mais pobres, podem realizar
o Reino de Deus por serem bons. Deus é a Vida Universal, —
algo de não temporal e não espacial, — cuja manifestação efêmera
no tempo e no espaço é o homem. A existência individual é um
mal, uma fonte de sofrimentos e, no fundo, não passa de uma ilu-
são (178): o fim de todo o processo histórico é a unificação com-
pleta de tôdas as coisas na sua origem, onde encontrarão a paz
perfeita (Nirvana) . Achamo-nos em pleno panteísmo, panteísmo
de cunho oriental, nutrido pelo pensamento de Schopenhauer e
misturado com uns paradoxos do Evangelho.
O homem, em dado momento da sua evolução histórica, tor-
na-se consciente da miséria e do absurdo da sua existência indivi-
dual, e chega à conclusão de que o significado da vida humana po-
de residir apenas no cumprimento da Vontade infinitamente boa
. — Mt., V 39; cf. Ep. Rom., XII 21: "Não te deixes vencer do mal, mas vence
o mal com o bem!" — Em 1881, Tolstoi dirigia-se ao novo Czar Alexandre
III, pedindo-lhe perdoasse os assassinos do Czar Alexandre II; coisa seme-
lhante foi feita também por Soloviév (cf. § 122, nota 195); os dois russos
procediam i por motivos diferentes e um independentemente do outro.
. — Cf. Ossip-Lourié, Nouvelles Pensées de Tolstoi, n.os 18-19: L'idée suivant
laquelle ia vie humaine n'est pas ]'existente individuelle, cette vérité, acqui-
se au prix du travail moral de Phumanité tout entière pendant des milliers
d'années, est devenue pour l'homme (non animal), dans le domaine moral,
une vérité beaucoup plus indubitable et plus stable que la rotation de la
Cerre et les lois de la gravitation... L'humanité en a fini avec Pidée de la
vie considérée comme existence individuelle; elle ne peut y revenir, ni cublier
que ]'existente individuelle de l'homme n'a pas de seus... Quand Phomme sait
qu'il est une individualité tendant au xxVème but que toutes les individualités
qui Pentourent, ii ne peut plus aspirer á ce bien que sa conscience réfléchie
considère comme un mal, et sa vie ne peut plus consister dans la recherche
du bien individual.
— 193 ---
(179) . Ibidem, n.0 1: Lecteur, qui que tu sois, je t'aime. Bien ioin de vouloir te
chagriner, t'offenser et introduire le mal dans la vie, je ne souhaite qu'une
chore, — t'être utile. Mais j'aurai beau écrire avec le plus de talent pos-
sible, j'aurai beau avoir raison, au point de vue logique, je ne pourrai par
te convaincre, si ton esprit reste froid. Ne raispnnons dono par. Je ne te
demande qu'une chave: consulte ton coeur.
On ne peut que dire: cela est beau, cela est fou, et conclure par
un sympathique sourire (185).
Tolstoi critica também a arte, não só a arte contemporânea,
mas tôda e qualquer obra de arte que não tenha tendências mo-
ralistas. A arte não tem nada a ver com o belo (186), mas deve
servir a moral pública: sua função é eminentemente ética e social .
No fim da sua vida, o romancista russo nega enèrgicamente os produ-
tos literários da primeira metade da sua carreira, e escrevia apenas
ensaios (pseudo-)científicos (187), contos populares (188) ou ro-
mances moralistas (189); apesar da sua grande sensibilidade à
poesia, ao drama e à música, condenava a arte de Sófocles, Dante,
Miguel-Ângelo, Shakespeare, Beethoven, e admirava Uncle Tom's
Cabin como obra-prima (190) .
Em parágrafo anterior (191) já vimos como êle se opunha ao
Progresso técnico e científico; êsses instrumentos de cultura estão
na iminência de sufocar o próprio homem por causa da orienta-
ção imoral que lhes foi dada; mas o autor não duvida de que, um
dia, serão utilizados com grande proveito para o gênero humano;
em geral, tem um conceito utilitarista da cultura, embora em sen-
tido diferente da escola inglêsa (192) .
Afinal, Tolstoi submete a moral sexual — dentro e fora do
matrimônio — a um exame rigoroso, e chega à conclusão de que
o casamento no mundo atual é a mentira mais odiosa de tôdas as
mentiras, e a forma suprema de egoísmo (193) . O ideal do Cris-
tianismo é a castidade absoluta, de acôrdo com Mt. XIX 13: "Há
eunucos que a si mesmos se fizeram eunucos por amor do Reino
dos céus" (cf. I Ep. Cor., VII 33-38) . No casamento, é legítima
(185). — A.-D. Sertillanges, Le Problème da Mal, Paris, Aubier, 1948, I pág. 364.
. — Cf. Ossip-Lourié, Pensées, etc., n.o 285: L'art est une activité humaine qui
consiste en ce qu'un homme exprime consciemment aux autres, au moyen de
certains signes extérieurs, les sentimento qu'il a ressentis, et en ce que ses
semblables se pénètrent de ses sentirrtents et les revivent.
. — Por exemplo: "Crítica de Teologia Dogmática" (1881); "Os Evangelhos"
1881-1882); "Cristianismo e Patriotismo" (1894); "Que é a Arte?" (1897-
1898) .
. — Por exemplo, o conto "De que vivem os Homens", e outros (1881-1886) .
. — Por exemplo, o romance "Ressurreição" (1899-1900) contra a prostituição,
crime social pelo qual o autor responsabiliaa tôda a sociedade (fraco do
ponto de vista estético) •
. — Romance escrito pela autora americana Harriet Beecher-Stowe (1811-1896)
cora o fim de combater a escravatura.
. — Cf. § 69 III e, nota 34.
. — Cf. Ossip-Lourié, Nouvelles Pensées, etc., n.o 214: L'homme simple,
sent sans éducation, occup6 toute se vie à un travail physique, ne déprave
pas sa raison et la conserve dans toute se force et son intégrité. Au con-
traire, l'horrune qui passe toute sa vie à méditer non seulement sur des
sujets insignifiants et futiles, mais sur des sujets auxquels ii n'est pas na-
tarei à l'horrune de penser (o autor pensa aqui também em "especulações
metafísicas", cf. n.o 215 e outros), cet homme pervertit sa raison,
n'est plus libre.
. — Cf. a novela "A Sonata a Kreutzer" e o Posfácio (1889); a brochura "Sôbre
a Questão Sexual" (1901) .
— 196 —
viév anima candida, pia ac vere sancta, dizia seu amigo, o bispo
Strossmayer (199); e todos os que conheceram pessoalmente Solo-
viév, são unânimes em admirar a figura extraordinária do filósofo
errante, o Peregrino insatisfeito do Absoluto (200).
II. Soloviév o Filósofo.
Não escrevemos uma história da filosofia; nosso objetivo é fo-
calizar alguns momentos culminantes da filosofia da história. Mas
para compreender bem esta, são imprescindíveis umas noções con-
cernentes àquela . Para compreendermos bem a interpretação sole-
viana da história, precisamos ter uma idéia geral da sua filosofia.
Pretendemos dá-la aqui, sempre em função do nosso assunto e com
preterição de muitos aspectos que não nos interessam diretamente.
a) Deus e o Mundo.
A existência real de Deus não pode ser demonstrado por um
raciocínio discursivo, mas é objeto de um conhecimento imediato,
de uma intuição mística. Deus é a Unidade de tudo quanto é: o
Absoluto "uni-total". Mas êste Absoluto não poderia existir sem o
"Outro", — igualmente absoluto, — que é o Mundo: o Mundo é o
complemento necessário de Deus, e a "criação" do Mundo é, em úl-
tima análise, determinada por uma antinomia interna dentro do
próprio Deus. Deus tem de manifestar-se no "Outro" que é sua
Imagem. Deus é o Absoluto uno e total que existe; o Mundo é o
Absoluto uno e total que vem a ser (tese panteísta, ou melhor, pa-
nenteísta).
O Mundo possui certa dualidade. Encarado sob seu aspecto
de potencialidade negativa, — isto é, de isolamento possível de
Deus, — é a "matéria prima" caótica; encarado sob seu aspecto de
substrato da manifestação divina, é uma totalidade orgânica e vi-
va . Soloviév acredita, com Platão e Plotino, na "Alma do Mundo",
a qual ocupa um lugar intermediário entre a multiplicidade dos sê-
Czar Alexandre II em 1881 (cf. nota 195); já não lhe era possí-
vel ver no Czar o representante místico do "povo de Cristo". Além
disso, inquietava-o o problema do Raskol russo (cf. § 116 III d);
êste problema religioso podia ser resolvido apenas por uma auto-
ridade religiosa. Mas onde estava a autoridade religiosa da Igreja
russa? No Santo Sínodo? Risum teneatis, amici! (215). Num Con-
cilio ecumênico da Igreja Oriental? Mas o Oriente cristão, divid;-
do em Igrejas autocéfalas zelosas da sua autonomia, nunca conse-
guiu contrapor um "Concílio ortodoxo" ao Concílio de Trent°. Co-
mo explicar essa desvantagem do Oriente sôbre o Ocidente? E'
que àquele falta a universalidade, critério inconfundível da Igreja
de Cristo. Falta-lhe também a autoridade independente dos po-
deres publicos; falta-lhe, afinal, o princípio dinâmico próprio da
Europa. Em virtude dessas considerações, Soloviév já não pode
reconhecer a Igreja oficial da Rússia como "a única verdadeira
Igreja de Cristo" (216); seus dignitários e teólogos são cismáticos
que rasgaram a túnica inconsútil de Cristo; seus representantes
pregam um nacionalismo estreito, incompatível com o caráter uni-
versal do Cristianismo (217). O povo russo recebeu um Cristia-
nismo viciado de Bizâncio, e a herança bizantina foi-se acentuando
cada vez mais com os tempos; ou melhor: os russos, profundamen-
te religiosos mas ignorantes, pediram o Cristianismo e receberam
o bizantinismo, pediram pão e receberam pedras; sem querer e
s,-na saber, o povo de Vladimiro foi sendo separado da unidade cri!;-
iã; entre a Rússia e a Igreja de Cristo não há heresias, mas só mal-
entendidos que devem ser liqüidados por atos de amor recíproco e de
compreensão mútua (218); o povo ortodoxo da Rússia, ao invés da
1,9,3eja oficial da Rússia, faz parte da Igrei(., universal; cabe ao povo
rtiso expiar os pecados históricos de Bizâncio.
a) Os Pecados de Bizâncio.
Bizâncio deu à Rússia um Cristianismo viciado por separa-
Cesaropapismo e estagnação anti-histórica. Os tempos inau-
gurados pelo Evangelho já não admitem o "messianismo" ou a idéia
de um "povo eleito"; a Cristandade é o Corpo de Cristo; o domí-
nio de Cristo-Rei é universal. A vocação de um povo é seu ser-
viço de Deus na história mediante uma contribuição específica
para o bem da humanidade. L'idée d'une nation n'est pas ce qu'el-
le pense d'elle-même dans le temps, mais oe que Dieu pense d'elle
dans l'éternité (219); longe de criar direitos, impõe graves obriga-
ções; manifesta-se, não em proclamações estrepitosas de superio-
ridade, mas em atos de abnegação heróica e num esfôrço contínuo
de se superar-se a si mesmo no plano moral. Cada povo possui
sua missão histórica (220), e cada povo, a certa altura da sua evo-
lução, está exposto ao perigo de um exclusivismo orgulhoso. Foi
o que sucedeu a Bizâncio: não quis submeter-se ao Papa de Roma,
apesar de serem unânimes os Padres e os Concílios em reconhecer
a primazia papal.
Os Imperadores bizantinos escolhiam sempre o partido dos
heresiarcas separatistas, principalmente no que diz respeito àquele
dogma que é a pedra angular do Cristianismo: a Encarnação (220a).
Os Imperadores Constâncio (337-361) e Válens (364-378) opta-
ram pelo arianismo, que nega a consubstancialidade do Lógos com
Deus e, portanto, a realidade da Encarnação de Deus; o nestorianis-
mo, que admite em Cristo duas pessoas (a divina e a humana), foi
apoiado pelo Imperador Teodósio II (408-450); mas o mesmo Im-
perador não hesitou em apoiar também a heresia oposta ao nesto-
rianismo, a saber, a doutrina dos monofisitas que admite em Cristo
só a natureza divina; assim foi sendo preparado o caminho para a
heresia dcs iconoclastas dos séculos VIII e IX, que se opunha a
tôda e qualquer representação plástica ou pictórica de Cristo, ten-
dendo a tornar cada vez mais invisível a Igreja de Deus, a ponto
de se poder manifestar apenas o Estado.
(219). — J. Gauvain, op. cit., pág. 23; cf. pág. 110: L'adoration de notre peuple
comine porteur privilégié de la vérité universelle, puis l'adoration de ce
peuple =urre force élérnentaire, en dehors de toute vérité; enfin l' adora-
tion des caracteres exclusifs et des anomalies historiques qui distinguent ce
peuple de l'humanité civilisée, c'est-à-dire la négation de l'idée même de
vérité universelle, voilà les pheses successives de notre nationalisvne, fidèle-
ment représenté par les slavophiles.
(220) . — Soloviév esforça-se por descobrir a "missão histórica" dos espanhóis (in La
Justification du Bien, págs. 291-294), a dos judeus (apud J. Gauvain, op.
cit., págs. 64-76), a dos poloneses (ibidem), etc. — Sôbre a vocação da
Rússia, cf. ibidem, págs. 79-82.
(220a) — definição clássica das duas naturezas de Cristo foi formulada no Concílio
de Calcedônia (451), cf. Denzinger, n.o 148.
— 207 —
(232) . — Ibidem, pág. 161: Le nouveau dominateur de ia terre était avant tout un
grand philanthrope; il n'était pas seulement philanthrope, mais aussi zoophi-
le. II était lui-même végétarien; il interdit ia vivisection et institua un con-
trôle sévère sur les abattoirs; les sociétés protrectrices des animaux reçurent
--- 211 —
— Ibidem, pág. 180; o staretz João refere-se às palavras de Cristo (Ev. João,
XVII 11): ut omnes onum sint; o professor Emst Pauli diA ao Papa: Tu es
Petrus (Mt., 18); "jetzt ist es ja gründlich erwiesen und ausser jedem
Zweite! gesetzt" (= "agora está terminantemente provado e pôsto fora de
qualquer dúvida"); o mesmo professor diz ao staretz: "So, (liso, V ãterchen,
nun sind wir ja eins in Christo" (= "Pois bem, paizinho, agora estamos
unidos em Cristo").
— Soloviév revela-se aqui adepto do milenarismo, cf. § 79 III, nota 58a e Lactan-
tius, Div. Inst. VII 24.
— Cf. o "neo-cristianismo" do romancista russo Dimitri Merejkovski (1865-
1941), autor da célebre trilogia Cristo e o Anticristo (I Juliano o Após-
tata; II Leonardo da Vinci; III Pedro o Grande) e de inúmeros ensaios.
— 213 —
dade humana, luta essa que não foi coroada imediatamente de uma
vitória definitiva ou completa.
Na Idade Média, o homem afasta-se da natureza, outrora ve-
nerada como divina; começa a travar uma luta renhida contra a na-
tureza, dentro e fora de si (ascetismo, fuga do mundo, cavalaria,
etc.) . Sem dúvida, origina-se um dualismo sem fundamento onto-
lógico: o entre a alma e a natureza, mas devemos reconhecer que
êsse dualismo foi (provis6riamente) salutar e (históricamente) ne-
cessário. A pessoa humana, a caminho de realizar-se, vai-se livran-
do dos elementos inferiores da natureza e concentrando em si as fôr-
ças espirituais. Na Idade Média, perdeu-se a unidade precária que
o helenismo estabelecera entre o Ocidente e o Oriente: l'Orient
ckvient de plus en plus statique puisqu'il reste non-chrétien et tout
le dynamisme historique se trouve désormais concentré en Occident
(252). Mas a Idade Média, com seu ideal teocrático, tinha que pe-
recer, porque o "Reino de Deus" não pode ser imposto ao gênero
humano por nenhuma autoridade exterior .
A Renascença é uma tentativa de emancipar o homem do an-
tigo quadro teocrático, em nome do homem; o homem renascentista
dirige-se outra vez para a natureza, considerando-a, não como um
ser animado ou divino, e sim como um mundo mecânico que quer
dominar: tenta combinar a liberdade cristã com o naturalismo pa-
gão Também o homem vai-se reputando um ser natural. La Re-
naissance est la lune de miei de Phomme de Phistoire moderne: il
se sent libre dans l'emploi de ses forces, et il se reconnait en même
temps étroitement rattaché à la vie de la nature et à l'antiquité qui
en était inséparable (253) . A Renascença foi uma época indispen-
sável na evolução da humanidade, porquanto deu ao homem a opor-
tunidade de experimentar até o fim sua liberdade criadora, o que
fôra impossível durante o regime teocrático da Idade Média. Mas,
ao mesmo tempo, arrancou o homem das suas origens divinas, o que
teve por conseqüência a ruína do homem enquanto é imagem de
Deus (254). Êste humanismo autônomo devia resultar numa ter-
rível ilusão: a liberdade criadora do homem renascentista deu ori-
gem ao "homem técnico". Introduziu-se no mundo ocidental a má-
quina: un troisième élément qui n'est ni humain ni naturel acquiert
un pouvoir terrible et sur l'homme et sur la nature; il desarticule
I'être hurnain, le divise et fait en sorte qu'il cesse d'avoir le carac-
. — Le Sens de l'Histoire, pág. 106.
. — Ibidem, pág. 113; a Reforma é, segundo Berdiáïev, um fenômeno bastante
paradoxal: sob o seu aspecto positivo, é uma afirmação enérgica da liber-
dade religiosa do homem; sob o seu aspecto negativo, é a negação cio valor
humano perante Deus; o Protestantismo "protesta", portanto, contra o auto-
ritarismo católico bem como contra o humanismo católico.
. — Ibidem, pág. 113: On ne peut pas libérer l'homme au nom de la liberté
de Phomme, l'homrne ne pouvant être la fin de l'homme.
-220 —
tère naturel qu'il possédait jusque là. C'est cette force qui a le plus
contribue à la fin de la Renaissance (255). Eis a tragédia do ho-
mem renascentista: acabou sendo devorado por seus próprios pro-
dutos. Nietzsche e Marx marcam o fim da época humanista no rei-
no da ideologia: aquêle por considerar o homem histórico como um
instrumento para construir o Super-Homem; êste por sacrificar o in-
divíduo à coletividade.
c) A Nova Idade Média (255a) .
A consciência cristã não pode resignar-se com esta situação do-
lorosa, e vive na expectativa de uma evolução ulterior: o homem vin-
douro tornará a ver no Kósmos um reflexo da vida divina, mas
combinará esta crença com um domínio espiritual sôbre a natu-
reza. Anuncia-se a vinda de uma Nova Idade Média .
O homem do século XX vê o desmoronamento do mundo
burguês, e vai descobrindo a Deus, ou então cai no poder de Sa-
tanás. Terminou a época de neutralidade religiosa; a nova alter-
nativa será: Deus e o homem, ou então, Satanás sem o homem.
Toute la vie et tousi les aspects vont se placar sous le signo de la
lutte religieuse, de la lutte des extrêmes príncipes religieux: l'épo-
que de la lutte aigüe entre la religion de Dieu et la religion du dia-
ble. . . C'est pourquoi le communisme russe, avec le déroulement
du drame religieux, qu'il comporte, appartient déjà au nouveau
=yen âge, et non plus à la vieille histoire moderne (256).
Na Nova Idade Média haverá menos igualdade do que agora,
mas nada de fome e de miséria; a cultura espiritual será mais re-
quintada e complexa, e a cultura material será mais simples e
elementar; o princípio de propriedade privada será conservada, mas
não sem restrições: antes de mais nada, será espiritualizado; findar-
se-á o racionalismo para ceder seu lugar a um super-racionalismo de
tipo medieval; a Igreja, "o Kósmos cristianizado", irá desempenhar
um papel de destaque, um papel cósmico: ela, em vez de ficar ti-
midamente estranha às realidades terrestres (Oriente) ou de impor
sua autoridade aos fiéis sem respeito pela dignidade humana (Oci-
dente), se porá à tarefa de santificar o mundo interiormente; o re-
conhecimento espontâneo de valores transcendentes animará também
a cultura profana; ou melhor, não haverá mais uma cultura profana,
II . A Tese Eslavófila.
Ora, o "éon" do homem prometéico está para terminar; o ho-
mem russo, uma vez libertado do julgo bolchevista, iniciará nova
época, o "éon" de santificação, de harmonia. de amor universal. A
Rússia bolchevista semeia divisão no corpo moribundo da velha
Europa, e até o fascismo está prestando serviços para o triunfo da
idéia russa, pois o fascismo há de terminar em guerras fratricidas,
das quais só a Rússia poderá aproveitar-se.
Schubart apresenta-nos imagem simpaticíssima e arrebatadora
do homem joanino, contrapondo-o ao homem prometéico que faz fi-
gura muito triste neste confrônto. O homem joanino transforma-
se num revolucionário apocalíptico e fanático, chegando a odiar ter-
rivelmente o mundo, quando desespera poder salvar e harmonizar o
mundo; agora está atravessando esta fase dolorosa da sua existência
(no comunismo russo); mas, livrado dos maus demônios que o mo-
lestam atualmente, há de regenerar o mundo, estabelecendo nele o
Reino de Deus e realizando a imagem divina do homem.
O homem russo é religioso: não abusa da religião para fins po-
líticos, mas torna religiosa a política; é humilde, cheio de remorso e
livre; não avalia o homem pelo dinheiro. O dinheiro, no mundo
ocidental, é quase sempre título de orgulho, na Rússia provoca a
reação de uma consciência má. O homem europeu é, no fundo, pes-
simista, desconfiado e mesquinho (seguros, contratos e regulamen-
tos); o homem russo é otimista, cheio de confiança e generoso. Os
russos têm intuição e procuram a profundidade; os ocidentais são
homens da superfície e obedecem à ditadura da razão, que esmaga
as fôrças elementares da vida . O ideal moral do europeu é o do-
mínio sôbre si mesmo, o russo quer entregar-se sem reserva ao mun-
do e ao próximo. O russo é homem universal, o europeu é técnico
e especialista. O povo russo sabe sofrer, tem piedade dos crimino-
sos e julga-se responsável pelos pecados de outros; os povos ociden-
tais adoram os prazeres mundanos e expulsam o pecador impiedosa-
mente do seu meio. O homem europeu exalta-se como o fariseu, o
homem russa humilha-se como o publicano. O russo é essencialm94-
te religioso, até no seu ateísmo: êle crê no . seu ateísmo; o europeu
é ateu por indiferentismo ou por amor-próprio. O homem russo
procura estabelecer a Igreja Universal, o homem do Ocidente é sec-
tarista. A alma russa é feminina, receptiva e extasia-se no dom to-
tal de si mesma; o europeu é masculino, brutal, possuído da vontade
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (XI)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 31, pp 133-227, jul./set. 1957. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/031/A007N031op.pdf
— 227 —
. — Europa und die Seele des Ostens, págs. 174-175: Im Gegensatz zum pro-
metheischen Menschen hat der Russe christliche Tugenden als konstante Na-
tionaleigenschaften. Die Russen waren Christen, bevor sie sich zum Chris-
tentum bekannten. Christen ohne Christus. Gerade dem Geiste des Neuen,
nicht dem Geiste des Alten Testaments stand der Russe in idealer Weise
offen. Vom alten Testament sagten nur die Erbsündelehre dem russischen
Schuldgefühl, die messianischen Verheissungen dem russischen Erldsungsvertangen
zu. Als Mensch der Endkultur ist er religiiis und für die Umevelt empfãnglich...
. — Cf. Joseph Folliet, L'Avènement de Prométhée, Lyon, Chronique Sociale
de France, 1951, pág. 213: (Les révolutions) n'arrivent pas à remplacer
les religions anciennes. L'homme nouveau qu'elles créent ressemble singu-
lièrement au vieil bom= de l'Écriture, à I' éternel Adem assoif fé de plaisir
et de dominetion, esclave de la triple concupiscence. Elles suprriment les
crises de régiments anciens, mais elles provoquent de nouvelles crises. ..
Elles ne sont que des formules de transition qui se prennent pour des réus-
sites étemelles, des auberges prétentieuses, mal éiquipées et mal famées oit
l'humanité s'arrête un instant avant de reprendre sa marche.' Também
o homem joanino será o "velho Adão".
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (X)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 35, pp 149-237, jul./set. 1958. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/035/A009N035op.pdf
QUESTÕES PEDAGÓGICAS
INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS
HISTÓRICOS (X) .
QUARTA PARTE
CAPÍTULO OITAVO
AMEAÇAS E PROMESSAS.
c) O Pan-historismo.
O filósofo italiano B. Croce (10) é autor brilhante, a casar
um espírito ágil e vivo a uma cultura extraordinária; menos pro-
fundo do que Bergson, exerceu grande influência, também fora da
sua pátria, sobretudo com as suas teorias estéticas. Renovador bem
latino da filosofia hegeliana (o "neo-idealismo"), mostra-se, em as-
suntos históricos, também adepto de Vico ("o homem possui co-
nhecimento perfeito só daquilo que faz", cf. § 83 I). Para Croce,
— pelo menos, em certa fase da sua carreira filosófica, — tôda a
realidade é histórica, e o único verdadeiro saber humano é o co-
nhecimento histórico; a filosofia é só um dos elementos constituti-
vos do conhecimento histórico, sendo o elemento universal de um
pensamento cuja concreta existência é individual. Tôda a realida-
de é histórica, também a natureza: os fatos físicos, enquanto são
acontecimentos singulares e concretos, fazem parte da história, e
neste sentido poderíamos dizer que a natureza é uma realidade.
Mas a natureza, enquanto concebida como um sistema de leis abs-
tratas e gerais, — construções arbitrárias, mas de grande valor prá-
tico, — não possui realidade, pois as leis físicas lidam com "pseudo-
conceitos", por fazerem abstração da existência concreta e da indi-
vidualidade dos fatos particulares, os únicos que, na realidade, ocor-
rem. Os conceitos elaborados pela filosofia são, porém, universais
e necessários ("conceitos puros"), mas, como tais, não passam de
simples funções do pensamento que se certifica de si mesmo: atua-
lizam-se num contacto imediato com os fatos concretos da reali-
dade, levando o pensamento a adequar-se perfeitamente ao real.
As representações da história, ao contrário das do mundo das artes,
não são puras intuições, visto que ocasionam juízos que implicam a
existência objetiva do seu conteúdo: os elementos intuitivos (o su-
jeito) de tais juízos estão fundamente impregnados de "conceitos
puros" (o predicado). O conhecimento histórico possui, portanto, o
caráter concreto da intuição artística e a universalidade do conhe-
cimento filosófico; o fato histórico possui a verdade universal, ou
melhor, identifica-se com ela, sendo a encarnação particular do uni-
versal. Eis as linhas essenciais do storicismo assoluto de Croce.
Para êle, não há pensamento que se eleve acima do fluir do tempo:
coincidem o fato e a verdade, o ato e o valor, o pensamento hu-
mano e o pensamento divino; as experiências concretas do espírito
humano constituem a única realidade, sem que haja, como Hegel
admitia, uma síntese absoluta. Também Croce frisa a necessidade
de "reviver" o passado humano, ou melhor: as experiências concre-
(10). — Benedetto Croce (1866-1952) escreveu entre outras obras: La Storia rldotta
sotto concetto generale dell'Arte (1893); Logica (1905); Teoria e Storia
dela Storiografia (1917) •
— 155 —
(26) . — Paul Valéry, La Crise de I'Esprit, in Variété 1, Paris, Gallimard, 1924, págs.
11-12.
,(27) . — Por exemplo, Nietzsche, Kierkegaard e Dostoïévski. — H. J. Schoeps,
Vorlãufer Spendlers, Leiden-K.51n, 1953, chama também a atenção para dois
outros "precursores" de Spengler: Karl Vollgraff (1792-1863) e Peter Emst
Von Lasaulx (1815-1861), mas o têrmo "precursor" nos parece pouco con-
vincente.
— 161 —
(28). — A obra foi concebida em 1912, e o primeiro volume de "O Declínio do Oci-
dente" saiu em 1918, tendo sido red'gido numa época em que o autor ainda
tinha muita esperança na vitória das armas alemãs; a tese do livro não
foi, portanto, inspirada ao autor pela derrota da Alemanha, mas a reper-
cussão enorme da obra, não só na Alemanha como também nos outros países
ocidentais, explica-se pelo estado geral de mal-estar que se seguia à primeira
guerra mundial. — Nós nos servimos da 76a.-81a. edição alemã (München,
Becker, 1950). — Além disso, publicou Spengler a brochura: Preussentum
und Sozialismus (1919), e o livro: Jaime der Entscheidung (= "Anos Decisi-
vos", 1933). Os ensaios do autor como também sua tese acadêmica (consa-
grada a Herácrito) foram editados em 1937 sob o título de Reden und
Aufsütze (= "Discursos e Ensaios").
(28a). — Segundo Spengler (Untergang, I pág. 27), a humanidade não possui ne-
nhuma finalidade e nenhum significado: Die Menschheit ist ein zoologischer
Begriff oder eM leeres Wort (m "a humanidade é um conceito zoológico ou
uma palavra ôca"); o pseudo-conceito de teleologia dentro das ciências é a
inversão mecanicista do princípio da causalidade, sendo uma caricatura da
idéia do Schicksal (ibidem, I pág. 156). — Quanto à negação do significado
da palavra "humanidade", cf. a opinião do filósofo russo Danilevski (§ 120
IV); quanto à negação da "teleologia" histórica, Spengler não consegue ne-
gá-la aos organismos culturais, dizendo que cada um dêles "cumpre o seu
destino" e "realiza uma idéia intrínseca" Há, portanto, segundo êle, um
finalismo parcial, mas não existe um finalismo universal.
Revista de História n. 0 35
— 162 —
— Ibidem, I pág. 75: Ein Werden kann nur erlebt, mit tiefen wortlosen Ver-
stehen gefühlt werden; cf. I pág. 152.
Ibidem, I pág. IX e pág. 65, nota 1, onde Spengler cita as palavras de
Goethe (cf. Gespriáche mit Eckermann, 13-2-1829): "A Divindade atua só
em coisas vivas, não em coisas mortas; só no fieri, não no facturo", etc. Em
alemão: Die Gottheit eber ist wirksam im Lebendigen, aber nicht im Toten;
sie ist im Werdenden und sich Verwandelnden, aber nicht in Gewordenen und
Erstarrten. Deshalb hat auch die Vernunft in ihrer Tendenz zum Giáttlichen
es nur mit dem Werdenden, Lebendigen zu tun, der Verstand mit dem
Gewordenen, Erstarrten, dass er es nutze. — Cf. § 114 Ia.
— Spengler bergsoniano?! Risum teneatis, amici! A antítese spengleriana (tem-
po-natureza; vida-extensão) é urna caricatura inapta e inepta da doutrina
do filósofo francês; Spengler nunca faz menção nem de Bergson, nem de
Dilthey; menciona, sim, Leibniz (monadologia!), em que venera um pre-
cursor de Goethe.
— Cf. A. Messer, Oswald Spengler ais Philosoph, Stuttgart, Strecker 13s Schra-
der, 1922; A. Fauconnet, Oswald Spengler, Paris, Alcan, 1925; J. G. de
Seus, O Futuro do Ocidente, Livraria Clássica Bra sileira, Rio de Janeiro,
s. d., págs. 25-52.
— Quanto às contradições internas e à falta de clareza no que diz respeito
ao nascimento de uma "alma coletiva", cf. A. Messer, op. cit., págs. 44-49.
— 163 —
(37). — Também o próprio Spengler presta relativamente pouca atenção (muito me-
nos do que Toynbee) às outras culturas. O símbolo fundamental da culí-
tura egípcia parece-lhe a "pedra" ou o "caminho" (cf. Der Untergang, I págs.
241-245; o autor não consegue exprimir seu pensamento com clareza, cf.
pág. 15), o da cultura chinesa uma "senda através de uma paisagem ame-
na" (cf. ibidem, I pág. 244, e II pág. 350; também aqui a mesma obscuri-
dade). Entendam isso a quem foi dada a decifração dos enigmas spengle-
rianos!
— 165 —
als Ausdruck riitselhaf ter, die Welthiihle mit ihrer geistigen Substanz durch-
dringender Mãchte, — und sie schloss die Szene durch einen Goldgrund ab.
— Cf. nota 40.
(44) . — Dr. Jorge Faust (1480-1540) foi humanista, médico e alquimista na Ale-
manha: considerado pelo povo como feiticeiro, Faust tornou-se figura lendária
que teria vendido sua alma ao diabo para dominar o mundo e para gozar
da vida. O dramaturgo inglês Christopher Marlowe (1564-1593) compôs um
drama Doctor Faustus. O tema de Fausto entrou na literatura mundial pelo
célebre drama de Goethe em duas partes (I: 1808; II: 1831) : o Faust
de Goethe é a personificação da humanidade que sempre aspira a coisas
inacessíveis, nunca encontra plena satisfação em nenhuma obra realizada,
amiúde erra, mas jamais se esquece completamente do seu eterno destino.
Cf. Faust, I Prolog: Ein guter Mensch m seinem durilden Drange ist sich
des rechten Weges wohi bewusst (328-329) .
— 168 —
. — Der Untergang, I pág. 394: Die russische, willenlose Seele, deren Ursymbol
die unendliche Ebene ist, sucht in der Brüderwelt, der horizontalen, dienend,
:lamentos, sich verlierend aufzugeben. Von sich aus an den Nüchsten denken,
sich durch Nüchstenliebe nttlich zu beber:, für sich büssen wollen, ist ihr
ein Zeichen westlicher Eitelkeit und frevelhaft wie das In-den-Hinirnel-dringen-
Wollen unsrer Dome MI Gegensatz zur kuppelbesetzten Dachebene russischer
Kirchen. — Cf. ibidem, I pág. 258, nota 3.
. — Exemplos de ta 's mitos são: o mito olímpico (na Grécia); os Evangelhos
(na cultura arábica ); as epopéias germânicas e as lendas medievais (na,
cultura faustiana) .
. — Segundo Spengler, a nobreza é símbolo do tempo, afirma heróicamente o
Destino, e sua atitude perante a vida é a de um perpétuo "sim"; a classe
sacerdotal diz "não", e simboliza o espaço, procurando a "sagrada causalida-
de". — A burguesia não constitui uma classe social no sentido próprio da
palavra, mas é só "partido", partido de contradição e desprovido de todo e
qualquer simbolismo. — O camponês não pertence à história, mas .à natureza.
-170 —
A Civilização.
Destarte se inicia a Civilização, a fase final de tôda e qual-
quer cultura: ela anuncia inexoràvelmente a morte da alma cole-
tiva que deu origem ao organismo cultural. A Civilização é estag-
nação da vida: já não cria, mas só consome; já não conhece a exu-
berância viçosa das épocas anteriores, mas leva uma existência pu-
ramente vegetativa. Na Civilização, "ex-anima-se" (alemão: entseelt
sich) uma cultura, isto é, perde aos poucos sua fôrça vital. Cultura
é expressão orgânica, Civilização é entorpecimento mecanicista;
aquela vive de mistérios, esta se interessa só por problemas. Reina a
Razão, atrofiam-se os instintos. O homem de uma Civilização
adiantada torna-se "super-consciente", o que constitui uma grave
doença para a vida: só um doente "sente" os seus membros. A
— 172 —
(51) • — O "racismo" de Spengler não é sistema "científico" (cf. § 114 II): "raça"
é algo que se sente e vive, mas não se mede e pesa; não os ossos nem o
esqueleto são fatôres decisivos, e sim a carne, o olhar, a mímica, a ar-
ticulação, o riso, a expressão do rosto, etc. Falar muito em "raça" é prova
de iá não tê-la; a coisa importante não é a "raça pura", mas a "raça forte",
cf. Der Untergang, II págs. 132-188, e Jahre der Enmiheidung, págs. 170-179.
— Cf. Jahre der Entscheidtmg págs. XII-XVI. — O autor mostra certo senso
crítico em relação à "vitória muito fácil" dos nazistas em 1933; o Partido
proibiu a menção de Spengler em revistas e jornais.
O autor não tem muita confiança no futuro da América do Norte; sem dúvi-
da, os Yankees são, na maioria, germanos e possuem o grandioso ímpeto
faustiano; mas já não são nutridos pelo solo materno da cultura ocidental;
além dêsse derarraigam.nto. sofrem do espir . to mercantil, próprio da Civi-
lização, não da cultura; a América simboliza a vontade do poder, mias sem
organicidade, só num plano mecanicista; os americanos não têm "Estado"
prèpriamente dito( cf. a Inglaterra), posuiem um proletariado imenso nos
inúmeros pretos, e pensam só em categorias de economia; falta-lhes o senso
trágico, peculiar a uma verdadeira cultura. — Quanto a êste último ponto,
cf. L. Dermigny, U.S.A., Essai de Mythologe Américaine, Paris, Pressas
(Jniversitaires de France, 1956, págs. 59 e 104.
— Spengler (in Der Untergang I pág. 54) aconselha aos jovens que se dedi-
quem à técnica e não ao lirismo, à marinha e não é pintura, à política
e não à epistemologia. Findou a época de um Rembrandt e de um Goethe,
mas é possível, — e até necessário, — produzir um César.
— 175 —
— O autor (in Der Untergang, II pág. 15) cita uma palavra de Goethe:
Das Schaudern ist der Menschheit bestes Teu].
— Cf. ibidem, I pág. 215: Es besteht ein tiefer und früh gefühlter Zusarn-
menhang zwischen Raum und Tod.
— Spengler, Preussentom und Sozialismus, pág. 81: Das Leben ist das erste
und letzte, und das Leben hat kein System, kein Prograrrn, keine Vernunft;
es ist für sich selbst, und durch, sich selbst da, und die tiefste Ordnung, in
der es sich verwirklicht, lãsst sich nur schauen und fühlen, — und dann
vielleicht beschreiben, aber nicht nach gut und büse, richtig und falsch,
nützlicht und wünschenswert zerlegen.
— Spengler, Jahre der Entscheidung, pág. 15: Der Mensch ist ein Raubtier•
Ich werde es immer wieder sagen. All die Tugendbolde und Sozialethiker,
die darüber hinaus sem oder gelangen wollen, sind nur Raubtiere tnit aus-
gebrochenen Zãhnen, die andere wegen der Angriffe hassen, die sie selbst
weislich vermeiden... Wenn ich den Menschen ein Raubtier nenne. wen
habe ich damit beleidigt, den Menschen oder das Tier? Denn die grossen
Raubtiere sind edle Geschüpfe, in volkommenster Art und ohne die Veria-
genheit menschlicher Moral aos Schwãche... Der Kampf ist die Urtatsache
des Lebens, ist das Leben selbst...
(61) . — Christopher Dawson, Progress and Religion, London, Sheed & Ward, 1938,
pág. 46.
o
— 180 —
e) Unidades Históricas?
As civilizações, tais como foram identificadas por Toynbee,
não constituem "unidades naturais", no sentido de não serem dados
objetivos e imediatos que se apresentam forçosamente com a mes-
ma evidência interna a todos os pesquisadores; antes são segmen-
tos cortados do imenso caudal da história, cortados, é verdade, não
com arbitrariedade total e sim conforme certos critérios objetivos,
mas sempre originados por um ponto de vista muito relativo (85).
Prova-o o fato de que outros historiadores, ao estudarem a histó-
ria universal, chegaram a unidades históricas bem diferentes (por
exemplo, Spengler, Weber, etc.) . Quem demonstrará terminante-
mente a unidade fundamental da história greco-romana? Não será
possível representar a' Grécia e Roma como duas entidades, origi-
nàriamente muito diferentes, mas que, por uma contingência his-
tórica, acabaram por fundir-se numa unidade mais ou menos inci-
dental? Não poderemos escrever a história da cultura ocidental,
concebendo-a como a continuação direta da helênica, enriquecida
(ou deturpada) com elementos latinos e judaicos?
As civilizações assinaladas por Toynbee fornecem ao histo-
riador abundante material precioso para fazer um estudo compara-
tivo das culturas, mas seu critério de selecionáJlas não exclui a pos-
sibilidade de haver outros cortes, cujo estudo não é menos fecundo
para a historiografia.
Outro inconveniente do método adotado por Toynbee é o fato
de que sua concepção cíclica da história nos ofusca a vista daque-
les elementos históricos que apresentam uma evolução mais ou
menos continua através dos séculos, — a ciência e a técnica. A
teoria dos ciclos históricos, sustentada conseqüentemente, deve le-
var com uma lógica interna à negação de todo e qualquer pro-
gresso histórico. Sem dúvida, Toynbee não nega o progresso (86);
ao contrário, admite-o, apregoa-o e quer preparar a humanidade
contemporânea para uma tarefa grandiosa, mas é problemático até
que ponto tal confiança otimista nas possibilidades humanas se coa-
duna com suas unidades cíclicas selecionadas em razão de métodos
pretensamente empíricos.
III. "Desafio e Resposta".
Antes de acompanharmos a vida das civilizações precisamos
deter-nos alguns momentos diante da pedra angular da teoria de
Toynbee: a "lei" de Challenge-and-Response, idéia fundamental da
(85) . Ao que parece, o protótipo de uma civilização foi, para Toynbee, a greco-
romana, sôbre cujo padrão modela a estrutura e a história de outras civili-
zações, o que, muitas vêzes, não consegue fazer sem forçar os fatos.
(86). — Cf. infra, VII.
— 188 --
lengë nts itself eVer mie in4steritfy ahd in aA'evér' More' for-
'shaPe,"until at it quite dominate and: bbsesses and
pverwhelms the iinh — a.P.Py sóills that are being . Progressively defea-
'tád'Sk it -09)."Tárnbém rzuí
aqui não reiná a 'implacável Necessidade,
porque nunca podemos predizer bom certeza - que um indiyíduo ou
. •
uma sociecade grayernente doente nao possa recuperar-se. Toyn-
bee diz, com o ateniense Sólon; Rèspice finem (100) e julga que
"os sofrimentos podein ser ensinamentos" (101).
A- epoca de decompósiçao . (desintegration) caráctérizd-se pe-
ia preSeWça de Várias''''cisõe'S". Comhate m-se as diversas' organiza-
ç oes polít icas que 'cohftittiem o conjunto de "iima "civilização, em
ções
›gliérrá'S i'm'Piedósa's e fratricidas. Internamente, o
corpo social é ilexado'peti- revoluções e atos brutais de ()Pressão so-
cial é econômica. A essas cisões sociais corresponde um Schism
• c . -
in 'the Sel..;1:- •- t-•"-
'A minoria dominaddra, 'agora completamente estéril e petri-
ficada, provoca, sem' querer, o nascimento de novas minorias cria-
doras: uma dela's, comfids'tá de militaristas e de piofiteurs, cria
the Universal State (101aS pondo ferino à "Época das Perturba-
ções" (102); outra 'minoria, proYinda do "proletariado interno" e
'irispirácid -'Por" escolS. filóSófida, Cria - the 'UniVersal'Cliurch. Fora
do território da civiliiação, formamsé bandós de guerreiros (o
"proletariado' externo"), prestes a' invadir o organismo moribundo.
Mas riem o' Império Univers'al nem as hordas de bárbaros invaso-
res têm futuro: só 'à Igreja - Universal cabe ligar o futuro com o
'passado, sendo i'crisálida de 'uma futura civilização (103).
Uma civilização crescente irradia as suas luzes ao longe, che-
gando a deslumbiár com o' seu prestígio os bárbaros vizinhos que,
hão raras vêzes, acabam por ser integrados na civilização admirada;
mas uma civilização decadente é só capaz de transmitir-lhes certas
organizações sociais e políticas e, sobretudo, certos inventos téc-
nicos e armas militares que, com o tempo, serão dirigidas contra a
(99). — Ibidem, V pág. 13.
,(100) . — Palavra .atribuída por um poeta anônimo (in Anthologia Palatina, IX 366; cf.
Herodotus, Historiae, I 32, 5) a Sólon; geralmente, cita-se dêste sábio e es-
tadista ateniense a palavra: "nada demasiadamente" (grego: medèn ágen) .
— Palavra de Aeschylus, Agarnemnon, 146: páthei máthos (cf. § 73 Ic, nota 16) .
(101a) . — A fundação de "Estados Universais" é geralmente saudada pelos contem-
porâneos com sentimentos de entusiasmo caloroso ou, pelo menos, aceita com
certa resignação (cf. nota 117); uma vez consolidados, apresentam-se à ima-
ginação dos contemporâneos como construções eternas (cf. Roma eeterna,
§ 73 lie) e, mesmo muitos séculos depois do seu desmoronamento, continuam
fascinando a imaginação da posteridade. Na realidade, não passam de Indian
Summers, cf. Toynbee, A Study of History, IV pág. 59.
— O têrmo "Época das Perturbações" foi sugerido a Toynbee por um episódio
da história tussa, que já encontramos no § 116 III, nota 36 (em russo:
Vrémia Strrutnáie) •
— Nos volumes escritos depois da Segtinda Guerra Mund , d, Toynbee passa
a ter outra idéia do , papel histórico das "Igrejas Universais", cf. infra VIII.
-- 195 —
tários externos" (107) . Esta época é the heroic Age do povo gre-
go, e seu. "ethos" guerreiro revela-se-nos ainda na Ilíada de Home-
ro. Com o tempo, os aqueus conseguiram destruir a "talassocracia"
cretense, acontecimento histórico comparável à invasão dos bár-
baros no Império Romano. Quando, por volta de 1200 a. C., os
dórios começaram a penetrar na Grécia, os aqueus achavam-se dian-
te de outro desafio: deviam assumir a herança da "talassocracia"
cretense, restabelecendo a ordem no Mar Egeu: the first question
waa whether a new order would assert itself in this void and form-
less world . Would the sediment of an olor civilization be buried un-
der the shingle which the new torrent of barbarism had brought
down in spate?. . This first challenge to the life of the infant
Hellenic Civilization was victoriously met. . .; and (the) victory
decided that Hellas should be a world of cities and not of villages>
of agriculture and not of pasturage, of order and not of anarchy
. Depois de ter alcançado esta primeira vitória, a Grécia
aumentou em prosperidade e em população, mas êsse crescimento'
não tardou em criar outro desafio: o problema da superpopulação,
tão freqüente no mundo antigo. Os gregos deram-lhe uma resposta
apropriada por estabelecerem colônias em volta do Mar Mediter-
râneo; a colonização estimulava-os a melhorar sua técnica de guer-
ra e sua arte de navegação; o comércio começava a prosperar.
Passados alguns séculos, duas cidades gregas, Atenas e Esparta,
enveredaram por dois caminhos diferentes para solucionar os pro-
blemas provenientes da superpopulação: Esparta procurava satis-
fazer às suas necessidades pela subjugação dos messênios, o que
resultava na militarização da cidade (109), Atenas descobria uma
solução original que consistia em fabricar artigos especializados pa-
ra fim de exportação (agrícolas e industriais) e em desenvolver
suas instituições políticas em sentido liberal e progressista (Sólon!);
não houve aqui revoluções violentas, e sim reformas sociais e eco-
nômicas; não houve expansão para fora, e sim intensificação para
cada vez maior número de déracinés para atingir os seus fins interes-
seiros. /t is not the conquered barbarian nor even the hellenized
ental but the desinherited Hellene hirnself who'is •the most sordid re-
presentation of the Hellenié internai proletariat (115): estas massas
sem verdadeira pátria, sem vínculo; com o passado, sem confiança
nos seus antigos líderes e sem respeito pela minoria dominadora,
estão prestes a vender-se como mercenários ou como rebanhos elei-
çoeiros, sempre rancorosos e aguardando ima, oportunidade para ti-
rar vingánça. E as minorias dominadoras praticam uma economia
depredatória, consideram o mundo como uma piêsa ,privada, e esta-
belecem ,uin ,regime de opressão e terror. (116)
Às guerras civis que assolavam o .,mundo r,antigo (Time of
Troubles) pôs têrmo o braço foi:te de Augusto, o fundador (não
isento de certo "arcaísmo") do Império Romano (the Universal
State). Comparado como período de desordens políticas e sociais
que o precediá, o Império RománoSignifiéàva, Sem dúvida, uma
relativá rectipéra0o (rally) e seu" nascimento foi saudado por poe-
tas e oraddres cómr palras dé en'tusiá-sin..5 sincero . (117). Mas o
Império, Romano, como todos os EstaeloS.Úniversais,. sofria 'de al-•
grimas doenças interrias :;qué, `cOM o témpb; se iam ááéntuando: a
Flaxr Romana era brutalmente imposta • (118); a manutenção da
únidade e dá ordem exigia' eXército's'disperidiásoe
buroCrática exorbitante; á unificação' do Murido 'criava inevitáVel-
mente um certo , nivelamento incolor e provocaVa, p"or outro lado,
sentimentos de rancor e de virigança; . è afinal,' em vez dé se cozi,
siderar o Império Romano' Como mil instrumento,' era Cáda Vez màis
idolatrado como se fôsse um firP em si. Aumentava, no dectirSo dos
séculos, o abismo entre as' minorias dominadoras e o proletariado
interno, fundador — através de uma minoria 'pr'ovirida da classe
dos proletários — de uma nova religião, ó • Cristianismo (the Uni-'
versal'Church) ritmo de àesiritegraeão do Império Rbmano .
which the vehicle is to move when orce the wheel is working and
the vehicle's powers of locomotion are thereby assured (120) .
Embora 20 das 21 civilizações nos hajam precedido na mor-
te, não há motivo imperioso para crermos que a nossa ruína seja
fatal, nem tampouco que a nossa civilização ocidental seja apenas
uma repetição vã daquilo que os romanos e os gregos já fizeram
.
<123) . — lbidern,' págs. 227-228."' •
<124). — Toyabee, A Study et Hitsory, VII pág. 448.
•
— 203 —
( 133 ) . — Cf. Plutarchus, Vita Alexandri Magni, 27, 5: Alexandre teria dito que Deus
é o pai de todos os homens e adota por filhos os melhores entre os homens.
— Cf. § 112 I, notas 175 e 176.
( 134 ) . — Cf. Toynbee, A Study of History, IX págs. 604-614. A expressão foi-lhe
sugerida por Plato, Respublica, 372D ( talvez uma reminiscência do episódio
de Circe, in Odyssea, X 233-240) .
( 135 ) . — Cf. Toynbee, A Study of History, IX págs. 612-613: Even if a majority in
each successive generation could, be dragooned, drugged, hypnotized, or ca-
joled finto living and dying like "the beasts that perish", the stewards of a
"Commonwealth of Swine" would still have to reckon with a creative mino-
rity that had been the salt of the Earth in a pre-Porcine Age of human
history. The stewards would have to be past-masters in the technique of
eugenics, if they were to succeed in breeding out of Human Nature this
angelically or demonically dynamic spiritual strain; and such mastery would
probably prove to be beyond their capacity, for it could hardly be ach;eved
without enlisting the aid o! a creative intellectual activity which would be
.enathema in official circies in Hyampolis (mas o espírito não se pode di-
rigir contra o próprio espírito?!) . . . The fatal 11~ in the mechanism o! a
"Breve New World" was its failure to provide a safety-valve for a spirit
that would endure torture to the death rather than obey "Breve New World's"
first cornmandment: "Et surtout, pas trop de zele]".
( 136) . — Os ocidentais, principalmente os anglo-saxões, já falam muito tempo sôbre
a "super-população" do mundo e publicam relatórios volumosos sôbre êsse
"perigo" ( talvez por verem que a população branca do nosso globo diminui,
num ritmo assustador, em relação ao número ràpidamente crescente das "ra-
ças fecundas"? ) ; os americanos latinos e os eslavos são, entre os brancos,
os únicos povos a contrabalançarem êsse movimento de auto-destruição da
cultura ocidental; os soviéticos , professam uma teoria muito mais otimista,
cf. também o célebre livro de Josué de • Castro, A Geografia da Fome. —
— 206 —
— Cf. Toynbee, lin Historian's Approach to Religion, págs. 143-193; uma Can-
cordantia (et Discordantia) Religionum encontra-se ibidem, págs. 272-283.
I6idetn, pág. 295.
— Tdynbee, A Study+ of History, VII págs. 716-736.
— 209 —
cpened itself to their revelation; and, conversely, for the Soul, Re-
ligion could cease to be an accident af birth and become a matter
or choice — the most momentous choice that life in This World
could present (150) . Ao lermos estas frases, pensamos na palavra
de Platão: "A culpa é de quem escolhe, não de Deus" (151) .
A predileção atual de Toynbee por êsses assuntos, obrigou-nos a
demorar-nos algum tempo na exposição das suas idéias religiosas, e
quase fêz-nos perder de vista o historiador empírico dos primeiros
volumes, historiador simpático, competente, culto e aberto, cuja
teoria de Challenge-and-Response já se' tornou clássica por ela mes-
ma constituir uma "desafio" aos investigadores da história. Só po-
demos lastimar que sua obra vultosa, iniciada tão auspiciosamen-
te, cheia de tantas idéias sadias e equilibradas, termine inespera-
damente em uma lição confusa de teologia medíocre. O, rabies
theologica, quid non mortalia pectora cogis!
§ 128. O Combate amoroso de todos os Homens.
O existencialista alemão Karl Jaspers (nasceu em 1883) foi
originàriamente psiquiatra e, pelo estudo de problemas psicológi-
cos (152), chegou a interessar-se cada vez mais intensamente pela
filosofia . Professor universitário, desde 1916, em Heidelberg, foi
demitido, em 1937, pelos nazistas; depois de 1945, pôde retomar
suas atividades e, em 1948, foi nomeado professor na Universida-
de de Basiléia na Suíça. Jaspers escreveu muitas obras e ensaios
(153), dos quais nos interessa aqui especialmente "Sôbre a Origem
e o Sentido da História" (154) ou, em alemão: Vom Ursprung und
Ziel der Geschichte, publicado em 1949. Antes de entrarmos na
exposição das idéias contidas neste livro, devemos tomar conheci-
mento de algumas idéias fundamentais do autor (155) .
. — Paul Ricoeur (in Gabriel Marcel et Karl Jaspers, Paris, Éditions du Temps
Présent, 1947) e R. Jolivet (in As Doutrinas Existencialistas, cf. § 105 VIc,
nota 14) fazem um estudo paralelo dos dois filósofos, mas cumpre frisarmos
que Marcel é o filósofo do "mistério" e Jaspers o filósofo do "paradoxo".
. — Jaspers, Introduction, pág. 8. — Dêste opúsculo bem como de Bilan et
Perspective e de Raison et De'raison de Notre Temps conseguimos consultar
apenas a tradução francesa.
— 211 —
(158) . — Jaspers, Der philosophische Glaube, pág. 34: Die Realitiit der Welt hat ein
verschwindendes Dasein zwischen Gott und Ezistenz.
— 212 —
me naturel inflexible, mais par Paccord intérieur de notre être qui ne saurait
avoir d'autre volonté que celle-ci, nous avons conscience d'être à nous-mames,
dans notre liberté, un don de la transcendartce. Plus Phomme est vraiment
libre, plus il est sur de Dieu. Quand je suis vraiment libre, je suis sur de
ne pas l'être par moi-mame.
— Cf. Kierkegaard, § 110 V; Spencer, § 104 I.
— O verbo grego peri-échein quer dizer: "envolver".
— A expressão foi-lhe talvez sugerida pela leitura de Pascal que dica nas Pensées
(ed. Brunschvicg, pág. 636): Chiffre a double sens e Le chiffre a deux sens;
cf. pág. 643: Le Vieux Testament est un chiffre.
— R. Jolivet, op. cit., págs. 335-336; leia-se também a nota 105 na pág. 335,
• onde o autor diz que "cifra" não pode ser confundida com "símbolo".
— 214 —
— Jaspers, Vernunft und Existenz, pág. 41: Vernunft darf sich nicht an Exis-
tenz verlieren, zugunsten eines sich absperrenden Trotzes, der sich gegen
Offenbarheit verzwelfelt strãubt. Existenz darf sich nicht an Vernunft verlieren
zttgunsten einer Durchsichtigkeit, welche sich els solche mit der substantiellen
Wirklichkeit verwechselt. Existenz wird nur durch Vernunft sich hell; Vernunft
hat nur durch Existenz Gehalt. — Cf. Raison et Déraison, pág. 53: La li-
mite de la raison est, d'une part, la réalité empirique qui lui est étremgère et,
d'autre part, cette réalité qu'en tent qu'existence, elle peut éclairer á l'infini,
e pág. 57: Aujourd'hui, je préférerais le terme de philosophie de la raison, car
il parait urgent de mettre l'accent sur ce point essentiel, qui est de tous les
temps. Si la raison se perd, la philosophie est perdoe dgaiernent.
— As grandes teses são estas: Deus é; há uma "exigência absoluta" (cf. infra,
nota 197); o homem é finito e imperfeito; o homem pode viver sob a orien-
— 215 —
. Jaspers, Vom Ursprung und Ziel, págs. 17-18: Im Ursprung war die Offenbar-
keit des Seins in bewusstloser Gegenwdrtigkeit. Der Sündentall brachte uns auf
den Weg, durch Erkennen und durch endliche Praxis mit Zwecken in der
Zeit zur Helle des bewusst Offenbaren zu kommen. Mit der Volleixdung
des Endes erreichen wir den Einklang der Seelen, schauen einander in liebender
Gegenwarf, in grenzenlosem Verstehen, einem einzigen Reiche der ewigen Geisfer
angehõrend. — No seu resumo dos "mitos bíblicos", Jaspers esquece-se de
mencionar o dogma importantíssimo da ressurreição da carne.
. — Jaspers nega o fim transcendente da histórial, e até a imortalidade da alma ,
humana.
. — Jaspers, Vom Ursprung und Ziel, pág. 304: Irgendwann ist das Ende der
Geschichte, der Menschheit, wie einst ihr Antang war. Das letzte — sewohl An.
lung wie Ende — ist uns prakfisch so tem, dass es nicht fühlbar für uns ist, _
aber von daher kommt ein alies überschattender Massstab.
— 218 —
. Ibidem, pág. 72; cf. a comparação da vida humana com um pássaro qui cum
per unum osthnn ingrediens, mox per aliud exierit. Ipso quidem ternpore quo
intus est, hiemis tempestate non tangitur, sed tamen parvissimo spatio sere-
nitatis ed momentum excurso, mor de hieme in hiemem regrediens, Luis oculis
elabitur. Ita haec vita hominum ad modicum apparet; quid acatem sequatur,
quidve pz.ecesserit, prorsow ignoramos (Beda Venerabilis, História Eclesiás-
tica, II 13) .
. — Cf. Toynbee, § 127 VII. — Também Jaspers é, no fundo, otimista, julgando
que o homem nunca se perderá por completo, visto que foi criado "à imagem
e à semelhança de Deus", cf. Vom Ursprung und Ziel, pág. 189.
. — Hegel, Werke, Bd. XI pág. 247: Alle Geschichte geht zu Christus hin smd
korrant von ihm her; die Erscheinung des Gottessohns ist die Achse der
Weifgeschichte.
(177). — Êste Eixo da história Jaspers não o concebe como o centro único e eterno
da história, tal como Cristo na teologia cristã, mas o centro empírico de
um prazo histórico bastante curto; não tem a pretensão a uma unicidade
absoluta, mas poderia ser seguido de outros Eixos; cf. Jaspers, Vom Ursprung
und Ziel, pág. 319.
— 219 —
(178) . — Ibidem, pág. 49: Vorgeschichte ist die zwar laktisch begründende, abar
nicht ,gewusste Vergangenheit .
— 220 —
aber vielleicht gerada das Ziel ali unseres Erkenntens, nãmlich durch rha-
ximales Wissen zuni eigentlichen Nichtwissen vorzudringen, statt das Sein
verschwinden zu lassen in der Verabsolutierung zum in sich geschlossenen
Erkenntnisgegenstand .
. — A argumentação não é muito convincente: também os judeus, os gregos e os
persas, apesar de terem conhecido a sua Época Axial, foram absorvidos por
grandes Impérios, e alguns "povos axiais" chegaram ao ponto de perder sua in-
dividualidade.
. — Os indo-europeus descobriram, segundo Jaspers, "o trágico", e foram os
criadores da epopéia (mas Gilgamesh não é uma epopéia babilônica?); os
povos nórdicos levaram a experiência da Época Axial ao extremo, chegando
a ter certeza existencial da Transcendência.
. — A dinastia dos Han reinou de 206 d. C.; segundo Toynbee, é o Universal
State da civilização sínica.
. — O representante mais importante da dinastia de Maurya foi Asoka (273-
231 a. C.), que dominava quase tôda a Índia; a dinastia de Maurya consti-
tui, segundo Toynbee, o Universal State da civilização indica (323-185 a. C.).
— 224 —
forma essa que diversas renascenças (cf. nota 191) haviam de re-
conduzir à sua pureza original.
À Grécia o mundo ocidental deve o conceito de liberdade po-
lítica (pólis!) e sua propensão para a racionalidade (matemática
lógica, duas realizações do espírito helênico) . Os estadistas ro-
manos incutiram-lhe o senso realista e o desêjo de dominar o mun-
do. Mais profunda, porém, foi a atuação dos filósofos gregos e so-
bretudo a dos profetas judeus que frisaram a liberdade interior
da pessoa humana; além disso, a Bíblia, por livrar o Ocidente da
magia e da "transcendência corpórea" (alemão: die dinghaf te Trans-
zendenz), entregou-lhe o mundo como um campo de investigações
de experiências, como "criatura" não divina, mas muito real: daí
homem ocidental sente a vontade de conhecer a obra de Deus,
de "re-pensar" o Pensamento divino, e de transformar o mundo
num habitat cada vez mais apropriado à sua natureza (193) . O
Oriente caracteriza-se por seu amor ao valor da pessoa humana
(194) e produziu uma série de indivíduos notáveis, ou melhor, de
personalidades originais dos matizes mais variados. No Ocidente,
universal não possui a rigidez dogmática do Oriente, isto é, o
Ocidente não fica estacionário: dotado de um temperamento dinâmi-
co, concede lugar também às exceções e às diferenciações, visto que
não quer resignar-se com regras ou normas gerais. Por outro lado, o
Ocidente, para obviar as veleidades do individualismo, tentou contra-
balançar essas fôrças centrífugas mediante um certo totalitarismo
religioso, oriundo da sua fonte bíblica; mas o exclusivismo religio-
so teve de manter-se dentro de certos limites, uma vez que a Cris-
tandade, desde cêdo, se dividiu em várias seitas e devia contar tam-
bém com a presença do Estado, o qual reclamava para si igual-
mente uma autoridade absoluta. O Ocidente é, portanto, o feliz re-
sultado de várias tensões internas, cada uma das quais tem a sua
própria origem histórica dentro da tradição ocidental, e essa pola-
ridade (195) nos poderia fazer crer na sua superioridade. Mas
(193) . — Cf. D. de Rougemont, L'Aventure Occidentale de l'Hornene, Paris, Albin
Michel, 1957, pág. 28: Le danger que court l'Oriental, c'est l'ex-carnation
trop incite. (On perd en chemin te monde créé, sa raison d'être, la connais-
sance et la maitrise de ses structures). Le clangor, pour l'Occidental, c'est
l'incarnation trop complète. (On se perd soi-même dares Ia matière et ses
structures, on perd de vue les exigentes et Ia maitrise des réalités spiri-
fuelles) .
(194). — Ibidem, pág. 61: L'acte de création des grands Concites consiste donc à opé-
rer la transmutation périlleuse d'un mot latin et de contenus helléniques en
un dogme exprimant Ia nature triplo et une de la Divinité relvélée en Jésus.
Ainsi naquit l'idée de Personne, termo purement théologique aux yeux des
Pères de Nioée, mais qui devait apparaitre, après coup, corntrne le fait spé.
dfique et capital de I'anthropologie occidentale. — Cf. § 17 III b, nota
3; cf. também a opinião de Soloviév, § 122 Va.
(195) . "Polaridade" quer dizer: a combinação de duas fôrças ou de dois elementos
que mutuamente se atraem e se repelem, ao mesmo tempo; poderíamos dizer
também: dois elementos antinômicos que se completam (por exemplo, ho-
mem-mulher, Estado-povo, transcendência-imanência, etc.) . — O têrmo foi
introduzido pelos românticos alemães (Herder, Goethe, etc.).
(198) . — Jaspers, Bilan et Perspectives, pág. 76: Le plus grand exemple d'une diabo-
ration en profondeur par laquelle l'esprit est parvenu à unifier une sura-
bondance sublime jusqu à lui donner une forme simple, c'est le catholicisme.
Celui-ci a réalisé au cours des nielénaires une synthèse des forces vives à
Poeuvre dans l'histoire depois les temps les plus reculés; il réussit à unir
même ce qui est contradictoire.
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Zweckes verloren ging; Geist und Leben verstehen einander nicht mehr, be-
schimpfen einander, aber ihr Mittel, die Maschine, ein eiserner Giitze (latzfend
eine Zeitlang) beherrscht sie beide und diktiert ihnen, statt derem Befehle zu
erhalten; sie allein verliert nicht (eine Zeitlang) durch den Massenbetrieb
und gewinnt (eine Zeitlang) alies durch die Exaktheit, die ihr einziger "Geist"
ist, wohltiitig ruir, wo der Meister der Geist selber ist, dem die Knechte ge-
horchen; aber ein sich selbst verstümmelndes Geschlecht von ungehorsansen
Lehrlingen wird die Ungeister nicht los, es wird ihre Beute.
(207) . Segundo Jaspers (in Vom Ursprung und Ziel, pág. 169), uma ideologia é
um complexo de idéias ou de representações que goza, aos olhos do sujeito,
do prestígio de uma interpretação do mundo e da sua situação no mesmo,
chegando a impor-se-lhe como uma verdade absoluta, mas sempre sob a for-
ma de uma qualquer ilusão, a permitir-lhe que êle se justifique, se difarce ou
se esquive para obter uma vantagem imediata.
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c.;
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