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"Introdução aos Estudos Históricos",

publicado em dez partes por

José van den Besselaar


durante os anos de 1954 e 1958
na Revista de História

SUMÁRIO

PAGINAÇÃO  
PARTE   EDIÇÃO   ANO   ORIGINAL   NESTE  ARQUIVO  

Parte  I   nº20   1954   407-­‐493   002-­‐086  


Parte  II   nº21-­‐22   1955   439-­‐535   087-­‐181  
Parte  III   nº23   1955   185-­‐239   182-­‐236  
Parte  IV   nº24   1955   499-­‐533   237-­‐271  
Parte  V   nº26   1956   491-­‐527   272-­‐308  
Parte  VI   nº27   1956   183-­‐228   309-­‐354  
Parte  VII   nº28   1956   413-­‐509   355-­‐451  
Parte  VIII   nº29   1957   121-­‐219   452-­‐550  
Parte  IX   nº31   1957   133-­‐227   551-­‐643  
Parte  X   nº35   1958   149-­‐237   644-­‐732  
 
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (I)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 20, pp 407-493, out./dez. 1954. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/020/A009N020.pdf

QUESTÕES PEDAGÓGICAS

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS (*).

PRIMEIRA PARTE

Noções Gerais
* *
CAPITULO PRIMEIRO
DA MITOLOGIA À CIÊNCIA HISTÓRICA.

§ 1. A palavra História.

Y■I/XH NIKA
Foi na Grécia que nasceu aquêle desêjo desinteressado de sa-
ber que ainda hoje em dia constitui um dos elementos mais carac-
terísticos da nossa civilização. Os primeiros sábios, — é difícil de-,
cidir se eram filósofos ou cientistas, — davam vários nomes a essa
,

curiosidade intelectual, um dos quais era a palavra "história" (1),


têrmo originàriamente bastante genérico, que podia designar tôda e
qualquer investigação científica. Aos jônios, raça inteligente e arro-
jada, tudo interessava, porque tudo lhes causava profunda admira-
ção: as leis que regem o universo, a matéria primitiva de todos os
.séres, os costumes e as instituições de povos estrangeiros, os aconte-
cimentos do passado, a origem da sua cidade. Tudo o que era cog-
noscível valia a pena de uma investigação racional, de uma "histó-
ria". Assim nasceu a ciência, uma das conquistas mais duradouras do
gênio grego. A jovem nação, confiante no dom divino da inteli-
gência (: "lógos"), que tanto venerava, foi-se servindo aos poucos
de métodos racionais para desvendar os mistérios do mundo, eman-
cipando-se das tradições mitológicas e entusiasmando-se com as
novas descobertas, cada vez mais ricas e profundas.

(*). — Com o presente número da Revista iniciamos a publicação do interessante tra-


balho do Prof. Dr. José van den Besselaar que, por representar uma necessidade
para os nossos alunos desprovidos de bons manuais, não tivemos dúvidas em
estampar, apesar do seu tamanho. Nos números seguintes publicaremos as
outras três partes e, finalmente, depois de todo publicado será reunido em
livro e aparecerá na coleção de Cadernos da Revista de História (E. Simões
de Paula) .
<1) — A raiz da palavra grega "história" é weid- ou wid-, que se encontra também
no vocábulo latino videre (=ver), no vocábulo inglês wit (=espírito) e no
vocábulo alemão wissen (=saber). Cognatas são também as palavras idéia
e druida. Cf. Eudoro de Sousa, Filosofia e Filologia, in Revista da Universi-
dade Católica de São Paulo, vol. V, fasc. 10 (1954), pág. 47.
— 408 —

Nesse ambiente sequioso de saber, nasceu e viveu o historiador -


Heródoto, o primeiro autor grego a nos transmitir diretamente (2>
a palavra "história", empregada por êle em dois sentidos diferentes:
no de "pesquisa científica" (por exemplo, no Prefácio da sua obra),..
e no de "resultado de tal pesquisa", digamos: "informação, relató-
rio, exposição" (por exemplo, VII, 96) . Continuamos a usar o têr-
mo nesta última acepção ao falarmos em "história natural", que é
a descrição científica dos sêres aniifiados.
Bem cêdo, porém, já na Antigüidade, o têrmo começou a ser -
aplicado preferencialmente à narração de fatos e acontecimentos do
passado, verificados como autênticos e dignos de memória . A pa-
lavra grega "história" acabou por entrar em todos os idiomas da
cultura ocidental, e indica atualmente não só a narração dos fatos-
como também os próprios fatos do passado. Neste último sentido
podemos dizer, por exemplo, que a França tem uma história rica e -
interessante.

§ 2. Os primórdios da historiografia.

O homem é animal histórico, em tôdas as acepções da palavra-.


A tese é ilustrada pelo fato de ser apreciado, onde quer que haja
homens, um conto interessante, uma "boa história"; a tese implica era"
que o homem vive no tempo com as suas três dimensões: passado,
presente e futuro. Sem o tempo, nada de "histórias", nada de "his-
tória".
A criança escuta maravilhada um conto de fadas, o homem
primitivo ouve com espanto os contos do seu bardo, o adulto de'
uma civilização adiantada lê absorto o seu romance . O desêjo es-
sencialmente humano de ouvir uma "boa história" é a primeira ten-
tativa de entender as coisas e o primeiro alimento de uma inteli-
gência que desabrocha. Daí o papel importante de contos de fadas.
na educação de crianças, e o de mitos na infância dos povos: além
de lhes despertarem a curiosidade intelectual, ativam-lhes também
as faculdades da vida afetiva e a imaginação. Na vida dos indiví-
duos bem como na dos povos, geralmente chega um momento ern-,
que não se pretendem eliminar os produtos da imaginação, mas se ,
procura distinguir, metõdicamente e criticamente, entre o mundo
real e o imaginário, entre fatos autênticos e fictícios. O homem
não perde o seu caráter de "animal histórico", e sim se esforça por -
separar as "histórias" da "História".
Foi o que se verificou na Jônia, no alvor do século VI a. C.
Até então se haviam contentado os gregos com os ensinamentos dos

(2) . — Os chamados filósofos pré-socráticos devem ter empregado o têrmo "história" "
nas suas publicações, mas não possuímos fragmento algum que tenha conser-
vado a palavra.
•■•

— 409 —

seus. poetas-educadores: Homero e Hesíodo, êste a expor-lhes a teo- -


gonia e a cosmogonia (3), aquêle a contar-lhes as gloriosas faça-
nhas dos heróis nacionais. Nasceu a prosa, uma linguagem mais.
apropriada para comunicar os resultados das investigações científi-
cas do que a poesia, filha da imaginação. Os primeiros prosadores
gregos chamavam-se "logógrafos", quer dizer: "escritores de prosa".
Era processo lento e doloroso o separar-se do mito a "história":
tanto pesava a tradição. Segundo Estrabão (4), os logógrafos Cad-
mo, Ferecides e Hecateu em nada se distinguiriam dos poetas senão
pela falta de uma linguagem métrica. Não sejamos demasiadamen-
te severos para com os iniciadores da nossa ciência: as constru-
ções do espírito levam certo tempo. A iniciativa foi decerto no-
tável e merece a nossa gratidão. Pode ser que os logógrafos tenham
sido crédulos, inclinados a apontar o maravilhoso, e apressados em
dar soluções, ora pouco refletidas, ora ingênuamente racionalistas:
eram pioneiros atrevidos, conscientes de lançar os alicerces de uma
nova ciência. Um dêles, Hecateu de Mileto (± 500 a. C.), decla-
rava com orgulho mal rebuçado: "Assim fala Hecateu de Mileto.
Escrevo estas coisas consoante me parecem verdadeiras. Pois, a
meu ver, são discordantes e ridículas as opiniões dos gregos" (5) .
Eram homens viajados, que faziam questão de conhecer pessoalmen-
te os diversos povos,, observar-lhes os hábitos, conversar com êles
e tirar as suas conseqüências. A história e a geografia são gêmeas,
ambas nascidas da mesma mãe: a curiosidade intelectual dos jô-
nios. Infelizmente não possuímos obra alguma completa dêsses
precursores: pelos fragmentos pouco numerosos que chegaram até
nós, podemos verificar que alguns tinham muito bom senso, notá-
vel dom de observação e independência de juízo.
Além dêsse tipo de historiografia, em estado embrionário, exis- -
tiam, em vários centros políticos e religiosos do país, tabelas crono-
lógicas, compostas por magistrados e sacerdotes: anotações sucin-
tas sôbre os principais acontecimentos do ano corrente, tais como
guerras, alianças, pactos, festas religiosas,, fenômenos meteorológi-
cos, etc. As listas mais importantes eram as dos arcontes em Ate-
nas, as dos éforos em Esperta, e as dos sacerdotes em Olímpia. De
tôdas essas anotações possuímos apenas conhecimentos indiretos e -
muito escassos.

(3): — Hesíodo, poeta grego (século VIII a. C.) escreveu dois poemas didáticos: a.,
Teogonia e Obras e Dias (uma espécie de calendário para uso dos lavradores,
rico em sentenças moralistas e preceitos práticos) .
. — Strabo, Geographica, I 2, 6. — Strabo (Estrabão) era geógrafo e historiador
grego (63 a. C. — 19 d. C.). Perderam-se, infelizmente, as obras históricas
désse sábio sensato e equilibrado.
. — Hecataeus Milesius, Fragmentum 332, in Fragmenta Historicorum Graecorum, -
edd. C. et Th. Müller, Bibliotheca Didotiana, vol. I, pág. 25 .
— 410 —

§ 3. A historiografia grega.

Nos seguintes parágrafos dêste capítulo pretendemos esboçar


ràpidamente a evolução da historiografia desde Heródoto (século
V a. C.) até Niebuhr ( ±- 1800 d. C.) . Nosso resumo não tem a
pretensão de ser uma "história da historiografia": limita-se a indi-
car alguns grandes vultos que nesse período de quase 2500 anos
contribuiram para o progresso da nossa ciência e a caracterizar
as obras que constituem a valiosa herança histórica da nossa civi-
lização. Para todo e qualquer estudioso do passado são indispen-
sáveis algumas noções elementares da historiagrafia anterior ao
século XIX, — época em que nasceu o conceito moderno — e nesta
obra, que se dirige especialmente aos futuros historiadores da Anti-
güidade e da Idade Média, recorremos repetidamente aos nomes e
aos livros, mencionados neste capítulo.
I. Heródoto de Halicarnasso 485-±425 a. C.) passa tra-
dicionalmente pelo "pai da história" (6) . Descreveu as guerras
persas (490-479 a. C.), nas quais entrevia, com uma rara perspi-
cácia, um conflito ainda hoje atual: o conflito entre o Oriente, des-
pótico e coletivista, e o Ocidente, livre e humanista. Com muito
bom senso rejeita as tradições lendárias existentes a êsse respeito,
e como verdadeiro historiador esforça-se por descobrir as causas
remotas da inimizade, consagrando-lhes a metade da sua obra.
Como Hecateu, era homem viajado: conhecia pessoalmente o Egi-
to, a Síria, a Babilônia, talvez a Pérsia; além disso, a Ásia Menor, a
Trácia, a Macedônia, o continente grego e várias ilhas, a Líbia e a
Magna-Grécia. Era bom observador, e sua sensatez inata levava-o
muitas vêzes a desconfiar de tradições pouco seguras: suas informa-
ções são freqüentemente confirmadas pelos resultados das pesqui-
sas modernas. Outrossim, empenhava-se em ser imparcial: embo-
ra admirador sincero das grandes realizações dos seus patrícios,
principalmente dos atenienses, fala sem rebuço nos lados fracos dos
gregos: a leviandade, a falta de honestidade, etc., e aprecia positi-
vamente as virtudes e as grandes obras dos "bárbaros". Sem dú-
vida, não podemos medir sua crítica pelas normas modernas: He-
ródoto não tinha nem os métodos, nem a paciência, nem o rigor, nem
os instrumentos de um pesquisador hodierno. Muitas vêzes é víti-
ma de uma informação pouco exata, mas piamente acreditada, ou
de uma superstição que nos parece pueril. Também se perde em
pormenores, escapando-lhe, às vêzes, o tema principal. Tampouco
se esforça por penetrar na mentalidade e na psicologia dos seus ato-
res e comparsas: seus personagens são figuras de uma epopéia, mas

(6) . — Foi apelidado assim por Cícero, De Legibus, 1 1, 15.


— 411 —

de uma epopéia bem humana. Além disso, é autor admirável, um


dos mais cativantes da literatura grega. Entende perfeitamente
da arte de dramatizar, e possui inegàvelmente certo senso de hu-
mor; pertence aos melhores contadores da literatura mundial, e com
muito direito o século XX lhe daria a alcunha de father of the
short story. São maravilhas as numerosas novelas que intercala na
obra em guisa de digressões, -por exemplo o encôntro de Creso e
Sólon (I, 29-32), a infância de Ciro (I, 108-122), o anel de Poli-
crates (III, 39-43) . A época alexandrina dividiu as "Histórias" de
Heródoto em nove livros, cada um dos quais ficou dedicado a uma
das nove musas.
II. Tucídides de Atenas (±470-±400 a. C.) é, com Políbio,
maior historiador da Antigüidade. Consagrou uma monografia
às guerras do Peloponeso (7), em oito livros esmeradamente com-
postos. Impediu-o a morte de revisar o último livro da obra. Ao con-
trário de Heródoto, Tucídides lida quase exclusivamente com a polí-
tica, permitindo-se pouquíssimas digressões. E' pesquisador escru-
puloso: faz estudos metódicos' dos documentos disponíveis, tam-
bém das inscrições (8), compara-os entre si, e procura informações
por tôda a parte, também no campo dos inimigos. Denuncia a pre-
guiça mental dos logógrafos em examinar as fontes, contrapondo-lhes
seu relatório, exato, objetivo, científico, dizendo: "O fato de ser
destituída de elementos míticos a minha obra, talvez a torne menos
atraente para uma declamação pública; entretanto, os que aprecia-
rem uma informação exata sôbre o passado, e por isso mesmo sôbre
futuro (o qual, em virtude da condição humana, será igual ou
semelhante), êsses a julgarão muito útil, e basta-me saber isso. E'
uma aquisição para sempre e não uma ostentação efêmera" (9).
Tucídides escreve para uso dos estadistas que, ajudados pela expo-
sição objetiva dos fatos do passado, lhes poderão tirar uma lição
importante para o futuro: a história é o ensinamento político por
excelência . E' o primeiro historiador a distinguir explicitamente en-
tre causas remotas e ocasionais, e a aplicar a ilação histórica (cf. §
64 II b) a fatos pouco ou mal documentados. No exótdio da sua
obra (I, 1-21) submete a um exame crítico a pré-história grega,
desfigurada por tantos elementos míticos; em. I, 24-88 estuda as
causas ocasionais da guerra; em I, 88-118 descreve com muita pe-
netração o apogeu da democracia •ateniense. Outros episódios cé-

— A Guerra do Peloponeso travou-se, de 431 a 404 (com alguns intervalos),


entre Atenas e Esparta, e os aliados das duas cidades, terminando na derrota
da democracia ateniense.
— Encontramos por exemplo em Thucidides, Historiae, V 47, o texto integral de
um pacto entre os atenienses e outras cidades gregas, o qual nos é conhecido
também por uma inscrição (Inscriptiones Graecae, 1, Supplementum, pág. 14,
46b) .
(9) . — Thucydides, Historiae, I 22,4. — A tradução é um tanto livre.
— 412 —

lebres são: o elogio fúnebre de Péricles em homenagem aos caídos:


no primeiro ano da guerra, com o credo da democracia clássica (W
35-46); a peste que assolou a cidade de Atenas (II, 47-53); a ex-
pedição para a Sicília (VI-VII); e o diálogo interessante entre os
embaixadores de Atenas e os da ilha de Melos (V, 84-116). Tucí-
dides é autor dificílimo, devido à sua concisão: densus et brevis et -
semper sibi instam (10).
A obra de Tucídides foi continuada, até o ano 362, por
Xenofonte de Atenas (430354), na obra Helênica, em 7 livros.
Apesar de ser estilista elegante, Xenofonte marca retrocesso consi-
derável da historiografia grega: não é pesquisador metódico, tem
vistas curtas, sua exposição dos fatos é superficial e sua interpreta-
ção parcial. Saiu-lhe melhor um memorial: a Anábase (em 7 li-
vros), relatório interessante da expedição de Ciro o Moço contra
seu irmão, Artaxerxes, e da retirada dos Dez Mil gregos do inte-
rior da Pérsia (401-399). Com Teopompo de Quios (376-320)
e Éforo de Cima (408-330), ambos alunos do célebre professor de-
retórica, Isócrates, a historiografia grega veio a ser influenciada, e
até deturpada, pela beletrística. Aquêle continuou a obra de Xe-
nofonte (até 336), êste escreveu a primeira História Universal,
desde os tempos da invasão dórica até 340. Das duas obras possuí-
mos apenas fragmentos.
A história helenista de Políbio de Megalópolis (201-
120) é um protesto veemente contra a sujeição da verdade histó-
rica a efeitos literários. Políbio era um dos mil reféns que a Con-
federação acaia devia entregar a Roma (168 a. C.), onde se fêz:
amigo dos grandes líderes políticos e militares, principalmente de
Cipião, a quem acompanhou em várias das suas campanhas. Pro-
fundamente impressionado pelas conquistas vertiginosas do Impé-
rio Romano no período de 221 a 168 a. C. (11), pôs-se a descrever-
lhes a história e a procurar-lhes as causas. Foi êle que introduziu
o têrmo "historiografia pragmática" (12), no sentido de "história
dos fatos (políticos e estratégicos)", a dirigir-se aos "homens prá-
ticos", quer dizer: a políticos e militares. Como Tucídides, acre-
dita no poder educativo da história, que é, no dizer do autor, "a
mais verdadeira educação e a melhor propedêutica para as ativi-
dades políticas" (I, 1, 2) . Formulou a diferença entre causas de-
terminantes e causas passageiras, e explica a expansão romana não ,

. — Quintilianus, Institutio Oratoria, X 1, 73.


. — Em 221 rebentou a segunda guerra púnica, e em 168 deu-se a batalha de--
Pidna, onde os gregos, ou melhor, os macedônios, foram derrotados. Neste
período de 53 anos, Roma conseguiu apoderar-se definitivamente, se não do,
domínio, ao menos, da hegemonia sôbre o Mediterrâneo.
. — Por exemplo Polybius, Historiae, I 2, 8; IX 2, 4; XII 25e.
— 413 —

só por fatôres físicos (situação da cidade, tamanho da população,


.etc.), mas também por fatôres morais (a disciplina militar, o he-
roísmo dos cidadãos, a prudência do Senado, e a excelente consti-
tuição) . Elimina por completo o fator sobrenatural da história, só
reconhecendo as "causas determinantes" (cf. Montesquieu) e um
poder incalculável: o acaso. Esforça-se por procurar leis históri-
cas. Estas três qualidades são absolutamente necessárias ao histo-
riador: um exame crítico dos documentos, conhecimentos pessoais
dos lugares descritos, e a prática da vida militar e política (XII,
25e) . Por isso' censura severamente os literatos que sacrificam a
verdade dos documentos ao prazer estético, e os professôres que
possuem apenas conhecimentos teóricos — e imperfeitos! —
da política e da estratégia. Salienta também a necessidade de ser
universal a história: há uma concatenação dos fatos históricos, e
quem a ignorar, não se poderá elevar a uma vista panorâmica (III,
32; VIII, 2) . Como se vê, Políbio repete muitas das idéias de Tu-
cídides, mas profere-as com maior ênfase, estendendo os métodos
científicos a outros campos de investigação. Como estilista, é-lhe
-muito inferior: Políbio é autor medíocre, que renuncia aos enfeites
de um belo estilo. E' um dos poucos historiadores antigos que não
inseriu discursos na sua obra (13) .
V. A obra de Políbio já nos colocou na história romana. Os
outros historiadores gregos, não possuindo pátria independente e
-sentindo-se cosmopolitas ou cidadãos romanos, escreveram histórias
universais, a culminarem no Império Romano, ou então histórias ro-
manas. Suas obras são, em geral, muito inferiores às dos três cori-
feus da historiografia grega: Heródoto, Tucídides e Políbio. Muitos
dêles não passavam de compiladores pouco escrupulosos, literatos
declamadores, aduladores do poder, ou patriotas exaltados. Mencio-
namos aqui alguns nomes que têm certa importância:
Diodoro de Sicília (século I a. C.), autor de uma Biblio-
teca Histórica, em 40 livros (14), modelada sôbre a História Uni-
versal de Éforo, e abrangendo o período dos tempos míticos até o
ano 59 a. C.
Dionísio de Halicarnasso (século I a. C.) escreveu uma Ar-
queologia Romana em 20 livros (15), em que pretendia completar
a obra de Políbio, dando a história romana desde as origens até o

,(13) . — A obra de Políbio contava 40 livros, dos quais possuimos I-V completos, e o
resto em fragmentos, por vêzes bastante extensos. — Nos livros MI trata
da pré-história de Roma e Cartago; nos livros III-XXIX dos acontecimentos
entre 221 e 168; nos livros XXX-XL narra as conquistas romanas até o ano
144. — O livro XXXIV é inteiramente consagrado a questões geográficas.
.(14). — Chegaram até nós os livros I-V (tempos míticos, anteriores à guerra troiana)
e XI-XII (480-302 a. C.), e numerosos fragmentos.
415) . — Possuimos ainda os livros I-X completos, XI incompleto, e o resto em frag-
mentos extensos.
— 414 —

ano 264 a. C. E' o protótipo da historiografia retórica e pouco ,


crítica.
O judeu Flávio Josefo (37-97 d. C.) descreveu a Guerra
Judaica, em 7 livros, e as Antigüidades Judaicas, em 20 livros. As
duas obras são tendenciosas.
Apiano de Alexandria (século II d. C.) tratou de expor
a história romana aos seus patrícios em episódios bélicos, em 24
livros (16).
Dião Cássio (-±- 155-235), alcunhado o "Tito-Lívio gre-
go", publicou uma história completa do povo romano, que abran-
gia um período de quase mil anos (753 a. C. -229 d. C.), em 80
livros (16a.). Sem ser pesquisador meticuloso, era homem muito
lido e consciencioso. Gozava de enorme popularidade até na época
bizantina: os monges Xifilino (século XI) e Zonaras (século XII)
compilaram-no em excertos que ainda hoje em dia têm certa impor-
tância histórica.
De Plutarco falaremos no § 24 I.
Luciano de Samósata (125-195), autor espirituoso e.
mordaz, (é muitas vêzes chamado o "Voltaire grego"), ridiculariza
a mania dos historiadores contemporâneos de imitar os grandes clás-
sicos, exprobrando-lhes falta de sinceridade, de verdadeiro entu-
siasmo, e de experiência da vida prática . Insiste, no seu livrinho
interessante Como se deve escrever a história em que o historiador
possua senso político e empregue um estilo apropriado ao assunto..
Finalizando, mencionamos Procópio de Cesaréia (sé-
culo VI), que já pertence à época bizantina. Era companheiro de-
Belisário, o general do Imperador Justiniano (527-565), cujas ex-
pedições contra os persas, vândalos e gôdos descreveu, em 8 livros_
Imitador de Tucídides, pode ser considerado como o último re-
presentante da historiografia grega, e até como representante de
destaque. Num panfleto, chamado Anécdota ou História Arcana,,
denuncia os crimes do Imperador e da sua espôsa Teodora.

§ 4. A historiografia latina.

Ao contrário da Grécia, não conhecia cantos heróicos a Ro-


ma primitiva; tôdas as opiniões a êsse respeito não passam de
hipóteses. A origem da historiografia romana tinha as suas raízes
em instituições práticas de ordem religiosa e civil. Aos sacerdotes-
cabia a tarefa de publicar cada ano o calendário, indicando as

(16) . — Perderam-se os livros I-V, e XVII-XXIV; além disso, o livro X. — Os ,


livros XIII-XVI, que tratam das guerras civis, desde os Gracos (133 a. C.).
até os tempos de Augusto, são muitíssimo importantes.
(16a) . — Chegaram até nós os livros XXXVI-LX (68 a. C. — 47 d. C.).
— 415 —

festas religiosas, os dies fasti et nefasti, os dies atri (17) e os dies


intercalares. Dessa organização que, conforme a tradição, remon-
tava ao rei Numa Pompílio, nasceu a historiografia romana: os
sacerdotes começaram a anotar também os magistrados do ano
corrente (fasti consulares) e, depois, os principais acontecimentos
verificados (annales). Cícero diz: erat enim historia nihil aliud
nisi annalium confectio (18). Entre os anais destacavam-se os
annales maximi, chamados assim por serem confiados ao cuidado
do pontifex maximus. Sabemos que o célebre jurisconsulto, Públio
Múcio Scaevola, quando pontifex maximus (133 a. C.), rompeu
com essa praxe, e que os annales maximi, logo depois, foram edi-
tados em 80 livros (18a.) Possuímos dêles apenas conhecimentos
indiretos. Além disso, havia também os "anais" dos magistrados
(libri magistratuum) e os arquivos particulares das famílias no-
bres. Êsses anais, já existentes antes de nascer a historiografia
pràpriamente dita, exerceram grande influência sôbre a documen-
tação e o método dos historiadores latinos: quase todos êles são
"analistas", narrando os acontecimentos ano a ano (por exemplo,.
Tito Lívio, Tácito, como também o grego Dião Cássio) .
I. A historiografia romana deve, desde o início, as idéias, as.
formas literárias e os métodos a sua irmã grega, e mesmo na fase
do seu apogeu não consegue contribuir essencialmente para o adian-
tamento da ciência. De acôrdo com o gênio prático do povo roma-
no, o interêsse dos historiadores latinos é preponderantemente po-
lítico e revela tendências patrióticas e moralistas . Falta-lhes, quase
por completo, uma autônoma reflexão filosófica acêrca dos proble
mas históricos.
Os primeiros analistas romanos, Quinto Fábio Pictor e
Lúcio Cíncio Alimento (século III), escreveram as suas obras em
grego, fato ilustrativo do grande impulso que a historiografia grega
dava à romana . Com exceção de alguns fragmentos insignificantes,
perderam-se estas obras.
Mais lastimável é a perda da obra do austero conserva-
dor Marco Pórcio Catão (234-149), o pai da prosa latina (19). Num.
estilo conciso e lapidar escreveu, em 7 livros, uma história do seu.

. — Os dies fasti são mais ou menos comparáveis aos nossos "dias úteis"; neles o
pretor podia pronunciar uma sentença judiciária, e o povo podia cuidar dos
seus negócios políticos e privados, coisas essas que eram proibidas nos dies.
nefasti. Os dies nefasti não eram "dias' nefastos ou negros", na acepção mo-
derna da palavra. Ristes eram chamados dies atri ou religiosi: aí eram come--
moradas as catástrofes públicas, por exemplo 18 de julho que era dies ater por
três motivos: 447 a. C., derrota do exército romano nas margens do rio Crê-
mera (os 300 Fábiosl ); 387 a. C., batalha do Alia (vitória dos gauleses sôbre-
os romanos; 64 d. C., o Imperador Nero incendiou grande parte da cidade.
. — Cícero, De Oratore, II 12, 52.
(18a). — Cf. Servius, ad Aeneidem, I, 373.
. — Encontram-se os fragmentos de Catão em Historicorum Romanorum Fragmenta,.
ed. H. Peter, Lipsiae, 1883.
416 —

-povo, da fundação da cidade até a guerra lusitana (154-151), as


,chamadas Origines. O autor não prestava atenção aos fatos mete-
-reológicos e às banalidades econômicas que se repetiam invariàvel-
mente nos annales maximi (20); o que lhe interessava era a política,
a vida militar e a exaltação patriótica das façanhas nacionais.
'Omitia sistemàticamente os nomes dos heróis (21), tributando ape-
nas elogios impessoais aos soldados e estadistas como representantes
de Roma. Assim descreve detalhadamente o comportamento he-
róico de um oficial, Q. Caedicius, durante a primeira guerra pú-
nica, sem lhe mencionar o nome! Em compensação, dá o nome
de um dos elefantes do exército do rei Antíoco, e insere dois dis-
cursos que êle próprio proferira no Senado. (22) . Incoerência es-
tranha: desaparece o anonimato onde o próprio autor entra na
cena!
Dos analistas latinos, cujas obras se perderam igual-
-mente, mencionamos apenas: Lúcio Célio Antípater (século II),
Cláudio Quadrigário (século I) e Valério Ântias (século I) . Ao
passo que os dois primeiros escreveram certos episódios da histó-
ria romana, abrangeu o terceiro o período de 753 a 78 a. C. (morte
de Sila), em 75 livros. Os analistas tendiam, em geral, a exage-
rar as realizações dos seus patrícios: principalmente Valério tinha
péssima reputação (23) .
II. Na época de Cícero, havia em Roma quatro historia-
dores, que merecem a nossa atenção.
Gaio Júlio César (100-44) deu, nos seus Commentarii
De Beijo Gallico, o memorial das suas conquistas na Gália (58-
52); o livro oitavo foi depois acrescentado por seu lugar-tenente
Aulo Hírcio. A obra é preciosa fonte de informação, mas por ser
uma apologia da política do autor, oculta ou desfigura os verda-
•deiros motivos. Em todo o caso, é muito superior aos Commen-
tarii de Beijo Civili (em 3 livros), que dão uma versão muito ten-
denciosa da guerra civil entre Pompeu e César (5049).
Gaio Salústio Crispo (87-35) escreveu, além das suas
_Historiae, obra quase completamente perdida, duas monografias:
_De Conjuratione Catilinae, e De Bello Jugurthino. Imitador de
Tucídides, quanto ao estilo, é-lhe muito inferior no que diz res-
peito às idéias, ao método, à imparcialidade. A grande preo-

420). — Cato, Fragmentum 77: Non lubet scribere, quod in tabula apud pontificam
maximum est, quotiens anona cara, quotiens lunae aut solis lumine caligo aut
quid obstiterit.
( 21) . — Não sabemos ao certo se Catão conseguia omitir também os nomes dos heróis
pré-históricos, venerados como divinos em Roma, por exemplo Rômulo. A
nosso ver, é pouco provável.
(22) . — Cf. Cato, Fragmenta, 83; 88; 95, etc.
423) . — Cf. Titus Livius, Ab Urbe Condita, XXVI 49, 3: adeo (ei) nulius mentiench
modus est.
— 417 —

ocupação do autor é a de demonstrar, nas suas obras, a depravação


4:lo regime aristocrático de Roma, tendência essa que prejudica
-visivelmente a objetividade.
Cornélio Nepos (94-24) deu, nos 16 livros da sua obra
De Viris Illustribus, uma galeria dos homens ilustres da Grécia e
de Roma. Só 23 biografias chegaram até nós. São folhetins de
pouco valor histórico.
Marco Terêncio Varrão (116-27), o maior erudito de
Roma, escreveu várias obras enciclopédicas, destituídas de valor
literário, mas preciosas fontes de informação, por exemplo Ariti-
.quitates Rerum Humanar= et Divinarum em 41 livros. Perdeu-
se esta obra bem como quase tôdas as demais obras dêste polí-
grafo romano (24).
III. Tito-Lívio é um dos maiores historiadores romanos (59
a. C.-17 d. C.). Nos tempos do Imperador Augusto escreveu a sua
obra monumental: Ab Urbe Condita, em 142 livros, que trata da
história romana desde o início até o ano 9 a .C. (25) . Não era pes-
•quisador meticuloso, nem se demorava muito em examinar rigoro-
samente os documentos. Assim mesmo tinha idéias elevadas da
verdade histórica, e esforçava-se sinceramente por ser imparcial. O
.,opus magnum de Tito-Lívio, como o do poeta Virgílio, deve sua
origem e sua inspiração a um patriotismo autêntico: quer propor
_aos seus concidadãos o glorioso passado da cidade para fazê-lo amar
-e admirar. Ao mesmo tempo visa a soerguer a moralidade dos seus
contemporâneos, mediante as lições do passado: inde tibi tuaeque
_reipublicae quod imitere capias, inde foedum inceptu, foedum exitu,
quod vites (Prefácio do Livro I, 9). Tito-Lívio é grande artista,
romântico e imaginativo, que entende perfeitamente da arte de re-
vivificar os tempos idos. Essas qualidades, porém, chegam a pre-
judicar, às vêzes, a objetividade serena, tão necessária a um histo-
riador: descreve um passado, cheio de vida e cenas dramáticas, mas
cheio também de elementos lendários. A sua grandiosa síntese, que
, ›é mais uma concepção artística do que uma obra científica, deu
forma clássica à história primitiva do povo romano, tal como se
transmitiu até o início do século XIX .
IV . O segundo grande historiador romano é Públio Corné-
"lio Tácito (±55-±- 120 d. C.), autor das Historiae, em 14 livros (26),
{24) . — Varrão escreveu 74 obras em mais ou menos 620 livros. — Cf. S. Augustinus,
De Civitate Dei, VI 2: qui tem multa legit, ut aliquid scribere vacuisse mi-
remur; tem multa scripsit, quem multa vis quemquam legere potuisse credamus.
a(25). — Chegaram até nós 35 livros: I-X (753-293 a. C.), e XXI-XLV (221-167
a. C.) . A extensão enorme da obra liviana (cf. Martialis, Epigrammaton,
XIV 190: Pellibus eaiguis artatur Livius ingens, Quem mea non totum bi-
bliotheca capit), tomava necessárias sinopses mais manejáveis (as chamadas
Peridchae), que ainda possuimos.
426) . — As Historiae tratavam da história romana de 68 (morte de Nero) a 96 (morte
de Donaiciano) Possuimos apenas os livros I-IV, e V incompleto.
— 418 —

dos ~ales ab Excessu Divi Augusti, em 16 livros (27). Além ,


disso, consagrou uma monografia interessantíssima à Germânia:.
De Situ ac Populis Germaniae. Tácito é o psicólogo inigualado-
entre os historiadores antigos, mas obscurece-lhe os horizontes o seu,
temperamento negro e apaixonado. Partidário do antigo sistema.:
republicano, irrevogàvelmente perdido no seu tempo, propendia
para uma interpretação pessimista dos acontecimentos do século ,-
I, que descrevia com tanta maestria. Conformava-se, afinal, com _
a liberdade relativa que lhe garantia o reinado de Trajano (98-
117): rara temporum felicitate, ubi sentire quae velis et quae
sentias dicere licet (Hist., 1, 1). A êle.remonta a bela expressão,..
tantas vêzes citada: sine ira et studio (Ann., 1 1). Com efeito,
Tácito considera com seriedade a tarefa do historiador, não pou-
pando esforços para colecionar os diversos documentos relativos
à época por êle estudada. Pela correspondência de Plínio-o-Moço
sabemos que o autor consultou seu amigo, pedindo-lhe informa-
ções a respeito da morte de seu tio, Plínio-o-Velho, que tinha pe-
recido quando da erupção do Vesúvio (79 d. C.): possuímos ainda .
a resposta que lhe deu o amável epistológrafo (28), mas perdeu--
se, infelizmente, a passagem correspondente na obra do historia-
dor. Além disso, Tácito é grande autor, um dos prosadores mais ,-
aprimorados da literatura latina. Seu estilo é compacto e lapidar,..
cheio de insinuações e de sentenças.
V. Com a morte de Tácito acabou-se a grande época da-.,
historiografia latina: os epígonos, com pouquíssimas exceções, não--
passam de compiladores, ou então são escrivães industriosos sem
poder de "re-viver" o passado que teve um Tito-Lívio, e sem a
penetração psicológica de um Tácito. Mencionamos aqui ràpida--
mente:
a) Gaio Suetônio Tranquilo ( -±75-±160), secretário da- ,
Imperador Adriano (117-138) e, como tal, possuindo muitos co-
nhecimentos dos arquivos públicos, escreveu as Vitae Duodecirrr
Caesarum, de Júlio César a Domiciano (t96 d. C.). São opús--
culos de uma documentação valiosa, mas escritos num estilo árido,
compostos de maneira muito esquemática. Não penetra na psi-
cologia das pessoas estudadas nem se esforça por procurar as cau-
sas remotas dos fatos. As biografias exerceram grande influência_

(27) . — Os Annales descreviam a época desde a morte de Augusto (14 d. C.) até a --
morte de Nero (68) . Possuimos completos os livros I-IV, incompletos V e -
VI (reinado de Tibério); completos XI-XV (os fins do reinado de Cláudio
e os primeiros anos de Nero), e incompleto XVI.
(28). — Plinius, Epistulae, VI 16. — O mesmo Plínio escreve, outra vez, a seu amigo ,
(VII, 33,3): Augurar, nec me fallit, ougariam, histoiras tuas immortales futuras.
— 419

e foram, inferiormente, imitadas pelos seis autores da chamada


.Historia Augusta (29).
b) Amiano Marcelino, natural de Antioquia e grego roma-
nizado, é o maior historiador do Baixo Império (século IV) . Pre-
tendeu continuar a obra de Tácito nos 31 livros Rerum Gestarum
(30), que abrangiam o período de 96 a 378 (Valens). Compa-
nheiro do Imperador Juliano-o-Apóstata (361-363), conhecia pes-
soalmente a diplomacia, a vida militar e a política dos seus tem-
pos, bem como muitas das regiões por êle descritas. Era histo-
riador perito e honesto, mas escrevia, como estrangeiro, um péssi
mo latim.
VI. No limiar da Idade Média ia-se aumentando o inte-
rêsse pela história dos povos bárbaros, os quais invadiram o ter-
ritório do Império Romano. O fato é característico dos tempos
por dois motivos: as tribos germânicas iam sendo integrados na
Romanitas Christiana (31), a sucessora do Império, e a interpre-
tação imperialista da história ia cedendo a um interêsse pela his
tória provincial e regional. Os mais importantes representantes
dêsse tipo de historiografia são:
Magno Aurélio Cassiodoro Senador (±485-±- 580), ori-
ginàriamente ministro de Teodorico o Grande (492-526) e de ou-
tros reis ostrogodos, depois monge, escreveu uma Historia Gothica,,
em 12 livros, que chegou até nós num excerto miserável do monge
Jordanes ou Jornandes.
Gregório de Tours (±540-594) escreveu a Historia Fran-
corum, em 10 livros, que, além de nos dar os acontecimentos de uma
época turbulenta e pouco conhecida, é também uma fonte rica
do latim vulgar.
Isidoro de Sevilha (±560-636) escreveu os anais das,
várias tribos que ocuparam a península ibérica, intitulados: Go-
thorum, Vandalorum et Suevorum in Hispania Chronicon. Aí en-
contramos uni elogio entusiasta à pátria do autor: Omnium ter-
rarum, quae sunt ab occiduo usque ad Indos, pulcherrima es, o.
sacra semperque felix mater, Spania! Jure tu nunc omnium regina
provinciarum; a qua non occasus tardam, sed etiam oriens lumina
mutuat (32) .
Paulo Diácono (±720-797) escreveu a Historia gentis .

Langobardorum, que abrange o período de 568 a 744.

— A obra data de 330 d. C., e dá as biografias dos Imperadores Romanos a partir


de Adriano (117) até CarMo (284). — O biógrafo de Carlos Magno, Eginhar-
dus ou Einhardus, tomou por modélo a Suetônio, na sua Vita Caroli Magni Im-
peratoris.
— Possuimos os livros XIV-XXXI (355-378); os tempos anteriores ao ano 355.
devem ter sido tratados muito ligeiramente.
— A palavra Romania ocorre, pela primeira vez, na obra do historiador Orósio,
Historiae, VII 43,4.
— .Isidorus Hispalensis, Chronicon, in Praefatione.

Revista de História n.• 20


— 420 —

e) O monge anglo-saxão Beda (673-735) escreveu uma obra


muito estimada, chamada: Historia Ecclesiastica gentis Anglorum,
que descreve os principais acontecimentos desde César até 731 na
Inglaterra.
VII. Com êstes dois últimos autores já nos achamos em ple-
na Idade Média. À época da Grande Migração dos Povos perten-
cem ainda a História Universal do sacerdote bracarense Paulo Oró-
sio, de que pretendemos falar no § 77, e o opúsculo De Aetatibus
Mundi et Hominis, escrito por Fulgêncio (século VI), retor afri-
cano, muitas vêzes apelidado de "mitógrafo". Êste homem preten-
dia escrever uma sinopse da história universal em 23 capítulos, uru
verdadeiro tour de force, já que no Capítulo I evitava sistemati-
camente a letra a, no Capítulo II o b, no Capítulo III, o c, e assim
por diante. Parece que o autor, chegado ao Capítulo XV (em que
devia evitar o p), ficou desanimado: em todo caso possuímos ape-
nas 14 capítulos desta obra extravagante, sinal da decadência e da
insipidez dos tempos.

§ 5. As crônicas.
L
Nos fins da Antigüidade abaixou o nível cultural e científico:
os intelectuais, em vez de fazerem pesquisas pessoais, contentavam-
se em compilar as obras clássicas, que se iam revestindo de um
prestígio quase dogmático. A ciência, renunciando ao ideal de pro-
gredir, sofria de esclerose, e era baseada em livros de segunda mão:
manuais e enciclopédias. Repetiam-se as palavras dos grandes mes-
tres, amiúde mal entendidas e quase sempre conhecidas indireta-
mente. A historiografia partilhava a triste sorte das outras ciências
e artes: era a época das sinopses, dos resumos, dos manuais, aos
quais, em geral, faltava todo o senso histórico. A decadência não
estava no fato de haver manuais, — enciclopédias e manuais são
os companheiros indispensáveis de uma velha cultura, — mas na
sua péssima qualidade, prova da diminuição do espírito crítico, e
no fato de não existirem, ao seu lado, obras históricas e pes-
quisas originais. A historiografia era reduzida a tabelas cronoló-
gicas, regressando assim ao seu ponto inicial. Os cristãos, pouco in-
teressados em investigar o passado pagão, contribuiarn muito para
o desenvolvimento do novo gênero: as crônicas. Interessava-lhes
saber de que maneira se enquadrava a história do povo eleito na
história profana dos gentios. Devemos reconhecer que esta tentativa
de alargar o horizonte histórico constituia uma novidade e podia
ter sido um progresso considerável. Mas os cristãos, filhos de uma
cultura moribunda,, harmonizavam a história sagrada e a história
profana bastante desleixadamente, introduzindo muitos erros na
historiografia. Não eram pesquisadores mais críticos do que seus
— 421 —

colegas pagãos: compilavam muito superficialmente a Bíblia e al


guris autores clássicos.
Obra de certo valor era a Crônica de Flegonte de Tra-
les (século II), liberto do Imperador Adriano: As Olimpíadas, em
16 livros (33). Era uma espécie de história universal, que abrangia
o período de 776 a. C. a 140 d. C. Escrita numa linguagem negli-
gente, sacrificava a síntese histórica ao estudo de fatos concretos,
muitas vêzes insignificantes, e tinha apenas valor como fonte de
informação.
Mais conhecida é a Crônica do bispo Eusébio de Cesaréia
(260-340), amigo do Imperador Constantino Magno (306-337) .
Esta obra compunha-se originàriamente de 2 livros (34), e dava
as linhas gerais da história universal, em tabelas sincrônicas, desde
Abraão (2016 a. C.) até o ano 325 d. C. O livro II, que continha
os chamados cânones, foi traduzido por São Jerônimo para o latim
(±345-420), e prosseguido até o ano 378 (35) . A Crônica de
Eusébio-Jerônimo, de imensa importância para a historiografia me-
dieval, começa por quatro tabelas: a primeira se refere à história
dos assírios, a segunda à dos siciônios (os habitantes de uma cidade
grega), a terceira à dos hebreus, e a quarta à dos egípcios (36) . Aos
poucos entram na Crônica notícias acêrca dos atenienses, persas,
macedônios, etc., para tôdas elas, finalmente, convergirem na his-
tória do Império Romano.
A obra de Jerônimo foi continuada por Próspero Tiro
(até 455), pelo espanhol Hidácio (até 468), pelo cortesão bizan-
tino Marcelino Comes (até 566) . Além disso, o bispo Mário de
Avenches (na Suiça) continuou a obra de Próspero até 581, e Cas
siodoro elaborou nova Crônica com Fasti Consulares, que vai até-
519. Dois exemplos podem, ilustrar a falta de crítica e de método
nos cronistas do século VI. Em 452 se deu a batalha nos Campos;
Cataláunios entre os exércitos romanos e as hordas de Atila: Mar--
calino Comes não menciona esta batalha, tão decisiva para a sobre-
vivência da civilização, mas anota na sua Crônica ad annum 452:
Hoc anno tres lapides magni de caelo ceciderunt in Thraciam.
Cassiodoro, ad annum 189, fala em dois cônsules romanos, aos quais
. — Encontram-se os fragmentos das Olimpíadas de Flegonte nos Fragmenta Ris--
toricorum Graecorum (edd. C. et Th. Milller, Bibliotheca Didotiana, vol. III,
págs. 603, sqq. ) .
. — Perdeu-se o original, conservando-se só uma tradução armênia da obra inteira..
(35). — São Jerônimo enriqueceu o original de várias notícias importantes para a his-
tória da literatura latina.
(36) . — A Crônica de Jerônimo começa assim: Primus omni Asiae exceptis Indis .
Ninus Beli lifius regnavit anais LII in Graecia vero secundus Sicyo-
Mis imperavit Europs anais XLV . . . in hujus Nini imparia apud lie-
brecas nascitur Abraharn Porro apud Aegyptios XVI potestas erat -
quem vocant Dynastiam: quo tampara regnabant Thebaei, qui praeluerunt.
Aegyptiis.
¢1á os nomes de Duo e Silanus, , copiando com muito descuido- a.
,

jerônimo, que escrevera: Duobus Silanis: ("sob o consulado dos


dois irmãos Silanos").
rV.As crônicas dominaram a Idade Média: os mosteiros im-
portantes, as chancelarias dos papas, bispos e reis, faziam questão
de ter as suas crônicas, ligando-as, ou não, a trabalhos já existen-
tes. Era uma historiografia muito elementar, a que devemos, po-
rém, notícias importantes sôbre a vida política, religiosa, social, eco-
nômica e cultural da Idade Média. Comparados com o alto nível,
alcançado na Antigüidade por Tucídides, Políbio e Tácito, os es-
tudos históricos medievos significam um retrocesso inegável, mas
em geral são superiores às Crônicas do Baixo Império. Não poucos
cronistas medievais tinham bastante bom senso, notável dom de
observação, eram ótimos contadores que se esforçavam por ser im-
parciais. Faltavam-lhes, porém, os métodos aprimorados da Crí-
tica moderna e o "senso histórico", no sentido que nós costumamos
ligar a essa palavra; além disso, não procuravam as causas remo-
tas. Muitas crônicas medievas dão narrativas extensas e contí-
nuas, tendo em comum com as crônicas dos séculos IV-VII só o
nome: no sentido técnico da palavra, não são crônicas, mas anais.
Levar-nos-ia muito longe se acompanhássemos a história das
crônicas medievais. Mencionamos aqui apenas alguns nomes ilus-
tres. Na Alemanha destacou-se Otão de Freysing (cf. § 79, nota
36), que escreveu suas obras em latim. Na França Geoffrey de
'Villehardouin (1164-1213), autor do livro: Sur Ia Conquête de
,Constantinople, e Froissart (1337-1405), cronista da Guerra de Cem
Anos. Em Portugal Fernão Lopes (±1380-1459), que vivia nos
fins da Idade Média, e tinha a atitude de um autêntico inveskiga-
dor. Leia-se por exemplo êste trecho: "Nós, certamente, posta de
parte tôda a afeição que por azo das ditas razões podíamos ter, nos-
so desêjo foi nesta obra escrever verdade, sem outra mistura, dei-
xando nos bons sucessos todo o fingido louvor, e nuamente mostrar
.ao povo quaisquer coisas em contrário, da maneira que sucederam",
e êste: "Nem entendais que certificamos coisa salvo de muitos apro-
vada e por escrituras vestidas de fé; de outro modo, antes nos ca-
laríamos do que escreveríamos coisas falsas" (37).

§ 6. A Renascença e o Humanismo.

Tampouco criaram a historiografia moderna a Renascença e o


Humanismo. Os historiadores desta época, tomando por modêlo
, os autores clássicos (principalmente
. os latinos), imitavam-lhes so-

Ferrão Lopes, (seleção editada) por A. J. Saraiva (Coleção SABER), Lis-


boa, págs. 25-26.
— 423 —

lciretúdo o estilo e à coMposição literária. O nacionalismo nascente


dava uma nota patriótica às suas obras, e o absolutismo sujeitava-
.-as, muitas vêzes, aos interêsses dinásticos. Não se originou o es-
pírito crítico nem o "senso histórico" no sentido moderno dessas
palavras: o dogmatismo medieval era simplesmente substituído
por outro, dogmatismo: a admiração cega pelas obras da Anti-
güidade clássica. A historiografia renascentista e humanista é,
portanto, a continuação da dos fins da Idade Média, com esta di-
--ferença de que é moldada pelos exemplos clássicos. Representan-
tes ilustres são, na Itália: Nicolò Machiavelli (1469-1527), au-
tor das Istorie fiorentine (1532), em 8 livros (cf. § 81 II), e em
Portugal: João de Barros (1496-1590), o exaltador caloroso da
colonização portuguêsa, na sua obra Décadas de Ásia, e afinal:
Frei Luís de Sousa (1555-1632), no mundo, Manuel de Sousa
Coutinho, autor de uma obra muitíssimo estimada: Anais de D.
João III.
Duas circunstâncias, porém, deram grande impulso aos es-
- tudos propedêuticos da história: a filologia clássica e a Reforma.
Os humanistas faziam questão de possuir o melhor texto
possível dos seus autores adorados. Sua devisa Ite ad Fontes não
tinha valor prático a não ser que as' fontes estivessem limpas.
Editar um' texto, expurgá-lo dos erros de uma tradição desfigura-
, dora, e colecionar códices dignos de confiança, era uma das in-
cumbências mais imperiosas dos humanistas. A filologia clássica
é a mãe da historiografia moderna. Reservamos para outros pa-
-rágrafos (§ 42, I e § 47, I) a exposição do trabalho intenso, feito
pelos humanistas europeus durante os séculos XVI-XVIII. Basta
dizermos aqui que as edições críticas possibilitaram o nascimen-
to da nova ciência que se deu por volta de 1800. Também a pai-
xão humanista de colecionar moedas, inscrições, vasos e objetos
de arte da Antigüidade, inicialmente apenas uma mania, ia des-
pertando, aos poucos, um certo senso histórico: não tardou que
-..se procurassem enquadrar as descobertas arqueológicas nos mol-
- des da historiografia clássica. Também nasceu o espírito crítico:
Jacob Perizonius (1651-1715), professor em Leida, foi o primeiro
, a abalar a autoridade dogmática de que gozavam vários autores
latinos, principalmente Tito-Lívio, na sua obra Animadversiones
Historic,ae (1685), que já anuncia os trabalhos de um Niebuhr e
4outros.
As disputas teológicas entre o Protestantismo e o Ca-
tolicismo estimulavam também os eruditos das duas confissões a
--fazerem pesquisas históricas. O historiador dálmata, Flaccius Illy-
Ticus (1520-1575), apresentou, nos anos 1559-1574, ao público
culto da Alemanha, uma interpretação luterana da história, nos
— 424 --

'oito volumes da sua Historia Ecclesiastica. A obra, organizad a


conforme os séculos (latim: centuriae) tratava a história dos pri-
meiros 13 séculos da éra cristã, tornando-se conhecida sob o no-
me de Centúrias de Magdeburgo, cidade alemã, onde era editada.. .
A resposta católica veio do erudito cardeal italiano, César Barônicr=
(1538-1607), que nos 12 volumes dos seus Annales Ecclesiastici•
seguia o método analista até o ano 1198. A obra saiu de 1588 a
1607, e foi várias vêzes reeditada, como aliás também a história
protestante de Magdeburgo.
§ 7 . A historiografia moderna.
E' bastante difícil dizer com precisão quando nasceu a histo-
riografia moderna. A nova ciência, já anunciada pelos trabalhos.
filológicos dos séculos XVII e XVIII, obedecia à lei de tôdas as.
grandes realizações do espírito humano: nasceu despercebida, cres-
ceu aos poucos e manifestou-se suscetível de vida só no início do-
século passado.
Muitas vêzes passam Voltaire e Montesquieu pelos pais:-.
da historiografia moderna . E' mais do que um exagêro, é um en-
gano. Sem dúvida, Voltaire foi um dos primeiros a chamar a aten-
ção para a história da civilização (cf. § 29, I), mas em outros pon-
tos era um espírito tipicamente "a-histórico", como havemos de ver -
no § 86, III, apesar de sua crítica penetrante à historiografia con-
vencional do seu tempo. Quanto a Montesquieu, sua obra Considé-
rations do ano 1734 (cf. § 87, I), não é trabalho de investigação ,
pessoal, fundada em novos princípios (o autor era demasiadamen-
te negligente em citar, o que lhe valeu as censuras de um Voltaire,
e fundamentava-se sôbre obras já existentes), mas um tratado políti-
co ou "filosófico", na terminologia da época. Ao escrever as Considé--
rations e L'Esprit des Lois, o autor francês não pretendia recons-
truir minuciosamente o passado para depois revivificá-lo, mas, en-
veredando pelos caminhos, já indicados por Políbio, Bodin e Ma-
quiavel (38), pretendia buscar "leis históricas" com o fim de utili-
zá-las para a organização política da sociedade moderna. Mais ilus-
trativo da nova mentalidade é o livro de Giambattista Vico: Lae
Scienza Nuova (cf. § 83), mas também esta obra dá mais a meto-
dologia do que uma historiografia propriamente dita; aliás, exerceu -
pouca influência sôbre o pensamento do século XVIII.
Uma das primeiras obras históricas, baseadas em pro-
fundos conhecimentos dos documentos, é o livro magistral do in-
glês Edward Gibbon (1737-1797): History of The Decline and Fali"
of The Roman Empire, publicado em 6 volumes (39), que trata dos:.

(38). — N. Machiavelli, Discorsi sopre la prima decade de Tito Livio (1531).


(39) . A obra foi publicada de 1776 a 1788.
425 ---

destinos do Império Romano desde 180 d. C. (morte do Impera-


dor Marco Aurélio) até a Queda de Constantinopla (1453) .
autor tem tôdas as qualidades de um grande historiador: o espírito
crítico, conhecimentos profundos e avaliação metódica das fontes
(40), largas vistas, poder imaginativo, intuição e um estilo magní-
fico; combina a procura das causas remotas com um interêsse bem
raro pela unicidade dos fenômenos históricos. Naturalmente, mui-
tos capítulos do livro de Gibbon estão hoje em dia superados, — é
o fado de todos os livros científicos, — e os pressupostos raciona-
listas do autor são atualmente idéias antiqüadas. No entanto, a con-
cepção e a elaboração de seu tema vastíssimo são geniais, e con-
tinuam a atrair muitos leitores, leigos e entendidos. O autor,
quando em Roma (1764), ouviu o canto de frades capuchinhos nas
ruínas do Capitólio, e ficou melancèlicamente impressionado pela
reflexão sôbre a instabilidade das coisas humanas: foi assim que
lhe surgiu a idéia de escrever um livro sôbre a decadência da Ci-
dade Eterna: /t was among the ruins of the Capito' that 1 first
conceived the idea of a work which has amused and exercisecl pear
twenty years my life, and which, however inadequate to my
own wishes, 1 finally deliver to the curiosity and candour of the
public: com estas palavras termina a obra de Gibbon.
III. O dinamarquês Bartoldo Jorge Niebuhr (1776-1831),
duas vêzes diplomata a serviço da Prússia, publicou em 1811-1812
os dois primeiros volumes da sua História Romana, completados
em 1832 pelo terceiro volume que saíu depois da morte do autor
(todos escritos em alemão) . Foi êle o primeiro a aplicar uma crí-
tica rigorosa aos documentos históricos, chegando a destruir a tra-
dição secular de Tito-Lívio no que diz respeito à história primitiva
de Roma; foi êle o primeiro, nos tempos modernos, a valer-se siste-
màticamente de todos os vestígios do passado para a reconstrução
científica de tempos idos, método êsse que depois seria aperfeiçoado
pelos grandes mestres da historiografia do século passado; foi êle•
que se serviu, — às vêzes com arrôjo excessivo — da ilação histó-
rica, fazendo hipóteses e esforçando-se por descobrir o núcleo his-
tórico nos dados contraditórios da tradição. Daí por diante a nova
ciência, ràpidamente crescendo e chegando à maturidade, prosse-
guiu triunfantemente o seu caminho: foi principalmente na Alema-
nha que foram elaborados os novos métodos, mas não tardaram
êles em conquistar todos os países civilizados da Europa e da
América.
W. A nova concepção da história, nascida entre 1750 e 1820,
não invalida a historiografia anterior ao século XIX; tampouco é
(40) . Gibbon utilizou as obras do jansenista francês Lenain de Tillemont (1637-
1698), autor de Histoire des Empereurs e Mémoires pour servir à PHistoire-
Ecclésiestique des ais premiers Siècles.
-426—

, completamente uniforme. Sua originalidade reside em três fatô-


Tes característicos, que outrora não eram inteiramente desconheci-
dos, mas freqüentemente sacrificados a finalidades literárias, mo-
ralistas ou até políticas:
uma crítica rigorosa das fontes históricas, — externa e
interna, — para a qual se elaborou um sistema científico. Neste
:ponto continua e aperfeiçoa a tradição gloriosa dos humanistas, e
.aprofunda a crítica dos racionalistas do século XVIII, que amiúde
era superficial e destrutiva.
o aproveitamento metódico de documentos não-li'terá-
rios: moedas, inscrições, monumentos arqueológicos, dados lingüís-
ticos, etc. Também êste fator remonta, nos seus primórdios, aos
humanistas.
um novo "senso histórico" (cf. § 65) que consiste em uti-
lizar certos conceitos históricos, antigamente pouco ou não conhe-
, cidos, tais como: a tipologia, a evolução, o organismo, a unicidade
dos fenômenos estudados, etc. Nasceu no século XIX, principal-
mente sob a influência do Romantismo, e do Cientismo. Estuda-
- remos os dois primeiros dêsses fatôres na segunda parte dêste li-
vro; o terceiro, que é muitas vêzes negligenciado, na terceira parte
, como também na primeira, em que pretendemos dar algumas no-
, -ções gerais da ciência histórica.
IV. E. Bernheim, exagerando as diferenças que existem en-
Ire a historiografia antiga e a moderna, fala em três tipos de his-
tória (41): a história narrativa, inaugurada por Heródoto e prati-
cada pelos cronistas e analistas; a história "pragmática" (42) ou
"didática", inaugurada por Tucídides e Políbio; e a história genéti-
ca, que procura, antes de mais nada, a evolução orgânica dos fenô-
menos históricos, filha dos tempoS modernos. A tripartição tem
certo valor, contanto que não tornemos absolutas as oposições que
-são mais gradativas que essenciais, pelo menos entre os grandes his-
toriadores de todos os tempos. Também a historiografia moderna
•descreve, e deve descrever (cf. § 13, I); também ela contém lições
(cf. § 32, IV-V); e, afinal, também os antigos e os medievos tinham
-certas idéias a respeito do caráter genético e do progresso histórico
-das artes e das ciências. Não podemos entrar aqui neste assunto:
.será uma das finalidades principais dêste livro esclarecer o con-
ceito hodierno da história e aplicá-lo aos diversos assuntos que ha-
vemos de encontrar no nosso caminho.
(41) . — E.Bernheim, Introducción al Estudio de ia Historia (Colección Labor), Bar-
celona, etc., 1937, págs. 9-15.
-(42). — O têrmo "história pragmática" significa originàriamente "história dos fatos
(políticos e militares)", cf. § 3, IV, mas -por se dirigir esta espécie de his,
tória a estadistas- e políticos, com o fim de lhes ensinar a "vida prática", veio
a significar "didática".
CAPÍTULO SEGUNDO

O CONCEITO DA HISTÓRIA

§ 8. A definição.

Existem numerosas definições da história. A nosso ver ela po-


deria ser definida desta maneira:
A história é a ciência dos atos humanos do passado e dos
vários fatôres que neles influíram, vistos na sua sucessão temporal.
Os diversos elementos desta definição podem fàcilmente ser
:mal entendidos, de modo que cumpre examiná-los de mais perto.
A história é ciência. A discussão desta questão disputada fica
-reservada para outro capítulo (IV), onde procuraremos estabele-
cer em que sentido se pode chamar ciência à história. Basta di-
zermos aqui que o historiador dispõe de certos meios científicos
para alcançar conhecimentos e, além disso, se serve de certa sis-
tematização, quer dizer: que põe em ordem os resultados obtidos
pela pesquisa.

A. O OBJETO MATERIAL.

§ 9. Os atos humanos.

Atos humanos são atos próprios do homem enquanto homem,


por exemplo: amar, odiar, escrever; guerrear, etc. Por serem delibe-
rados e voluntários, distinguem-se dos chamados atos do homem,
por exemplo: respirar, crescer, digerir, etc., atividades independen-
tes da inteligência e da vontade humanas. Ora,, o objeto próprio
da história são os atos humanos. Por que?
Atos humanos, como tais, são manifestações da pessoa huma-
na, revelando sempre certo grau de espiritualidade e, por conse-
guinte, de originalidade. Por isso possuem valor intrínseco e mere-
cem a nossa atenção por motivos muito especiais. A física, a quí-
mica e até a biologia estudam os seus objetos, podendo fazer abs-
tração da matéria individual: pouco lhes importa o caso concreto
e individual. No Reino do Espírito, que é o terreno das livres de-
cisões, a situação é muito diferente: aqui se nos apresentam sempre
•casos concretos e únicos, aqui encontramos sempre algo de novo,
de imprevisto, de original, digamos melhor: de pessoal. Nunca se-
— 428 —

remos capazes de compreendê-los ou explicá-los completament -e,


mas podemos e devemos "entendê-los" em virtude de uma "co-
experiência" nossa. Mais adiante pretendemos esboçar em que
consiste um tal "entendimento".
Os atos humanos interessam-nos também por outro motivo .
O homem é ser histórico por excelência, visto que é, até certo ponto,.
senhor dos seus atos. Dotado de inteligência e de livre arbítrio,
duas faculdades inexistentes no reino animal, é capaz de propor-
se, deliberadamente, um fim e de escolher, livremente, os meios
apropriados para alcança-lu. Neste ponto vem ajudá-lo, sobrema-
neria, a experiência, da qual êle participa mais do que os animais,.
como já Aristóteles• observou (1) . Têm êstes memória, sim, sus-
cetível até de alto grau de aperfeiçoamento, mas sempre depen-
dente de uma impressão material, que se assemelhe a outra, rece-
bida anteriormente . Falta-lhes, porém, a recordação, pela qual o
homem é capacitado a fazer voltar à lembrança coisas antes experi-
mentadas, independentemente de tôda e qualquer impressão ma-
terial. Por outra, o homem vive no tempo, o bruto no momento .
Ademais, o homem pode refletir nas suas experiências, tirando-lhes
conhecimentos gerais a fim de aproveitá-los para um caso seme-
lhante no futuro. A experiência refletida torna-se assim instru-
mento poderoso a serviço do homem, possibilitando-lhe o melhora-
mento constante das condições materiais e de tôdas as manifesta-
ções superiores da vida humana . Não se limita à existência de um
só indivíduo: pode-se transmitir de uma pessoa a outra, de uma
geração a outra, de modo que, morrendo estas, aquela morre ape-
nas parcialmente. Toute la suite des hommes, pendant le cours de
tant de siècles, doit être considérée comme un même homme qui
subsiste toujours et qui apprend continuellement (2) .

§ 10. O' progresso' na História.

O homem, então, é animal progressista, e por isso é ser histó-


rico num sentido muito especial. Em última análise, não o são nem
os minerais, nem as plantas, nem os brutos, senão em sentido de-
rivado: êstes evolvem, aquêle progride. O tico-tico constrói o seu
ninho da mesma forma que há mil anos, e daqui a mil anos não
será diferente. Com a graça que lhe é peculiar, Chesterton observa:
The very fact that a bird can get as far as building a nest, and
,

cannot get any farther, proves that he has not a mind as man has

(1) . — Aristóteles, Metaphysica, I 1, 4.


(2). — Blaise Pascal, Fragment d'un Traité du Vide (éd. L. Brunschvicg), pág. 80.
— Encontra-se o mesmo pensamento nas obras de Santo Agostinho, por exem-
plo De Vera Religione, XXVII 50: universum gentis hum anus, cujus tem-
quem unius hominis vita est ab Adem usque ad finem hujus saeculi.. •; cf. .
De Civitate Dei, X 14.
-429 —

a mind: it proves it more completely than if he built nothing st


all. If the built nothing st all, he might possibly be a philoso-
pher of the Quietist ar Buddhistic school, indifferent tb all but the
mind within (3). Nos períodos seculares, em que o homem tem ha-
bitado a terra, construiu cabanas, mas também o Pártenon de Ate-
nas e a catedral de Chartres, e agora está construindo os arranha-
céus nas grandes metrópoles. A tendência progressista não se limi-
ta a descobertas técnicas, estende-se igualmente às conquistas inte-
lectuais e espirituais, ou antes, são estas que tornam possíveis aque-
las. Aristóteles, falando dos primeiros filósofos, compara-os a crian-
ças balbuciantes, a soldados pouco exercitados, a pessoas que não
sabem o que dizem (4) . E São Tomás formula a lei do progresso
humano desta maneira: Humanae rationi naturale esse videtur ut
gradatim ab imperfecto ad perfectum perveniat. Unde videmus
in scientiis speculativis, quod qui primo philosophati sunt, quae-
dam imperfecta tradiderunt, quae postmodum per posteriores sunt
tradita magis perfecta. Ita etiam et in operabilibus (5). O ho-
mem tem a possibilidade de progredir em virtude da sua natu-
reza perfectível: o progresso não é processo mecânico, que o en-
volva passivamente, mas tarefa que lhe é confiada, a conferir-lhe
certa responsabilidade. Tampouco é infinita a perfectibilidade hu-
mana: o homem será sempre um ser limitado, animal racional,
mas tendo a obrigação de vir a ser o que é, e de conquistar as-
sim, muitas vêzes, penosamente a sua liberdade e a sua perso-
nalidade .
O instrumento do progresso é a tradição: a transmissão dos
conhecimentos, métodos, formas, valores e experiências que o pas-
sado a custo elaborou para pô-los a serviço da posteridade . Tam-
bém a tradição não é processo mecânico, mas exige uma partici-
pação livre, um esfôrço pessoal de cada indivíduo humano para
integrar na própria existência as experiências dos antepassados.
E' uma assimilação espiritual, que consiste em vetera novis au-
gere. Daí nascem dois perigos para uma civilização. As expe-
riências transmitidas podem impor-se como fôrças tirânicas, a im-
pedirem o desenvolvimento original e viçoso da nova geração. Mas
ser fiel ao passado quer dizer também reencetar e continuar a obra
criadora dos antepassados. A tal petrificação da cultura, como se
verificou por exemplo em Bizâncio, opõe-se o culto aos filhos e
aos netos: as experiências do passado são desprezadas como ne-
cessàriamente inferiores às experiências hodiernas. E' o sonho in-
gênuo do Racionalismo, o qual, pretendendo livrar o homem dos

— G. X. Chesterton, The Everlasting Man, London, 1947, pág. 41.


— Aristóteles, Metaphysica, I 4, 3-4.
— S. Thomas, Summa Theologica, I-II, q. 97, a. 1 (in corpore).
-430 —

fantasmas de tempos idos, o transforma num idólatra das realiza- ,-


ções e opiniões, freqüentemente efêmeras, de hoje. O homem per-
de os seus laços vitais com a história .
A tendência progressista é eternamente humana, apesar de
ser mais perceptível em uma época do que noutra, e não obstante.
,

as numerosas falhas quanto ao fim proposto e aos meios escolhi-


dos. E' uma conseqüência trágica da nossa natureza imperfeita
que nem todo o progresso é um progresso para melhor. Os tem-
pos modernos estão verificando com certa preocupação o "pro-
gresso" assustador da técnica e das ciências, que ameaça sufocar
próprio homem mediante as invenções do espírito humano. To-
do o progresso histórico, por ser um bem particular, não possui
valor nenhum a não ser que seja subordinado ao Bem Universal
que é Deus. Tôdas as conquistas materiais e intelectuais se tor-
nam valiosas para o homem apenas na medida de serem integra-
das numa hierarquia objetiva dos valores: quem elimina a Deus,
Supremo Bem, acaba por eliminar ao homem .
vista da tendência progressista, tão evidente no processo
histórico, muitos historiadores e filósofos, desde o século XVIII,.
chegaram a limitar o objeto material da história àquêles aconte-
cimentos do passado que contribuiram para o progresso da hu-
manidade. E' um exagêro . Os atos humanos têm valor intrín-
seco, visto que se revestem de uma originalidade, que é prova da sua ,
espiritualidade. Destarte se explica o interêsse, despertado por
um trabalho bem feito, pela vida de uma pessoa sem grande re-
percussão nos tempos posteriores, ou pelas instituições de um po-
vo já há muito desaparecido, que pouco ou nada concorreu para
progresso do gênero humano.

§ 11. Os fatôres externos.

Há vários fatôres que influem no destino dos indivíduos e '

dos povos. Poderíamos dividí-los em duas categorias: uma abran-


ge os acontecimentos, independentes da atividade humana, que
aos nossos olhos se apresentam quase sempre como caprichos do
destino; a outra compõe-se de fatôres, igualmente externos, mas-.
de caráter mais ou menos permanente.
I. O tropeçar do cavalo,, que montava Guilherme III, o
rei da Inglaterra, causando-lhe a morte (1702); o terremoto de-
Lisboa no dia 1.° de novembro de 1755, destruindo grande parte-
da cidade; a chuva torrencial em Paris na noite de 9-10 de Ter-
midor no ano II da Revolução (=27-28 de julho de 1794), fa-
cilitando a liqüidação do Terror, — eis alguns acontecimentos.
fora do contrôle humano e de maior ou menor importância pema
--431—

a vida de certos povos. Decerto merecem a atenção do historia--


dor, mas sõmente na medida em que repercutiram no comporta-
mento dos atores no palco histórico . Ao historiador, como tal,
pouco importa o terremoto, enquanto fenômeno geológico, impor-
ta-lhe muitíssimo, porém, como fato histórico co-determinante da
política de Pombal (6) . Ésses fatôres imprevistos, o grande es--
cândalo para os que estão em busca de "leis históricas", trazem
muitas vêzes consigo um desfêcho, a pôr têrmo fatal ao mêdo ou
às esperanças de milhares de pessoas, e a deixar inacabados os -
planos dos atores principais.
II. Outros fatôres não são, acontecimentos no sentido pró-
prio da palavra, mas dados igualmente "objetivos", de caráter me-
nos fortuito e de duração muito maior do que por exemplo o ter-
remoto de Lisboa. Dêles há grande diversidade. Mencionamos
aqui apenas as condições geográficas e climáticas, e, por outro la-
do, as raças.
E' quase desnecessário dizer-se o quanto influi o, clima no
temperamento, nos costumes, nas instituições e nas artes de um _
povo . E' em grande parte devido ao clima que, na Europa, o ho-
mem do sul é o homem do ar livre, e o homem do norte o da_
intimidade da casa. Noi abbiamo il sole, diz o italiano, podendo
permitir-se certa despreocupação, que aos nórdicos, obrigados a
proteger-se contra a inclemência do inverno, parece ou invejável,
ou então desprezível. Não se compreende bem a formação do an-
tigo Egito sem as inundações periódicas do Nilo (7), nem o ca-
ráter reservado e teimoso do povo holandês sem as lutas contí-
nuas contra o mar, nem a política isolacionista da Inglaterra nos .
últimos séculos sem a posição insular da Grã-Bretanha: the splen-
did isolation (8) . O fator biológico, por mais importante que pa-
reça, presta-se menos do que os outros a um exame puro e isola-
do: não é apenas menos verificável mas também menos estável.
Sem dúvida, podemos acompanhar, através da história das várias
civilizações, o desenvolvimento de certas qualidades, geralmente.
chamadas "raciais", por exemplo a aptidão excepcional dos gregos
para a especulação e as artes, o gênio militar e jurídico do povo
romano, o caráter pragmático dos anglo-saxões, etc. Mas essas
qualidades supostamente raciais não são exclusivamente de ordem

. — O autor americano Ellsworth Huntington imputa a decadência do Império •


Romano a uma escassez de chuvas durante o período de 200 a 400 d. C., cf.
Quarterly Journal 01 Economics, XXXI, 1917, págs. 173 etc.
— Já Heródoto (Historiae, II 5, 1) chama o país "um presente do rio", expres-
são essa que deve a Hecateu (fragmentum 273) .
(8). — A expressão foi usada, pela primeira vez, por Sir Wilfrid Laurier, Presidente
do Canadá, em 1896, mas veio a ser aplicada à política isolacionista da In-
glaterra durante o século XIX, e à dos Estados Unidos antes da segunda ,
guerra mundial.
— 432 —

biológica, — raças "puras", com exceção talvez de alguns povos


primitivos, são fábulas, — porque para elas concorreram também
outros fatôres, mais decisivos ainda: o clima, as circunstâncias
geográficas e, principalmente, a tradição histórica. "A raça histó-
rica (possui) uma unidade menos física do que moral. Na sua
constituição não entra só a identidade de sangue, muitas vêzes
problemática, mas de modo preponderante - uma comunhão de
idéias e sentimentos, de modos de agir e reagir, transmitida pela
vida, pela educação, e pela convivência social" (9) . Por êsses
motivos, a biologia, pelo menos no estado atual, deve ser mane-
jada com muito cuidado pelo historiador.
III. Não poucos entre os modernos combatem o têrmo "in-
fluência", tratando-se de atos humanos: segundo êles, seria dema-
siadamente mecânico. O homem não reage cega ou determina-
damente nem à tradição, nem aos acontecimentos passageiros, nem
aos fatôres permanentes. E' um ser espiritual e livre, a tomar
decisões pessoais em virtude da sua posição individual ante os va-
lores que julga realizados no passado e que deseja realizar para
o futuro. O têrmo "encôntro", experiência sumamente pessoal, se-
ria preferível à palavra "influência". A prática, porém, consagrou
a segunda expressão, e parece mais prudente não lhe fazer oposi-
ção, desde que saibamos os limites da metáfora. O perigo não está
nos têrmos, e sim na interpretação dos mesmos.

B. O OBJETO FORMAL.

§ 12 . O tempo.

O objeto formal da história, segundo a nossa definição, é a


sucessão temporal, quer dizer: a história estuda os atos humanos
sob o ponto de vista do tempo.
Que é tempo?
Embora nos seja um têrmo familiar, é dificílimo explicar a
noção do tempo. Já o sabia Santo Agostinho, dizendo: Si nervo
ex me quaerat, scio: si quaerenti explicare velim, nescio (10) .
Não queremos entrar aqui nutria discussão filosófica, limitando-.
nos apenas a algumas distinções relativas ao nosso assunto.
O tempo é um fluir constante, uma sucessão ininterrupta:

— Pe. Leonel Franca, A Crise do Mundo Moderno, Rio de Janeiro, 1951, pág. 21.
— S. Augustinus, Confessiones, XI 14, 2. — Cf. J. Balmes, Filosofia Fundamen-
tal (Obras Completas, Barcelona, Biblioteca Perenne, 1948, vol. I, pág. 788):
El tiempo es una cosa muy difícil de explicar; quien nega sernejante dificulted,
manifieste beber meditado muy p000 sobre el fundo de le cuestión. — Cf.
Pascal (ed. citada), pág. 170. S6bre o "tempo histórico", cf. L'Hornme et
l'Histoire (=Artes du VIe Congrès des SoCiétés de Philosophie de langue fran-
çaise), Presses Universitaires de France, 1952, págs. 51-81.
— 433 —

mão se imagina o tempo sem o movimento (11) . E' impossível êle


-parar, retardar ou acelerar; além disso, é algo de fatalmente
irreversível e irrevogável. O espírito humano abrange as três par-
tes do tempo: o passado, o presente e o futuro. Pelo dom da re-
cordação recompõe, como já vimos, os restos do passado naufra-
:gado; mediante os seus planos, desejos, esperanças e temores an-
tecipa até o porvir remoto. Prova esplêndida da espiritualidade
.humana! Du fait même qu'il se souvient, I'homme rachète donc
,partiellement le monde du devenir qui Pertirdine et s'en rachète
„avec lui. En pensant Punivers et en nous pensant rtous-mêmes,
MOUS engendrons un ordre de Pêtre intermédiaire entre Pinstan-
.1anéité de I'être des corps et la permanence de Dieu (12).
A física lida com um conceito bastante abstrato do tempo: o
"tempo físico" é homogêneo, quer dizer: compõe-se de fragmen-
tos completamente iguais, é semelhante a uma linha infinita e re-
,dutível a uma fórmula matemática, por exemplo t x v = d. Na
,existência humana, topamos num conceito mais concreto e rico
do tempo: o "tempo psicológico" não é a sucessão monótona de
:momentos perfeitamente iguais, registrados mecânicamente por um
relógio, mas compõe-se de "situações" únicas e irrepetíveis. O
-tempo, medido e vivido pela alma humana, constitui-lhe uma situa-
ção concreta e individual: a mesma "hora física" é interminável
-para quem sofre, teme ou anseia, mas um momento fugitivo para
,quem goza ou se deleita. Há mais: uma "situação" pode ser uma
fase decisiva na existência de uma pessoa, sendo a prismatização
--

xlo passado através do espírito humano: êste, reconhecendo o pas-


sado e dando-lhe certo valor, pode-o prolongar ou renegar, confor-
-xne uma livre decisão. Ora, o "tempo histórico" é a sucessão de tais
'situações" únicas, em que vivem as unidades históricas (indivíduos
.e coletividades). Os seus elementos constitutivos, as "situações"
:não são iguais entre si, nem completamente independentes tuna das
iputras: conservam os restos do passado e contêm os germes do fu-
turo. Na "situação" atual, a pessoa humana julga-se responsável
pelo que foi e pelo que será.

§ 13. Duas conseqüências.

Daí se seguem duas conseqüências práticas para a história:


I. A história estuda os atos humanos sob o seu aspecto tem-
poral, como acontecimentos sucessivos de um processo genético,
— por outra — estuda-os sob o aspecto do fieri, do "devir" ou
•(11) . — Daí a célebre definição de Aristóteles (Physica, IV 11, 5): "O tempo é o
movimento, enquanto numeráver, ou: "O tempo é a contagem do movi-
mento, em relação a uma fase anterior e posterior (do movimento)".
412) . — E. Gilson: L'Esprit de Ia Philosophie Médiévele, Paris, 1932, II, pág. 184.
434

vir a ser. Tem por objeto casos concretos, únicos, irrevogáveis c-


irreversíveis . A sociologia _pode estudar os mesmos objetos, masç
estuda-os sob aspecto diferente, eliminando tôdas as circunstâncias
históricas própriamente ditas para ficar só com um aspecto abstra-
to e geral, perguntando por exemplo: "Quais as condições necessá-
rias para se realizar uma revolução? Quais as características que'
lhe são inerentes?", etc. Se a história fizesse assim, escapar-lhe-ia,
o objeto que lhe é próprio: ela, encarando o seu objeto de modo ,
mais concreto ou singular pergunta, por exemplo: "Quais os acon-
tecimentos particulares da Revolução francesa? Qual a "situação"'
histórica que nô-la torna compreensível?", etc. Não se interessa
por fenômenos genéricos, por exemplo, a Revolução como tal, mas;
visa os acontecimentos singulares na sua sucessão temporal. Não
é ciência normativa ou dogmática, mas eminentemente descritiva:-
os fatos singulares, que descreve, podiam ter-se realizado de outra:
maneira ou com outros caracteres singulares, ou então, podiam não• ,
se ter realizado. Ao entrar em contacto com certos fenômenos cul-
turais do passado, por exemplo a religião, o direito, as artes, a eco-
nomia, etc., sistematiza, sim, mas sempre a título precário .

II. As "situações" históricas são únicas. Contudo, o nosso-


espírito está sempre em busca da unidade, não da unicidade, esca-
pando-lhe o caso concreto e individual. E' nossa constante preo-
cupação criar certa ordem nos fenômenos múltiplos e variados, ou
seja sistematizar. O sistema torna-nos compreensível o que antes:-
parecia desordenado e confuso: ordo est untas multitudinis. Tam-
bém a história não pode esquivar-se a essa exigência do espírito , .
humano: também ela vê-se obrigada a valer-se de abstrações. Uma
delas é a chamada "tipologia histórica". Os historiadores moder-
nos falam muitas vêzes no "homem antigo", no "homem medieval",„
no "liberalismo", na "democracia", etc. Logo se percebe que o ho-
mem medieval é uma abstração: assim mesmo tem fundamento na:
realidade. As pessoas que viviam na Idade Média, achavam-se nu-
ma "situação" histórica,, que sem dúvida não era idêntica para cada
uma delas, mas inegàvelmente representava certas feições comuns._
Isso explica certas semelhanças no seu modo de agir e reagir,• nas
suas convicções e nas suas decisões. Por essas características, que-
lhes são particulares, diferenciam-se de outros tipos históricos, pres- -
cindindo-se de diferenças individuais. O tempo, que dêles nos se-
para, faz-nos melhor ver essas semelhanças e . diferenças. A tipo--
logia histórica mostra-nos, por assim dizer, um panorama, a faci--
litar-nos a visão global do conjunto, e a fazer recuar para o segun-
do plano os elementos individuais. Mas assim como o panorama
de uma paisagem selvagern não exclui a possibilidade de aí haver -
uma construção qualquer, devida à intervenção do hornegi,_ assim e
— 435 —

o tipo do "homem medieval" não é rigorosamente uniforme. O


Imperador Frederico II (1212-1250), "o primeiro homem moder-
no no trono" (13), era contemporâneo de tipos bem medievais, o
papa Inocêncio III (1198-1216) e o papa Gregório IX (1227-
1241) . O "homem medieval" não é uma abstração pràpriamente
dita no sentido de ser predicável o conceito superior a todos os
seus inferiores, tal como o conceito "homem", que cabe a todos os
indivíduos humanos: é uma aproximação sintética, uma tentativa
de abranger num único têrmo a riqueza inexaurível da vida con-
creta, uma regra geral que admite sempre exceções. Outrossim,
é bastante difícil dar uma definição exata dos tipos históricos.
Mais adiante lhes aprofundaremos o conteúdo.

(13) . — A característica é de J. Burckhardt no Capítulo I do seu livro: A Cultura


da Renascença na Itália (1a. edição, 1867) .
CAPITULO TERCEIRO

O VALOR DO CONHECIMENTO HISTÓRICO

§ 14. As diversas espécies de certeza.

Antes de abordarmos a questão se a história pode ser consi-


derada como ciência, devemos examinar um problema prelimi-
nar: a história é capaz de atingir a verdade? Da resposta, dada a .

esta pergunta, dependerá, em parte, o caráter científico da história.


Qual o critério da verdade? No pensamento realista, é a evi-
dência objetiva. Evidentes são as verdades que se me apresentam
de forma tão clara e manifesta que me obrigam a um firme assen-
timento, o qual exclui todo e qualquer mêdo de errar. Podemos
dizer que a evidência é o aspecto objetivo da verdade, ao passo
que a certeza lhe constitui o aspecto subjetivo. Pois na medida:
em que me é evidente uma verdade, tenho dela certeza. Ora, exis-
tem várias espécies de certeza, das quais mencionamos:
I. Quanto à base em que se origina a certeza, distinguimos=
entre:
a certeza metafísica, baseada na relação absolutamente-
necessária entre o sujeito e o predicado, por exemplo: "O círculo•
é redondo". Deixando de ser redondo, o círculo deixa de ser cír-
culo. O contrário desta proposição é absolutamente impossível.
a certeza física, baseada na necessidade hipotética das:
leis físicas, por exemplo: "O fogo queima a madeira". O contrá-
rio desta proposição é evidentemente falso, mas não impossível
em si, pois pode intervir outra lei física ou um milagre.
a certeza moral, baseada na necessidade igualmente hi-
potética das leis psicológicas e morais, por exemplo: "Os pais que-
rem bem aos filhos". O contrário desta proposição é bem possí-
vel, devido a um desvio moral de certo pai individual. Mesmo as-
sim, o asserto dá uma regra geral, corroborada por numerosíssi-
mos casos.
II. Quanto ao modo de que se origina a certeza, distin-
guimos entre:
a) a certeza direta, adquirida pela própria experiência (por
exemplo: "amanhece").
— 438 —

b) a certeza indireta, adquirida pela experiência de outras


pessoas (por exemplo: "São Paulo foi fundada pelo Padre Nó-
brega") .

§ 15. A certeza histórica.

Já se vê que a história pode atingir, entre as certezas da pri-


meira categoria, só a moral, entre as da segunda, só a indireta .
Na vida cotidiana a situação é muitas vêzes a mesma.
I. Ao ler no jornal: "Inundações catastróficas na Europa
Ocidental", tenho do fato só certeza indireta. Pode ser que o jor-
nal minta por certo sensacionalismo, ou que se engane por certo
mal-entendido, ou que tenha sido enganado, de propósito, por ou-
tros, etc. Encontrando a notícia num jornal pouco sério ou ge-
ralmente mal informado, aceito-a com a devida reserva,, a qual
vai-se esvaecendo na medida em que outras e melhores fontes
vêm confirmando o mesmo fato. Em alguns casos, tal reserva se
reduz a um mínimo ou, pràticamente, não existe, ao encontrar-se
a notícia num jornal que já deu provas abundantes e convincentes
de ser honesto e bem informado. Tratando-se de um aconteci-
mento vultoso, tal como em nosso caso, muito provàvelmente te-
rei a oportunidade, nos dias seguintes, de ver confirmada a pri-
meira notícia por outros indícios: descrições minuciosas no mes-
mo ou noutro jornal, fotografias, reportagens cinematográficas e
radiofônicas, cartas de amigos da Europa,, etc . Como duvidar, en-
tão, da verdade do fato? Seria igual a admitir as conseqüências
sem admitir a causa, o que é um absurdo: nullus effectus sine causa.
Além dessa reductio ad absurdum, tenho outro argumento
mais decisivo ainda, que no fundo é uma certeza moral: o homem
é capaz de conhecer a verdade e testemunhar dela, faculdades es-
sas que o não premunem contra o êrro e o lôgro, dois desvios bem
possíveis na vida intelectual e moral, mas que não se podem ad-
mitir sem prova suficiente. Na vida cotidiana geralmente não
me custa muito estabelecer a verdade de uma notícia . A conver-
gência de vários testemunhos, independentes uns dos outros, já é
prova suficiente . Amiúde basta-me saber a competência e a sin-
ceridade de um único testemunho . Em outros casos é a combina-
ção dêsses vários fatôres que me leva à certeza moral. Pode fal-
tar, porém, a prova suficiente: tenho motivos objetivos para pôr
em dúvida a competência ou a sinceridade de uma ou mais teste-
munhas. Nesta hipótese, abstenho-me de dar meu assentimento,
limitando-me a considerar o fato como provável ou possível, ou até
como improvável ou impossível, conforme o valor objetivo dos meus
argumentos pró ou contra. Na vida cotidiana .quase nunca me sirvo de
439

- !uma argumentação completa ou científica para verificar a realidade


..ide um fato concreto: meu raciocínio é espontâneo, implícito, abrevia-
do. Daily life is an act of faith, dizia o Cardeal Newman. Com.
*efeito, tornar-se-ia impossível tôda e qualquer sociedade sem a cer-
teza moral e sem a certeza indireta.
A certeza moral não se restringe apenas à verificação dos fa-
tos, por assim dizer, "materiais", tais como a existência de uma cri-
se ministerial ou de um terremoto na Turquia; aplica-se também. à
_interpretação dos mesmos. Constantemente comentamos e "inter-
pretamos" os atos e as palavras do próximo. Em virtude de quê?
__Meus argumentos, quase nunca formulados explicitamente,. mas por
isso não menos certos, são os seguintes: todos os homens são es-
sencialmente iguais apesar das numerosas e importantes diferen-
ças acidentais. Pois bem, eu me conheço a mim mesmo, pelo me-
nos até certo ponto. Logo, na medida em que me conheço, posso
ter conhecimentos também de outras pessoas, por mais fragmentá-
rios que sejam. E' verdade, bem sei, que os atos humanos são com-
:plexos, não podendo ser explicados ou compreendidos completa-
mente. Tenho de contentar-me com uma explicação parcial. Mas
uma explicação parcial e fragmentária não é igual a uma explica-
ção errônea: embora deficiente, é certa maneira de compreender,
_sobretudo quando se sabe que nem tudo foi explicado. Ora,. essa
-explicação tem de basear-se em evidências demonstráveis e verifi-
-caveis, digamos: em argumentos objetivos. Na vida cotidiana ge-
ralmente não argumento por meio de um raciocínio silogístico, mas
_por projetar espontaneamente a minha própria experiência na exis-
tência alheia. E' o judicium prudentis viri, comparável à "prudên-
cia" no setor moral e ao bom gôsto em assuntos estéticos. Nem to-
dos o possuem no mesmo grau, nem sequer é garantido por uma
vasta erudição. O homem "experimentado", quer dizer, o que pos-
sui "experiência refletida" da vida, pertence mais à categoria dos
sábios (1) do que à dos eruditos.
II. Ésses pressupostos, de tanta importância para a vida prá-
tica, constituem também a base do conhecimento histórico. Para
alcançá-lo disponho de meios essencialmente iguais aos que empre-
go na vida cotidiana: ali, porém, o meu processo é mais metódico
e o raciocínio mais explícito. O conhecimento histórico baseia-se >
_necessariamente, em testemunhos ou documentos: pas de documents,
pas d'histoire. Ora, para dar-lhes crédito, preciso provar três coisas:
a) que os documentos me comunicam deveras certo aconte-
-cimento: é o exame da realidade.

(1) . — "Sábios" = sapientes (latim) = sagas ( francês) .


— 440 —

que a testemunha podia conhecer a verdade do fato co-


municado: é a questão da competência.
que a testemunha não mentiu: é a pesquisa pela since-
ridade.
III. Ora, em muitos casos a história é capaz de fornecer es-
sas três provas. Logo, atinge a verdade. A Crítica Histórica, cujos'«
princípios e métodos havemos de expor na segunda parte dêste-
livro, tem por objeto estabelecer as normas científicas para a rea-
lidade, a credibilidade e a veracidade dos documentos históricos..
Negar a verdade no terreno da história é igual a negá-la na vida._
prática, e tal atitude cética é absurda e até impossível. Assim co-
mo não posso duvidar, razoàvelmente, da existência dos Estados-
Unidos da América do Norte sem dêles ter uma experiência pes-
soal, assim não posso pôr em dúvida a verdade de alguns fatos his--
tóricos, por exemplo a existência de Napoleão, Júlio César, Ale-
xandre Magno, etc. Foram testemunhados por uma multidão de'
documentos, cujo número vai-se aumentando constantemente gra-
ças a novas descobertas, muitas vêzes fortuitas, as quais não podem
ter sido forjadas com o fim de me enganar. Que se experimente se-
riamente um ceticismo radical a respeito das linhas gerais da his-
tória pátria ou universal: logo se verá que é um ridículo absurdo
E' claro que em muitos casos particulares devo suspender meu as -
sentimento, devido à falta de evidências objetivas: e mesma situa-
ção existe também na vida cotidiana. Mas milhares de casos par-
ticulares, que me constrangem a observar certa reserva, ainda não'
justificam um ceticismo total. As normas da Crítica Histórica são ,
muito rigorosas, sem, contudo, admitirem o processo matemático da'
geometria: ao passo que esta se ocupa com abstrações, o historia-
dor lida com fatos concretos. Neste campo é imprescindível certo,
"tino", um hábito no sentido escolástico da palavra, requerendo, é°
verdade, a presença do "dom natural", mas exigindo também conhe-
cimentos teóricos da Crítica Histórica e exercícios práticos na apli-
cação das regras, estabelecidas por ela . Muitas vêzes,• o pesquisador -
chegará à certeza sàmente em virtude de uma acumulação de pro-
babilidades, independentes umas das outras: probabilities too fine-
to avail separately, too subtle and circuitous to be convertible into
syllogisms, too numerous and various for such Conversion, even we-
re they convertible (2) . A convergência de vários indícios prová-
veis, não bastando cada um de per si para apontar: com certeza.
num fato, é freqüentemente um argumento de valor para o histo-
riador. A certeza não se origina da simples adição de probabili--
dades, — pois, procedendo assim, nunca ultrapassaríamos os limi-

(2) . — John Henry Cardinal Newroan, A Grelou-nor. of Asserir,. Longmans, Green ar..
Co, New York, London, Toronto, 1947, pág.• 219.
— 441 —

tes do provável, — mas baseia-se na concordância das probabilida-


des. Os vários indícios, considerados juntos, têm só suficiente razão,
de ser, quando convergem num fato determinado.

§ 16. Algumas objeções práticas.

Um ceticismo radical é, como já vimos, uma atitude injustifi-


cável. Outrossim, tal dúvida extrema se defende pouquíssimas vê-
zes. Muitos, porém, aderem a um ceticismo moderado, valendo-se
de um ou mais dêstes argumentos:
E' impossível verificarmos a veracidade de uma testemu-
nha. Todo homem pode mentir. Logo, nunca teremos certeza de
que esta ou aquela testemunha não tenha mentido.
E' verdade que todo homem pode mentir: omnis homo men-
dax, diz a Bíblia (3) . Mas não menos verdade é que ninguém
mente sem motivo subjetivamente suficiente. A ganância, o ódio, .
a simpatia, a vaidade, o mêdo, e até o prazer de enganar são al-
guns dêsses motivos, capazes de levarem o homem à mentira. Ora, ,
em muitos casos podemos chegar à certeza de que esta ou aquela
testemunha não tinha motivo algum para mentir: a circunstância ,
de ser universalmente conhecido o fato testemunhado, a banalida-
de do fato, o risco que se corria em esconder a verdade, etc. E'
dificílimo verificar isso, tratando-se de um caso meio anormal ou
doentio, em que um sujeito mente por prazer de enganar . Mas
muitas vêzes temos a oportunidade de confrontar o depoimento
dêle com o de outra(s) testemunha(s) . E não é legítimo admitir
êsses casos doentios como normais. Logo, podemos atingir a ver-
dade histórica, se nem sempre, ao menos em muitos casos.
Muitas pessoas não possuem bastante instrução nem isen-
ção de espírito para testemunhar objetivamente um fato. Sem o
propósito de mentir, deturpam a verdade histórica por atribuirem
muitos acontecimentos a uma intervenção direta do sobrenatural.
Assim fêz Heródoto, assim fizeram as lendas medievais e muitís-
simos outros documentos históricos.
Mas testemunhar um fato e interpretá-lo são duas coisas bem
diferentes: assurons-nous bien du fait avant que de nous inquiéter -
de la cause. Para dar uma interpretação requer-se geralmente
muito mais competência do que para depor sôbre fatos. Aqui bastam,,,
no mais das vêzes, o bom senso e o reto emprêgo dos sentidos, qua-
lidades humanas que não são privilégios de um homem culto.
Estabelecidos os fatos, o historiador tem a tarefa de criticar tam---
-----
.(3). — Salmo,, CXV (CXIV )• 11. — A nova versão latina de 1945 dá: omnis honro
(aliar,
— 442 ---

bém a interpretação, dada pela testemunha, servindo-se de cri-


térios internos e, sendo possível, externos. Pode ser que, neste
ponto, chegue a uma conclusão diferente da do seu documento .
Em uma palavra, pode ficar com o fato sem aceitar a interpre-
tação do documento.
Quanto mais se aplica a crítica a fatos chamados his-
tóricos, tanto menos se tornam certos. A história da Roma pri-
mitiva,•tal como foi narrada por Tito-Lívio e Dionísio de Halicar-
nasso, é o exemplo clássico da desvalorização de fatos "históri-
cos". E' prova suficiente de não existir a certeza histórica.
Com efeito, muitos fatos históricos, outrora admitidos como
autênticos, tornaram-se duvidosos ou até falsos ao serem exami-
nados à luz de uma crítica rigorosa . Mas nem todos foram re-
provados ou eliminados. Bem ao contrário: alguns foram verifi-
cados e novamente corroborados, e outros, antigamente desconhe-
cidos, foram admitidos em virtude de novas descobertas, outras
combinações e ilações. E nas duas categorias encontram-se fatos
históricos de tamanha evidência, que ninguém os pode pôr razoà-
velmente em dúvida, mesmo que se lhes apliquem as normas mais
severas da crítica .
A abundância de indícios relativos a um fato históri-
co, ao invés de ajudar ao historiador, lhe é quase sempre um
grave empecilho, visto que as várias fontes geralmente se con-
tradizem. E' sabido que Sir Walter Raleigh (4), quando prêso
na Tower de Londres, escreveu uma história universal. Certo dia
viu no pátio da prisão grande motim, e observou-o com muita
atenção. Pouco tempo após, o carcereiro entrou na cela, comuni-
cando-lhe o que acontecera no pátio. Raleigh, vendo a discre-
pância entre a própria observação e a relação do carcereiro, atirou
desanimado seu manuscrito ao fogo.
.A anedota prova como é difícil atingir a verdade na histó-
ria, mas não prova que seja impossível. Recentes experiências
psicológicas demonstraram duas coisas. Primeiro, a maior parte
das pessoas que assistem a um motim, antes minuciosamente or-
ganizado e fixado por escrito, não sabem descrevê-lo de acôrdo
com a verdade, e fazem dêle relatórios deficientes e contraditó-
rios. Segundo, um juiz perito consegue, geralmente, reconstruir a
sucessão dos fatos verificados mesmo por meio dêsses testemu-
nhos deficientes e contraditórios. Muito depende, pois, da pe-

(4). — Sir Walter Raleigh (1552-1618), um dos grandes heróis marítimos da Ingla-
terra, era favorito da rainha Elisabeth I (The Virgin Queen), em cuja honra
apelidou a nova colônia norte-americana de Virgínia (1585). Sob o reinado
de Jaime I foi acusado de haver conspirado contra o trono, condenado à morte
(1603) e perdoado, mas ficou prêso na Tower até o ano 1616. Em 1618
foi morto por causa de unia expedição malograda.
443

iícia do juiz; in casu, do historiador. E assim como a criminolo-


gia moderna dispõe de muitos meios para descobrir o culpado,
assim o historiador de nossos dias possui instrumentos aprimora-
dos para verificar em numerosos casos os fatos históricos. Ou-
trossim, muitos acontecimentos, registrados nos documentos, não
tinham o caráter de um motim, não exigindo, portanto, uma ex-
-

traordinária presença de espírito da parte das testemunhas. E,


afinal, a historiografia moderna aproveita-se, muito mais que a
do século XVI, de documentos que não foram compostos com o
fim de transmitirem conhecimentos históricos à posteridade, mas
de todos e quaisquer vestígios do passado em que se encontram
referências ocasionais. Nesta categoria de fontes há muito me-
nos perigo de penetrarem desfigurações da verdade histórica.
V. Mas a interpretação dos fatos? Não nos achamos aí no
campo de um subjetivismo ilimitado? Admite-se, geralmente, que
o historiador consegue estabelecer com precisão muitos fatos "ma-
teriais" da história, por exemplo que Napoleão foi coroado Impe-
rador no dia 2 de dezembro de 1804, que Lutero publicou as 95
teses no dia 31 de outubro de 1517, e que Júlio César foi assas-
sinado no dia 15 de março de 44 a. C. Mas êsseS fatos não pas-
sam do esqueleto da história: falta-lhes a vida. Se o historiador
se desse por contente em registrá-los, sem lhes procurar a ínti-
ma conexão, sem lhes dar uma interpretação e um sentido, seria
simplesmente um escrivão, por mais inteligente que fôsse, não
chegando a ser um sábio, título êsse a que aspira. Ora, no setor
da interpretação lavra uma confusão indescritível: quot capita, tot
sententiae . Cada historiador nos traz o seu Napoleão, o seu Lu-
tero, o seu César, de acôrdo com as suas convicções políticas, na-
cionais ou religiosas.
A divergência entre as diversas interpretações é muitas vê-
zes mais aparente do que real: amiúde se trata apenas de mal-
entendidos, de discussões sôbre palavras, de "acentuações" dife-
rentes. Contudo devemos conceder que a objeção é séria e merece
tôda a nossa atenção. Na interpretação dos fatos poderíamos, —
muito globalmente, — distinguir entre três fatôres: o "entendi-
mento" dos atos humanos, a procura das causas, e a apreciação
dos fatos.
a) O "entendimento" dos atos humanos, tanto na história
como na vida cotidiana, é baseado na experiência pessoal de quem
"entende". Aqui, como acolá, será capaz de "entender" só quem
possuir uma experiência refletida da vida humana, quer dizer:
só quem, observando atentamente a perpétua corrente da vida
dentro e fora de si, lhe souber tirar algo de permanente e essen-
cial. Vários caminhos levam a êsse conhecimento: a indução, a
444

dedução, a comparação, a oposição, e, finalmente, a faculdade de-


transportar-se mentalmente em experiências alheias. Com efeito,.
o grande historiador é um homem "experimentado" e profundo co-
nhecedor do coração humano, porque sabe "entrar na pele" de ou-
tras pessoas, podendo dizer com o poeta latino: Homo sum, hu-
mani rül a me alienum puto (5) . Ao recuperar os restos do pas-
sado, precisa "re-viver" as experiências de outrora, processo êsse.
que se lhe torna possível por encontrar-se em todos os terrenos
da história o Eterno Homem, até nos tempos mais remotos e nas.
culturas mais longínquas. E' sempre do filho de Adão e Eva que
nos conta a história, essencialmente igual através de todos os sé-
culos, apesar das numerosas diferenças acidentais. Em virtude-
dêsse princípio podemos "re-viver" e "entender" os atos humanos
de pessoas aparentemente tão estranhas e até esquisitas. Sem dú--
vida, êsse conhecimento tem as suas imperfeições, devidas à com-
plexidade do objeto bem como à estrutura do nosso espírito. E'-
um conhecimento imperfeito, mas que reconhece as suas deficiên-
cias; é fragmentário, mas sincero e fiel dentro das suas limita-
ções. Assim se explica o fato de haver tantas divergências entre•
os diversos historiadores: cada um dêles encara outro aspecto de-
um objeto muitíssimo complexo. O melhor e mais profundo in-
térprete dos atos humanos será aquêle que souber examiná-los sob
o maior número possível dos aspectos, não numa justaposição ma-
terial, mas numa ordenação hierárquica, sabendo-lhes descobrir o-
núcleo central. O resultado jamais poderá ser perfeito, sendo que
sempre nos escapará algo do mistério que é o homem; nem poderá_
ser obtido more geometrico, dada a natureza do homem que, por
possuir uma alma espiritual, se subtrai às determinações da ma-
téria. Mas mesmo assim o "entendimento" histórico não é uma
construção arbitrária: funda-se em argumentos objetivos. Faltan-
do êsses, termina a interpretação científica e começa a hipótese,.
da qual a história se pode servir como tôdas as outras ciências.
E muitas vêzes acontece que uma hipótese histórica depois é con-
firmada por uma argumentação sólida, baseada em evidências ob-
jetivas. Do valor das evidências, depende, pois, o valor do "enten--
dimento". A argumentação histórica muitas vêzes não é explí-
cita, mas entrelaça-se, quase imperceptivelmente, à exposição dos fa-
tos, a qual, no fundo, já é certa maneira de interpretar.
b) Quanto à procura das causas, devemos distinguir entre
causas ocasionais e remotas, causas passageiras e determinantes,.
etc. (6) . Em geral, basta o bom senso para indicar as causas.
ocasionais e passageiras, que se nos apresentam com tamanha evi-

(5) . — Terentius, Heauton Timoroumenos, 77. — Cf. o epíteto inglês, aplicado se,,
Shakespeare: the myriad minded man.
(6). — Cf. § 66, I.
445
(dência que é quase impossível ignorá-las e muitas vêzes nos ofus-
cam a vista para descobrirmos as causas remotas. Ninguém dú-
vida, por exemplo, de que as indulgência, pregadas por Tetzel na
Alemanha, foram uma das causas ocasionais da revolta de Lute-
ro . Mas as causas remotas levam-nos muito mais longe, e aí
surgem geralmente as dificuldades. O nosso conhecimento das
causas históricas é muito pobre, como havemos de expor mais
adiante (7) . Mas vale a mesma regra que já formulamos aci-
ma: a procura das causas históricas não é um ato subjetivo e ar-
bitrário, e sim obedece às boas regras da lógica e da filosofia, ve-
rificáveis para outros.
c) A apreciação dos fatos históricos é outra questão, que
pretendemos expor na terceira parte dêste livro (8) . Basta dizer-
mos aqui que os próprios fatos não se explicam a si mesmos, mas
que é o historiador, — o espírito humano, — que lhes dá certo
aprêço. Em virtude de quê? Em virtude de certa filosofia, "mun-
dividência" ou credo religioso, cujos princípios, se não podem ser
julgados pela história, podem e devem ser examinados por uma
,ciência superior: a filosofia ou a teologia. E quais as normas que
são aplicadas por essas ciências? São, mais uma vez, argumentos ob-
jetivos ou evidências.
VI. Restam dificuldades quanto à objetividade da histó-
ria: bem o compreendemos. As páginas anteriores pretenderam
.apenas introduzir o leitor no problema mais árduo da nossa ciên-
cia: em outros parágrafos dêste livro tornaremos a discutí-lo (9).
Por enquanto basta sabermos que o valor da interpretação histó-
rica depende de argumentos objetivos, mas que a argumentação
_histórica difere foto caelo de uma demonstração matemática . A
história não lida com abstrações, mas com fatos concretos: aí está
„a maior dificuldade. E o objeto próprio das ciências "puras" é o
universal e o necessário; não o particular e o contingente, que é o ob-
jeto da história. Resumindo, podemos dizer: o conhecimento his-
tórico tem valor objetivo e universal neste sentido: para ser uni-
versal basta que possa ser admitido e aceito por todos os que
se ocupam da mesma matéria, e para ser objetivo basta que o
adiantamento da ciência não o aniquile por completo, mas o apro-
funde e integre numa nova síntese. Um exemplo prático: Tucídi-
des formulou há 2500 anos com grande perspicácia as causas da
:guerra peloponésia . A historiografia moderna não modificou es-
sencialmente a interpretação do grande ateniense, pôsto que lhe
enriquecesse e aprofundasse o sentido (10).

(7). — Cf.' § 66, II.


(8). — Cf. § 70.
,
40). — Cf. § 33, IV e & 72, IV.
446

VII. Ao terminar êste capítulo, uma' observação prática..


Já vimos bastante que a interpretação dos atos humanos se funda ,
na experiência refletida de quem interpreta. Daí se segue êste-
corolário.
Entende-se uma síntese histórica na medida em que se pos-
sui experiência pessoal da vida . A compreensão do teorema de:.
Pitágoras exige que os alunos acompanhem inteligentemente a ex-
Plicação, dada pelo professor, e que tenham certos conhecimen-
tos prévios da -matemática; não supõe, porém, experiência da vida..
A viva interpretação histórica, dada pelo professor e enriquecida
de tantos exemplos ilustrativos, é pelo aluno quase sempre redu-
zida ou a uma repetição enfadonha ou então a uma fórmula sim-
plificadora . O que estava vivo, parece morto agora, Não é falta
de inteligência, e sim falta de experiência pessoal da vida e da
cultura, a que, geralmente, acresce, a incapacidade de "re-viver"
experiências alheias. Além disso, conceitos históricos, como por .

exemplo "o homem medieval", são muitas vêzes tratados por prin-
cipiantes como verdadeiras abstrações. O mestre,, porém, mane- ,

já-os como "conceitos coletivos", esforçando-se constantemente por


concretizá-los. Ao pronunciar a palavra "Idade Média", surgem--
lhe espontâneamente ao espírito numerosas associações: o feuda-
lismo, o conflito entre o Império e o Sacerdócio, as catedrais, a
poesia dos trovadores, a Summa Theologica, as corporações, as:
Cruzadas, etc . Éle possui conhecimentos pessoais de tôdas essas
coisas concretas, ao passo que para os meninos são nomes sem.,
vida própria e decorados com dificuldade.

( 10) . — Cf. G. Isaye, apud L'Homme et l'Histoire, pág. 21: La justification critique-
des principes immuables peut progresser, en utilisant la rétorsion comine
tère. Et de plus, il est poosible de feire des progrès en précision. Un juge-
ment peut se présenter á juste titre comme tzniversellement vrai à tuz mo-
ment oìr l'on ignore encore une certame distinction . Y a-t-il alors "ré--
vision" de ce jugement? Une précision nouvelle, oui . Une correction, non;
car le jugement n'avait pas pris position à l'égard d'une distinction qu'il
ignorait, dont il faisait abstraction . Cette bois, il ypassage de l' ignorence-
r
à la connaissance, non de l'erreur à la vérité. L'histoire de la pensée
donc la temporalité avec la certitude , • ,
CAPÍTULO QUARTO

A HISTÓRIA E' UMA CIÊNCIA MORAL

§ 17. O conceito escolástico da ciência.

Hoje em dia, a história passa geralmente por uma ciência, e-


como tal,• é filha dos trabalhos filológicos dos humanistas, das.
teorias esclarecidas do século XVIII, e do Romantismo. Até en-
tão fazia parte da literatura ou da moral. Logo se vê, porém, que
a história não pode ser considerada como ciência no sentido das
matemáticas ou da física, e muito menos ainda no da filosofia.
Qual é, então, o caráter científico da história?
A definição escolástica de ciência reza: c,ognitio rerum per-
causas. Vale a pena examinarmos os elementos desta sentença
lapidar .
A ciência é conhecimento. Não se pode falar em conhe-
cimento sem lhe ligar a idéia de certeza. Conhecimentos incertos,.
se é que se pode falar assim, são opiniões, conjeturas ou suposi-
ções. Claro que uma ciência não pode ser aglomeração de opi-,
niões subjetivas, mas tem de ser sistema lógico de conhecimentos;
certos e objetivos, pelo menos nos seus princípios. Ora, já sabe-
mos que a história atinge conhecimentos certos em numerosos ca-
sos e que procede metódicamente para atingí-los. Logo, a histó-
ria satisfaz à primeira condição.
A palavra rerum é bastante vaga. A história, por aca-
so, se ocupa de tôdas as coisas? Não, é o privilégio da filosofia
ter um objeto material tão amplo. Já conhecemos o objeto pró-.
prio da história: os atos humanos. Tôdas as ciências têm um
objeto próprio e determinado, que, além disso, encaram sob certo,
aspecto: êste, o objeto formal, era para a história a sucessão tem-
poral. Aqui se nos deparam certas dificuldades.
A inteligência humana tem, por objeto próprio o universal,,
escapando-lhe o concreto, o individual, o qual pode ser ,atingido
apenas mediante uma intuição sensitiva ou intelectual. Ora, o
objeto material da história são os atos humanos,• coisas essencia1 ,,
mente individuais, concretas e únicas. A física: lida com "casos"'
gerais sem se 'preocupar do caráter individual dos fenômenos. A
medida, porém, que penetrai-Mos mais` 'à fundo no;,Reinó do Ser,„
— 448 —

.far-se-á mais mister procurarmos a fisionomia individual dos ob-


jetos estudados, tornando-se menos satisfatório um método gene
ralizador. Precisamos indagar-lhes os valores insubstituíveis e o
.sentido autônomo. Por outro lado, não nos é dada uma intuição
imediata das realidades espirituais. O espírito humano tem de
fazer abstrações de qualquer maneira. Já vimos que a história,
por não poder escapar a essa lei, se serve de "tipologias". Mas
'elas não são abstrações no sentido próprio da palavra. São esfor-
ços por se aproximar o mais perto possível da natureza concreta,
a abrangerem, dentro da unidade metafísica, as realizações gra-
dualmente variadas dos indivíduos concretos que constituem certa
"coletividade". Tendem a tornar-se cada vez mais ricas em asso-
'ciações concretas, ao passo que os conceitos físicos tendem a ser
reduzidos a uma fórmula matemática, unívoca e abstrata. O gran-
de livro da natureza inanimada está escrito em linguagem mate-
mática; na biologia, o terreno limítrofe das ciências naturais e
'morais", já se nos apresenta certa individualidade; nas discipli-
nas, que tratam dos atos humanos, encontramos a unicidade. O
homem, por participar do espírito, quer ser entendido como um
ser autônomo.
III. Atos humanos são contingentes e livres, não necessá-
rios. Ora, não pode haver ciência pràpriamente dita senão do
:necessário. Logo, a história não é ciência propriamente dita.
Nenhuma ciência, porém, pode ser justaposição material de
conhecimentos isolados, por mais certos que sejam, mas tem de
,dar o porquê. Investigar as causas, procurar por que as coisas
são assim e não de outra forma, é uma tendência inata do espí-
rito humano: a admiração pelas coisas que nos rodeiam, já bem
-visível numa criança, é a origem da filosofia (1) e das ciências
_particulares. Conhecimentos isolados não satisfazem ao espírito
humano por lhes faltar o laço espiritual. Também• a história não
_pode dispensar a causalidade. O importante, porém, é sabermos
o que devemos entender por "causas históricas". Pretendemos es-
tudar o mesmo assunto na terceira parte dêste livro (2); por
'enquanto basta que assinalemos algumas diferenças entre as causas
físicas e as causas históricas.
a) As causas que se nos apresentam na história são sempre
-muito complexas e heterogêneas: influências do clima, da raça,
da tradição, além disso: o "acaso" e as livres decisões da pessoa
humana. Para compreendermos' um fenômeno histórico na sua
totalidade não podemos decompor êsses diversos fatôres nos seus
elementos constitutivos e, depois, estudá-los isoladamente. Se fi-
,

.zéssemos assim, estropiaríamos a realidade histórica, que é preci-


(1). — Cf. Aristóteles, Metaphysica I 2, 8 e 11.
, (2). — Cf. § 66.
— 449 —

:amamente o conjunto de todos êsses fatôres. Além disso, não se


-prestam a experiências como os fenômenos físicos: o tempo his-
tórico é irreversível e irrepetível. As causas físicas têm caráter
-prospectivo, quer dizer: podemos predizer que fenômeno A (por
exemplo a temperatura de 100° C.) terá por resultado fenômeno B
<por exemplo o ferver da água). A causalidade histórica possui
apenas valor retrospectivo, quer dizer: o conjunto das circunstân-
cias A (por exemplo a opressão política e social do Ancien Régime,
..as idéias esclarecidas do século XVIII, etc.) torna-nos compreen-
.sível o aparecimento do acontecimento B (por exemplo a Revo-
lução francesa, que, por sua vez, é um fenômeno extremamente
,complexo), mas sempre devemos admitir que o fenômeno B po-
dia ter sido bem diferente do que foi na realidade. Sendo assim,
seria mais prudente não dizermos: a história é a ciência dos atos
humanos pelas causas, mas: é a ciência das causas que influiram
nos atos humanos.
b) O homem, enquanto pessoa,• está fora do determinismo
cego que rege o mundo físico: a pessoa, naturae rationalis indivi-
4ua substantia (3), é livre. Mas já vimos (§ 10) que o homem
-deve conquistar laboriosamente a sua personalidade e, por con-
seguinte, a sua liberdade, para vir a ser verdadeiramente o que
Quanto mais se espiritualiza, tanto mais se torna livre, mas ge-
ralmente pesam sôbre êle as condições da matéria. A liberdade,
.que lhe foi outorgada, é uma dádiva precária, nunca aproveitada
inteiramente: o homem entrega-se largamente aos acontecimen-
tos como um animal, não sendo capaz de transformar por com-
pleto a sua vida num ato livre e espiritual. Tem a vida vegetati-
va das plantas, e a vida sensitiva dos brutos: nestas qualidades
está invariàvelmente sujeito a leis físicas e biológicas, das quais
esfôrço nenhum o poderá fazer sair. Para o historiador êste deter-
minismo é, porém, de somenos importância, visto que se interessa
só ocasionalmente por êsses aspectos da natureza humana. Mas
há no homem um "determinismo" superior (se é que se pode
empregar o têrmo assim), arraigado na estrutura do homem que
4 animal racional. Como tal, está sujeito a certa regularidade no
seu compartamento, ditada, em última análise, pela Verdade, pelo
Bom e pelo Belo. À luz dêsses fins, mesmo livremente propostos,
ser-nos-á possível descobrir certas "leis morais",•também nos atos
humanos: nelas se funda a certeza moral. Elas têm só valor apro-
ximativo e não estorvam a liberdade de um ato singular. Eis por-
que se nos dificulta uma pesquisa "científica" e se nos faz mister
tim método especial. As chamadas leis históricas são, no fundo,
_aquelas leis morais, ilustradas e confirmadas por numerosos exem-
(3). — Esta célebre definição é do filósofo Boécio (século VI d. C.), e encontra-se -
no seu opúsculo De Persona et ~ara (Cap. LII )
— 450 —

plos da história . Não possuem o rigor das leis físicas, cujo fun-
cionamento podemos repetir à vontade. L'histoire ne se répète
jamais. A verdade expressa pelas "leis históricas", aproxima-se
muito perto da sabedoria popular, contida num provérbio . Não
desprezamos nem a sabedoria dos provérbios nem a da história,
mas cumpre que lhe conheçamos a natureza e não a equipare--
mos a uma fórmula matemática ou a uma lei física. As leis his-
tóricas não nos permitem nenhum cálculo exato sôbre o futuro
processo da humanidade.
Para um esprit géométrique pode ser decepcionante tal con- -
ceito da causalidade histórica: ao examinar de perto o objeto pró-
prio da história, deverá reconhecer que cada uma das disciplinas-.-
exige o seu método e necessita de um conjunto de conceitos es-
peciais.
Terminando, podemos dizer que a causalidade histórica, em----
bora longe de esgotar a realidade histórica, não é uma constru-
ção arbitrária do espírito humano, mas um conhecimento frag-
mentário da realidade e possui valor objetivo . Por sabermos as -
causas de um fenômeno histórico compreendemos não só a cone--
xão lógica entre dois fenômenos, mas reconstruimos também algo
da realidade objetiva, ainda que a reconstrução seja forçosamen-
te deficiente.

§ 18. As ciências morais.

O resultado das discussões anteriores é que a história não - .


corresponde às exigências da definição escolástica: cognitio rerum -
per causas, visto lhe servirem de objeto material os atos humanos,..
os quais são contingentes, não necessários, e concretos, não uni-
versais. Logo, a história não é ciência no sentido próprio da pa-
lavra, podendo sê-lo apenas em sentido derivado (secundum quid)
A definição data de uma época em que a filosofia dominava dire-
tamente tôdas as outras ciências, que ainda não se emanciparam .
Nem Aristóteles nem. São Tomás conheciam muitas das ciências-
modernas senão em estado embrionário, incapazes de levarem uma
vida autônoma . Os fenômenos físicos e os atos humanos eram qua-
se sempre estudados sub specie philosophiae. Ora, depois da Re-
nascença, e principalmente depois do século das Luzes, os mesmos----
objetos começaram a ser estudados de maneira cada vez mais em-
pírica. Por motivos evidentes tornou-se necessária uma nova con-
cepção da ciência, a qual poderíamos formular •assim: um conjunto -
racional e sistemático de conhecimentos certos, relativos a um ob-
jeto próprio e determinado . Não precisamos démorar-nos a mos- -
trar que esta definição cabe perfeitamente ao nosso assunto, que é- >
a história.
— 451 —

No século passado, as ciências relativas aos atos huma-


nos parecia que se tinham emancipado da filosofia para se torna
rem escravas das ciências naturais. Os psicólogos, os lingüistas,.
os historiadores estavam buScando por tôda a parte leis análogas às
da física, as quais eram muitas vêzes consideradas como absoluta-
mente necessárias. Dos métodos científicos (4) eram julgados le-
gítimos apenas os que se aplicavam com tão bom êxito à matéria
inanimada. Era a negação da pessoa humana, autônoma e livre,.
nas próprias ciências que tinham a pretensão de estudá-la. Não
podia tardar uma reação. Em todos os países do mundo, mas prin-
cipalmente na Alemanha e na França, surgiram protestos contra
tal degradação do homem e mutilação da verdade. Foram sendo-
procurados métodos apropriados ao objeto específico das ciências,
que se ocupavam das atividades humanas. Entre os numerosos
propugnadores das novas idéias cumpre destacarmos aqui dois no-
mes ilustres: Wilhelm Dilthey (1833-1912) e Henry Bergson
(1859-1942),• aquêle professor em Berlim, êste em Paris.
As ciências relativas aos atos humanos ficaram, em ale-
mão, com o nome de Geisteswissenschaften, quer dizer: ciências do
espírito (5), muitas vêzes designadas, nos idiomas românicos, co-
mo ciências morais. Como é que devemos entender êste têrmo?
Ciências morais são as disciplinas que, opondo-se às ciências
físicas, se ocupam da consciência (6), cultura e sociedade huma-
nas. Servindo-se de métodos, apropriados aos seus objetos únicos,
e concretos, procuram-lhes dar um valor científico e objetivo, não
por explicá-los como casos individuais de uma lei geral, mas por
dar-lhes um sentido que os relacione com o conjunto do qual fazem
parte. Preferem o têrmo "entendimento" às palavras "compreen-
der" e "explicar", porque estas envolvem a procura de relações cons-
tantes entre os fenômenos. "Entender" é um processo psicológico,.
que consiste numa íntima "co-experiência" da parte do sujeito com.
a manifestação concreta da vida psíquica de outrém.
Esta descrição prolixa, aliás não universalmente aceita por to-
dos os que cultivam uma das ciências morais, esclarece alguns pon-
tos de suma importância. Os atos humanos constituem um campo'
avulso de pesquisas científicas, a que se podem aplicar os métodos
das ciências naturais, e em que se torna imprescindível um qual-

( 4 ) . — Nas línguas românicas bem como em inglês, a palavra "ciência" ou science•


é muitas vêzes reservada para indicar as matemáticas, a física e a química;
não raro se prende ao têrmo também certo valor e prestígio, superiores aos.
das outras "disciplinas", que até são depreciadas como matérias da memória.
Nada mais errado do que tal interpretação unilateral da palavra "ciência".
As ciências morais são filhos legítimos de um saber genuinamente humano,
e — sob certos pontos de vista, — até superiores às matemáticas, e às.
ciências naturais. Mas disse alguém que, desde os dias de Descartes, a nossa,
civilização se tornou pitagórica: o culto aos números e à quantidade...
(5). — Em espanhol, o têrmo ciência del espírita é muito usado.
<6) . — Consciência deve ser entendida aqui no seu sentido psicológico.

Revista de História 10
— 452 —

quer "entendimento", conceito êsse que a física e a química desco-


nhecem. Não me posso transportar mentalmente num pedaço de
ferro que se dilata sob a influência do calor, e sim na mentalidade
de Júlio César, quando atravessava o Rubicão, ou na de Lutero,
quando promulgava as suas teses contra a Igreja de Roma. O en-
tendimento, sendo uma "re-vivência", pressupõe a unidade meta-
física do gênero humano: sem esta não seria possível aquêle. Além
disso, os atos humanos são únicos e livres: eis porque não podem
ser reduzidos a casos individuais de uma lei geral. Até agora con-
cordamos plenamente com a concepção moderna; não podemos, po-
rém, dar a nossa adesão àquêles que separam totalmente o enten-
dimento da razão e os atos humanos da metafísica. Eis dois peri-
gos que devemos evitar: a reação contra o Racionalismo exagerado
do século passado não justifica um movimento anti-intelectualista
tal como os tempos atuais estão presenciando. Não podemos entrar
aqui numa exposição filosófica destas questões, que nos afastaria
muito longe do nosso assunto. Muito sumàriamente damos apenas
duas teses da filosofia perene: nada escapa à metafísica, que é a
ciência do ser como tal, porque tudo o que é, é um ser, também os
atos humanos. E o objeto formal da razão, que quodammodo fit
omnia, é o ser como tal. Basta aqui têrmos pôsto,•embora um tanto
dogmàticamente, êsses dois princípios salutares: quem se interes-
sar por essas questões, poderá orientar-se por trabalhos especiali-
zados de caráter filosófico.
III. Concluindo esta exposição, achamos conveniente citar
algumas palavras do grande Pascal, o qual, muito tempo antes do
nascimento oficial das ciências morais, formulou com grande pers-
picácia a diferença entre os métodos a serem empregados nas ma-
temáticas e os que são usados pelas ciências morais: En l'un (a
geometria), les principes sont palpables, mais éloignés de rusage
commun; de sorte qu'on a peine à tourner la tête de ce côté-la, man-
que d'habitude: mais pour peu qu'on ry tourne, on voit les prín-
cipes à plein, et il faudrait avoir tout à fait resprit faux pour mal
raisonner sur des principes si gros qu'il est presque impossible qu'ils
échappent . Mais dans resprit de finesse, les principes sont dans
l'usage commun et devant les yeux de tout le monde. On n'a que
faire de tourner la tête, ni de se faire violence; il n'est question que
d'avoir bonne vue, mais il faut ravoir •bonne; car les principes sont
si déliés et en si grand nombre, qu'il est presque impossible qu'il
n'en échappe. Or, romissiorz d'un principe mène à rerreur; ainsi,
il faut avoir la vue bien nette pour voir toas les principes, et en-
suite resprit juste pour ne pas raisonner faussement sur des prin-
cipes connus (7).
(7) . — Blaise Pascal, Pensées, pág. 317 da edição citada. — Importa ler-se também
a seqüência da passagem transcrita.
CAPÍTULO QUINTO

AS DIVISÕES DA MATÉRIA HISTÓRICA.

§ 19. Dificuldades da divisão.

São muito numerosos os acontecimentos do passado, dos quais


temos conhecimento. E' vastíssima a matéria histórica. Sendo as-
sim, já por motivos práticos torna-se necessário dividi-la em cam-
pos nitidamente distintos. Ora, existem muitas maneiras de divi-
dir a matéria extensa, e nenhuma delas é completamente satisfa-
tória. Podemos fazer à vontade distinções lógicas, mas a realidade
histórica nega-se obstinadamente a obedecer a um esquema abs- .

trato. E' impossível traçar com precisão as linhas de demarcação


entre os diversos campos, já que cada um dêles se liga estreita-
mente a outro e coincide parcialmente com outro. Por mais pre-
cária que seja uma divisão exata", devemos frisar a necessidade
prática de dividir a matéria imensa: o espírito humano, se jamais
consegue conhecer o todo em tôdas as suas partes constitutivas,
pode escolher, ao menos, alguns aspectos gerais sob os quais tôdas
elas podem ser estudadas. Um exame crítico dêsses aspectos pode-
nos ensinar também algumas categorias históricas, cujo conheci-
mento é indispensável para um estudioso da história.
Adotamos, neste capítulo, cinco princípios de divisão, a saber:
o homem como ente social; o homem como indivíduo; o homem
no tempo; o homem como criador de cultura; o homem e o mundo
material. Já se vê que os princípios são heterogêneos e não se
excluem um a outro. Pois o indivíduo é inevitàvelmente membro
de uma sociedade, e vive necessàriamente no tempo, etc. Os prin-
cípios dados acima têm sobretudo valor prático, e não se pode in-
sistir demais na sua justificação teórica.

A. O ASPECTO SOCIAL.

§ 20. Os diversos grupos sociais.


O homem é animal social, segundo a célebre definição de ,
Aristóteles (1) . Com efeito, nasce mais fraco e pobre do que o

( 1) . — Aristóteles, Politica I 1,9 e III 4,2 . — Cf. Ethica Nicomaches I 7, 6 e-


IX 9, 3.
— 454 —

bruto, e durante tôda a sua vida continua a viver necessitando da


proteção e do amparo dos seus semelhantes: só assim pode satis-
fazer às exigências da sua natureza e desenvolver harmônicamente
,as suas faculdades. Sociais são também algumas espécies de ani-
mais, por exemplo as formigas e as abelhas. O homem é social de
modo muito especial. A sociabilidade humana não é apenas prova
da sua indigência, mas também da sua riqueza: a pessoa humana,
como ser espiritual, exige naturalmente as livres comunicações da
inteligência e do amor.
Ora, são muitas as sociedades que reivindicam o homem: des-
de a família, o protótipo de qualquer corpo social, até o Estado,
a mais perfeita sociedade, — na ordem natural, — que tem por
fim o bem comum de todos os seus membros. Entre essas duas so-
ciedades encontramos uma multidão de outras mais ou menos am-
plas: a escola, o laboratório, a fábrica, as diversas organizações so-
ciais com fins políticos, científicos, artísticos, econômicos, esporti-
vos, recreativos, etc. Examinemos agora algumas entidades sociais
que são importantes para a historiografia.
A família é uma unidade originada pelas interrelações exis-
tentes entre o homem e a mulher, os pais e os filhos. Apesar de
ter as suas raízes na vida biológica, não é exclusivamente determi-
nada pelos instintos sexuais, mas é integrada na vida espiritual
do homem. A história prova que o homem regulou os seus ins-
tintos pela inteligência, sujeitando-os a certas leis de ordem moral.
Onde aparece o homem, aparecem formas variadas e originais de
organização, inexistentes no reino animal, onde cada espécie, obe-
decendo cegamente aos seus instintos, apresenta uma uniformi-
dade.
Um grupo pequeno de famílias, geralmente ligadas en-
tre si por uma descendência comum, chama-se clã (2); achando-se
ainda em estado de nomadismo, chama-se muitas vêzes horda (3) .
A tribo (4) já é um conjunto maior: a unidade entre os seus
:membros não se funda geralmente na descendência comum, —
apesar de poderem existir especulações genealógicas a êsse res-
peito, — mas na língua, nos costumes e nas instituições comuns..
Um povo é o resultado de uma evolução histórica mais adiantada,
distinguindo-se de uma tribo principalmente por apresentar maior
grau de diferenciação: conhece geralmente classes sociais, parti-

(2) • — A palavra dá, cognata do vocábulo latino planta, é de origem escocesa


(gaélica) .
.(3) . — A palavra tem origem turca, e designa originàrirunente um grupo de nômades
tártaros.
,(4) • — Tribo é palavra latina (tribos) . Em Roma indicava originãriamente os três
bairros da cidade; com o crescimento do Império Romano, criaram-se 35 tri-
bos, que abrangiam também a população rural. Etimologia discutida.
— 455 —

,,dos políticos, e seitas religiosas; apesar dessas diferenças sente-se


, ima unidade por possuir em comum certas tradições, costumes e
:instituições, e por falar a mesma língua. E, afinal, uma nação (5)
o conjunto de habitantes de um território, ligados por tradições
e lembranças, interêsses e aspirações comuns, e subordinados a
-a.un poder central, que é o Estado (6) .
Não devemos superestimar o valor dessas distinções, pois a
terminologia, seguida pelos vários autores, é bastante divergente
às vêzes, até arbitrária . Outrossim, seria um engano acreditar-
mos que os povos e as nações de que nos fala a história, tenham
atravessado as mesmas fases da evolução: família, clã, tribo. A
formação de povos e nações é, na realidade, um fenômeno muito
.complexo, que não se compadece com um esquema simplificador, e
a ordem dos diversos grupos sociais, dada acima, é mais lógica
,que histórica . Também é perigoso identificar povo ou nação com
: ,raça, que é conceito biológico: um conjunto de indivíduos que
conservam, por disposições hereditárias, caracteres semelhantes psi-
cofísicos, provenientes de um tronco comum. Quanto à raça pode-
rmos fazer duas observações: a ciência não conseguiu estabelecer
relações constantes entre certos característicos somáticos e certas
qualidades psíquicas e morais; a existência de raças "puras" é mui-
-to problemática. Os grandes povos históricos não são raças "puras":
antes se pode dizer que os gregos, os romanos, os inglêses, os italia-
- nos e os franceses são o resultado feliz de vários cruzamentos.
III. O historiador, ao descrever as várias formas sociais do
passado, não deve partir de um esquema apriorístico, violentador
dos fenômenos históricos que sempre são originais e únicos. Sua
primeira obrigação é um respeito absoluto aos fatos concretos, e
sua principal tarefa consiste em descobrí-los. Muito mais ainda se
-precaverá contra certas associações, de ordem afetiva e até ética,
que algumas palavras hoje em dia trazem consigo. Damos um só
-exemplo: o têrmo nacionalismo. O patriotismo é de todos os po-
,

vos com residências fixas, o nacionalismo moderno é um conceito re-


lativamente recente. Na Idade Média não existia nem a palavra nem
-a idéia . E' um produto de vários fatôres históricos, que começa-
- ram a atuar na Renascença para se apoderar da mentalidade mo-
-derna desde os fins do século XVIII, sob a influência da Revolu-
-ção francesa e de certas idéias românticas. Submetidos à antiga mo-

(5) . — A palavra latina natio significa: "nascimento, descendência, linhagem". De-


pois também: "nação, povo, tribo, etc.". — Os outros latinos não raro lhe
dão um sentido depreciativo: "súcia", por exemplo famelica natio hominum
(Plautus) e natio Epicureorum (Cícero) .
6) . — O têrmo Estado, no sentido moderno, foi forjado na Itália (século XV) :
Stato; os obras de Maquiavel contribuiram muito para a difusão e a inter-
nacionalização da palavra. Só no século XVIII tornou-se comum na França,
Alemanha e Inglaterra. Os medievos, como também os romanos, usavam as
palavras respublica (cf. inglês Commonwealth) e civitas.
--- 456 —

`narquia habsburguesa viviam vários povos de descendência, lín--


guas e tradições muito diferentes. Na Suiça moram ainda agora
três (ou quatro) povos: alemães, franceses e italianos, e nenhum:
dos três quer fazer parte nem da Alemanha, nem da França, nerm.
da Itália. Na Bélgica a convivência dos flamengos e dos valões tenr
criado algumas dificuldades: aí existem movimentos separatistas.
A política do presidente Wilson pode ser considerada como o apo-
geu do princípio nacionalista: cada povo tem direito ao seu Estado..
Era a aplicação dos direitos humanos a coletividades, que muitas
vêzes não tinham a possibilidade nem os recursos para se organi-
zarem num Estado. A geração atual começa a avistar as conseqüên-
cias desastrosas do nacionalismo extremo, que dominou a política.
de 1795 a 1919. Ora, o historiador terá muito cuidado em evitar
as associações modernas ao aplicar os têrmos "nação" e "naciona-
lismo" aos fenômenos do passado. Deve formar uma idéia exata:
do valor que essas palavras tinham nos tempos estudados e não-
lhes pode atribuir os nossos conceitos e os nossos preconceitos.
Qualificar a um Temístocles, Augusto ou Carlos Magno de "na-
cionalistas", sem especificar onde está o seu "nacionalismo", é-
um êrro muito grave. E muitos livros históricos, até alguns de cunha
científico, sofrem de um "confusionismo" lastimável que nos im
pede de vermos a realidade.

IV. Hoje em dia se fala muito no problema das massas:


discutem-no sociólogos, políticos e filósofos (7), e também o his-
toriador moderno não pode deixar de encará-lo. Ora, massa é-
têrmo equívoco. Massa pode ser uma multidão de indivíduos_
reunidos por certos interêsses coletivos, e guiados mais pelos ins-
tintos do .que por uma deliberação racional, com o fim de dar
uma solução prática, — e sendo possível, imediata, — aos seus
problemas concretos. Por reagir sob o impulso dos instintos, pre-
cisa de um complemento que lhe dê certa orientação determinada
aos vagos desejos e esperanças: o complemento necessário da mas-
sa é o chefe, o líder, o demagogo. O papel histórico das massas:
é muito grande: pensemos na tomada da Bastilha (14 de julho
de 1789) e nos iconoclastas nos Países-Baixos durante a Reforma.
Massa pode ser também a maioria de um povo que não che-
ga a impor a sua vontade aos outros membros da coletividade nem.
a criar novos valores culturais. Nesta acepção, a palavra signifi-
ca os que ficaram atrasados em relação à elite ou à minoria.
(criadora e governadora) de um país. A massa é o conjunto dos-
que não dirigem, mas são dirigidos; dos que não criam, mas se : :

aproveitam, à sua maneira, das realizações de outros.

(7). — Cf. o célebre livro de José Ortega y Gasset: La Rebelión de las Mesas (1930.—
— 457 —

Massa pode indicar também um fenômeno próprio de épo-


cas decadentes e designar certa decomposição social. E' um povo
degenerado, já não capaz nem desejoso de seguir os seus antigos
líderes (culturais, sociais, políticos, e religiosos), porque perdeu
a consciência de formar uma unidade orgânica com êles, e já não
crê nos valores que representam. Procuram outros líderes dos
quais exige a execução de um programa principalmente utilitário,
acomodado aos seus desejos de confôrto, bem-estar material e
prazeres. A massa esforça os seus líderes a abaixar-se ao nível
das suas aspirações, e êles, dirigindo-se a ela, já não podem apelar
para motivos idealistas. A massificação é, portanto, um processo
de mútuo nivelamento. A massa não acredita nos valores tradi-
cionais do passado nem está disposta a conquistar um futuro me-
lhor para a comunidade mediante sacrifícios e atos da abnegação:
é uma aglomeração amorfa de átomos humanos, apenas ligados
por interêsses egoistas. E o líder, aproveitando-se dos instintos
populares, vê nas massas um meio apropriado para alcançar os
seus fins: o poder, o prestígio, o dinheiro.
Poderíamos continuar à vontade ,essa descrição demorincla,
tão em voga em certas publicações que tratam do assunto com
uma predileção bem visível e retratam a massa com as côres mais
negras. Assinalam na história o grito Panem et circenses (8) do
povo romano decadente, as facções turbulentas dos "Azuis" e dos
"Verdes" (9) em Bizâncio, para depois desmascarar as massas mo-
dernas que estão dispostas a sacrificar tudo, inclusive a sua li-
berdade, ao seu confôrto, e que têm trocado as suas convicções
religiosas e morais por slogans. Com efeito, a técnica moderna,
muitas vêzes abusada para fins desumanos, facilita a massificação.
La Rebelión de las Masas é uma ameaça séria à sobrevivência da
nossa civilização. Mas não nos entreguemos a um pessimismo sem
saída. Pois também as massas compõem-se de pessoas humanas,.
portanto, de sêres potencialmente livres. Ao que parece, a máqui-
na veio a destruir a personalidade tal como era concebida desde
o Renascimento, mas não destruirá necessàriamente a pessoa. Do
esfôrço pessoal de cada um de nós dependerá em boa parte que o
fim do período histórico, iniciado no século XV e freqüentemente
caracterizado como o da auto-afirmação do indivíduo, não seja
a morte da pessoa humana ou da cultura humana. Ainsi done,
au lieu de protestei contre l'avènement de la masse au nom'

— O grito encontra-se em Juvenalis, Safira X 80-81:...atque duas tantum res an-


xius optai, Panem et Circenses.
— Os "Azuis" e os "Verdes" eram duas facções de "fãs" esportivos, das quais cadw
uma tinha os seus favoritos no circo. Por vêzes intervinham na política, por
exemplo em 532, quando os dois partidos, momentãnearnente reconciliados, se
voltaram contra o Imperador Justiniano (527-565). A sedição foi sufocada,
pela presença de espírito da Imperatriz Teodora.
458 --

d'urte culture représentée par des personnalités, mieux vaudrait


se demander ofr se situent les problèmes humains de cette mas-
se... Si étrange que cela paraisse: cette même masse qui porte
,en elle le danger d'être complètement dominée et exploitée, a aus-
si la possibilité de conduire la personne à sa complète majorité
(10) . Escusa acrescentarmos que essas massas, produzidas pelos
tempos modernos como um novo "tipo" histórico, se distinguem
•consideràvelmente das massas de que falamos mal há pouco .
V. Além de pertencer a muitas sociedades naturais, o cris-
tão é membro também da Igreja, a qual, como o Corpo Místico de
"Cristo, continua entre os homens a obra da divina redenção. E'
uma sociedade sobrenatural, mas muito real. Invariável e incor-
ruptível quanto à sua essência, está sujeita, nas suas formas his-
tóricas, a tôdas as leis da condição humana: cresce, desenvolve-
se, luta e até pode morrer parcialmente, em alguns de seus membros.
Enquanto vive inter mundanas varietates, é um fenômeno histórico
-

e, ao mesmo tempo, transcende o processo histórico. Destarte se pos-


sibilita a História Eclesiástica, a descrever o desenvolvimento in-
terno e externo da Igreja através dos séculos. Abrange atualmen-
te um período de quase dois milênios, um terreno imenso e varia-
díssimo . O historiador inglês Macaulay escreveu há um século:
"-There is not and there never was on this earth an institution so
-well deserving of examination as the Roman Catholic Church.
The history of that Church joins together the two great ages of
human civilization... She saw the comrnencement of all the oo-
-yernments and of all the ecclesiastical establishments that now-
,exist in the world, and we feel no assurance that she is not des-
tined to see the end of them all (11) .
A História Eclesiástica foi inaugurada no século IV pelo bis-
po Eusébio de Cesaréia, que já conhecemos como autor de uma
`Crônica (cf. § 5, II) . No tronco da história geral da Igreja cres-
ceram, no decurso dos tempos, vários ramos, por exemplo a his-
tória do dogma, da hierarquia, dos sacramentos, das ordens reli-
:giosas, das instituições eclesiásticas„ etc . Além disso, os dois gran-
des desmembramentos da Cristandade, que se verificaram no sé-
culo XI (12) e no século XVI (13), deram origem a duas outras

— Romano Guardini, La Fin des Temps Modernes, (Éditions du Séuil, Paris,


1952), pág. 76.
— Thomas Babington Macaulay, Essay on Carlyle.
, (12). — As tensões entre a Igreja latina e grega remontam ao século V: o primeiro

Cisma foi de 483 a 519 (o chamado Cisma de Acácio). Nos séculos VIII-IX
houve a questão das imagens e do Filioque; em 968 o Cisma de Fócio; em
1054 a separação definitiva (o Grande Cisma de Miguel Cerulário).
;(13). — A Reforma protestante de Lutero (1483-1546), Calvino (1509-1564) e Zwínglio
(1484-1531).
459 -7,

espécies de historiografia eclesiástica: à da Igreja Oriental e à


,do Protestantismo, ambas com as suas subdivisões.

§ 21. A história política .

E' esta a forma mais antiga da historiografia, quase a única


a ser praticada, junto com a biografia, até o século XVIII. Du-
rante muitos séculos os historiadores costumavam subordinar to-
dos os seus assuntos ao aspecto político, ou, — pior ainda, — aos
interêses das dinastias reinantes. Descreviam minuciosamente as
manobras diplomáticas, as guerras e as batalhas, as vitórias e as
derrotas, as instituições e as reformas políticas, mas prestavam re-
lativamente pouca atenção às outras atividades humanas de cará-
ter social. De que maneira os homens pensavam, trabalhavam, ga-
nhavam dinheiro, se vestiam, se casavam, se divertiam, de que
modo eram educados e alimentados, e muitas outras coisas que
nos interessam hoje em dia, eram assuntos geralmente considera-
dos de somenos importância, e quase sempre tratados só de pas-
sagem. Com muita razão vieram a ser focalizados pela historio-
grafia moderna. Entretanto, seria uma reação exagerada, se qui-
séssemos eliminar por completo o fator político da história, —
aliás, seria impossível, — ou diminuir-lhe a importância a ponto
de considerá-lo apenas como um esqueleto, indispensável mas in-
cômodo. A política externa e interna determinou, em grande par-
-te, direta ou indiretamente, o destino dos povos e o dos indivíduos:
só uma concepção errada da política, no mais das vêzes originada
por um liberalismo excessivo ou por um totalitarismo desumano,
tem afastado o homem moderno do Estado. Os antigos e os me-
dievos pensavam de modo bem diferente. Outrossim, enquanto
continuarem a existir as diversas nações, continuar-se-á a escrever
a história nacional, e não só por motivos estreitamente naciona-
listas. A história não é ciência "pura", como por exemplo a ma-
temática, mas é-lhe superior sob o ponto de vista existencial: re-
laciona-se intimamente com a vida dos homens, revelando-lhes
algo da situação concreta em que se acham. Por isso o brasileiro
terá sempre um interêsse especial pela história do seu país, e o
francês pela da França.
I. As formas políticas variam conforme os povos e as épo-
,cas. Nas sombras dos grandes reinos orientais viviam os gregos
clássicos, politicamente organizados em "póleis", quer dizer, em
Estados minúsculos, cujos territórios não excediam muito os limi-
tes da cidade e das terras circunjacentes. Conforme a índole e a
-tradição de cada uma delas, eram monarquias, aristocracias ou de-
mocracias de todos os matizes. Zelosas da sua autonomia, não
— 460 —

chegaram a estabelecer a unidade política do país: juntavam-se


apenas quando as ameaçava um perigo comum. Mas cada "pólis""
procurava estender a esfera de sua influência a outras "póleis", por
meio de alianças que muitas vêzes o forte impunha ao fraco. Des-
tarte se criavam impérios disfarçados, que, com o tempo, deviam
destruir a autonomia de numerosas cidades. Disputaram entre si
a hegemonia principalmente duas cidades, as mais poderosas da .

Hélade: Atenas, poder marítimo, e Esparta, poder terrestre. Aque-


la era uma democracia progressista, esta um aristocracia conser-
vadora. A guerra terminou pela derrota de Atenas (404 a. C.),
mas o fim da guerra não foi o fim do separatismo político. Filipe
II, o rei da Macedônia, soube hàbilmente aproveitar-se das ten-
sões que existiam entre as diversas "póleis", liqüidando-lhes aos ,

poucos a independência a reunindo-as sob o seu poder . Seu filho,


Alexandre Magno (336-323), destruiu os grandes reinos orien-
tais: o Egito e a Pérsia, incorporando-os no seu Império helenís-
tico, que, logo depois da sua morte, se dissolveu em três monar-
quias: a Síria, o Egito e a Macedônia. Delas foram herdeiros os
romanos, os quais, depois de atravessarem vários regimes políti-
cos (realeza, república e império), se tornaram senhores de todo ,
o mundo mediterrâneo. A Pax Romana reinou durante uns três
ou quatro séculos em quase tôdas as províncias nesse Império enor-
me, organizado e disciplinado pelo gênio jurídico dos romanos .
No século IV, porém, começaram a invadir o território romano di-
versas tribos germânicas, que em alguns decênios conseguiram as-
senhorear-se de tôdas as províncias ocidentais; no Oriente mante-
ve-se apenas Bizâncio ou Nova Roma, abrangendo a Grécia e a
Ásia-Menor, ao passo que as outras províncias orientais (Egito, Sí--
ria) se tornaram a presa dos árabes maometanos (século VII),
que até penetraram na África (Tunísia e Argel) e na península
ibérica. As duas partes do Império, desde então definitivamente ,
separadas (14), tinham destinos muito diferentes: escorçamos aqui
apenas os do mundo ocidental, que nos é mais próximo. A Idade
Média (latina) conservava, se não a realidade do Império, ao me-
nos as saudades, batizando-o e dando-lhe as feições de uma teocra-
cia cristã sob a supremacia do Papa de Roma: Carlos Magno foi
coroado Imperador na noite de Natal do ano 800 pelo Papa Leão
III. Como nos tempos •do apogeu do Império Romano, salienta-
va-se pouco durante a Idade Média o nacionalismo: os cives Ro- -

mani de outrora passaram a constituir a grande família cristã: a .

Christianitas, acolhendo aos poucos os bárbaros. Reconhecia-se,.

(14) . — Em 395 d. C. Teodósio o Grande dividiu, ao morrer, o Império Romano era


duas metades, legando o Oriente (capital: Constantinopla ou Bizâncio) a seu
filho Arcádio, e o Ocidente (capital: Roma) a seu filho Honório. O Império.
Ocidental sucumbiu em 476, o Ori e ntal em 1453.
— 461 —

sim, a missão especial das várias nações; havia um ditado medie-


val: Italiae sacerdotium, Germaniae Imperium, Franciae studium.
Já não era uma civilização mediterrânea,• mas a Europa ocidental
começava a desempenhar papel preponderante. As diversas re-
giões européias eram divididas em reinos, ducados, condados, ba-
ronias, etc., como também em bispados e cidades, todos êles, pelo
menos tebricamente sob o domínio do Império. Nos fins da Idade
Média os senhores feudais tornaram-se cada vez mais independentes
do Império e do Papado, e desde o século XV consolidaram-se os Es-
tados nacionais: França, Espanha, Portugal, Áustria, etc., desen-
volvendo-se-lhes o regime em sentido absolutista . Foi a época das
grandes dinastias (Habsburgos, Bourbons, etc.) e das grandes des-
cobertas, espalhando-se a civilização ocidental por outros conti-
nentes, principalmente pela América. A Revolução francesa deu
origem às monarquias constitucionais e à representação popular:
iniciou-se o período do liberalismo e da democracia moderna, e
nasceu o socialismo. Os tempos modernos assistem à criação de
Estados totalitários (fascismo, nacional-socialismo e comunismo),
e a tentativas hesitantes, mas promissoras, de federalismo inter-
nacional.
Essa sinopse rápida, por mais incompleta que seja, re-
vela as diversas fases políticas pelas quais passou a cultura oci-
dental durante 25 séculos, e as diversas conquistas territoriais da
mesma . O historiador tem a tarefa de descrever-lhes o nascimen-
to, a evolução e a decadência, alargando ou delimitando o terreno
de suas pesquisas conforme as exigências do assunto escolhido.
Pode escolher a história de um povo ou de um Estado, pode es-
colher também a história de um continente, de um país, de uma
região, de uma província, de uma cidade, de uma aldeia, de um
bairro, de uma família,• de uma diocese ou abadia, etc. Tôdas as
entidades políticas e administrativas, todos os corpos sociais, por
mais minúsculos que sejam, possuem o seu valor, sempre que se-
jam bem estudados, principalmente quando o historiador se es-
força por relacioná-los com as linhas gerais da •história universal.
O historiador, ao descrever as diversas formas sociais do
passado, não se contentará em relatar, à maneira de um cronista,
as fases sucessivas, mas se esforçará por descobrir-lhes as causas
e as interdependências. E' quase desnecessário insistirmos nesse
ponto. Chamamos a atenção do leitor para outra questão. Duo
si idem dicunt, non idem sentiunt, diz o adágio latino com muita
razão. Quando isto se verifica freqüentemente entre contemporâ-
neos, que têm tantas possibilidades de se conhecerem a fundo, quan-
to mais mal-entendidos hão de existir entre pessoas de épocas di-
ferentes! Com efeito, podem-se servir do mesmo vocabulário, dan-
462

do-lhes um sentido bem diferente. Ao que parece, é um caracte-


rístico próprio da nossa civilização, ir buscar num passado ideali-
zado os princípios de uma nova orientação: os humanistas pre-
tenderam revivificar a Antigüidade, ceratos românticos a Idade
Média. Nem o movimento renascentista nem a corrente românti-
ca conseguiram estabelecer a época de sua predileção: o tempo é
um fator irreversível. Os humanistas possuíam, bom ou mau gra-
do seu, a herança de dez séculos de medievalismo, e os românti-
cos eram impregnados de três séculos de humanismo antropocên-'
trico. O resultado de um tal entusiasmo pelo passado não pode-
ser uma cópia ou uma simples repetição, mas deve ser uma reno-
vação: nela se integram, mais acentuadamente do que num perío-
do anterior, as fôrças dinâmicas de um passado idealizado, inter-
pretado à luz de novas exigências e acomodado às novas circuns-
tâncias.
Para o historiador essas regras têm conseqüências graves.
Deve fazer tôda a diligência em descobrir a originalidade e a uni-
cidade dos fenômenos estudados. A palavra "democracia" nos tem-
pos de Péricles (século V a. C.) trazia consigo outras associações,,
outros valores morais, outros ideais políticos do que a mesma pa-
lavra, empregada por um Presidente Truman ou por um jorna-
lista moderno. Os precursores intelectuais da Revolução francesa
tinham uma concepção meio ingênua dos "bons republicanos" ro-
manos, cujos ideais identificavam, sem reflexão crítica, com as suas.
aspirações e os seus desejos: se tivessem tido um senso histórico
mais profundo, teriam ficado horrorizados com a conservadora e
aristocrática república romana, que idolatravam sem conhecê-la.
bem. A palavra "Império" é das mais equívocas: falamos no Im-
pério ateniense, no Império Romano, no Sacro Império medieval,.
no Império brasileiro, etc.; a palavra Império (alemão "Reich")
foi o pesadelo de três ou quatro gerações de alemães. Ora, os slo-
gans podem ser repetidos, jamais, porém, as realidades históricas
nem a mentalidade que originàriamente as criou. Uma das obri-
gações mais imperiosas do historiador, — não cansamos de repeti-
lo, — consiste em descobrir o caráter peculiar a esta democracia,.
a esta republica, e a êste Império. Nisso não se restringirá ao
exame das realidades visíveis e palpáveis, mas prestará também
muita atenção aos ideais que lhes deram a vida, e à estrutura
mental que as originou. Procedendo assim, conseguirá integrar
as formas políticas num conjunto superior, num "organismo", do..
qual fazem parte. Le bon historien prend son bien otst il le trouve:
na literatura, nas artes, nos costumes, na filosofia, na religião. E.
assim a história política vem a ser história da civilização.
463

§ 22. A hístbria universal.

A expressão "história universal", têrmo bastante pretensioso,,


merece por alguns instantes a nossa atenção. Será que é possível
escrever-se a história da humanidade? O resumo das várias formas'
políticas, dado no § 21 I, não esboçou os contornos da história uni-
versal, mas apenas os da civilização ocidental. A maior parte das
chamadas histórias universais não faz diferentemente: limita-se a
uma exposição mais ou menos extensa da cultura européia e ame-
ricana, tratando muito superficialmente os outros continentes em
guisa de apêndices.
I. A civilização grega era uma cultura essencialmente me-
diterrânea . Os povos, no dizer de Platão (15), pareciam-se com
rãs em volta de um tanque, ou com formigas em tôrno de um for-
migueiro, agrupados que estavam em ¡redor do Mediterrâneo.
Sem dúvida, era sabido que o mundo habitável era muito maior,,
mas pouco lhes importava, e se lhes importava, não tinham os
meios técnicos de atravessar o Oceano, superar as montanhas e
penetrar nos desertos. Quem não era grego, passava por "bárba-
ro" (16) . As conquistas romanas não alteraram essencialmente o
caráter mediterrâneo da cultura antiga, deslocando apenas, por
certo tempo, o centro da gravidade para a parte ocidental do mes- -
mo mar. A história universal daqueles tempos era a história da
"oikouméne" (17), quer dizer, da terra habitada enquanto era
conhecida, que pràticamente coincidia com o território do Império
Romano. Escreveu-lhe a história Diodoro de Sicília (18), na épo-
ca do Imperador Augusto, demonstrando que tôdas as civilizações
mediterrâneas convergiam na história do povo romano, a qual pare-
cia absorvê-la a tôdas (19) . Não sabemos bem a estrutura dos
livros perdidos dessa obra, mas podemos afirmar que Diodoro
conhecia mal os pormenores da história oriental e lhe presta- -
va pouca atenção comparada com o interêsse que tinha pelo de-
senvolvimento da. Grécia e de Roma . O Cristianismo revolucio-
nou o conceito da história universal: em primeiro lugar devia
integrar, no quadro histórico dos povos clássicos, os destinos do

. — Plato, Phaedo 109 A-B.


. — A palavra "bárbaro" indicava originàriamente o estrangeiro que falava uma ,
língua incompreensível para um grego (cf. em latim: balbutire = port. "bal-
buciar") . Neste sentido, Homero, Ilíada B 867, onde o poeta fala nos cá-
ricos "de linguagem bárbara". — Bem cêdo, porém, a palavra foi-se ligando
com sentido depreciativo. Os romanos, que originàriamente também eram con-
siderados como "bárbaros" pelos gregos, uma vez incorporados na cultura hele-
nística, aplicavam o têrmo aos povos não-civilizados do Oriente e do Ocidente.
. — A palavra deu origem ao adjetivo moderno "ecumênico", que ainda encontra-
mos nas combinações "concílio ecumênico" e "movimento ecumênico".
— Cf. § 3, Va.
— Já o historiador Éforo (cf. § 3, M) escrevera uma História Universal, chama-
da "Philippica", por fazer convergir os destinos de todos os povos na história,
dos macedônios, cujo rei era Filipe (359-336), o pai de Alexandre Magno..
— 464 —

povo eleito e os de outros povos orientais; mais importante ainda


era que ensinava com ênfase a unidade do gênero humano. Des-
tarte se possibilitou, pelo menos em tese, o nascimento de uma
verdadeira história universal. Entremostrou a nova concepção
Santo Agostinho no De Civitate Dei, mas não tinha preocupa-
ções históricas prÓpriamente ditas ao escrever êsse livro magis-
tral (20), nem dispunha dos conhecimentos necessários para a re-
construção científica do passado. Êsses fatôres faltaram igualmente
à Idade Média. Quando o mundo real fôra descoberto, nos séculos
XV e XVI pelos portuguêses e espanhóis, nos séculos seguintes pelos
holandeses e inglêses, a situação tornou-se apenas materialmente
mais favorável à realização de uma história universal. No mais das
vêzes, os conquistadores interessavam-se pouquíssimo pelo passado e
pela cultura dos povos dominados, visando só lucros imediatos: até
destruiram muitas relíquias preciosas, como por exemplo Francisco
Pizarro (1475-1541), que acabou dràsticamente com a civilização
dos Incas. Só no século XIX os europeus e os americanos come-
çaram a tomar interêsse pela vida e pelas instituições de culturas
exóticas, mas, por motivos evidentes, sempre em grau muito menor
do que pela sua própria história. Voltaire, utilizando os relatórios
um tanto otimistas dos missionários jesuítas (21), consagrava o
primeiro Capítulo do seu Essai à China: qui avait une histoire
suivie dans une langue'déjà fixée, lorsque nous n'avions pas encore
l'usage de I'écriture (22) . Hoje em dia existem numerosas mono-
grafias sôbre a história dos povos civilizados, fora da cultura oci-
dental, como também sôbre as instituições dos povos primitivos.
II. Contudo, estamos só no comêço, estando por fazer qua-
se tudo nesse terreno da historiografia . Que se pense nas enormes
dificuldades a serem vencidas pelo historiador ao reconstruir e ao
interpretar cientificamente os grandes acontecimentos da cultura
ocidental, e logo se compreenderá quão longe estamos ainda de
uma verdadeira história universal. Os obstáculos são inú-
meros: falta de documentos, falta de estudos preparatórios, falta
de interêsse, e por outro lado: abundância de dados heterogêneos,
muito vastos para serem dominados por um indivíduo ou até por
um grupo de pesquisadores, uma multidão de teorias apressadas e
soluções duvidosas. Além dessa dificuldade de ordem material, exis-
te outra mais grave ainda: a história torna-se apenas mais geral
por abranger mais civilizações, para ser universal, no verdadeiro

. — Santo Agostinho convidou Orósio a escrever tal história universal, cf. § 77.
• — Os jesuítas editavam, desde 1703, as Lettres édifiantes, relatórios anuais das
suas atividades missionárias, em que exaltavam principalmente a aptidão natu-
ral do povo chinês para o Cristianismo. — Um dos primeiros a tomar conhe-
cida a China na Europa foi Joseph-Marie Amyot, S. J. (1718-1793) .
. — Voltaire, Essai sor les Moeurs et l'Esprit des Nations, Avant-Propos, no fim.
— 465 —

.,sentido da palavra, precisamos lhe conhecer o inicio comum e o têr-


:mo comum. Ora, muitas pessoas pensam que podemos conhecer
têrmo comum da humanidade: uma cultura universal a reinar
pelo planeta inteiro. Assim como a história de todos os povos medi-
terrâneos convergia na do povo romano, assim tôdas as culturas
,existentes convergiriam na civilização ocidental, destinada a domi-
nar o mundo para sempre com as suas ciências, a sua técnica, os
seus ideais de democracia e liberdade. A cena final da história se-
ia uma cultura planetária, essencialmente concebida e realizada
pelos ocidentais apesar das eventuais contribuições valiosas de ou-
tros povos. O exemplo alegado do Império Romano obriga-nos a
<certa prudência e moderação nas esperanças: as culturas orientais
nunca assimilaram por completo a civilização greco-latina. Bem ao
-contrário: Roma dominou-as politicamente alguns séculos, deu-lhes
certos impulsos, mas recebeu delas muito mais ideologias, e a partir
,do século III d. C., despertou o Oriente novamente, desintegrando-
13 da unidade política, que lhe fôra imposta pela fôrç,a das armas, e
separando-o de uma unidade ideológica que era mais uma fiCção do
<que uma realidade. E' legítima a pergunta: será que a unificação
,do mundo atual é mais aparente do que real? Continuàrá a mar-
,cha conquistadora da nossa civilização? Será que a difusão mundial
:da nossa técnica, das nossas ciências, e das nossas ideologias nos
ofusca a vista para vermos as oposições intranponívei que existem
por exemplo entre o Ocidente e o Oriente? Não poderá ser que os
,empréstimos técnicos e econômicos sejam• utilizados pelos orien-
tais numa mentalidade bem diferente da nossa, e que cheguem a
-ser manejados contra nós próprios e nossas esperanças otimistas?
-.E' verdade o que o poeta britânico (23) cantou: East is East, and
West is West: and never the twain shall meet? Eis alguns proble-
mas que a história, ciência do passado como é, não sabe resolver:
ela solução prática que se lhes der, dependerá em grande parte a
realização de uma historiografia universal.

B. O ASPECTO INDIVIDUAL.
§ 23. O indivíduo na história.

Já a epopéia dos povos primitivos reconhece o valor do indi-


-víduo: exalta as façanhas de um Aquiles e de um Siegfried, expli-
-

cando-as muitas vêzes como devidas a uma proteção especial da


-parte dos deuses. Com efeito, o indivíduo é o grande motor da his-
tória, a fôrça dinâmica de todo e qualquer progresso humano. A
-teoria de um povo-filósofo ou de um povo-poeta, proclamada com
tanto afinco no século passado, evidenciou-se numa ilusão româati-
423) . — Rudyard Kipling, The Ballad of East and West.
— 466 —

ca. O povo como tal não faz versos nem elabora um sistema filo-
sófico. A pessoa humana não é simplesmente o expoente da socie-
dade, mas incorpora-se nela de maneira espiritual . O fim da socie-
dade não coincide, se não em parte, com o da pessoa, que tem os
seus direitos invioláveis. O homem, é verdade, necessita da socie-
dade, mas esta precisa mais ainda do homem, da personalidade,
que nela se integra e a transcende ao mesmo tempo . Há sempre-
certa tensão entre a sociedade e a pessoa, por vêzes até conflitos
trágicos. O homem medíocre, que possui pouca "personalidade",
escolhe geralmente o caminho do menor esfôrço, acomodando-se de-
boa vontade às exigências justas ou injustas da coletividade. Se a
"personalidade" se lhe adapta, fá-lo por motivos bem diferentes: -
consciente do seu lugar no conjunto social toma uma livre decisão-
em virtude de certos valores objetivos que a sociedade representa.
Mas acontece também que se revolta contra ela, com seus protes-
tos, seus atos, suas palavras, sua atitude. Insurge-se contra as ten-
dências necessàriamente niveladoras de tôda a convivência huma-
na, ora por ressentimento ou orgulho, ora por obedecer a um impe-
rativo da sua consciência.
Por dois motivos, então, a pessoa merece a atenção dos histo-
riadores: por seu valor intrínseco e por causa da influência que exer-
ce sôbre o processo histórico, para o bem e para o mal. Assim se
explica a popularidade que goza uma biografia bem escrita, em tô-
das as camadas da sociedade. O homem interessa-se sempre pela
homem, e tem a tendência de admirá-lo e amá-lo, ou então, de- '

detestá-lo e odiá-lo. E' difícil, ou até impossível, que o homem to-


me uma posição completamente neutra ou "objetiva" ante o seu -
próximo. Aí já assinalamos um grande perigo para o biógrafo: por
mais admiração ou antipatia que tenha para com o seu "herói", não-
se pode deixar guiar pelos seus sentimentos a ponto de se des -

viar da verdade histórica tal como a encontrou nas fontes. E deve-


dar a verdade completa: não pode encobrir os defeitos do seu ído-
lo, — a palavra cabe mal a um historiador sério, nem os méri-
tos do seu adversário. Isenção de espírito e sinceridade são duas -
qualidades imprescindíveis a um bom historiador, as quais não ex-
cluem simpatia e admiração, nem crítica e censura. Tampouco
pode especular sôbre as paixões partidárias de seus leitores, ou
embelezar teatralmente a matéria. Deve-o orientar, a cada passo,.
a verdade, e não a intensão de brilhar ou de influenciar seus leito-;
res num sentido que não seja compatível com o seu assunto. Uma
biografia não é propaganda por um programa político ou social! E.",
afinal, não pode jamais prescindir do elemento social, sempre ob-
servável até no homem mais individualista do mundo: tem de re-
velar-nos as feições próprias do ambiente histórico em que foi edu-
,

cado e viveu o herói da biografia, a fim de lhe descobrirmos a o•i--


467

ginalidade e a personalidade. Escrever uma boa biografia é em-


preendimento muito mais custoso do que se pensa em geral.

§ 24. Formas de biografia.

A biografia (23a) é um gênero da historiografia que remonta.


à Antigüidade. Não pretendemos esborçar-lhe a evolução histó-
rica, mas mencionamos apenas alguns grandes vultos entre os bió-
grafos e algumas espécies de biografias que são importantes para a
tradição histórica da cultura ocidental.

I. Plutarco de Queronéia (±46-±- 120) é o maior biógrafo,


da Antigüidade. O autor não tinha a pretensão de ser historia-
dor, mas tinha sobretudo interêsses psicológicos e éticos ao estudar
a vida dos grandes homens do passado (24). Sua obra Vitae Paral-
lelae compõe-se de 23 pares de biografias: em cada um dêles fi-
gura, ao lado de um herói grego, um herói romano, por exemplo
Demóstenes e Cícero, Alexandre Magno e Júlio César, etc. (25).
Plutarco é autor simpático e ótimo contador: se lhe faltam o senso,
histórico e uma crítica rigorosa, essas falhas são compensadas por
uma probidade e uma objetividade que ainda hoje em dia são ra-
ras num biógrafo. Sua finalidade é, antes de mais nada, moralista:
a vida dos grandes homens é um espêlho (26) para a posteridade,
e apresenta-nos exemplos que devemos imitar ou evitar. Não lhe
interessam• as grandes ações nem a conexão histórica: muitas vê-
zes acontece que uma anedota ou uma palavra espirituosa revela
melhor o caráter do herói do que as grandes façanhas. E' difícil
superestimar a repercussão multisecular da obra de Plutarco. Em Bi-
zâncio passou a ser manual predileto, e desde o Renascimento con-
quistou um lugar de destaque na Europa ocidental. O francês Jac-
ques Amyot (1513-1593) traduziu-a, e essa tradução francesa, que•
logo se tornou clássica, foi uma fonte riquíssima para os drama-
turgos Corneille e Shakespeare, para pensadores políticos como
Montesquieu e Rousseau, para estadistas como Frederico o Gran-
de e Napoleão. Ainda em nossos dias foi traduzida do francês•
para o português e reeditada no Brasil (27).

(23a). — A palavra "biografia" encontra-se urna única vez na literatura grega, num optas- ,
culo do último neoplatônico Damáscio (século VI): Vita Isidori VIII. Até os
fins do século XVII preferia-se: "Vita", ou "Vida", etc. — Na Inglaterra
foi introduzida "biography" pelo poeta Joha Dryden (1683), na Alemanha "I3io-
graphie" em 1709, expressão sancionada pela Académia française só em 1762.
(24) . — Cf. Plutarchus, Vitae Aemilii et Timoieontis 1; Vitae Alexandri et Caesaris
1; Vitae Cimonis et Lueulli 2; Vitae Dernetrii et Antonii 1.
— Possuimos ainda 23 pares de biografias, além de duas isoladas, consagradas.
aos Imperadores romanos Galba e Otão. Perderam-se pelo menos 4 Vitae..
— Cf. Plutarchus, Vitae Aemilii. et Tirnoleontis 1, e Moralia pág. 85B.
— Pela Editôra das Américas (São Paulo). A tradução é de. -vários autores.-
468

Também os cristãos, interessavam-se pelos seus heróis,


ns santos. A hagiografia já era praticada na Antigüidade, e ti-
nha por fim glorificar a Deus mediante os seus santos e propor
aos homens modelos de virtude e santidade. Célebres hagiogra-
fias latinas são por exemplo Vita Sancti Martini de Sulpício Se-
vero (±363-420), que contém muitos elementos românticos; Vita
Sancti Augustini de Possídio (século V), que é muito sóbria; Vita
Sancti Severini de Eugípio (século VI), que nos fornece preciosas
informações históricas sôbre a época da Migração dos Povos; Vita
Sancti Benedicti do Papa Gregório Magno (590-604) . Esta últi-
ma obra já marca a fasé de transição para as lendas medievais,
cheia que está de fatos milagrosos. A hagiografia, que por muitos
séculos tinha apenas fins edificantes, ficou com bases científicas
graças às pesquisas dos Bolandistas (28), nos séculos XVII-XVIII.
Ao lado dêsses trabalhos, pouco acessíveis ao grande público, têm
continuado a sair muitíssimas publicações de valor duvidoso . Só
nos tempos contemporâneos os católicos começaram a ver a impor-
tância de hagiografias bem escritas e bem informadas. Literatos,
teólogos e historiadores sentem-se atraídos pelo assunto. Assinala-
mos aqui apenas uma coleção interessante de opúsculos que mere-
cem, em geral, tôda •a confiança do historiador: Les Saints, editada
pela Libraitie Lecoffre em Paris (29).
Chama-se autobiografia a vida de um indivíduo, escrita
por êle próprio. Não precisamos demorar-nos em demonstrar que
seu valor objetivo é muitas vêzes exíguo: freqüentemente são ins-
piradas pela vaidade, pelo rancor ou por uma tendência muito sub-
jetiva. São, porém, muito valiosas como documentação psicológi-
Ca, e como tais devem ser aproveitadas pelo historiador. Asseme-
lham-se bastante aos Memoriais e aos Diários de pessoas históri-
cas, gênero meio literário, meio histórico, que tomou grande surto
•desde o século. XVII, principalmente na França, o país clássico das
mémoires: estas, porém, prestam mais atenção aos acontecimentos
exteriores, ao passo que a autobiografia é a história de uma alma.
Duas autobiografias afamadas da literatura mundial são: as Contes-
.siones de Santo Agostinho (354-430) e Poesia e Verdade do poeta
Goethe (1749-1832) . Os dois livros tiveram muitíssima repercus-
são, mas interessam mais à mística, à literatura e à psicologia do que
.à biografia prÓpriamente dita. As Confessiones, em 13 livros, são
"uma longa epístola a Deus, a carta grandiosa do escravo para o
seu senhor, do homem redimido a seu salvador, do ignorante ao onis-

— Cf. § 42, I (nota 60).


— Sairam por exemplo Saint. Justin pelo P. Legrange; Saint Paul por F. Prat,
S. J.; Saint Grégoire le Grand por Mgr. P. Batiffol: e Saints Chlothilde por G.
Kurth.
— 469 ---

ciente, do beneficiado ao autor do benefício" (30). Têm exercido ,


profunda influência nos numerosos livros escritos por convertidos
com o fim de testemunharem da verdade descoberta. Nos livros de.
Poesia e Verdade, Goethe retrata sua infância e seu desenvolvi-
mento poético, misturando a verdade histórica com elementos fic-
tícios e descrevendo as diversas correntes literárias da Alemanha na
sua juventude.
IV. Finalizando, mencionamos aqui um gênero recente (31):
la vie romancée ou a vida romanceada. E' representado, na In-
glaterra, por Lytton Strachey (32); na França, por André Mau-
rois (33); na Alemanha, por Emil Ludwig (34); no Brasil, por
Paulo Setúbal (35) . A vida romanceada é uma espécie de bele--
trística com pretensões históricas, que, sem dúvida, satisfaz a cer-
tas necessidades existentes em muitos meios, os quais não têm
acesso às grandes biografias científicas. Mantêm vivo o interêsse
do grande público por assuntos históricos, evocam os episódios pi
torescos do passado, e acodem à tendência eternamente humana
de admirar as grandes figuras da história. Mas muitas vêzes não ,
passam de histórias perfumadas: o emprêgo excessivo de meios es-
tritamente literários prejudica quase sempre a verdade histórica.
Amiúde fazem pouca questão de um estudo profundo e paciente.
das diversas fontes e dão uma interpretação sensacional ou par-
tidária, ou então, modernizam e atualizam indevidamente os per-
sonagens históricos, sem penetrar a fundo na mentalidade de tem-
pos idos. Basta compararmos as biografias, consagradas por Hui-
zinga (36) e Ludwig a Erasmo, para vermos a enorme distância
que separa a biografia científica da vida romanceada. A litera-
tura tem todo direito de criar romances históricos (37), e não
de ultrapassar as suas fronteiras, simplificando e falsificando o
passado. A história, como tal, não é literatura, embora lhe fique-

. — Giovanni Papini, A Vide de Santo Agostinho (trad. port. de Godofredo-


Rangel), São Paulo, 1946, pág. 208. — Santo Agostinho emprega as pala-
vras confiteri e confessio, conscientemente, em dois sentidos: no de "confes-
sar" os pecados, e no dé "exaltar" a misericórdia e a majestade de Deus.
. — Recente? Os defensores da vida romanceada apelam para a autoridade de-
um Xenofonte, que escreveu a Ciropédia, em 8 livros, uma biografia idealiza-
da da vida de Ciro-o-Velho (559-529 a. C.); cf. Cícero, Ep. ad Qtrintum. 1 .
1, 23.
. — Escreveu por exemplo Eminent Victorians (1918) e Queen Victorie (1921) .
. — Escreveu por exemplo Ariel ou la Vie de Shelley (1923), Vie de Disraeli.
(1927), e Byron (1930) . — Como Taine, no século passado, Maurois é
atualmente o grande conhecedor da literatura inglêsa na França, mas menos,
profundo.
. — Escreveu por exemplo Goethe (1920), Napoleon (1925) e Bisrnerck (1926) .
— As primeiras obras dêste autor são muito superiores às posteriores.
. — Escreveu por exemplo O Príncipe de Nassau e A Marquesa de Santos.
. — J. Huizinga, Life of Erasmus, New York-London, 1924.
. — Os romances históricos são um produto do Romantismo, que sentia a neces-
sidadede "reviver", em imagens pitorescas, as grandes páginas da história.
Mencionamos aqui Walter Scott, Ivanhoe; Victor Hugo, Notre-Dame de Paris;
A. Manzoni, Promessi Sposi; A. Herculano, O Monge de Cister e Eurico,.
o Presbítero. Péssimo representante dêste gênero é o polígrafo francês A.
Dumas (por exemplo Les Trois Mousquetaires).
— 470 —

bem o ornato de um bom estilo. A biografia não é um romance,


ainda que dificilmente possa renunciar por completo à imaginação.
Mas não é imaginação livre, e sim imaginação disciplinada.

C. O ASPECTO CRONOLÓGICO.

§ 25. História e pré-história .

A primeira distinção que cumpre fazermos aqui, é a entre os


períodos pré-históricos e os históricos prepriamente ditos. Aquê-
les são os períodos a cujo respeito não chegaram documentos es-
critos até nós (38), ao passo que a êstes conhecemos mais ou
menos mediante uma documentação escrita. Os tempos pré-histó-
ricos deixaram-nos, porém, alguns vestígios, escassos é verdade,
mas muito objetivos,, tais como fósseis, armas, restos de constru-
ções, desenhos, instrumentos e utensílios, ou então, subjetivos, co-
mo a tradição oral. Todos êsses dados precisam ser interpretados
por disciplinas especiais: a geologia, a paleontologia, a arqueolo-
gia, a etnologia, etc. A história utiliza os resultados obtidos para
reconstruir as linhas gerais da época pré-histórica, de modo que
esta não nos escapa por completo.
A extensão dos chamados tempos históricos é muitíssimo exí-
gua, comparada com a dos tempos históricos. A ciência moderna
ainda não conseguiu averiguar com certeza quando apareceu o pri-
meiro homem no mundo. Segundo alguns especialistas, teria apa-
recido há 60.000 anos, segundo outros, ± 150.000, ou muito mais
ainda. Já não são períodos históricos, mas épocas geológicas, cujos
conhecimentos para nós se reduzem a um mínimo. Para termos uma
idéia das proporções existentes entre as duas épocas, poderíamos
fazer a seguinte comparação. Equiparando o momento da criação
do primeiro homem (digamos, há 144.000 anos) ao momento
em que começa o dia (meia-noite), temos conhecimentos histó-
ricos dêsse dia só a partir da vigésima e quarta hora, e mesmo êste
acontecimento é muito fragmentário. E' só desde o quarto milê-
nio a. C. que se nos tornam melhor conhecidos certos períodos his-
tóricos, os quais, inicialmente, se limitam a áreas geográficas de
pouca extensão. Estas vão-se multiplicando aos poucos para gra-
dativamente se tornarem unidas em um todo. Circunscrevendo-
nos sempre nos limites do berço da nossa civilização, o mundo
mediterrâneo, podemos dizer que a história egípcia para nós co-
meça ±4.000 a. C.: as pirâmides já tinham uma existência de
quase três mil anos, quando as viu com profunda admiração He-

(38). — Ou então, chegaram textos escritos até nós, mas ainda não somos capazes de
decifrá-los (por exemplo a escrita minóica de Creta), ou de entendê-los (por
exemplo a língua etrusca) . Cf. § 41, II.
-- 471 —

:ródoto de Halicarnasso (39). No terceiro milênio vai-se-nos re-


velando a civilização mesopotâmica, no segundo a de Ásia-Menor
-

e das ilhas adjacentes. A história grega não vai além de ±800 a.


C., a de Roma fica com bases mais seguras só a partir de ±400 a.
C., a da Europa ocidental é mais ou menos eqüeva da éra cristã.
Se fazemos abstração de algumas regiões da África e da Asia, an-
tigamente incorporados no Império Romano, e de alguns povos
-"históricos" entre os descobertos nos tempos modernos (por exem-
plo os chineses, os indús na Ásia, e os aztecas no México), foi
só a partir de 1500 que o mundo fora da Europa saiu da fase pré-
histórica. Ainda hoje em dia existem tribos, que pràticamente con-
tinuam a viver no período pré-histórico, embora se lhes diminua
o número num ritmo acelerado.
O período pré-histórico varia, pois, de um povo para outro.
Quando Aníbal atravessava os Alpes (218 a. C.), o mundo civili-
zado ainda não tinha a mínima idéia da existência dos germanos
(40), e os Imperadores romanos, soberanos orgulhosos da oikou-
méne, não sabiam nada dos ameríndios.

§ 26. Períodos históricos.

A praxe de dividir a matéria histórica em certos períodos já


remonta a tempos remotos. E' pouco satisfatória uma indicação
-

meramente cronológica, a operar apenas com datas, porque vio-


lenta as unidades naturais da história. São numerosíssimos os
princípios de periodizar os tempos históricos.
I. Ao descrever a história de um único povo, adota-se mui-
tas vêzes uma divisão de acôrdo com as diversas fases políticas,
.atravessadas por êle. Assim podemos dividir a história do Brasil
em quatro épocas: a pré-cabralina ou pré-histórica (antes de 1500),
_a colonial (até 1822), o Império (até 1889) e a República. Igual-
mente divide-se a história da antiga Roma em quatro períodos: a
Realeza (753?-510? a. C.), a República (até 31 a. C.), o Principa-
.do (41) (até 284 d. C.), e o Dominado (42) (até 476, resp. 1453).

— Herodotus, Historiae II 124-128. — O Egito era, durante o Império Ro-


mano, um país de turismo; chegaram até nós muitíssimas inscrições gravadas,
pelos visitantes estupefatos, nos monumentos.
— Os romanos entraram, pela primeira vez, em contacto com os germanos (os
cimbros e teutões) em 113 a. C. (batalha de Noréia) .
<41). — O Principatus, fundado por Augusto, respeitava as aparências republicanas:
O Imperador era o primeiro cidadão (princeps civium).
<42) . — O Dominatas foi fundado por Diocleciano (284-305) : o Imperador passou a ser
chamado Dominas em relação aos seus súditos (servi).
— 472 —

Outro princípio de periodização, que se segue geralmente


na história do antigo Egito (43) e da China imperial, são as di-
nastias.
Em alguns autores latinos (44) encontra-se um' sis-
tema antropomorfo, que consiste em comparar as diversas fases
históricas de um povo com as idades sucessivas de um indivíduo:
infância, adolescência, maturidade e velhice. A metáfora teve-
repercussão nos tempos modernos (Lessing e Hegel), como have-
mos de ver na quarta parte dêste livro.
Os esquemas I e II podem ser úteis para os que se ocupam:
com os destinos de um único povo, tornam-se insuficientes, porém,
desde que são ultrapassados êsses limites. A quem estuda a história
universal, embora no sentido forçosamente limitado da palavra,,
impõe-se uma periodização de maior envergadura, que não se res-
trinja à consideração das formas estritamente nacionais, mas abran-
ja um número bem maior de fatôres e um ponto de vista mais- .

geral. O momento histórico, em que se efetuou a Independência


do Brasil, é inseparável daquele período histórico que viu nascer -
os vários Estados independentes no continente americano e pre-
senciou a difusão das idéias liberais. Para podermos bem locali-
zar os fatos da história pátria precisamos de uma periodização-
mais geral. Com efeito, desde a Antigüidade o mundo tende a',
unificar-se, embora em grandes intervalos e com interrupções se-
culares. Os anais de um único povo não são destinos isolados, mas'
precisam ser entendidos nas suas relações com um conjunto mais,-
amplo .
A, Antigüidade não chegou a uma divisão unânimemen-
te aceita. Sem dúvida, filósofos e poetas falavam em éras mun-
diais, a que consagraremos algumas palavras na quarta parte dês--
te livro. Mas essas divisões eram mais especulações mitológicas-
do que realidades históricas (45). Os antigos autores de histó--
rias universais, como Diodoro de Sicília, descreviam os destinos
dos vários povos orientais e mediterrâneos, misturando-os )rom
muitos elementos míticos, sem que se esforçassem por estabelecer -
períodos históricos prÓpriamente ditos.

(43). — A divisão da história egípcia por 31, dinastias remonta à obra histórica dcr-
sacerdote Maneton (século III a. C.), que escrevia em grego. Encontram-se.
os fragmentos da sua história em Fragmenta Historicoram Graecorum II, págs_
511-615.
. — Florus, Epítome I, Freei'. 4; Amtniattlis Marcellinus, Return Gestartun XIV
6, 3-4; S. Augustinus, De Vera Religione, XXVI, 48.
• — O romano Varrão dividia a história em três períodos: a época duvidosa (da -
início ao dilúvio), a época mítica (do dilúvio à primeira 'Olimpíada,' em- 776
a. C.), e a época histórica. Cf. Censorinus, De Die Natali 21, 1.
— 473

A profecia bíblica de Daniel (46) contribuiu mutíssimo-•


para que a historiografia cristã adotasse quatro Impérios, cada
um dos quais exerceria sucessivamente o domínio mundial, a sa-
ber: o assírio, o pérsico, o macedônico e o romano (47). No pen-
samento dos cristãos primitivos, inclinadoS que estavam a esperar
a próxima vinda do Senhor, o último dêsses quatro Impérios não
teria sucessor. A dita divisão foi adotada nas crônicas de Eusébio
e Jerônimo, e vigorou durante a Idade Média: só nos séculos
XVI-XVII foi sendo abandonada, devido às críticas que lhe faziam
os humanistas.
Santo Agostinho, interpretando alegèricamente os se-
te dias da Criação, dividiu a história do gênero humano em sete
períodos, seis no tempo, e um na Eternidade, um sábado sem fim:
de Adão ao dilúvio, do dilúvio a Abraão (cada um dos dois com
10 gerações), de Abraão a Davi, de Davi ao cativeiro babilônico,
do cativerio à Encarnação, (cada um dos três com 14 gerações),
da Encarnação ao fim do mundo (48). Também esta periodiza-
ção era seguida pelos cronistas medievos, os quais conheciam tam-
bém uma bipartição: urna antes da Encarnação, a outra depois
dela, por analogia com os dois Testamentos.

§ 27. A tripartição moderna,

A tríade: Antigüidade, Idade Média e Renascença (ou Épo- -


ca Moderna) é uma herança dos humanistas, e tem uma história
interessante. Os têrmos são de origem filológica, não histórica. Os
humanistas, atribuindo valor excessivo ao latim "clássico" de Cí-
cero e Virgílio, desprezavam o latim supostamente "bárbaro" da
Idade Média, chegando a distinguir entre três latinitates: latinitas -
superior (até Constantino Magno), media (até Carlos Magno),
e infima (até a Renascença). A expressão latinitas (ou, tempes-
tas) media, desde o início eivada de desdém pelo latim medieval, ,
foi sendo estendida ao latim que abrange o período entre os sé-
culos VI e XIV (49) . Havia apenas um latim legítimo: o de Cí-
cero, imitado com tanto zêlo pelos humanistas (50).

— Daniel, II, 36-45: a cabeça de ouro, a de prata, a de cobre, e a de ferro; cf. _


VII, 2-27 (as bêstas: o leão, o urso, o leopardo, e o animal espantoso). —
Veja-se Pedro Moacyr Campos, in Revista de História, II, 7 (1951), págs. 15-22._
— O Império assírio foi destruído pelo persa Ciro em 538 a. C.; o persa pelo
trared6n, o Alexandre Magno em 331 a. C.; o macedênio pelos romanos em
168 a. C.
— S. Augustinus, De Civitate Dei XXII 30. — Cf. por exemplo Pernão Lopes .
(ed. citada), pág. 112).
— Neste sentido o têrmo já se encontra nas obras do cardeal humanista Nico-
lau Cusano e do seu amigo Andrea de Bossi (século XV).
— Erasmo (1467-1536) ridicularizava, no seu diálogo Ciceronianus, a mania dos
puristas, que chegavam a evitar formas como laudaberis, laudaharis, etc. (em
vez de laudabere, laudabare, etc.), por aquelas não serem abonadas no texto •
de Cícero.
— 474 —

Não parou aí o desprêzo dos humanistas: acabaram por


menoscabar também a arte e a filosofia medievais, que ficaram
com os nomes depreciativos de "gótica" e "escolástica". Daí a possi-
,

bilidade de passar a ser um conceito cultural e histórico, embora


em sentido negativo, a palavra Idade Média. Não se sabe ao certo
quem foi o primeiro a empregá-la nesta acepção (51), mas desde
,

1688, quando o historiador Christian Keller ou Cellarius publi•


cou a sua Historia Tripertita, foi-se tornando comum o esquema.
entrando finalmente em todos os livros didáticos e em numerosos
trabalhos científicos, acabando por ser uma terminologia de uso
corrente na historiografia moderna. A palavra "Idade Média" é
bastante depreciativa: indicava originàriamente uma interrupção
quase milenária da cultura humana, uma época obscura e caóti•
tica, ignorante e supersticiosa, com uma arte extravagante e uma
filosofia caviladora, ou: "um período milenário durante o qual a
humanidade não tomou banho" (52) . Escreveu Voltaire: Mais
quiconque pense, et ce qui est encore plus rare, quiconque a du
ne compte que quatre siècles dans I'histoire du monde (53),
a saber: a época do apogeu ateniense, a do Imperador Augusto,
a dos Medici em Florença, e a de Luís XIV. Já se vêem as sim-
patias e as antipatias do Século das Luzes: admiração pela Anti-
güidade e pelos tempos modernos, mas desdém altivo pela Idade
Média. Acresce-lhes uma fé inabalável no Progresso do gênero
humano, possibilitado pela reforma da religião, pela emancipação
das artes e das ciências, pela difusão da cultura ocidental em ter-
ras recém-descobertas. Foi só um século depois que o Romantis-
mo conseguiu dar aprêço positivo à Idade Média e à arte gótica.
E o século XIX, o século histórico por excelência, empenhou-se
-

em descobrir os característicos de cada uma das épocas, que her-


dara das teorias esclarecidas.
Logo, porém, se mostrou que a tripartição era muito
deficiente. Damos aqui algumas razões:
O esquema tem apenas valor para a história da civili-
zação ocidental, como se esta fôsse a única existente: uma ilusão
ingênua do Racionalismo! Agora sabemos que fora da nossa es-
fera existem outras culturas veneráveis e autônomas. Ora, delas
prescinde completamente o esquema tradicional.
Mesmo que se aplique a tripartição exclusivamente à
cultura ocidental, pergunta-se com direito se não somos vítimas de

. — O professor C. Horn, em Leida (1620-1670), já introduzira o têrmo Mediam


Aevum na sua obra Orbis Politicus (1667) . Na obra Arca Noae (1666) pro-
vocara grande escândalo por fazer terminar a história da Antigüidade em 400
d. C., em vez de adotar o esquema tradicional dos quatro Impérios de Daniel.
— Cf. Jean. Bodin, § 81, III.
. — A expressão é do historiador francês Jules Michelet (1798-1874) •
. — Voltaire, Le Siècle de Louis XIV, logo no início da obra.
475

'uma ilusão "ótica" ao dividirmos a história em três períodos de


extensão tão desigual. A Antigüidade abrange três ou quatro mi-
Iênios, a Idade Média quase mil anos, e os Tempos Modernos ape-
nas uns quatro ou cinco séculos. E a mesma ilusão verdadeira-
mente egocêntrica fêz com que subdividamos a terceira época,
ou melhor, lhe acrescentemos um quarto período, chamado "con-
temporâneo", a começar em 1789. E' que enxergamos muito bem
as diferenças a pouca distância, mas se tornam confusos os porme-
nores de séculos remotos.
Ora, a historiografia moderna conseguiu revelar a fisio-
nomia própria de épocas mais distantes, chegando a descobrir ne-
las divergências que tornam precária a tripartição. Mostrou, por
exemplo na história greco-romana, a existência de pelo menos três
ou quatro períodos bem diferenciados; igualmente assinalou, na
Idade Média, três épocas de estrutura bastante variada. Destar-
te se desvalorizou o esquema convencional, vindo a ser aplicado,
dentro da tripartição original, a menores unidades cronológicas,
ou até a períodos fora da civilização ocidental. Agora falamos na
Idade Média dos gregos, egípcios e chineses, e na Renascença ca-
rolíngia e otônida. Qual é, então, o sentido desta terminologia?
Outra dificuldade, de natureza mais prática, consiste em
demarcar com precisão os limites de cada uma das três épocas.
Evidentemente, qualquer que seja a data convencionalmente acei-
ta para indicar o início e o fim do certo período histórico, não
pode ter senão valor simbólico e aproximativo: historia non dacit
saltum . Feitas essas ressalvas, cumpre-nos confessar que os espe-
cialistas estão longe de concordar quanto à demarcação dos limi-
tes entre os três períodos. E' principalmente a Idade Média que
apresenta dificuldades, porque quase todos os historiadores a ca-
racterizam de maneira diferente. Quando começou? Em 476, em
312, em 529, em 800, ou até em 31 a. C.? (54). E foi simultânea
a transição da Antigüidade para a Idade Média, ou varia de um
povo para outro e de um país para outro? O reinado de Teodo-
rico o Grande na Itália (492-526) parece-nos, em seus traços es-
senciais, bem "antigo", e o govêrno coevo de Clóvis na Gália
(483-511) já é "medieval". O filósofo Boécio (±485-524), "o úl-
timo romano", pertence à Antigüidade, seu patrício São Bento
(±480-546) já é figura medieval. E nos tempos chamados mo-
dernos: Lutero era homem medievo•ou moderno?

<54). — Em 476 foi deposto o último Imperador romano (Rômulo Augústulo) pelo
capitão germânico Odoacro; em 313 Constantino Magno concedeu a liber-
dade aos cristãos (Édito de Milão); em 529 São Bento fundou o mosteiro
de Monte Cassino, e foram fechadas, por ordem do Imperador Justiniano, as
antigas escolas filosóficas em Atenas; em 800 Carlos Magno foi coroado Im-
perador em Roma pelo papa Leão III; em 31 a. C. o helenismo "oriental",
representado por Antônio e Cleópatra, foi derrotado por Augusto, símbolo do
Ocidente latino.
— 476 =

III. E' dificílimo aplicar um sistema às realidades concre-


tas da história. Ao aplicarmo-lo, temos que nos dar contas do va-
lor muito relativo da periodização escolhida. E' indispensável, --
principalmente em livros didáticos, — certa divisão em períodos,,
mas precisamos saber-lhes bem as limitações, esclarecer-lhes o al-
cance e ilustrar-lhes o conteúdo. Só esta condição pode-nos prestar
serviços úteis, e podemos continuar a empregar a tripartição conven-
cional, que ainda vive à falta de outro esquema mais apropriado.
Fazer-lhe oposição seria um absurdo, visto que a tríade tem sido ,
consagrada pela tradição, e outros esquemas, apesar das suas van-
tagens aparentes, no fundo têm os mesmos defeitos. — Para êste ,
problema, cf. A. C. van Peursen, apud L'Homme et l'Histoire, págs..
77-80.

§ 28. Os estilos.

Das numerosas tentativas modernas, geralmente de cunho,


filosófico,• econômico ou sociológico, para periodizar a história
universal, pretendemos falar na quarta parte dêste livro . Aqui se-
guem algumas palavras sôbre a periodização histórica, derivada de
estilos artísticos ou literários.
I. Os principais têrmos usados na historiografia moderna
são: os estilos românico, gótico, renascentista, barroco e rococó,
como, por outro lado: classicismo e romantismo.
O têrmo "românico" foi forjado pelo arqueólogo francês:
Arcisse de Caumont (1802-1873) com o fim de indicar o estilo
da arquitetura européia entre ±500 d. C. e ± - 1200 d. C.: o estilo
seria a continuação do estilo romano (do Baixo Império) pelos
povos românicos.
A palavra "gótica" remonta, ao que parece, ao arqueó-
logo italiano Vasari (1511-1574), que responsibilizava os gôdos•
pela destruição dos monumentos antigos na Itália e ligava à arte
gótica um conceito depreciativo: Questa maniera fu trovata da i Go-
ti, che per avara ruinate le fabbriche antiche e morti gli architetti
per le guerre, fecero dopo coloro che rimasero le fabbriche di
questa maniera, le quali girarono le volte con quarti acuti e riem-
pierono tutta l'Italia di questa maledizione di fabbriche. . . (55) .
A origem da palavra "barrcco" é questão disputada .
Segundo alguns, seria palavra árabe, adotada pelo português e es-
panhol, significando uma pérola de superfície irregular; segundo=
outros, — mais provàvelmente, — seria palavra medieval, usada
na escolástica, para indicar certo modo de uma figura de silogis-
mo. A expressão nasceu no século XVIII, trazendo consigo, desde,

(55) . — G. Vasari, Vite de' pià eccellenti pintori, etc., Introduzione, c. III.
--- 477 —

o comêço, certa depreciação ao estilo "extravagante", usado na ar-


quitetura dos séculos XVI-XVII e conhecido no Brasil como "es-
-tilo colonial".
Vasari empregou também o têrmo rinascita para desig-
signar o novo estilo usado nas artes, depois de abandonado o es-
tilo grosseiro e desmazelado dos bizantinos: começaria por Giotto
(1266-1336) e culminaria em Miguel-Ângelo (1475-1564) .
A palavra rococó é própria do estilo europeu desde a
-época de Luís XV (1715-1774): é derivada do vocábulo fran-
cês rocaille (ornamentos em forma de conchas) .
O têrmo "classicismo" é bastante equívoco. Originaria-
mente era empregado nas escolas dos jesuítas para indicar os au-
tores da Antigüidade apropriados para serem lidos na "classe".
Como eram os autores mais importantes, a palavra chegou a ser
sinônimo de "modelar, exemplar, valioso para tôdas as épocas".
E devido à veneração que gozavam os produtos literários da Gré-
cia e Roma, "os clássicos de todos os tempos", a expressão foi es-
tendida à Antigüidade inteira e acabou por abranger também as ar-
tes, a filosofia ,e a cultura em geral da Grécia (56) e Roma. Sob a
influência do Romantismo, o têrmo foi sendo empregado para indicar
um estilo literário e artístico de caráter objetivo, formal, quase
formalista, em que a razão prevalece sôbre o sentimento. E afinal,
chegaram a ser chamados períodos clássicos das diversas culturas
nacionais as grandes épocas do passado: por exemplo a Inglater-
ra da Rainha Elisabeth I, a época de D. Manuel I em Portugal
(1495-1521), le siècle de Louis XIV, na França e o apogeu da li-
teratura alemã de 1780-1830, etc. Por extensão todos os auto-
res nacionais de importância primária ficaram com o distintivo
honroso de "clássicos", por exemplo Machado de Assis na literatu-
ra brasileira.
A palavra "Romantismo" era usada pelos inglêses do
século XVII para indicar um conto pitoresco e sentimental, remi-
niscência dos romances medievos, escritos na língua "românica"
ou francesa, e cheios de aventuras galantes e sentimentos eleva-
dos. No século XVIII, o têrmo foi sendo usado na França, já por
Rousseau, no sentido de "melancólico, triste, sentimental". E no
século XIX foi empregado para indicar o novo movimento literá-
rio em oposição ao "classicismo" frio e regulamentado.
II., Os diversos têrmos, cuja origem esboçamos ràpidamente,
:não tardaram a ser estendidos a outros fenômenos históricos. "Ro-
mânico" seria o Império de Carlos Magno; "gótica" a Summa Theo-

<56) . — Atualmente divide-se a história grega muitas vêzes nestes períodos: a época
micênica (até 1200 a. C.), a Idade Média (±1200-650), a época clássica
(±650-338), a época belenística (338-146), a época romana (146 a. C. —
330 ou 395 d. C.), e a época bizantina (330 ou 395-1453).
— 478 --

logica de Tomás de Aquino; "renascentista" a doutrina política de-


Maquiavel; "barroco" viria a ser o têrmo para indicar o absolutismo'
de Filipe II e Luís XIV, a arquitetura de Bramante, a escultura de
Miguel-Angelo, a pintura de Rubens e Rembrandt, a música de Bach
e Hãndel, a poesia de Calderón e Shakespeare, e a espiritualidade=
dos jesuítas e da Contra-Reforma; "rococó" indicaria não apenas a'
arquitetura de Versailles do século XVIII e a porcelana de Sèvres,.
mas também a música de Mozart; "romântica" seria a poesia de
Lord Byron, Shelley, de Musset, a música de Wagner, e a filosofia
de Nietzsche. E' melhor guardar o silêncio sôbre o uso e o abuso'
da palavra "clássico".
Sem querermos negar a êsses conceitos todo o valor, devemos
repetir as palavras já ditas anteriormente . São sistematizações
que não podem ser aplicadas irrefletidamente às realidades his-
tóricas, principalmente por serem transferências um tanto arbi-
trárias de um campo' cultural a outro. Não se generaliza impune-
mente. A música do século XVIII continuava por muito tempo
"barroco", enquanto as artes plásticas já se achavam em pleno "ro-
cocó"; Nietzsche, o grande romântico, compôs as suas obras depois
da morte dos grandes poetas românticos. E depois de 1850? Quan--
tos estilos houve a revezarem-se num período de dois decênios, ou
menos ainda: naturalismo, impressionismo, expressionismo, futuris-
mo, cubismo, tradicionalismo, etc.! Não sejamos vítimas de outra
"ilusão ótica". Mais um inconveniente de uma periodização histórica
por meio de estilos é o fato de trazerem consigo êsses têrmos qua-
se sempre certas associações afetivas, dependentes do gôsto da épo-
ca e prejudiciais à objetividade histórica. A evolução das palavras-
"gótica" (57) e "classicismo" é significativa. Podemos, porém, ser-
vir-nos das expressões estilísticas, sempre que lhes estabeleçamos o
alcance e o conteúdo .

D. O ASPECTO CULTURAL.

§ 29. A história da civilização.

Como já vimos,, os historiadores, até o século XVIII, presta-


vam uma atenção que nos parece demasiada, ao aspecto político, di-
nástico, diplomático, bélico e constitucional da história. Houve en-

(57) . — Lembramos umas linhas de Molière (Théâtre Complet, Paris, 1883, vol. VIII,.
págs. 305-306):
Et non du fade gout des ornements gothiques,
Ces monstres odieux des siècles ignorants,
Que de la barbarie ont produits les torrents,
Quand leur cours, inondant presque toute la ferre,
Fit à la politesse une mortelle guerre,
Et, de la grande Rome abattant les rarnparts,
Vint avec son empire étouffer les bem= arta.
Cf. N. Boileau, L'Art Poétique II 22.
479

tão uma forte reação, a exigir que se estudassem também outros fe-
nômenos culturais na sua evolução e mútua conexão. Inaugurou-se
a história da civilização, que poderíamos dividir em duas partes: a
história geral e as histórias particulares.
A história geral da civilização abrange, em tese, tôda a
matéria histórica, sem excluir a política e os dados biográficos. Mas
a focaliza de maneira bem diferente. Interessam-lhe nada menos:
que os acontecimentos políticos própriamente ditos, as várias reali-
zações artísticas e científicas, a estrutura social e os costumes do
povo, a vida econômica e religiosa,• etc. Ou antes, para a história
da civilização a política não passa de um dos numerosos fenômenos•
importantes do passado. Voltaire foi um dos primeiros a cultivar
êsse gênero de historiografia, escolhendo por tema o século áureo
de França: Le Siècle de Louis XIV . A obra, que presta bastante
atenção às invenções úteis e ao progresso das artes mecânicas e das
ciências, interessa-nos hoje mais por ser uma tentativa nova do que
por sua profundidade, e o mesmo se pode dizer do seu Essai (58)
A partir do século passado a história da civilização chegara a ser
gênero tão comum que acabou por ocupar também um lugar nos
livros didáticos. Destacamos aqui dois trabalhos modelares entre•
os muitos que poderíamos mencionar: A Cultura da Renascença na
Itália, do historiador suiço J. Burckhardt (1a. edição de 1867), e
O Outono da Idade Média, do historiador holandês J. Huizinga (1a.
edição de 1924) . As duas obras foram várias vêzes reeditadas nas
línguas originais, e traduzidas para muitos outros idiomas. As obras ,

de Will Durant e Hendrik van Loon e de tantos outros autores em_


voga, que pretendem abranger a história da civilização ocidental na
sua totalidade, prometem mais do que são capazes de dar: em geral,
decepcionam por não serem isentos de certa superficialidade e até
de certo sensacionalismo. Raras vêzes se baseiam em pesquisas pes--
soais.
As diversas espécies particulares da história da civili-
zaçãó acompanham a evolução de certo ramo da cultura humana
através dos séculos. A ciência das antiquitates publicae et privatae,„
praticada com tanta aplicação pelos humanistas, poderia ser con-
siderada como a precursora dêste tipo de historiografia. Não pre-
tendemos dar aqui uma lista completa das diversas matérias que se-
prestam a uma pesquisa histórica: basta dizermos que tôdas as ati-
vidades humanas, tôdas as realizações culturais, tôdas as institui-
ções sociais, tôdas as ideologias e doutrinas podem ser, — e, desde
o século passado, de fato são — objetos de estudos históricos. Men--
cionamos apenas:

(58) . — Essai sur les Moeurs et l'Esprit des Nations (1756) .


— 480 —‹

A História das Artes. A título de curiosidade, damos aqui


-,Os nomes de duas obras magistrais, que tiveram grande repercussão
nas idéias dos coevos e da posteridade: uma de Giorgio Vasari
(1511-1574), discípulo de Miguel-Angelo: Vite de' pià eccellenti
pintori, acultori ed archiltetti, do ano 1550; a outra do arqueólogo
alemão João Joaquim Winckelmann: (1717-1768): A História da
_Arte na Antigüidade, do ano 1764. Aquela exaltava a arte contem-
porânea da Itália, desprezando a gótica; esta acabou com o Bar-
roco, exaltando a simplicidade sublime da arte grega (59) e pre-
parando o caminho para o chamado "Neo-Humanismo" de cunho
estético-ético, que teve grande repercussão na Alemanha (Lessing,
Goethe, Schiller, Humboldt, etc.). A história das artes já era tra-
tada na Antigüidade, mas de maneira menos sistemática, por exem-
plo por Pausânias (60) . — Atualmente conhecemos também a his-
tória da Dança, da Fotografia, do Cinema, etc.
A História da Literatura e da Música. Os primórdios
, dêsse ramo já se encontram na Antigüidade (Aristóteles, Quintilia-
no, etc.) .
A História da Filosofia, igualmente inaugurada por Aris-
tóteles. Desde o século passado estuda-se também a história das
outras ciências e da técnica.
A História do Direito e das Instituições Públicas, já pra-
ticada pelos humanistas, os quais reencetaram uma tradição que re-
monta a Aristóteles e Plínio-o-Velho.
A História das Instituições Privadas, que trata da evolu-
, ção das coisas da vida cotidiana: a escola, a educação, a família, o
casamento, a moda, os trajes, os costumes populares, o comércio, as
indústl ias, etc.
A História das Religiões, que data do século XIX.
A História das Línguas, que data igualmente do século
XIX.
Nesses diversos ramos de histórias particulares empre-
-ga-se geralmente o método comparativo, que consiste em confrontar
.as realizações artísticas e científicas, as doutrinas e as praxes reli-
giosas, etc. de uma época com as de outros períodos com o fim de
lhes estabelecer os feitios originais. Assim procedem principalmen-
te a lingüística, a história das artes e da literatura, procurando, além
.disso, as várias interinfluências.
Por mais estranho que possa parecer, as palavras "cul-
tura" e "civilização" são relativamente recentes na sua acepção

(59). — A Renascença italiana fôra inspirada principalmente pela arte romana.


, (60). — Pausânias (século II d. C.) descreveu na sua "Viagem pela Hélade" muitas obras
de arte.
— 481 —

Dante usava o têrmo civiltà, reminiscência do baixo latim


<61), para indicar o estado de uma sociedade bem ordenada e obe-
,diente às leis. Em latim clássico empregava-se cultura (no sentido
subjetivo da palavra), mas nunca sem um genitivo complementar:
„cultura animi, cultura philosophiae, etc. A palavra entrou, por um
,empréstimo erudito, nas línguas modernas, principalmente no fran-
cês, mas ainda no século XVII era sempre combinada com um geni-
tivo, por exemplo culture de l'esprit. Desde o sécuto XVIII começou
a ser usado isoladamente para se tornar comum no século XIX,
-também como a palavra civilização, que originàriamente indicava
"disciplina interna" e "boas maneiras" (62).
Atualmente as duas palavras "cultura" e "civilização" são mui-
tas vêzes tratadas como sinônimas, principalmente na França e na
Inglaterra. Os alemães e os russos preferem fazer uma distinção
•entre elas: "civilização" é, nesta terminologia, o conjunto das reali-
zações técnicas e utilitárias, uma coisa mais ou menos exterior, ao
- passo que "cultura" indica as esferas mais elevadas da vida huma-
-ná: as artes, a religião, a filosofia, e as ciências.

E. O ASPECTO MATERIAL.

§ 30. O homem e o mundo material.

Incluimos no objeto material da história também os "vários


-fatôres que influiram nos atos humanos", distinguindo entre fatôres
permanentes e pessageiros. Qualquer um dêsses fatôres presta-se a
um exame histórico, contanto que seja relacionado com os atos hu-
manos. Destarte pode-se escrever um estudo sôbre a influência do
clima, das três (depois da imigração japonesa, das quatro) raças,
-da situação geográfica na formação política e social do Brasil, e do,
povo brasileiro. Além disso, há numerosas outras possibilidades.
Escreveram-se estudos históricos, por exemplo sôbre o "Gato na An-
tigüidade" e "O Petróleo nos Tempos Modernos". Tornam-se tra-
balhos históricos por relacionarem-se o seu objeto com a vida hu-
mana: não fôsse assim, seriam estudos biológicos ou mineralógicos.

Q61) . — Cassiodorus, Varie IX 14,8: Gothorum laus est civilitas eustodita. — A


palavra francesa civilisation, que depois seria adotada pelos outros idiomas
europeus, data do século XVIII.
62) . — A palavra francesa "civilisation" foi sancionada pelo Dictioruudre de l'Acadómie
trançaise só em 1835.
CAPITULO SEXTO

A MESTRA DA VIDA

§ 31. O prestígio da história.

Quase tôdas as civilizações de que temos conhecimento, bus-


caram nas lições do passado normas de agir, e exemplos inspirado-
res, ou então, motivos de consôlo nos seus pesares. Com efeito, o
prestígio da história foi sempre muito grande, apesar de não lhe-
faltarem, de vez em quando, adversários.
I. Os gregos, em geral, estimavam bastante a história, con-
fiando-a à proteção especial de uma das nove musas: Clio (1).
Apreciavam-na também vários filósofos. E' verdade, para Platão ,
o mundo histórico, sujeito que está à lei da eterna mudança, não,
podia ser o objeto de um conhecimento genuíno, e até o realista .

Aristóteles julgava a história menos filosófica e séria do que a poe-


sia, porque esta é mais universal e aquela tem por objeto o singular
(2). Não obstante, aproveitava-se muitas vêzes dos resultados da
história, e não desdenhava fazer êle próprio pesquisas histó-
ricas (3). Entre os seus discípulos achavam-se historiadores ilus-
tres (4). Cícero elogiou a história com estas palavras: testis tem- -

porum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetus-


tatis (5). Tornou-se célebre a sentença do príncipe da eloqüência.
romana, principalmente a expressão feliz: magistra vitae. Os cris-
tãos avaliavam bem o caráter histórico da Encarnação, já indica-
do por São Paulo: "Se Cristo não ressuscitou, é pois vã a nossa pre-

. — Clio seecla retro memorat sermone soluto, e Clio gesta canens transactas tem--
pora reddit, assim começam dois poemetos, consagrados aos ofícios das nove
Musas e muito populares na Idade Média: êste de um poeta anônimo, aquêle-
de Florus (século II d. C.) . — Cf. E. Baehrens, Poetae Latini Minores,
(Lipsiae 1871 e 1882), vol. III pág. 242, e vol. IV 279. — Os nomes das.
nove Musas são enumeradas, pela primeira vez, por Hesiodus, Theogonia, 77-79..
. — Aristóteles, Poetica, 9. — O moralista Sêneca observa (Quaestiones Naturales
III Praef. 5): Consempsere se quidam, dum acta regula extemorum compo.
nunt quaeque pess., invicem ausique sunt populi. Quanto satius est sua mala,
erstinguere quem aliena posteris tradere?
. — Por exemplo na sua obra histórica: De Republica Atheniensitnn.
(4)• — Por exemplo Dicearco (±300 a. C.) que escreveu a primeira história da civili-
zação grega ( :"Vida da Hélade"), e Aristóxeno de Tarento (século III) que
passa pelo pai da biografia literária.
(5). — Cícero, De Oratore, II 9, 36. — Cf. as palavras de Políbio (Historiae I 1,.
1): "Os homens não possuem corretivo melhor do que o conhecimento dos.
fatos do passado".

Revista de História a.• 20


— 484 —

gação, é também vã a nossa fé" (6), e serviam-se, desde os tempos


primitivos da Igreja, de dados históricos para confirmar os aconte-
cimentos da Bíblia e para refutar as objeções dos adversários (7) .
Foi só na época do Racionalismo nascente, nos fins do
século XVII, que se manifestou uma desconfiança mais ou menos
sistemática acêrca do valor do conhecimento histórico . Nem é de
estranhar: o conhecimento histórico está longe das idées claires et
distinctes, apregoadas por Descartes como as únicas legítimas. Des-
de que se considera o espírito humano como tabula rasa, e se nega
a unidade substancial da alma com o corpo, o homem tende a ser
um animal "a-histórico". •Malebranche diz que os historiadores nos
comunicam os pensamentos de outros sem êles próprios pensarem:
Adão, no Paraíso Terrestre, possuía a ciência perfeita sem saber na-
da da história . Os racionalistas perseguiam os historiadores com
os seus sarcasmos, dizendo que o maior especialista sabia menos
da história romana do que a empregada de Cícero, e assinalando,
com um deleite mal rebuçado, as numerosas incoerências da tradi-
dição, os contrasensos, os absurdos. Só especulações metafísicas,
aliás bem cêdo abandonadas pelo Racionalismo, só demonstrações
geométricas e experiências físicas são capazes de nos darem a ver-
dadeira, sabedoria.
Evolução paradoxal! O próprio Racionalismo, que come-
çara por negar o valor ou até a possibilidade da história, acabou
por consolidar-lhe as bases científicas. Nas suas lutas contra a
tradição, que julgava arbitrária e tirânica, via-se obrigado a indagar
e a examinar a mesma tradição. E,, passados os primeiros comba-
tes, evidenciou-se que nela nem tudo era falso. Selecionando, cri-
ticando e ponderando, abriram caminho para uma tradição escla-
recida e baseada em alicerces científicos. Desde os meados do sé-
culo XVIII, a história começou novamente a exercer uma grande
influência no pensamento das pessoas cultas, e o século passado foi
a época áurea da historiografia. O "senso histórico" foi-se apoderan-
do de tôdas as ciências, e resultou em certo relativismo histórico,
conhecido sob o nome de "historicismo".
W. Em nome das fôrças vitais protestou Frederico Niet-
zsche contra a tirania da história, voltada que estava para o pas-
sado em vez de se dirigir para o futuro: "tudo o que possui vida,
deixa de viver, logo que é submetido a uma operação histórica, sen-
do cortado em pedaços; um exame justiceiro de coisas vivas acaba

. — São Paulo, Epístola aos Coríntios, 1 15, 14 .


. — Mencionamos apenas S. Augustinus, De Doctrina. Christiana, II 28, 42-44.
— 485

por diluí-las em conhecimentos puros e abstratos" (8). Mas sua


voz foi a de um solitário: a história seguiu confiantemente o seu
caminho, embora sèriamente ameçada de ficar absorvida pela so-
ciologia. No século atual insurgiu-se Paul Valéry contra a ciência
histórica, dizendo: "L'histoire est le procruit le plus dangereux que
la chimie de I' intellect ait élaboré... .11 fait rêver, il enivre les peu-
ples, leur engendre de faux souvenirs, exagère leurs réflexes, entre-
tient leurs vieilles plaies, les tourmente dans leur repos, les con,
duit au délire des grandeurs ou à celui de la persécution, et rend
les nations amères, superbes, insupportables et vaines. L'histoire
justifie ce que fon veut. Elle n'enseigne rigoureusement rien, car
elle contient tout, et donne exemples de tout (9) .
Neste capítulo pretendemos examinar algumas das questões
suscitadas por aquêles que elogiaram e censuraram a nossa ciência,
procurando estabelecer a importância da história, e descrever os
perigos que a põem em perigo. Na terceira parte dêste livro torna-
remos a falar em problemas semelhantes, encarando-os debaixo de
outro ponto de vista.

§ 32. A importância da história.

O estudo dos acontecimentos do passado parece-nos impor-


tante, porque:
I. A história faz-nos conhecer a nossa própria origem, reve-
lando-nos assim uma parte considerável da nossa existência no tem-
po. O homem quer compreender-se a si mesmo: é o esfôrço cons-
tante do espírito humano. Quer saber, quem é, de onde vem, e para
onde vai. Ninguém pode escapar por completo a perguntas dessa
natureza. Mas o homem culto tem a obrigação de aprofundar-lhes
o conteúdo e de estudá-las metõdicamente. Ora, a filosofia, guiada
ou não pela teologia, dá a êsse respeito a última resposta ao alcan-
ce do homem. A história, porém, encara o homem na sua situação
concreta no tempo. Sem dúvida, é incapaz de nos dar informações
sôbre a nossa proveniência metafísica ou sôbre a nossa destinação
transcendente. Mas, num plano inferior, ainda que muito real, mos-
tra nos as numerosas raízes resistentes que nos prendem ao passa-
-

do, deixando-nos entrever o caráter próprio da situação atual. Com


efeito, o mundo em que vivemos, é o resultado de vários fatôres.

. — Paráfrase de um texto .de Nietzsche: Reflexões contrárias ao Tempo, II 7


(em alemão: "Unzeitgemãsse Betrachtungen"), de 1873-1876. — Para a.
tomada de posição de Nietzsche ante a história, cf. M.-A. Bloch, apud L'Horn-
me et i'Histoire, págs. 165-169.
. — P. Valéry, Regards sur le Monde actuei (Paris, Gallimard), 1945, pág. 44.
Cf. do mesmo autor, Variété IV (Paris, Gallimard), 1939, págs. 129-142-
As palavras de Valéry provocaram protestos violentos de vários lados, cf.
La Via Intellectuelle LXIV (1936) e Revue des deux Mondes CIII (1933),
— 486 —

históricos. Pois não morreu o passado junto com os momentos fu-


gitivos que o constituiam, mas continua a viver em nós, quer o acei-
temos e veneremos, quer o combatamos e rejeitemos. E' uma fôr-
'ça que não se deixa eliminar da nossa existência. Compreendeu-o
muito bem a escola de todos os tempos: para formar cidadãos, pa-
ra iniciar as crescentes gerações na tradição pátria, para integrá-
las no conjunto social, político e religioso, tem-se valido, não só da
literatura nacional, como também da história. Le passé, le passé
vivant, le passé tradition, le passé , expérience, le passé qui engen-
dre le présent, le passé patrimoine d'une nation, le passé racine du
patriotisme et de l'unité, qui donc le transmet, sinon Penseignement
historique? (10). Evidentemente, são bem diferentes as preocupa-
ções das crianças e dos adultos, dos leigos e dos especialistas, ao
se dirigirem à história: mas todos procuram nela melhor compreen-
são do presente, cada um de acôrdo com o seu grau de desenvol-
vimento. Talvez não haja outra ciência tão apropriada a popula-
rizar, no sentido bom da palavra, os seus resultados.
II. Não estudamos a história com o fim exclusivo de melhor
compreendermos o presente: dedicamo-nos ao passado também por
causa do próprio passado. Interessa-nos aí, principalmente a nós, os
adultos, não só o factum, mas igualmente o fieri. Os conhecimen-
tos históricos possuem valor intrínseco, podendo-nos livrar, até
certo ponto, de uma mentalidade egocêntrica. O homem "a-históri-
co", encarcerado que está na atualidade, tende a tornar absolutas as
normas que encontra no seu ambiente. E' homem pouco "experi-
mentado". Os melhores entre nós tentam, porém, escapar às limi-
tações que lhes são impostas pelo espaço e pelo tempo. Já o sabia
Homero: elogiava a Ulisses, porque êste visitara muitas gentes,
chegando a conhecer-lhes a mentalidade (11) . A "esperteza" do
herói homérico baseia-se na sua "experiência". Uma viagem por
terras desconhecidas faz-nos perder certas prevenções e alarga-nos
o horizonte intelectual, contanto que sejamos abertos e sinceros.
Poderíamos qualificar o estudo da história de uma viagem verti-
cal: o espírito humano, viajando através dos séculos,, pode ter as
mesmas conseqüências salutares. O próprio Descartes, de modo
algum apreciador da história, observava: c'est quasi le même de
conversar avec les livres das autres siècles que de voyager (12).
Com efeito, por nos descortinar a vida humana em tempos remotos,
a história nos pode curar de certas tendências egocêntricas, ineren-
tes à nossa natureza: mostra-nos outras possibilidades, outras so-
luções, outras mentalidades, outras instituições. E quem as obser-

,( 10 ) . — F. Charmot, S. J., La Teste bien faicte, Paris, 1945, pág. 177.


Á 11) . — Homerus, Odyssea, I 3. — O texto já foi citado por Diodorus Siculus,

( 12 ) . — 122.1;7sac'artIes,1, D2isco
. urs de ta Méthode (Paris, Finam:clarim), 1935, pág. 6.
- 487 -

-var com isenção de espírito e com bastante atenção, deverá reco-


nhecer que a comparação dos tempos idos e atuais nem sempre é
--vantajosa para nós. Destarte se vai criando em nós certo relati-
'-vismo, que nos pode livrar de alguns preconceitos contemporâneos e
.•supostos títulos de orgulho, os quais, infelizmente, muitas vêzes de-
turpam o técnico sem formação histórica.
III. A história esclarece, pois, as raízes do presente no pas-
sado. Mas, conhecendo-se bem o presente, que contém os germes
:-do futuro, não será possível predizer-se o futuro, pelo menos nas
linhas gerais? Assim a história, por abranger as três partes do tem-
-po, ganharia importância superior a tôdas as outras ciências. Mas
exortam-nos à modéstia as palavras do Padre Vieira, apesar de ser
êle autor de um livro que traz o título paradoxal: "História do
"Futuro", em que diz: "O homem, filho do tempo, reparte com o
mesmo a sua ciência ou a sua ignorância: do presente sabe pouco,
-do passado menos, e do futuro nada" (13) . E' uma verdade óbvia,
-entretanto, muitas vêzes esquecida por aquêles historiadores e fi-
lósofos que sobrecarregam Clio com um ônus que lhe ultrapassa
.as fôrças. O político Bismarck, homem pragmático, motejava com
as locubrações dos historiadores-adivinhos, dizendo: "Querendo
saber com certeza o que não acontecerá, faço-me informar pelo sr.
- Momm sen do que deve acontecer". O historiador não pode predi-
zer o que há de acontecer daqui a cinco minutos: não é profeta.
Quando muito, é mais capacitado do que outros, — ceteris paribus,
— para fazer um prognóstico, não categórico, mas hipotético. Co-
. nhece bem, suponhamos, as tendências vivas do tempo atual em
busca de efetividade; conhece muito bem numerosas analogias his-
-tóricas que lhe mostram soluções possíveis de problemas seme-
lhantes; em suma, entende bem o rumo geral do tempo. Mas aí pá-
.ra irrevogàvelmente a sua ciência do futuro. Pois das tendências
atuais conhece forçosamente só uma parte mínima, sempre exposto
,a enganar-se na avaliação do seu valor existencial. Outrossim, o
acaso e as livres decisões humanas, imprevistas e incalculáveis, po-
,dem sempre frustrar as tendências mais promissoras e fazer ven-
cedoras as que neste momento se subtraem aos nossos olhos. A his-
--tória é contrária a cálculos exatos sôbre o futuro, porque não ad-
mite repetições mecânicas de casos idênticos, mas apenas conhece
situações análogas, sempre suscetíveis de desfechos diferentes.
IV. Os laços, que prendem o historiador à moral, já datam
-da Antigüidade: lembremo-nos das palavras ciceronianas: magistra
-vitae. A historiografia "pragmática" (14), inaugurada por Tucídi-

,413). — Pe. Antônio Vieira, História do Futuro, Ed. e Publ. Brasil, São Paulo, 1937,
pág. 32.
.414) . — Cf. § 3, IV.
488 —

des e'prosseguida até aos tempos modernos,, pretendia extrair doe:-


fatos históricos exemplos inspiradores ou horrendos, para uso dos-
príncipes, estadistas, governadores e militares. Tal ponto de vista
está hoje em dia abandonado. Pois a história, por relatar aconte-
cimentos únicos do passado, é incapaz de nos ministrar regras de'
conduta, diretamente aplicáveis às circunstâncias atuais. Ela faz
muito melhor. Não nos torna prudentes para certa ocasião deter-
minada, ensinando-nos a repetir um ato prudente do passado: nos
torna sábios para sempre . A história é a experiência coletiva da.
humanidade: alarga-nos o terreno forçosamente limitado das expe-
riências pessoais da vida e do homem. E' uma escola de humanis-
mo: nada mais interessante para o homem do que o homem. E a
história, no fundo, não fala senão das formas variadas de que se tem
revestido o Homem Eterno através dos tempos. Faz-nos assistir
às peripécias dramáticas do homem que luta, sofre e conquista, que-
vence e sucumbe, que peca, se obstina e se levanta, que anseia ar-
dentemente pela felicidade sem jamais alcançá-la por completo.
Na história desenrola-se o drama do eterno Lutador e eterno So-
fredor, ao qual não podemos assistir sem experimentar em nós sen-
timentos e emoções semelhantes àquêles que Aristóteles designou ,
com a palavra" catarse", isto é, "purificação" (15) . O júbilo e a
miséria de outrora, as esperanças e os temores dos antepassados, as
vitórias e as derrotas de gerações há muito falecidas, transformam-
se para nós, os observadores das vicissitudes humanas, em conhe-
cimentos e reflexão. Reflexão sôbre o quê? Sôbre a riqueza e a ,
pobreza da condição humana . Concluamos com uma palavra des
Paul' Hazard: faime la belle rigueur d'un esprit mathématiq-ue;
mais un esprit tourné vers l'hisloire me para:ff, je I'avoue, plus hu-
main (16).

V. Se já não podemos aceitar a história como a moralista


meio pedante dos séculos anteriores, podemos continuar a venerá-
la como orientadora da vida num sentido mais modesto e, talvez,
mais sublime e simpático. Ainda hoje ela nos propõe ensinamen-
tos valiosos, tirados do passado, e previne-nos contra certos peri-
gos contemporâneos que, embora latentes à grande maioria, podem_
se tornar catastróficos para o bem-estar e até para a sobrevivência
da sociedade; também patenteia as tendências positivas que de-
vem ser aproveitadas para criarmos um futuro melhor. E confirma
os seus ensinamentos com analogias do passado: exemplos glorio-
sos, não para os repetirmos, mas para neles buscarmos a nossa ins-
piração; exemplos horrorosos, não como ameaça de um Destino ine-

(15) . — Aristóteles, Poetica, 6. — Lembremos a palavra sublime de Virgílio: Sung::


lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt (Aen. 1 462).
(16). — P. Hazard (Revue des deus Mondes, CIII, 1933, 15 sept., pág. 189) .
— 489 —

lutável ou de uma Lei rigorosa, mas para evitarmos as loucuras e


os desvios do passado. Suas lições são impressionantes por serem
concretas. Contràriamente ao que muitos modernos pensam, jul-
gamos nós que os grandes historiadores têm algo de um moralista: c>
estudo dos acontecimentos humanos leva-nos espontâneamente a
uma reflexão "filosófica" (17) e a uma apreciação "axiológica".-
Neste ponto Burckhardt e Toynbee não são diferentes de Tácito
ou Políbio. Em uma palavra, a história continua a ser magistra
vitae, mas, infelizmente, nem sempre tem alunos dóceis.

§ 33. Desvios da história.

Vários desvios podem desacreditar a historiografia: pretende-


mos examinar os mais sérios neste parágrafo. A história não é li-
teratura nem ciência natural: é ilegítima tôda e qualquer invasão ,
das duas no terreno da história. A história é o estudo de fenôme-
nos relativos, mas a relatividade do seu objeto não a obriga a ade-
rir a certo "historicismo". E afinal, a história não atinge a objetivi-
dade das ciências naturais e matemáticas, mas isso não a deixa en
tregue a um subjetivismo.
I. Tôda a Crítica Histórica, nos séculos anteriores à Êra
das Luzes, resumia-se, por assim dizer, nestas palavras de Cícero
(18): Nam quis nescit primam esse historiae legem ne quid falsi
dicere audeat? deinde ne quid veri non audeat? ne qua suspicio
gratiae sit in scribendo? ne qua simultatis? Todos os autores da An-
tigüidade, da Idade Média e da Renascença concordam nestes pon-
tos: o historiador não deve mentir, mas precisa ter a coragem de di-
zer a verdade, por mais desagradável que seja, e precisa ser impar-
cial na exposição dos fatos. São sempre os mesmos lugares comuns-
que encontramos desde Cícero até Fénelon (19) . Mas, logo de-
pois de terem proclamado essas verdades à la Palisse, entram, com
um afinco muito maior, em questões literárias, dando regras mais-
ou menos pormenorizadas relativas à composição "oratória" da obra
histórica. Corri() já vimos, a história ainda não se emancipara, fa-
zendo parte da literatura ou da moral, ou então, das duas.
Com efeito, quase todos os grandes historiadores foram gran-
des literatos: Heródoto, Tuc{dides, Tito-Lívio, Tácito, Voltaire, .

. — O têrmo "filosofia" não deve ser entendido aqui no seu sentido técnico.
. — Cícero, De Oratore, II 15, 62.
(19). — Fénelon escreveu em 1714 Lettre sur les Occupations de l'Académie française-
(publicada em 1716), cujo capítulo VIII é intitulado: Projet d'un Traité sur
O autor adere, como é muito natural . no seu tempo, à história
l'Histoire.
"pragmática", cf. logo no início: L'Histoire est né4 trunoins três importante:
c est elle qui nous montre les grands exemples, qui fait servir les vices mê-
mes des méchants à l'instruction des bons, qui débrouille les origines et qui
explique par quel chemin les peuples ont passés d'une forme de gouverne-
ment à une autre.
— 490 —

Montesquieu, — e também no século XIX, depois de nascer a no-


,

'va concepção, os grandes mestres se mostraram grandes estilistas:


Macaulay, Carlyle, Guizot, Renan, Ranke, Burckhardt, e Alexan-
dre Herculano. Ao grande público êsses nomes muitas vêzes são•
conhecidos não por causa dos seus méritos históricos, mas como au-
tores clássicos da literatura nacional. As obras técnicas da histo-
riografia moderna, que existem ao lado das obras sintéticas, não
são lidas senão pelo grupo relativamente pequeno de especialistas.
A exposição artística da matéria histórica continua a desem-
penhar um papel de suma importância, mas isso não quer dizer
que a historiografia seja literatura. Na literatura o autor tem a
liberdade de seguir o caminho de uma imaginação livre, limitada
apenas pelas exigências intrínsecas da realidade artística que quer
mostrar aos leitores; na historiografia a imaginação é disciplinada
por uma obediência incondicional aos fatos cientificamente verifi-
cados. Na literatura o autor pode defender qualquer tese que seja
compatível com o seu assunto; na historiografia a tese é condiciona-
da por fatos autênticos. Na literatura as belas formas do estilo
,e a magia das palavras são fatôres essenciais; na historiografia são
fatôres não sem importância, mas sempre acessórios.
O historiador é obrigado, como cada um que se serve da pa-
lavra, a escrever bem,, mas o estilo de uma obra histórica não pode
emular o dos poetas nem o dos oradores . Deve ser simples e claro,
sem se perder em metáforas rebuscadas; deve evitar as hipérboles
e o emprêgo de adjetivos desnecessários; deve fugir, antes de mais
nada, à retórica vã. A retórica fútil que tenta encobrir a pobreza
das idéias mediante palavreado oco, é, no dizer dos inglêses, the
harlot of the arts, mas desfigura muitíssimas obras pretensamente
históricas. A simplicidade e a sobriedade não excluem uma con-
cepção artística nem um entusiasmo apropriado ao assunto, e sim
uma declamação ostentativa de belas frases sem substância e sem
pensamento. Concluamos estas observações com as palavras do
'grande prosador Newman, que se formou pelo estilo do historiador
'Gibbon: The mere dealer in words caces little or nothing for the
subject which he is embellishing, but can paint and guild anything
whatever to order; whereas the artist, whom I am acknowledging,
out what he thinks of what he feels in a way adequate to the thing
, ‘out what he trinks of what he feels in a way adequa» to the thing
spoken of, and appropriate to the speaker (20) . Em hipótese al-
guma, o historiador pode ser dealer in words; sua obra ganhará em
esplendor, se fôr verdadeiro artista . Mas escrever bem é uma das
-suas ,graves obrigações, e cada um pode adquirir um bom estilo

, -(20) . — John Henry Cardinal Newman, Literatura, in The Ideei of a University, Lon-
don-New York, etc., 1939, pág. 285.
— 491 —

`histórico", mesmo que não seja "artista", pela leitura constante dos
grandes historiadores e por contínuos exercícios práticos.
Quanto ao segundo ponto: a história não é ciência natu-
ral, podemos ser breves, visto que já falamos repetidamente nesse
assunto. Sob a influência do Positivismo e Evolucionismo parecia
que a história ia sendo absorvida pela sociologia ou pela biologia.
"Era a época das chamadas leis históricas, interpretadas no sentido
da física: relações constantes (e, às vêzes, consideradas como abso-
lutamente necessárias) entre dois fenômenos: só a esta condição
a história mereceria o título soberbo de "ciência". Assim pensavam,
na França, Taine (21); na Inglaterra, Henry Thomas Buckle (22);
na Alemanha, Karl Lamprecht (23). Os três foram grandes his-
toriadores, e seria uma injustiça dizer que não tenham contribuído
para o progresso da nossa ciência. Não podemos, porém, concor-
dar com os seus pressupostos filosóficos. A história é uma ciência
eminentemente descritiva, tendo por objeto os atos humanos, que
são concretos e singulares. Na terceira parte dêste livro pretende-
mos aprofundar essa noção.
O historiador examina sem preconceito as várias dou-
trinas, os vários ideais e as várias formas de vida nos tempos pas-
sados, esforçando-se por "reviver" as experiências alheias. Conse-
gue colocar-se mentalmente no lugar das pessoas históricas, ou me-
lhor: com certo sentimento doloroso percebe que jamais o conse-
guirá por completo, visto que é sempre da sua própria "situação"
"histórica que procura aproximar-se de outras culturas. Assim vai
avaliando cada vez mais o valor relativo da sua própria concepção
da vida e do mundo. Aí ameaça o perigo do relativismo histórico ou
do "historicismo", que consiste em eliminar tôdas as normas abso-
lutas do processo histórico. Conseqüentemente, cada período teria
direito à sua moral, à sua verdade, a seu Deus, e a seus ídolos.
Não existiriam normas objetivas, sendo que elas seriam apenas fa-
ses de uma evolução mecânica ou biológica, ou então seriam deter-
minadas por sua "fôrça existencial". Em Spengler encontramos a
expressão clássica do historicismo moderno: "Não há verdades eter-
nas. Tôda e qualquer filosofia é apenas expressão da sua época, e
só a ela pertence" (24), e: "Nenhuma frase de Heráclito, Demó-
crito ou Platão é verdadeira para nós, a não ser que a tornemos
verdadeira" (25).

(21). — Cf. § 101.


(22) . — Henry Thomas Buckle (1821-1862) escreveu History of Civilization in En-
gland I-11 (1857-1861), obra inacabada.
— Karl Lamprecht (1856-1915) escreveu, entre outros livros: História da Ale-
manha (al.: "Deutsche Geschichte") em 19 volumes (1891-1909) .
— Oswald Spengler, A Decadência do Ocidente (ed. alemã, ed. 76-81), I pág. 155.
— Ibidem, II pág. 66.
— 492 —

O relativista histórico é, no fundo, um cético. E' impossívet


discutir-se com êle, pois, como Aristóteles observou, não se discute-
com uma planta (26) . O cético afirma o que nega, e vice-versa.
Assim faz o relativista histórico. Por considerar tudo como relativo
e não admitir nada como absoluto, chega a contradizer-se: sustenta
como uma verdade absoluta o seu relativismo. Outrossim, tal ati-
tude é também pràticamente impossível: daí as inúmeras incoe-
rências nos livros de Spengler e outros relativistas, que não se can-
sam de nos apresentar novas verdades e de refutar velhos erros.
Sem dúvida, neste mundo não encontramos o Absoluto, só coisas e-
fenômenos relativos, mas o mundo relativo existe apenas graças,
à existência do Absoluto, a que podemos subir mentalmente me-
diante a contemplação das coisas relativas e contingentes.
IV. A natureza da matéria histórica compadece-se dificil-
mente com uma atitude absolutamente objetiva da parte do his-
toriador. Em face dos fatos do passado que tiveram influxo na
nossa existência, estão em jôgo os nossos interêsses, ao passo que
as verdades abstratas da matemática nela não interferem. Si la
géométrie s'opposait autant à nos passions et à nos intérêtes pré-
sents que la morale, nous ne la contesterions et nous ne la viole-
rions guère moins, malgré imites les démonstrations d'Euclide et -
d'Archimede, qu'on traiterait de rêveries et croirait pleines de pa-
ralogismes (27) .
E' um fato inegável: tem-se mentido muitíssimo na história .
As paixões partidárias, o fanatismo religioso, os preconceitos ra-
ciais e nacionais, o mêdo de ofender os prepotentes, o orgulho in-
dividual ou coletivo, a esperança de prêmios, têm prejudicado amiú-
de o prestígio de Clio. Em nossos dias ameaça-lhe um perigo mais•
sério ainda: não o da mentira ocasional, imputável a uma fraqueza
inextirpável da condição humana, mas o da mentira sistemática,
elevada à categoria de uma pseudo-filosofia. Em alguns meios vê-
se abandonar deliberadamente a evidência objetiva, o único critério
da verdade, para recorrer a slogans dêste tipo: "Verdade é o que-
é proveitoso para o povo" (nazismo), ou: "Verdade é o que con-
tribui para a vitória do proletariado" (comunismo) . Daí uma sé-
rie de mutilações e torceduras, daí uma série de golpes mortais
contra a dignidade do espírito humano, que pode viver apenas da.
verdade. E' tão imperiosa essa necessidade que os próprios falsifi-
cadores são forçados a respeitar as boas aparências: valem-se de ar-
gumentos aparentemente evidentes para defenderem as suas men-
tiras

— Aristóteles, Metaphysica III 4, 24.


— Leibniz, Nouyeaus Essais, etc., I, chap. 2.
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (I)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 20, pp 407-493, out./dez. 1954. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/020/A009N020.pdf

— 493

Deixando de lado êsses desvios lastimáveis, podemos pergun-


tar se o historiador pode atingir uma objetividade absoluta. Os
racionalistas do século passado mantinham a ilusão de uma ciência
"sem pressuposições" (28) . A teoria é, em última análise, também
-

um pressuposto, não exigido pela natureza da ciência . Todo o ra-


ciocínio humano e tôdas as ciências têm de partir de certos axio-
mas e postulados, sem os quais são impossíveis; tôdas as ciências
particulares tomam emprestados certos princípios de uma ciência
superior, e servem-se dos resultados de outras ciências. Aliás, a ciên-
cia "sem pressuposições" mostrou-se inexistente na realidade: os
que dela se gabavam, não eram isentos de certos pressupostos,
nem sequer de certos preconceitos nacionais e religiosos . Nega-
vam, por exemplo, de antemão, sem reflexão madura, as verda-
des reveladas, admitindo tôdas as soluções menos as do Cristia-
nismo .
Já não acreditamos na ciência "sem pressuposições", saben-
do que o historiador é filho do seu tempo, tem a suas convicções
pré-científicas e não pode ser absolutamente neutro ante os valo-
res realizados ou traídos no passados. Mas isso não lhe dá di-
reito a nutrir "preconceitos": dêles deve-se livrar o mais possível.
Preconceitos são convicções a que se adere sem madura reflexão
e sem exame crítico e ponderado: são tão nocivos a um espírito cien-
tífico como superstições ao desenvolvimento da vida religiosa. O
historiador tem a obrigação de ser "despreconcebido" na medida
do possível, devendo-o guiar a cada passo a verdade. Luciano es-
creveu esta bela frase: "O historiador deve sacrificar a uma única
deusa: a Verdade" (29) . Se não lhe foi dada a verdade íntegra e
perfeita, jamais pode deixar de aceitá-la e venerá-la como norma
ideal, tornando-se fatal o mínimo desvio consciente neste ponto.
Simpatias e interêsses pessoais não o podem fazer perder de
vista a verdade tal como a encontrou nos documentos. Em uma pala-
vra, a impossibilidade de uma atitude inteiramente objetiva não
o dispensa da gravíssima obrigação de ser absolutamente sincero.

(Continua no próximo número) .

JOSÉ VAN DEN BESSELAAR


Da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

<28). — Em alemão: "voraussetzungslose Wissenschaft", têrmo introduzido pelo his-


toriador H. voa Treitschke (1834-1896) e tornado universalmente conhecido
por uma carta pública de Theodor Mommsen em 1901, a propósito da no-
meação de um professor católico na Universidade de Estrasburgo.
(29). — Lucianus, Quomodo historia conscribenda, 39.
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (II)", In: Revista
de História, São Paulo, nº 21-22, pp 439-535, jan./jun. 1955. Disponível em:
http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/021-022/A016N021E022op.pdf

QUESTÕES PEDAGÓGICAS

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS (II).

SEGUNDA PARTE •

A Investigação Histórica.
....ubi plus utilitatis invenies quam decoris....
Cassiodorus, De Orthographia.

CAPITULO PRIMEIRO

OBSERVAÇÕES PRELIMINARES.

§ 34. Os documentos históricos.

Onde não há documentos, não há história. O estudo crítico


e metódico dos documentos históricos será o principal assunto des-
ta parte do nosso livro.
Chama-se documento ou fonte todo e qualquer vestígio
do passado, capaz de nos dar informações acêrca de um fato ou
acontecimento histórico. Por motivos evidentes não podemos pos-
suir conhecimentos diretos dos fatos do passado; até a grande
maioria dos acontecimentos contemporâneos é-nos conhecida ape-
nas indiretamente. Aqui como alhures somos obrigados a valer-
nos de testemunhos alheios. Ora, o que nos dá tal testemunho na
historiografia é o documento. E' um instrumento imperfeito e pór
vêzes deformador da verdade, mas o único à disposição do pes-
quisador para recuperar o passado.
Antes de poder estudar os documentos, o historiador pre-
cisa saber quais são, e onde deve procurá-los: é essa a primeira
parte da pesquisa histórica, muitas vêzes chamada: "Heurística"
(1). Uma vez descoberto o documento, precisa ser estudado com
método e precisão: é a tarefa da "Crítica Histórica", a qual se di-
vide em duas atividades diferentes. A Crítica Externa julga a au-
tencidade das fontes, ao passo que a Crítica Interna lhes examina
a veracidade. Mas os documentos são muitíssirno variados: podem
ser textos escritos, objetos de arte, costumes populares, tradições
orais, etc. Para lhes tirar informações certas e exatas, o historia-

(1). Do verbo grego: "heurískein" = "procurar, achar".


— 440 —

dor deve ter conhecimentos, se não especializados, ao menos bá-


sicos e sólidos, de várias disciplinas subsidiárias.
Daí se segue a divisão desta parte em três capítulos:

A) A Heurística: Capítulo II (§§ 35-42).


E) A Crítica Histórica: Capítulo III (§§ 43-50) .
C) As Ciências Subsidiárias: Capítulo IV (§§ 51-61) .

Na nossa exposição da matéria pretendemos seguir a


ordem lógica, quer dizer, esboçaremos ràpidamente os principais
problemas que o pesquisador pode encontrar no seu caminho des-
de o descobrimento do documento até a sua utilização, como tam-
bém os métodos apropriados para resolvê-los. Na realidade, po-
rém, a ordem é quase sempre diferente, devido a circunstâncias
particulares que um livro didático como êste não pode levar em
conta. Ao estudarmos um texto histórico, pode acontecer que o
exame de um problema, apresentado pela Crítica Interna, nos leve'
a um problema logicamente anterior, por exemplo, à questão da
autenticidade. Nesta exposição faremos abstração dêsses casos par-
ticulares, aliás inúmeros e impossíveis de reduzirem a uma regra
geral.
Foi só no século passado que vieram a ser formulados
explicitamente os princípios científicos da investigação histórica.
Um dos primeiros a expor a metodologia da história foi o pro-
fessor alemão J. G. Droysen (2) . A êsse trabalho seguiram-se
muitos outros em quase todos os países, dos quais mencionamos
apenas os de E. Bernheim (3), Ch. Langlois e Ch. Seignobos (4), .

L. Halphen (5), M. Bloch (6), W. Bauer (7), P. Harsin (8), e


José Honório Rodrigues (9).

— J. G. Droysen (1808-1884) escreveu em 1868: Grundriss der Historik• A obra


foi várias vêzes reeditada (em 1937 por R. Hübner), e traduzida para o francês
sob o título de: Préois de la Science de l'Histoire (188). — Foi Droysen que,
descobriu, na sua célebre biografia de Alexandre Magno (1836), o verdadeiro
significado das conquistas macedônicas: deram elas início a uma nova época
histórica em que a cultura grega se ia misturando com muitos elementos orien-
tais (o chamado "helenismo '; a palavra foi-lhe inspirado pelos Atos dos Após-
tolos, VI 1, e IX 29).
— E. Bernheim escreveu, além de um Manual (Lehrbuch der historischen Metho--
de, 18891 ; 19085-°), uma Introdução menor, traduzida para o espanhol:
Introducción al Estudio de la Historia (Barcelona-Madrid, 1937, in "Colección
Labor").
— L. Halphen, Introduction á l'Histoire, Paris , 19482 .
— Ch.-V. Langlois et Cb.. Seignobos, IntrOdulction aux Études Historiques,
Paris (1898'; 19255 ), traduzida para o português: Introdução aos Estudos
Históricos, trad. de Laerte de Almeida Morais, São Paulo, 1946.
•6). — M. Bloch, Apologie pour l'Histoire ou Métier de l'Historien, Paris, 1949„
traduzida para o espanhol sob o título de: Introducción a la Historia, México-
Buenos Aires, 1952 (in "Breviarios").
— W. Bauer, Einführung in das Stulitan der Geschicte, Wien, 1912 3. traduzida
para o espanhol sob o título cse: Introducción al Estudio de la Historia, Bar-
celona, 1952 2 .
— P. Harsin, Comment on écrit l'Histoire, Liège, 19444 .
— José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, São Paulo, 1949.
— 441 —

V. Esta parte do nosso livro tem caráter mais ou menos


enciclopédico, e embora tenhamos a esperança de que possa ser
útil para todos os que se queiram dedicar aos estudos históricos,
dirige-se especialmente aos estudiosos da história antiga e medie-
val. Não temos a pretensão de substituir os grandes manuais es-
pecializados nem queremos dar um magro resumo de livros já exis-
tentes. Por mais convencional que seja o esquema adotado, se-
guimos, em muitos pontos, um caminho individual: evitamos, de
propósito, discussões eruditas, geralmente de pouco interêsse para
principiantes, e frisamos o aspecto cultural da historiografia. Na-
da nos é mais estranho do que o desêjo de ser completo: não que-
remos esgotar o assunto, mas traçamos as linhas mestras e da-
mos apenas exemplos ilustrativos. Escrevemos para alunos das_
Faculdadesde Filosofia, não para especialistas. Estes encontrarão
em nosso trabalho poucas novidades e muitas omissões, e até po-
derão ficar escandalizados por algumas simplificações, — aliás,
voluntárias, — e pelo tom "dogmático" da nossa exposição. A úni-
ca finalidade dêste livro é orientar os principiantes, incentivá-los_
a consultar as grandes obras, e facilitar-lhes o caminho laborioso
de pesquisas pessoais. Nosso compêndio é, por assim dizer, uma
primeira visita ao laboratório do historiador. Sem dúvida, o que-
vale mais do que uns conhecimentos teóricos, é a aprendizagem
prática, o estágio prolongado, sob a orientação segura de um mes-
tre experimentado. Fabricando fabri fimus, diz o adágio latino
com muita razão. Não dizemos que a formação de um futuro his-
toriador se possa limitar a algumas noções teóricas e enciclopédi-
cas: tem êle de fazer experiências práticas. Mas uma iniciação teó-
rica pode ser proveitosa porque completa e ordena as experiências
necessàriamente limitadas do aluno. Aliás, a metodologia histórica
é essencialmente prática: resume e sistematiza os métodos, utiliza-
dos pelos grandes mestres, que a praxe provou serem valiosos. Dá
muitas informações úteis a respeito dos vários conceitos e têrmos,.
como também acêrca das diversas técnicas e operações que um fu-
turo historiador não pode ignorar impunemente. Além dessas in-
formações práticas, dá também certa "formação", prevenindo o-
principiante contra alguns erros e desvios, e indicando-lhe algumas
maneiras práticas de resolver certos problemas da historiografia.
O exemplo dos grandes historiadores que escreveram obras exce-
lentes sem estudos prévios da metodologia, não prova nada: um
livro didático não tem, — nem pode ter, — a pretensão de formar
gênios do tamanho de um Mommsen, Taine ou Herculano, mas
trabalhadores meticulosos e pesquisadores esclarecidos, capazes de
aproveitarem os frutos do trabalho dos corifeus. A metodologia
histórica é um modesto instrumento para consolidar e divulgar o,
progresso da historiografia. O matemático e o químico não neces-
— 442 —

sitam de tal introdução: o historiador, por estudar um objeto sui


generis, concreto e complexo, pode ser altamente beneficiado por
um estudo introdutório, e neste ponto assemelha-se bastante ao
filósofo, que igualmente se serve de "Introduções".

VI. O Professor Eduardo d'Oliveira França há pouco im-


pugnou, em várias publicações (10), a "higiene das fontes", que se-
ria um processo friamente racional e mecânico, a escravizar o his-
toriador ao documento e a condená-lo à impotência intelectual.
Seria a morte da inteligência espontânea. Combatendo a historio-
grafia "científica", — tipo século XIX, — defende a inteligência
quixotesca dos nossos tempos, que se atreve a acometer moinhos .
O polemista realça, com muita razão, o ponto importantíssimo, tan-
tãs vêzes esquecido pela hiStoriografia racionalista, de que também
o historiador, ao estudar os documentos do passado, não é máquina re-
gistradora, e não pode fazer abstração de sua própria "situação" no
tempo, ao interpretar os fatos históricos; é ativa e espontânea a
sua compreensão (insight). Contudo, quer-nos parecer que a
sua reação é um tanto exagerada. Além de se aproximar
muito perto de um novo historicismo, não menos duvidoso do que
o superado, — aqui, porém, pouco nos interessa esta questão, —
não faz a devida distinção entre o processo lógico e o processo psi-
cológico no exame das fontes. E' verdade, nenhum historiador, ao
estudar um documento ou grupo de documentos, começa "pelas clas-
sificações da Heurística para, depois, atravessar metódicamente tô-
das as fases da Crítica Externa e da Crítica Interna.. Procedesse
assim, quase nunca chegaria à sua tarefa própriamente dita . Ge-
ralmente se aproveita largamente de estudos alheios, aos quais dá
crédito por motivos razoáveis, embora êsse ato de fé não se baseie
num exame escrupulosamente analítico dos trabalhos já existentes.
Seu "tino" psicológico e sua experiência prática dão-lhe muitas vê-
zes uma visão direta, espontânea e intuitiva da verdade histórica:
é o illative sense, muito diferente de um raciocínio rigorosamente
discursivo. Até acontece que o pesquisador já de antemão sabe, de
maneira mais ou menos vaga, o que está procurando. Mas outro
é o processo lógico. O resultado das investigações pode, e deve, a
posteriori, ser verificado à luz de uma metodologia científica, não
só por êle próprio como também por outros. O que era intuição
ou pressentimento tem de transformar-se num conhecimento obje-
tivo: sem uma prova, não passa de uma hipótese. A prova não é
de natureza geométrica, — ninguém a exigiria em nossa matéria,
-- e admite vários graus de certeza . Mas quem excluir as provas,

(10) . Cf. Revista de História, Ano II, n.o 7 (págs. 111-141), e n.0 8 (págs. 253-
269; págs. 345-364; págs. 433-442) .
— 443 —

acaba por reduzir a história a um jeu d'esprit subjetivo, por mais


engenhoso que seja.
As regras da Crítica Histórica não são invenções arbitrárias,
mas derivam lógicamente do bom senso, ao qual também a inteli-
gência do historiador deve obedecer. Escravizam o espírito huma-
no tão-pouco como as regras da lógica: as duas disciplinas são ex-
celentes estudos introdutórios ,instrumentos ou órgana, como diziam
os gregos. Com efeito, são verdadeiras "disciplinas": disciplinam
o espírito, acostumando-o a respeitar as suas próprias normas. E'
a morte da inteligência criadora aplicar mecânicamente as regras
da metodologia histórica. Mas o homem é livre por poder seguir
livremente as normas da sua estrutura mental e por poder aceitar
livremente a verdade do mundo objetivo. E a metodologia da his-
tória, longe de sufocar a espontaneidade e o poder criador do in-
telecto, tem por finalidade principal educar o espírito para uma
liberdade que obedeça inteligentemente às leis.
CAPITULO SEGUNDO

A HEURISTICA.

§ 35. A classificação dos documentos.

Há várias maneiras de classificar os documentos históricos, e


nenhuma é completamente satisfatória.
Alguns historiadores distinguem entre fontes diretas (as que
remontam aos tempos dos fatos históricos que estamos estudando)
e fontes indiretas (as que datam de uma época posterior ao assunto
estudado). Outros preferem uma divisão entre "tradições" (do-
cumentos feitos com o fim de comunicar certos fatos históricos aos
contemporâneos e/ou à posteridade) e "restos" (tôdas as outras
fontes de conhecimentos históricos). Outros ainda seguem outros
critérios. Ao classificarmos os vários documentos encontramos di-
ficuldades bastante semelhantes às que se nos apresentaram quan-
do procurávamos dividir a matéria histórica (cf. § 19): as diversas
categorias entrelaçam-se tão estreitamente que uma coincide par-
cialmente com a outra.
,

A divisão, adotada nos parágrafos seguintes, parte de um prin-


cípio prático sem pretensões a uma justificação teórica, sempre pre-
cária em assuntos desta natureza. Dividimos os documentos se-
gundo a forma exterior em que chegaram aos nossos dias, distin-
guindo entre: os Textos Escritos (§ 36), a Tradição Oral (§ 37),
a Tradição Pictórica (§ 38), e afinal, os Restos (§ 39). Cada um ,

dêsses gêneros se subdivide em várias espécies.


§ 36. Textos Escritos.
De todos os documentos históricos os textos escritos são os
_mais importantes: o fato de estarem à disposição do historiador tex-
tos escritos é o critério da distinção entre períodos históricos e pré-
históricos (cf. § 25). Dividem-se os textos escritos em diversos
grupos, dos quais mencionamos:
I. Todos os documentos escritos que deviam regular a vi-
da social, econômica ou política no passado: leis (1), contas, in-
(1) . — A edição monumental das leis romanas, de suma importância para a evolução
política e jurídica da Europa desde ±1200, é o Corpus _Ioda Civilis, publi-
cado em 534 d. C. por ordem do Imperador Justiniano. A obra compõe-se
de 4 partes (originàriarnente, &e 3 partes): Institutiones (=Introdução aos
estudos jurídicos), Pandectae ou Digesta (=Antologia da jurisprudência roma-
na, tirada das obras de 37 juristas), Codez Justinianus (em 12 livros, con-
tendo as leis e os decretos desde Adriano até Justiniano), e Novellae (as
leis promulgadas por Justiniano entre 535 e 565) . A obra foi escrita em
latim, menos as Novellae, que foram redigidas em grego.
— 446 —

ventários, registros civis e eclesiásticos, registros de tabelionato,.


diplomas (2), cartas diplomáticas e administrativas (3), bulas pa-
pais, decretos, etc. Éstes textos, urna vez provada a sua autenti-
cidade, possuem grande valor pára a historiografia, porque são coe-
tâneos dos fatos que estamos estudando. Tornam-se sobremaneira
importantes quando há falta ou escassês de documentos narrati-
vos, por exemplo na Idade Média. Varia-lhes o valor objetivo,
o qual deve ser examinado em cada caso particular. Os "consi-
derandos", que abrem uma lei, um decreto ou uma nota diplomá-
tica, nem sempre reproduzem fielmente a verdade histórica, mas
a própria desfiguração pode tornar-se um objeto de estudo inte
rèssante para o historiador, desde que êste não se restrinja a in-
vestigar os fatos materiais, màs preste também atenção às idéias
e à mentalidade das classes goVernantes em certas épocas. O que
torna tão interessante esta classe 'dé documentos é o fato de êles
rião pertencerem à historiografiá prôpriamente dita, a qual sem-
pre reflete os fatos por meio de uni autor: são, por assim dizer,.
instantâneos, tirados de um acontecimento do passado, muitas vê-
zes com certo capricho, más perinitindo-nos geralmente uma visão
imediata dos fatos e, se não dos verdadeiros mótivos, ao menos
das "mentiras oficiais". Mas a circunstância de não pertencerem
à historiografia, traz consigo também certas desvantagens: quase'
nunca nos dão informações coerentes sôbre a seriação dos fatos,'
visto que lhes falta o caráter narrativo. Precisamos combiná-los
com outras fontes para termos uina idéia da conexão entre os di.'
versos fatos isolados. Apesar disso, a historiografia moderna apro- -
veita cada vez mais esta' classe de documentos.
II. Outros documentos foram feitos com o fim de perpetuar
a 'lembrança de um acontecimento mais ou menos importante da
vida pública ou privada, ou entãó pára homenagear um 'indivíduo'
ou um grupo de indivíduos. A esta categoria pertencem inscrições,
(de moedas, medalhas, campas, sinos, objetos de arte, arcos de
triunfo, estátuas, placas comemorativas, etc.) e também atas de
reuniões, assembléias (4), congressos (5), etc., e relatórios oficiais e-

(2 ) . — Diploma é documento público assistido por pessoa pública.


. — Uma coleção interessante de cartas diplomáticas e administrativas são as ,
Variae de Cassiodoro (12 livros), dando-nos uma impressão da política e da.
administração da Itália • durante a ocupação gótica ( abrangem. o período de
506 a 537) . Coleção única na história da literatura antiga.
. — São muito importantes as atas dos vários concílios ecumênicos, nacionais e re--
gionais. — O arcebispo de Luca, Giovanni Domenico Mansi (1692-1769 ), edi-
tou as atas dos concílios até 1439 em 31 volumes; nova edição, ampliada. e
atualizada até 1870, saiu em Paris ('1901-1927, em 53 volumes) — Para a ,
história do domínio holandês no Brasil são importantes as atas do Alto Con-
selho, conservadas no Recife.
. — Para o historiador moderno são interessantes dois relatórios contemporâneos:
II Problema della Storia (mAtti ..dell'VIII Convegno di Studi Filosofici Cris-
tiani tra Professori Universitari, Gallarate, 1952), e L'Homme et l'Histoire
(=A ctes du VIe. Congrès• des' Sociétés de Philosophie de Langue . Française,.
1952).
— 447 —

particulares. São valiosos por serem documentos contemporâneos,


mas em geral estão muito mais expostos a "mentiras oficiais" do
que os do primeiro grupo. Quem não conhece a falta de objetivi-
dade quase proverbial dos necrológios? E quem não sabe que as
inscrições das antigas moedas romanas faziam mais alarde das vi-
tórias, na medida que estas se tornavam mais duvidosas? E quem
não experimentou que as atas de uma reunião nem sempre podem
contar com uma aprovação unânime? Mas, pôsto que as inscrições,
as placas e as atas não nos obriguem a uma obediência incondicio-
nal, no mais das vêzes nos dão informações preciosas, cujo valor
histórico não precisa coincidir com a importância que os seus auto-
res davam a certo acontecimento ou a certa pessoa. Ao estudo
metódico das inscrições devemos abundantes e valiosas notícias
acêrca dos costumes, nomenclatura, legislação, fronteiras políticas
e lingüísticas de épocas pouco documentadas.
III. Tôdas as produções literárias, científicas, filosóficas e
religiosas do passado que chegaram até nós. Merecem não só o in-
terêsse do especialista que acompanha por exemplo a evolução de
certas formas literárias ou doutrinas filosóficas, mas podem ser fon-
tes de valor para a historiografia em geral. Pois muitas vêzes nos
informam incidentalmente sôbre um acontecimento do passado;
além disso, possibilitam-nos um contacto quase direto com as idéias,
problemas, esperanças e preconceitos de uma época, um terreno
muito grato para o historiador . As comédias de Aristófanes (6)
apresentam-nos as caricaturas de Sócrates e Eurípides. Seria um
êrro muito grave se acreditássemos piamente as palavras do co-
mediógrafo ateniense que conscientemente exagerava e ridiculari-
zava; não obstante,: as duas peças rematam o retrato de Sócrates
e Eurípides das outras fontes, mostrando-nos a repercussão que ês-
ses dois "inovadores" tiveram na imaginação popular. A Ars Ama-
toria de Ovídio (7) deixa-nos ver certos aspectos da vida galante
em Roma sob Augusto. As brigas teológicas entre os jesuítas e os
jansenistas nenhum documento as ilustra melhor do que Les Pro-
vinciales de Pascal (8) . E os abusos existentes nas casas dos po-
bres (Workhouses) e nos internatos da Inglaterra vitoriana são vi-
vamente salientados em alguns romances de Charles Dickens (9) .
Sem dúvida, ao utilizarmos essas fontes, devemos tomar em conside-
ração a tendência do autor, que, por estar envolvido pessoalmente
. — Aristófanes (±445-±-385 a. C.) atacava Sócrates nas Nuvens (423), e Eu-
rípides nas Rãs (405).
Públio Ovídio Naso (43 a. C. —4 18 d. C.), autor das bem conhecidas Me-
tamorphoses.
. — Em 1656-1657, Pascal publicou 18 cartas, das quais a maior parte atacava
os jesuítas. Diz-se , que nem a supressão da Companhia prejudicou tanto a
reputação dos jesuítas como essas cartas de Pascal, espirituosas, mordazes e
freqüentemente injustas para com os seus adversários.
(9). — Charles Dickens (1812-1870), célebre romancista inglês, autor entre outras.
obras de David Copperfield, Oliver Twist; e Pickwick Pepers, etc.
— 448 —

nas questões do dia, amiúde se afasta, — consciente ou inconscien-


temente, — da verdade objetiva: assim mesmo são documentações
psicológicas de primeira ordem.
IV. Outros documentos ainda foram feitos coín o fim explí-
cito de comunicar fatos históricos aos contemporâneos e/ou à pos-
teridade: já pertencem à historiografia. A êsse fim não raro acres-
ce a intenção de influenciar outras pessoas ante certas questões ou
situações, dando uma interpretação, muitas vêzes bem subjetiva.
Mas a interpretação, por mais parcial que seja, pode ser importante
para o historiador, encaminhando-o para uma interpretação ponde-
rada e possibilitando-lhe uma visão direta das simpatias e antipatias
que existiam em dado ambiente histórico. Além disso, o caráter
narrativo e mais ou menos sintético dêsse gênero de documentos
contribui muito para o historiador ter uma idéia da seriação dos
acontecimentos. Mas para poderem prestar serviços úteis ao pes-
quisador precisam ser submetidos a um exame rigoroso. Mencio-
namos aqui:
Cartas de pessoas públicas e particulares. O exemplo clás-
sico de uma correspondência importante para a historiografia são
as cartas de acero (10), que nos permitem acompanharmos as pe-
ripécias dos últimos anos da república romana, às vêzes de um dia
para outro. Muito importante é também a correspondência do hu-
manista Erasmo (11), de Voltaire (12), e de Napoleão (13).
Diários e Memórias. Gênero literário, muitas vêzes, ten-
dencioso, praticado desde o século XVII, principalmente na Fran-
ça, ,e depois em outros países (14). Tornaram-se célebres, em nos-
sos dias, as. Memórias de Winston Churchill.
Jornais (15), revistas, brochuras, panfletos (16), etc.

(10) . — Possuímos dêle e dos seus amigos 931 cartas (818 do próprio Cícero), re-
partidas entre várias coleções: Ad Atacam, ad Familiares, ad Quintum Fre-
trem, ad Brutum, etc.
— Possuímos dêle centenas de cartas, dirigidas a quase todos os contemporâneos
importantes (por exemplo Lutero, Tomas More, papas, etc.), e editadas em
9 volumes por P. W. Allen (Oxford, 1906-1938).
— Possuímos dêle mais ce 12.000 cartas (por exemplo a Frederico II da Prús-
sia, a Catarina II da Rússia, etc.).
— Correspondance de Napoléon I (32 volumes. Pc,ris, 1858-1870).
— Dois exemplos de Memórias, consagraôas a grandes personagens são: Le Mémo-
rial de Sainte-Hélène, editado em 8 volumes pelo Conde de Las Casas (1822-
1825), e Gespriiche mit Eckermann (=Conversações Ge Goethe com seu se-
cretário Eckermann), editado cio 3 volumes (1836-1848).
<15). — Júlio César, quando cônsul (59 a. C.), fêz publicar diàriamente os chamados
Acta Diurna, os quais traziam comunicados oficiais, mas também outras no-
tícias, e até um setor da "vida social": precursor na Antigüidade dos jornais
modernos (cf. Suetonius, Divus Julius, 20). Ao que parece, subsistiram até
o início co século IV. Em Pequim (China) havia certa espécie de jornais
já no século X. — Na Europa os jornais datam da época da Renascença
(principalmente na Itália e na Alemanha): tinham sua origem em publicações
ocasionais e avulsas, que só depois (a partir de 1600) começaram a sair com
maior regularidade( por exemplo, mensalmente ou semanalmente) e a ser
numeradas. Nos meados do século XVI vendiam-se em Veneza as Notizie scritte,
trazendo notícias da Bôlsa, ao preço de uma gazzetta (=2 soldi; daí a palavra
"gazeta"). Na Alemanha saíram, no mesmo século, nada menos de 877 "re-
— 449 —

Anuários e outras publicações, periódicas ou não, edita-


das por diversas associações, emprêsas económicas, etc.
Crônicas e Anais (cf. §§ 4 e 5) .
Livros históricos no sentido próprio da palavra, quer se-
jam monografias, quer tratem de assuntos gerais. Convém distin-
guirmos aqui entre livros, escritos por contemporâneos, e livros cujos
autores são posteriores aos fatos narrados, Por motivos evidentes
êstes possuem menor valor documentário do que aqueles. Mas
também a segunda categoria pode ser valiosa, quando é baseada
em documentos sólidos; outrossim, presta-nos muitas vêzes serviços
indispensáveis por nos faltarem fontes contemporâneas. Nesta hi-
pótese, a crítica externa tem de verificar, na medida do possível, a
origem dos documentos, utilizados pelo autor, — tarefa difícil e
laboriosa, mas imprescindível e não raro compensada com resulta-
dos fidedignos. Os livros históricos são principalmente importantes
para o estudo da Antigüidade e da Idade Média, a cujo respeito
dispomos de relativamente poucos documentos. Não tivessem che-
gado até nós os livros de Tucídides, Tito-Lívio e Tácito, pouco sa-
beríamos das lutas entre os atenienses e os espartanos, das guerras
púnicas e da Roma imperial no século I d. C.
Biografias, hagiografias, etc.
§ 37. A tradição oral.
A forma mais elementar da tradição oral é o boato, nertícia
anônima que corre de um lugar para outro, viresque adquirit eundo
(17), como diz o poeta. Avaliam-lhe bem o valor extraordinário
os ministros de propaganda dos atuais Estados totalitários, procuran-
do espalhar rumores favoráveis e fazendo tudo para cortar os no-
civos. Quando o boato desempenha papel tão relevante ainda na
sociedade moderna que dispõe de tantos meios de comunicação,
não é de estranhar que tenha sido mais importante em tempos pri-
mitivos, quando a maior parte da população era analfabeta, e o
jornal, o rádio e o cinema eram coisas inexistentes. Os grandes
acontecimentos na história de um povo inspiram-lhe horror ou
entusiasmo, e as grandes personalidades provocam-lhe sentimen-
tos de admiração ou de ódio: dessas paixões se apodera a imagi-

lações" (Relationen ou Relationes Historicae), com o fim de c.ivulgarem acoute-


mentos atuais (por exemplo em 1500: o descobrimento do Brasil) .
. — A origem desta palavra é discutida: segundo alguns, seria derivada de um li-
vrinho muito popular na Inglaterra medieval: Pamphilus seu de Amora (sé-
culo XII), segundo outros, da palavra francesa palme-feuillet, que teria evo-
luíc.n, igualmente na Inglaterra, para "pamphlet" (literalmente: "folheto que
cabe na palma da mão") . Panfletos já eram .conhecidos na Antigüidade, co-
mo o De Republica Atheniensium, brochura erradamente atribuída a Xenofonte,
e Apocolocyntosis, panfleto satírico, escrito pelo filósofo Sêneca por ocasião
da "apoteose" do seu inimigo, o Imperador Cláudio. — A pátria dos panfletos
modernos é a Inglaterra (desde o século XVII) .
. — Vergilius, Aeneie IV, 175.

Revista de História ns.° 21-22.


— 450 ---

nação popular, • a exaltar os feitos dos heróis, a aumentar a cruel--


dade dose inimigos, e a exprimir as saudades dos tempos idos. As-
sim se originam sagas, lendas, mitos e outros contos populares
(17a).
I. Confundem-se muitas vêzes os têrmos:. saga, mito e len-
da. O que lhes é comum, é o elemento imaginativo que nas três
espécies viceja à custa da verdade histórica. Contudo parece pru-
dente demarcar-lhes os limites. "Saga", palavra escandinava, cog-
nata com o verbo inglês to say, é um conto popular que trata dos
heróis do passado e contém elementos fantásticos. "Mito", pala-
vra grega, significando igualmente "narração", é um conto relativo
aos deuses e semi-deuses (18); "lenda", da palavra latina "legen-
da" (= "o que deve ser lido"), é a biografia milagrosa de um san-
to (19). Muitos dêsses contos populares foram posteriormente fi-
a
xados por escrito, mas essa circunstância não lhes modifica o ca-
ráter originário de tradição oral. E' desnecessário dizer o quanto
custa ao historiador tirar conhecimentos certos e seguros dêsses
produtos populares que se foram depositando em cantos, baladas,.
e epopéias (20) e romances (21). O núcleo histórico, embora
quase sempre presente, apresenta-se-nos de tal maneira encoberta
e desfigurada que, salvo raríssimas exceções, não conseguimos des-
cobrí-lo, devendo-nos contentar, no mais das vêzes, com uma hi-
pótese mais ou menos plausível. Hoje em dia ninguém duvida
da historicidade de Tróia, cidade imortalizada pela Ilíada: as des-
cobertas arqueológicas demonstraram terminantemente que mui-
tas descrições homéricas de casas, objetos e costumes são históri-
cos. Mas nem por isso se justifica a conclusão de que tenham sido ,
pessoas históricas Aquiles, Ulisses, Príamo e Heitor, nem a dedu-
ção de que tenha havido uma expedição pan-helênica contra a ci-
dade asiática . Pois a análise de outras epopéias populares prova
que a imaginação do povo torna muitas vêzes irreconhecíveis os.
fatos históricos que lhes deram origem: a fantasia exuberante, além
(17i). Até em tempos relativamente recentes formaram-se êstes contos populares. Um:
exemplo típico é o "sebastianismo" entre os portuguêses depois da derrota de•
Alcácer-Quibir (1578): não queriam acreditar que lhes tivesse morrido El-Rei
D. Sebastião. Poderíamos citar ainda "la légende napoléenne", explorada com
tanta mestria por Béranger (1780-1857), e o "mito nazista" na Alemanha que
não morreu com a morte de Hitler.
( 18) • E' dficílimo demarcar os limites entre sagas e mitos, uma vez que muitos-
mortais depois da morte chegavam a ser venerados como deuses ou semi-
deuses; por outro lado, êstes eram amiúde degradados à categoria de heróis.
— E' célebre a Legenda Aurea, coleção ce lendas medievais, feita pelo frade do-
minicano Jacobus de Voragine (1288), que proporcionou abundante matéria
a numerosos artistas da Idade Média e da Renascença.
— Falamos aqui apenas em epopéias "populares" ou "primitivas", tais como a
fiada, a Odisséia, e a Nibelungenlied; não em epopéias "eruditas", como a,
Enéida de Virgílio, cujo argumento se funda em reconstruções pretensamente cien-
tíficas. — A expressão epopéia "popular" não envolve que tal poema tenha
sido composto pelo povo, como queriam os românticos.
, (21). — Por exemplo os romances medievais que tratavam das aventuras de Alexandre,
Magno, de Artur ou Artus, et.z.
—•451 —

de recorrer amiúde a explicações sobrenaturais, gosta de concen-


trar acontecimentos e heróis do passado, por mais heterogêneos ,
que sejam, em redor de um tema central, que, embora histórico,
pode ter sido muito insignificante, mas por qualquer motivo im-
pressionou profundamente a mentalidade primitiva. Assim o Ro-
lando da Chanson de Roland (século XI-XII) é pessoa histórica;
mas as fontes autênticas o mencionam só uma vez de passagem,
(22), e o episódio da sua morte em Roncesvales no ano 778 foi
um acontecimento de somenos importância histórica na longa série
de lutas entre os francos e os mouros. A imaginação do povo, ,
porém, viçosa e romântica, transformou o insignificante Rolando
na figura central de um ciclo de sagas. A epopéia dos germanas, •

a Nibelungenlied, (± 1200), tem por núcleo histórico a destrui-


ção do Reino dos burgúndios pelos hunos em 437 d. C.; o conto,
além de conter numerosos elementos fabulosos (23), considera in-'
gênuamente como contemporâneos Teodorico o Grande (século
VI) e Átila (século V) . Na Odisséia encontram-se reminiscências
das viagens marítimas feitas pelos fenícios (ou pelos gregos da
cidade de Cálcis?), mas as aventuras, enfeitadas com elementos de
contos de fadas, incorporaram-se no ciclo épico de Tróia e mistu-
raram-se com diversos outros temas heterogêneos. Os exemplos
dados provam bastante como é difícil tirar argumentos históricos
de um conto popular, depositado em baladas e epopéias: os resul-
tados são quase sempre duvidosos, e interessam mais à história da
literatura e da civilização do que à história política.
II. Os contos de fadas são destituídos de um núcleo histó-
rico: aliás não têm a pretensão de relatar fatos autênticos. Pro- .

dutos de uma livre imaginação continuam eternamente atuais por


não narrarem "atualidades". Interessam ao historiador só indire-
tamente: como elementos de cantos populares que contêm núcleos
históricos. Também seus temas e motivos podem ser estudados pela
historiador: temas idênticos ou semelhantes eram, no século pas-
sado, muitas vêzes reduzidos a uma origem comum, preferencial-
mente à Babilônia ou à índia. Entretanto é pouco legítima tal
dedução, pois, ao que parece estabelecido pelas pesquisas moder-
nas que se servem também de métodos psicanalistas, os mesmos
motivos nascem espontâneamente no seio de povos bem diferen-
tes que, em tempos históricos, muito dificilmente podem ter en-
tretido contactos entre si.

. — Eginhardus, Vita Caroli Magni, IX: firuotlandus (=Rolandus) Britannici


mitis praefectus.
. — O herói principal Siegfried tem muitos traços de um príncipe de um conto
r2e fadas.
— 452 —

III. Chama-se "etiologia" ou "fábula" (24) o conto popular


que pretende dar uma explicação histórica de coisas ou nomes,
provenientes do passado e já não compreendidos pelo povo. A
"etiologia" é freqüentemente uma "etimologia" (25) popular„ sem,
pré caprichosa e destituída de todo o valor histórico. O nome do
"Monte Pilatos" na Suíça (26) deu, na Idade Média, origem, à
crença de que aí Pôncio Pilatos teria sido enterrado. Nos tempos
anteriores ao século XIX, quando ainda não existia a lingüística, tafti..
bém as pessoas cultas forjavam etimologias, geralmente errôneas
absurdas, que deviam servir de base a especulações teológicas,
filosóficas ou históricas. Há derivações fantásticas, tais como canis
a non cariendo, lucus a non lucendo, é barbarus sio vocatut guia
barbam habet et rus habitat. Os torriatiOs da época de Augusto
faziam queStão de serem descendentes dos troianos mediante Enéias
seu filho Ascânio ou //o, nome êsse que era relacionado com o
de Tróia (= /hum). Até derivavam o nõme da família de Cé-
sar (Julius), de Ilus e Ilium, E a cidade de Lisboa (Iatitn:
sipone) devia ter sido fundada por Ulisses.
IV, A tradição oral abrange também anedotas e palavras
aladas, igualmente difíceis de verificarem, mesmo que se refiram
a acontecimentos relativamente recentes. Na Prússia circulavam
muitas anedotas a respeito de Frederico II, na França acêrca de
Napoleão, e nos Estados Unidos sôbre Jorge Washington. O fato
material, comunicado pela anedota, pode ser fictício, mas a ficção
é quase sempre significativa. A anedota não é um retrato bem ma-
tizado de uma pessoa histórica, mas um delineamento primitivo,
ilustrando vivamente a repercussão que ela teve nos meios po-
pulares, e por isso mesmo constitui uma valiosa documentação psi-
cológica para o historiador. O mesmo se pode dizer, mutatis mu-
tándis, das palavras aladas. Se nem sempre são autênticas, são
geralmente muito características de certa pessoa ou situação histó-
rica tal como sobreviveu na tradição de um povo. Numerosas pa-
lavras célebres, atribuídas a determinadas pessoas, são mal ou não
abonadas por documentos fidedignos. Damos alguns exemplos: o
grito de alegria, atribuída a Arquirnedes: Heureka! (27); a res-
posta que teria sido dada pelo general francês Cambronne à ordem

(24). — A palavra "etiolôgia" é composta de "aitía" (=causa) e "lógos" (=conto). —


A "fábula", no sentido literário do têrrno, é um conto, cujas figuras principais
são animais e que contém lição moral. Segundo a tradição, remontaria à figura
lendária de asopo (século VI a. C.).
(25) • — O nome Pilatus deriva de Pileatus (=vestido de pilecas ou chapéu).
— "Etimologia" quer Cisar: "explicação racional (Meus) do sentido verdadeiro,
ou da realidade expressa por uma palavra" (étymos).
— Cf. Vitruvius (arquiteto romano, século I d. C.), De Architecture, IX, Praef.
10; Plutarchus, Moralia, 1094 B-C. -- As circunstâncias em que Arquimedes te-
ria descoberto a célebre lei hidrostática, são narradas de Maneiras diferentes pe-
los autores antigos, e o grito Heureka!, embora possivelmente palavra autênti-
ca, tem algo de anedótico.
— 453 -

de se render na batalha de Waterloo: La garde meurt, mais ne se


rend pas! (28); a afirmação teimosa de Galileu: E pur, si muove!
(29); e a declaração soberba, atribuída a Luís XIV: L'Etat, c'est
moi! (30) .

§ 38. A tradição pictórica.

A tradição pictórica, que se compõe de várias categorias, é


a •representação figurada de cenas ou pessoas históricas, como tam-
bém de cidades, paisagens e vários objetos do passado. Varia-
lhe o valor objetivo, conforme a tradição é contemporânea ou pos-
terior. Também de propósito podem entrar neste gênero de fontes
elementos subjetivos. Para lhes tirar conhecimentos históricos,
pesquisador precisa muitas vêzes do subsídio de disciplinas
terpretativas: a interpretação metódica chama-se "hermenêutica",
(31). A esta classe de documentos não raro acresce um texto es,
crito em forma de uma inscrição, etc. Distinguimos aqui entre;,
1. Telas e obras de escultura que representam cenas histó-,
ricas; retratos de pessoas históricas, etc. Alguns exemplos céle-:
bres são: o mosaico de Pompéia, representando uma batalha de
Alexandre Magno (32); as colunas dos Imperadores Trajano (33)
Marco-Aurélio (34); os gobelinos franceses do século XV (35)
Além do seu mérito artístico, essas obras podem ser importantes do-
cumentos por nos darem uma ilustração dos trajes, das modas, do
tipo das casas, etc. Mas a tendência de estilizar ou idealizar pode
prejudicar a verdade histórica. Em obras de arte posteriores às ce-
nas representadas há perigo de entrarem anacronismos: é univer.,
salmente sabido que os primitivos pintores flamengos da Idade Mé-,
dia, ao representarem cenas bíblicas, acomodavam-nas à paisagem
aos trajes do seu país.
II. Como documentação psicológica são muito importantes
as gravuras (desde o século XV) e as caricaturas (desde a Renas=
cença) . As duas são ilustrações de acontecimentos contemporâneos,
freqüentemente com o fim de fazer propaganda ou de tornar ridí-

— Cf. P. Harsin, Comment on écrit l'Histoire, Liège, 1944, pp. 167-170.


— Galileu viveu c:e 1564 a 1642. O grito que lhe é atribuído data de 1761.
— Segundo uma tradição suspeita, Luís XIV teria dito esta palavra ao Parla-
mento de Paris no dia 13 de abril de 1655.
— Do verbo grego "hermenêuein" =interpretar.
— Foi descoberto em 1831 na Casa del Fauno, e acha-se atualmente no Museo
Nazionale em Nápoles. Representa o encôntro do rei persa Dario III e Ale-
xandre Magno na batalha de Isso (330 a. C.), sendo cópia de uma obra feita
pelo artista helenístico Filóxeno (século IV-III).
— Em volta desta coluna está enrolado, em forma de uma espiral, um friso de
esculturas em baixo-relêvo, com quase 200 metros de comprimento, representandO
cenas da guerra dácica (primeiro decênio do século II c:. C.).
— Representa cenas de guerras contra os germanos (século II d. C.). — Essas
colunas romanas foram imitadas pela Colonne Vendôrne em Paris, em home-
nagem a Napoleão.
— O nome é derivado da primeira família que os fabricou: Gobelin.
— 454 --

culo o adversário. A caricatura tornou-se uma verdadeira arte no


Século XIX, principalmente na França (36) e na Inglaterra, onde
desde 1841 tem saído Punch, The London Charivari, um comentá-
rio satírico de alta categoria, dos acontecimentos da semana (37).
Fotografias e reportagens cinematográficas.
Panoramas e vistas gerais de cidades, maquetes, etc.
Plantas e mapas. Perderam-se completamente as cartas
geográficas, feitas pelos geógrafos gregos, dos quais mencionamos
Anaximandro de Mileto (38), Eratóstenes (39) e Ptolomeu (40).
Possuimos ainda a chamada Tabula Peutingeriana (41), um itine-
rário romano, cujo original remonta ao século IV d. C., e que re-
presenta tôdas as estradas e estações importantes do mundo roma-
no, desde o Mar do Norte até o Mar das Índias. A cópia, chegada
até nós, data do século XIII, e mede 34 cm por 680 cm. Apesar de
mostrar alguns absurdos, a Tabula dá-nos numerosas informações
úteis. A cartografia medieval significa um regresso considerável
comparada com a da Antigüidade: só os árabes faziam mapas cien-
tíficos (42). Desde os inícios do século XIV começaram' a sair na
Itália as "cartas de bússola", de tanta influência para o descobri-
mento do Novo Mundo. Nos séculos XVI-XVII a cartografia foi
aperfeiçoada na Alemanha e na Holanda (43). A época moderna
foi introduzida pela família dos Cassinis, na França (século XVII-
XVIII) (44), e desde o século passado a composição de mapas,
favorecida pelo surto das ciências matemáticas e naturais e pela
técnica, entrou em nova fase (aerofotogrametria!).
Brasões ou insígnias de pessoas ou famílias nobres e ilus-
tres, de municípios, províncias e Estados, de dignitários eclesiásti-
cos e magistrados, etc. E' o terreno da heráldica.

— Culminou em Honoré Daumier (1810-1879).


— Desenhistas célebres, colaboradoers do Punch, foram, por exemplo, Cruikshank,
Leech e Du Maurier. Também colaboraram literatos notáveis, como W. M. Tha-
ckeray.
— Anaximandro, um dos filósofos pré-socráticos, foi o primeiro cartógrafo grego
(século VI a. C.).
Eratóstenes de Cirene (±275-195) foi o pai da geografia científica da Anti-
güidade. Calculou o equador terrestre em 46.600 km (na realidade -1-40.000 km).
— Ptolomeo ( -1- 100-178) dá na sua obra a situação de ±8.000 cidades e aldeias
com a latitude e a longitude; devido à sua influência, neste ponto desastrosa,
foi abandonado o sistema heliocêntrico, já exposto por Aristarco de Samos (sé-
culo III a. C.) e venceu o sistema geocêntrico até os tempos de Copérnico
1473-1543).
— A Tabula ficou com êsse nome por causa do antiquário C. Peutinger (1465-
1547), que a adquiriu para a sua coleção. Atualmente se acha na Biblioteca
Nacional em Viena.
Por exemplo Abn Abdallah El-Edrisi (1099-1166), que ofereceu em 1154 ao
rei Roger II de Sicília um mapa do mundo.
Por exemplo o holandês G. Kremer (=Mercator), um dos fundadores da vo-
grafia matemática moderna; no seu sistema as longitudes estão representadas por
linhas retas equidistantes, e igualmente os graus de latitude (1512-1594).
— A família é de origem italiana, mas tornou-se célebre na França. Mencionamos
C.-Fr. Cassini de Thury (1714-1784), que compôs a Carta topographique de la
Franca em 180 fôlhas (escala 1:86.400).
— 455 —

VII. Moedas e medalhas, etc., que são estudadas pela nu-


mismática. A sigilografia tem por objeto os selos.

§ 39. Os Restos.
Os Restos são todos os outros vestígios do passado, capazes
de nos darem informações históricas. Não foram feitos com o fim
de transmitirem conhecimentos históricos à posteridade, e essa cir-
cunstância lhes dá um grande valor objetivo. Uma vez provada a
autenticidade dos "restos", merecem nossa plena confiança, visto
que não mentem. Mas não mentem porque não falam; a tarefa do
,

historiador, por vêzes bastante difícil, consiste em forçá-los a falar.


A "hermenêutica" dos Restos exige grande habilidade e muita em-
dição. A historiografia anterior ao século XIX quase não aprovei-
tava esta classe de doctimentos. Mencionamos aqui:
Restos humanos, restos de armas, instrumentos e dese-
nhos, que datam de tempos pré-históricos. E' o terreno da paleon-
tologia, antropologia e ciências afins.
Restos de cidades, templos, edifícios, templos, igrejas, se-
pulcros, casas, etc., e de todos os objetos aí descobertos. E' o cam-
-

po da arqueologia que estuda os tempos históricos e pré-históricos.


As línguas em tôdas as suas manifestações: línguas vivas
e mortas, dialetos e falas; além disso, a difusão de certos idiomas e
vocábulos, as interinfluências entre os idiomas, etc. E' o setor da
lingüística.
Os costumes, os trajes, as instituições e• as festas popu-
lares que datam de tempos antigos. Duas disciplinas estudam essa
matéria: a etnologia (45), tratando-se de povos primitivos, e o fol-
clore (46), tratando-se de povos civilizados.
Tôdas as produções das artes, ciências e indústrias,
tôdas as realizações técnicas do passado.

§ 40. A procura de documentos.


Não basta sabermos quais são as diversas fontes: precisamos
saber também onde devemos procurá-las. E' esta talvez a parte
mais difícil da heurística. Nos dois parágrafos seguintes pretende-
mos dar alguns esclarecimentos sôbre a procura de documentos es-
critos, sendo que esta classe continua a ser a mais importante para
o historiador, e uma discussão concernente à procura das outras
fontes nos levaria muito longe.
(45). — A palavra etnologia (grego: "éthnos"=povo, e "lógos"=disciplina) foi forjada
pelo inglês W. F. Edwards (1776-1842) na Lettre à Améd ée Thierry (1829),
o qual na sua Histoire des Gaulois (1828) prestara muita atenção ao caráter
hereditário de certas qualidades biológicas e psíquicas.
(46) . — A palavra folclore é de origem inglêsa, e equivalente de etnologia (fo/k=povo, e
lore=disciplina, ciência) . Foi criada em 1846 pelo inglês W. J. Thorns.
--- 456 —

Uma condição imprescindível para podermos estudar um do-


cumento histórico é o fato dêste se ter conservado. E' escusável
fazer comentário a êsse respeito. Podemos perguntar, porém, como
é que se perdem e se descobrem documentos (§ 41) . Depois con-
vém examinarmos as circunstâncias que facilitam a procura dos
documentos (§ 42) .

§ 41. Ganhos e perdas.

Como se perdem documentos, e como se redescobrem documen-


tos perdidos?

I. Perderam-se numerosos documentos no decurso dos sé-


culos, devido a várias causas: o material empregado era freqüen-
temente pouco duradouro; eram destruídos pelas chamas ou pe-
los ratos e outros bichos; eram arruinados por fanatismo, negli-
gência ou ignorância; eram aniquilados por poderem comprometer
as classes governantes; faziam o resto catástrofes metereológicas,
guerras e revoluções.
O descuido e a ignorância são fatôres importantes na destrui-
ção de documentos privados e, infelizmente, também de documen-
tos públicos e oficiais nos países onde ainda não existe uma forte
tradição histórica. Tôda pessoa de certa idade sabe que de vez
em quando se torna necessária uma limpeza geral no nosso arqui-
vo pessoal, da qual pode ser vítima também uma carta ou uma
anotação eventualmente importante para um futuro historiador.
Os documentos públicos, nos países civilizados, são geralmente
bem guardados, mas também êles não estão ao abrigo da ação do ,
tempo, de incêndios, de guerras e revoluções. Foram lastimáveis,
as perdas de fontes históricas nas épocas de grandes perturbações
políticas e sociais: a invasão dos bárbaros no Império Romano;
a Queda de Constantinopla; as lutas religiosas nos tempos da Re-
forma; as guerras civis e externas da Revolução francesa e da
época napoleônica; as duas guerras mundiais. Na primeira guerra
mundial foi destruída, por exemplo, grande parte da biblioteca da
Universidade de Louvaina, na segunda foi uma das vítimas a cé-
lebre biblioteca do Monte Cassino .
A atos de vandalisMo intencional, como costumam acontecer
em tempos de guerras e revoluções, acrescem os chamados "atos
herostráticos% atos de destruição proposital feitos por pessoas com
o fim de se tornarem célebres. Heróstrato incendiou em 356 a..
C., na noite do nascimento de Alexandre. Magno, o templo de Dia-
— 457 —

na em Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo (47): cupidi-


tate incensus suum nomen aliquo insigni facinore propagandi, cum
virtute non posset, scelere voti compos factus est (48). Nos tem-
pos modernos verificaram-se casos semelhantes, por exemplo em
Florença com o vaso de François, e em Londres com o vaso de
Portland (49), mas, ao contrário de Heróstrato que atingiu o seu
alvo, os criminosos contemporâneos não chegaram a perpetuar o
seu nome com êsses atos anormais. Houve também outros casos de
destruição deliberada, originados por desespêro ou por ressentimen-
to contra a sociedade, por exemplo no Louvre em Paris.
II. Em compensação tornam-se-nos acessíveis cada vez mais
documentos históricos, principalmente devido a três fatôres: as es-
cavações arqueológicas, a decifração de escritas antigamente des-
conhecidas e o descobrimento de novos textos (50) .
Os babIlônios, os assírios, os hititas e os persas (51) em-
pregavam um sistema de caracteres cuneiformes, cujas origens re-
montam ao terceiro milênio a. C. e cujo desenvolvimento nos mos-
tra um processo de constante simplificação no sentido de uma es-
crita fonográfica (52). Os primeiros passos para a decifração dos
cuneiformes (persas) foram dados em 1802 pelo alemão G. F.
Grotefend, que identificou os nomes de Dario, Histaspes e Xerxes,
e 9 dos 39 sinais. Daí em diante a escrita continuou a ser estudada
intensamente por vários orientalistas, entre os quais se destacou o
inglês Edward Hincks (1792-1866).
A egiptologia moderna foi fundada pelo sábio francês J.
F. Champollion (1790-1832), que em 1822 conseguiu decifrar a

(47) . — As sete maravilhas do mundo na Antigüidade eram: a estátua de Zeus, feita


por Fídias (século V a. C.), em Olímpia; os jardins suspensos em Babilôni a ,
que teriam sido feitos por ordem da rainha lendária Semíramis; o Mausoleu
(túmulo do rei Mausolo), em Halicarnasso, erguido no século IV a. C.; o co-
lôsso de Rodes, representando Apolo; o templo de Diana em Éfeso; as pirâmi-
des no Egito; o Farol de Alexandria (século III a. C.). Cf. Antipatros, Antho-
logia Palatina, IX 58. — Ós autores antigos não concordam, porém, na identi-
ficação das sete maravilhas.
— C. Julius Solinus (século III d. C.), Collectanea Rerum Memorabilium, XL.
— O vaso de François é uma obra-prima d'a cerymica ética (século VI a. C.), fa-
(49) . O vaso de François é uma obra-prima da cerâmica ética (século VI a. C.), fa-
bricada por Ergotimo e pintada por Clítias; o vaso de Portland é de vidro es-
curo, enfeitado de relêvo em branco (século IV-III a. C.) e foi descoberto
em 1590 em Sidon.
— Há pouco foi decifrada também a escrita minóica (pelo jovem inglês M. Ven-
tris), descoberta essa que promete revolucionar os nossos conhecimentos da
história primitiva da Grécia. O autor dêste livro ainda não dispõe, neste mo-
mento, dos dados necessários para poder resumir os resultados da nova desco-
berta.
— Até os egípcios empregavam os cuneiformes durante o reinado de alguns faraós
(século XIV a. C.); em 1886-1887 foi descoberto, em Tell-Amaina, o arquivo
dos reis egípcios Amenofis III e IV, contendo 350 textos, na maioria notas di-
plomáticas, mandadas a reis independentes e vassalos da Asia-Menor. As cartas
ilustram bem as relações intensas entre os diversos povos do Próximo Oriente.
(52) — Cf. $ 57 IV e.
— 458 —

•chamada pedra de Roseta, descoberta em 1799 por ocasião de uma


expedição militar de Napoleão no Egito (53) . A pedra trazia o
mesmo texto em, três caracteres diferentes e três idiomas corres-
pondentes: um em hieróglifos (egípcio arcaico), outro em carac-
teres demóticos (egípcio falado do século VII a. C.-século II d. C.),
e o terceiro em letras gregas (texto grego) .
A investigação minuciosa das bibliotecas vê-se, de vez
em quando, recompensada com descobertas surpreendentes. No sé-
culo passado foi um dos mais felizes descobridores de manuscritos
o cardeal Ângelo Mai (54), no século atual o beneditino D. Ger-
main Morin (55) . Quanto à história do Brasil, mencionamos aqui
as descobertas do jesuíta Serafim Leite no Arquivo Vaticano, e a
Carta de Pero Vaz de Caminha, achada, nos fins do século XVIII,
pelo pesquisador Juan Batista Mufioz (56).
O que mais veio a enriquecer os nossos conhecimentos his-
tóricos da Antiguidade, foi o descobrimento de milhares de "papi-
ros", principalmente no Egito. O tamanho dos papiros descobertos
varia muito: na maioria são apenas exíguos pedaços de material
escrito; encontram-se também fragmentos de livros e até obras qua-
se completas, "volumes" no sentido antigo da palavra (57), um
dos quais tem 40 m de comprimento (58) . Só um acaso feliz re-
velou a subsistência dos papiros antigos. No século passado viam
os inglêses que os felás egípcios estavam em busca de "papel" an-
tigo para fins de adubação. Quando verificaram que êsse material
guardava textos da Antigüidade, começaram a comprá-lo, e não tar-
dou que êles próprios tratassem de escavá-lo no deserto, princi-
palmente perto da antiga aldeia grega Oxyrhynchos no Faium, on,
de a areia extremamente sêca do solo conservara os textos muitas
vêzes perfeitamente legíveis. Também foram sendo utilizados pela
ciência os papiros escritos, que em várias camadas, umas grudadas
em cima de outras, eram empregados pelos pobres como envoltó-
rios das múmias, à guisa de sarcófagos. Assim foram achados cestos
cheioS de textos interessantes: notas, cartas particulares, atas, con-
tratos, registros, decretos, contas, anotações, rascunhos, etc., que
abrangem um período de quatro milênios e dão textos em todos os
idiomas falados no Egito desde os tempos dos faraós até a invasão

(53). —, A pec.ra, que data do ano 196 a. C., quando um dos Ptolomeus reinava no
Egito, acha-se atualmente no British Museum em Londres.
. Angelo Mai (1782-1854) descobriu, por exemplo, grande parte do tratado de
Cícero De Republica, e as cartas de Frontão, o mestre e amigo do Imperador
Marco Aurélio (século II) .
. — D. Germain Morim O. S. B. (1861-1947) descobriu muitos sermões de San-
to Agostinho e de outros Padres da Igreja (Cesário de Arles) .
. — A "certidão Cie batismo do Brasil" foi publicada, pela primeira vez, em 1817,
pelo Pe. Manuel Aires de Casal na sua Corografia Brasílica.
. — Cf. 57 III a.
. — São as contas do faraó Ramsés III (1200 a. C.), bote no British Museum.
— 459 —

•zlos árabes no século VII d. C. Os papiros ilustram sobretudo a épo-


ca helenística e romana do Egito antigamente pouco conhecida, e
refletem fielmente não só a administração e a vida econômica do
país, mas nos permitem também uma, vista direta da vida cotidia-
na. Além disso, foram descobertas algumas obras literárias e his-
tóricas da literatura grega (59) . Fora do Egito as descobertas fo-
ram menos importantes (60) .
Nasceu assim a papirologia, nova ciência auxiliar da história,
na qual se destacaram principalmente os inglêses Flinders Petrie,
'Grenfell, Hunt e Kenyon, e o alemão Ulrich Wilcken. As coleções
mais importantes de papiros antigos acham-se atualmente em Vie-
na, Londres, Berlim e Cairo.

§ 42. A procura organizada.

São quatro as circunstâncias que facilitam a procura dos vá-


rios documentos escritos: a publicação, a centralização, a catalo-
gação, e a livre consulta.
I. Na Antigüidade já havia editôres de livros, nos grandes
centros culturais: Atenas, Alexandria e Roma, mas as tiragens eram
relativamente pequenas porque a multiplicação dos textos se fa-
zia à mão. Na Idade Média eram os monges que copiavam os
não, porém, para fins comerciais, mas para uso próprio. Logo
depois da invenção da tipografia, nos meados do século XV, come-
çaram a ser publicados os textos históricos pela imprensa (61) . Ini-
cialmente foram editados textos avulsos, mas desde o século XVII
sairam também edições seriadas. Não podemos dar aqui nem se-
quer um resumo das mais importantes publicações históricas: são
numerosíssimas e todos os anos cresce-lhes consideravelmente o nú-
mero. Para nossos fins basta mencionar algumas obras seriadas que
fizeram época no tempo da sua publicação e ainda hoje continuam
a ser fontes indispensáveis para o historiador (62).

. Para a história são importantes "A Constituição de Atenas" (De Republica


Atheniensitrm) Ge Aristóteles, e um fragmento extenso de certo historiador
ateniense (século IV a. C. ), a chamada Helênica Oxyrhynchia.
. Já em 1753 haviam sido descobertos em Herculanum (cidade na Itália, des-
truída em 79 d. C., junto com Pompéia, por uma erupção do Vesúvio) mais
de 1800 "volumes" e fragmentos de "volumes" papíreos, em grande parte
carbonizados, que continham as obras no filósofo epicurista Filodemo (século
I a. C.), publicadas (duas vêzes) em 11 tomos (1763-1855, e 1862-1877) •
-(61). — Tipógrafos notáveis da primeira época eram (além do pioneiro J. G. Guten-
berg em Mogúncia, 1397-1468): Laurens Janszoon Koster em Haarlem (Ho-
landa), no século XV; Manutius Aldus em Veneza, Frobenius em Basiléia
e Plantino em Antuérpia, no século XVI; Elzevier em Amsterdão, no século
XVII.
--(62) — E. Bernheim (pp. 184-297, da edição espanhola) dá uma bibliografia abun-
dante, embora seja apenas uma parte exígua do total nas publicações. Pode-
se consultar também, com muito proveito, o livro de W. Bauer (cf. S 34
IV, nota 7).
460

Ocupam um lugar de destaque os Acta Sanctorum, uma co-


leção imponente das vidas de todos os santos, que segue a ordem
do calendário. Foi começada no século XVII pelos jesuítas belgas
e ainda não está acabada (63). Os beneditinos franceses de St.-
Maur editaram no século XVIII, por exemplo, a importante coleção
Gallia Christiana em 13 volumes (1715-1783). Uma das maiores
coleções existentes é a Patrologiae Cursus Completus, editado pelo
abade francês J.-P. Migne (1800-1875) em 382 volumes, que abran-
ge tôdas as obras então conhecidas dos Padres da Igreja (64).
Modelar para todos os outros países foi a edição, feita pelos
alemães, dos Monumenta Germaniae Historica: essa série, verda-
deiramente monumental, divide-se em cinco seções, e dá um do-
cumentação inigualada da história dos povos germânicos de 500 a
1500 d. C. (65) . Inspirou aos portuguêses a publicação dos Portu-
galiae Monumenta Historica que, quando acabados, devem abran-
ger os séculos VIII a XV (66). No século passado começaram to-
dos os países europeus e americanos a editar as fontes referentes à
história nacional: os interessados encontrarão essas publicações em
obras especializadas. Além disso foram editados corpora de textos
gregos, latinos (67), bizantinos (68), semíticos, orientais, etc.

. Os Acta Sanctorum inauguraram, junto com as publicações filológicas dos.


maurinos (cf. 47 I), a época da filologia metódica e crítica nos tempos
modernos. A coleção foi planejada pelo jesuíta flamengo Heriberto Rosweyde
(1569-1629), e ficou com bases mais amplas sob a direção de Jen van Hol-
land, S. J. (1596-1665) . Célebres bolandistas foram, no século XVII: G.
Henschen (1601-1681) e Daniel van Papenbroek ou Papenbrochius ( 1628--
1714 ) ; nos séculos XIX-XX : C. Oe Smedt (1833-1911) e H. Delehaye
1851-1941) . A crítica arrojada dos bolandistas a lendas e tradições até en-
tão aceitas sem ressalvas pelos católicos, pô-los em conflito com várias or-
dens religiosas (por exemplo com os beneditinos e os carmelitas) e até com
a Inquisição. Em 1770 saiu Volume III de outubro; três anos depois, o Papa.
Clemente XIV suprimiu a Companhia. A publicação dos Acta . S anctorum
continuou até 1794, e foi reencetada só em 1847 (Volume VII de outubro) .
Até agora foram publicados, ao total, 65 fólios (1932: Volume III c:e no-
vembro) . A sede atual é em Bruxelas. Desde 1882 os bolandistas editam
uma revista: Analecta Bollandiana, e outras publicações periódicas de suma
importância para a historiografia.
. — Migne editou textos já anteriormente editados, alguns bons (por exemplo o
de Santo Agostinho), outros regulares, outros ainda maus ou péssimos. Os.
Paures latinos abrangem 221 volumes, os gregos 161. — Além disso, editou
81 volumes dos Padres gregos só em tradução latina. — Uma nova edição
modelar dos Padres latinos está sendo feita em Viena: Corpos Scriptorurn.
Ecclesiasticorum Latinorum (abreviado: CSEL)
. — A série foi projetada por C. Von Stein em 1819. — Redatores foram e. o.
G. H. Pertz (até 1875), G. Waitz (1875-1886), W. Wattenbach (1886-1888)
e O. Holder-Egger (1902-1905), todos excelentes filólogos.
. — Publicaoos, desde 1867, pela Academia Real das Ciências de Lisboa. A obra ,
divide-se em quatro seções: Leges et Consuetudines, Scriptores, Diplomatia
et Chartae, e Inquisitiones.
. — As coleções mais importantes dos autores clássicos foram editadas pela Bi-
bliotheca Teubneriana em Lípsia (a mais completa, mas destruída na última
guerra), pela Bibliotheca Oxoniensis em Oxford, pela Association Guillatime
Budé (:"Les Belles Lettres") em Paris, geralmente com a tradução francesa,
e pela Loeb Classico] Library, sempre com tradução inglêsa, em Londres-Carn-
brioge, Mass .
— Já no século XVII foram publicados em Paris, sob a orientação do grande
filólogo Ducange, os Scriptores Historiae Byzantinae (1648-1711); no século
XIX, devido a urna iniciativa de B. G. Niebuhr, Corpus Scriptorum Historiae.
Byzantinae em 50 volumes (1828-1897) .
— 461 —

II. A centralização é outro fator importante pãra a' utiliza-


ão dos documentos históricos. Em geral, pode-se dizer que do-
cumentos dispersos devem ser considerados muitas vêzes como pra-
ticamente perdidos. São chamadas bibliotecas as coleções de livros
impressos e manuscritos antigos; o têrmo arquivo é geralmente re-
servado para designar o lugar onde se guardam outros documentos
escritos.

Os municípios, as províncias, os Estados, os depattamen-


tos, as dioceses, as paróquias, os institutos culturais e científicos, as
emprêsas econômicas, etc. fazem geralmente questão de manter
um arquivo. Muitas vêzes conservam não só documentos públicos,
mas também particulares de alguma importância histórica. Outros=
sim há vários arquivos particulares, os quais, com o tempo, tendem
a tornar-se públicos, oferecendo êsse método melhores garantias
para a conservação e a livre consulta: O arquivo mais antigo e rico
do mundo inteiro é o do Vaticano, que permite acompanharmos a
história do papado desde o pontificado do papa Inocêncio III (1198-
1216), o reorganizador da chancelaria papal. O documento mais an-
tigo da coleção é a chamada Donatio Othonis do ano 962 (69) O
arquivo sofreu perdas lastimáveis por ocasião da mudança para
Avinhão em 1339 (70), e quando Napoleão o fêz transportar para
Paris em 1810. Em 1879 o Papa Leãò XIII franqueou a sua en-
trada a pesquisadores, o que deu origem â fundação de vários Ins--
titutos Históricos em Roma, mantidos por diversas nações. O ar-
quivo conta 5.600 volumes de bulaS e breves medievais, 8.000 vo-
lumes de requerimentos, e 1.000 livros de contas. Para os tempos
modernos são muito importantes as numerosas notícias das nuncia-
turas apostólicas, A medida, tomada por Leão XIII, possibilitou o
estudo documentário de várias questões históricas que antigamente
eram tratadas muito por cima, devido aos conhecimentos falhos
das fontes; possibilitou também a composição da obra magistral de
L. Von Pastor (1854-1928) sôbre a história dos papas (71).

Se fazemos abstração da biblioteca do faraó Ramses II,


que conhecemos só indiretamente (72), a primeira biblioteca, de
que temos conhecimentos seguros, é a do rei assírio Assurbanipal

( 69). Nesta Donatio o Imperador Otão II confirmava as doações, feitas pelos caro-
I íngios aos papas. A primeira é de Pepino-o-Breve ( 756 ), em que cedia
ao papa 21 cidaC.es na Itália.
('O) — Só em 1784 concluiu-se a remessa dos documentos de Avinhão para Roma.
( 71 ) . — A História dos Papas de L. Von Pastor, abrange o período dos fins da Ida-
de Média ( Martinho V, 1417-1431) aos inícios da história contemporânea
(Pio VI, 17754799 ) . A Obra inteira tompõese ,4e 26 volumes ( 18864933 ) •
( 72 ) . — Cf. Diodorus Siculus, Bibliotheca, I 49, 53. Esta biblioteca continha apenas
livros teológicos e místicos.
- 46 2'.

(668-626 a. C.) em Nínive. Consiste de mais de 20.000 "livros"


em forma de tijolos de barro cosido com escrita cuneiforme. Foi
descoberta em 1849 pelo inglês Sir Austen Henry Layard, e acha-
se atualmente no British Museum em Londres. Na antiga Grécia
foi Pisístrato, o tirano de Atenas (559-529) o primeiro a fundar
uma biblioteca pública. Na época clássica do povo grego eram ra-
ros os donos de uma biblioteca particular: a tradição diz que o
dramaturgo Eurípides (480-405), o filósofo Aristóteles e seu alu-
no Teofrasto (372-287) possuiam coleções importantes. Só o He-
lenismo criou bibliotecas públicas com fins científicos, comparáveis
aos institutos modernos. As mais notáveis eram a de Alexandria
no Egito (73) e a de Pérgamo na Ásia-Menor (74) . Em Roma
havia, desde o século I a. C., grandes bibliotecas particulares, por
exemplo a de Catão de titica e a de Luculo, muitas vêzes providas
de livros pelas bibliotecas despojadas da Grécia. A primeira biblio-
teca pública em Roma data da época do Imperador Augusto, e lo-
go depois foram aumentando, não só na capital como também nas
cidades das províncias. Perdeu-se quase tôda essa riqueza na época
da invasão dos bárbaros, não só por causa de numerosas destrui-
ções propositadas mas também por certo descuido e retrocesso da
cultura. Aos monges, principalmente aos beneditinos, cabe a gló-
ria de terem salvo muitos manuscritos: colecionavam-nos e copia-
vam-nos. O monge Cassiodoro foi um dos primeiros a fundar no
seu mosteiro Vivário, na Calábria, uma biblioteca de textos sagra-
dos e profanos, cujo conteúdo ainda hoje podemos reconstruir: além
disso, promoveu a transcrição de textos no trabalho monacal por
excelência. Dizia um adágio medieval: Claustrum sine armentario
est sicut castrum sine armamentario. As bibliotecas mais impor-
tantes da Idade Média eram as dos mosteiros Bobbio e Monte Cas-
sino (na Itália), Jarrow e Canterbury (na Inglaterra), São Gall
(na Suíça), Fulda (na Alemanha), Corbie e Cluny (na França),

. Em Alexandria havia duas grandes bibliotecas, uma das quais estava incor-
porada no "Museu" (cf. 47 I) . O total dos livros teria sido de 700.000
"volumes". Quando urna das duas foi destruída, por ocasião das guerras de
César no Egito (47 a. C.), teria sido abastecida novamente pela biblioteca
de Pérgamo. Segundo outros autores, esta biblioteca teria mudado para Ro-
ma. — Não sabemos ao certo qual foi o fim definitivo das bibliotecas ale-
xandrinas. Uns julgam que foi em 273 4. C. (revolta dos egípcios contra o
Imperador Aureliano), outros acreditam numa decadência demorada e gra-
dativa, outros ainda dão crédito à lenda de que teriam si(, usados os livros
para aquecer o banho (.e Ornar II, quando êste calif aem 643 tomara a ci-
dade, dizendo: "Se êstes livros divergem do Alcorão, são nocivos; se com
êle concordam, são supérfluos".
. — A biblioteca de Pérgamo, fundada pelos atélidas, uma dinastia helenística,
contava ±200.000 volumes. — Outra biblioteca importante era a de Antio-
quia na Síria.
-- 463 ---

Alcobaça (em Portugal); no Oriente as do monte Atos (75) e do ,


monte Sinai (76).
No início do absolutismo foram os príncipes que criaram as
grandes bibliotecas, cujo desenvolvimento era favorecido pela in-
venção da tipografia. O Papa Nicolau V (1447-1455) foi o fun-
dador da Biblioteca Vaticana . A Bibliothèque Nationale de Paris,
que deve a sua origem a uma iniciativa do rei Luís XII (1498-
1515), tornou-se a primeira biblioteca pública dos tempos moder-
nos com o ministro Mazarino (1639-1662). Igualmente fundaram
bibliotecas os príncipes da Alemanha, Itália, Espanha, Portugal, Ho-
landa, e Inglaterra: ao lado dessas coleções surgiram as bibliotecas
universitárias de Paris, Oxford, Bolonha, Louvaina, Leida, Coimbra,.
Salamanca, etc.
Desde a Revolução francesa manifestou-se cada vez mais a
tendência de centralizar as coleções de livros e manuscritos: além
de doações voluntárias, houve numerosas confiscações. Napoleão
cogitou em reunir em Paris todos os documentos importantes e tô-
das as obras-primas de arte, e lançou mão do conteúdo precioso do
Vaticano. Depois da batalha de Waterloo (1815), as diversas na-
ções européias e americanas fundaram as suas bibliotecas: a da ca-
pital di Brasil já existia em 1810.
Algumas bibliotecas importantes dos tempos modernos são:
a Bibliothèque Nationale de Paris, que possui :L- 5.000.000 de li-
vros impressos, fora mapas, revistas, periódicos, etc., e 130.000
manuscritos, 4.000.000 gravuras e 400.000 medalhas (77). A bi-
blioteca do British Museum em Londres, que possui ± - 5.000.000
livros impressos e 75.000 manuscritos, além de uma riquíssima co-
leção de documentos variados relativos à história do Oriente. A
Biblioteca Vaticana, que possui 700.000 livros, 6.000 incunábulos
e 53.000 manuscritos. A Biblioteca Nacional de Viena, que possui
1.350.000 livros, inclusive 9.000 incunábulos, e 35.000 manuscritos
e uma coleção de 100.000 papiros. A Library of CongreSs em Wa-
shington, que possui ±9.000.000 livros. A Biblioteca Pública de
Leningrado, que possui 10.000.000 livros e 46.000 manuscritos. A
Biblioteca Ambrosiana em Milão, que possui 500.000 livros, 3.000

• — O Monte Atos, a "república dos monges", já desde os séculos IV-V habitado


por eremitas, era desGe o século X um dos grandes centros religiosos da Igreja
Oriental. Devido à retirada dos monges russos, desde o regime bolchevista,
tem baixado considerávelmente o número Ge habitantes (atualmente, 2.000 a
2.500) . Os diversos mosteiros do Monte Atos possuem uns 10.000 manus-
critos e milhares de do-...umentos, dos quais foram vendidos ou cedidos nume-
rosos exemplares importantes a bibliotecas estrangeiras.
— No mosteiro "Santa Catarina" do Monte Sinai achava-se, até 1859, um có-
dice grego Ga Bíblia (século IV): a obra foi-lhe comprada pelo filólogo C.
Von Tischendorff, depois adquirida pela Biblioteca Nacional de Leningrado,
e afinal vendida, em 1933, ao British Museum em Londres.
. — Devemos êstes e os outros dados à Encyclopaedia Britannica, Vol. XIV (1953)
— 464 —

incunábulos e 10.000 manuscritos. As bibliotecas da Alemanha são


menos centralizadas, e várias delas sofreram perdas consideráveis
na última guerra mundial. A Biblioteca Pública de Berlim, uma
das muitas existentes na antiga capital da Alemanha, tinha 2.850.000
livros, 68.500 manuscritos, 300.000 mapas e 6.500 incunábulos.
Finalizando mencionamos a Biblioteca Estadual de Munique, que
possuía 2.000.000 de livros, 50.000 manuscritos e 16.000 incuná-
bulos.
Para podermos utilizar os livros de uma biblioteca sem
perda de tempo, torna-se necessário um catálogo. Há diversas
maneiras de catalogar livros: conforme os autores (é o catálogo
alfabético), ou conforme os assuntos (é o sistemático), ou confor-
me o lugar que os livros ocupam na estante da biblioteca. Os três
métodos admitem várias aplicações na prática, e não raro são
combinados. Vai-se abandonando cada vez mais o sistema de pu-
blicar os catálogos em forma de livros, preferindo-se fichas, que
facilitam a catalogação de novas aquisições. A classificação deci-
mal, inventada pelo americano Melvil Dewey (1851-1931) e ado-
tada, com ligeiras modificações, pelo Institut International de Bi-
bliographie em Bruxelas, está ganhando terreno em tôdas os gran-
des bibliotecas do mundo, apesar da oposição que lhe fazem prin-
cipalmente os alemães. No sistema de Dewey dividem-se as dis-
ciplinas em dez grupos, cada um dos quais é indicado por um
algarismo especial: 0=Enciclopédias, Bibliografia, Catálogos, etc.;
1=Filosofia; 2=Teologia; 3=Ciências Sociais e Direito; 4=Filo-
logia; 5=Ciências Matemáticas e Físicas; 6=Ciências Aplicadas;
7=Belas Artes; 8=Literatura; 9=História e Geografia. Cada um
dêsses grupos pode ser subdividido, acrescentando-se-lhe uma deci-
mal, por exemplo 6=Ciências Aplicadas; 66=Tecnologia química;
669=Metalurgia, etc. O sistema de Dewey pode ser acomodado
às exigências de uma biblioteca especializada: mas não podemos
entrar na exposição dêsses problemas técnicos.
E' geralmente livre e franca a consulta dos livros nas
grandes bibliotecas. Quanto à consulta de documentos preciosos,
exigem-se certas garantias. Muitas bibliotecas remetem livros e ma-
nuscritos a outras cidades e até a outros países. Hoje em dia fa-
zem-se fotocópias dos importantes documentos históricos (micro-
filmes): assim se evitam as despesas de longas viagens e o risco de
se perder ou de se estragar o manuscrito. Nos Estados Unidos, as
grandes bibliotecas fazem questão de possuir microfilmes dos gran-
des documentos básicos do passado.
CAPÍTULO TERCEIRO

Á CRITICA HISTÓRICA.
§ 43. Crítica externa e crítica interna.

Até agora o historiador era "investigador", à procura de 'do-


cumentos históricos; daqui em diante precisa ser juiz para lhés
,

estabelecer o valor objetivo. Pois os documentos são como teste-


munhas 'que devem ser interrogadas criteriosamente. 'Assim como
uin juiz exige de uma testemunha a carteira dé identidade antes
de ouVí4a, assim ó histdriador pede ao documento a prova de au-
tenticidade para ver se podè servir de testemunha. E' a Crítica
Externa. No segundo ato do exame passa a julgar a veracidade da
testemunha: é a Crítica Interna. Assim como um juiz aceita com
a devida reserva o depoimento de uiva tésternunha pessoalmente
interessada neste ou naquele êxito do litígio, ou a declaração de
uma pessoa que possui apenas conhecimentos indiretos 'do caso, as-
sim procede o historiador: examina a competência e a sincerida-
de do documento.
Por outras palavras, a Crítica Histórica é o exame judiciosõ das
fontes, visto nem tudo o 'que nelas se encontra ser verdadeiro. E'
o 'método científico para separar nos documentos a verdade do
êrro e da mentira, a certeza do que é provável ou apenas possível.
I. Nos ckico parágrafos seguintes falaremos da Crítica Ex-
terna. Ela suscita numerosos problemas que podem ser reduzidos
a estas três perguntas:
O documento chegou até nós no estado original?
Quem• foi o autor? Onde viveu? Quando escreveu? Em
que circunstâncias se ãéhava quando escrevia o documento?
O autor tinha conhecimentos diretos dos fatos que Co-
munica, 'ou os devia 'a outras fóntes? Nesta hipótese: quais são?
II. Nos §§ 49-50 'pretendemos expor as linhas gerais da
'Crítica Interna.
A. A CRÍTICA EXTERNA.

§ 44. A crítica 'de restauração.


A primeira pergunta a fazer diante de um texto escrito é:
.êste texto é o original ou uma cópia? Por enquanto fiada nos im-
— 466 —

porta saber se o documento é uma falsificação. Pois também os,


-

textos apócrifos podem ter interêsse para o historiador e, chegando


a ser examinados, são submetidos às mesmas regras da Crítica de
Restauração que os documentos autênticos.
O Texto é o Original.
O texto que temos em mãos é original (1), fato êsse que é
provado pela letra ou pela assinatura do documento, ou então.
pelo depoimento de outras testemunhas, independentes de nosso
texto.
Neste caso não precisamos, — nem sequer podemos, — apli-
car a Crítica de Restauração; basta copiarmos fielmente o texto
do documento, tarefa mais difícil do que se pensa em geral, so-
bretudo quando tem certa extensão. Podemos permitir-nos algu-
mas modificações, devidamente explicadas e justificadas no Pre-
fácio, no que diz respeito à ortografia e à pontuação (2) . Em
alguns casos pode ser útil e até instrutivo copiar exatamente os
erros ortográficos e outras incorreções para salientar a ignorância
do autor (3) . Podemos grifar as palavras que julgamos terem im-
portância essencial, mas não sem o aviso especial: grifo do editor.
Quanto ao resto, devemos seguir as regras gerais, que havemos de
expor no § 47.
O Texto é uma Cópia.
Muitos textos medievais e quase todos os textos da Antigüi-
dade (4) chegaram até nós por intermédio de cópias. Ora, todo
mundo sabe que numa cópia podem entrar numerosos erros: para
quem já revisou provas tipográficas ou conferiu os ditados feitos
por diversos alunos da mesma turma, não é preciso insistirmos só-
bre êsse ponto. A reprodução mecânica dos textos, possibilitada
pela fotografia, é o único processo de excluir tais erros; a tipografia,
a não ser que se faça uma revisão escrupulosa, pode multiplicá-los.
Nem a fotografia nem a tipografia existiam na Antigüidade ou na
Idade Média: os textos tinham de ser transcritos à mão, processo
(1). — Pode ser autógrafo, quando foi escrito pelo próprio punho do autor, ou um
texto, escrito por outrem, mas autenticado pela assinatura do autor.
. — Por exemplo, as abreviaturas do documento podem ser escritas por extenso na
cópia; a ortografia pode ser normalizada ou atualizada o emprêgo Lp
maiúsculas, vírgulas, pontos, sinais de exclamação, etc., pode ser harmonizado
com a praxe atual.
. — Neste caso costuma-se pôr na edição a palavra latina sic (="assim"), entre
parênteses, e muitas vêzes com sinal de exclamação. Ao encontrar-se no ori-
ginal a ortografia bizarra "hyppodromo", pode-se usar êste sic, como também
ao topar-se numa palavra ou expressão incompreensível para o autor. Assim
fêz A. Herculano (História de Portugal, 8a. ed., II p. 269) ao transcrever
as palavras latinas sem c:úvida deturpadas: undelafricentur.
. — Feita abstração dos textos, geralmente não literários, que nos foram transmi-
tidos por inscrições e papiros, os mais antigos documentos literários datam
dos séculos III e IV d. C. (livros bíblicos, Homero, Virgílio); aliás, são muito
escassos. A tradição manuscrita toma-se mais abundante a partir do século
IX d. C.
— 467 —

vagaroso e pouco seguro. Muitas vêzes os copistas eram pessoas


de relativamente pouca cultura ou trabalhavam em circunstâncias
pouco favoráveis (5); amiúde dispunham de um modêlo mau: a
cópia de uma cópia inferior, e assim por diante. Vamos examinar
e exemplificar alguns erros que podem entrar numa cópia.
Erros Materiais.
Ao transcrever um texto, o copista pode, por distração ou
por cansaço, trocar duas letras parecidas, por exemplo admonentur
e admoventur, cavo e caro. Pode omitir uma letra, por exemplo
ne e nec, ou um acento, por exemplo saía e saia. Pode pular uma
linha inteira por terminarem duas linhas em palavra igual ou se-
melhante (6). Pode separar erradamente duas palavras (7) . Po-
de omitir vírgulas, pontos, etc., ou pontuar erradamente (8) . Po-
de, por descuido, incorporar no texto uma nota marginal ou glosa
(9). Enfim, pode cometer todos os erros involuntários e quase
inevitáveis, dos quais alguns trazem consigo conseqüências bas-
tante graves. Na Antigüidade era muito comum ditar um texto
a vários escribas juntos, sobretudo para edições baratas: nesta hi-
pótese podiam entrar outros tipos de erros, devidos a uma falta
de atenção ou de compreensão, por exemplo hominibus por omini-
bus, expiar por espiar, etc.
Erros de Raciocínio.
Acontece muitas vêzes que um copista, não compreendendo
bem certa expressão ou palavra, chega a corrigi-la ou modificá-la,
interpretando-a errôneamente. Ora, nem tudo o que é incompre-
. — Os bibliófilos da Antigüidade tinham geralmente escravos especializados ert)
copiar manuscritos para uso particular; os livreiros, porém, eram menos es-
crupulosos e faziam copiar os textos por turmas de escravos, pouco instruídos,
que deviam trabalhar o mais econômicamente possível. Não havia direitos de
autoria. E' principalmente o poeta Marcial (43-104), autor famélico e
deixado entregue às manobras dos livreiros, que nos informa sabre as livra-
rias na Antigüidade (por exemplo Epigrammata I 117, 13; I 113, 5; IV
72, 2; XIII 3, 4) .
. — Por exemplo nesta frase, livre invenção do autor:
"Devemos imitar [os bons exemplos
e evitar os maus]; os bons exemplos
servem para edificar, dando-nos mais..."
— Um exemplo clássico encontra-se numa das cartas de Sêneca (Epistula ad
Lucilium 89, 4), onde o Codex Parisinut 8658 (século IX-X) lê: Philoso-
phia. . . ipso enim nomine fatetur. Quidam et sapientiam quidem ita defini-
erunt. . . O trecho deve ser lido assim: Philosophia. . . ipso enim nomine
profitetur quid amet. Sapientiam quidem ita definierunt. — A tradição
quer que devamos um dos versos mais felizes do poeta F. de Malherbe (1555-
1628) a um êrro do seu tipógrafo, que teria lido nas Stances à du Perrier:
"Et rose, elle a vécu ce que vivent les roses, L'espace d'un matin", em vez
de: "Et Rosette (era o nome da filha falecida) a vécu..."
. — A pontuação é um problema árduo para os editares das Sátiras de Horácio,
das comédias de Aristófanes, e até dos dramas de Shakespeare. Os antigos
códices e os primeiros livros impressos faziam pouco uso, ou então um uso
pouco coerente, da pontuação.
. Os antigos e os medievos punham freqüentemente "glosas" (notas explica-
tivas) na margem de uma falha, muitas vêzes introduzidas pelas palavras
id, est, scilicet, etc. — Também a divisão em capítulos, parágrafos e versí-
culos é quase sempre acréscimo posterior.
— 468 —

'ériSíVel para trin copista, é - iricompreensívél em 'si. Quando alguém


'eiiontra 'a :palavra "ecumênico" sem saber o que significa, pode
Ser tentado 'a 'tranáformá4a em "econômico". Essas álterações 'são
'freqüentes nos textos antigos: o copista substitui uma palavrá ''gre-
ga ou latina que não entende 'por uma palavra conhecida; "cortigé"
anacolutos; "completa" frases (10); interpreta mal certa abrevia-
tura (11); relaciona erradamente uma palavra com outra (12),
etc., etc.
c) Modificaçõeá VOluntárias.
Além dessas duas categorias de alterações, existe outra, mais
grave ainda e não menos difícil de verificar: o copista altera cons-
cientemente o texto do original de boa ou má fé. Pode suprimir
uma palavra ou um passo que não concorda com as suas convicções;
pode mitigar uma expressão ou torná-la mais forte; pode dar até um
excerto ou extrato do documento original sem avisar devidamente •o
leitor (13) . Por outro lado, muitos textos são interpolados, quer di-
-zer, foram-lhes acrescentados elementos alheioS <ao originàl. As
interpolações podem 'ser insignificantes, tratando-se de palavras in-
tercaladas para 'esclarecer (bem ou mal) o pensamento, mas chegaM
a deturpar o tekto original, acrescendo-lhe novos episódios (14) ou
idéias (15) . Afinal, muitos textos, principrilmente crônicas, foram
continuados por outras pessoas sem que estas tivessem o cuidado
de marcar as fronteiras entre o texto original e a continuação (16) .
1-1á méis Cópias.
De muitos 'textos antigos e medievais possuimos mais de uma
cópia, e as diversas reproduções apresentam sempre diferençá •mais
'ou 'menos numerosas •e consideráveis. A circunstância de 'dispormos
de vários manuscritos "é lima vantagem, visto qué'muitas vêzes o

— O Evangelho de São Lucas (11, 2) omite as palavras do 'Padre;Nosso que se


encontram em São Mateus (6, 10): "Seja "feita a Vossa vontade assim 'na
terra como no céu". -Vários copistas intercalaratil essa frase, nos códices gregos
e latinos.
— Por exemplo a abreviatura latina B. M. pode Significar: Beata Maria, ou
Bonaé Memóriae, ou Beatos Martyr.
— Por 'exemplo o versículo muito discutido no Gênesis . (3, .15): Ipse (ou,
Ipsa) 'coriterêt "c-aput tutint — A lição certa, conforme o original em he-
,braiéo, é ipse; tainbéM a versão grega dá -a forma masculina ("autós"). O
tracutor latino (já anterior a 'São Jérônimo), ou então um copista, não sa-
bendo "a que 'palavra se referia a fornia "masculina ipse (a palavra semen é
neutra em latiM), substituiu-a por 'ipso. Existem, aliás, também outras opi-
niões a respeito desta passagem.
— Um exemplo 'bem conhecido de nim tal abreviai:lar -é CassiOdoro, 'que nos dei-
xou vários resumos de obras. graniatiéais e de tratados sôbre as artes libe-
rais (por 'exemplo no livro 'II das Inatitidienei), muitas vêzes sem mencio-
nar as suas fontes. O 'próprio autor foi Vítima dessa praxe, cf. & 4 IV a.
— E' êste o caso c:e vários episódios e -entlinetações -nas 'obras de Homero e
- Hesíodo.
— Por exemplo o chamado "domina Jóliantiétim, um versículo da Vulgata latina
(João, -Epísitila, 5, 7), guie talsre-z Seja de origem 'espanhola (século III).
— Por exemplo as crônicas medievais, ef.
— 469. —

texto de um códice corrige ou, completa o de outro; mas, sendo mui- ,

to divergentes as, cópias, dificulta-se a restauração do texto e exi-


gem-se métodos especiais para a restituição do original, a, qual mui- ,
tas vêzes terá apenas valor aproximativo. Antes de iniciar a Crítica
de Restauração, o pesquisador estudará a origem e a história de
cada um dos manuscritos, procurando estabelecer entre êles as in-
terrelações. Possibilitam-lhe êsse exame as anotações eventualmen-
te encontradas nos códices, notícias bibliográficas fora dos códices,
e afinal, indícios paleográficos (17). Não basta estabelecer qual ,
dos diversos manuscritos é o mais antigo: pois um códice do século
X pode ser muito inferior a um do século XII por ter êste utilizado
um exemplar melhor do que aquêle (recentiorps nora sunt deterio-
res). Ora, a filologia procura indagar os graus de parentesco entre
os diversos códices (18), partindo dêste argumento: "Tôdas as có-
pias que contêm, nos mesmos lugares, os mesmos erros ou foram ti-
radas umas das outras, ou tôdas de uma só, que continha tais erros.
Não é crível, realmente, que vários copistas hajam perpetrado, ao
reproduzir cada um por sua vez o arquétipo isento de defeitos, exa-
tamente os mesmos erros : a identidade de erros atesta uma origem
.

comum" (19) . A' êsse critério devemos acrescentar a identidade de


lacunas, quer dizer, de omissões, muitas vêzes originadas pelo esta-
do ilegível de certo passo ou pela falta de urna ou mais fôlhas no
exemplar que o copista tinha à sua disposição. O pesquisador pro-
cura a fonte original• dêsses erros .e dessas lacunas comuns, e se
conseguir descobri-la, poderá eliminar sossegadamente todos os
exemplares derivados dela. Não conseguindo descobri-la, esforçar-se-
á por agrupar os manuscritos que apresentem o maior número de
particularidades em comum. Depois classifica-os em "famílias", cada
uma das quais representa a mesma tradição com maior ou menor
fidelidade. Para a restauração do texto possuem importância ape-
nas aquelas cópias que deram origem a certa categoria de particula-
ridades, vindo a- ser consultadas- as- derivadas só em casos duvidosos.
Procedendo assim, o filólogo é geralmente capaz de dar a árvore
genealógica dos códices, o chamado stemma codicum (20), a mos-
trar-nos as interrelações que existem entre as diversas "famílias" dos
códices, e. a respectiva importância de cada uma delas.

(17,).. — Cf, S 57, IV-V.


(18). — Foi, o filólogo alemão Ç. Lachmann (1793-1851), conhecifo editor de textos
clássicos (Lucrécio!) e bíblicos, o primeiro a formular essas regras` e a apli-
cá-las severamente (talvez um pouco mecânicamente) à restauração_ dos do-
cumentos. Distinguia entre recensio (a descrição, crítica da história Oos menus,.
critos) e a emendado (a, revisão metódica do texto) .
(»), — Langlois-Seignobos, Introdução, p. 57 (trad. portuguêse) .
(20),., — Stemma, palavra , grega, quer cizer: "fita, tira_ . Os romanos, empregavam a
palavra, para indicar as 'fites" que ligavam entre si as imagens dos seus an-
tepassados (no atrium), deixando ver assim a linhagem de uma fainília.
-470—

O exemplo que damos aqui, refere-se aos manuscritos existen-


tes no Livro Idas Institutiones (21) de Cassiodoro, cujo original, o
"arquétipo", se perdeu (22) .
Archetypus

B 1 recentiores
H

CX G
U FV K recentiores
B é um códice, escrito na segunda metade do século VIII na
Itália do Sul, que depois passou para a Alemanha (atualmente em
Bambergo) e deu origem ao códice U (século XII), atualmente no
Vaticano. O códice M (século X, atualmente em Paris) deve ter
sido composto igualmente na Itália do Sul, e apesar de se aproxi-
mar em alguns pontos do texto BU, representa uma tradição não
diretamente dependente dêle. Duas fontes, O e E, hoje perdidas,
podem ser reconstruídas mediante a confrontação de três manuscri-
tos delas derivados: F (século IX, escrito em França, atualmente em
Florença), V(século IX, escrito em França, atualmente em Valen-
ciennes), e K (séculos IX-X, escrito no mosteiro de S. Gall) le-
vam-nos ao conhecimento de fonte O; Q (século XI, escrito na Ba-
viera, atualmente no Vaticano), C (século IX, escrito em Fulda,
atualmente em Cassel), X (século X, escrito na Baviera atualmen-
te em Wurzburgo), e G (século X, escrito na Alemanha, atualmen-
te em Wolfenbüttel) levam-nos ao conhecimento de E. Por causa
de certos indícios, que não podemos expor aqui, é muito provável
que as duas fontes, e e remontem a uma fonte comum, igualmen-
te perdida e acima indicada pela letra grega A. Afinal, possuimos
vários manuscritos de data mais recente (codices recentiores), que
devem sua origem a duas fontes diferentes: 4) (perdida) e H (sé-
culo IX, atualmente em Hereford, Inglaterra, e muito provavel-
mente uma cópia de um exemplar irlandês) . Essas duas tradições
nasceram na França meridional e nas Ilhas Britânicas.
IV. A Restauração do Texto.
Uma vez feita a árvore genealógica dos vários manuscritos
sobreviventes (a recensio), torna-se mais fácil a restauração, se não
. — Neste livro Cassiodoro dá uma introdução metódica aos estudos bíblicos e pa-
trísticos, e trata das ciências auxiliares (as sete artes liberales).
. O sterrima foi feito por R. A. B. Mynors (Oxford, 1937, p. LVI t.'a ed. de
Cassiodori In s titutiones), e é reproduzido aqui com algumas ligeiras morá-
ficações. Por exemplo marcamos todos os códices "hipotéticos" com caracte-
res gregos, e os sobreviventes com maiúsculas latinas.
471 —

,do texto original, ao menos de um texto muito parecido com o ar-


'quétipo. Em nosso caso, serão importantes os códices: B e M (U
•é uma cópia de B); a seguir: F. V e K (visto que se perdeu e); de-
pois: Q. C, X e G (visto que se perdeu E); e, afinal: H. O valor
dessas cópias não é igual, e o filólogo tem a tarefa de estabelecer-
lhes os diversos graus de importância (23). Eliminadas as cópias
secundárias, às quais recorre apenas em casos excepcionais, pode
agora reconstruir o texto (a emendaria).
Neste trabalho deixa de lado os erros ortográficos, os enganas
'evidentes de somenos importância, as arbitrariedades da pontuação
(24), que não influam na interpretação do texto. Depois vai "co-
lacionar" ou conferir minuciosamente os textos das diversas cópias,
que representam uma tradição indepedente. Quando concordam en-
tre si as várias "lições", geralmente não há dificuldade. Quando,
porém, os textos variam em pontos de alguma importância, tem que
tomar uma decisão, adotando esta ou aquela variante. Ora, ao to-
mar uma decisão, serve-se de critérios externos e internos. Crité-
rios externos são, por exemplo, o fato de estar relativamente perto
do arquétipo (no tempo e no espaço) certa cópia; o esmêro ou a
negligência com que se fêz uma cópia; o fato de se encontrarem ci-
tações do nosso texto em outros autores, cuja tradição manuscrita
foi diferente; "lições" de antigos livros impressos, que utilizaram có-
dices já não existentes (25), etc. Critérios internos são, por exemplo,
a linguagem e o estilo em relação com os característicos da época
e do autor; a tendência geral do pensamento, confrontada com as
idéias do autor e da época em que viveu; a descrição de costumes,
instituições e lugares, que podemos verificar freqüentemente me-
diante outras fontes, etc. Tudo isso pressupõe profundos conheci-
mentos da paleografia, da língua, da cultura, da cronologia, etc. E,
apesar de todos os esforços feitos para resolver certos problemas, o
resultado da crítica textual é de vez em quando muito pobre e até
precário em alguns casos.
Quando todos os textos estão de acôrdo em apresentar-nos
um passo evidentemente corrupto ou uma palavra òbviamente er-
rada (as chamadas "corruptelas"), o filólogo recorre ao último
remédio, que é a emenda pessoal por meio de uma "conjetura"

. — Em nosso caso, a ordem de importância é B-M-0-

. — No Prefácio, o editor geralmente dá uma exposição do critério que segue


quanto à ortografia, pontuação, etc.
. — Os humanistas dos séculos XV e XVI (por exemplo Erasmo) destruíam mui-
tas vêzes os códices depois de os ter utilizado para as suas edições. Para
a restauração do texto de Horácio é muito importante a edição do humanista
flamengo Van Cruycke (Cruquius), que utilizava os célebres codices Blandinii,
destruír.os quando das lutas religiosas em Flandres (1566) .
— 472 —

. Os editôres de textos antigos e patrísticos, no século passa-


do, atribuíam geralmente valor demasiado à crítica conjetural, che-
gando a considerá-la como uma das tarefas principais do filólogo
. Desprezando muitas vêzes a autoridade dos manuscritos e
examinando-os quase exclusivamente pelas regras um tanto artifi-
ciais de uma gramática "oficial", desconhecida dos autores clássicos,
ou, — pior ainda, — pelas regras de uma estética pretensamente
clássica, "expurgavam" os textos, normalizando as "lições" difíceis
ou pouco usadas, e tirando-lhes elementos autênticos quando mal se
harmonizavam com as suas idéias. Vários fatôres contribuiram pa-
ra que se abandonasse êsse método subjetivo e se atribuisse mais
valor à tradição manuscrita . Os papiros, recentemente descobertos,
mostram que os textos antigos foram melhor transmitidos do que
se pensava nos meados do século XIX; a gramática "histórica", a
estudar as línguas em tôdas as fases da sua evolução e nas suas
formas dialetais, destronou a gramática "oficial", invenção dos hu-
manistas e dos seus epígonos; e afinal, evidenciou-se a verdade da
,

palavra horaciana: Quandoque bonus dormitat Homerus (28):


também os melhores entre os artistas antigos cometeram lapsos, ou
então, aderiam a princípios estéticos algo diferentes dos modernos. .

Esses e muitos outros fatores reabilitaram os manuscritos medievais.


V. Problemas da Crítica de Restauração.
A hipercrítica, aplicada pela escola filológica do século passa-
do à tradição manuscrita, "expurgava" os textos clássicos muitas
vêzes a tal ponto que condenava como interpolações numerosos tre-
chos, transmitidos pelos códices (29) . Examinemos agora dois
exemplos de "interpolações", a cujo respeito os entendidos ainda
,

não estão de acôrdo, embora se possa verificar uma tendência cada


vez mais forte para lhes admitir a autenticidade.
a) No drama de Sófocles (495-404 a. C.), intitulado "Antí-
gona", encontra-se uma passagem de 10 ou 16 versos (30), onde a
— Um só exemplo: Sêneca (Quaestiones Naturales IV A, Praef. 12) diz (se-
gundo alguns códices): semper enim falsis a vero petitur ventas, ou (segun-
do outro): ...a vero petitura veri ricas. O editor P. Oltramare (Paris, 1929)
rejeita essas e outras lições impossíveis dos manuscritos, e propõe à conjectura-
muito provável: Semper enim falsis a vero petitur auctoritas. — As vêzes uma
conjectura é confirmada pela "lição" de um códice depois descoberto. Assim
o humanista português Achilles Statius (fim do século XVI) emendou a
"lição" errônea do Codex Thuaneus: tono quiuore (do poema Pérvigilium
Veneris, v. 9), propondo: tunc cruore, lição essa que depois foi , confirmada.
pela descoberta do Codex Salmasianus.
— Alguns exemplos são: o alemão Lehrs, o dinamarquês Madvig, e o holandês .
Cobet, todos influenciados pelo grande filólogo inglês Richard Bentley (1662-
1742), que costumava dizer que para êle um texto compreensível tinha mais
autoridade do que uma centena de manuscritos. Eram filólogos muitíssimo.
inteligentes e eruditos, mas suas edições, por mais importantes que sejam para
a história da filologia, gozam hoje de uma reputação duvidosa.
. — Horatius, Ars Poetica, 359.
. — Por exemplo Lehrs que, como se diz, afugentava Horácio do próprio Ho-
rácio, tirando quase a terça parte dos versos transmitidos pelos códices (1834).
. — Sophocles, Antigone 904-920, ou 904-914. — O sentido dêste trecho é: "Se
ultrajado fôsse meu marido, não teria feito por êle o que fiz; mas agora.
que é meu irmão, tive que fazê-lo".
— 473 —

heroina, antes de ir para a morte, justifica o seu ato generoso de uma


maneira que nos parece um pouco prosaica . Goethe (31), por mo-
tivos estéticos, desejava que "um bom filólogo provasse não ser au-
têntica a. passagem", e com efeito, não faltaram filólogos que, va-
lendo-se de critérios internos, riscaram as palavras discutidas de
Antígoná, Their, wish was father to that. thought (32), e sendo
assim, era-lhes bastante fácil apontar incorreções gramaticais, falta
de lógida e outras deficiências no trecho. Mas, por outro lado, os
manuscritos nô-lo transmitem; ademais, já Aristóteles, que vivia
um século depois do dramaturgo, conhecia e citou algumas linhas
da passagem (33); encontramos idéias semelhantes em Heródoto,
que era amigo de Sófocles (34 . ); e finalmente, o estudo dos, epitá-
fios atenienses nos, ensina que o raciocino de Antígona, por mais
estranho que nos pareça a nós, os modernos, era encontradiço no
século V a. C. For êsses motivos aceita-se, hoje em dia, geralmente
a autenticidade da passagem.
b) Melhor conhecido é o caso do chamado Testimonium Fla-
vianum, um trecho referente à vida e à personalidade de Jesús, na
obra de Flávio Josefo (35) . O, passo reza assim:
"Naquele tempo vivia Jesús, um homem' sábio, se é
que é lícito chamá-lo homem. Pois fazia muitas coisas
milagrosas, sendo mestre de todos os que aceitam com
Loa vontade a verdade. E atraía muitas pessoas entre
os judeus e os gregos. Era o Cristo. E.quando o crucifi-
cara. Pilatos à instigação dos chefes do nosso povo, não
deixaram de amá-lo os que o haviam amado desde o co-
mêço. Pois apareceu-lhes no terceiro dia, revivificado
(ressuscitado), de acôrdo com as profecias que os divi-
nos profetas sôbre êle proferiram', juntatamente com nu-
merosíssimas outras coisas maravilhosas. E ainda hoje
em dia existe certa seita de pessoas, que se chamam cris-
tãos, apelido êsse que dêle lhes vem".
Os argumentos em favor da, autenticidade são muito fortes:
todos os manuscritos dão o trecho inteiro; além disso, já o cita
Eusébio no século IV (36) . Os, que lhe contestam a, autencida-
de, baseiam-se geralmente em três argumentos: os apologistas dos
séculos II. e, III; que teriam todo o, intprêsse em citar êsse texto
importante (37), não o mencionam; o pensamento e a terminolo-
(31 ) — Goethe, Gesprãche mit Eckermann (Conversação do dia 28-111-1827) .
(32). W. Shakespeare, II Henry IV, Act . II,' Scene V.
( 33) . — Aristóteles, Rhetorica, III 16.
(34 ) . — Herodotus, Historiae, III 119.
. — O trecho encontra-se nas Antiquitates Judeicae XVIII 63-64. Em outra pas-
sageni o mesmo autor fala das atividades e da morte de João Batista em têr-
mos respeitosos (XVIII 116-119 ) , e em outra ainda de São Tiago: "irmão
de Jesús que é chamado o Cristo" (XX . 200) . A respeito dêsses dois últimos
passos não existem dúvidas fundamentadas. — Cf. , 3 V c.
. — Eusebius, Historia Ecclesiastica I 11, 7-8; cf. Demonstratio Evangelica, III 3,
105-106 .
. — Por exemplo Orígenes, Tertuliano e Minúcio Félix. — Mas um "argumentum
ex silentio" precisa ser manejado com muito cuidado, cf. 64 I.
— 474 —

gia (talvez inspirada pelo Símbolo dos Apóstolos?) são alheios


aos de um judeu convicto como era Josefo; o contexto dificilmen-
te concorda com o trecho. Os que atribuem muito valor a um ou
mais dêsses argumentos, consideram a passagem inteira como uma
interpolação; segundo outros, Flávio, por ter mencionado inciden-
talmente a Jesús, teria dado ensejo a um copista cristão de inter-
polar algumas palavras relativas à divindade, à ressurreição e aos
milagres de Cristo; outros ainda julgam que o passo inteiro, tal
como o lemos, é autêntico (38) . Não convém acompanhar aqui
em todos os pormenores a argumentação dos defensores e dos ad-
versários do Testimonium: demos o exemplo a fim de mostrar co-
mo é difícil, de vez em quando, chegar com certeza a uma solução
definitiva. Tais casos são freqüentes na edição de textos antigos,
mas poucas vêzes se trata de questões tão importantes.

§ 45. A crítica de autoria.

Uma vez restaurado o texto, se não com perfeição, ao menos


de modo satisfatório, devemos continuar as investigações.
I. A primeira pergunta é: quem foi o autor do nosso texto?
Muitas vêzes acontece que a tradição manuscrita a êsse respeito
é deficiente, contraditória ou falsa, por várias causas: êrro, engano,
ou fraude. Um copista pode ter atribuído o texto a certo autor,
com cujas obras se achava reunido no mesmo códice, ou pode ter
confundido dois autores homônimos (39); pode ter entendido mal
o título da obra (40) . Pode ser também que o nosso documento,
desde o início, seja uma falsificação, coisa bastante comum na An-
tigüidade e na Idade Média, quando ainda não havia direitos de
autoria, nem existia a tipografia, e tais atos não eram tão severa-
mente censurados como nos tempos modernos (41) . Os motivos
para falsificar eram muito variados: podiam ser relativamente ino-
centes, compondo-se versos ou discursos no estilo de um poeta ou
orador bem conhecido, ou desenvolvendo-se um tema à maneira de
um filósofo afamado. Antes da invenção da tipografia era facílimo
apresentar um documento falso ou adulterado, e fazer acreditar
na sua autenticidade. Havia também motivos menos desculpáveis;
. — As opiniões a "esse respeito não coincidem com as confissões: o célebre histo-
riador liberal A. Harnack (1851-1930) defenGeu a autenticidade; combateu-a
o dominicano francês Pe. Lagrange.
. — Mencionamos aqui o exemplo do retor e mitógrafo africano Fulgêncio (cf.
4 VII), muitas vêzes confundido com seu contemporâneo e patrício S.
Fulgêncio de Ruspe (século VI) .
. Por exemplo o título do gracioso poema latino Pervigilium Veneris (=Vi-
gília em honra de Vênus), que data muito provavelmente do século II d. C.,
originou o engano de atribuí-lo ao poeta Virgílio (=Per Virgilium Veneris).
. — Quem não sabe que Cervantes, depois de ter publicado em 1605 a primeira
parte do seu Don Quijote, teve a surprêsa desagradável de ver a publknção
da segunda parte, escrita por certo inGivíduo misterioso que se chamava Avel-
laneda? (1614) •
— 475 —

a intenção de legitimar as próprias idéias ou pretensões com a auto-


ridade de um grande nome do passado; o interêsse individual ou
coletivo em obter ou conservar certos privilégios; a vaidade, a ga-
nância, o fanatismo religioso, etc. Finalmente, há falsificações fei-
tas com o único fim de despistar os pesquisadores.
As diversas falsificações, feita abstração da última categoria,
podem ser um objeto interessante de estudos históricos, pois reve-
lam-nos as aspirações e a mentalidade do indivíduo ou do grupo
social em que nasceram. Outrossim, algumas falsificações exerce-
ram profunda influência no decurso dos séculos, até uma influên-
cia superior à de muitos documentos autênticos. Por êsses moti-
vos consagraremos um parágrafo especial aos textos apócrifos
(§ 48).
Ao estabelecer a autoria, o historiador torna a valer-se de cri-
térios externos e internos, analogamente aos princípios que já vi-
mos no parágrafo anterior. Em geral, possuem mais valor os ex-
ternos, já que os internos estão mais expostos a uma interpretação
subjetiva. Em muitos casos é impossível uma solução definitiva.
Quem escreveu por exemplo o Juramento de Hipócrates? (42). E
quem foi o autor das obras místicas, que a Idade Média atribuía a
Dionísio do Areópago? (43). Nestes casos, tão numerosos na filo-
logia clássica e medievalista, os editôres falam em "Pseudo-Hipócra-
tes" e "Pseudo-Dionísio", e qualificam as obras de "incertas" e "es-
púrias". Freqüentemente acontece que a tradição manuscrita nem
sequer nos transmite o nome do autor: aí se fala em "obras anô-
nimas".
À questão da autoria prende-se estreitamente êste grupo
de problemas: quando viveu o autor (do original) do nosso do-
cumento? Onde? Em que circunstâncias se achava ao escrevê-lo?
A que partido político, a que confissão religiosa, a que classe social
pertencia? As respostas, dadas a essas perguntas, podem ser impor-
tantes para o historiador, ao utilizar-se dos depoimentos da teste-
munha. São outra vez critérios externos e internos que o guiam,
e, em geral, preponderam os externos.
Le vrai peut quelquefois n'être pas vraisemblable (44):
dois exemplos podem ilustrar como critérios, baseados exclusiva-
. — Hipócrates, o pai Oa medicina racional, viveu em ±-460-±373 a. C. Chegaram
aos nossos 72 opúsculos, que lhe são atribuidos, dos quais só 6 são au-
tênticos. O Juramento, que em forma modificada ainda hoje está em vigor,
era prestado pelos médicos ca ilha de Cos, aos quais pertencia Hipócrates.
Mas a data e a autoria são ainda muito problemáticas.
• — Dionísio Areopagita foi convertido por São Paulo (cf. Atos dos Ap. XIV 34),
e teria sido o primeiro bispo de Atenas. Por volta de 500, certo indivíduo,
pouco identificável, talvez um sírio, escreveu 4 obras e 10 cartas, que de-
clarava serem óe Dionísio. Esses livros foram traduzidos para o latim (século
IX), e só os humanistas (Erasmo, Valia, etc.) começaram a pôr-lhes em dú-
vida a autenticidade, em que hoje ninguém acredita.
. — N. Boileau, Art Poétique III 48.
476 ; —

mente em argumentos de probabilidade, "interna", despistaram os


pesquisadores. Segundo a tradição medieval; que já começa, no ) sé=,

culo VIII, Boécio (±485-524), o último filósofo dos romanos, te-


ria. esc rito quatro ou cinco tratados teológicos. Possuímo-los ainda,
e os manuscritos são unânimes em atribuí-los a Boécio. Mas os filó :
logos do século passado julgavam pouco provável tal, preocupação
teológica, de parte do autor da Consolatio .ehilosophie (45), em
que_nem sequer é mencionado o nome de Cristo. Em 1871, H. Use-
ner, publicou umas anotações, descobertas num manuscrito, do sé-
culo X (46), que vieram a provar incontestàvelmente a, autenti-
cidade dos tratados. Destarte foi confirmada uma longa tradição,
que tinha sempre venerado Boécio corno sábio cristão, e até como,
mártir da fé. Critérios igualmente internos levaram, no século, pas-
sado, alguns. filólogos . (47) a emitir a bizarra teoria, contrária a to- ,

dos os critérios externos, de que humilde ator de teatro, William


Shakespeare (1564-1616) não pode ter sido o autor dos dramas que
lhe são atribuídos. Seria possível admitir-se que uma pessoa sabida-
mente pouco culta (48) fôsse capaz de compor dramas tão "erudi-
tos"? Onde teria arranjado conhecimentos,tão vastos da literatura, da,
história, da geografia, da filosofia? Na época de Elisabeth I apenas
um homem era capaz de escrever o Hamlet, Macbeth, King,Le4r,
etc,:, o filósofo Francis Bacon (1561-1626). Hoje em dia ninguém, já
acredita na "Baconian Theory,". Reconhece-se que, um gênio não
precisa, freqüentar, a escola, para se formar; por possuir um poder
excepcional. de assimilação, e um interêsse muito vivo por todos, os
aspectos da vida, aproveita-se de tudo o que encontra no seu cami-
nho: a própria experiência, as conversas com amigos, leituras inci-
,

dentais, etc. Atribuir os dramas shakespeareanos ao frio raciona-


lista Bacon, que nada tinha de poeta inspirado, é o mesmo que .
explicar obscur um per obscurius.
Esses problemas, muitas vêzes mal postos, contudo não são
inúteis para o progresso da ciência: obrigam os filólogos a ponde-
rar os argumentos dos adversários e a examinar antigas questões à,
luz de novos métodos. Se muitas,.vêzes não levam a uma, solução
definitiva, podem concorrer para enriquecer nossos conhecimentos
históricos; se muitas vêzes não resultain em confirmar a hipótese
originàriamente emitida, abrem novos campos de pesquisa, quase

(45). Boécio escreveu áste livro nos fins da, sua vida, quanc prêso em Pavia. A
Consolatio foi urna das, obras mais' populares da Idade Média, traC.uzida vá-
rias vêzes para tôdas as, línguas européias.
. — Codex Augiensis 106 (atualmente em Carlsruhe), que remonta a, fontes do sé-
culo VI.
. — Por exemplo W. H. Smith, Bacon and Shakespeare (1857) e Delia Bacon
(1856) .
(48). — Ben Jonson, no necrológio_ consagrado ao poeta, dizia dêle: he, had srnall
Latin and less Greek .
= 477—

-Sempre proveitosos. Um 'exemplo clássico é a chamada queStão


homérica, 'suscitada 'em 1795 por Fr. A. Wolf (49), que deu
'gani a muitas pesquisas filológicas e históricas, 'não só no campo d'a
'epopéia grega, mas também no de, outros cantos populares e da
'Bíblia. A questão homérica ainda não está resolvida, 'e talvez seja
'insolúvel, mas, graças aos nunterosós'trabalhós leitôs 'neste sentido,
coriheeemos'hoje, muito melhõr do que os filólogos do século XVIII,
o rmurido 'honnérito, a natureza de uma epôpéia "popular", e a 'eStrü-
tura da Ilíada e . da Odisséia.

§ 46. A crítica de procedência.

Depois de examinados os problemas relativos à autoria, che-


gamos à última questão da Crítica externa: o autor (do original)
do nosso documento tinha conhecimentos pessoais dos fatos comu-
nicados, ou os devia a outras fontes?
I . Vários indícios nos podem encaminhar à solução 'dêsse
problema: a cronologia, 'indicações feitas pelo 'próprio autor (neste
documento ou noutro) ou por outros autores. Tratando-se de au-
tores posteriores aos fatos narrados, tais como Plutarco e Tito-Lívio,
devemos indagar, na medida do -possível, as fontes por êles utili-
zadas. Em alguns casos ainda as possuimos, em outros dispomos
apenas de fragmentos, mas acontece• também que desconhecemos
completamente os textos originais. O filólogo confere meticulosa-
mente o texto do seu documento 'com o das fontes disponíveis para
verificar de que maneira as utilizou o autor do documento estuda-
do. Foi fiel 'ao servir-se delas, ou embelezou os dados do original,
por motivos literários? Modificou-os por certa preocupação ética,
(patriótica 'ou religiosa? Deturpou-os por 'partidarismo político? Ou
não entendia direito o que o outro dissera? -Não dominava suficien-
temente a língua da 'sua fonte? (50) .
A fim de resolver êsses e numerosos outros problemas seme-
lhantes, o historiador precisa possuir conhecimentos profundos da
língua, da historiografia e da literatura comparada. Uma ligeira
alusão, que poderia fàcilmente passar despercebida a um leigo, bas-
ta muitas vêzes para que um entendido descubra contactos, influên-
cias, filiações, etc. Mesmo que 'se 'tenham 'perdido 'as fontes origi-
nais, os filólogos são, de vez em quando,' capazes 'de reconstruir nas
(49). — F. A. Wolf, Prolegomena ad Homerum. •
(50) — 'Neste ponto tem-sé pecado milito. 'Os 'grarri'ACOs latinos traduziram ó 'íõrtrio
grego "aitiatiké" (="causal" e "acusativo") pela 'expressão (neste caso er-
rônea): accusativus. — Os tradutores gregosdôs livros sagrados tinham tanto
respeito péla letra do 'texto original . que sua'versáo 'se ressentia de numerosos
idiomatismos da língua hebraica; 'estes foram-se 'perpetuando (e piorando)
na tradução latina. — Alexandre Pope (1688-1744) "traduziu" Homero pa-
ra o inglês, conhecendo 'a epopéia grega 'apenas mediante 'traduções latinas
e francesas! E hoje em dia, quántos 'livros russos e escandinavos publicados,
que são traduções de traduções!
478 —

linhas mestras, e estrutura, a tendência e o conteúdo das obras per-


didas, servindo-se de informações de documentos intermediários.
Foram principalmente os filólogos clássicos que adiantaram êste
ramo da metodologia histórica. Colecionaram textos que se acha-
vam dispersos por tôda a literatura antiga, submeteram-nos a um
exame microscópico e delinearam os contornos de obras há muito ,
perdidas. E não poucos dêsses resultados já não são hipotéticos,
mas vieram a ser conhecimentos quase certos, que em alguns casos.
foram corroborados por descobertas posteriores (51) .
II. Quando um autor toma emprestada literalmente certa
expressão ou passagem de outro autor, fala-se em "citação". Hoje
em dia, tomamos geralmente muito cuidado, pelo menos em publi-
cações de caráter científico, em conferir o texto citado com o origi-
nal. Não era assim na Antigüidade, na Idade Média, e até nos .

Tempos Modernos: citava-se quase sempre de cór, o que explica


grande número de inexatidões. Em longos períodos históricos cer-
tos livros exerciam influência tamanha que quase tôdas as pessoas.
cultas estavam familiarizadas com êles e até os sabiam de cór: Ho-
mero na Grécia (52), Vegílio em Roma, e a Bíblia na éra cristã (53 ).
Documentos literários de uma época em que havia tal livro cen-
tral, mostram freqüentemente certas semelhanças e concordâncias
na argumentação, que se explicam, não por uma influência direta,
mas por sua origem comum num livro central (54) .

§ 47. A edição de um texto.

O resultado da Crítica externa é a edição filológica de um


texto.
I. A filologia, tanto o nome quanto a realidade (55), nasceu
na época hélenística em Alexandria, onde os primeiros Ptolomeus :

(56) fundaram um Instituto para Pesquisas Científicas (57), mu-


nido de uma biblioteca esplêndida: aí trabalhavam médicos, botâ-

. — Mencionamos aqui um trabalho modelar do filólogo alemão H. Diels, Die-


Fragmente der Vorsokratiker ("Os Fragmentos dos Pré-socráticos"), 19547 .
. — Homero era o educador do povo grego, e muitos conheciam a epopéia de cór,
cf. Xenophon, Symposium, 3, 5, e Plato, /o (passim) .
. — Um exemplo: Santo Agostinho cita 13.276 vêzes o Antigo Testamento, e
29.540 vêzes o Novo Testamento! E' um fato conhecido quanta influência
exerceram, na Alemanha, a versão da Bíblia, feita por Lutero e, na Ingla-
terra, a chamada Authorized Version (1604, tendo por base a tradução de
W. Tyndale, 1535) .
— Felipe-o-Belo da França (1285-1315) valeu-se, nas suas lutas contra o papar:o,
de argumentos muito semelhantes aos que já empregara o Imperador Frederico ,
II (1215-1250). Ao examiná-los de perto, podemos verificar que são alusões
a passagens bíblicas, fato desapercebido a alguns historiadores.
— Cf. Suetonius, De Grammaticis, 10: .. .Eratosthenes. . . primus hoc nomen-
sibi vindicavit.
(56) — Chamam-se Ptolomeus os reis helenísticos do Egito, c.esde Alexandre Magno ,
até o domínio romano (31 a. C.) .
(57). — Chamava-se "Mousaion", cf. a nossa palavra "museu".
— 479 —

nicos, astrônomos, historiadores, poetas e filólogos. Estes últimos


tinham a tarefa de colecionar os melhores manuscritos existentes,
compará-los e editá-los. Zenódoto, o primeiro bibliotecário, deu em
±275 a. C. a primeira edição crítica de Homero; outros filólogos
de nomeada foram Eratóstenes, um sábio universal que já encon-
tramos como geógrafo (58), Aristófanes de Bizâncio (±257-±180)
e Aristarco de Samotrácia (217-145) . Infelizmente, perderam-se
as edições e os comentários da escola alexandrina: só os "escó-
lios" (59), conservados em alguns códices medievais, nos permitem
uma reconstrução muito parcial da imensa atividade filológica dês-
ses eruditos. Também em Pérgamo, cidade litoral da Asia-Menor,
existia uma afamada escola, a qual era influenciada pela Estoa e
se dedicava preferencialmente aos estudos gramaticais e retóricos
(60) . Desde o século I a. C. a filologia era cultivada igualmente em
Roma, mas os romanos eram geralmente apenas discípulos dos gre-
gos sem contribuirem muito para o progresso da ciência. Além
de Varrão (61), mencionamos aqui os grammatici Donatus (século
IV) e Servius (século V), aquêle autor 'de duas gramáticas latinas
muito populares na Idade Média, êste autor de um comentário sô-
bre Vergílio que ainda hoje é muito apreciado. Os aristocratas ro-
manos da época da decadência (séculos IV-VI) consideravam a
tarefa de restaurar os textos antigos como parte integrante dos seus
deveres patrióticos: visto que a carreira política lhes oferecia ape-
nas honras imaginárias e poucas vantagens efetivas, buscavam mo-
tivos de consôlo nos livros do passado. Entre os Padres da Igreja
Ocidental eram principalmente São Jerônimo e Cassiodoro estu-
diosos da filologia. Na Idade Média eram desconhecidos os méto-
dos científicos da escola alexandrina para restaurar um texto, mas
os monges irlandeses e depois os beneditinos faziam o possível para
procurar bons manuscritos e copiá-los. E' de bom tom, querendo-se
demonstrar o obscurantismo medieval, citar alguns textos que de-
vem provar o desprêzo dos monges pela cultura (62): seria mais
justo reconhecermos com gratidão o quanto devemos ao trabalho
modesto dos copistas anônimos da Idade Média.

(58). Cf. 5 38 V.
— "Escólios" são anotações gramaticais, literárias e históricas, tiradas das obras
dos antigos filólogos. A maior parte dêles se refere a Homero, aos líricos e
aos dramaturgos.
. — Aí era seguica, também sob a influência dos Estóicos, a interpretação ale-
górica dos textos antigos. — Nos tempos cristãos trocaram-se os papéis: Ale-
xandria tomou-se o centro da "alegorese" bíblica, e Antioquia preferia a in-
terpretação literal.
(61). — Cf. 4 II d.
(62) . — Por exemplo as palavras do Papa Gregário I (Epistula V 53a): ...quis in-
dignum vehementer existimo, ut verba caelestis oraculi restringem sub re-
gulis Donati. Negue enim haec ab ullis interpretibus in Scripturae Sacrae
auctoritate serviste sunt.
— 480 —

A arte de imprimir (63) 'possibilitou a multiplicação e a di-


fusão de livros em proporções antes inimagináveis, diminuindo o
perigo de entrarem novos erros na tradição. Mas os primeiros hu-
manistas, procedendo com uma precipitação quase febril, pouco se
incomodavam com a comparação demorada e minuciosa dós có-
dices. Passados os primeiros tempos de um entusiasmo compreensí-
vel, mas um tanto exaltado pela nova invenção, começaram a apa-
recer os textos críticos, principalmente na França e na Holanda .
Mencionamos aqui os nomes ilustres de Joseph Justus Scaliger
(1540-1609) e Isaac Casaubonus (1559-1614); Justus Lipsius
(1547-1606) e Gerardus Vossius (1577-1649) . No século XVII des-
tacam-se as edições dos Bolandistas, de que já falamos (64), e as
dos maurinos na França (65) . Merece também nossa atenção a
erudita obra de compilação histórica, feita pelo jansenista Lenain
de Tillemont (1637-1698) nas suas Mémoires pour servir à I'histoi-
re ecclésiastique des six premiers siècles (66) . Filólogos de relêvo
no século XVIII eram o inglês R. Bentley (67), o italiano L. A.
Muratori (68), e o holandês C. Valckenaer (69) . Desde os fins
dêsse século foram os alemães que abriram novos caminhos: a filo-
logia alemã dominaria o século XIX, e ainda hoje em dia ocupa um
lugar dos mais importantes. Inegàvelmente foi a filologia clássica o
modêlo para todos os outros ramos dessa ciência, mas atualmente
já não possui o monopólio: os romanistas, os germanistas, os angu:-
cistas e os orientalistas dispõem agora igualmente de coleções impo-
nentes de documentos históricos, criticamente editados.
II. Por mais indispensáveis que sejam as edições críticas, não
constituem o têrmo da atividade do historiador. A crítica externa,
no fundo mais filologia do que história, "ensina a não nos utilizar-
mos dos maus documentos, mas não nos ensina a tirarmos partido
dos bons" -(70) . Muitas pessoas, enfastiadas pelo caráter extrema-
mente analítico da Crítica externa chegam a desqualificá-la como
perda de tempo e desperdício de energia, inteiramente despropor-
— A primeira edição impressa de um texto chama-se Editio Princeps. Antes
de 1500 estavam impressos os importantes autores latinos, antes de 1520
os gregos. Antes de 1521 sairam quase 100 edições c'..a Vulgata . Os livros
impressos antes de 1500 chamam-se "incunábulos".
. — Cf. 42 I, n. 60.
( 65) . — Os maurinos, congregação beneditina, cuja matriz era em St. Gerrnain-des-
Pres, perto de Paris, editaram por exemplo as obras de Santo Agostinho, de
maneira ainda hoje não superada. Os mais célebres entre êles eram D. Ma-
billon (1631-1707), autor da obra De Re Diplomatica e D. Sabatier, que
editou os restos c.a Itala (antiga versão latina da Bíblia) . — Cf. 42 I.
. — Esta obra, riquíssima em documentação, serviu de base à obra de E. Gibbon,
cf. .$ 7 II.
. — R. Bentley fundou a história científica da literatura grega, e fêz muitas des-
cobertas importantes. — Cf. 44 IV, n. 27.
. — L. A. Mutatori (1672-1750) editou a coleção importante Rerum Ifalicarum
Scriptores (em 28 volumes, 1723-1751; desde 1900 reeditada), e descobriu
a lista mais antiga ecos livros do Novo Testamento.
. — C. Valckenaer descobriu muitas falsificações em trechos atribuídos a Eurí-
pides, Calímaco, etc . ti715-1785) .
. — Langlois-Seignobos, Introdução p. 71.
-481—

cionados ao valor histórico dos documentos editados e nada ou pou-


co contribuindo para a vida cultural. Com , efeito, não é imaginá-
rio o perigo de ficar absorvido o historiador pelo pesquisador, ou
a síntese pela análise. Mas cumpre frisarmos que uma síntese cien-
tífica é impossível sem prévios estudos analíticos. Aliás, os grandes
historiadores dos séculos XIX-XX souberam combinar os traba-
lhos de pesquisa minuciosa com uma exposição sintética dos resul-
tados: um bom exemplo é o grande historiador Th. Mommsen (71).
E, afinal, dada a complexidade da matéria histórica, é impossível
demarcar com precisão os limites entre o que é muito importante e
o que tem apenas importância secundária. Quase tudo depende,
tanto na edição das fontes como no estudo de um assunto muito es-
pecializado, da maneira de focalizar o objeto. Um detalhe aparen-
temente insignificante pode-se tornar muito importante quando é
situado pelo espírito humano como elemento constitutivo e signifi-
cativo de um conjunto superior.
III. Uma edição filológica consiste geralmente de três partes
essenciais: o Prefácio, o Texto e o índice.
No Prefácio o editor dá a história do(s) manuscrito(s),
descreve-lhe(s) o valor e as interrelações, traça o stemma codicum,
e indica as "siglas" ou abreviaturas que emprega para indicar os di-
versos códices utilizados (o chamado Canspectus Siglorum). Não
raro fala também da vida do autor, da época e das circunstâncias
em que escreveu, das fontes que utilizou, e da sobrevivência do tex-
to em autores posteriores. Em uma palavra, aí resume os resulta-
dos certos ou duvidosos da Crítica externa.
O corpo da edição é o texto. O editor pode eliminar, co-
mo já vimos (72), erros e enganos óbvios, sem importância para a
interpretação, normalizar a ortografia e a pontuação, escrever por
extenso as abreviaturas, etc. Serve-se de vários "sinais" ou "símbo-
los", cujo valor precisa ser esclarecido adotando-se um• sistema pes-
soal; em textos clássicos segue-se geralmente um sistema internacio-
nal e uniforme. Damos aqui os mais importantes:

< > indica palavras, não transmitidas pelos manuscritos,


mas acrescentadas pelo editor;
[ ] indica palavras, transmitidas pelos manuscritos, mas
"delidas" pelo editor,

(71) . — Th. Mommsen (1817-1903), o autor da História Romana (4 volumes, obra


não acabada), escreveu também estudos "técnicos" sôbre a numismática, a
cronologia, a administração, etc. da antiga Roma; além disso editou vários
textos dos Monumento Germaniae Historica e o Corpus Juris Civilis.
(72). — Cf. li 44 I.

Revista de História ns, 21-22.


— 482 —

* indica lacunas nos manuscritos;


±-1--1- indica passos corruptos que o editor não sabe emen-
dar bem.

Exemplos
ut crederes <hoc> esse conscriptum o editor acrescentou hoc (73) ;
ut crederes [hoc] esse conscriptum o editor "deliu" hoc, lição,
transmitida pelos manuscritos;
ut crederes * * esse conscriptum sumiram-se uma ou mais pa-
lavras entre crederes e cons-
criptum;
ut crederes +++ esse conscriptum é essa a "lição" dos manus-
critos, mas o editor conside-
ra-a errada sem saber como-
deve emendá-la.

Uma edição crítica não poderia ser completa sem o chamado


aparato crítico (Apparatus criticus), quer dizer, notas abaixo do,
texto, a trazerem as diversas "variantes", com breve indicação do(s)
códice(s) em que são encontradas. O editor pode seguir dois mé-
todos: o método negativo consiste em registrar as "lições" diferen-
tes do texto adotado no corpo; o método positivo e mais minucioso
registra também o(s) códice(s) da lição adotada.
Abaixo do "aparato crítico", ou então à margem do texto, são
indicados os textos que o autor do documento editado citou ou uti-
lizou, e muitas vêzes também os autores posteriores que, por sua
vez, utilizaram o nosso autor. Por vêzes é-lhes acrescentado um
comentário gramatical ou histórico: quando êste exige muito es-
paço é geralmente colocado no fim do livro ou no fim do Prefácio.
c) O Índice é a terceira parte: registra, em ordem alfabética,.
os nomes dos autores, as palavras e expressões interessantes, os no-
mes de lugares geográficos e de pessoas históricas, etc. Muitas vê-
zes há vários Índices, organizados conforme os diversos assuntos.
IV. Uma edição de suma importância, acompanhada por
todos os filólogos com intenso interêsse, está sendo realizada em.
Roma pelos beneditinos do mosteiro de San Girolamo: trata-se da
edição crítica da Vulgata, da qual existem ±30.000 manuscritos
(completos ou incompletos) . A Vulgata é o texto latino oficialmen-
te adotado pela Igreja Católica no Concílio de Trento, e as várias
edições do século XVI, geralmente conhecidas sob o título de Edi- -

tio Sixto-Clementina (74), já não satisfazem às exigências rigoro-


(73) . — O editor pote-se servir, neste caso, também de grilos.
( 74 ) . — A edição "definitiva" data do ano 1598; devido à pressa que os papas Sixto
V (1585-1590) e Clemente VIII (1592-1605) mostravam, os filólogos, en-
carregados da nova edição, não podiam trabalhar com o sossêgo necessário.
— 483 —

sas da crítica moderna. Os trabalhos preparatórios começaram em


1907, e depois de vencidas numerosas dificuldades externas e in-
ternas, sairam uns dez volumes até agora, cada um de ±500 pági-
nas, e abrangendo mais ou menos a quarta parte da Bíblia. Os ma-
nuscritos foram divididos em três famílias principais, cujas fontes
principais: o codex Gatianus, o codex Ottobonianus e o codex Amia-
tinus possuem autoridade decisiva para os editores.

§ 48. Falsificações.

Já vimos que algumas falsificações possuem grande importân-


cia para a história. Neste parágrafo damos exemplos célebres e tra-
tamos dos problemas a êsse respeito.
I. Falsificações Célebres.
a) Os Cantos Sibilinos (74a).
Na antiga Grécia havia mulheres vaticinadoras, chamadas "Si-
bilas", que, sem domicílio fixo, iam de lugar em lugar, profetizan-
do o que viam no espírito, não a pedido de outros, como as sacer-
dotizas nos oráculos, mas empolgadas pela divindade que se apode-
rava de seu coração. Atribuía-lhes o povo uma quantidade de profe-
cias sinistras, que perturbavam a imaginação da época: de tudo isso
quase nada chegou aos nossos dias. Mas na Alexandria helenísti-
ca, onde muitos judeus moravam na "diáspora" (75), haviam de
renascer as Sibilas. Apoderaram-se da literatura sibilina os judeus
alexandrinos para nela darem expressão aos seus sentimentos de in-
dignação contra os gentios, no meio dos quais estavam condenados
a viver. De acôrdo com o papel tradicional da Sibila, faziam-na
predizer todos os horrores da devastação que deviam cair sôbre o
mundo pagão, e faziam-na anunciar a próxima vinda do Messias.
Dêsses produtos de pia fraus se assenhorearam mais tarde os cris-
tãos, para se queixarem das injustas perseguições que sofriam da
parte dos pagãos. Ainda hoje possuimos uns doze livros de profe-
cias "sibilinas", cujos elementos mais antigos remontam aos judeus
' e os mais recentes aos cristãos. Muitos Padres da Igreja deixaram-
se enganar por êsses documentos apócrifos (76), e a Sibila tornou-
se uma figura popular na literatura e nas artes da Idade Média.
Até Miguel-Angelo sentia-se atraído pelo assunto, e pintou na Ca-
(74a) . Cf. J. J. van den Besselaar, Virgílio e a Sibila na Idade Média, in Revista da
Univ. Cat. de São Paulo, IV f (1953), pgs. 23-39.
(76). — Foi neste ambiente que nasceu também o Septuaginta, a tradução grega do
Velho Testamento, segundo a tradição, feita sob o reinado de Ptolomeu Fi-
ladelfo (285-246 a. C.) por 70 judeus, os quais independentemente uns dos
outros, teriam chegado ao mesmo resultado. Na verdade foi a obra de três
ou quatro gerações (séculos III-II a. C.) .
(76). — Por exemplo Justinus, Cohortatio ad Graecos, 38; Tertullianus, Adversos Nationes,
II 14; Augustinus, De Civitete Dei, XVIII 23; até São Tomás, Suntrna Theo-
logica, II-II, q. 2, a. 7, ad 3.
-

pela Sixtina cinco maravilhosas figuras de Sibilas. Só na época do


Racionalismo foi-se destruindo a lenda, incapaz de resistir às nor-
mas de um rigoroso exame crítico (77).
b) Donatio Constantini.
Outra falsificação célebre teve grande repercussão na vida po-
lítica e.diplomática da Idade Média. E' a chamada Donatio Cons-
tantini, documento falsamente atribuído a Constantino Magno
(306-337), o primeiro Imperador cristão dos romanos. Conforme
texto da Donatio, Constantino, depois de curado de lepra pelo
papa Silvestre I (314-335), teria concedido à Igreja de Roma a
primazia sôbre tôdas as outras Igrejas do Império; além disso, te-
ria dado ao papa maior poder do que êle próprio pretendia exer-
cer, também em questões mundanas: deu-lhe a cidade de Roma e
tôdas as províncias do Ocidente. Para simbolizar êsse ato solene,
Imperador mudou-se para Constantinopla (330), cedendo ao pa-
pa o mundo latino.
- Por mais incrível que pareça, a Doação exerceu grande influên-
cia, apesar dos numerosos contrasensos nela contidos (por exemplo,
papa recebe o 'primado espiritual do poder terrestre!). E' cita-
da, desde o século IX, na França, e a partir do pontificado de Leão
IX (1049-1054) até pela chancelaria papal. Dante tinha fé na
autenticidade da Donatio, se bem que lastimasse o fato e lhe im-
pugnasse o valor jurídico (78). Sua origem continua obscura. Po-
de ser que um franco, ou então um romano tenha fabricado o do-
cumento, possivelmente quando da coroação do Imperador Luís-o-
Bondoso pelo papa Estêvão IV em Reims (816). A fraude foi só
descoberta no século XV por três eruditos, uns independentemente
dos outros (79).
c ) Ossian.
, Em 1760, o poeta escocês James Macpherson (1736-1796),
editou seus Fragments of Ancient Poetry, uma coleção de 15 ba-
ladas e canções pretensamente traduzidas da língua gaélica (80).
De 1762 a 1765 sairam outras coleções, apresentadas ao público
inglês como traduções do cantor gaélico, Ossian (81). O tom sen-
timental e o caráter nebuloso dessa poesia ossiânica, "traduzida",
. — B. de Fontenelle, Histore des Oradas (1687) . Cf. $ 85 I.
• — Dante, Inferno, XIX 115-117; Purgatorio, XXXII 129; Paradiso, XX 55-60;
De Monarchia, III 10-11.
. — Puseram em dúvida a autencidade Nicolau de Cusa (1432: Concordantia
Catholica) e Lourenço Valia (1440: De falso credita et ementita Constantini
Declamatio). O caráter apócrifo foi provado terminantemente em 1450 pelo
bispo inglês Reinald Peacock.
• — O gaélico é um dos dialetos celtas, muito afim com o irlandês, que os mon-
tanheses da Escócia ainda falavam no século XVIII.
. — Ossian, bardo cego, meio lendário, o último descendente de uma linhagem
de reis (século III) . Seu pai Fingal teria vencido os exércitos romanos sob
o comando do Imperador Caracala (211-217) .
— 485
por Macpherson, causaram grande impressão na mentalidade prél
romântica da época, não só na Inglaterra, mas também na França
e na Alemanha, onde logo apareceram versões no vernáculo. Só
algumas pessoas críticas, como por exemplo o Dr. Samuel Johnson,
tinham a coragem de combater a autenticidade das descobertas do
poeta escocês: quase todos, também os grandes literatos, acredita-
vam piamente na poesia ossiânica, apesar de aí haver muitas remi-
niscências de Homero, Milton e dos Salmos, e não obstante o "tra-
dutor" recusar-se a mostrar o texto original durante a sua vida.
Não é exagerado dizer-se que três fatôres foram decisivos para o nas-
cimento do Romantismo na segunda metade do século XVIII: as
obras de Rousseau, o descobrimento de Homero e Shakespeare, e a
poesia de Macpherson. Embora não estejam resolvidos todos os pro-
blemas relativos à origem de "Ossian", pode-se dizer que as obras
do poeta escocês não passam de mistificações.
d) Malaquias.
. Em 1595, o beneditino A. Wion publicou no seu Lignum Vitae
(em Veneza) os característicos de 111 papas, desde. Celestino II
(1143-1144) até o fim do mundo, atribuindo-os ao santo bispo Ma-
laquias de Armagh, da Irlanda (1094-1148), amigo de São Ber-
nardo . Os característicos, com que figuram os Sumos Pontífices de
Celestino II a Urbano VIII (1590), não permitem a mínima dúvi-
da: todos êles se referem aos nomes das famílias a que pertenciam
os papas, ou então aos brasões papais. A partir de 1590, porém, as
"profecias" mudam completamente de caráter: tornam-se vagas e
enigmáticas; algumas são aplicáveis a quase todo e qualquer papa
dos últimos séculos, por exemplo o apelido Vir Religiosas, que cabe
a Pio VIII (1829-1831) . A profecia de Malaquias tem sido objeto
de discussão desde o século XVÁ: o exegeta Cornelius a Lapide
(1567-1637) propendia para •ceitá-la, seu confrade, o bolandista
D. van Papenbroek rejeitava-a, e nos tempos modernos o grande
historiador A. Harnack proferiu igualmente contra ela uma senten-
ça condenatória. Cada vez que se elege um novo papa, o documen-
to torna a atrair o interêsse do grande público, e por causa de umas
coincidências felizes (82), surgem sempre defensores da autenti-
cidade. Os principais argumentos contra a autenticidade são: a
profecia é desconhecida de São Bernardo, que escreveu a vida de seu
amigo e mencionou o dom profético dêle; o documento emprega al-
gumas expressões tipicamente renascentistas; a diferença já indi-

(82) . — A título de curiosidade damos aqui alguns característicos dos últimos papas:
Crus de Craca (Pio IX), Lumen in Caelo (Leão XIII), lgnis Ardens (Pio
X), Rangi° Depopuiata (Benedito XV), Fides Intrepida (Pio XI), Pastor
Angelicus (Pio XII) . Depois da morte de Pio XII há de haver ainda 6
papas, dos quais o último, Pedro de Roma, .governará a Igreja durante uma
grande perseguição: et tunc erit finis.
— 486 —

cada entre a primeira e a segunda metade da lista; o falsificador


empregou a "História dos Papas" de Onófrio Panvínio, publicada
em 1557, da qual copia vários erros. A despeito da popularidade de
que goza esta profecia em certos meios, devemos acatar a sentença
da história: a "profecia" de Malaquias é uma mistificação, ainda que
não saibamos quem a fabricou, nem quando foi feita ou com que
intenções.
II. Houve outros falsários de documentos históricos, e perten-
ceram a várias categorias. Um caso interessante foi um padre ora-
toriano francês, Jérôme Vignier (1606-1661), que forjou nove
documentos, relativos aos tempos merovíngios; a fraude foi des-
mascarada só em 1885 pelo historiador Jules Havet (83), mas os
textos apócrifos já tinham entrado em diversas grandes coleções.
Vrain Lucas apresentou à Bibliothèque Nationale de Paris os "au-
tógrafos" de Vercingétorix, Cleópatra, e Maria Madalena (84).
Louvre pagou 100.000 francos, pela pretensa tiara do rei cita
Sataifernes (século II a. C.), fabricada por uni judeu em Odessa.
mesmo museu pagou 17.000 francos pelo busto "contemporâneo"
do poeta renascentista Benevieni. Ao surgirem dúvidas acêrca
da autenticidade, foi proposto um prêmio de 15.000 francos para
quem resolvesse o problema. Ganhou-o o falsário, chamado Bas-
taniani (85).
III. Um detalhe aparentemente insignificante pode condu-
zir os pesquisadores a descobrirem o lôgro: anacronismos, citações
bíblicas de uma tradução ainda inexistente no tempo do "original",
contradições manifestas com outras fontes, questões gramaticais e
estilísticas, a natureza do material usado, verificável por processos
químicos, a forma da letra, as circunstâncias misteriosas da sua ori-
gem, etc. Uma vez surgindo dúvidas a êsse respeito, é difícil que
documento adulterado escape à sagacidade dos investigadores.
IV. Pergunta-se, porém, se diante dessa multidão de do-
cumentos apócrifos não é prudente duvidar da autenticidade de
numerosíssimas outras fontes, que continuamos a considerar, tal-
vez sem razão, como autênticas. Com efeito, é bem possível que
uma parte dos documentos, hoje aceitos, sejam falsificações, mas
essa parte é muito exígua comparada com a grande maioria, que
são documentos autênticos.
O padre jesuíta J. Hardouin (1646-1729) sustentou a teo-
ria exorbitante de serem falsificações, forjadas por monges medie-
— J. Havet, Les Découvertes de J. Vignier, Paris, 1885. — Engraçadas são as
palavras de um confrade a respeito de Vignier: II y a céans un certain père,
qui autrefois a été huguenot, nonuné le père Vignier, qui est un grand, ex-
cellent et hardi menteur... D'o,) on dit par ironia: les vérités da père
Vignier/
Cf. Seignobos-Langlois, Introdução, pp. 62-63.
— Devemos êstes dados Ei P. Kira, Einführung in die Geschichtswissenschaft, Ber-
lim, 1952, p. 16.
— 487 —

vais, quase tôdas as obras clássicas da Antigüidade, com exceção


de Homero, Heródoto, Cícero, as Bucólicas de Virgílio, as Sátiras
de Horácio, e as obras de Plínio-o-Velho; segundo o mesmo, todos
-os concílios eucumênicos, anteriores ao de Trento (1545-1563),
seriam fictícios. Nos tempos modernos, um alemão, chamado W.
Kammeier, escreveu várias brochuras com o fim de demonstrar
-que quase tôdas as fontes relativas à história da Germânia medie-
val teriam sido fabricadas por eclesiásticos interesseiros do século
XV.
Tal atitude hipercrítica é, no fundo, não menos ridícula do
que a crença cega na autenticidade das fontes, e leva a um absur-
do evidente. Aquêles falsários teriam forjado documentos históri-
cos, revelando não só conhecimentos extraordinários dos tempos
passados, mas também da paleografia. Teriam sido os melhores
paleógrafos de todos os tempos, escrevendo manuscritos cada um
dos quais representasse certa fase de evolução paleográfica, corres-
pondente à tradição manuscrita da Bíblia e dos códices jurídicos
que ninguém pode considerar como invenção dos fins da Idade
Média. Além disso, teriam tomado o cuidado de interpolar certas
palavras e passagens, de omitir e alterar outras, etc.
Essas tentativas de eliminar a maior parte dos documentos
:geralmente não são originados pelo desêjo de servir à verdade his-
tórica, mas pela pretensão a uma originalidade, mal entendida.
São estéreis e absurdas, e não 'merecem o nome de teorias, e sim
de especulações fantásticas.
A. A CRITICA INTERNA.
§ 49. A. hermenêutica.
A Crítica interna ocupa-se do valor objetivo do depoimento,
dado pelo documento, ao qual a Crítica externa deu a melhor forma
possível. Neste parágrafo examinamos dois aspectos da Crítica in-
terna, geralmente reunidos sob o nome de Hermenêutica ou a Arte
de Interpretar.
I. O que disse o Autor?
Nesta parte da Crítica, o pesquisador pergunta: qual o senti-
do (literal) da comunicação, feita pelo documento? Precisa de
profundos conhecimentos lingüísticos (86) para poder dar uma res-
posta satisfatória a essa resposta. Não se trata apenas de um conhe-
cimento geral de certo idioma, mas de tôdas as suas aplicações pos-
síveis em documentos históricos. Quem conhece apenas o latim
clássico de Cícero, está pouco preparado para ler o latim escolásti-
(86) . — Falamos aqui apenas em documentos escritos: a "hermenêutica" de documen-
tos não escritos exige outras disciplinas subsidárias.
— 488 —

co de São Tomás, e vice-versa. O latim diplomático da Idade Mé-


día apresenta outras dificuldades ao filólogo (87) .
A descoberta dos papiros gregos, na maior parte escritos na
chamada "Koiné" (88), revolucionou a exegese bíblica, chegando a .
modificar a interpretação de muitas palavras e expressões, encon-
tradiças no Novo Testamento, que antigamente não eram entendi-
das em todo o seu alcance por falta de conhecimentos da "Koiné".
A lingüística moderna descobriu também as feições próprias do la-
tirn cristão, usado pelos Padres da Igreja Ocidental, obrigando os
historiadores a modificarem certas interpretações tradicionais.
II. O que quis dizer o Autor?
Afim com a pergunta anterior, mas muito mais sutil é esta
questão: o que quis dizer o autor do documento? Ao procurarmos
dar-lhe um_ a resposta bem fundamentada, devemos tomar em con-
sideração vários fatôres. O autor escreveu para o povo, simplifi-
cando os fatos, ou para entendidos? Serviu-se de certo simbolismo,
alegorias ou ironia, ou quis ser entendido ao pé da letra? Qual o •
gênero literário a que pertence o nosso documento? Qual o contex-
to da passagem que queremos utilizar? Êsses e tantos outros proble-
mas pertencem ao domínio da história da literatura, no sentido
mais amplo da palavra; estuda ela os diversos produtos literários,.
enquadrando-os na sua época e estabelecendo-lhes os caracteres pe-
culiares, os quais geralmente são condicionados pela tradição, e pe-
las convenções e predileções das épocas históricas.
a) Citações avulsas, desligadas do corpo do texto a que per-
tencem, deturpam muitas vêzes o sentido das palavras originais:
todo e qualquer herege encontra fàcilmente um texto que lhe sirva,,
fato êsse que é provado abundantemente pela história das lutas
dogmáticas. Muitas palavras aladas, repetidas irrefletidamente sem
que se lhes procure o sentido original, ficaram com um significado
bem diferente do que tinham na fonte, por exemplo Mens sana in
corpore sano (89), e Non scholae, sed vitae discimus (90). Dedu-
. — Neste ponto são muito importantes, além de gramáticas, dicionários especia-
lizados. Mencionamos aqui uma obra do século XVII, ainda hoje indispen-
sável para o estudioso da Idade Média; Glossariurn ad Scriptores Mediae et
Infimae Latinitatis, feito por Ch. Du Cange (1610-1688), reeditado (em 10
volumes) por L. Favre (1883-1888) .
. — A "Koiné" constitui a fase de evolução do antigo grego na época helenística
e romana. Em oposição aos "dialetos" clássicos (ático, jônico, dórico e eóli-
co), que pertencem ao período das "póleis", era uma linguagem universalmen-
te falada e entendida em tôdas as terras de fala grega. Devido a prevenções
estilísticas, perdeu-se grande parte da literatura grega, escrita em Koiné,
que, antes das descobertas dos papiros, dificultava consideràvelmente o estudo
filológico do Novo Testamento.
(89). — Juvenalis, Safira, X 356: Orandum est ut sit mens sana in corpore sano.
O poeta diz que um homem de bom juízo pede ao céu a saúde da alma com
a saúde do corpo, e não que a saúde do corpo seja condição essencial da'
saúde da alma.
(90) . Sêneca, Epistola ad Lucilium, CVI, 2 (cf. LXXXVIII passirn), queixando-se
da tirania exercida pela escola do seu tempo, diz: Quemadmodum omnium
rerum, sic litterarurn quoque internperantia laboramos. Non vitae, sed scholae
discirna.
— 489 —

zir delas argumentos , históricos, corno se faz muitas vêzes em livros


populares, sem se preocupar do contexto, é processo indigno de um
historiador sério.
Um exemplo engraçado é a interpretação meio ignorante, meio
maliciosa, dada por certos anticlericais, a- um passo da Historia
Francorum (VII 20) de Gregário de Tours. Um dos bispos fran-
cos, que assistia ao Concilio nacional de Mâcon em 585, fêz, quando
.

se tratava de garantir certos direitos da mulher, esta observação:


mulierem hominem non posse vocitari. A observação do bispo ti-
nha apenas a finalidade de chamar a atenção dos seus colegas para
o fato de significar, em latim vulgar, a palavra homo (91) só "ho-
mem" (do sexo masculino), nunca "mulher": por isso o emprêgo
do têrmo homo era pouco apropriado num caso como êste, onde se
tratava evidentemente de mulheres. Calou-se, depois de ouvir a
explicação de um dos outros bispos, que lhe esclareceu que também
a Bíblia fala em Filiu,s Hominis. Conforme uma interpretação erra-
da, que não liga para o contexto, o Concílio teria negado a alma
da mulher!
b) Numa obra histórica própriamente dita há pouco perigo
de encontrarmos alegorias que não sejam imediatamente reconhe-
cíveis: os historiadores fazem em geral questão de ser entendidos
,sem dificuldade. Mas em certas obras literárias, não menos impor-
tantes para os estudiosos da história, a situação é muito diferente.
Cometeria êrro fatal quem quisesse interpretar ao pé da letra a
Divina Comrnedia de Dante, ou não levasse em conta o elemento
de ironia ao estudar a Utopia de Thomas More.
A interpretação alegórica era muito comum na Antigüidade e
na Idade Média . Já no século VI a. C., certo Teágenes deu uma
interpretação alegórica de certas passagens homéricas. A Estoa
adotou êsse método, elevando-o à categoria de um verdadeiro siste-
ma: já vimos que a escola filológica de Pérgamo fazia tudo para
descobrir o sentido oculto dos mitos e da epopéia (92). A "alego-
rese" tornou-se uma mania de alguns Padres da Igreja, ao esclarece-
rem a Bíblia. Sem jamais negarem o sentido literal ou "histórico",
exercitavam-se em procurar o maior número possível de sentidos
figurados, apropriados para ensinar ou edificar os fiéis (93). Reza-
va o adágio medieval:
Littera gesta docet, quid credas allegoria;
Moralis quid agas, quo tendas anagogia.

(91). — Em latim clássico, homo servia, embora excepcionalmente, também para in-
dicar uma mulher, cf. Cícero, Ad Familiares, IV 5, 4.
. — Cf. 47 I, n. 59. — No século VI d. C., Fulgêncio (cf. 4 VII), escreveu
um comentário alegórico sôbre a Eneida: Expositio Vereilianae Continentiae
sectmdum Philosophos Moralis, que chegou aos nossos dias.
. — Por exemplo Santo Agostinho e Gregório I, dois exemplos bem conhecidos.
-- 490 —

Admitiam, pois, quatro sentidos, dos quais um era literal (94)


•e três figurados. Quando Dante procurava argumentos históricos pa-
ra justificar a universalidade do Império Romano, apelou para os
três casamentos de Enéias, que teriam significação simbólica: o ca-
sarnento com Creúsa simbolizaria a submissão da Ásia, o com Dido
a da Africa, e o com Lavínia a da Europa (95).
E' muitíssimo importante estabelecer o gênero literário
a que pertence um texto escrito. A comparação com outros textos
coevos pode ilustrar de que maneira devemos interpretar certos pro-
cessos de expor e ordenar a matéria histórica: acostumados que es-
tamos aos métodos da historiografia moderna, poderíamos estar in-
clinados a interpretar mal o significado e a finalidade de certos auto-
res antigos. Num historiador do Velho Testamento não podemos
esperar uma ordem lógica e quase científica na exposição dos fa-
tos: o estudo aprofundado da literatura oriental explica muitas pe-
culiaridades que encontramos a cada passo nos livros sagrados. E'
um dos grandes méritos do dominicano francês Pe. M.-J. Lagrange
(1855-1939) ter enriquecido a eio'3gese bíblica com o estudo fe-
cundo de "gêneros literários", quer dizer: o emprêgo de um certo
modo de apresentar o pensamento sob um revestimento literário,
que compromete, ao mesmo tempo, a forma e o fundo.
Nos historiadores clássicos encontramos muitos discursos, que
quase nunca são autênticos no sentido rigoroso da palavra. Na pior
das hipóteses, não passam de ornamentos retóricos, tais como mui-
tos discursos em Tito-Lívio ou em Dionísio de Halicarnasso. Os
discursos, inseridos na obra de Tucídides, não reproduzem textual-
mente as palavras autênticas dos oradores, mas mostram-nos, de
maneira muito concreta, os motivos, as aspirações e a mentalidade
daqueles que com seus discursos tiveram influxo decisivo na mar-
cha dos acontecimentos. Um autor moderno procederia de maneira
diferente: dar-nos-ia descrições extensas, estatísticas, análises psico-
lógicas, etc.
O caráter polêmico de certas obras pode despistar igual-
mente os historiadores: Santo Agostinho, nas suas lutas teológicas
com os Pelagianos, frisou a necessidade da graça divina para a sal-
vação eterna, e Pascal, nas suas lutas contra os libertins, salientou
a insuficiência da natureza, humana. Será que podemos considerar
Santo Agostinho como contraditor do livre arbítrio, ou Pascal como
anti-humanista?
Afinal, assinalamos aqui "mentiras oficiais ou convencio-
nais", encontradiças em notas diplomáticas; eufemismos, hipérbo-
les, frases de cortesia, etc. Uma geração posterior pode ser fácil-
(94). — Cf. S. Thomas, Summa Theologica, I, q. 1, a. 10. — São Tomás, como tam-
bém Santo Agostinho admitiam até o sensus litteralis multiplex. Cf. Dante, Con
vivia, II 1.
(93). — Dante, De Monarchia, II 3.
— 491 --

mente enganada pela fraseologia de tempos idos; os contemporâ-


neos compreendiam-na bem. As dedicatórias, empregadas na An-
tigüidade e na Renascença (até no século XVIII, por exemplo a
dedicatória de Bach ao príncipe de Brandenburgo!), que nos podem
parecer exemplos de bizantinismo desprezível, devem ser interpre-
tadas à luz da mentalidade de outrora.

§ 50. A crítica de objetividade.

A Crítica de Objetividade é a fase final da Crítica Histórica.


Divide-se em três partes: a Crítica da Competência, a Crítica de
Sinceridade, e a Crítica de Contrôle.
I. A Crítica de Competência.
A Crítica de Competência procura estabelecer se a testemu-
nha podia conhecer a verdade. São-lhe preliminares algumas per-
guntas que fazem parte da Crítica externa, por exemplo a teste-
munha assistiu pessoalmente aos acontecimentos narrados, ou co-
nhecia-os por intermédio de outros? Nesta hipótese: quem lhe deu
as informações? Eram coisas públicas ou segredos? Era uma tradi-
ção oral, ou um documento escrito? Entendia bem a língua do texto
original? Estava muito afastado, no tempo e no espaço, da fonte?
(Cf. § 46) .
Cabe à Crítica interna prôpriamente dita um exame mais pro-
fundo ainda: a testemunha original a que remonta nosso documen-
to, tinha o dom de observação? Era exata e minuciosa? Entendia
bem do assunto? Tinha experiência pessoal da vida militar, da di-
plomacia, da política?
Já falamos em algumas questões relativas à Crítica de Compe-
tência (§§ 15-16); basta lembrarmos aqui que a testemunha, para
ser competente, precisa ter bom senso e um dom regular de obser-
vação; que o depoimento do fato material deve ser distinguido de
interpretação do mesmo; que as descrições de acontecimentos tu-
multuosos, como batalhas, requerem certo sangue-frio ou presença
de espírito; que a inexatidão no que diz respeito a algarismos é mui-
tas vêzes originada, não por falta de sinceridade, mas pela enorme
impressão que certos acontecimentos tiveram na imaginação dos con-
temporâneos (96) . O resultado desta parte da Crítica tem geral-
mente só valor aproximativo, a não ser que seja confirmado por ou-
tras fontes independentes.

(96) . —'O número 4as vítimas de um bombardeio é geralmente exagerado pelos sobre-
viventes, logo depois da catástrofe: a segunda guerra mundial o provou. —
Quando Heródoto (Historiae, VII 60) avalia o número de peões persas a in-
vadirem a Grécia em 480 a. C., em 1.700.000 (cf. VII 56), comete um
grave êrro de inexatidão, porque tamanho exército não podia ser abastecido
naquele tempo.
— 492

A Crítica de Sinceridade.

São numerosos os motivos para mentir: o orgulho, o ódio, o


amor, os preconceitos de raça ou de casta social, o fanatismo reli-
gioso, os interêsses financeiros, etc. Também neles já falamos (por
exemplo §§ 15-16) . Meios objetivos para estabelecer a sincerida-
de de uma testemunha são: a natureza dos fatos testemunhados (por
exemplo coisas públicas ou banais, em que não podia haver interês-
se ou proveito de mentir); as circunstâncias em que se achava a.
testemunha ao dar seu depoimento (por exemplo perante um juiz;
'o depoimento foi prejudicial ou perigoso para a própria testemu-
nha, etc.); o caráter da testemunha tal como nos é conhecido por
meio de outras fontes; e afinal, confirmações diretas ou indiretas,
feitas por autores independentes.

A Crítica de Contrôle
Tendo à nossa disposição apenas uma testemunha a res-
peito de certo acontecimento histórico, não podemos aplicar a Crí-
tica de Contrôle. Devemos contentar-nos em submetê-la a tô'das
as fases da Crítica Histórica, descritas acima, e não encontrando
motivos sérios para lhe pôr em dúvida a veracidade, podemos nela
acreditar. Ao se apresentarem, porém, dúvidas numa dessas fases,
não podemos chegar a um assentimento firme ou à certeza, mas jul-
gamos o fato provável ou possível, conforme a natureza da nossa
dúvida, ou até como improvável ou impossível.
Dispondo de mais testemunhas, devemos confrontá-las umas
com as outras. Distinguimos aqui entre o contrôle direto e o indi-
reto .
O contrôle direto torna-se possível apenas quando uma
testemunha, — explicitamente, — confirma, corrige ou contradiz
o depoimento de outra . Pressupõe, portanto, que as testemunhas
se conheciam. Excluimos de antemão, como meio de contrôle, aque-
las testemunhas, que plagiaram mais ou menos literalmente um do-
cumento anterior, falando aqui apenas em testemunhas, que, inde-
pendentemente uma de outra, podiam conhecer a verdade de um
fato histórico. Quando um acontecimento é confirmado por uma
ou mais testemunhas, podemos ter dêle certeza; quando é corrigi-
do, pode ser que uma das duas tenha prestado mais atenção a cer-
tos aspectos ou pormenores do fato testemunhado; quando é im-
pugnado, merecendo as duas testemunhas igualmente nossa fé, te-
mos que escolher: geralmente adianta pouco o meio-têrmo entre os
dois depoimentos. Qual dos dois é mais provável e mais conforme
a mentalidade da época? Muitas vêzes não poderemos chegar a
uma conclusão definitiva, devendo-nos contentar em registrar as
contradições com um non liquet. Um dos maiores pecados contra
-- 493 --

a história é pretender saber mais do que se pode saber. Em todos


os casos onde há alguma divergência entre as diversas testemunhas
é importante verificarmos se não se trata de certo verbalismo, e se
as testemunhas falam exatamente (do mesmo aspecto) do mesmo
acontecimento: muitos mal-entendidos, tanto na historiografia co-
mo na vida cotidiana, são devidas a uma falta de precisão.
c) O contrôle indireto pressupõe também a independência
mútua das várias testemunhas, mas difere do contrôle direto por
elas não se conhecerem uma a outra. Pràticamente impossível é
que o historiador encontre entre elas uma concordância literal ou
um acôrdo perfeitamente unânime: os mesmos fatos são focaliza-
dos de maneiras diferentes; o que é importante para um pode pa-
recer insignificante para outro; o método de narrar e expor os fatos
apresenta diferenças; divergem a composição e a interpretação, etc.
Acompanhar essas divergências inevitáveis e discutir de que manei-
ra podem ser reconciliadas, ou em que circunstâncias são compatí-
veis, seria um trabalho descomedido e pouco frutuoso. As regras
dadas acima podem dar alguma orientação. O bom senso e o "tino"
psicológico do historiador optarão pelo que lhe parecer mais pro-
vável. Em numerosos casos não será possível uma solução definitiva.
CAPITULO QUARTO

AS CIÊNCIAS AUXILIARES.

§ 51. A erudição do historiador.

A história é, em certo sentido, a mais pobre de tôdas as ciên-


cias, necessitando mais do que qualquer outra, do auxílio de disci-
plinas subsidiárias. De maneira geral, pode-se dizer que todo e qual-
quer ramo do saber humano pode prestar serviços úteis ao histo-
riador.
Em alguns casos são necessários conhecimentos especiais
exigidos pelo assunto escolhido. Quem escreve a história dos pri-
mórdios do Protestantismo, precisa possuir conhecimentos sólidos
do dogma cristão e da filosofia nos fins da Idade Média. Só quem
tiver uma boa formação jurídica, estará capacitado para acompa-
nhar a evolução do Direito Romano. E a história da matemática na
antiga Grécia poderá ser escrita apenas por quem estiver bem a
par da geometria .
Se fazemos abstração dêsses conhecimentos especiais, po-
demos dizer que há algumas ciências tão freqüentemente utilizadas
pelo historiador que devem ser consideradas como as ciências auxi-
liares por excelência da historiografia. Nos parágrafos anteriores já
vimos a importância relevante da filologia para o aproveitamento,
dos documentos escritos (1) . Nos parágrafos seguintes havemos de
expor os princípios de algumas outras disciplinas subsidiárias: a Cro-
nologia (§§ 52-56), a Paleografia (§ 57), a Epigrafia (§ 58), a
Lingüística (§ 59), a Arqueologia (§ 60), e a Geografia (§ 61) .
Neste parágrafo consagramos umas palavras a quatro
outros ramos do saber humano que podem ser úteis para o histo-
riador: o estudo das línguas, a psicologia, a filosofia, e a bibliografia.
a) Dada a importância eminente dos documentos escritos pa-
ra o pesquisador, é desnecessário frisarmos o grande valor de co-
nhecimentos lingüísticos. Quais os idiomas que um historiador pre-
cisa dominar? A resposta a essa pergunta depende evidentemente

(1) . — A palavra "filologia" tem muitos sentidos: muitas vêzes é empregac:.'a como•
sinônima de lingüística ou glotologia; aqui é usada numa acepção mais larga:
o conjunto das disciplinas que contribuem para a restauração, o exame crítico
e a interpretação metódica de um texto ou de um grupo de textos.
— 496 —

do terreno das suas investigações. Quem quer estudar a fundo, a


época de Péricles ou a do Imperador Augusto, precisa estar fami-
liarizado com o grego ou o latim clássico; é impossível ser medie-
valista sem saber o latim; estudar a história de Bismarck sem conhe-
cimentos do alemão é o mesmo que procurar não entrar em con-
tacto direto com as fontes. A matéria escolhida pode exigir que se
estude até uma língua de relativamente pouca importância: para
um especialista no episódio do domínio holandês no Brasil o estudo
de documentos holandeses é imprescindível.
Quot linguas quis callet, tot hominee valet, dizia Carlos V, e
essa sentença de um grande estadista tem importância especial pa-
ra o historiador. Quantas portas não se abrem aos poliglotas, não
só no terreno da pesquisa dos documentos como também na parte
dá bibliografia! E' uma vantagem incalculável não estar dependen-
te de uma tradução, amiúde deficiente e nunca capaz de exprimir a
riqueza do texto original. Cada idioma tem as suas palavras e ex-
pressões intraduzíveis: traduttore, traditore (2) . Para um futuro
historiador, que tenha aspirações de inteirar-se da historiografia mo-
derna, são indispensáveis sérios estudos lingüísticos: além da língua
vernácula• e dos idiomas afins, precisa saber, — pelo menos ler, —
o latim e o inglês, sendo possível também o alemão.
b) Na primeira parte dêste livro salientamos diversas vêzes
que o historiador deve ser um homem experimentado no sentido
de conhecedor dos homens. asse fator é também de suma impor-
tância no terreno do exame crítico dos documentos, quando se lhes
procura estabelecer o valor objetivo e o significado. Quem não pos-
suir certo "tino" psicológico, nunca será historiador, nem sequer bom
pesquisador. Para os que se dedicam especialmente a estudos bio-
gráficos, são, além disso, necessários conhecimentos teóricos da psi-
cologia. Vale muito a "intuição" ou o "bom senso"; estudos mera-
mente teóricos da psicologia nunca formarão um conhecedor dos
homens. Mas estudos teóricos, sempre que sejam feitos com méto-
do, podem completar e aperfeiçoar extraordinàriamente as qualida-
des inatas do bom senso e da intuição.
• c) Uma formação filosófica é muito útil tanto para o histo-
riador como para todos os outros intelectuais. O estudo da lógica
pode-lhe prestar serviços importantes ao discernir o falso da ver-
dade e o sofisma do raciocínio correto. Para quem entra em assun-
tos de maior envergadura, são necessários conhecimentos das gran-
des teses filosóficas: a história das idéias reflete-se na vida política

(2)• — A imperfeição inerente a unia tradução foi assinalada, pela primeira vez, pelo
tradutor grego do livro Eclesiástico, no ano 132 a. C.: " . . porque as pala-
vras hebraicas perdem muito da sua fôrça quando transladadas para outra lín-
gua" (Prólogo) .
497 —

e social dos povos. Há mais: a história, nas suas sínteses superiores,


confina com a filosofia; a reflexão filosófica sôbre a matéria histó-
rica repercute, de alguma maneira, na historiografia . Na terceira e
na quarta parte dêste livro, pretendemos dar alguns esclarecimen-
tos a êsse respeito.
d) O historiador deve saber por quem e com que resultado
já foram utilizadas as fontes que está estudando. No mais das vê-
zes, não examina documentos inteiramente novos ou nunca estu-
dados, mas já conhecidos e, de algum modo, interpretados. Para
não perder tempo, precisa informar-se do status quaestionis, isto é,
das várias tentativas, feitas por outrem, de interpretar certo do-
cumento ou grupo de documentos históricos. Descuidar dos traba-
lhos históricos já existentes a respeito de certo assunto, é grave êrro
metódico, que inevitàvelmente conduz a um diletantismo superfi-
cial. O pesquisador deve, pois, tomar conhecimento das soluções
propostas por outros pesquisadores, conferí-las e descrever-lhes a
história e as inter-influências; depois vai-lhes examinando o mérito
a cada uma delas, rejeitando algumas, aprovando outras, — por
completo ou em parte, — ou então propõe uma nova solução. Acon-
tece também que suspende prudentemente o seu juízo.
A bibliografia constitui um setor especial da heurística: não
nos dá as fontes primárias, mas as secundárias, e também estas têm
o seu interêsse. Só a prática pode-nos tornar versados na biblio-
grafia: leituras assíduas, visitas freqüentes a bibliotecas, consultas
a peritos, etc. Mencionamos aqui algumas espécies de referências
bibliográficas:
a) As grandes enciclopédias gerais, por exemplo a Enciclo-
pedia Italiana e a Encyclopaedia Britannica (3) .
8) Hoje existem também' numerosas enciclopédias especia-
lizadas, das quais algumas interessam ao historiador, por exemplo a
monumental Real-Encyclopaedie der classischen Altertumswissen-
schaft (4), Dictionnaire des Antiquités grecques et romaines (5),
e Dictionnaire d'Archéologie chrétienne (6) .
y) As obras fundamentais, consagradas ao estudo de certas
épocas históricas e das grandes personalidades. Muitas vêzes são

. As Enciclopédias remontam aos léxicos e dicionários do Baixo Império: às


explicações gramaticais e estilísticas iam-se acrescentando, aos poucos, cada
vez mais anotações históricas, científicas e culturais. Ainda possuimos as
Etymo/ogs,ie ou Origines do bispo Isidoro de Sevilha (século VI) e o Léxico
do monge bizantino Suídas (século X) . Vincêncio de Beauvais (século XIII)
foi um dos enciclopecistas mais notáveis da Idade Média latina (o educador
de Luís IX da França) . • — Para a Enciclopédia 'nos Tempos Modernos,
cf. 88 I.
. — Obra monumental, iniciada em 1893 por A. von Pauly, G. Wissowa; W.
Kroll, e outros. 'Ainda não acabada.
— Editada por Ch. Daremberg e E. Saglio, em 5 volumes, Paris; 1873-1919.
, (6) — Editado por H. Leclerq, desce 1907, e ainda não acabado.
— 498 —

obras seriadas, como por exemplo a Bibliothéque de Synthése His-


torique (=L'Evolution de l'Humanité), dirigida por Henri Berr, .
e The Cambridge History, editada por uma equipe de especialistas
britânicos. Em todos os países do mundo há uma ou mais dessas
séries, das quais umas se dirigem a especialistas, outras a um pú-
blico maior, geralmente providas de uma ampla bibliografia.
8) Os Repertórios, quer dizer, os livros especiais que dão a
bibliografia mais ou menos completa relativa à história de certos •
países, períodos ou personagens históricos, por exemplo o Manuel
de Bibliographie Historique, de Ch. V. Langlois (7), e A Guide to
Historical Literatura (8). Para filólogos clássicos: L'Année Philo-
logique de J. Marouzeau (Paris, desde 1914, reap. 1927).
E) As diversas revistas históricas, que geralmente trazem os
títulos das novas publicações, freqüentemente com uma apreciação
ou crítica ("resenhas"). O estudioso da história deve acompanhar
com regularidade as notícias bibliográficas destas revistas, quer se-
jam de caráter geral, por exemplo a Revista de Hisltória (São Paulo)
e a Revue Historique (Paris, Alcan), quer sejam de caráter especia-
lizado, como o Journal of Hellenic Studies (Londres) .

A. CRONOLOGIA.

§ 52. A éra.
No sentido próprio da palavra, a "éra" (9) é a contagem con-
tínua de anos a partir de certo fato (autêntico ou supostamente)
histórico; num sentido mais amplo, é todo e qualquer sistema de
indicar os anos para distinguí-los de outros anos. E' escusável dizer
como é importante o conhecimento das diversas éras, empregadas
nos documentos: ignorando-as, estamos sujeitos a cometer muitos er-
ros ao datar um fato do passado. Agora que se segue universal-
mente a éra cristã, é-nos quase impossível imaginar quanta confusão
lavrava outrora na cronologia: autores antigos precisavam de uma
descrição prolixa para indicar com precisão um ano aos seus leito-
res. Lembramos uma passagem do Evangelho de São Lucas (III, 1-
2): "Ora, no ano décimo quinto do império de Tibério César, sendo
Pôncio Pilatos governador da Judéia, e Herodes tetrarca de Gali- -
léia' e Felipe, seu irmão, tetrarca da Ituréia e da província de Tra-
conites, e Lisânias tetrarca da Abilina; sendo príncipes dos sacer--

(7)• — Paris, 1901-1904, dois volumes.


(8) • — Editôres: W. H. Alison, S. B. Fay, A. H. Shearer, e H. R. Shipman, Nova.
Iorque, 1931. — Cf. E. Bernheim, Introducción, págs. 277-293.
(9). — A palavra "éra" deriva de cera (plural de ae bronze, ou moeda de bronze)
e significe: "uma importância de dinheiro lançara num registro". Daí: "con-
tagem", tornando-se palavra singular do gênero feminino (baixo latim).
— 499 —

dotes Anás e Caifás,..." (10) . Neste parágrafo damos as éras mais


importantes para a historiografia.
I. Anos Magistráticos.
Em Argos, uma cidade da antiga Grécia, indicavam-se os
anos pelo número dos anos de serviço da sacerdotisa no templo de
Hera, costume êsse que foi adotado também por alguns escritores
de outras cidades. Na época clássica do povo ateniense havia nove
arcontes, um dos quais era "epônimo", isto é, emprestava seu nome
ao ano; em Esparta um dos cinco éforos era epônimo . Tucídides
(11) indica a primavera do ano 431 desta maneira: "No ano 48 da
sacerdotisa Chrysis em Argos, quando Ainésias era éforo em Espar-
ta, e Pythódoros seria arconte em Atenas por ainda dois meses...".
Em Roma, indicavam-se os anos pelos cônsules, dos quais
havia, desde 509 a. C. (12), normalmente dois. O primeiro ano
509 era indicado: "sob o consulado de Horácio e Valério" (12a), o se-
gundo, que era 508; "sob o segundo consulado de Valério e o primei.
ro de Lucrécio", e assim por diante. Durante o período republicano
de Roma, os cônsules, efetivamente os dois supremos magistrados
do Estado, eram eleitos pelo povo. A partir dos tempos de Augus-
to (31 a. C.) o cargo ia perdendo muito da sua importância, visto
que os cônsules eram nomeados pelo Imperador ou pelo Senado,
conforme uma indicação imperial; o consulado, originàriamente o
símbolo e a garantia da liberdade política dos eives romani, pas-
sou a ser, durante a monarquia, um título meramente honorífico,
concedido desde 284 d. C., a bel-prazer do "Dominus" soberano.
Quando, desde 395, o Império estava dividido em duas metades, tor-
nou-se costume que cada um dos dois Imperadores nomeasse um côn-
sul, devendo comunicar a nomeação ao seu colega antes do fim do
ano: os dois nomes eram publicados juntos. Em 534 foi nomeado
o último cônsul, Paulino, no Ocidente; em 541 o último no Oriente,
Basílio. Oficialmente foram abolidos os anos consulares em 537
por um Decreto do Imperador Justiniano (13) , mas o século VI
continuou a seguir a longa tradição: o ano 565 é, em vários do-
cumentos, indicado: "o ano XXIV depois do consulado de Basílio".
São salientes as desvantagens dêsse método: um romano em
150 d. C., a escrever a história do seu povo, precisava de uma lista
(os chamados fasti consulares), que contivesse todos os cônsules
(10) . — Plutarchus, Agis, 3, precisa de um capítulo inteiro para esclarecer aos lei-
tores que está falando do período 245-241 a. C.
— Thucydides, Historiae, II 2, 1.
Em 510 a. C., o último rei dos romanos, Tarqüínio o Sobêrbo, teria sido ex-
pulso da cidade. A data tem, porém, apenas valor convencional, e baseia-se
provavelmente numa tentativa dos romanos de harmonizar a sua história com
a dos atenienses: em 510 a. C. foi expulso o último tirano da cidade de Atenas.
(12a). -- Horário era sucessor de Bruto (que caíra numa batalha contra o filho do rei
expulso) e Valério o de Tarquínio (que fôra obrigado a abdicar do consulado).
— Novella, 47.
500

durante um período de 660 anos! Impossível saber de cór tal lista,


nada mais comum do que cometer um êrro que podia ser fatal. Ade-
mais, havia anos sem cônsules (por exemplo 324 a. C.), havia anos
com outros magistrados supremos (por exemplo 451-450 a. C.), ha-
via anos de um único cônsul (por exemplo 510 d. C.), e afinal, a
dignidade consular era quase hereditária em certas famílias aristo-
cráticas, de modo que são quase sempre os mesmos nomes, — e re-
lativamente poucos, — que constam nos fasti consulares.
c) Desde o império de Diocleciano (284 d. C,), tornava-se
cada vez mais comum indicar o ano pelo número dos anos do rei-
nado do Imperador . Os papas, no início da Idade Média, começa-
ram a adotar essa praxe, que ainda encontramos nas Encíclicas mo-
dernas, etc.; adotaram-na também os monarcas. No fim da Encícli-
ca Quadragesimo Anno lemos por exemplo: Datum Romae apud
S. Petrum, die 15 mensis Maii anno 1931, Pontificatus Nostri armo
decimo. Hoje em dia, tal indicação é uma fórmula tradicional e so-
lene, logo tornada clara pela data ineqüívoca: 15 de maio de 1931;
na Idade Média, porém, estava sõzinha, ou então, era acompanhada
de outras fórmulas, não menos vagas.
II. A Indicção.
O Estado romano, adotando um antigo sistema egípcio, fixava,
á partir dos impérios de Diocleciano e Constantino, de 15 em 15
anos os impostos a serem pagos pelos súditos; decorridos êstes, bai-
xava nova Indictio (=Decreto), indicando as taxas por novo prazo
de 15 anos. Daí vir a ser chamada de Indictio tal ciclo de 15 anos,
e mais tarde, — pôr um processo lingüístico, não sem paralelo, —
cada um dêsses 15 anos ficar com o nome de Indictio, numerado
:respectivamente 1, 2, 3, 4, etc. Ao cabo de 15 anos, começava-se a
numerar novamente: Indictio 1, 2, 3, 4, etc. Pelo início da primeira
Indicção passa o dia 1.° de setembro de 297 ou 312 d. C., de modo
que:
Indictio 1=- 297/98, 312/313, 327/328, 342/343, etc.
Indictio 2 298/99, 313/314, 328/329, 343/344, etc'.
Indictio 15= 311/12, 326/327, 341/342, 356/357, etc.
Depois de uma existência de mais de dois séculos, essa maneira
de designar os anos foi oficializada em 537 pela mesma lei que
áboliu os anos consulares. Na Idade Média o sistema era univer-
sal, e o Supremo Tribunal do Sacro Império Romano, em Wetzlar,
manteve-o em vigor até 1806. Empregado sem outros indícios, o
Método de contar os anos por meio de Indicções é extraordinária-
Mente obscuro. Além disso, o início da Indicção não coincide corte
O do ano civil. E aumenta a confusão o fato de haver três Indic-
501:

ções diferentes: a Indictio Constantinopolitana, de praxe no Im-


pério Oriental, que começa no dia 1.° de setembro e finda no dia
31 de agôsto; a Indictio Caesariana, no Império Ocidental, de 24
de setembro a 23 de setembro; e a Indictio Romana, usada na
chancelaria papal, de 25 de dezembro a 24 de dezembro.
Para acharmos a Indicção que compete a certa data histórica
(por exemplo 28 de janeiro de 814, a data da morte de Carlos
Magno), devemos acrescentar o número 3 a essa data (814--3=
817), e dividir êste último número por 15. O resto, se houver, dá
a Indicção procurada, no nosso caso: T; se não houver resto, a
Indicção será 15. Mas o ano 814, a partir de 1-IX, ou 24-IX, ou
então 25-XII, terá por Indicção o número 8.
III. As Éras prôpriamente ditas.
a) As Olimpíadas.
Já nos fins do segundo milênio a. C., Olímpia, no Peloponeso,
era um recinto consagrado ao culto de Zeus (latim: "Júpiter").
Não se sabe ao certo quando aí foram celebrados, pela primeira
vez, os jogos pan-helênicos, mas desde o ano 776 a. C. eram regis-
trados os vencedores dos certames, de modo que êste ano em mui-
tos livros figura, da maneira menos exata, como o ponto inicial
dos afamados jogos olímpicos. A festividade, que se repetia de 4
em 4 anos, era um grande acontecimento na vida esportiva e cul-
tural da Hélade, principalmente na época clássica (14). Foram
motivos religiosos que levaram o Imperador Teodósio, em 394 d.
C., a acabar com essas reuniões festivas de natureza pagã, as quais,
aliás, então se achavam em plena decadência (15) . O período
intermediário entre duas festividades em Olímpia chamava-se "olim-
píada", cujo início não era um dia fixo, mas geralmente caía em
julho, no verão europeu. O historiador grego Timeu de Tauromênio
(16) foi o primeiro a valer-se das olimpíadas na historiografia, e seu
exemplo foi seguido por numerosos autores de anais e crônicas, em-
bora as olimpíadas nunca chegassem a se tornar na Antigüidade uma
éra universalmente seguida.
Os persas foram derrotados perto de Salamina no verão do
ano 480 a. C. Qual a olimpíada correspondente? 776-480=296 (o

— Na época clássica havia em Olímpia também preleções, declamações e confe-


rências; depois do século IV a. C., as reuniões esportivas foram degenerando
por causa do profissionalismo e da mania de estabelecer recordes.
— Os jogos olímpicos foram celebrados na Antigüidade (desde 776 a. C.) 293.
vêzes. Segundo o escoliasta de Luciano (p. 221, ed. Jacobitz), foi com o
Imperador Teodósio II (408-450) que terminaram os jogos olímpicos. — Os
jogos modernos, restaurados por uma iniciativa do francês barão de Coubertin,
datam do ano 1896 (Atenas). Atualmente vivemos (1955) na Olimpíada
(moderna) 15,3 (antes de julho) ou 15,4 (depois de julho).
— Timeu de Tauromênio (±346-±250 a. C.) escreveu uma História r::a Sicília
em 38 livros, que, afora alguns fragmentos, não chegou até nós. Sua alcunha
era "Epitimeu", isto é: "Vituperador, Cavilador" devido às suas críticas ásperas.
--- 502 --

número dos anos decorridos desde 776). Oi•a, neste período de


296 anos os jogos olímpicos foram celebrados 74 vêzes: 296+4=74.
Visto que a batalha de Salamina se verificou no verão, logo depois
de realizados os jogos olímpicos que deviam ter lugar neste ano
(17), caíu no primeiro ano da Olimpíada 75 (=Olimpíada 75, 1);
a primavera do mesmo ano era ainda Olimpíada 74, 4.
Ab Urbe Condita.
Segundo uma tradição antiga (18), a cidade de Roma teria
sido fundada no ano 753 a. C., no dia 21 de abril. Apesar de pos-
suir essa data só valor convencional, tornou-se costume, entre os ro-
manos do século I a. C., partir dela para indicar os anos. E, desde
o século XIX, muitos historiadores reencetaram a praxe romana.
Júlio César foi assassinado no dia 15 de março de 44 a. C.,
quer dizer, nos fins do ano 708 depois da fundação da Cidade, em
latim: ab Urbe condita (abreviatura: a. U. c.). A partir de 21 de
abril, o mesmo ano era 709 a. U. c. Geralmente, porém, fazia-se
coincidir o início dos anos a. U. c. com o do ano civil (=1.° de ja-
neiro), de modo que 44 a. C. =709 a. U., 43 a. C. =710 a. U. c.,
etc.
Éra de Augusto.
A Éra de Augusto tem por ponto inicial o dia 1.° de janeiro
de 38 a. C. No ano anterior, Augusto, o então Otaviano, tinha apa-
ziguado a península ibérica, e embora êsse fato não tivesse caráter
definitivo (19), começou-se aí a falar numa nova época, que seria
indicada por uma nova éra: a éra de Augusto ou a éra espanhola.
Manteve-se em Espanha até o século. XIV, e em Portugal até o
ano 1422.
Éras Mundiais.
Cálculos de natureza especulativa, pretensamente baseados
em dados bíblicos, fixaram a data da Criação do mundo no ano
5509 a. C. (é a éra bizantina), ou no ano 3761 a. C. (é a éra judia).
Éras Orientais.
Entre os povos do Próximo Oriente (Síria, etc.) usa-se ainda
hoje em dia, embora ameaçada cada vez mais pela éra cristã, a
chamada Éra dos Selêucidas, que tem por ponto de partida o dia
1.° de outubro de 312 a. C., quando o rei helenístico Seleuco Nica-
(17). — Aliás sabemos pelo testemunho de Heródoto (Historiae, VIII 26) que os gre-
gos neste ano, pouco tempo antes da invasão persa, celebraram os seus jogos
para grande admiração do general do exército bárbaro.
(18) . — E' a chamada Acra Varroniana (de Varrão, cf. 4 II d), embora êste erudito
calculasse a fundação em 754 a. C. Outras datas são 751, 729 e 814 (Ti-
meu), mas geralmente se segue a éra pretensamente varroniana.
(19). Só em 20-19 a. C., Agripa, o general do Imperador Augusto e seu suposto
sucessor, conseguiu pacificar definitivamente as Espanhas.
— 503—

tor (20) ocupou definitivamente Babilônia. A originalidade do fa-


to consiste em ser esta Éra dos Selêucidas não uma contagem por
meio dos anos de império dos monarcas individuais, mas das di-
nastias. Depois de haver expirado a dinastia, em 64 a. C., manteve-
se a Éra dos Selêucidas em muitas províncias orientais.
Outras tentativas de marcar o início de uma nova dinastia com
uma nova éra foram feitas pelos arsácidas, os reis dos partas (21),
em 247 a. C., e por: Diocleciano, no dia 24 de agôsto de 284 d. C.:
esta última chama-se muitas vêzes a "Éra dos Mártires" (22).
Mais importante é a éra maometana, a chamada "Hégira" (=
Fuga), que parte do ano 622 d. C., quando o profeta se. viu obri-
gado a fugir de Meca para Medina. Realizou-se êsse fato no dia
20 de setembro de 622, mas quando em 637 o segundo califa dos
muçulmanos, Ornar, introduziu a nova éra, tomou por ponto inicial
o dia 15 de julho de 622 (=dia 1.° do mês "Moharrem") com o fim
de fazer coincidir o princípio da éra com o do ano maometano.
f) A Éra cristã.
Em 527 d. C., Dionísio Exíguo, monge cita, que vivia em Ro-
ma e era amigo de Cassiodoro, escreveu uma obra para esclarecer a
então disputada data da Páscoa (Cornputus Paschalis), introdu-
zindo aí um novo ciclo, que partia do acontecimento central da his-
tória, quer dizer, da Encarnação de Nosso Senhor. Introduziu-o
para evitar no cômputo a menção do ímpio perseguidor da Igreja,
Diocleciano (23). Dionísio considerava o dia 25 de março (= festa
da Anunciação) do ano 753 ab Urbe Condita (= Olimpíada 194,
4) como a data dá Encarnação: o dia de Natal do mesmo ano era
considerado como o primeiro dia do ano 1 d. C. Mais tarde, porém,
quando se celebrava o Ano Bom no dia 1.° de janeiro, acostumava-
se considerar o primeiro dia do ano 754 a. U. c. como o princípio
do ano 1 d. C. E' esta a éra cristã ou dionisiana, adotada logo pela
Igreja e depois pelos carolíngios (24), e embora muito usada desde
a Idade Média, foi aplicada conseqüentemente só a partir do sé-
culo XVII.
A éra cristã tem dois defeitos pouco conhecidos. Em primeiro
lugar, falta-lhe o ano zero (= o ano do nascimento de Jesús Cris-
to), de modo que o ano 753 a. U. c. = 1 a. C., e 754 a. U. c. = 1 d.
C. Não constitui, portanto, uma série algébrica. As festas do mile-

— A éra foi introduzida por seu filho, Antíoco I, em 280 a. C.


— Os partas,.uma tribo da Irânia, eram os sucessores dos persas, os quais ti-
nham sido derrotados por Alexandre Magno. Em 247 a. C. conseguiram liber-
tar-se dos selêucic.as, e mantiveram a sua independência contra a Síria e Roma
(55 a. C.: expedição malograda de Crasso!) até o século III d. C.
— O nome é meio esquisito: o famoso Edito de Diocleciano contra os cristãos
data do ano 303.
Cf. Migne, Patres Latini, LXXVII 487A. — A "Éra de Diocleciano", cf. III e
Já foi usada no túmulo ce Carlos Magno (814, em Aix-la-Chapelle).
-- 504 —

vário da fundação de Roma, celebradas no, reinado do Imperador


,

Felipe-o-Árabe, não cairam em 247, mas em 248 d. C. Em segundo


lugar: nasceu Nosso Senhor, não em 753 á. U. c., mas em 748, ou
mais cêdo ainda . Apesar dêsses dois defeitos, dos quais o segundo
é de somenos importância para uma éra, o ciclo dionisiano con-
quistou quase o mundo inteiro, e • à obra modesta de um monge cita
devemos a bela expressão: no ano tal da Encarnação.
g) Algumas revoluções dos tempos modernos, geralmente com
o fim de destruir as reminiscências cristãs, inerentes à éra dionisia-
na (25), procuraram substituir esta por urna nova.
Assim fêz a Convenção francesa (1792-1795), instituindo, no
dia 6 de outubro de 1793, uma éra republicana, que partia do dia
22 de setembro do ano anterior (26) . Perdurou até 1.° de janeiro
de 1806, quando foi abolida por Napoleão (decreto do dia 9 de
setembro de 1805). Os anos republicanos são geralmente indicados
por algarismos romanos, por exemplo IV = 22 de setembro de
1795 a 21 de setembro de 1796. Houve dêles só 13 anos, e poucos
meses; o ano I não pode figurar em nenhum documento autêntico.
Mussolini fêz outra tentativa, introduzindo no_ s atos públicos
a "Éra Fascista", que parte do ano 1922 (= ano I) e viveu uns 20
anos.
A Revolução bolchevista, que se verificou no dia 17 de setem-
bro de 1917, emprega outra Éra revolucionária (1917 = ano I) .
IV. Os Séculos.
A palavra latina saeculum (27) não indicava, entre os roma-
nos, uma unidade fixa, mas significava "geração", um período de
30 anos (28), ou outro espaço variável de tempo, como nós ainda
costumamos falar no "Século de Ouro", "Século de Luís XIV", etc.
Em Roma eram celebrados, desde tempos imemoriais, os chamados.
ludi Tarentini ou saeculares; o Imperador Augusto, fazendo ques-
tão de revivificar os antigos costumes, queria reconstituir também
os ludi ,saeculares, mas era uma questão duvidosa de quanto em
quanto tempo deviam ser celebrados. O colégio dos quinze sacer-
dotes, encarregados de consultar e interpretar os livros sibilinos

• — Foi êsse o propósito principal do Calendário Republicano da Revolução fran-


cesa, confessado francamente pelos "hébertistes" . O calendário foi elabo-
rado pelo matemático Ch.-G. Romme e pelo poeta Fabre d'Egíantine.
. No dia 22 de setembro de 1792, o início do outono na França, fôra pro-
. clamada a República.
. — A palavra saeculum relaciona-se com semen (=semente), e quer dizer: "ge-.
ração". Segundo Isidoro de Sevilha, Etymologiae V 38,1: Saecula generatio-
nibus constant; et inde seecula, quod se sequantur: abeuntibus enfim aliis
succedunt.
(28).- — Cf. Servius, ad Aeneidem, VIII 508; ad Eclogam, IV 5; Plinius, Naturafis.
Historia, XVI 250.
-- 505 —

(29), declarou ser de 110 anos o prazo de um saeculum, (30).


Foram celebrados em 17 a. C., e o poeta Horácio compôs para tal
fim o célebre Carmen Saeculare. Apesar de muitos autores roma-
nos equipararem o saeculum a 100 anos, essa contagem tornou-se
normal só nos tempos modernos. O século começou em 1901, e não
em 1900, como se admite muitas ,vêzes: pois, devido ao 'erro da
éra dionisiana, que não possui o ano zero, começou o século I no
ano 1 d. C.

§ 53. O princípio do ano.

Na Antigüidade e na Idade Média não existia uniformidade


quanto ao primeiro dia do ano. Deixamos de lado aqui os "estilos"'
da Antigüidade, que são variados e complicados, e possuem pouca
importância para o historiador que não seja especialista: falamos
apenas nos diversos "estilos" medievais (31)
Stilus Annuntiationis.'
Já vimos que Dionísio Exíguo fixava a Encarnação no dia 25
de março, data em que a Igreja •comemora a Anunciação. Esta da-
ta fica bastante perto do equinócio primaveril (no hemisfério se-
tentrional), quando, segundo especulações mitológicas da época he-
lenística, teria nascido o primeiro mundo, o chamado Natale Mundi
(32) . São Martinho de Braga, o primeiro bispo de Portugal (±515-
580), defendia, num dos seus sermões, a tese de ser 25 de março o
primeiro dia do ano, baseando-se em dados bíblicos (33) . O Stilus
Annuntiationia existiu na França medieval, ao lado de outros esti-
los, até o século XV. Na Inglaterra era de 1155 a 1752 o estilo le-
gal, apesar de considerar o povo britânico o dia 1.° de janeiro co--
mo New Year's Day.
Stilus Paschalis.
Mais incômodo era o Estilo de Páscoa, no qual o princípio
do ano dependia da festa de Páscoa, que é móvel. Na França me-
dieval êste estilo era muito usado, até que foi abolido em 1563,

— Trata-se aqui dos livros sibilinos que, segundo a tradição, teriam sido vendi-
dos por uma profetisa a um dos reis romanos; foram destruídos, em 83 a .C.,
por um incêndio do Capitólio. Então o Senado enviou deputados ao Oriente
para recolherem novos oráculos sibilinos. Quinze sacerdotes ficaram encarregados
de guardar os livros e de consultá-los, surgindo circunstâncias difíceis para o
Estado Romano.
— Cf. Censorinus, De Die Natali, XVII 9.
— "Estilo" é o têrmo técnico para indicar a data que passa pelo primeiro dia
do ano.
— Filo de ,Alexandria diz que o equinó -io da primavera é o símbolo e a ima-
gem daquele Início Absoluto, em que Deus organizou o mundo (De Septenario,
19). -- Cf. Julianus Imperator, Oratio, V p. 168 C-D.
<33). — Martinus Bracarensis, De Correctione Rusticorum 10. — Para pormenores,
cf. J. van den Bessela
ar, Quaestiunculae Chronologicae (Anuário da Faculdade-
de Filosofia "Sedes Sapientiae" da PUCSP, 1953, pp. 163-178).
— 506 —

durante o reinado de Carlos IX. O ano 1347 tinha, conforme o


Stilus Paschalis, quase 13 meses, visto que começou no dia 1.° de
abril de 1347 e terminou no dia 20 de abril do ano seguinte.
Stilus Nativitatis.
Em Espanha, Portugal, Alemanha e em muitas províncias da
Itália começava o Ano Novo no dia 25 de dezembro. Só no século
XV aboliram êste estilo a Alemanha e Portugal; a Espanha já no
século anterior.
Stilus ,Circumeisionis.
Júlio César ordenou que, a partir do ano 45 a. C., o dia 1.°
de janeiro fôsse o início do ano, em cuja data, desde 153 a. C., os
cônsules romanos tomavam posse de seu cargo (34). Êste estilo,
na Idade Média batizado com o nome: Stilus Circumcisionis, era
largamente usado no Império Romano, depois sofreu a concorrên-
cia dos outros estilos de origem mais cristã, e chegou a revigo-
rar-se nos fins da Idade Média. Foi adotado oficialmente pela
reforma do calendário que se verificou em 1582 sob o Pontificado
de Gregário XIII (1572-1585). Hoje é seguido por tôdas as na-
ções civilizadas.

§ 54 Os meses.

Quanto aos meses (35), limitâmo-nos aqui a falar dos romanos


e dos republicanos; outros sistemas, seguidos por exemplo no Egi-
to, na Grécia •e entre os muçulmanos, interessam só a especialistas.
I. Os Meses Romanos.
Os nomes dos 12 meses romanos, precursores imediatos dos
atuais, eram: Januarius, Februarius, Martius, Aprilis, Majus, Ju-
nius, Quintilis (=Julius), Sextilis (=Augustus), September, Oc-
tober, November, e December. Antes da reforma do calendário
romano, efetuada pelo ditador Júlio César em 46 a. C., o ano ro-
mano começava no dia 1.° de março, e a etimologia das palavras
Quintilis, Sextilis, September, etc. ainda atesta o fato. O nome
Quintilis foi substituído por Julius em 44 a. C., em honra do di-
tador assassinado, por proposta do triúnviro M. Antônio; o nome
Sextilis pelo título honorífico Augustus, que recebera Otaviano de-
pois do seu triunfo sôbre os seus rivais (36). Malograram as ten-

— Anteriormente era no dia 15 de março (de 222 a 153 a. C.); nos tempos
iniciais da República, no dia 1.. de maio.
— A palavra "mês" (latim: mensis) é cognata com moon em inglês (:"lua").
— Angustas (grego: "Sebastós", cf. Sebastópolis") quer dizer: "veneranc.'o, ma-
jestoso".
- 507—

Cativas de Imperadores mais recentes para dar seu nome a um


dos meses (37).
Os romanos não conheciam a contagem contínua dos dias de
um mês, como nós costumamos fazer, mas tinham em cada um
dêles três pontos fixos, que chamavam: Kalendae (o dia 1.° do
mês), Nonae (o dia 7 de março, maio, julho e outubro; o dia 5
dos outros meses), e Idus (o dia 15 dos quatro meses menciona-
dos; o dia 13 dos outros meses). Mediante êsses três nomes indi-
cavam todos os dias do mês, seguindo um método complicado e
esquisito (38) . Falando por exemplo no dia 2 de janeiro, usavam
a expressão: ante diem IV Nonas Januarias, ou simplesmente: IV
ante Nonas Januarias (39), contando para diante como um me-
nino escolar que numera os dias que o separam das férias, e in-
cluindo nos seus cálculos o ponto de partida (terminus a quo),
e o ponto terminal (terminus ad quem), o que explica a diferen-
ça de um dia com a contagem atual. O dia imediatamente ante-
rior a um dos três pontos fixos chamava-se pridie, por exemplo 4
de janeiro: pridie Nonas Januarias. Alguns exemplos podem ilus-
trar a praxe dos romanos:

1.° de janeiro Kalendis Januoriis


3 de janeiro (5+1-3) a. d. III Nonas Januarias
3 de março (7+1-3) a. • d.. V Nonas Martias
4 de janeiro pridie Kalendas Februarias.
5 de janeiro Nonis Januariis
6 de março pridie Nonas Martias
7 de março Nonis Martiis
8 de janeiro (13+1-8) a. d. VI Idas Januarias
8 de março (15+1-8) a. d. VIII Idas Martias
12 de janeiro pridie Idas Januarias
12 de março (15+1-12) a. d. IV Idas Martias
13 de janeiro Idibus fanuariis
15 de março Idibus Martiis
16 de janeiro (32+1-16) a. d. XVII Kalendas Februarias
16 de março (32+1-16) o. d. XVII Kalendas Apriles
31 de janeiro pridie Nonas Martias

De 4 em 4 anos, os romanos acrescentavam um dia ao mês de


fevereiro. Diferentemente do costume atual, não era o dia 29 de
fevereiro que era considerado como o dia extra, mas êste era in-
tercalado entre o dia 23 (festa dos Terminalia) e o dia 24 (festa

. — Tentaram uma modificação Calígula (37-41) e Domiciano (81-96). — Cf.


Suetonius, Caligula 15 e Domitianus 13; Macrobius, Saturnalia 1 12, 36.
. — A exposição seguinte tem apenas valor para . o período posterior à reforma do
calendário romano por Júlio César em 46 a. C.
. Originàriamente, as meses romanos eram adjetivos: daí. Nonas Januarias, etc.
Mais tarde, porém, eram considerados também como substantivos; daí: Nonas
Januarii, etc.
do Regiiugium) do mesmo mês. O dia 24 era contado duas vêzes
(bis) desta maneira (40):

23 de fevereiro (29+1-23) a. d. VII Kalendas Martias


o dia intercalar a. d. VI Kalendas Martias
24 de fevereiro a. d. bis VI Kalendas Martias
25 de fevereiro a. d. V Kalendas Martias.

Daí os têrmos modernos: "ano bissexto", em português; an


bissextil, em francês.
II. Os Meses Republicanos.
A Revolução francesa, filha das doutrinas esclarecidas do século
XVIII, 'queria acabar com um calendário caprichoso, e deu origem a
12 novos meses, cada um de 30 dias e provido de um belo nome.

Outono : Vendémiaire (setembro-outubro)


Brumaire (outubro-novembro)
Frimaire (novembro-dezembro)
Inverno: Niuôse (dezembro-janeiro)
Pluviôse (janeiro-fevereiro)
Ventôse (fevereiro-março)
Primavera: Germinal (março-abril)
Floréal (abril-maio)
Prairial (maio-junho)
Verão: Messidor (junho-julho)
Thermidor (julho-agôsto)
Fructidor (agôsto-setembro) .

§ 55. A semana.

A semana (41) é uma unidade cronológica mais ou menos na-


tural, relacionando-se evidentemente com as fases da lua, e encontra-
se em várias culturas de quase todos os continentes. Isso não quer
dizer; porém, que todos os povos conheçam uma semana de sete
dias: existem numerosos outros sistemas de subdividir os meses.
I. A Semana de Sete Dias.
Os gregos clássicos e os romanos dos tempos republicanos não
conheciam a semana de sete dias. Esta entrou em nossa civiliza-
ção por dois caminhos diferentes: via a semana planetária e via a
semana judia-cristã,
a) Em última análise, a semana atual remonta aos babilônios
ou "caldeus", os grandes astrônomos e astrólogos da Antigüidade.
Também os hebreus lhes deviam a sua semana. O número sete
' (40) • — Seguimos aqui a autoridade ne Censorinus (De Die Natali, X 10) e de Ma-
crobius (Saturnalia, 1 14,6) . Muitas vêzes pensa-se erradamente que o dia
extra tenha sido intercalado entre o dia 24 e o dia 25 de fevereiro.
(41) . — "Semana" deriva da palavra latina "septimana" (grego: "hebdomás").
X 09 —
ocupa em várias culturas um lugar especial (42): os povos orien-
tais consideravam-no como nefasto (babilônios) ou como sagrado
<judeus). E' bem conhecido o papel de destaque que o número
setenário desempenhava na vida religiosa dos israelitas: os sete
dias da Criação, as sete semanas entre Páscoa e Pentecostes, o can-
dieiro de sete braços, e afinal, o sétimo dia da semana: o sábado.
O judeu Filo de Alexandria (20 a. C. — 50 d. C.) consagrou um
tratado especial ao sagrado número sete.
b) Foi só por volta de 100 a. C. que vieram a ser combina-
dos os nomes dos sete planetas (43) com os sete dias da semana.
Ao contrário do que se pensa muitas vêzes, a semana planetária
tlãO é invenção dos caldeus, mas tem suas raízes históricas em es-
peculações astrológicas da época helenística (44), cujo sincretismo
teria tão grande repercussão na religiosidade e na filosofia do Im-
pério Romano (45). Sem que nos seja possível apontar certa es-
cola ou certo filósofo como autor da nova instituição, podemos as-
segurar com muita probabilidade que nasceu em Alexandria, onde
o pensamento grego se ia casando com as especulações místicas do
Oriente.
A ciência helenística considerava sete astros como planetas, to-
dos êles a girarem em volta da terra: Saturnus, Jupiter, Marra, Sol,
Venus, Mercurius e Luna (46). Na ordem das distâncias da Ter-
ra, centro do Universo, Saturno ocupava o último lugar e a Lua
o primeiro. A primeira hora do primeiro dia da semana era consa-
grada ao primeiro planeta, isto é, a Saturno; a segunda hora do mes-
mo dia, a Júpiter; a terceira, a Marte, e,assim por diante. Chamava-
sé "regente" ou "senhor" do dia o planeta ao qual era consagrada a
primeira hora do dia, de modo que Saturno era "regente" do pri-
meiro dia.
De acôrdo com êste cálculo, cabiam a Saturno também a oi-
tava, a décima quinta e a vigésima segunda hora do primeiro • dia,
do qual Júpiter e Marte ocupavam as duas últimas horas. Destarte
era regente do segundo dia o Sol, a quem era dedicado êste dia de
maneira especial. Continuando o processo, podemos verificar que
.a ordem dos diversos regentes deve ser; Saturno, Sol, Lua, Marte,

(42) . — Na AntigüidaGe clássica por exemplo: as sete cidades que disputavam entre
si a honra de serem o lugar de nascimento de Homero; as sete colinas de Ro-
ma; os sete sábios; as sete maravilhas do mundo; os sete reis de Roma, etc.
— Os nomes dos sete dias da semana não se ligam aos nomes mitológicos G'e Zeus,
Marte, etc., mas aos nomes astrológicos dos planetas.
— Nessa época renasceu a astrologia, principalmente sob a influência do filósofo
estóico Posidônio, o qual era influenciado por especulações neopitagóricas.
— São visíveis as influências dessas antigas teorias na obra de Dante.
— O sistema helenístico era bem diferente dos sistemas "clássicos", desenvolvidos
por Filolau (pitagórico, século V a. C.), Platão e Aristóteles. — Em ,1781
foi descoberto o planeta Urano, em 1846 Neptuno, e em 1930 Plutão. Alétn
disso conhecemos hoje uns 1.300 planetas pequenos, dos quais o primeiro foi
destóberto em 1801. '
--- 510 —

Mercúrio, Júpiter e Venus. E' essa a ordem dos dias da semana


planetária, cujos nomes em latim são: Dies Saturni, Dies Solis,
Dies Lunae, Dies Martis, Dies Mercurü, Dies Jovis, Dies Veneris
. Esta terminologia é encontrada, desde o século I a. C., em
autores gregos e latinos, e principalmente em inscrições.
c) Com esta semana planetária devia entrar em competição
a semana dos judeus, e depois a dos cristãos. Aliás, os autores pa-
gãos confundem de vez em quando as duas. Os judeus numeravam
os dias da semana, tendo só o sábado um nome próprio. A Igreja,
adotando a semana judia, modificou-lhe o caráter: promoveu o
segundo dia da semana à categoria do sábado hebreu. Concorreu •

para essa mudança não só o desêjo de se diferenciar dos judeus


mas, principalmente, o fato de ser o dia seguinte a sábado a data
comemorativa dos grandes acontecimentos do Cristianismo: a Res-
surreição e a Descida do Espírito Santo. A semana eclesiástica in-
dicava dois dias com um nome especial: dominicUs (ou, dominica)
e sabbatum. Os outros dias eram contados: feria II, feria
III, feria IV, feria V, e feria VI. Além das línguas eslavas e do gre-
go moderno (49), o português é o único idioma europeu a conser-
var a nomenclatura eclesiástica (50) . As línguas românicas se-
guem esta apenas para designar o domingo e o sábado, mas conti-
nuam a indicar os outros dias com os nomes pagãos. Nos idiomas
germânicos êste sistema é ainda de praxe para todos os dias da .

semana.
Português: Espanhol: Francês: Latim:
Domingo Domingo Dimanche Dominicus (-ca),
2a. feira lunes lundi feria II
dies Iunae
3a. feira martes mardi feria III
dies martis
4a. feira miércoles mercredi feria IV
dies mercurii
5a. feira jueves jeudi feria V
dies jovis
$a. feira viernes vendredi feria VI
dies veneris
sábado sábado samedi sabbatum
dies saturni

. — Cf. Dio Cassius, Historia Romana, XXXVII 18-19.


. — Em grego: "kyriaké", de "kyrios" (=Senhor) .
• — O grego moderno numera os dias da semana com exceção de "sábbato",_
"kyriaké", e "paraskeué" (="preparo"-6a. feira) .
— O motivo dessa singularidade é pouco sabido. Será que a influência de São
Martinho de Braga (cf. nota 33) contribuiu para o povo português adotar a ,
nomenclatura eclesiástica? (Cf. de Correctione Rusticorum, 8) .
— 511—

Mas o inglês e o alemão têm:



Latim: Inglês: Alemão: Tradução:

dies solis Sunday Sonntag sun=Sonne=Sol


dies lunae Monday Montag moon=Mond=Lua
dies martis Tuesday Dienstag Tiu ou Ziu=Mar-
te (51)
dies mereurii Wednesday Mittwoch (52) Wodan=Mercúrio
dies jovis Thursday Donnerstag Dônar=Júpiter
dies veneris Friday Freitag Freya=Vênus
dies saturni Saturday
(sabbatum) Samstag (53)

II. Outros Sistemas.

Os antigos egípcios e gregos não conheciam semanas de


sete dias, mas "décadas", períodos de dez dias.
Os republicanos franceses adotaram, no seu calendário, as
décadas, dando êstes nomes aos dias: primidi, duodi, tridi, quartidi,
quintidi, sextidi, sextidi, octidi, nonidi, e décadi .
A União Soviética introduziu em 1929 uma semana de
5 dias.
Os romanos primitivos tinham internundinia, isto é, pe-
ríodos de oito dias que decorriam entre duas nundinae ou feiras ur-
banas, realizadas nono quoque die, nas quais os camponeses iam ven-
der na cidade os seus produtos, fazer as suas compras e tratar das
coisas públicas. O trinum nundinum ou trinundinum era um pe-
ríodo de 17 dias, que abrangia três dessas feiras: era o prazo legal
que devia decorrer entre a convocação e a realização de uma assem-
bléia popular (54).
§ 56. O ano.
A origem da palavra latina annus não se relaciona, como se
lê em muitos livros, com os vocábulos anulus (anel) e anus (argo-
la, ânus), mas remonta a uma raiz indo-européia que significa:
"andar". O ano é, pois, "o que anda".
I. O Ano egípcio.
Os egípcios, ao contrário dos outros povos orientais que tinham
um ano lunar, conheciam, já desde tempos imemoriais, um ano so-
— As equiparações das divindades romanas (gregas) e germânicas são, muitas
vêzes, bastante precárias.
— Inovação alemã: "meia semana".
— Samstag é adaptação 4c, francês: sarnedi; além disso, o alemão tem a palavra
Sonnabend (="véspera do dia do Sol").
— Cf. Varro, Rerum Rusticarum, II 1; Macrobius, Saturnalia, I 16, 28-36; Plinius,
Naturalis Historia, XVIII 13.
512—

lar . Muito provàvelmente chegaram a essa inovação devido ao fa-


to de começarem as inundações anuais do Nilo, o grande aconteci-
mento para a lavoura, nos meados do nosso mês de junho: uma sim-
ples observação os pode ter levado a calcular o ano em 365 dias.
Com efeito, o ano civil do Egito, que se manteve até os fins da An-
tigüidade, era de 365 dias. Êste ano, chamado "o ano Thouth" por
Thouth ser o primeiro mês do ano, era vago, porque, decorridos qua-
tro dêstes anos, o adiantamento em relação com o sol (o ano tró-
pico= -.±365, 25 dias) era de mais ou menos um dia.
Observações astronômicas vieram a aperfeiçoar o ano egípcio,
muito embora se tivesse em honra o ano vago por motivos religio-
sos. Os sacerdotes haviam observado que o levantar helíaco do as-
tro Sírio (=Sóthis) anunciava a chegada das inundações do Nilo:
no V milênio a. C., êsse fenômeno se verificava no dia 15 de junho
(estilo gregoriano). Ora, bem cêdo devem ter reparado que êsse
fato não se repetia de 365 em 365 dias, mas, — quase perfeita-
mente de acôrdo com a duração do ano trópico, — de 365,25 em
365,25 dias, e assim chegaram à conclusão quase acertada (55) de
que o ano solar tinha 365,25 dias: era o chamado ano "sotíaco".
No antigo Egito, o ano "Thouth" e o ano "sotíaco" coexistiram
mais de quatro milênios: o primeiro dia do ano "sotíaco" coincidia
com o do ano "Thouth" de 14.60, em 1460 anos (56): era o início
de um novo período "sotíaco" que era celebrado com grandes festi-
vidades pela população. Ora, sabemos que êsse fato se verificou
no ano 139 d. C. (57). Logo, deve ter-se verificado também em
1322, 2782 e 4242 a. C. Segundo muitos entendidos, o ano 4242
a. C. (58) seria a primeira data apontável na história da humanida-
de; segundo outros, o primeiro período "sotíaco" teria começado só
em 2782. Essas datas são, porém, contestadas em razão de argu-
mentos astronômicos: não levam em conta o fato de se acelerar aos
poucos o levantar helíaco de Sírio. Destarte deve ter-se tornado,
aos poucos, mais breve o ano "sotíaco" em relação com o ano trópi-
co. Segundo cálculos prováveis, só o primeiro período contava 1460
anos, o segundo apenas 1458, e o terceiro 1456, de modo que• a
primeira data da história seria 4236 ou 2776 a. C.

IY . O Ano grego .

Os gregos tinham originàriamente 12 meses de alternadamen-


te 30 e 29 dias: êste ano, baseado nas lunações, tinha, portanto,

— O ano trópico é de 365,2422 dias.


Pois: 365x1461= 433.265, e 365,25x1460. - -- 433.265.
— Censorinus, De Die ~ali XXI, 10.
(53). A data, indicada por, E. Meyer e adotada por quase todos os livros, é 4241
a. C.; êste cálculo, porém, não leva em consideração a. falta do ano zero
em nossa éra (cf. 12 52 III f).
— 513 —

354 dias. Para corrigir o adiantamento do ano em relação com o


sol, serviam-se, no decurso dos séculos, de vários meies, dos quais
a maior parte tem só interêsse para os especialistas. Basta mencio-
narmos aqui dois ciclos de maior relevância e bem documentados.
O primeiro (59) era a chamada octaéride, que abrangia
um período de oito anos regulares aumentados com 3 meses de 30
dias. Este ciclo tinha 2.922 dias, ou a média de 365,25 dias por ano.
O segundo era um ciclo de 19 anos, atribuído a Metão
(século V a. C.): 5 anos eram regulares (=1.775 dias), 7 tinham
354 dias (=2.478 dias), 6 tinham 384 dias (=2.304 dias), e 1 ti-
nha 383 dias. O total era, pois, de 6.940 dias, ao passo que 19 anos
julianos dão a soma de 6.939,75 dias (60) . Este ciclo foi introdu-
zido porque os atenienses faziam questão de começar o primeiro
dia do mês num dia em que era lua nova ("neomenia"), coincidên-
cia essa que era impossibilitada pela octaéride (61) . No ciclo de
Metão havia 235 lunações, o que dava uma média de ±29,5319 dias
para cada lunação, a qual, na realidade, é de 29,5306 dias (a cha-
mada lunação "sinódica") . Assim se tornava mínima a diferença.
Ao cabo de 19 anos, a diferença entre as duas lunações era ±- 0,3055
dias; ao cabo de 190 anos, só ±3 dias.
Cratipo (século IV a. C.) teria corrigido o ciclo de Melão,
introduzindo um ciclo de 72 anos (=4x19 anos), e tirando a um
dêsses 4 ciclos de 19 anos um dia. Assim o ciclo de Cratipo estava
completamente de acôrdo com o ano juliano de 365,25 dias.
Admite-se, geralmente, que os gregos, ao elaborarem o seu ca-
lendário, se aproveitaram bastante das observações astronômicas
dos povos orientais. O seu grande mérito consiste em terem apli-
cado métodos matemáticos à astronomia.
III. O Ano romano.
Segundo uma tradição pouco fidedigna, Rômulo, o primeiro
rei de Roma, teria dado um calendário de 10 meses ao seu povo, o
primeiro dos quais era março (62) . Quatro meses "longos" de 31
dias (março, maio, julho e outubro), e seis meses "breves" de 30 dias
faziam um total de 304 dias por ano. A notícia, embora comunicada

(59) . — Segundo alguns, teria sido inventada a octaéride pelo astrônomo grego Eu-
doxo (século IV); é muito mais provável, porém, que remonte aos babilô-
nios e tenha sido introduzida na Grécia já no século VII a. C.
— Segundo outras fontes, a estrutura do ciclo de Metão seria um pouco dife-
rente, e teria o total de 6.935 dias.
— A octaéride tinha 2.922 dias (8x354+3x30 dias) . Neste ciclo havia 99 luna-
ções, conforme o calendário, de modo que o prazo decorrido entre duas
luas novas, sempre segundo o calendário, era de 29, 5151 dias, enquanto que,
na realidade, é de 29,5306 dias. A diferença monta, cada lunação, 0,0155
dias; nas 99 lunações da octaéride, 1,5345 dias. Ao cabo de ±10 octaérides
(=80 anos), a lua cheia caía no primeiro dia do mês, que devia ser neo-
menía (=lua nova) .
— Cf. 54 I.

Revista de História ns.. 21-22.


— 514

por diversos autores, não merece a nossa confiança (63): um ano ,


vago de 304 dias devia ser um grande inconveniente para um po-
vo de lavradores como o eram os romanos. Parece mais prudente . '
pensarmos não em lunações, mas em certas divisões do ano, muito"
provavelmente relacionadas com a lavoura e cujo caráter podemos
mal determinar nos seus pormenores.
Melhor documentado é o calendário, que a tradição atribui ao .
rei Numa Pompílio ou a Tarqüínio Prisco: o novo ano romano fi--•
ciou com 355 dias por se lhe acrescentarem dois meses. Os 4 meses
longos (plani) conservavam os seus 31 dias, os seis breves (cavi)
contavam 29 dias, janeiro tinha igualmente 29 dias e fevereiro 28:
(64) .
Para harmonizar êsse ano lunar com a posição do sol, interca-
lava-se, de dois em dois anos, um mês de 22 dias (66) entre o dia
23 e o dia 24 de fevereiro (66) . Este mês, chamado mentis merca, > ,
donius, não era intercalado automàticamente, mas a sua intercala-
ção ficava a critério dos pontífices, que tinham a tarefa difícil de , .
harmonizar o-calendário não só com a posição do sol, como também
com as exigências imperiosas da religião. Apesar de haver regras
oficiais e objetivas concernentes aos menses mercedonii, muito proa
vávelmente já desde o ano 304 a. C., eram estas pouco respeitadas na
prática: os sacerdotes prolongavam ou diminuiam muitas vêzes o
ano conforme as suas simpatias ou antipatias políticas. Em geral,:,
lavrava muita confusão no calendário romano, principalmente nos
século da República .
IV. O Ano Juliano.
Júlio César acabou com essa situação insuportável. O dita-:
dor, pessoalmente interessado em assuntos astronômicos e orienta-
do pelo sábio Sosígenes de Alexandria, ordenou em 46 a. C. (67)
que, a partir de 45 a .C., o ano tivesse uma média de 365,25 dias (68);
que o equinócio da primavera fôsse fixado no dia 25 de março; que
o ano civil começasse no dia 1.° de janeiro; que de quatro em qua r
tro anos se intercalasse um bissexto entre 23 e 24 de fevereiro. Jú-
lio César foi assassinado no primeiro ano do novo calendário. Os
sacerdotes, que tomavam conta da execução das medidas, comete-.;
ram um êrro, propositado ou involuntário, intercalando de três em

— Cf. Censorinus, De Die Natali, XX 2, e Macrobius, Saturnalia, I 12,3.


— Por , motivos de superstição os romanos evitavam o número par, cf. Vergilius,
Numero deus impere estude! (Bucolica VIII 75). — Fevereiro era o más'
de "azar".
— Cf. Plutarchus, Vita Numae 18. — Segundo outros num período - de quatro-
anos haveria dois mentes mercedonii diferentes, um de 22, o outro de 23 dias.
— Dois anos tinham, pois, 732 dias, o que dá a média de 366 aias por ano.
— E' o chamado ennus com' usionis, que tinha 445 dias: um mensis mercedonius
de 23 dias foi intercalado em fevereiro, e ainda dois meses em novembro e
dezembro, êstes com o total de 67 dias.
— Vê-se sem dificuldade a influência egípcia: é o ano "sotíaso".
515

três anos um bissexto (69): em 8 a., C., descoberta a irregularida-


de, o Imperador Augusto tomou uma série de medidas para desfazer
as conseqüências da interpretação errônea e para prevenir que se re-
petisse tal êrro. Só no ano 5 d. C., o .calendário romano estava real-
mente de acôrdo com os decretos de César.
Mas havia duas inexatidões no cálculo de Sosígenes: o ano
trópico não tem 365,25 dias, mas, como já vimos, 365,2422 dias.
Esta diferença de 0.0078 dias por and faz em 400 anos um total
de 3,12 dias, de modo que o equinócio primaveril no calendário ju-
liano recuava cada vez mais para o princípio do ano: quase um dia
por século. Ademais, o equinócio, que se pretendia fixar no dia 25
de março, foi fixado erradamente no dia 23 ou 24 do mesmo mês.
Quando, em 325, os Padres da Igreja estavam reunidos em Nicêia
pára tratar, além de muitos outros assuntos, também da data da
Páscoa, era fato conhecido que nesse ano o equinócio não se veri:.
ficara aos 25, mas aos 21 dias do mesmo mês. Os bispos, imputando
o desvio simplesmente a um êrro de cálculo cometido por Sosígeries;
determinaram que, desde aí, se partisse do dia 21 para computar a
data da Páscoa, pensando que dessa maneira o êrro ficasse elimi-
nado para sempre. Não conheciam a primeira inexatidão do ano
juliano, que era mais fundamental.
• V . O Ano Gregóriano.
Em 1582 o equinócio caiu no dia 11 de março: o Papa Gregdp-
rio XIII, acedendo a uma solicitação, já externada pelo Concílio
de Trento, tomou duas medidas importantes. Reconduziu o equi-
nócio para o dia 21 de março, e decretou, para evitar que se Perl)e, -
tuasse o êrro do ano juliano, que daí em diante não fôssem anos
bissextos os anos centenários não divisíveis por 400. Destarte 1600,
2000 e 2400 seriam anos bissextos, e não os anos 1700, 1800, 1900,
2100, etc. Além disso, fêz pular um período de 10 dias, harmoni-
zando assim o novo calendário com as estações do ano: ao dia 4
de outubro de 1582 seguiu-se imediatamente o dia 15.
O ano gregoriano foi adotado logo pelos países católicos: Itá-
lia, França, Espanha, Portugal, Bélgica, Áustria, Baviera, Hungria
Polônia, Os países protestantes hesitaram muito tempo em intro-
duzir a inovação papista. A Prússia admitiu o novo calendário em
1.610; os outros países protestantes da Alemanha, a Escandinávia
a Holanda só em 1700; a conservadora Inglaterra em 1752. , Se-
guiram, em 1873, o Japão; em 1918, a Rússia; em 1923, a Grécia;
afinal, em 1928, a Turquia (70) . Um exemplo pode ilustrar ':a

— Os pontífices interpretaram o têrmo do decreto: quarto quoque armo não como


devia ser: perfecto, mas: incipiente.
— A Inglaterra pulou 11 dias em 1752; a Rússia até 13 dias em 1918 para ficar
de acôrdo com o ano gregorisum.
— 516 —

diferença entre os calendários da França e da Inglaterra no início


do século XVII. A rainha Elisabeth faleceu no dia 24 de março
de 1602, segundo o calendário inglês, mas no dia 3 de abril de
1603, segundo o estilo gregoriano, que era seguido nos países ca-
tólicos (71) .
A diferença do ano gregoriano, que tem a média de 365,2425
dias, com o ano trópico (=365,2422 dias), é mínima: só de 0,0003
dias por ano, quer dizer: 3 dias em 10.000 anos.

O Calendário Republicano.

Já vimos que a Convenção francesa, em 1793, adotou uma no-


va éra e um novo calendário. O ano tinha 12 meses, cada um de
30 dias, e terminava por 5 dias complementares (sansculottides),
consagrados às virtudes cívicas. De 4 em 4 anos havia mais um dia
complementar (année sextile), mas os anos bissextos não coinci-
diam com os do calendário gregoriano (111=1795; VII=1799; XI=
1803).

O Ano Muçulmano.

O Ano muçulmano é completamente lunar: num período de


30 anos há 19 anos de 354 dias, e 11 de 355 dias, cada um dos
quais é dividido em 12 meses. A média do ano é, portanto, de
±- 354 1/3 dias, o que dá uma diferença com, a média do ano juba-
-

no de -2:10 11/12 dias, ou quase de um ano inteiro (±360 dias)


num período de 33 anos. O ano muçulmano é, pois, vago, mas, ape-
sar de seus inconvenientes, continua a ser observado pelos maome-
tanos por motivos religiosos.

O Ano Eclesiástico.
O Ano Eclesiástico da Igreja Ocidental começa no primeiro do-
mingo do Advento, isto é, no quarto domingo que precede à festa
de Natal. A data depende, pois, do dia da semana em que cai Na-
tal, e varia de 27 de novembro para 3 de dezembro, os dois limites.
A data da Páscoa, que é festa móvel, depende da data da pri-
meira lua cheia que se segue ao equinócio primaveril. Visto que
êste se pode verificar no período de 21 de março a 18 de abril,
a Páscoa pode ser celebrada em 36 datas diferentes: de 22 de mar-
ço a 25 de abril. Seria interessante acompanharmos a história do
cômputo pascal através dos séculos, mas tal exposição, mesmo que
se limitasse às linhas gerais, ocuparia muito espaço, incompatível
com os fins dêste trabalho.

( 71) . -- Devido ao atilas Annuntiationis, cf. 53 I.


— 517 —

Da data da Páscoa dependem, por sua vez, muitas outras fes-


tas: Ascenção e Pentecostes (40, resp. 50 dias depois da Páscoa),
Corpus Christi (11 dias depois de Pentecostes), etc. Esse ciclo de
festas móveis, cujas datas dependem de dois fatôres: o dia da se-
mana em que cai Natal, e a primeira lua cheia da primavera, cons-
tituem o chamado Proprium Temporis.
Além disso, há o Proprium Sanctorum, que se compõe das fes-
tas litúrgicas ligadas a certo dia de certo mês (72). Em documen-
tos medievais, e até em documentos contemporâneos, encontramos,
de vez em quando, datas emprestadas do calendário eclesiástico.
Chamamos aqui a atenção para as seguintes expressões:
"Na festa de São João Batista" (=24 de junho), "na festa
de São Lourenço" (=10 de agôsto), etc. Igualmente: "Na vigília de
São João Batista" (=23 de junho), e "na vigília de São Lourenço"
(=9 de agôsto), etc. Naturalmente encontramos também: "Na fes-
ta de Natal, da Páscoa, de Pentecostes", etc.
"No domingo Lactara" (=3 domingos antes da Páscoa),
"no domingo Quasi modo" (=Pascoela), etc. Essas expressões são
as palavras iniciais dos Intróitos dos respectivos domingos.
Para acharmos as datas correspondentes precisamos consultar
um calendário eclesiástico. O calendário latino já estava elaborado,
nas suas linhas essenciais, no século VII; o calendário grego é algo di-
ferente: o início do ano grego (e russo) é no dia 1.° de setembro;
também difere a data da Páscoa.
IX. O Calendário Perpétuo.
A título de curiosidade, consagramos aqui algumas palavras ao
calendário universal ou perpétuo que atualmente é proposto e de-
fendido por muitas pessoas e algumas associações internacionais.
Ainda não é calendário histórico, e ninguém sabe se conseguirá sê-
lo: em questões de cronologia a humanidade é conservadora e des-
pede-se, dolorosamente ao que parece, de antigas instituições, con-
sagradas pela tradição da vida religiosa e por numerosas reminis-
cências de ordem irracional.
O ano novo contaria 364 dias, repartidos entre 12 meses e 52
semanas. A cada ano se acrescentaria, no fim de dezembro, um dia
extra (não numerado, e feriado); de 4 em 4 anos se acrescentaria
mais um dia extra (não numerado, e feriado) ao mês de junho.
Quatro meses teriam 31 dias: janeiro, abril, julho, e outubro; os
outros teriam 30 dias. Cada trimestre teria, pois, 31+30+30=91

(72) —. Muitas das festas cristãs são adaptações de festas pagãs, cristianizadas e pro-
vidas de outro significado, por exemplo Natal era o dia de Mitras (Sol In-
victus), e Purificação (2 de fevereiro) era a festa da lustração da Cidade
(Amburbalia), etc.
-518—

dias, ou 13 semanas, e cada trimestre começaria sempre no mesmo


dia da semana: janeiro, abril, julho e outubro num domingo; feve-
reiro, maio, agôsto e novembro numa quarta feira; março, junho,
setembro e dezembro numa sexta feira. Desta maneira Natal cai-
ria sempre numa segunda feira. O sistema poderia ser aperfeiçoa-
do, — se é que um calendário não se pode permitir o luxo de ser ca-
prichoso, mas tem de ser racional, — pela fixação da data dá Pás-
coa: cairia no dia 8 de abril que, segundo o calendário perpétuo, é
sempre domingo. A Santa Sé, consultada a êsse respeito, em 1924,
pela Liga das Nações, respondeu não existirem obstáculos dogmá-
ticos à fixação da data da Páscoa, mas ser necessária, para romper
com uma tradição secular, uma discussão ampla num Concílio eumê-
nico
A ONU, sucessora da Liga das Nações, ainda não teve a opor-
tunidade de prestar a devida atenção ao calendário perpétuo. Mui-
tos outros problemas de caráter incomparàvelmente mais grave ab-
sorvem-lhe tôda a atividade. Mas é bem possível que a atual gera-
ção fique, um dia, com um novo calendário. A racionalização da vi-
da moderna continua irresistível, apesar dos protestos e das lágri-
mas dos românticos.

B. A PALEOGRAFIA.

§ 57. Livros, escritas e materiais.

A Paleografia (73) é o estudo metódico de textos antigos,


quanto à sua forma exterior. Abrange não só a história da escrita
e a evolução das letras, mas também os materiais e os instrumen-
tos para escrever.
I. Os Materiais.
a) Nas margens do Nilo crescia, na Antigüidade (74), uma
planta palustre, o papiro (75), que às vêzes atinge a altura de
três metros. Seu caule mais ou menos triangular contém uma me-
dula, que dá excelente material para escrever. Os egípcios corta-
vam-na em tiras muito finas, que depois eram enxutas ao sol. Vá-
rios dêsses pedaços eram colados uns ao lado de outros, e a fôlha,
obtida assim, era posta em cima de outra fôlha, cujos nervos cor-
riam perpendiculares aos da primeira . O produto era muito apre-
ciado e exportado para todos os países civilizados do mundo an-

(73•. — Das palavras gregas: "palaiós" (=velho, antigo), e "graphía" (=escrita) .


(74). — Hoje só nas proximidades das fontes.
(75) . — O Cyperus Papyrus, da família das Cyperaceae. — O nome grego é "pá-
pyros" ou "byblos".
— 519 —

tigo. Já se vendia em Atenas nos meados do século . V a. C. (76) .


lUm dos •reis helenísticos, talvez Ptolomeu II (século III a. C.), que-
rendo prejudicar o desenvolvimento da biblioteca rival em Pérgamo,
proibiu a exportação do papiro (77), medida essa que depois, ao
que parece, foi revogada. Até o século VII d. C., quando os árabes
invadiram o Egito, havia uma indústria florescente de papiro no
Delta do Nilo. No início da Idade Média a cana foi plantada nas
margens do rio Anapo na Sicília. A chancelaria papal continuou
a usar o papiro até o •século XII (78).
Pergaminho é fabricado da pele de carneiro, ovelha ou
vitelo, e dá material quase indestrutível. Já o conheciam os per-
sas e os jônios da Ásia Menor (79). Deve o seu nome a Pérgamo,
não porque esta cidade tenha inventado o pergaminho como se pen-
sa geralmente, mas por ter melhorado e aumentado a sua fabricação
o rei Éumenes II de Pérgamo (197-158 a. C.), quando os Ptolomeus
-estavam dificultando a exportação do papiro.
Os hindús escreviam em fôlhas de palmeiras; os babilônios
,e os assírios usavam tijolos de barro cozido (80). Os romanos pri-
mitivos utilizavam a parte interior do córtice da faia (81) . Os
atenienses votavam, nas assembléias do povo, em cacos de vasos
(óstraka) .
Nos tempos clássicos, os gregos e os romanos usavam tam-
bém codicilli ou tabulae (82), quer dizer, tábuas de madeira, 7e-
cobertas de cêra, em que se gravavam letras que depois podiam
fãcilmente ser apagadas. Havia tábuas simples, duplas (dípticos),
tríplices (trípticos), etc. Serviam para fazer rascunhos, testamen-
tos, exercícios escolares, e para escrever cartas.
O papel, feito de trapos, é uma invenção do chinês T'sai
Lun (± 100 d. C.). O segrêdo da sua fabricação chegou, via Sa-
marcanda, a Bagdá, durante o califado de Harum-al-Raschid (786-
809) e, em seguida, conquistou o mundo ocidental, principalmente
-nos tempos das Cruzadas. Desde o século XIII havia fábricas de
-papel na Europa, que se foram desenvolvendo sobremaneira de-

— Já é mencionado por Aeschylus, Supplices, _947 . — O papiro egípcio deve


ter-se tornado conhecido na Grécia desde a fundação da primeira colônia grega
no Egito: Náucratia (±650 a. C.), suplantando, aos poucos, o pergaminho, cf.
Herodotu•:, Historiae, V 58,3. Também os romanos falam freqüentemente
no papiro, por exemplo Catullus, Carmen 35,2: Poetae tenero, meo sodali
velim Caecilio, papyre, dicas Veronam veniat.
Cf. Plinius, Naturalis Historia, XIII 70.
— O último texto, escrito sôbre papiro, que saibamos, é um documento do Papa
Vitor II do ano 1057.
— Cf. Herodotus, Historiae, V 58,3. — O nome latino era membrana.
• (80). — Cf. Ç 42 II b.
— Em grego "pínax" ou "déltos".
<82). — A palavra latina liber, que deu o vocábulo português livro, significava origina-
riamente: (a parte interior do) córtice. — Talvez se relacione a palavra
inglêsa "book" (=livro) com "beech" (=faia).
— 520 —

pois da invenção da tipografia. Hoje é feito também de outras subs-


tâncias: palha, alfa, fibras de madeira, etc.
Os Instrumentos.
Os instrumentos para escrever sôbre papiro ou pergaminho
eram: o cálamo ou a cana (latim: calamus), e desde o século VI d. .

C. a pena de ganso (latim: pinna). Para os codicilli eram usados es-


tiletes de ferro (latim: stili). O lápis moderno é invenção do francês
N.-J. Conté (1795) . A tinta, usada na Antigüidade e na Idade
Média, era geralmente preta ou vermelha . Os títulos dos capítulos
do direito canônico e civil, como também as indicações das ceri-
mônias litúrgicas nos missais eram originàriamente escritos em le-
tras vermelhas (em latim: litterae rubricae): daí a expressão: "ru-
bricas".
Os Livros.
Do papiro faziam-se, se não exclusivamente, ao menos
preferencialmente, volumina (83), isto é, manuscritos feitos de.
apenas uma fôlha, enrolados em volta de um pau cilíndrico, o cha-
mado umbilicus, fabricado de madeira, marfim, chifre, etc. Suas
duas extremidades eram enfeitadas de botões (comua), e a uma
delas se prendia uma tira de papiro, indicando o título. Geral-
mente, os volumina eram conservados em estojos cilíndricos. Tam-
pouco como em nossos dias havia na Antigüidade• um formato uni-
forme do livro: segundo alguns, a biblioteca de Alexandria teria nor-
malizado o tamanho •(84), de modo que a palavra volumen se tor-
nava sinônima de livro. Até o século IV d. C., o volumen permane-
ceu a forma predileta de editar os autores clássicos; daí em diante-
foi sendo suplantado pelo códice, forma mais barata e prática.
O codex (85), a forma do livro atual, representa uma
fase de evolução dos codicilli (cf. I d) . Já era conhecido antes da
éra cristã, mas os cristãos contribuiram não pouco para a vitória
definitiva do codex sôbre o volumen (86) . Na Idade Média mui-
tos códices antigos, feitos de pergaminho (87), eram utilizados mais,
uma vez: raspava-se o texto original, geralmente de um autor clás-
sico, para escrever nas fôlhas recuperadas um texto novo . São os

(83). — De volvera: "enrolar". — Em grego "bíblion" (cf. "Bíblia") e "chértes"


(cf. "carta") .
. — Comprimento normal: 7 a 10 metros; largura normal: 15 a 25 cm.
. — Em latim codex ou caudas (:"tronco de árvore") . — Em grego "têuchos",
cf. a expressão moderna: "Pentateuco" (os 5 primeiros livros do Velho Tes-
tamento) .
. — O codex era mais manejável e prático' geralmente era c:e pergaminho, (ao,
passo que o volumen era quase sempre 'de papiro), e as suas páginas podiam
ser aproveitadas dos dois lados (o papiro dos volumina era escrito de um
lado só) .
(87). — São bastante raros, desde o século V d. C., manuscritos Cie papiro.
— 521 --

chamados "palimpsestos" (88), cujo texto original hoje se conse-


gue decifrar por meio de uma técnica especial.
IV. A Escrita.
Não pretendemos expor aqui a evolução e a origem da escrita;
já existem muitos livros que versam sôbre êste assunto. Só trata-
mos, em resumo; dos diversos sistemas que a humanidade adotou
para exprimir os seus pensamentos mediante uma representação fi-
gurada . O esquema, dado nestas linhas, não quer dizer que tôdas
as escritas tenham atravessado sucessivamente as mesmas fases de
evolução. Seguimos uma ordem lógica, nem sempre histórica, e não
devemos perder de vista que muitas escritas contêm elementos he-
terogêneos (por exemplo a escrita egípcia).
A Pictograf ia é uma fase anterior ao nascimento da es-
crita própriamente dita. Representa um complexo de aconteci-
mentos ou idéias (por exemplo uma guerra, uma caça, a tomada
de uma cidade) por meio de desenhos (realistas ou simbólicos),
cujo sentido não se lê, mas se interpreta ou adivinha. Encontra-se
entre povos primitivos, por exemplo: tribos siberianas, africanas e
americanas (88a).
Um importante passo para frente foi a invenção da Ideo-
grafia, em que cada uma das palavras, ou pelo menos tôdas as pa-
lavras essenciais de uma frase, ficam com o seu símbolo individual.
O exemplo clássico é a escrita chinesa, que dispõe de ±49.000 sím-
bolos diferentes (89), dos quais alguns tem 5 ou 8 significações.
Palavras homônimas são representadas por símbolos diferentes.
Além disso, os vários símbolos podem ser combinados uns com ou-
tros de maneiras diferentes. Os antigos hieróglifos do Egito e os
cuneiformes da Mesopotâmia devem ter partido também da ideo-
grafia, mas usaram já desde cêdo símbolos especiais para indicar sí-
labas e consoantes.
Em tôdas as línguas há homônimos, isto é, palavras pro-
nunciadas da mesma maneira, embora lhes seja diferente a etimo-
logia e o sentido. Essa circunstância possibilita a escrita por meio
de Rébus, vinhetas ilustrativas que ainda encontramos em revistas
e jornais, como passa-tempo. Por exemplo em português, cêsto e
sexto são homônimos, e a palavra canto tem dois significados: o de
"esquina" e o de "canção". A representação figurada de um cêsto
e de um canto (=esquina) pode dar o sentido: "(a) sexta canção".
Nesse princípio, que aqui foi reduzido aos seus elementos mais ru-
dimentares e que, na realidade, admite várias aplicações, baseia-
,

se a escrita dos aztecas no México.


Assim foi redescoberto o texto de Frontão, cf. 8 41 II c, nota 51.
(88a). —Cf. também Vergilius, Aeneis, I 453-493 e VI 14-33.
— Para o uso cotidiano bastam mais ou menos 4.000 símbolos.
--- 522 --

Em tôdas as línguas é relativamente exíguo o número de


sílabas; além disso, certas combinações silábicas são características
de certos idiomas. Ora, alguns símbolos, que originariamente indi-
cavam certos objetos ou fatos vinham a indicar tais sílabas muito
usadas, ou então grupos de sílabas, independentemente da significa-
ção da palavra em que ocorriam. Eis o sistema silabográfico, usa-
do no Japão, que deriva a sua escrita da chinesa (90) . A escrita
dos antigos cíprios (91), e os hieróglifos egípcios contêm os mes-
mos elementos (92) .
O aperfeiçoamento da silabografia tem por resultado a
Fonografia, quer dizer, cada um dos sons, — ou quase cada um dê-
les, — é representado por um símbolo diferente ' . A fase inicial dês-
se sistema é a representação simbólica de apenas consoantes, fase
essa que os antigos egípcios, persas, hebreus e fenícios jamais che-
garam a ultrapassar. A fonografia é a escrita moderna que em úl-
tima análise remonta aos fenícios (século XV ou XVI a. C.?), dis-
cípulos, por sua vez, dos egípcios. A palavra aleph significava "tou-
ro", e possuía, como as outras palavras no sistema ideográfico, um
símbolo individual; assim beth era "casa", gime/: "camelo" e daleth:
"porta, tôrre". A originalidade dos fenícios consiste em terem em-
pregado o símbolo aleph para representar certo som gutural, o beth
para o b, o gime/ para o g, e o daleth para o d, e assim por diante
(92a). Os gregos 'adotaram o alfabeto fenício (no século XI a. C.? ),
aproveitando-se dos vários símbolos indicativos de aspirações semí-
ticas, para representarem as vogais. Também as formas das letras so-
freram modificações consideráveis. Os romanos receberam o alfabeto
grego (por intermédio dos etruscos) de uma tribo grega na Itália,
que não acompanhara as evoluções do alfabeto grego na metrópole,
o que explica certas diferenças entre o alfabeto grego e o romano
(93) . O alfabeto russo, ainda hoje em uso, remonta, em boa parte,
ao grego, e foi introduzido em 855 pelo apóstolo dos eslavos, São
Cirilo (826-869); alguns caracteres russos assemelham-se bastante
aos hebraicos, e outros ainda foram inventados. Em 1708, o Czar
Pedro simplificou êsse alfabeto "búlgaro", e em 1918 o número dos
símbolos foi reduzido a 38.

V. A Escrita Latina .

. — Desde 1933 segue-se cada vez mais o alfabeto latino.


. — Um exemplo do cíprio: -ZO VE SE O TI MO VA NA KO TO SA KA I
VO SE= (grego): Zôwes o Timowanak [o] tos Ak (h) aios= (port.): Zoves,
filho de Timônax, Aqueu. — Cf. A. Meillet, Aparou d'une Histoire de la
Langue Grecque, Paris, 19480, p. 89.
. — A escrita egípcia teve três fases: os hieróglifos, o hierático e o demótico.
(92a) . —(E' o chamado sistema acrofônico.
. — Por exemplo o X grego (="khi") tinha valor c'e "csi"; ainda existia, nesse
alfabeto grego, o "digamma": F(=w, em grego), como também o H.- — O
vocábulo "alfabeto" ainda lembra a origem grega-fenícia da nossa escrita
(alpha=aleph; beta=beth, etc.) .
— 523 —

O alfabeto latino atravessou, no decurso dos séculos, várias


fases de evolução e alteração. Cophecer-lhe as diversas formas his-
tóricas é o mesmo que saber aproximadamente em que tempo,
— e em que país, — foi feito certo manuscrito, o que é importan-
tíssimo para o filólogo e o historiador na recensio dos códices.
Na Antigüidade romana distingue-se entre capitales, cur-
sivae e semicursivae. As capitales, empregadas em inscrições e ma-
nuscritos preciosos, admitiam três variações: capitales quadratae,
capitales rusticae (as letras são mais altas que largas, e um tanto
arredondadas), e capitales unciales (formas redondas). As unciais
•éram usadas em manuscritos caros nos tempos de São Jerônimo. As
cursivas eram mais miúdas e ligadas entre si, e às vêzes difíceis de
decifrar: usavam-se em cartas, contas, notas, etc. O meio-têrmo
entre as duas espécies é a semi-cursiva, empregada na maior parte
dos manuscritos antigos chegados até nós: admite diversas variações.
Chamam-se escritas nacionais as diversas formas do al-
fabeto latino desde a Migração dos Povos até os tempos de Car-
los Magno. Na Itália havia a curialis, empregada na Cúria papal,
e a lombárdica, no Norte e na Toscana; além disso a beneventana,
no Sul. Na Gália havia a letra merovíngia, geralmente rude e mal
feita, cheia de ligaturas. Na Espanha, haVia a letra visigótica.
Muito importante é a letra insular, forma evolvida da semi-oncial,
.e empregada pelos monges anglo-saxônicos e irlandeses .
Na época carolíngia tornou-se mais regular e bela a letra:
o resultado foi a chamada minúscula carolíngia, que toma por em-
préstimo elementos das várias escritas nacionais. Essa perdurou
uns 4 ou 5 séculos, e teve o seu apogeu de artisticidade no século
XII. As letras minúsculas, que empregamos atualmente, remon-
tam às carolíngias.
Nos séculos XII-XIII nasceu a letra gótica, tipo angu-
loso e enfeitado, que se manteve até o século XVI. Na Alemanha
é, ainda hoje em dia, usada uma letra gótica, principalmente em
-publicações populares (a chamada fratura) .
Desde a invenção da tipografia têm sido empregadas co-
mo maiúsculas a capitalis romana, em muitas variações, como mi-
núscula a carolíngia, e como cursiva uma letra que remonta à pra-
xe dos humanistas. Foi então que se começou a fazer distinção en-
tre I e J, e UeV. A letra W já data do século XI.

VI. A Estenografia.

Discute-se a respeito da origem da estenografia ou taquigra-


fia: foram os gregos ou os romanos que a inventaram? E' prová-
vel que os romanos tenham sido os primeiros estenógrafos e que
'os gregos tenham aperfeiçoado o sistema. Tiro, o liberto culto de
-- 524 —

Cícero (século I a. C.), passa pelo inventor da estenografia (notae


tironianae); partia de abreviaturas, no mais das vêzes, das letras
iniciais para indicar certas palavras; e essas letras iniciais tomava-
as emprestadas de vários alfabetos e escritas, a fim de poder dispor
de uma grande quantidade de símbolos; além disso, acrescentava-
lhes pontos colocados em vários lugares, cuja posição tinha valor sim-
bólico; e afinal, indicava as terminações das palavras variáveis por
meio de sinaizinhos. O primeiro discurso estenografado, de que te-
mos conhecimento, foi a Oratio in Catilinam I, proferida por Cícero
no dia 8 de novembro de 63 a. C. Depois tornou-se uma coisa bas-
tante comum no Império Romano: o filósofo Sêneca (4 a. C. — 66
d. C.) não se desdenhou de aperfeiçoar a taquigrafia; Plínio-o-Velho
nunca ia viajar sem levar consigo um notarius; no Baixo Império a
estenografia era muito popular (94) e subsistiu até os tempos caro-
língios . Desconhecida na Idade Média, foi redescoberta pelo be-
neditino alemão Johannes Trithemius (1462-1516) em antigos có-
dices. Em 1588, o inglês T. Bright apresentou o primeiro sistema
moderno, profundamente influenciado pelo antigo. Hoje em dia
existem vários sistemas, adaptados à índole das diversas línguas.
VII. Abreviaturas.
Já os romanos usavam muitas abreviaturas, que tinham mui-
ta importância para os primórdios da estenografia. Escrevia-se,
principalmente em certas fórmulas fixas, apenas a letra inicial de
um vocábulo, por exemplo M(arcus); T (itus); D (is) M (anibus);
D(at) D(icat) D(edicat); S(enatus) P (opulus) Q (ue) R(oma-
nus); I (ovi) O (ptimo) M (aximo); etc. Frases inteiras eram abre-
viadas, por exemplo S. V. B. E. E. Q. V. (95) .
Relativamente raras nos manuscritos medievais, anteriores ao ,
século XI, as abreviaturas tornam-se mais freqüentes a partir dês-
se século. Distinguimos entre:
siglas, ou letras iniciais, por exemplo B. M. V.=Beata
Maria Virgo; P. M.=Pontifex Maximus; A. U. C.=Ab Urbe Condita,
etc
contrações, ou elementos do início e do fim de um vocá-
bulo, por exemplo Drius=Dominus; tm=tantum; tn=tamen, etc .
sinaizinhos especiais por exemplo: regib;=regibus; 85=et;
±=est, etc.
ligaturas (principalmente em manuscritos gregos) são
combinações de uma ou mais letras consecutivas, representadas por
(94) . — Quase todos os sermões de Santo Agostinho, que chegaram até nós, foram es-
tenografados.
(95). — A abreviatura quer dizer: Si vales, bene est; ego quidem valeo ( :"Se tu pas-
sas bem, está em ordem; eu por mim, vou bem") . — Frase de cortesia,
muito usada no início de uma, carta.
— 525 —

um símbolo composto, geralmente no fim da palavra, por exemplo


aufé=autem; GRAECOR=graecorum, etc. Muitos textos impres-
sos nos primeiros séculos da tipografia continuavam a escrever tais
ligaturas.
VIII. Diversas Maneiras de Escrever.
Os fenícios e os hebreus escreviam da direita para a esquerda;
os gregos seguiam originàriamente êsse costume, mas desde os tem,
pos de Sólon (início do século VI a. C.) iam escrevendo "bustro-
phedón", quer dizer: alternadamente da direita para a esquerda
e- da esquerda para a direita, como um boi a sulcar a terra. Desde
século V a. C., os atenienses escreviam, de acôrdo com a praxe
moderna do mundo ocidental, da esquerda para a direita.
Inicialmente não se separavam as palavras (scriptio continua);
a escola alexandrina inventou acentos gráficos para marcar os li-
mites entre as palavras. A mesma escola começou também a se-
parar os vocábulos, e a servir-se de uma pontuação, aliás bem es-
cassa. Só a partir do século XV d. C. data o sistema moderno de
pontuação.

C. A EPIGRAFIA.

§ 58. Inscrições.

A Epigráfia (96) é a ciência das inscrições escritas sôbre ma-


teriais duráveis: pedra, mármore, bronze, etc., e é de suma impor-
tância para a história da Antigüidade (em alguns casos tambérn
ra a 'dos tempos modernos), darido-nos numerosas informações que
os textos escritos sôbre papiro e pergaminho não conservaram. Já
sabiam Heródoto e Tucídides: para a docúmentação das suas
obras valiam-se muitas vêzes de inscrições: tratados de paz, alian-
ças, epitáfios, leis, placas comemorativas, etc.
I. Copiar uma Inscrição.
Ao encontrarmos em viagem uma inscrição que julgamos iné-
dita, não convém copiá-la ou transcrevê-la: o perigo de entrarem
na nossa cópia erros materiais ou de raciocínio (cf. § 44 II a-b)
é muito grande. E' preferível fazer dela uma reprodução mecâni-
ca que; quando de volta em casa, podemos estudar sossegadamente.
Podemos fotografá-la. Muitas vêzes, porém, se faz o seguinte: co-
loca-se em cima da inscrição uma fôlha molhada que depois é ro-

(96) . — Cf. Francisco Isoldi, A Epigrafia, in Revista de História, III 9 (1952 ), págs.
89-105.
— 526 ---

çada com uma escôva para o papel entrar nas cavidades das letras.
Ou então, não havendo água, cobre-se a fôlha com plumbagina, es-
fregando-a depois com uma escôva: as letras ocas aparecem em
branco, destacando-se dos fundos escuros.
II. A Interpretação das Inscrições.
A Interpretação das Inscrições exige muita erudição. Precisa-
mos dominar a língua (ou o dialeto) em que foi redigida a nossa
inscrição; conhecer a ortografia da época e do local, e — o que é
mais difícil ainda, — adivinhar a verdade sob todos os possíveis
erros ortográficos; completar as abreviaturas que são muito fre-
qüentes, etc. A cronologia e a história das instituições de certo po-
vo podem-nos ajudar muitíssimo para relacionarmos a inscrição com
determinados acontecimentos ou personagens já conhecidos. As
abreviaturas, e as fórmulas fixas, encontradiças em inscrições, pre-
cisam ser minuciosamente estudadas, o que pode ser de suma im-
portância para a restauração de um texto mutilado.
III. Algumas Inscrições importantes para a historiografia são:
O Código Penal do rei Hamurabi, soberano da Babilônia
(97). E' uma pedra de 225 cm de altura, cujo texto cuneiforme es-
tabelece severas penalidades contra os infratores das leis que pro-
tegem a propriedade, segundo o princípio da retaliação: ôlho por
ôlho, dente por dente. Foi descoberto, em 1901, pelos franceses
em Susa, e acha-se atualmente no Louvre, em Paris.
Num rochedo de Behistum (Pérsia), o rei Mario I (522.-
486 a. C.) fêz gravar uma inscrição gigantesca em três línguas, con-
tendo um relatório dos seus atos reais. Essa inscrição, descoberta:
em 1835 por Sir Henry Rawlinson, foi de suma importância para
a decifração dos cuneiformes.
A Pedra de Roseta, cf. § 41 II b.
Na Itália foram descobertas algumas inscrições em dia-
letos itálicos, cognatos com o latim. Mencionamos aqui as Tabulae
Eugubinae, descobertas em 1444, trazendo um texto úmbrico, que
chegou a ser decifrado e interpretado completamente só no início
do século passado. Para os nossos conhecimentos do antigo osco
— outro dialeto itálico, bastante parecido com o latim — foi im-
portante o descobrimento da Tabula Bardina, em 1793, e do Cip-
pus Abellanus, em 1745. Essas inscrições vieram a nos ensinar
qual é o lugar ocupado pelo latim entre as antigas falas itálicas

(97) . — O rei Hamurabi não reinou de 1955 a 1912 a. C., como se admitia antiga-
mente, mas uns 250 anos depois: fato provado por recentes escavações na
Mesopotâmia.
-- 527,--

O Monumentum Ancyranum, muitas vêzes chamado "a_


Rainha das Inscrições", foi descoberto em 1555 por uma embaixa-
da do Imperador alemãó Fernando I em Ancira, hoje Angorá, ca-
pital da Turquia moderna. E' uma cópia da relação bilíngüe (em
grego e em latim) que o Imperador Augusto fizera gravar no seu
Mausoleu em Roma (Campus Martiva). Como se perdeu o origi-
nal romano, as cópias possuem grande valor: a mais extensa e exa-
ta cópia é a de Angorá. A inscrição, que tinha por título Index Re-
rum Gestarum Divi Augusti, é um relatório sóbrio e imponente
da vida política de Augusto.
O Edictum de Pretiis Rerum Venalium, promulgado pe-
lo Imperador Diocleciano em 301 d. C., estabelece os preços-tetos
de várias mercadorias. O Prefácio dêste Edito, tão importante pa-
ra a historia econômica do Baixo Império nos é conservado apenas
por meio de inscrições; as disposições da própria lei nos são conhe-
cidas também por meio de códices.
O Marrnor Parium foi provàvelmente feito para uso de
uma escola na ilha de Paros (Grécia) em 264 a. C., fazendo as vê-
zes de um quadro-negro atual. Foi comprado, em 1627, pelo in-
glês Thomas Howard Arundel ao govêrno turco, e em 1667, quando
já estava mutilado, doado à Universidade de Oxford por seu filho.
O Marmor Parium é muito importante para a restauração da anti-
tiga cronologia: contém tábulas cronológicas de 1582 a 264 a. C.,
registrando também numerosos fatos da história da civilização.
IV. Coleções Epigráficas.
Um dos primeiros a colecionar antigas inscrições com uma
verdadeira paixão foi a figura romântica de Cola di Rienzo, "o ul-
timo tribuno do povo" (1313-1354). Seguiram-lhe o exemplo os.
humanistas, e já em 1588 saiu em Leida uma coleção importante,
organizada pelo humanista M. Smetius: Inscriptionum Antiquarum
quae passim per Europam Libar. Accessit Auctarium a Justo Lipsio.
A obra dá reproduções muito exatas e formula alguns dos princí-
pios que seriam redescobertos só no século XIX. Desde o século
passado, as inscrições são editadas em grandes corpora. Mencio- -
namos aqui: Inscriptiones Graecae (IG), publicadas desde 1873
sob os auspícios da Academia de Berlim, cujos redatores mais im-
portantes foram: Ulrich Von Wilamowitz-Moellendorf (98), U.
Wilcken e F. Hiller von Gaertringen. A obra, que ainda não está
acabada, deve substituir e ampliar uma coleção anterior em 4 vc›-

(98). — U. voo Wilamowitz-Moellendorf (r848-1931), genro do historiador Th. Momm-


sen, foi um dos maiores helenistas dos tempos modernos; escreveu trabalhos
sôbre os líricos gregos (1900), sôbre os dramaturgos (1921 3 ), sôbre Platão
(1929 3 ), sôbre a religião dos helenos (1931-193 2 ), sôbre á Ilíada (1920 2 ), etc.
— 528 --

lumes: Corpus Inscriptionum Graecarum (CIG), editado por Au- .

gusto Boeckh (1825-1856) . A Academia de Berlim editou, desde


1863, o Corpus Inscriptionum. Latinorum (CIL); um dos redatores
foi Th. Mommsen. As inscrições cristãs foram colecionadas pelo
arqueólogo italiano Giovanni. Battista de Rossi (1822-1894) em
Inscriptiones Latinae Christianae Urbis Romae VII Saeculo An
teriores (99) e pelo alemão E. Diehl em Inscriptiones Latinae Chris-
tianae Veteres.

D. A LINGÜÍSTICA.

§ 59. Os idiomas indo-europeus.

A lingüística é o estudo histórico e comparativo das línguas.


Também ela pode prestar serviços importantes ao historiador.
I. Todo mundo sabe que o português, o espanhol, o ita-
liano, o francês e algumas outras falas são idiomas aparentados,
fáto êsse que, histõricamente falando, se explica pelas conquistas
romanas nas penínsulas ibérica e apenina, e na Gália . Sua língua-
mãe é o latim, não o latim "clássico", mas o latim "vulgar" ou "po-
riular", tal como o falavam os habitantes romanizados das provín-
cias ocidentais do Império Romano nos primeiros séculos da éra
cristã (100). A origem "vulgar" das línguas românicas, outrora
apenas adivinhada, foi provada no século XIX por vários glotó-
logos, entre os quais se destacava F. Diez (1794-1876) . Igual-
mente pode ser estabelecido um parentesco entre o alemão, o
sueco, o dinamarquês, o holandês, etc.: são idiomas germânicos; e
entre o russo, o polonês, o checo, o croato, etc.: são idiomas eslavos.
Assim, como as línguas neolatinas pressupõem uma fase histó-
dCa de unidade lingüística, a qual, devido a várias circunstâncias,
ramificou-se em alguns dialetos, que, por sua vez, se tornaram idio-
mas independentes, assim a afinidade entre o grego, o latim, o an-
tigo germânico (101), o antigo eslavo (102), etc. leva-nos à con-
clusão de que todos êsses idiomas devem ter uma origem comum.
O estudo comparativo das línguas neolatinas ilustra, de maneira im-
pressionante, a evolução histórica dos vários povos românicos e as

(99). — De Rossi foi o grande mestre da arqueologia cristã. Escreveu por exemplo
Roma Sotterranea, em 3 volumes (1864-1877) .
. Por exemplo o povo usava a palavra bucca (=os, lat. cl. ), cf. "a bôca"
(port.) e "la bouche" (fr.); cf. também caballus (=equus, lat. cl. , cf. "o
cavalo" (port.) e "le cheval" (fr.) . A essas diferenças lexicológicas acrescen-
tavam-se divergências sintáticas, fonéticas e morfológicas.
. — O antigo germânico nos é conhecido pela versão "gótica" da Bíblia, feita pelo
bispo Úlfilas (século IV d. C.), da qual nos chegaram completos os Evange-
lhos e as Cartas de- Paulo.
. O antigo eslavo (=eslavo eclesiástico, ainda usado na liturgia ortodoxa c.a Rús-
sia e da Bulgária) remonta ao século IX (versão da Bíblia por S. Cirilo,
o qual com S. Metódio" foi o apóstolo dos eslavos) .
— 529 —

inter-relações que êles tiveram no decurso dos séculos, vindo a con-


firmar, muitas vêzes, os dados de outros documentos históricos.
Até mesmo nos revela, em alguns casos, fatos do passado que não
foram atestados por outras fontes. Nestas hipóteses, a glotologia é
ciência auxiliar da história.
A lingüística fornece-nos, muitas vêzes, argumentos no-
vos, quando se trata de tempos muito remotos e pouco documenta-
dos. Em 1815 o professor alemão Franz Bopp (1791-1867) publi-
cou um livro fundamental, que inaugurou a glotologia moderna
(103): aí comparava o sistema verbal do sânscrito (104), do gre-
go, latim, do persa e do germânico. Sua exposição dos fatos de-
monstrava que tôdas essas línguas, — e ainda algumas outras, —
remontam a uma fonte comum, o chamado indo-europeu ou indo-
germânico, que é a língua-mãe de quase tôdas as línguas européias
(105) e de muitos idiomas que ainda hoje se falam na índia e na
Pérsia (106) . Não conhecemos o indo-europeu diretamente, mas
podemos restaurá-lo, em muitos casos com bastante certãza, com-
parando entre si as formas das várias línguas dêle derivadas (107).
Esses estudos lingüísticos têm-nos fornecido alguns co-
nhecimentos históricos acêrca dos tempos muito remotos, em que
-o indo-europeu era o idioma comum, embora diferenciado em diale-
tos, de um povo (não de uma raça) . . Os indo-europeus viviam no
terceiro milênio a. C., talvez nas estepes da Rússia ou então nos
países bálticos, e foram-se espalhando, a partir de -±2500 a. C.,
pelos diversos países da Europa e da Ásia (108) . Era um. povo
de lavradores e pastores, que tinha uma cultura patriarcal, baseada
,

na monogamia, e venerava como deus supremo uma divindade de

Bopp não foi o primeiro a ver o parentesco do sânscrito com o grego e o la-
tim. Já no século XV/, o italiano F. Sassetti, e no século XVIII, o jesuíta
francês Coeurdoux e o inglês W. Jones, tinham chamado a atenção dos erudi-
tos para êsse fato. Mas Bopp foi o primeiro a fazer pesquisas sistemáticas e
a descobrir leis fonéticas e morfológicas.
( 104) . — O sânscrito clássico data de ±400 a. C. (Panini); o védico, uma fase anterior
da mestria língua, é riquíssimo em flexões, seus elementos mais antigos re-
montam aos séculos XIII ou XIV a. C.
(105) . — As línguas românicas, germânicas, eslavas, celtas (por exemplo o irlandês, o
bretão, o gaélico, etc.), bálticas( por exemplo o lituânio; esta língua é muiti›
arcai-a, e possui grande valor para a reconstrução do indo-europen) . Algumas
línguas européias tem origem diferente, por exemplo o basco na Espanha, o
finlandês e o húngaro.
-(106) . — Os antepassados dos iranianos e hindús chamam-se geralmente árias ou arianos;
constituem o ramo oriental da família indo-européia. — O têrrno "ária" ou
"ariano" (literalmente: "o melhor", cf. ar-istocrata)) emprega-se, de vez em
quanc:o, também para indicar o conjunto dos indo-europeus.
,( 107) . Por exemplo a palavra "cinco": pánça, em sânscrito; pénte, em grego; penque =
qtrinqüe, em latim; &rd, em gótico; assim também a palavra "pai": pirá, em
sânscrito; patér, em grego; páter, em latim; fádar, em gótico. Essas duas sé-
ries já mostram que o p inicial do indo-européu passou pata f em gótico.
•108) . — O berço dos indo-europeus é uma questão discutida: além das duas hipóteses,
dadas acima, são indicadas também as tetras da- Asia Central ou o Cáucaào,
ao que parece, com menos probabilidade.
— 530 --

luz, (109), além de numerosos outros demônios, estreitamente li- -

gados a fenômenos celestes: trovão, chuva, temporal, etc. Outros-


sim, sua religião continha elementos animistas. Já conheciam o
bronze, mas tinham pouca experiência do mar. Como nos idiomas
derivados, os numerais, pelo menos nos pontos principais, até o nú-
mero 100 remontam às mesmas raízes, é muito provável que te-
nham sabido contar até êsse número (110). Elementos sociológi-
cos dessa convivência indo-européia eram: os direitos sagrados do
hóspede, a "vendetta", o poder paterno, o culto da família aos ante-
passados, etc. (111). Os dados de que se vale a chamada "paleon-
tologia lingüística" para reconstruir as linhas gerais de um passado
tão longínquo, são os têrmos idênticos empregados por dois ou mais
povos que em tempos históricos já não tiveram contacto entre si:
a unidade lingüística aponta para uma unidade histórico-cultural.
Os resultados são escassos e, por vêzes, muito precários, mas em al-
guns casos pode-se chegar a conclusões quase certas.
O estudo do indo-europeu é apenas um exemplo de como a .

lingüística pode ministrar argumentos ao historiador: ela presta


também serviços muito úteis ao pesquisador dos povos latinos, ger-
mânicos, africanos, etc.

E. A ARQUEOLOGIA.

§ 60. Escavações célebres.

A palavra "arqueologia" (112) tem várias acepções. Pode


designar o estudo das antigüidades ou antiquitates (cf. § 29 II),
mas atualmente já não é muito usada neste sentido. Indica geral-
mente o estudo metódico dos monumentos e objetos que nos vie-
ram do passado (cf. § 39 II). Podemos estudá-los sob dois aspec-
tos diferentes: como objetos de arte, ou como documentos histó-
ricos. A arqueologia estética é ciência auxiliar da história da arte;
a arqueologia histórica encara os mesmos objetos não como expres-
sões do espírito artístico do homem, mas apenas como documentos
capazes de nos darem informações sôbre o passado. Na realidade-

. — E' o deus bem conhecido dos romanos: Juppiter= Diespiter (—"Pai da Luz").
Cf. em sânscrito: Dyéuspitar, em grego: Zeus (=Dyéus), e em germânico:
Ziu ou Tiu (cf. inglês: Tues-day), mas êste último cedeu o seu lugar a ou-
tras divindaces.
— Por exemplo catem (scr.), hekatón (gr.), centum (lat.) e hund (gót.); tôdas
essas palavras, que significam 100, têm a mesma raiz. — Mas 1.000 apre-
senta-se-nos sob formas diferentes: chiliot (gr., cf. quilo-grama), mine (lat.)
e thousand (inglês), três palavras de origem diferente.
. — O francês Fustel de Coulanges escreveu, em 1864, um interessante livro sôbre
as raízes indo-européias de alguns costumes entre os gregos hindús, e romanos:
La Cité Antique. A obra foi traduzida para o português (Lisboa, 1950 7 ), e
embora superada em muitos pontos por pesquisas modernas, continua a ser.
importante.
. Das palavras gregas: "archaiós" (=antigo) e "lógos" (=disciplina) .
— 531 —

os dois aspectos não podem ser separados rigorosamente, mas um


completa o outro.
A invasão dos bárbaros na Grécia (113) e na Itália (114),
o emprobrecimento geral que se lhe seguiu (115), a despovoação
dos antigos centros culturais (116), o desinterêsse pelas coisas do
passado, a falta de compreensão, o fanatismo religioso (117), a
ação do tempo voraz, — eis alguns fatôres que destruiram, de uma
vez ou aos poucos, os monumentos da Antigüidade.
A Renascença e o Humanismo não conseguiram inaugu-
rar a nova arqueologia. A maior parte dos humanistas tinha inte-
rêsses exclusivamente literários ou filológicos: colecionavam, sim, as
relíquias da arte clássica, que admiravam e proclamavam serem mo-
delos inigualáveis para todos os tempos, mas a arqueologia dos hu-
manistas era, no fundo, uma escola de estética, não de história .
Até nos' séculos XVII-XVIII continuavam a ser utilizados os anti-
gos monumentos para novas construções (118): etiam periere rui-
nae (119) .
Em 1748 um feliz acaso fêz descobrir a cidade de Pom- •
péia, e logo se iniciaram as escavações, que eram pouco sistemáti-
cas: os primeiros desentulhadores procuravam objetos preciosos e
curiosos e pouco se preocupavam em restaurar metèdicamente os
vestígios do passado (120) . A nova arqueologia nasceu só no sé-

— Além das invasões que sofreu na Antigüidade (nos tempos de Sula e, depois,
durante a Migração dos Povos), Atenas foi tomada pelas franceses e venezia-
nos na época das Cruzadas, pelos turcos (1456), etc.: êstes transformaram o
Pártenon numa mesquita. Em 1687, êsse templo magnífico foi bombardeado
pelos venezianos. Em 1801-1802, Lord Elgin despojou-o dos relêvos e troas-
portou-os para o British Museum (Lord Elgin Marbles).
— Rosna foi tomada, em 410 d. C., pelos gôdos, que saquearam a cidade du-
rante quatro dias; em 455 pelos vândalos (daí: "vandalismo"). Nos meados
do século VI, mudou várias vêzes de dono (bizantinos e ostrogodos), e ficou
algum tempo sem habitantes.
— Em 801 houve um terremoto em Roma, que prostrou as colunas do Foro de
Trajano: não havia dinheiro para a restauração.
— Durante o Cativeiro dos Papas em Avinhão, Roma tinha ±20.000 habitantes;
na sua época áurea, ±1.000.000. — Mas cf. F. Lot, La Fin du Monde Anti-
que, etc., Paris, 1951, pp. 79-80, que reduz o número dos habitantes de Roma
para 300.000.
— Esses três fatôres tiveram conseqüências lastimáveis principalmente nos países
ocupados pelos muçulmanos: África do Norte, Grécia. Asia Menor, Constanti-
nopla, etc.
— Em 1632, o Papa Urbano VIII, da família dos Barberini, tirou as traves de
bronze do pórtico do Panteão para a fundição de 80 canhões! — Daí o ditado:
Quod non fecerunt barbari, fecerunt Barberini. — O Amphitheatrum Flavium
(acabado em 80 d. C.) ficou com o nome "Colosseum" por causa do colôsso
de Nero (altura de 36 metros), erguido na frente do enorme prédio (obra do
escultor Zenodoro). Na Idade Média havia um ditado: Quamdiu stabit Coliseus,
stabit et Roma; quamdiu cadet Coliseus, cadet et Roma; quamdiu cadet Roma,
cadet et mundus. Até 1750, quando o Papa Benedito XIV consagrou o Co-
liseu à memória dos mártires cristãos que aí teriam sido massacrados, as ruí-
nas, dêste edifício, do qual subsiste ainda a terça parte, forneciam material
abundante para novas construções.
(119). — Lucanus, Pharsalia, IX 969.
(120) • — Já em 1719 tinha sido descoberta uma parte de Herculâneo. — As escava-
ções metódicas das duas cidades começaram só em 1861 (Fiorelli, e depois,
Spinazzola e Maiuri); em 1906 estava desentulhada a metade de Pompéia.
— 532 —

culto XIX: parte dõ princípio de que o valõr histórico de um ob-


jeto achado não depende tanto do seu valor intrínseco como do lu-
gar e da situação em que foi encontrado. A arqueologia deixa a
apreciação estética à história da arte, limitando-se a uma tarefa mais
racional e fria: restaurar as linhas gerais de uma civilização morta
estabelecer as relações que a ligam a outras Culturas. As ruínas
os objetos silenciosoS são forçados a darem um testemunho sôbre
passado, graças a métodos científicos que se vão aperfeiçoando
cada vez mais. A arqueologia, concebida assim, data dos meados do
século passado. Aqui damos apenas alguns acontecimentos que
muito concorreram para sua evolução no sentido de uma verdadeira
disciplina histórica.
IV. O alemão Henrique Schliemann (1822-1890) ganhou
como comerciante uma fortuna considerável e, em 1863, retirou-se
dó comércio para se dedicar aos estudos de seu deleite. Jâ quando
menino sonhara com os heróis da epopéia homérica, e como milio-
nário ainda não se podia convencer de que a guerra troiana não
passasse de uma bela ficção literária, como se pensava geralmente
nesse tempo. Seu entusiasmo descobriu o que era interditado aos
especialistas. Foi •à Turquia, comprou alguns morros no local onde
supunha ter existido a antiga cidade de Tróia, e depois de muitas
decepções e sacrifícios, achou, não uma cidade só, mas nove, tuna
em cima de outra (121) . Não tardou em identificar a segunda ci-
dade de baixo com a cidade homérica (122) . Além de restos de
muralhas e edifícios, descobriu também numerosos e preciosos ob-
jetos de arte, e tôdas essas descobertas combinou-as, sem hesitar,
com certas passagens da epopéia é com certas figuras imortaliza-
das por Homero. Schliemann era precipitado e romântico ao inter-
‘pretar .as 6:lisas que achava: aléin disso, não era arqueólogo forma-
do, de modo que para êle o valor estético e sentimental dos obje-
tos achados era mais importante do que a reconstrução minuciosa
do passado. Màs os brilhantes teSultados dessas escavações (123)
atraíram logo outros arqueólogos especializados ao lugarejo Hissar-
lik, onde Schliemann completava as descobertas com os produtos
da sua riquíssima imaginação. Doí em diante, o trabalho foi exe-

— Tróia I é urna aldeia neolítica (3.000 a. C.); Tróia II tinha muralhas enor-
mes (±2400-±- 1900); Tróia III-V são insignificantes; Tróia VI é a cidade
homérica (destruíaa no século XIII ou XII a. C.); Tróia. VII á fundação dos
eimérioa (século VIII a. C.); Tróia VIII é cidadezinha grega, e Tróia IX
(//ium) é colônia romana. — São êsses os resultados das novas escavações,
realizadas pela Universidade de Cincinnati (Estados Unidos) em 1931.
— Só depois W. Dõrpfeld verificou que era Tróia VI.
— Por que os arqueólogos se vêem obriga d - oa a cavar? Porque outrora se cons-
truía um novo edifício em cima dás ruínas de um antigo, e uma nova cidade
em cima de uma antiga (por exemplo Tróia!). Outrossim, também á náltf-
reza faz com que, derrubada tuba construção, aí sé sobreponham camadas 'de
poeira e areia, solo fértil .para á Vegetação. Daí a diferença do nível. A Londres
Moderna fica á 8 bú 10' Metros acima da Londinius romana.
— 533 --

cutado de maneira mais sistemática. Em 1876, Schliemann, secun-


dado pelo arqueólogo W. Dórpfeld, desentulhou também as forta-
lezas de Micenas e Tirinto no Peloponeso: o resultado foi outra
vez uma surprêsa. Descobriram-se as ruínas de um enorme portão
(o portão dos leões), de um sepúlcro em forma de uma cúpula, e
de um palácio, além de máscaras de ouro, etc. Evidenciou-se cada
vez mais: não só Tróia, mas também Micenas, a pátria do herói
homérico Agamenão, eram cidades históricas! Encorajados pelo
bom êxito das escavações, outros arqueólogos de quase tôdas as
grandes nações foram desentulhar os restos do passado nas terras
mediterrâneas: os alemães em Olímpia (1874-1881), os franceses
em Delfos (desde 1861), os inglêses e os italianos em Creta (por
volta de 1900), os americanos em Corinto (século XX), os fran-
ceses na Síria e Tunisia, outros na Palestina, na Mesopotâmia, no
Egito (124), na Ásia-Menor (125); igualmente houve desentulhos
nas antigas províncias ocidentais •do Império Romano, na Alema-
nha, França, Inglaterra, Espanha, etc.
V. As descobertas arqueológicas enriqueceram de maneira
extraordinária os nossos conhecimentos de certos períodos históri-
cos e pré-históricos. Quase tudo o que sabemos a respeito do domí-
nio romano na Inglaterra e na Alemanha devemo-lo, não a livros,
mas ao estudo metódico dos antigos monumentos aí subsistentes, e
à epigrafia. Ademais, revelou-nos a arqueologia a existência de cul-
turas das quais os nossos avós e até os gregos e os romanos não ti-
nham conhecimentos, senão tradições meio lendárias. Chamamos a
atenção dos leitores só para duas culturas ressuscitadas: a minóica
e .a micênica (126).
A cultura minóica, descoberta pelo inglês Sir Arthur Evans e
depois pelos italianos, tinha por centro a ilha de Creta (127) e dei-
xou-nos vestígios de que os mais antigos remontam aos fins do
quarto milênio a. C. Teve o seu apogeu de 21004550 a. C., como
nos ensinam os palácios aí descobertos. Os cretenses minóicos não
eram indo-europeus, mas pertenciam a um povo pré-helênico (128),

. — Em 1922 foi descoberto o célebre sepúlcro de Tuth-Ank-Amon, o faraó do


Egito (1358-1352 a. C.), pelos inglêses Lord Carnavon e Carter.
. — Por exemplo em Boghazkbi (Turquia), onde, no início déste século, foi de-
sentulhado g antigo capital pos hititas.
. — O resumo seguinte é susceptível de modificações consideráveis, por causa das
novas cescobertas (cf. 8 41 II, nota 50) .
. — Os gregos clássicos possuiam só reminiscências vagas da "talassocracia" cretense
dos tempos pré-históricos, como também do lendário rei Minos, que no labi-
rinto encerrara o terrível monstro Minotauro, vencido pel9 herói ateniense
Teseu, ajudado pela princesa Ariadne. — Minos deu o seu nome à "'cultura
minóica".
— Os gregos clássicos chamavam-nos "pelasgos". — Hoje prefere-se o nome
"mediterrâneos", ou "cários" ou "asiáticos". E' possível que os bascos na Es-
panha, os etruscos na Itália, os minóicos na Creta, e os lídios na Asia-Menor
tenham a mesma origem. — A cultura de Tróia VI contém, além de ele-
mentos "asiáticos", também outros c.a origem "nórdica" (trácica), parecidos
com a civilização que os gregos leyermn consigo para a península dos Balcãs.
— 534 —

cuja cultura entretinha estreitas relações com o Egito. Tinham pa-


lácios sem tetos, sabiam ler e escrever, veneravam por exemplo o
touro e deuses da vegetação, e eram excelentes pintores.
Dsde o início do II milênio a. C., algumas tribos gregas (os
jônios e os aqueus) começaram a invadir a península dos Balcãs,
acabando por entrar em contacto com os minóicos no Peloponeso,
dos quais tomaram emprestados vários elementos religiosos como
também realizações técnicas e artísticas, mas sempre conservando
algumas particularidades indo-européias. Os primeiros gregos fo-
ram "civilizados" pela irradiação da cultura minóica, assim corno os
primitivos celtibéricos pelo seu contacto com a civilização romana.
O resultado foi a chamada "cultura micênica", da qual os restos
arqueológicos em Micenas, Argos e Tirinto nos dão uma idéia co-
mo também as epopéias homéricas. Esses "micênicos", que se es-
palharam também por algumas ilhas, destruiram a esplêndida cul-
tura minóica (século XV a. C.), e alguns séculos depois, por volta
de 1200 a. C., a própria civilização micênica foi liqüidada pela m-
vasãO dos dórios, uma tribo grega atrasada que se tinha demorado
em invadir a península. Só ao cabo de uns 4 a 5 séculos conseguiu
reflorescer a nova civilização grega em cima das ruínas da micênica,
da qual os novos senhores só possuiam reminiscências vagas e len-
dárias, como é provado pela poesia de Homero.

F. A GEOGRAFIA.

§ 61. O segundo ôlho da história.

A Geografia é irmã gêmea da história: os primeiros historia-


dores, como Hecateu e Heródoto, eram também homens viajados,
e tinham muito interêsse pelos fatôres geográficos. Tudo o que se
verifica no tempo, verifica-se também no espaço," de modo que a
cronologia e a geografia, na expressão célebre de Lord Bacon, são
os dois olhos da história (129) .
I. As relações da geografia com a história são múltiplas e
variadas. A geografia física descreve o habitat do homem, esclare-
cendo a origem e a evolução de várias instituições históricas. As
inundações anuais do Nilo tornavam necessárias medidas coletivas,
— senão, podiam transformar-se num desastre para o país, — que
favoreciam •a criação de um Estado centralizado e poderoso. O
mesmo fenômeno favorecia também o desenvolvimento da geome-
tria e de várias outras disciplinas e técnicas. As paisagens monta-
nhosas da antiga Grécia eram propícias ao nascimento de certo par-

(129). — Para urna discussão crítica dos fatôres geográficos na história humana, cf.
Henri Berr, En Marga de l'Histoire Universelle, Paris, 1934 (pp. 64-83).
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (II)", In: Revista
de História, São Paulo, nº 21-22, pp 439-535, jan./jun. 1955. Disponível em:
http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/021-022/A016N021E022op.pdf

— 535 —

ticularismo político e as numerosas ilhas do arquipélago egeu de-


viam seduzir os habitantes a fazer viagens marítimas. A situação
geográfica de Portugal contribuiu muitíssimo para que descobrisse
vastas regiões na África, América e Ásia. A extensão de certos paí-
ses, como a dos Estados Unidos da América do Norte e do Brasil,
proporciona possibilidades inexistentes em quase todos os países
do Velho Mundo, e cria também certos problemas peculiares. O
clima, as riquezas naturais, os produtos do solo, a hidrografia, a
orografia, a meteorologia e tantas outras disciplinas geográficas aju-
dam-nos a compreender vários acontecimentos históricos e numero-
sas realizações do passado. Tôdas elas culminam, para o historia-
dor, na chamada antropogeografia, ou "geografia humana", a qual
procura estabelecer as várias interrelações entre o homem e o seu
meio. Não é apenas o meio geográfico, no sentido mais amplo da
palavra, que exerce a sua influência sobre o homem, mas também
êste influi naquele, para o bem e para o mal. O desflorestamento,
tal como se verificou na Espanha, pode até alterar o clima. A Me-
sopotâmia, que na Antigüidade era um país fertilíssimo, graças aos
seus exemplares canais de irrigação, tornou-se um deserto sob o do-
mínio dos turcos.
II. Desde o século passado têm-se editado muitos atlas his-
tóricos, quer dizer, cartas geográficas que ilustram a história de
certos povos e civilizações. Hoje são instrumentos quase indispen-
sáveis ao estudioso da história.

JOSÉ VAN DEN BESSELAR


da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (III)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 23, pp 185-239, jul./set. 1955. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/023/A009N023.pdf

QUESTÕES PEDAGÓGICAS

INTRODUÇÃO AO ESTUDOS
HISTÓRICOS (III).

TERCEIRA PARTE

A Síntese Histórica
Nature is whole in her least things exprest,
Nor know we with what scope God builds the worm.
Our towns are copied fragments from our breast;
And all man's Babylons strive but to impart
The grandeurs of his Babylonian heart.

Francis Thompson, "The Ileart".

CAPITULO PRIMEIRO

OPERAÇÕES SINTÉTICAS ELEMENTARES

§ 62. O Fato Histórico.

Estabelecidos os "fatos materiais" do passado, ainda não termi-


nou a (tarefa do historiador. Para êles se tornarem compreensíveis
e significativos, o espírito humano precisa apoderar-se da matéria
bruta, esforçando-se por concatenar lógicamente os fatos verifica-
dos. Sapientis est ordinare. O estudo meramente analítico dos di-
versos documentos, por mais importante que seja (1), não é fim
em si, mas apenas um instrumento: não satisfaz às exigências do
nosso espírito, que sempre está em busca das íntimas conexões en-
tre fatos aparentemente isolados. A essa tendência inata -elegíti-
ma acode o verdadeiro historiador: longe de se sujeitar a um pa-
pel passivo de registrar mecânicamente os fenômenos históricos,
tem a alta aspiração de "entender" o passado, embora tenha a cons-
ciência de ser muito fragmentário e deficiente o seu "entendimen-
to". Ora, para chegar a uma interpretação satisfatória dos fatos his-
tóricos, vale-se de várias operações sintéticas, aue serão estudadas

(1) . — A importância de estudos analíticos é muitas vêzes subestimada em publica-


ções modernas; compreende-se essa atitude como reação ao culto excessivo das-
fontes na época positivista. Entretanto, prova a experiência que as mais va-
liosas sínteses históricas (não falamos em sínteses de cunho "filosófico" ou "teo-
lógico") foram feitas por aquêles historiadores que não desdenhavam o trabalho.
meticuloso de estudos analíticos.
— 186 ---

nesta parte. Primeiro devemos examinar uma questão preliminar:


a natureza do "fato histórico".
O historiador não tem livre acesso ao "fato histórico" do
passado: na melhor das hipóteses, consegue atingir, mediante a in-
vestigação metódica dos documentos, certos fenômenos exteriores
e observáveis, que poderíamos chamar "fatos materiais". São êstes
gestos e palavras de certos indivíduos do passado, observados e tes-
temunhados por pessoas competentes e fidedignas, os quais podem
ser datados e localizados com grau maior ou menor de exatidão;
às vêzes somos até capazes de descrevê-los bastante minuciosamen-
te com algumas circunstâncias que os acompanharam. Assim te-
mos por exemplo a certeza moral do fato de que, no dia 7 de de-
zembro do ano 43 a. C., certo indivíduo, cidadão romano e chamado
Cícero, foi degolado, na cadeirinha em que era transportado pelos
seus escravos, perto da sua chácara em Gaeta, por certo Herênio,
satélite do triúnviro Antônio (2) . Mas se o historiador prestasse
apenas atenção aos "fartos materiais", sempre exteriores e incoeren•
tes, não chegaria a ver entre êles a continuidade e a unidade, e
muito menos ainda a conexão entre as causas e os efeitos. Tais fa-
tos constituem apenas o esqueleto sem vida, da história, sem carne,
sem sangue. O espírito do historiador deve refletir naquilo que lhe
apresentam, — in casu, indiretamente, — os sentidos e insuflar a
vida a fenômenos exteriores por considerá-los como símbolos de
uma realidade humana: o que lhe importa, é o significado dêsses
símbolos. O gesto material, feito por Herênio, ao degolar Cícero,
— o braço de um indivíduo humano, armado de uma espada, diri-
ge-se contra o pescoço de outro indivíduo humano, — êsse gesto,
-como tal, pouco interessa ao historiador; interessa-lhe sim o gesto
como a expressão visível do ódio tremendo entre dois cidadãos ro-
manos, divididos por motivos pessoais e representantes de duas cor-
rentes políticas diferentes. A morte de Cícero, como "fato históri-
co", não se reduz ao vibrar de uma espada nem ao cessarem as fun-
ções vitãis de um indivíduo: para o historiador é o desfêcho bru-
tal de um drama humano, e um episódio signifiativo das guerras
civis que assolaram a Itália nos últimos anos da República Romana.
O que interessa ao historiador nos "fatos materiais" do
passado, é portanto seu valor simbólico de uma realidade humana,
a qual se subtrai aos sentidos, mas se patenteia ao espírito. Ela,
como tôda a realidade, é uma fonte inesgotável para a inteligên-
cia humana, que nele se vai submergindo cada vez mais a fundo e
lhe descobre constantemente novos aspectos. Conquistas na profun-
didade e conquistas na extensão possibilitam incessantemente no-
(2) . — O fato é testemunhado por Titus Livius (in Ab Urbe Condita, CXX, passo
conservado por Sêneca Rhetor, Suasoria, VI) e por Plutarchus, Vita Ciceronis,
LXXIII-LXXIV.
--- 187 —

vas sínteses . A plenitude ontológica da realidade constitui um mis-


tério, a colocar o espírito humano sempre diante de novos proble-
mas, que nunca serão resolvidos perfeita ou adeqüadamente. Custa
muito ao homem atingir a verdade e, enquanto viver neste mundo,
jamais a possuirá na sua totalidade. Mas pode —, e deve, — apro-
fundar e alargar constantemente seus conhecimentos. L'être des
choses est une aptitude secrète et comrne endormie à être saisies
par l'esprit, et en se faisant mesurer par elles c'est par l'intelligence
elle-même qu'en définitive notre intelligence se fait mesurer, par
l'intelligence en acte pur, par laquelle les choses sont mesurées, et
-de qui elles tiennent leur être et leur intelligibilité (3). Ao inter-
pretar a realidade humana do passado, o historiador não impõe
de maneira subjetiva e autônoma suas idéias, suas normas e sua
interpretação aos fatos históricos, mas antes tem de esforçar-se por
descobrir-lhes a concatenação e o significado na objetividade extra-
mental. O homem não "cria" sua interpretação histórica, — senão
numa acepção derivada e figurada da palavra, — mas, como cria-
tura, tem de tirá-la custosamente da realidade, que existe indepen-
dentemente do seu espírito. Bem sabemos que em tôda e qualquer
interpretação há_ um elemento subjetivo, e um dos principais as-
suntos dos seguintes parágrafos será apontá-lo nas diversas opera-
ções sintéticas. Entretanto, a verdade objetiva é a única norma
ideal de tôdas as reconstruções históricas, e o único critério do seu
valor científico.
III. Ao lidarmos com "fatos históricos", deparamos com cer-
tas dificuldades especiais, desconhecidas do matemático e do físico.
O homem vive no tempo, e o tempo é fator irreversível. A água,
ao ficar exposta por certo tempo a uma temperatura abaixo do
grau zero, transforma-se em gêlo: o fato físico é um conjunto de
fenômenos bem discerníveis e unívocos, tão estreitamente ligados
entre si, que se presta a uma repetição pràticamente idêntica em
qualquer momento. Ora, tais fatos não existem na história: os atos
humanos do passado, que ela estuda, são únicos. Comme il n'y a
pas de matière proprement historique, que l'histoire n'est pas, dé-
finie par un contenu propre mais que tout le passé de l'humanité
appartient à l'histoire, l'histoire doit renoncer à attribuer au fait
historique d'autre spécificité que sa singularité temporelle (4). No
fato físico o tempo é um conceito abstrato e quantitativo; o tempo
histórico, porém, é concreto e qualitativo; o tempo físico compõe-se
de momentos homogêneos, o tempo histórico de situações heterogê-
neas (cf. § 12). Por isso, atos históricos são irrepetíveis. Há mais:„
também o historiador vive no tempo; ao interpretar um conjunto
(3) . — J. Maritain, Distin‘uer pour Unir, ou Les Degrés du Savoir, Paris, Desclée
De Brouwer & Cie, 1935, pág. 211.
(4). — Palavras de R. Mehl, citadas por J. Hours, Valeur de l'Histoire, Paris, Presses
Universitaires, 1954, pág. 54.
— 188 —

de fatos históricos, que se verificou em dada situação do passado,


tem de partir forçosamente de sua própria situação concreta em
dado momento da história. E'-lhe inacessível o fato "puro", desti-
tuído do seu caráter temporal, visto ser o tempo o aspecto sob o
qual estuda seu objeto; e mesmo que o pudesse atingir, jamais se
poderia subtrair a si próprio ao tempo. O teorema de Pitágoras,
por ser urna construção ideal, impõe-se como uma verdade unívoca
a todos os raciocinadores de todos os tempos; a interpretação his-
tórica é sempre condicionada pela situação concreta do historiador.
Eis algumas observações fundamentais, em parte já conheci-
das, que nos parecem úteis como ponto de partida para o estudo
dos assuntos, de que agora nos havemos de ocupar.

§ 63. A Seleção dos Dados e o Questionário do Historiador.


Um pesquisador escolheu certo assunto histórico, digamos, a
abolição da escravatura no Brasil. Consultou, na medida do pos-
sível, os abundantes documentos, examinando-os segundo as normas
da Crítica Histórica; informou-se também da extensa bibliografia
que versa sôbre o assunto. Agora precisa expor os resultados da sua
odisséia através de livros, revistas, jornais, brochuras, cartas, pan-
fletos, etc. Deverá comunicar a seus leitores tudo o que leu, fichou
e elaborou? E' impossível fazê-lo, principalmente quando se trata
de um tema vasto. Aliás, a tal prolixidade opõe-se com muita ra-
zão o bom gôsto: le secret d'ennuyer est celui de tout dire. Mesmo
assim, muitos principiantes acham necessário dizer tudo o que sa-
bem. Como se não fôsse mais importante saber-se tudo o que se
diz!
.1. A Seleção dos Dados.
Ao juízo do historiador maduro impõe-se uma escôlha. Qual
o critério que deve seguir? Não raro o despistam as fontes coevas,
por atribuirem valor demasiado a acontecimentos de somenos im-
portância, e vice-versa. Falta-lhes necessariamente a visão panorâ-
mica dos acontecimentos que presenciam: quase sempre são vítimas
da atualidade. Até as grandes figuras da história se enganaram
muitas vêzes em avaliar seus méritos em relação à posteridade: nas
obras de grandes autores encontramos a êsse respeito alguns equí-
vocos itragicômicos (5). E pior ainda: aos contemporâneos falta
(5) . — Mencionamos aqui alguns casos interessantes. Erasmo, o editor de tantos textos
clássicos e sagrados, não tinha a mínima idéia de que a sua nomeada, em
nossos dias, se basearia principalmente na Laus Sfultitiae, opúsculo êsse que
considerava apenas um lusus ingenii, feito às pressas durante uma viagem
(1509) . — Charles Perrault, autor de obras eruditas e prolixas, hoje só conhe-
cidas de alguns especialistas (cf. § 82 n), vive ainda como pai dos despre-
tenciosos Contes de Ma Mère /'Oye (1691) . E Goethe, o príncipe dos poe-
tas alemães, julgava os seus poemas, entre os quais o drama imortal Faust,
de somenos importância, comparados com o valor que atribuia erradamente à
sua Farbenlehre (—"Tratado sôbre as Côres", terminado em 1810) .
— 189 --

amiúde um quízo sereno, ofuscando-lhes a vista fàcilmente as pai-


xões partidárias e os interêsses pessoais. Além disso, também êles
já fizeram uma escôlha, optando por certos dados que registraram,
e silenciando outros, que julgaram banais ou comprometedores (6).
Qual, então, o critério do historiador? Diz Paul Valéry, numa
das suas invectivas contra a história: Tout le monde consent que
Louis XIV soit mort en 1715. Mais il s'est passé en 1715 une infi-
nité d'autres choses observables, qu'il faudrait une infinité de mota,
de livres, et même de bibliothèques pour conserver à l'état écrit.
II faut dons choisir, c'est-à-dire convenir non seulement de l'exis-
tence, mais encore de l'importance du fait; et cette convention est
capitale (7). Com efeito, no ano 1715 nasceram e morreram mi-
lhares de franceses, que a historiografia deixa em profundo silên-
cio, bem como inúmeros atos heróicos, tolos e criminosos que, no
mesmo ano, foram cometidos por outros milhares de franceses no
seu caminho entre o berço e o sepulcro. Contudo, o historiador, ao
descrever os acontecimentos do ano 1715 na França, tem seus bons
motivos de prestar atenção à morte de Luís XIV, e de preterir a
morte de tantos outros franceses, Mesmo que esteja bem documen-
tada. Pois o falecimento do monarca teve uma repercussão bem
observável em numerosos outros acontecimentos, igualmente veri-
ficáveis, alguns dos quais chegaram a influenciar, direta ou indi-
retamente, a vida de milhões de pessoas; ao passo que a morte de
um cidadão obscuro, — digamos, M. Jourdain, — exerceu pouca
influência observável Eôbre o destino de uma grande coletividade.
Nosso M. Jourdain será ressuscitado pelos historiadores apenas se
um dos seus descendentes se revelar um dia um grande estadista,
fil&ofo, poeta ou artista: mas mesmo assim, he will be reduced to
a footnote, como dizem os inglêses. O tamanho da repercussão que
teve certo fato histórico em acontecimentos posteriores, é um cri-
tério saliente. Mas será sempre também um critério seguro? Um
espírito crítico sabe que as aparências enganam, podendo ter as
suas dúvidas acêrca de normas quantitativas, quando se trata de
atos humanos. Quem me garante que as fontes contemporâneas e
uma historiografia rotineira não tenham exagerado a importância
da morte de Luís XIV? No ano 1715 podem ter acontecido fatos
muito menos espetaculares, mas muito mais decisivos para os des-
tinos do povo francês. A importância da morte do Roi-Soleil deve
ser reconduzida a suas justas proporções.
Mas as justas proporções onde é que as posso encontrar? Não
mas revela o estudo meramente fenomenológico dos fatos históri-

(6) . — Dos hindus, pouco interessados nos fenômenos passageiros e enganadores dêste
mundo visível, conhecemos melhor a história da filosofia do que a história
política. Como é diferente o interêsse do mundo clássico!
(7). — P. Valéry, Variété IV, Paris, Gallimard, 1947, pág. 132.
— 190 —

cos, pois os fatos "materiais" em si não me fazem desvendar a sua


importância. "Fatos materiais" são símbolos de uma realidade hu-
mana, e esta se esquiva a uma observação direta. E'-me possível
fazer uma escôlha entre os fatos somente em virtude de uma re-
flexão, que transcenda a simples observação dos sentidos. Ora, es-
sa reflexão, apesar de conter elementos subjetivas e ainda que seja
condicionada pela situação histórica do historiador, não é inteira-
mente subjetiva ou arbitrária, mas deriva, em última análise, de
uma filosofia dos valores. Em virtude de uma filosofia dos valores,.
o historiador opta, — às vêzes, inconscientemente, — por certos
dados, e condena outros ao esquecimento. No Capítulo Terceiro
tornaremos a falar nos valores.
Sem dúvida, existem algumas normas práticas e convencionais
de selecionar os fatos históricos. Em primeiro lugar, há um certo
consensus peritorum, — o resultado de intensos estudos históricos,,
— a respeito da conveniência, ou inconveniência, de se mencionar
certa espécie de fatos em certo tipo de trabalho; para dêle se afas-
tar, o principiante precisa ter motivos muito sérios. Em segundo
lugar, a escôlha dos dados depende evidentemente do caráter do tra-
balho que se pretende publicar: destina-se a um pequeno grupo de.
especialistas, ou se dirige a um público maior? E' uma monografia,
ou uma obra geral? E, sendo uma monografia, possui caráter sintético
e literário, ou técnico e documentário? Das respostas, dadas a es-
sas e semelhantes perguntas, depende, em boa parte, a solução prá-
tica do problema.
Mas mesmo dentro dêsses limites continua a existir a livre op-
ção do historiador. Pouco adianta dizermos que deve escolher os
fatos notáveis e importantes, pois, na fundo, é êle próprio que de-
cide da questão se êste ou aquêle fato merece ser mencionado ou
não. Muito dificilmente poderá renunciar às suas predileções pes-
soais ou às preocupações do seu tempo. De modo geral podemos
dizer que não há fato nenhum que, de antemão, deva ser excluído
de um trabalho histórico. Todo e qualquer detalhe, por mais in-
significante que pareça, pode-se tornar importante, desde que o his-
toriador lhe dê um sentido na sua síntese, isto é, o trate como um
elemento significativo de um conjunto compreensível. No dizer de
Burckhardt (8), é bem possível que uma futura geração descubra
uma frase de valor em Tucídides, a qual até agora passou desper-
cebida aos historiadores.
Há mais: a seleção dos fatos traz muitas vêzes consigo uma
decisão de ordem moral. Nada mais sedutor do que deixar de lado
os fatos incómodos e embaraçados do passado. A arte de omitir é-
uma escola de famosas mentiras. Os protestantes escreveram, no
(8) . — J. Burckhardt, Weltgeschichtliche Betrachtungen, Alfred Kriiner Verlag, Stutt--
gart, 1949, págs. 21-22.
-191—

passado, com preferência bem visível Ia chronique scandaleusé do


Vaticano; os católicos, embaraçados pelos crimes da Inquisição,
guardaram freqüentemente um silêncio culpável sôbre os indignos
atos, praticados por seus correligionários. Tal atitude convém pouco
ao historiador: o que lhe importa, é a verdade, seja agradável, seja
desagradável. Uma das suas virtudes principais é a isenção de âni-
mo, que consiste em querer tomar conhecimento de todos os do-
cumentos relativos a um determinado assunto, e das diversas opi-
niões que a êsse respeito foram emitidas. Omnia probate, quod
bonum est tenete, diz o Apóstolo (9) . Nem sempre tem má fé
nosso adversário; nem sempre é honesto nosso amigo. Talvez haja
fatos históricos, contrários a nossos desejos: por isso não são menos
reais ou verdadeiros. O historiador deve testemunhar da verdade
sem que a identifique com seus interêsses pessoais ou seus desejos
tardios. Um espírito aberto, ao contrário do que se pensa muitas
vêzes, não é fruto de relaxamento ou indiferentismo, mas o resul-
tado de um intenso esfôrço intelectual e de uma grande probidade
moral. Custa sacrifícios e, por vêzes, atos de abnegação heróica.
II. O Questionário do Historiador.
Já vimos (cf. § 16 VII) que a interpretação dos atos humanos
deve seu valor à experiência refletida de quem interpreta. Ora, a
experiência coletiva de uma geração não pouco influi na posição
do historiador ante os fatos do passado.
A experiência coletiva de uma geração, a qual, anàlogamente
à experiência individual de uma pessoa, tem sempre algo de par-
ticular (cf. § 13 II), faz com que cada época se dirija a Clio com
suas próprias perguntas e preocupações. O pensamento teocêntrico
da Idade Média considerava a história como a ilustração concreta
da onipresente Divina Providência, que seria apontável em todos
os acontecimentos particulares. Períodos chamados otimistas, co-
mo o século XIX, interessavam-se sobremaneira pelos fatôres his-
tóricos que concorreram visivelmente para o progresso social e cul-
tural da humanidade. Os tempos modernos, ameaçados que se
vêem por tantos perigos iminentes, estudam com certa predileção
o fenômeno da decadência, querendo-nos mostrar a fatalidade de
um cataclismo universal, ou então, procurando-nos ensinar de que
modo podemos evitá-lo. A história é filha de seu tempo, e todos
os seus esforços de dissimular tal dependência são vãos. Obrigada
a servir-se de testemunhos alheios, torna-se ela própria um teste-
munho das aspirações e das preocupações do episódio histórico a
que pertence. E' instrutivo o exemplo de como Demóstenes era
apreciado nos tempos modernos: celebravam-no os alemães, quando
das invasões napoleônicas, como o herói corajoso da liberdade na-

(9) . — São Paulo, Primeira Epístola aos Tesselonicenses, V, 21.


— 192 ---

cional; na mesma Alemanha, depois de 1871, o mesmo Demóstenes


era denunciado como um politiqueiro vulgar e mesquinho e como
um rábula desprezível e subornável, grande obstáculo à unidade
nacional do povo grego, à qual o clarividente Isócrates não se can-
sava de apregoar; o orador ateniense tornou a ser representado co-
mo le bon soldat de sa patrie, le combattant de la plus belle cause
por Clérnenceau. Eis Demóstenes, — e êle não é o único exemplo
que poderíamos alegar! — transformado num peão no xadrez das
ideologias modernas.
Por mais lastimável que seja a degradação de um persona-
gem histórico a um joguete nas batalhas ideológicas de hoje, o
certo é que não se deixa eliminar por completo a situação do his-
toriador no tempo, tratando-se de apreciar os fatos do passado. E
isso não só ao apreciá-los, mas também ao examiná-los e ao elabo-
rá-los. Tôda e qualquer conquista do espírito humano no campo
político, social, econômcio, artístico ou científico, seja em profundi-
dade, seja em extensão, traz inevitàvelmente consigo sua repercus-
são na maneira de escolher, elaborar e interpretar os dados histó-
ricos. Ao que parece, envelhece logo a historiografia de gerações
anteriores diante de novas realizações e experiências, e precisa re-
juvenescer-se constantemente. Assim revolucionaram a interpre-
tação histórica certas ciências relativamente recentes: a economia,
a sociologia, e a psicologia experimental. Propuseram-lhe novos
problemas, mostraram-lhe outros aspectos de fatos já conhecidos,
proporcionaram-lhe métodos diferentes; infelizmente, ameaçaram-
lhe, às vêzes, também tirar a vida, tentando absorvê-la por comple-
to (10) . Cada época tem de reescrever a história, sendo impossí-
vel um resultado definitivo ou uma síntese final, a ilusão da escola
nacionalista. Já dizia Goethe: "Ninguém pode duvidar, em nossos
dias, de que a história deve ser reescrita de vez em quando: não
só descobrimos documentos novos, mas como filhos do tempo que
nunca pára, precisamos em cada período de um novo ponto de vis-
ta, partindo do qual possamos contemplar e julgar o passado"
(11). Com efeito, cada geração precisa dar contas da sua situação
histórica, reencetando continuamente o diálogo com o passado. A
história segue o caminho do homem individual: aprende a cada
passo.
+(10) . — Por exemplo, o materialismo histórico reduz a história ao estudo dos fatôres
econômicos do passado; o freucUsmo procura a ultima ratio dos atos humanos
nos instintos e na libido; certa escola sociológica chega a negar a unicidade
dos fatos históricos.
(11) . — Tradução um tanto livre das palavras de Goethe, na sua obra: Materialien zur
Geschichte der Farbenlehre (in Werke, XL, pág. 200), onde lemos: "Dass die
Weltgeschichte von Zeit zu Zeit umgeschr:eben werden müsse, darüber ist in
unseren Tagen wohl kein Zweifel übrig geblieben. Eine solche Notwendigkeit
entsteht aber nicht etwa daher, weil viel Geschehenes nachentdeckt worden,
sondem weil neue Ansichten gegeben werden, weil der Genosse einer fortschrei-
tenden Zeit auf Standpunkte geführt wird , vc,n welchen sich das Vergangene auf
eine neue Weise überschauen und beurteilen lãsst".
--- 193 —

A historiografia anterior ao século passado não considerava a,


vida econômica como fator sui generis, mas simplesmente como
um aspecto da política ou da moral. Hoje é impossível estudar
por exemplo as causas do declínio do Império Romano sem levar
em consideração os dados fornecidos pela economia: nem sempre
,

chegam êstes a aniquilar as teorias de outrora, mas muitas vazes


enriquecem ou completam as explicações antigas. Do mesmo modo
a biografia moderna tem-se aproveitado largamente das descober-
tas da psicanálise: um autor de hoje faz muitas perguntas ao seu
"herói" que seriam inconcebíveis no século passado. E o questioná-
rio de um historiador do século XXV será certamente muito di-
ferente do atual.
A circunstância de ser condicionado o questionário do histo-
riador pela situação histórica, induziu alguns a dizer que não com-
preendemos o presente pelo passado, mas, ao contrário, o passado
pelo presente. Entendamos bem essas palavras. Nossa interpreta-
ção dos fatos históricos não é única ou completamente determinada
por nossa situação no tempo: seria um historicismo sem saída. A
frase deve significar que nosso espírito, — criado, limitado e viven-
do no tempo, — não consegue possuir a verdade na sua plenitude,
mas dela só participa de maneira imperfeita visto que a verdade se
lhe mostra no tempo. E' impossível cumprir-se a ordem de Féne-
lon: Le bon historiem n'est d'aucun tempo ni d'aucun pays" (12) .
Tal atitude "meta-histórica" não existe neste mundo.
-

§ 64. Completando a Documentação.

Não raro acontece que o historiador, sobretudo ao estudar os


fatos de um passado remoto, onde são escassas as fontes de infor-
mação, se vê obrigado a formular hipóteses. A hipótese na histó-
ria é uma exposição, ou explicação, provisória de fatos insuficiente-
mente abonados pelos documentos ainda existentes. Jamais pode
contrariar os fatos seguramente documentados: antes tem de arde-
ná-los e harmonizá-los a fim de que se nos tornem compreensíveis
na sua sucessão e conexão. Graças a hipóteses históricas, conhece-
mos agora alguns aspectos de certos acontecimentos do passado (por
exemplo, a fundação da Cidade de Roma) que tiveram uma do-
•cumentação errônea ou contraditória nas fontes. Se não podemos
dizer com certeza em que ano, por que povo e em que circunstân-
cias particulares Roma foi fundada, sabemos, ao menos, melhor do
que Tito-Lívio, a situação histórica em que se achava Lácio quando
ia nascendo a povoação tiberina: mediante ilações, comparações e
combinações podemos chegar a uma reconstrução não pormenori-

- Fénelon, Lettre à l'Acedémie, Chapitre VIII.


— 194 —

nada, mas muito provável nas linhas gerais, de certos fatos histó-
ricos mal documentados, — reconstrução essa que, em alguns casos,
confina com a certeza. Tampouco é pura fantasia a hipótese na
história como o é em outras disciplinas: apesar dos seus elementos
subjetivos pode ser considerada como o prolongamento das regras
e dos métodos da Crítica Histórica, a basear-se no bom senso e a
lidar com argumentos que se prestam a uma apreciação objetiva.
No mais das vêzes, não deve sua existência a um raciocínio discur-
sivo, ainda que êste a siga geralmente, mas é produto quase espon-
tâneo de certa intuição, — um pressentimento vago, — que só de-
pois vai procurando uma justificação metódica. Não raro acontece
que uma hipótese é confirmada por descobertas posteriores. E' o
privilégio dos grandes historiadores formular grandes hipóteses:
abrem elas novos horizontes, estimulam outros a investigarem a mes-
ma matéria, provocam protestos de adesão ou de reprovação. Em
uma palavra, são elas que fazem progredir a ciência histórica. Dis-
se um poeta alemão: "As construções dos reis dão muito trabalho
aos operários" (13) . Com efeito, os reis entre os historiadores: um
Mommsen, um Taine, um Alexandre Herculano, fecundaram a his-
tória não apenas com suas análises penetrantes ou com sua erudi-
ção extraordinária, nem sequer com seus métodos aprimorados, mas
também com suas hipóteses, algumas das quais se tornaram o ob-
jeto de muitos anos de discussões e estudos. Longe de serem in-
falíveis, mas sempre luminosas, constituem uma nova tentativa, ade-
qüada às exigências da época, de compreender uma certa série de
acontecimentos históricos. Amiúde precisam ser modificadas ou cor-
rigidas, às vêzes até são abandonadas, mas quase nunca sem adian-
tarem a ciência . Uma grande hipótese, ainda que superada por no-
vas descobertas ou novas pesquisas, deixa seus vestígios em sínteses.
posteriores, sendo que a ciência nunca regressa por completo a uma
fase anterior: neste ponto a história não é diferente das outras dis-
ciplinas.
Distinguimos aqui entre duas espécies de raciocínio: o negativo
e o positivo, para depois falarmos da imaginação .

I. O Raciocínio Negativo.

O raciocínio negativo é o chamado argumentum ex silentio, ,

quer dizer: deduz-se do silêncio dos documentos a inexistência de '

certo fato ou instituição. E' um argumento delicado, que deve ser


manejado com muitíssima prudência. Pois perdeu-se a grande maio-
ria dos documentos, principalmente os relativos a tempos muito
longínquos: à medida que se tornarem mais abundantes as fontes,,
<13) . — F. Von Schiller: "Wena die Kiiaige bramo, bebeu die Kãrrner zu tun",
Kant und reine Ausleáer.
— 195 —

poderemos servir-nos dêste argumento com mais segurança, e vice-


versa. Outrossim, muitos fatos do passado eram julgados tão ba-
nais, tão corriqueiros ou tão evidentes pelos contemporâneos que
não lhes pareciam merecer a honra de uma menção especial: não
percamos de vista que a maior parte dos documentos históricos não
foi feita com o fim de satisfazer à curiosidade de um historiador do
século XX. Os antigos quase nunca falam da vida infantil, da mo-
da feminina, da opressão econômica dos pobres: deduzir dêsse si-
lêncio a ausência de brinquedos, de costureiras e de injustiças so-
ciais seria àbviamente uma conclusão errônea. Mas, quando a lite-
ratura de uma época copiosamente documentada, por exemplo a da
época vitoriana na Inglaterra, é geralmente livre de passagens es-
cabrosas e libertinas, em oposição á literatura coeva da França, o
silêncio é significativo: explica-se certamente, não pelo fato de não
haver existido a libertinagem na Inglaterra durante a segunda me-
tade do século XIX, mas pela circunstância de aí não ter sido tole-
rada públicamente. A literatura oficializada do século corrente veio
a patentear a latente do século passado. Concluimos estas obser-
vações com as palavras de Langlois e Seignobos: "O raciocínio ne-
gativo acha-se assim limitado a casos nitidamente definidos: 1) O
autor do documento em que o fato não está mencionado pretendia
sistemàticamente notar todos os fatos desta espécie e devia conhe-
cer a totalidade de (tais fatos. 2) O fato, na hipótese de existir, se
impunha à imaginação do autor de modo a entrar forçosamente em
suas concepções" (14) .

II. O Raciocínio Positivo.

O raciocínio positivo é geralmente uma ilação por analogia,


quer dizer: da existência de uma fato documentado inferimos a
existência de outro fato não documentado por existir uma relação,
se não constante, ao menos comum, entre duas espécies de fatos.
Aqui se torna necessária mais uma distinção: empregamos o racio-
cínio no terreno dos motivos humanos, e no terreno dos fatos ex-
teriores.

a) Os Motivos Humanos.

O raciocínio por analogia permite-nos entrar, embora de modo


deficiente, nos motivos das figuras históricas, os quais muitas vêzes
são calados, dissimulados ou desfigurados pelos documentos. Seu
valor reside, em última análise, no fato de possuirem todos os atos
humanos um centro comum: o homem, que é essencialmente igual a

(14) . — Langlois-Seignobos, Introdução, etc . (trad. port.), pág. 180.


— 196 —

despeito das numerosas diferenças acidentais que tem manifestado


através dos séculos. Mas visto serem livres os atos humanos, as re-
lações entre êles não são constantes nem necessárias. Antes, são
certas regras de comportamento que a existência refletida nos faz
observar em nós próprios e em outros: sempre admitem exceções.
Mas, cumpridas certas condições, essa experiência refletida nos po-
de levar à certeza moral (15).
Não procuremos eliminar o mistério. Os grandes conhecedores
do coração humano sabem que nada há de mais complexo do que a
"motivação", e a psicologia moderna vem confirmando essa intuição
pré-científica. Instintos, afetos, paixões, hábitos, fatôres educacio-
nais e sociais, a inteligência e ,a vontade concorrem, cada qual à
sua maneira, para se efetuar um motivo humano. Quem pretende
reduzir a "motivação" a um esquema simplificador, dá provas de
não entender nada da realidade humana.
There are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are dreamt of in your "psychology" (16) .

Não convém entrarmos aqui em discussões psicológicas e filo-


sóficas; basta dizermos que o conhecimento intuitivo e pré-cientí-
fico, do homem, por mais indispensável que seja, pode, — e deve,
— ser aprofundado e alargado por estudos metódicos de psicolo-
gia, importantes para todo e qualquer historiador, mas principalmen-
te para um futuro biógrafo.

b) Os Fatos Exteriores.

Tucídides foi o primeiro a servir-se da ilação para estabelecer


alguns fatos mal ou não documentados da pré-história grega (I 2-
20): neste ponto lhe igualaram poucos historiadores até o século
XIX. Foi só nos tempos modernos que a historiografia reencetou
o método, aperfeiçoando-o e aplicando-o em escala maior. Hoje em
dia é operação bastante comum, a contribuir consideràvelmente pa-
ra o enriquecimento dos nossos conhecimentos históricos. Tem sido
abusada também: uma vez destruída a fé na tradição escrita, des-
figurada por tantos elementos lendários, é muito natural os histo-
riadores irem experimentar sem necessidade as suas próprias fôrças,
chegando a emitir hipóteses com certa leviandade.
Damos aqui alguns exemplos ilustrativos da ilação histórica.
A língua, para a qual aponta o nome de uma cidade, é geral-
mente a mesma que a do povo que fundou a cidade. No Brasil por
exemplo é fácil distinguir entre as povoações originàriamente indí-

— Cf. & 15 I; 16 V a.
— W. Shakespeare, Hamlet, Act I, Scene 5. — O poeta diz: "philosophy", e não
"psychology".
— 197 —

cenas (Piracicaba, Mogi Guaçú, etc.), e as fundações portuguêsas


(Rio de Janeiro, Baía de Todos os Santos, etc.) . Aplicando esta
regra a períodos pouco documentados, chegamos à conclusão, — em
alguns casos, confirmada por descobertas arqueológicas, — de que
as cidades gregas, cujos nomes terminam em -nthos (por exemplo,
Kórinthos) e em -ssos (por exemplo, Halikarnassós), devem ter si-
do fundadas por um povo pré-helênico (17), visto que êsses sufixos
são pré-helênicos. Mediante a "toponímia" procura-se estabelecer
também até que ponto os francos conseguiram colonizar e germani-
zar a Gália romana no limiar da Idade Média: muitas cidades da
França setentrional e central (até o Loire) têm nome de origem
germânica, por exemplo: Cambrai (=Kamerrijk), Dunkerque (=
Duinkerken), e Boulogne (=Boonen). Mas os nomes afrancesa-
dos dessas povoações francas provam que a população romanizada
da Gália conseguiu reconquistar — culturalmente falando — quase
todo o território perdido. A relação que existe entre o nome de
uma cidade e o povo que a fundou, não é, porém, constante ou ne-
cessária. Quantos nomes gregos de cidades americanas, que nunca
foram fundadas pelos gregos, por exemplo Philadelphia, Phoenix,
Alexandria, Ithaca, etc.! Brooklyn, atualmente um subúrbio de No-
va Iorque, foi fundada, em 1638, por emigrantes holandeses, pro-
venientes da aldeia de Breukelen, perto de Utrecht: Brooklin
Paulista é nome importado, talvez por sentir-se São Paulo a Nova
Iorque da América Latina. Citamos mais uma vez Langlcis e
Seignobos: "Não basta um sintoma para fazer um diagnóstico, mas
muitos dêles são necessários. A precaução deve consistir em evitar
o estudo de um fato isolado, ou de um fato abstrato. Os homens
devem ser considerados em relação às principais condições de suas
vidas" (18) .
Outro método de inferir fatos não documentados é •aplicado às
chamadas instituições cristalizadas ou petrificadas. Ao encontrar-
mos antigas formas históricas, transmitidas de geração a geração,
as quais, na época em que se nos apresentam documentadas, já não
possuem significado, podemos fazer esta pergunta: qual deve ter
sido a situação anterior à situação documentada e bem conhecida,
se para esta pôde evolver aquela? Êste raciocínio, usadíssimo na et-
nologia e em outras disciplinas auxiliares, parte da consideração
de ser inadmissível que tais instituições não tenham sido signifi-
cativas numa época anterior à documentação disponível. Sabemos
com certeza que o regime político de Atenas foi originàriamente a
monarquia, a qual, através de um govêrno aristocrático (séculos
VIII-VI), passou para a democracia (séculos VI-IV) . Nos tempos
primitivos, o reu era sacerdote, juiz e general. Ora, na época da

. — Os chamados "pelasgos", cf. § 60 V, nota 128.


. — Langlois-Seignobos, Introdução, etc. (trad. port.), pág. 183.
— 198 —

democracia radical encontramos entre os nove arcontes (19) três


com um nome especial bastante significativo: o basiléus (=rei; fa-
zia êle os sacrifícios públicos), o epónymos (=que emprestava seu
nome ao ano; era êle o juiz), e o polémarchos (=general). No sé-
culo V só os apelidos lembravam os cargos antigos, os quais no sé-
culo anterior ainda eram efetivos. Essa observação torna muito pro-
vável a hipótese de ter sido desmembrada, aos poucos, a dignida-
de do rei ateniense em três magistraturas aristocráticas, sem que
houvesse uma ruptura abrupta ou radical com o passado (talvez
no século VIII). Para êsse fato apontam, aliás, também outros .
indícios, e de tal desmembramento pacífico da realeza conhecemos
alguns paralelos na história antiga.

III. A Imaginação.

E a imaginação do historiador, até que ponto pode entrar na


exposição ordenada dos fatos? Evidentemente não a imaginação li-
vre, ou a fantasia: um autor não tem a liberdade de fazer morrer
Cícero no seu palacete em Roma, ou de prolongar-lhe a vida até o
Principado de Augusto. Os fatos são irrevogáveis, e devem ser res-
peitados incondicionalmente. Mas o historiador pode, sempre com
a devida moderação, acrescentar-lhes certos pormenores, preteridos
pelos documentos, baseando-se num raciocínio por analogia. Co-
munica-nos um cronista (20) que, no ano 500, Teoderico, o rei dos
ostrogodos, visitou a cidade de Roma. Ao narrar e comentar êsse
fato, o historiador não precisa evitar descrever os sentimentos con-
traditórios que o rei "bárbaro" pode ter tido, quando via os esplen-
dores da Cidade Eterna: sentimentos de orgulho, e sentimentos de
inferioridade. O historiador pode dar também uma descrição mais
ou menos pormenorizada dos palácios, templos e aquedutos de Ro-
ma, evocando certas imagens do passado, e pode tentar esclarecer-
nos a impressão que a vista dessas coisas teve no espírito de Teo-
derico. Não se escrevem certas páginas da história sem a ajuda da
imaginação. Mas é grande o perigo de se usarem excessivamente
meios literários em discrições históricas. Os grandes historiadores
sabem moderar sua imaginação, e fazendo uso dela, não deixam des-
prevenidos seus leitores. A imaginação na historiografia é limita-
da por uma obediência absoluta aos fatos, disciplinada por um mé-
todo científico, e alimentada por uma grande erudição. Caso con-
trário, a exposição histórica faria concorrência ilegítima às obras li-
terárias de livre ficção.

— Na época da democracia radical, os nove arcontes já não eram eleitos ou no-


meados, mas sorteados entre os cidadãos das três classes superiores( desde 457
a. C.). O cargo perdera tôda a sua importância efetiva.
(20). — Anonymus Valesianus, 65-67; cf. Cassiodorus, Chronicon, ad annum 500, e
Ferrandus, Vita Fulgentii, IX.
CAPÍTULO SEGUNDO

CONCEITOS HISTÓRICOS

§ 65. O novo senso histórico.

Tôda e qualquer disciplina possui certos conceitos próprios, cuja


existência e função decorrem da natureza dos objetos por ela estuda-
dos e dos métodos por ela empregados. Corresponde-lhes, em ge-
ral, só imperfeitamente uma terminologia própria. Por exemplo,
o têrmo "analogia" terá significado diferente, conforme fôr usado
por um biólogo, lingüísta ou filósofo; uma "causa" histórica difere
bastante de uma causa física ou metafísica, e assim por diante .
As palavras podem ser as mesmas; os conceitos, isto é, as reali-
dades indicadas pelas palavras, são raras vêzes idênticos. Assim
como é ilegal transferir os métodos de uma ciência para outra, as-.
sim é ilícita a transferência irrefletida de um conceito, peculiar a
certa disciplina, para outro campo de investigação científica. Quais
são os principais conceitos de que se serve o historiador? Ao tra-
tarmos desta questão, poderemos referir-nos, de vez em quando, a
assuntos já estudados na primeira parte dêste livro.

I. A Tipologia Histórica (1) .

Os atos humanos são concretos e individuais: de fato, são sem-


pre os indivíduos que sentem, pensam, agem e sofrem, não as cole-
tividades. Contudo, o historiador pode reunir certos grupos de pes-
soas, instituições, tendências políticas e culturais, etc. sob um deno-
minador comum, por exemplo: o feudalismo medieval, a Prússia mi-
litarista, o liberalismo, a democracia, etc. Como já explicamos, não
são abstrações no sentido próprio da palavra, mas conceitos "cole-
tivos", a ocuparem uma posição intermediária entre conceitos abstra-
tos e singulares: nunca perdem seu caráter concreto e individual.
Visto ser inexprimível o indivíduo como tal, tais conceitos não se
prestam a uma definição exata e exaustiva. São aproximações sin-
téticas, tentativas necessárias mas sempre um tanto precárias, do
espírito humano para abranger, numa única fórmula, a riqueza cor,-

(1) . -- Cf. $ 13 II; $ 16 VII; $ 17 II. — Veja também Dr. René Voggensperger,
Der Begriff der Geschichte ale Wissenscheft im Lichte aristotelisch-thomistischer
Prinzipien, Paulusverlag, Freiburg in der Schweiz, 1948, págs. 41-49.
— 200 —

creta da realidade histórica. As tipologias desempenham papel de


suma importância na historiografia moderna. Mediante elas pro-
curamos "entender" os fenômenos do passado na sua unicidade: pois
o individual é-nos apenas conhecido intelectualmente pelo cami-
nho de conceitos gerais (universais e coletivos). Constituem por
exemplo a base das diversas periodizações e das várias divisões da,
matéria histórica, que já estudamos nos §§ 20-30.

II. Culturas ou Civilizações (2) .

O historiador, ao criar tipologias, pode abranger grupos cada


vez mais compreensivos: uma das últimas fases da síntese histórica
é a noção de "culturas" ou "civilizações". Assim falamos na civi-
lização chinesa ou egípcia, na cultura grega ou medieval, etc. Toyn-
bee chama-as: intelligible fields of study ou indivisible wholes (3) .
E' impossível estudarmos a fundo a história do Brasil sem conhe-
cermos as múltiplas relações, que, no tempo e no espaço, ligam a
unidade histórica "Brasil" a outras unidades históricas, por exemplo
Portugal e os Estados Unidos da América do Norte. Mas também
estas não são indivisible wholes, mas parcelas sincrônicas de um
conjunto muito maior: "a cultura ocidental", a qual, por sua vez,
deve muitas das suas características à "cultura clássica" dos gregos
e dos romanos. Ao que parece, não há motivo imperioso para que
paremos aqui e não ultrapassemos as fronteiras da "cultura grega",,
pois todo o• mundo sabe que ela, em muitos pontos, é tributária de
várias "culturas ocidentais". Contudo diz Toynbee: While the con
tinuity between the histories of one society (=cultura) and ano-
ther is very much slighter than the continuity,between different chap-.
ters in the history of any single society (indeed, so much slighter
as virtually to differ in kind), yet in the Time-relation between
two particular societies of different age — namely the Western•
and the Hellenic — we have observed features which we may des-
cribe metaphorically as "apparentation" and "affiliation" (4) .
Apresenta-se-nos aqui uma dificuldade inerente a tôdas as tipo-
logias históricas: não podemos demarcar as diversas unidades com
exatidão, porque há coincidências, interdependências e interpene-
trações (cf. § 19) . Assim mesmo, o conceito de "culturas" ou "civi-
lizações" pode-nos prestar serviços valiosos por nos dar uma visão ,
panorâmica de unidades históricas de maior extensão do que as que
são formadas por tribos, povos, nações e Estados. São estas partes
de um conjunto maior, ligadas entre si por certas formas coletivas
de vida, nas quais se integram a aparelhagem técnica, os costumes

(2) . — Empregamos aqui os dois fel-mos indistintamente, cf. § 29 V.


— Amold Toynbee, A Study of History, I págs. 17-50.
— Ibidem, págs. 45-46.
— 201 —

e as instituições sociais, como também os valores culturais e espiri-


tuais. Os Racionalistas tinham a ilusão de uma só cultura mun-
dial, a qual geralmente identificavam com a cultura ocidental: os
tempos modernos descobriram as feições peculiares a certas cultu-
ras mais ou menos autônomas. De um lado existe o perigo de não
se dar a devida importância à existência de profundas diferenças
mentais e irracionais entre as culturas particulares; por outro lado,
percebemos a tendência exagerada de se considerarem as grandes
civilizações como unidades hermeticamente fechadas (por exemplo,
Spengler!). Nas duas hipóteses é impossível uma interpenetração
mútua como também um estudo comparativo. Mas, na realidade,
tôdas as culturas são expressões do homem, — espírito encarnado,
— essencialmente igual através de todos os séculos e em tôdas as
regiões. Tôda e qualquer civilização é, em última análise, uma
tentativa de dar uma resposta concreta ao eterno problema huma-
no: "Que é o homem? De onde vem, e para onde vai?"

III. Organismos.

A questão anterior leva-nos espontâneamente a outro proble-


ma: as grandes unidades históricas podem ser consideradas como--
organismos? e, sendo afirmativa a resposta, em que sentido?
O organismo, estudado pelo biólogo, é um conjunto de órgãos
que constituem um ser vivo. Logo se vê que o têrmo, aplicado a
unidades históricas (5), não passa de uma metáfora. Uma "cultu-
ra" e outras coletividades históricas não possuem a perseidade, isto-
é: não existem de per si, como os organismos naturais. Os mem-
bros ou órgãos dêstes não são livres em fazer parte, ou não, de um
conjunto: mas a pessoa humana é muito mais do que simples parte
de um organismo. Ao ser incorporada numa sociedade, pode dizer
livremente "sim" ou "não". A palavra "organismo", aplicada às.
grandes entidades coletivas da história, deve significar o conjunto
das numerosíssimas e variadíssimas interrelações que existem entre
as diversas atividades dos seus membros constitutivos, a manifes-
tar-se no setor técnico e econômicci, na vida política e social, nas
ciências, artes e religião. As "culturas", de que nos fala a história,.
não são aglomerações de átomos humanos, arbitràriamente compos-
tas em virtude de um pacto puramente racional e arbitràriamente,
dissolúvel; tampouco são construções mecânicas, realizadas por f a-
tôres exteriores. São expressões do homem inteiro, que é animal_
racional. Anima forma corporis, dizem os escolásticos: a alma e o
corpo constituem uma unidade substancial. E o mundo histórico,.

(5) . — A idéia remonta ao filósofo alemão Herder, como havemos de ver no 92;
mas a aplicação conseqüente do princípio foi feita, pela primeira vez, pelo his-
toriador dinamarquês Nils Treschkow (1751-1833) no livro: "Princípios da:
Filosofia da História" (1811), obra que nos é inacessível.
— 202 —

ao qual pertencem as "culturas", reflete fielmente a natureza com-


plexa do seu criador. Quem elimina um dos dois elementos, enca-
rando só o aspecto espiritual, ou então só o aspecto material, mutila
a realidade, privando-se de um conhecimento real do homem e da
história. Nossa inteligência limitada não abrange os diversos ele-
mentos na sua totalidade, mas tem de fazer distinções: não os pode
separar, porém, na realidade. Feitas essas ressalvas, podemos dizer
com Christopher Dawson a respeito de uma "cultura" histórica: It
,

is a living whole, from its roots in the soil and in the simple instinc-
tive life of the shepherd, the fisherman, and the husbandman, up
to its fllowering irr the highest achievaments of the artist and the
philosopher; just as the individual combines in the substantial unity
of his personality the animal life of nutrition and reproductieo with
the higher activities of reason and intellect (6) .

IV. Evolução.

Desde a época do Romantismo a palavra "organismo" veio a


ser combinada com outra palavra, igualmente de origem biológica:
`evolução". Sob a influência das teorias de Spencer e Darwin o
conceito ficou, também na historiografia, com um cunho "científi-
,

co", e hoje em dia "evolução" é um têrmo corriqueiro e encontra-


diço em quase tôdas as publicações históricas. Entretanto, pode ser
útil examinarmos de mais perto o significado e o alcance desta pa-
lavra mágica na historiografia.
O biólogo conhece as tendências, — digamos com os tomistas,
'"a potência", — de certa muda para se desenvolver no sentido de
um determinado organismo. Influências externas podem estorvar
43 processo de desenvolvimento normal: isso nada interessa ao bió-
logo, que sempre conta com o "caso normal", bem conhecido e veri-
ficável. Mas qual é o "caso normal" para o historiador? Que a de-
mocracia resulta em anarquia, ditadura ou monarquia? Que a mo-
.narquia resulta em aristocracia ou tirania? (7). A história dá exem-
plos abundantes de todos êsses casos. O "caso normal", estudado
pela biologia, é o produto de certas tendências internas da planta,
e de certas influências externas, supostamente constantes: por isso
mesmo é uma abstração. Mas o têrmo "caso" tem pouco cabimen-
to na historiografia. O que interessa ao historiador, é o caráter con-
creto e singular das influências externas sôbre os fenômenos histó-
ricos, a saber as livres decisões do homem e o "acaso". Não nos é
possível prever o desenvolvimento futuro de dada situação histó-
rica; só a posteriori podemos verificar se esta ou aquela tendêndia
(6) . — Christopher Dawson, Progress and Religion, London, Sheed & Ward, 1938,
pág. 48.
<7) . — Já Aristóteles (in Política, VII 12) combatia Platão (República, VIII 546
B-C), que admitia ciclos determinados de regimes políticos.
4
— 203 —

foi realizada ou frustrada, e de que maneira. A palavra "evolução"


tem portanto um sentido bem diferente, conforme é empregada por
um biólogo ou por um historiador.
Certos dados, fornecidos pela geologia, biologia e antropologia,
induziram cientistas modernos a aderirem ao chamado Evolucionis-
mo ou Transformismo, têrmos êsses que são usados em várias acep-
ções, uma das quais poderia ser: todos os sêres materiais são os pro-
<lutos de um lento processo evolutivo, que tem a sua origem num
único princípio ou em relativamente poucos princípios. Não nos
convém entrar nos méritos desta teoria. O certo é que o Evolucio-
nismo, aliando-se a uma concepção atéia do mundo, tenta explicar
o ente superior (por exemplo, a alma humana) pelo ente inferior
(a matéria e causas mecânicas), chegando • a negar a transcendên-
cia do espírito e declarando o processo de evolução a ultima fatio
do mundo, que assim ficaria independente do ato criador de um
Deus pessoal e transcendente. Tal opinião é contrária ao bom senso,
que afirma: Nihil est in effectu, quod non fuerit in causa. Além
disso, confunde absurdamente o "como" com o "porquê". Transfor-
mismo implica mudança ou movimento e contingência: e a mtidan-
ça exige o Primeiro Motor, do mesmo modo que a contingência pres-
supõe o Ser Necessário (8) . Quando não se admite a existência
de uma Causa Suprema, única fonte de ser de tôdas as coisas cria-
das, como explicar que um ser contingente produza outro ser con-
tingente? como explicar que haja transformação?
O conceito de evolução, viciado por sua aliança histórica com
o materialismo, é fonte de muitos equívocos e é freqüentemente abu-
sado para dar explicações fáceis e superficiais. Entretanto, despo-
jado dos seus acessórios falsos e errôneos, tem prestado serviços
importantes às ciências modernas, também à historiografia. Admi-
tir certa evolução histórica não equivale a eliminar a Deus ou a li-
berdade e a transcendência do espírito humano. Deus é a última
causa não só da transformação, mas também da essência e da exis-
tência do ser evoluído; e o espírito humano está envolvido num pro-
cesso de evolução "criadora", que admite e até pressupõe a liberda-
de humana e divina. Os historiadores, anteriores ao século XIX,
simplificavam e deformavam muitas vêzes a história por admitirem
mudanças bruscas e pouco preparadas, e por falarem demais em
realizações de uma vez feitas e desde o início acabadas. A historio-
grafia moderna frisa com muita razão o caráter vagoroso e grada-
tivo do processo histórico. O livre arbítrio do homem, por mais
livre que seja, não opera num vácuo intemporal, mas tem de levar
em consideração as tendências ou as possibilidades que encontra
em dada situação histórica. Aos modernos a história não se apre-

(8) . — Cf. Leonardo Vau Acker, Essência e Evolução, in Revista da Universidade


Católica de São Paulo, Vol. V, Fasc. 10, págs. 5-15.
— 204 —

Senta como a sucessão meramente cronológica de diversas fases,.


independentes entre si, mas como um processo ininterrupto em que
podemos verificar uma íntima conexão entre o terminus a quo e o
terminus ad quem. As sucessivas fases históricas trazem em si cer-
tas potências que tendem a ser atualizadas. E a atualização depen-
de de fatôres acima indicados como "influências externas", a saber
as livres decisões da pessoa humana e uma fôrça que, por falta de
melhores conhecimentos, poderíamos designar com o nome pouco
adeqüado de "acaso".
A evolução histórica não é portanto um processo determinista.
O historiador pode descrever minuciosamente de que maneira o es-
tilo românico evoluiu para o gótico; nesse processo de transição,
tôdas as fases intermediárias têm o seu significado, não se podendo
omitir nenhuma delas. Conhecendo-as, "entendemos" melhor o mi-
lagre da catedral de Chartres ou de Reims; até mesmo podemos di-
zer: se o estilo gótico teve de aparecer, pôde aparecer apenas desta
maneira. Mas passar de um silogismo hipotético a uma afirmação
categórica, é um procedimento ilegítimo. Nenhuma descrição das
fases sucessivas, por mais completa que seja, é capaz de me provar
a necessidade da vinda do estilo gótico. Ou, para repetirmos uma
frase há pouco usada: a circunstância de sabermos o "como" da evo-
lução, não nos revela o "porquê".
Outros Conceitos.
Outros conceitos históricos ou não precisam de um comentário.
especial, ou então já foram esclarecidos, por exemplo: "influência"
(cf. § 11 II), "tradição" (cf. § 10), "situação" (cf. § 12), "entender"
e "reviver" (cf. § 18 II). Merece ainda a nossa atenção o conceito
da causalidade na história, mas' êste assunto será abordado no pará-
grafo seguinte.

O Senso Histórico dos Tempos Modernos (8a).
Todos os séculos sentiram-se atraídos pelo espetáculo sempre
variado e sempre cativante dos acontecimentos humanos; tôdas as,
gerações interessaram-se pelos destinos dos seus antepassados,
sar de os terem focalizado e selecionado de maneiras muito diferen-
tes. O homem moderno, porém, possui o senso histórico num sen-
tido muito especial e particular. Alguns exemplos, que o leitor po-
de multiplicar à vontade, seguem aqui para ilustrar esta tese.
Os antigos, os medievos e até os humanistas não se preocupa-
vam em descobrir a fisionomia própria das épocas históricas, o que
parece aos modernos uma das primeiras exigências, até em coisas;
exteriores e insignificantes. As Marias dos pintores flamengos eram
(5a) . — Cf. H.-J. Marrou, De la Connaissance Historique, Paris, Édition du SeuU
(Collection: "Esprit"), 1954.
— 205 —

:moças dos Países-Baixos, que andavam vestidas como tôdas as mo-


ças da época burgunda, e viviam numa paisagem típica do Nonte;
suas cidades bíblicas tinham as tôrres góticas e as casas caracterís-
ticas de Bruges e Gand. A arte renascentista, proveniente da Itália,
modificou, — também fora do país de sua origem, — a paisagem,
os vestidos, os edifícios, o mobiliário, dando-lhes feições convencio-
nalmente clássicas", sem, contudo, chegar a uma representação "his-
tórica". No século XVII, Racine exibia no teatro francês persona-
gens históricos, por exemplo Britânio e Nero que, quanto às suas
palavras, maneiras e sentimentos podiam ser príncipes e cortesãos
da época de Luís XIV.
Objetar-se-á que a literatura e as belas artes têm a liberdade
de metamorfosear a realidade história. Com efeito, têm-na, e seria
pedantismo inepto negar-lha. O Britannicus de Racine deve só ma-
terialmente a sua existência a um episódio da história romana, trans-
mitido com tanta maestria por Tácito, le plus grand peintre de I'an-
tiquité (9) . Os dados históricos, aliás relativamente escassos, esco-
lheu-os o dramaturgo francês para transformá-los num drama psi-
cológico que nos comovesse por sua lógica intrínseca e pelo encanto
de versos harmoniosos e esmeradamente buriladõs. O Nero e o
Britânico de Racine, embora originados por pessoas históricas, des-
pertar-nos-iam o interêsse humano, mesmo que nunca tivessem exis-
tido. Seu Nero não tem a pretensão de ser a reprodução fiel do
Imperador romano, mas é uma representação artística de um mons-
tre naissant, e êsse monstro é concebido conforme as normas e as
opiniões de um poeta cristão e francês do século XVII, — admiti-
das, mais ou menos ingênuamente, como sendo de todos os tempos.
A época do Romantismo deu origem a um gênero literário que é
sumamente significativo do moderno "senso histórico": o romance
histórico (Walter Scott, Victor Hugo, Manzoni, etc.) . Também es-
tas obras não pretendem reproduzir a realidade de tempos passa-
dos, mas são produtos de uma ficção literária com certo fundamen-
to em acontecimentos históricos. As diferenças, porém, são consi-
deráveis. Já não é o tipo universalmente humano que chame a aten-
ção do leitor, mas o indivíduo histórico, retratado na sua unicidade.
Daí o interêsse pelo "pitoresco", daí as descrições evocativas, daí o
esfôrço do autor de se transportar mentalmente nas idéias de outras
épocas e de conhecer o ambiente concreto, em que viviam os per-
nagens.
Outrossim, a diferença não se limita aos artistas, mas verifica-
se também nos historiadores pràpriamente ditos. Em geral, não
tinham o "senso histórico" que nós, os modernos, costumamos ligar
a essa palavra. As realizações artísticas e culturais eram pouco es-

(g). __. Jean Rapine, no Préface do ano 1676; a peça data de 1669.
— 206 —

tudadas sub specie temporis, mas principalmente apreciadas con-


forme normas qualitativas. Por isso davam tanto valor aos auto-
res "clássicos" e ao princípio de imitação, como se Homero, Vergílio,
Demóstenes, Cícero, Platão e Aristóteles não pertencessem a certa
situação histórica, impossível de repetir . Não viam a singularidade
das diversas épocas, ou pelo menos, não se esforçavam por desven-
dá-la. Interessava-lhes o Eterno Homem, — esquecido às vêzes pe-
la historiografia moderna, — mas não "o homem grego", "o homem
medieval", etc. Embora soubessem que o homem vive no tempo,
não tiravam as conseqüências práticas dêsse conhecimento: não
consideravam os fenômenos do passado condicionados por situações
únicas.
Para nós, Platão é o expoente e, ao mesmo tempo, o apóstata
da "cultura" grega; Santo Agostinho o tipo de um literato do Baixo
Império; e Bossuet o de um eclesiástico da época histórica que
qualificamos de Barroco. Outrora não existiam nem os conceitos
nem as palavras. Nós vemos uma íntima conexão "orgânica" entre
um drama de Sófocles e o Pártenon na Acrópole, entre a Summa
Theologica e uma catedral gótica. Esses conceitos coletivos não
diminuem nem a originalidade nem a genialidade de Sófocles, Santo
Agostinho, São Tomás ou Bossuet, mas os colocam num conjunto
maior, e a relação, assim estabelecida, permite-nos melhor compre-
endê-los ou "entendê-los". E quanto à evolução, já assinalamos em
que medida êsse conceito chegou a revolucionar a historiografia
moderna. Os antigos atribuiam geralmente a constituição esparta-
na e romana a uma creatio quasi ex nihilo de dois grandes legisla-
dores: Licurgo e Sérvio Túlio. Seguiram-se, neste ponto, os histo-
riadores europeus, "explicando" crenças religiosas, instituições so-
ciais e doutrinas filosóficas como invenções mais ou menos arbitrá-
rias de certas figuras históricas, ou supostamente históricas. Hoje
sabemos melhor que nem os espartanos, nem os romanos, nem os
seus legisladores eram tabulae rasae, mas viviam em dada situação
histórica, a proporcionar-lhes certas possibilidades. Licurgo e Sér-
vio Túlio, — se é que foram êsses que organizaram Esparta e Roma,
— foram grandes legisladores por terem entendido perfeitamente a
situação concreta e por terem aproveitado largamente as possibili-
dades nela existentes. Por outras palavras: nós nos esforçamos por
"entender" o processo histórico no seu desenvolvimento lento e gra-
dativo a partir de um certo terminus a quo, constantemente variável,
a que o espírito das grandes personalidades soube impor uma de-
terminada orientação conforme uma concepção original.

§ 66 . A causalidade na História.
Os que, impressionados pelo prestígio das ciências "exatas",
admitem delas uma única espécie, — as matemáticas e as físicas,
— 207 —

— estão geralmente inclinados a promover também a história à cate-


goria de uma "verdadeira" ciência, atribuindo-lhe o conceito físico de
causa e efeito, isto é, a relação constante e necessária entre dois fe-
nômenos, — ou então, consideram a história, com. Renan, como une
de ces pauvres petites sciences conjecturales. A concepção natu-
ralística violenta a natureza da história, a qual tem por objeto os
atos humanos, que são livres e contingentes. A opinião remonta
ao século XVIII, e embora esteja sendo abandonada, tem ainda
hoje em dia os seus adeptos (10) . Com muita razão frisa-se atual-
mente o caráter particular e individual da causa histórica, o que
exclui certas generalizações precipitadas que estavam na voga no
século passado. A causalidade na história envolve vários proble-
mas de ordem filosófica, que não podemos expor neste trabalho;
limitar-nos-emos a assinalar alguns pontos práticos, que nos pare-
cem importantes para um futuro historiador.

I. Várias Espécies de Causas Históricas.

As distinções entre as várias espécies de causas que atuam


no processo histórico já eram conhecidas de alguns grandes histo-
riadores gregos. Redescobriram-nos os tempos modernos, fazendo•
delas uso mais largo e sistemático.

a) Causas Remotas e Causas Ocasionais.

Esta distinção foi formulada já por Tucídides (1 23) . Paul.


Harsin descreve as duas causas da maneira seguinte: La première
est l'ensemble assez complexe des conditions d'ordre general qui,
durant un certain temps, rend un certain événement possible, pro-
bable et même parfois inévitable. La seconde est l'événement ou
l'acte particulier qui, se produisant à un moment précis, produit
un effet décisif (11) . A invasão dos exércitos alemães no territó-
rio polonês, no dia 1.° de setembro de 1939, foi sem dúvida alguma
a causa imediata ou ocasional da segunda guerra mundial, provo-
cando a declaração de &erra da parte da Inglaterra e da França .
Mas todo o mundo vê fàcilmente que êsse fato particular não basta
para explicar o terrível conflito na sua totalidade ou na sua inten-
sidade . A derrota de 1918, o Tratado de Versalhes, a oposição
entre as ideologias, a competição econômica, o militarismo prus-
siano, etc . são fatôres gerais que o historiador deve levar em con-
sideração, ao tentar esclarecer a conflagração mundial. Sendo pos-

. — Por exemplo Alfredo Ell's Júnior, na Revista de História, III 10 (1952), pág.
349.
. — Paul Harsin, Cotrunent on écrit Liège, 1944, pág. 127. — Subs-
tituímos, nas palavras citadas, o têrmo déterraine por produit.
-2G3 —

-sível, não se contentará em juxtapô-los num catálogo meramente


descritivo, mas se esforçará por descobrir entre êles uma certa
hierarquia.
Sem a causa ocasional não se compreende como pôde reben-
tal, nesse momento e dêsse modo concreto, a segunda guerra mun-
dial; sem a(s) causa(s) remota(s) ou profunda(s) não se com-
preende como essa ocasião pôde produzir tal •e tamanho efeito.
As duas noções se completam.

Causas Permanentes e Causas Passageiras.

Esta distinção devemo-la ao historiador helenista Políbio de


Megalópolis (cf. § 3 IV): foi reencetada e desenvolvida, nos tem-
pos modernos, por um Montesquieu e um Taine. Causas perma-
nentes, — muitas vêzes chamadas de "deteiminantes", — são fa-
tôres que influem, de maneira mais ou menos estável e constante,
no comportamento humano, por exemplo: o clima, a raça, as con-
dições geográficas, as instituições sociais e políticas, a tradição,
etc. Causas passageiras são as livres decisões dos personagens ,his-
tóricos e o "acaso". Muitos historiadores, por •exemplo positivistas,
marxistas e nazistas, superestimam a importância das causas per-
manentes ou "determinantes", — as quais, no fundo, são meras
, condições, ou então, causas materiais (12), — e chegam a uma
concepção inteiramente determinista da história, como havemos
de ver na quarta parte dêste livro.

Causas Universais e Causas Particulares.

As causas universais e necessárias não constituem o objeto


da ciência histórica, mas da filosofia; o historiador, como tal,
ocupa-se apenas de causas particulares e contingentes. Mais adian-
te falaremos na "Filosofia da História" (§ 71).

II. Causas e Leis.

Ao conceito da causalidade histórica está estreitamente ligado


o problema das chamadas "leis" históricas. Referindo-nos ao que
já observamos a êsse respeito (§ 17 III), resumimos e particula-
rizamos:

a) Atos humanos não são necessários, mas livres e contin-


gentes. A liberdade do homem funda-se na sua racionalidade. O
(12) . — "Causa" é o princípio que influi em outro ser de modo positivo; "condição"
o princípio que nele influi de modo negativo, removendo os obstáculos. Por
exemplo: Se não houver certa prosperidade material, não haverá muita re-
flexão filosófica; mas a prosperidade material não causará a reflexão filosófica
— Cf. § 101 tf, nota 232.
--- 209 —

intelecto humano, princípio espiritual, é capaz de conceber o Bem


Absoluto, e por isso mesmo vê a relatividade de todos os bens
particulares que se lhe apresentam: nenhum dêles se lhe impõe
de maneira tão imperiosa que o force a desejar só êste bem par-
ticular com exclusão de um outro. Se o homem não pode renun-
ciar a desejar o seu bem universal, a felicidade, é livre em escolher
os meios concretos que devem levar para êsse fim (13). O com-
portamento humano não é, portanto, ligado a um determinismo
rigoroso do mundo físico, e leis históricas não possuem a fôrça in-
flexível das leis físicas. São antes regularidades no comportamen-
to das unidades históricas (indivíduos e coletividades), que de-
vem ser consideradas como reações razoáveis a uma dada situação
histórica, em última análise determinadas por valores transcen-
dentes.
Essas reações se revestem de feições próprias e peculia-
res, originadas não só pela situação histórica, que é sempre única
e irrepetível, mas também pela posição individual que certa con-
creta unidade histórica toma deliberadamente perante a dada si-
tuação. Ora, tal atitude individual escapa forçosamente a tôda e
qualquer tentativa de concebê-la como um caso particular de uma
regra geral: quando muito, podemos "entendê-la" a posteriori, ja-
mais predizê-la com certeza.
As causas históricas são extremamente complexas e in-
terpenetradas (14) . Não podemos isolar os seus diversos elemen-
tos constitutivos para encará-los depois cada um de per si, — as-
sim procedendo, mutilaríamos a realidade concreta, o objeto da
história, — ou para fazer experiências, porque o tempo é fator
irrepetível. -
A conclusão talvez decepcionante é obvia: nossos conhecimen-
tos da causalidade histórica são muito pobres e fragmentários.
Foge-nos o todo, e atingimos penosamente apenas parcelas.

. — Cf. Sanctus Thomas, Summa Theologica, I-II, q. 13, a. 6 (in corpore):


Quidquid enim ratio potest apprehendere ut bonum, in hoc voluntas tendere
potest. Potest autem ratio apprehendere ut bonum, non solam hoc quod est
vele aut agere, sed etiam hoc quod est non vele et non agere. Et rursum
in omnibus particularibus bonis potest considerare rationem boni alicujus, et
defecturn alicujus boni quod habet rationem mal; et secundum hoc potest
unumquodque hujusmodi bonorum apprehendere ut eliãibile, vel fugi bile.
Solum autem perfectum bonum, quod est beatitudo, non potest ratio appre-
hendere sub ratione mali aut alicujus defectus; et ideo ez necessitate beatitu-
dinem homo vult, nec potest vele non esse beatus, aut esse miser. Electio
autem, cum non sie de fine, sed de bis quae sunt ad finem..., non est perfect/
boni, quod est beatitudo, sed aliorum particularium bonorum.
. — Cf. Eduardo d'Olive'ra França, in Revista de História, II 7 (1951), onde o
autor diz (pág. 119): "E' a combinação eventual das várias condições que
passa a ser causa. Uma espécie de causa plural. Na impossibilidade de se
inventariarem completamente essas condições para se ver o jôgo das combi-
nações acidentais de cada momento, chama-se causa do mais próximo por
parecer mais eficaz. Tudo isso só é válido admitindo-se uma hipótese artifi-
cial: a de que é possível isolar um fato histórico para apreensão das condições
de sua ocorrência. Fato histórico, irmão dos prótons".
— 210 —

§ 67. A Personalidade e o Acaso.

Devemos considerar o indivíduo humano, ou então a coleti-


vidade como a verdadeira causa histórica? o acaso, ou uma ordem
preconcebida?

I. A Personalidade.

Napoleão foi o simples produto de seu século, ou foi ês1:e a •

criação do gênio de Napoleão? O problema, pôsto nestes têrmos,


não admite uma solução apodíctica (15) .
Em primeiro lugar, é nossa relativa ignorância das causas
históricas que nos impossibilita dar uma resposta decisiva. Aca-
bamos de ver que elas são muito complexas, que não se prestam
a uma explicação determinista, que o espírito humano nunca as
abrange na sua totalidade nem as sonda na sua profundidade, mas
sempre topa no mysterium individuationis. Além disso, a história
não nos dá a contraprova da sua tese: nenhum historiador é capaz
de nos contar o que teria acontecido se Napoleão não tivesse to-
mado a decisão de invadir a Rússia, ou se Mussolini não tivesse
optado pelos alemães, e assim por diante.
Outrossim, o indivíduo como fenômeno histórico é inconcebí-
vel sem a comunidade, na qual está enraizado com tôdas as suas
faculdades. Por mais genial que seja, necessita do apôio de seu
ambiente para poder realizar seus planos, ou, pelo menos, requer
que ela lhe forneça as condições materiais e culturais para suas
atividades criadoras. Por outro lado, a sociedade é um conjunto
"orgânico" de indivíduos, entre os quais as grandes personalidades
decidem da marcha e do ritmo dos destinos coletivos. Se Napoleão
houvesse aparecido no palco histórico do século XVII, talvez não
teria passado de um dos numerosos condottieri da época . A situa-
ção histórica que existia na França em fins do século XVIII, cha-
mava por um braço forte, e certo indivíduo, chamado Napoleão,
entendeu perfeitamente as ânsias, as esperanças e as possibilidades
do seu tempo. Mas a história é incapaz de descrever a vida de
Napoleão no século XVII, ou de demonstrar que os caos revolu-
cionário teve de resultar necessàriamente na aparição dêste con-
creto Napoleão.
As interrelações entre o indivíduo e a coletividade são múlti-
plas, complexas, delicadas e misteriosas. E' um absurdo querer

(15) . — Lembramos aqui uma anedota comunicada por Cícero (in De Senectute, III
8): Themistocles fertur Seriphio cuidam in jurgio respondisse, cum ille disis-
set non eum sua, sed patriae gloria splendorem assecutum: Non hercule, inquit,
si ego Seriphius essem, nec tu, si Atheniensis, clarus umquam fuisses. Cf..
Herodotus, Historiae, VIII 125 (lição um tanto diferente) e Plutarchus, Vita,
Themistoclis, XVIII.
— 211 --

demarcar com exatidão o campo do indivíduo e o campo da cole-


tividade: um não existe sem o outro. O historiador, ao apreciar
as causas históricas, fará o possível para fazer justiça à natureza
social do indivíduo humano, mas também ao caráter individual e
singular dos componentes das diversas coletividades. Não tenha-
mos a pretensão de saber mais do que podemos saber. L'historien
qui veut m'apprendre ce que je vois ne peut pas savoir, me
fait douter sur les faits mêmes qu'il sait (16).

II. O Acaso.

Disse Pascal: Si le nez de Cléopâtre eât été plus court, toute


la face de la terre aurait changé (17). Uma circunstância insigni-
ficante, quase ridícula, podia ter mudado a face da terra. O exem-
plo concreto leva-nos à questão: qual o papel do "acaso" nos des-
tinos da humanidade? Será que pode ser considerado como uma
causa histórica? Já vimos alguns exemplos da fôrça do Destino
(§ 11 I): ninguém a pode contestar. As divergências surgem ape-
nas quando se trata de identificar o "acaso". E muitas vêzes o
problema se põe desta maneira: o que teria acontecido se Napoleão
tivesse caído em Arcole, ou se Hitler tivesse morrido no berço? E'
claro que nem o historiador nem homem algum pode dar uma
resposta satisfatória a essas perguntas: pode dar semente opiniões
subjetivas, conjeturas, destituídas de todo e qualquer valor obje-
tivo. A história é a. ciência do que aconteceu, não do que podia
ter acontecido: os futuribilia só Deus que os sabe. Tôdas as espe-
culações humanas a êsse respeito são vãs e fúteis. Assim mesmo,
é importante saber o que devemos entender por "acaso". Não
pretendemos eliminar os enigmas, mas apenas acabar com alguns
mal-entendidos (18).
a) Segundo a metafísica realista, o acaso é a coincidência
não intencionada de dois ou mais efeitos. Como tal, não possui
nem causa eficiente nem causa final pelo simples motivo de que
não é ser. Pois a coincidência não intencionada como tal é uma
pluralidade, a que não cabe o ser, enquanto é pluralidade. Fora
dos dois efeitos, que num único têrmo convergem, o acaso é nada.
Cada um dos dois efeitos, que são unos e sêres, tem uma causa,
mas o acaso não acrescenta um terceiro ser àqueles dois sêres.
No sentido metafísico da palavra, o acaso não existe; é um ens
per accidens, ao qual devemos atribuir apenas uma causalidade

. — Fénelon, Lettre à l'Acadérnie, chapitre VIII (no fim) .


. — Blaise Pascal, Pensées, pág. 450 (éd. Brunschvicg)
. — Sôbre o "acaso" na história, cf. W. Von den Steinen (historiador sulco),
Gliick und Unglück in der Weltgeschichte, Zürich, 1943.
— 212 —

acidental (19). Nós, porém, falamos em acaso, quando uma causa


livre não conhece o funcionamento de outras causas livres ou de-
terminadas, o que acontece muitas vêzes. O que atribuímos ao
cego acaso, deveríamos atribuir à nossa ignorância.
Entretanto, alguns filósofos, já desde a Antigüidade, pre-
tendem explicar os mistérios do Universo pela fôrça do acaso, por
exemplo os epicuristas na Grécia, e vários cientistas nos tempos
modernos. Citamos aqui uma palavra célebre de Huxley: six
monkeys, set to strum unintelligently on typewriters for millions
of millions tof years, would be bound in time to write all ;the books
in the British Museum (20). A "explicação" não explica, porém,
a origem ou a existência dos seis macacos nem a da máquina de
escrever, que são evidentemente sêres contingentes, não necessá-
rios. Além disso, o resultado "fortuito" do trabalho puramente me-
cânico é inconcebível senão em função de certa ordenação racio-
nal. O que aconteceria, se a máquina não tivesse a possibilidade
de produzir letras, e se essas letras não tivessem a possibilidade
de se coordenar numa frase inteligível, — cujo significado é inde-
pendente do trabalho dos seis macacos? Se a máquina produzisse
ora peras, ora maçãs, ora macacos, em vão tocariam o teclado por
tantos milhares de séculos os nossos seis macacos; se as letras não
fossem símbolos objetivos, fixados pelo espírito humano, ninguém
as poderia decifrar. O acaso é uma causa acidental, que pressupõe
a existência de uma ordem ou finalidade pré-estabelecida; sem esta
não poderia existir aquêle.
A metafísica infere da existência de causas contingentes,
relativas e acidentais a existência de uma Causa absoluta e subs-
tancial, absolutamente necessária: Deus. Diante da Divina Provi-
dência, a coincidência de vários efeitos não é uma pluralidade, mas
uma unidade, prevista e ordenada. Logo, para Deus não existe o
acaso; existe sim para o espírito criaçlo. Escrevia Frederico II a
Voltaire: Plus on vieillit, plus on se persuade que sa sacrée Ma-
jesté le Hazard fait les trois quarts de la besogne de ce misérable
Univers (21) . Seria mais exato dizer: ...plus on se voit obrigé
de reconnaitre sa profonde ignorance. Aliás, na medida em que
nos distanciamos de certo episódio da nossa vida, conseguimos

— Sanctus Thomas, Summa Theologica, I, q. 115, a. 6 (in corpore): Omne


quod est per se, habet causam; quod Rufem est per accidens, non habet cau-
sam; guia non est vete ens, cum non sit vens anum... Manifestum est aca-
tem, quod causa impediens actionem alicujus causae ordinatae ad suum effecttmi
ut in pluribus, concurrit ei interchmi per accidens; urde talis concursus non habet
causam, in quantum est per accidens.
— Citada por Sir William Jeans, no livrinho: The Mysterious Universe, London,
1937, Pelican Books, pág. 14.
— Conhecemos estas palavras só mediante O. Spengler, Der Unterjang deis
Abendiandes, I pág. 184, nota 1.
— 213 —

muitas vêzes descobrir certa ordem em fatos que outrora nos pa-
reciam caprichosos, disparatados, incoerentes, "fortuitos". E' que
a proximidade nímia nos ofusca a vista. O que dantes se nos afi-
gurava como uma pluralidade caótica, acaba muitas vêzes por
se mostrar uma unidade a certa distância . Destarte chegamos a -
entrever uma ordem íntima, a qual atribuímos — conforme a nos-
sa religião, ou filosofia, ou mundividência, — a uma disposição ' •

da Divina Providência, ou ao Destino impessoal, ou então, à atua-


ção de uma lei imanente . Por um motivo semelhante, gerações
posteriores acham-se geralmente numa posição mais favorável pa-
ra avaliar o alcance do acaso na história. Os acontecimentos con-
temporâneos-são, por_assim dizer, letras muito _grandes para serem
lidas com facilidade; é só a certa distância que se vão coordenando
numa frase inteligível (22). Na medida em que um historiador pe-
netrar mais a fundo nos pormenores de certos acontecimentos histó-
ricos, mais os verá com indeterminados, indecisos, complexos, cuja
realização, depende da cooperação de inúmeros fatôres. Os mesmos
acontecimentos se lhe apresentam, a certa distância, como uma uni-
dade, a possuir uma qualquer "lógica". Mas essa lógica não tem o ri-
gor de uma demonstração geométrica, nem a evidência de uma expe-
riência física. Os gregos podiam ter sido derrotados na batalha de
Salamina, e os francos em Poitiers (23) .
Destarte nos leva o estudo dos fenômenos do passado quase
espontâneamente a certas reflexões sôbre a origem e o destino do
homem histórico. A historiografia como tal não poderia resolver os
problemas suscitados pela observação metódica dos fatos; de qual-
quer maneira tem de recorrer a uma ciência superior. De que modo
e até que ponto ela se serve, — ou tem o direito de servir-se — de
princípios superiores, será o assunto do capítulo seguinte.

— Cf. Augustinus, De Ordine, 1 2: Sed hoc pacto si quis tem minutum cerneret,
ut in vermiculato pavimento nihil ultra unius tessellae modulam acies ejus
valeret ambire, vituperaret artif icem velut ordinationis et compositionis igna-
rum eo quod varietatem lapillorum perturbatam putaret, a quo illa em-
blemata in unius pulchritudinis fatiem congruentia simul cerni collustrarique
non possent..
— Cf. P. Vendryès, De la Probabilité en Histoire, L'Exemple de PExpédition
d'Égypte, Paris, Alb:n Michel, 1952.
CAPITULO TERCEIRO

FINS E VALORES

§ 68. O Sentido da História.

Os atos hüillatii5ã têtal urn fim .(1):- °nine 'agans-- agit propter
finem. Na medida de nos ser conhecido o fim, ficamos capaci-
tados para descobrir o "sentido" de certo ato ou de certa série
de atos que deve levar para êsse fim. Ao acompanharmos os di-
versos atos sucessivos de um indivíduo na vida cotidiana: correr
ao ponto de ônibus, ficar esperando numa fila comprida, viajar
num veículo superlotado, passar muitas horas consecutivas no mes-
mo local, etc., não lhes compreendemos o sentido a não ser que lhes
saibamos o fim, por exemplo, sustentar-se a si próprio e a sua fa-
mília. Desde que conheçamos o fim, tornam-se "significativos" os
atos singulares: sem êsse conhecimento, todos êles nos poderiam
parecer absurdos, incoerentes e caóticos. O fato de estarem subor-
dinados os atos a um fim, não exclui a possibilidade de haver fins
secundários (por exemplo, chegar ao escritório a tempo) nem a
subordinação do fim principal a um fim universal (por exemplo,
motivos religiosos eu éticos): há uma hierarquia de fins.

I. O Sentido da Vida Humana.

O sentido da vida humana depende evidentemente do seu fim,


o qual deve ser universal para poder dar sentido, não a certos atos
particulares, feitos em vista de um determinado fim particular,
mas a todos os atos da vida humana, vistos na sua totalidade. Se-
rá que a vida possui tal fim universal? Ou devemos admitir com
o poeta:

Life's but a walking shadow; a poor PlaYer,


That struts and frets' his hour upon the stage,
And then is heard no more; it is a tale
Told by an idiot, fali of sound and fury,
Signifying nothing? (2) .
— Em grego: "télos"; daí o têrmo moderno: "teleologia". --- A palavra "fim"
pode significar o "têrmo final" de uma operação, e como tal não é causa, mas
efeito realizado (tinis in re); a mesma palavra indica também "finalidade, in-
tenção" (finis in intentione), que é a primeira das causas porque é ela que
dirige a causa eficiente para a atualização da matéria mediante a forma.
— W. Shakespeare, Maebeth, Act V, Scene V.
215 —

A simples observação dos atos particulares em si não nos re-


vela um fim universal, a não ser a morte, o têrmo inevitável de
tudo o que é humano. Du fait brut on ne peut rien tirer que sa
constatation. L'interpréter, c'est-à-dire lui assigner sa placa dans
une représentation du monde, lui attribuer une importance et une
valeur en bien ou en mal, cela ne peut se faire qu'à l'aide de prin-
cipes fondamentaux, lasqueis ne peuvent provenir des faits étudiés
qu'ils servent à les ordonner et leur sont par conséquent antérieurs
(3) . A história, como tal, longe de poder decifrar o espantoso enig-
ma da existência humana, tem de recorrer a uma ciência superior:
à filosofia, guiada ou não pela teologia.

II. A Resposta da Filosofia Cristã .

Os gregos, apesar "de tôdas as suas especulações metafísicas,


não conheciam um fim universal do processo histórico, principal-
mente devido ao fato de não conhecerem a Deus como "Aquêle
que é". A Criação e a Divina Providência, embora sejam verdades
acessíveis à luz da inteligência natural, são, de farto, noções que se
encontram desfiguradas no pensamento grego, ou então, lhe faltam
por completo, como havemos de ver na quarta parte dêste livro.
O Cristianismo, além de trazer ao mundo uma mensagem sobre-
natural, •a que o homem por si nunca poderia elevar-se, contribuiu
muitíssimo para a plena elaboração de alguns princípios metafísi-
cos, cujo verdadeiro alcance era desconhecido dos pensadores gre-
gos. Nestas páginas pretendemos dar umas noções básicas que do-
minam •a visão cristã da história . Para evitar mal-entendidos, de-
vemos frisar que a seguinte exposição se baseia na doutrina da
Igreja Católica, tal como foi desenvolvida principalmente por São
Tomás.

a) A Criação.

Mesmo que a razão do homem não seja iluminada pelos dados


da Revelação, é capaz de atingir a Deus como a Causa Suprema de
tôdas as coisas criadas, as quais, na sua relatividade e na sua cpn-
tingência, pressupõem um Princípio Absoluto e Necessário (4).
A ação, exercida pela Causa Suprema sôbre tôdas as coisas extra-
divinas, chama-se "criação", e geralmente define-se criar como
"tirar do nada". A expressão é ambígua, porque poderia insinuar
que o "nada" seja a causa material do ato criador, à qual Deus

. — J. Hours, Valevr de l'Histoire, Paris, Presses Universtaires, 1954, pág. 81.


. — A cognoscibilidade da existência de Deus para o "intelecto natural", mediante
as coisas criadas, foi ensinada pela Bíblia (Livro da Sabedoria, XIII e São
Paulo, Epístola aos Romanos, 1 18-23) e chegou a ser proclamada dogma pele
Concílio do Vaticano em 1870 (apud Denzinger, 1785).
— 216 —

comunique certa forma, anàlogamente a um escultor que comuni-


ca uma determinada forma a uma matéria pré-existente, por exem-
plo a um bloco de mármore. Melhor é a definição: criatio est
productio rei secundum totam suam substantiam, nullo praesuppo-
sito. Deus dá a totalidade do ser, — a essência e a existência,
a tôdas as coisas que não sejam Deus, sem que haja uma causa
material independente dêsse ato criador. Também a matéria é
criada por Deus. Vista da parte das "criaturas", a criação é a re-
lação da sua dependência total de Deus. O mesmo Deus que cria
o mundo, também o governa: tôdas as coisas criadas recairiam
na não-existência, se Éle se retirasse da sua obra.
A criação é livre ato de Deus: não é processo necessário de
emanações divinas. Há uma emanação necessária no seio da pró-
pria Divindade, chamada productio ad intra pelos teólogos: a San-
tíssima Trindade. Mas a productio ad extra, quer dizer, a cria-
ção de tôdas as coisas extra-divinas não é necessária, mas contin-
gente (5). O mundo poderia não existir, não havendo em Deus
uma relação real às suas criaturas. Além disso, Deus é absoluta-
mente distinto do mundo, embora êste esteja realmente e necessà-
riamente relacionado com Deus. Deus é o Outro, o absolutamente
Separado do universo, o Transcendente (6); mas em tôdas as coi-
sas há uma íntima presença de Deus, sem a qual não poderiam
subsistir (7). Assim se reconcilia a transcendência divina com
certa imanência. Création de Dieu, le monde est essentiellement

— Strrnma Theologica, I q. 28, a. 1, ad. 3-um: Cum creatura procedit a Deo


divers:tate naturae, Deus est extra ordinem totius creaturae, nec ex ejus
natura est ejus habitado ad creaturas. Non enfim producit creaturas ex neces-
sitate naturae, sed per intellectum et per voluntatem. Et ideo in Deo non
est realis relatio ad creaturas, sed in creaturis est realis relatio ad Deum; guia
creaturae continentur sub ordine divino, et in earum natura est quod depen-
deant a Deo. Sed processiones divina° sunt in eadem natura; onde non est
similis relatio. — Sôbre o caráter contingente do mundo veja-se o capítulo •
magistral "The Ethics of Elfland" no livro Orthodoxy de G. K. Chesterton,
onde lemos: I had always vaguely felt facts to be mirados in the sense that
they are wonderful: now I bege to think them miracles in the stricter senso-
that they were wif til. I mear that they were, or might be, re neated exerdses
of will (London, The Week-end Library, 1934, pág. 108).
— A palavra "transcendente", às vêzes, menos corretamente, considerada como si-
nônima de "transcendental", é empregada em muitas acepções diversas. Aqui,
ao falarmos da "transcendência divina", queremos dizer que Deus é uma rea-
lidade existente absolutamente distinta do mundo, outra realidade existente; entre-
as duas realidades não há nenhuma transição contínua, mas os limites são abso-
lutos. — Os panteístas confundem, de uma ou de outra maneira os limites
absolutos, chegando a identificar o mundo com Deus, e a Deus com o mundo.
— A imanência de Deus, professada pelos cristãos (cf. as palavras de São Paulo
perante o Areópago: "porque nele vivemos, e nos movemos e existimos", Atos
dos Apóstolos, XVIII 28) indica a presença divina em tôdas as coisas criadas,
como a Causa fundamental, cf. Summa Theologica, I q. 8, a. 1, (in corpore):
Deus est in omnibus rebus, non quidem sicut pare essentiae, vel sicut accidens,,
sed sicut agens adest ei quod agit.. Motum et movens oportet esse simul.
Cum autem Deus sit ipsum esse per suam essentiam, oportet quod esse creatum-
sit proprius effectus ejus..,. Hunc autem effectum causat Deus in rebus, non
solva: quando primo esse incipiunt, sed quarndiu in esse conservantur. Oportet
quod Deus sit in omnibus rebus et intime. — Cf. a exclamação de Santo Agos--
tinho: Tu autem eras interior intimo meo et superior summo meo (in Cordessiones,
III 6, 11).
— 217 —

divin. Mais s'il est divin, il n'est pas Dieu. L'erreur mythologi-
que (e dos panteístas) porte exactement sur l'être du monde. Si
une source est divine, elle n'est par une déesse. Elle est divine en
tant qu'elle est; mais en tant qu'elle est source, elle n'est que na-
ture (8). Se Deus é a causa essendi de tôdas as criaturas, é-lhes
também a causa agendi: participam elas, em escalas diferentes, do
ser divino como também da ação divina. A Criação não acres-
centa mais ser ou mais ação a Deus, mas faz apenas com que haja
mais entes e mais agentes, todos êles substancialmente dependen-
tes do Ser Divino e da Ação Divina. A Providência não é uma
"intervenção" (9) da parte de Deus nos negócios mundanos: as
coisas criadas possuem sua própria perfeição, sua própria causalida-
de, — que correspondem ao seu grau de ser, — mas essa perfeição
e essa causalidade elas as devem exclusivamente ao ato criador de
Deus. Tanto a ação determinada das coisas irracionais como a livre
atividade da pessoa humana são "criaturas", mas por isso não deixa
de ser livre a atividade humana como também não deixa de ser de-
terminada a ação determinada das coisas irracionais (10). Tôda
a ação de criaturas deriva de Deus (Causa primeira e transcen-
dente) e, ao mesmo tempo, da sua própria natureza (causa secun-
dária e imanente).
Reza a primeira linha da Bíblia: "No princípio criou Deus o
céu e a terra"; o Cristianismo, prosseguindo uma tradição judaica,
introduziu a noção de um Início Abosluto (11) como também a de
. — Paul Rostenne, La Foi das Athées, Paris, Plon, 1953, pág. 81.
. — A expressão "intervenção divina" é muito antropomorfa: nada se efetua que
não seja, na sua essência e na sua existência, totalmente dependente de
Deus: uma "intervenção divina" não tira Deus do seu repouso, obrigando-o a
fazer um novo esfôrço; não afeta a imutabilidade divina nem lhe custa maior
energia ou nova iniciativa, sendo a realização de um decreto eterno. Nous
parlons d'intervention -spéciale de Dieu parca que Peffet à obtenir dépasse
manifestement ia puissance productrice des causes secondaires laissées à leur
jeu normal (J. Renié, Les Origines de Pliumanité, Lyon-Paris, Vitte, 1950,
pág. 83) .
. — Summa Theologica, I q. 22 a. 4, ad 1-um: . . . effectus divinae providentiae
non solum est aliquid evenire quocumque modo, sed aliquid evenire vel con-
tingenter, vel necessario. Et ideo even:t infallibiliter et necessario, quod divina
pravidentia disponit evenire infallibiliter et necessario; et evenit contingenter,
quod divinae providentiae ratio habet ut contingenter eveniat. — Cf. De
Veritate, XI 1, Resp.: Prima causa ex eminentia bonitatis suae rebus aluis
confert non solum quod sint, sed etiarn quod causae sint.
(11). — Que o mundo teve um início (a chamada creatio in tempore), é um dado
da fé; filosèficamente falando, um mundo "perpétuo" é possível, o que não
lhe tira a necessidade absoluta de ser criado por Deus. A questão foi muitas
vêzes discutida por São Tomás, por exemplo na Summa Theolog!ca, I q. 46,
onde diz (art. 1): Non est necessarium rnundum semper fuisse, cum ex vo-
luntate divina processerit; quamvis possibile fuerit, si Deus voluisset; nec
demonstrativa hoc probari ab aliquo umquam potuit, e (art. 2): Mundum
incepisse sola lide tenetur; nec demonstratve hoc sciri potest; sed id credere
maxime expedit. — Mesmo que o mundo fôsse "perpétuo", não seria coeterno
com Deus, pois, como diz Boécio (De Consolatione Philosophirte, V Prosa
VI 2): Aeternitas... est interminabilis vitae teta simul et perfecta possessio,
e êste nunc stans só cabe a Deus; mas o mundo é o nunc fluens em que
há constante sucessão de momentos fugidios: Aliud est enfim per intermi-
nebilem duci vitam, quod mundo Plato tribuit, aliud interminabilis vitae
totem pariter complexum esse pressentiam, quod divinae mentis proprium esse
manifestum est (ibidem, VI 7).
— 218 —

um Têrmo Absoluto, a consummatio mundi. O mundo é ser con-


tingente, criado por um livre ato de um Deus-Pessoa: nem sempre
existiu e nem sempre existirá. No tempo, igualmente criado por
Deus, juntamente com o mundo, desenrola-se o Drama da história
humana, cujo Prólogo e Desfêcho pertencem à Eternidade. Deus
é auto-suficiente por definição: diferentemente de um artista hu-
mano, não pode ter motivos de se aperfeiçoar a si próprio na sua
obra. Nenhuma coisa criada é capaz de lhe acrescentar a menor
perfeição. O fim deradeiro da Criação não pode residir nas cria-
turas, mas deve sei' transcedente: a manifestação da bondade di-
vina, muitas vêzes chamada a gloria externa Dei. A êsse fim uni-
versal e meta-histórico (isto é, situado além dos limites da história)
devem-se subordinar todos os fins "imanentes" como fins secundá-
rios (a perfeição e a felicidade das criaturas). A perfeição relativa
das coisas criadas é a imagem da Perfeição Absoluta, que é Deus.
Deus é o Poeta e o Ensaiador do pulcherrimum carmen da his-
tória (12), quer dizer: assim como é Criador e rim transcendente
da história, assim a governa soberanamente como o Senhor Eter-
no do Tempo, "atingindo fortemente desde uma extremidade à
outra tôdas as coisas, e dispondo-as com suavidade" (Sabedoria,
VIII) . Serve-se das causas secundárias, principalmente do livre
arbítrio da pessoa humana, para conduzir tôdas as criaturas ao
seu fim universal: a glorificação de Deus. As criaturas irracionais
move-as determinadamente: "Os céus manifestam a glória de Deus,
e o firmamento anuncia as obras das suas mãos" (Salmo, XVIII
2). O homem, porém, dotado de inteligência e de liberdade, tem
o privilégio e a obrigação de colaborar consciente e livremente
com o ato criador e governador de Deus, devendo concretizar neste
mundo os valores transcendentes da Verdade, do Bem e do Belo,
os quais são nomina divina. Pelo serviço a valores que o trans-
cendem, aperfeiçoa-se a si próprio; pelo amor ordenado a tôdas as
coisas em Deus, descobre-se a si próprio, e descobre o mundo, va-
lores relativos, é verdade, mas muito reais e criados por Deus.
Pois o mundo criado é bom, enquanto é, e merece nosso amor do
mesmo modo que mereceu a aprovação divina: "E viu que isto
•era bom" (13). Daí um certo otimismo cristão, que poderia pa-
recer paradoxal para quem não lhe conhecesse a origem ou pres-
tasse apenas atenção aos atos exteriores de mortificação, pratica-
. — A expressão é de Santo Agostinho, De Civitate Dei, XI 18; cf. Epistolae,
CXXXVIII 5 e CLXVI 13.
. — Gênesis, I 10, etc. — Cf. Augustinus, De Vera Religione, XVIII 36; Ita
omne quod est, in quentura est, et omne quod nondum est, in quentura esse
potest, ez Deo habet, e São Tomás, Contra Gentiles, IR 69: Sic igitur Deus
retais creatis suam bcmitatem communicevit, ut una res, quod accepit, possit
in alias transfundere. Detrahere ergo actiones proprias rebus est divinae bani-
tati derogare. — Sôbre o "otimismo cristão", veja-se E. Gilson, L'Esprit de la
Philosophie Médiévale, Paris, Vrin, 1932, págs. 111-172; cf. 75 IV. —
Para o católico, o estado metafísico do homem é imutável e independente de
todos os acidentes, mesmo do pecado original.
- 219—

dos por tantos santos. São êstes não uma maldição às obras cria-
das, e muito menos ainda uma tentativa de aniquilar a existência,
mas antes um esfôrço heróico de recuperar o equilíbrio humano,
perturbado pelo pecado original. Todo o ser deriva de Deus; tôdas
as coisas criadas participam, em escalas diferentes, do ser divino,
conforme seu grau de ser; tôdas as coisas, por mais íntimas que se-
jam, possuem o seu valor; por isso tôdas elas merecem nosso amor,
mas um amor ordenado. Amaldiçoar a matéria com certos platô-
nicos, ou pior ainda, amaldiçoar a existência com algumas seitas
oiientai3, e urna ati ■tuat que não se compadece com o Cristianismo
genuíno.

b) A Queda do Homem e a Redenção.

Magna enfim quaedam res est honro, factus ad imaginem et


similitudinem Dei (14), diz Santo Agostinho, desenvolvendo uma
idéia básica do livro Gênesis. O homem, dotado de inteligência e
de liberdade, é capaz de conhecer o seu fim transcendente, e de di-
zer "sim" ou "não" à Chamada Divina, sem que esta recusa consiga
destruir o plano de Deus, que é verdadeiramente universal. Para
homem o mundo histórico, essencialmente relativo e contingente,
não poderia ser o derradeiro fim das suas mais íntimas aspirações:
possuir o Bem Absoluto e Eterno, que é Deus. Nenhum bem terres-
tre é capaz de lhe saciar a sêde de um fim transcendente. Fecisti
nos ad Te, et inquietum est cor nostrum donec requiescat in Te
(15) . O processo histórico terá, para o homem, o seu fim e o seu
significado em Deus, ou não terá sentido nenhum. Todos os fins
humanos e históricos derivam, em última análise, dêsse fim uni-
versal e transcendente.
Mas Adão pecou, e nele todos os homens pecaram. O homem
caído é um rei destronado. Continua a dominar os peixes, as aves
todos os animais da terra, continua a sujeitar as fôrças tremen-
das da natureza inanimada, mas perdeu o domínio sôbre si próprio
a orientação espontânea de todos os seus atos para Deus. Mas
Deus, não só justo como também misericordioso, apiedou-se da mi-
serável condição humana, e prometeu um Redentor ao gênero hu-
mano mediante os Patriarcas e os Profetas, o qual é Cristo, verda-
deiro Deus e verdadeiro Homem, nascido na "plenitude dos tempos"
(16). A Redenção não visa restaurar exatamente o homem no seu
estado original, mas promove-o, num mistério de graça divina, à
'condição de filho de Deus. O felix culpa (Adae), quae talem ac
lanturn meruit habere Redemptorem, canta extasiada a Igreja na
noite de Páscoa. Deus se fêz homem, tornando-se nosso irmão,
(14) . — Augustinus, De Doctrina Christiane, 1 20.
(15). — Augustinus, Contessiones, I 1.
<16). — São Paulo, Epístola aos Gaiatas, I 4; Epístóla aos Efésios, 1 10.
— 220 --

para que os homens pudessem tornar-se filhos de Deus. A Encar-


nação é o acontecimento central e decisivo da história: a irrupção
do Absoluto no mundo relativo, o encôntro de Deus e do homem.
Na visão cristã da história, todos os acontecimentos devem seu va-
lor e o seu significado a êsse fato central. Na quarta parte dêste
livro tornaremos a falar sôbre a interpretação cristã da história
(17).

III. Problemas.

O fato de conhecermos algo da origem, da estrutura e do de-


senlace do Drama histórico, capacita-nos para descobrir o plano
divino ou o sentido da história, pelo menos nas linhas gerais. Não
obstante, falta-nos um conhecimento minudente de cada um dos
acontecimentos particulares em relação ao seu último fim. Escapa-
nos quase por completo, — menos em alguns casos, diretamente
garantidos pela Revelação, — de que meios concretos Deus se quer
servir para realizar seus planos. Somos incapazes de apontar o
"dedo de Deus" em cada um dos fenômenos particulares da histó-
ria: por isso nossa decifração do "belo poema" é muito parcial e
deficiente. O pensador cristão, ao refletir sôbre a história, arrisca-
se, justamente por possuir alguns dados absolutos que lhe foram re-
velados por Deus, a usurpar um conhecimento pormenorizado dos
segredos divinos: prova-o o exemplo de tantos "providencialistas"
cristãos que, a despeito de suas boas intenções, às vêzes chegaram
a identificar sua sabedoria humana com o mistério insondável de
Deus. Reconheçamos humildemente com o sublime provérbio por-
tuguês: "Deus escreve direito por linhas tortas".
Admitida a legalidade das pretensões da Igreja Católica de
ser a única autêntica Igreja fundada por Cristo, como explicar a
revolta de Lutero e Calvir.o? a derrota da invencível Armada de
Felipe II, que parecia defender a causa católica, e portanto a causa
de Deus? como explicar que o sal da terra perdeu tantas vêzes sua
fôrça no decurso dos séculos? Sem dúvida, Deus não quer o mal, e
muito menos ainda é causa do mal (18), mas o permite ou o to-
lera, sabendo dêle aproveitar-se para realizar um bem. Muitas vê-
zes acontece, porém, que o homem não consegue perceber as con-
seqüências boas de um ato mau, ou apenas vê uma grande despro-
porção: E sobretudo tortura-o êste problema por demais humano:
por que Deus não se valeu de um método mais "racional" e "efi-
caz" para acabar com certos abusos históricos e para efetuar certo

. — Principalmente nos S 74-76.


— O mal não é para negação, mas a privação de um bem, ou a falta de uma
qualidade que uma cosa deveria possuir. Na medida em que um pecado é
ato, é real e bom e causado por Deus; na medida em que é urna privação de
um bem, é mau e tem sua origem na má vontade do homem.
— 221 --

progresso espiritual? Mais uma vez: são vãs e fúteis nossas espe-
culações, confrontadas com os eternos decretos de Deus: "Quanto
os céus estão elevados acima da terra, assim se acham elevados os
meus caminhos acima dos vossos caminhos, e os meus pensamentos
acima dos vossos pensamentos" (Isaías, LV 9).
Outrossim, os dados da Revelação cristã, por mais importantes
que sejam, relacionam-se diretamente com a história da eterna
Salvação do gênero humano (19) e afetam só indiretamente e de
longe a interpretação da história profana, que possui sua realidade
e sua autonomia no seu próprio terreno. Foi-nos revelado o sen-
tido de alguns atos do drama histórico, são-nos garantidos divina-
mente alguns fatos fundamentais (por exemplo, a unidade do gê-
nero humano, a Queda do primeiro homem, a educação divina do
povo eleito, a Redenção, a continuação da obra redentora pela
Igreja), mas êsses dados não nos permitem uma visão pormenori-
zadà da história humana, que continua misteriosa em numerosos,
ou melhor: em quase todos os pontos. Como explicar que "cultu-
ras" parecem nascer, florescer, murchar e morrer? como explicar
as grandes catástrofes históricas? como harmonizar, — Zn concreto,
— os fins secundários e imanentes do mundo criado com seu fim
universal e transcedente? O homem, ser histórico, não se pode ar-
rogar uma posição "meta-histórica" perante os fatos singulares do
processo histórico.
Para o fiel o dogma cristão não é um passe-partout, capaz de
resolver diretamente todos os problemas científicos que, no decur-
so dos séculos, se podem apresentar ao espírito humano. Não nos
dispensa de empregarmos nosso intelecto nem nos desanima a fa-
zermos investigações metódicas e racionais. A fé cristã não destrói
a natureza humana nem a despreza, mas a pressupõe e a levanta:
é, no dizer do Papa Leão XIII, um sidus amicum, a orientar os pes-
quisadores para certas verdades divinamente garantidas e a pre-
veni-los contra certas conclusões errôneas ou precipitadas. A scien-
tia cum fide, ideal empolgante do intelectual cristão, é autônoma
nos seus princípios e métodos, mas autonomia não é idêntica a li-
berdade absoluta ou independência completa: o pesquisador cristão
tem a obrigação de controlar os seus resultados, — possivelmente
errados, quem o contestará? — à luz da verdade revelada, que é
infalível (20). Destarte se possibilita ao cristão uma investiga-
— Em grego "soteriologia" (:soteríosalvação"); daí o objetivo: "soteriológico".
— Cf. Leo PP. XIII, na Encíclica Aeterni Patris, 21-22: In iis autem doctrinarum
capitibus, quae percipere humana intelligentia naturaliter potest, aequum plane
est, sua methodo, suisque principüs et argumentis uti philosophiam: non ita
tamen, ut auctoritati divinae sese audacter subtrahere videatur. Imo, cum corta-
tet, ea, quas revelatione innotescunt, certa veritate po/lere et quae adver-
santur pariter cum recta ratione pugnare, noverit philosophuscathoiicus se lidei
aimul et rationis jura violaturum, si conclu
sionem afiquem amplectatur, quem
revelatae doctrinae repugnam intellexerit. (Cf. também Denzinger, 1635; 1649;
1797; etc.).
— 222 —

ção científica e filosófica da matéria histórica, autônoma e subor-


dinada ao mesmo tempo.
No fundo, não pode haver contradição real entre os dados da
fé e as afirmações bem averiguadas da ciência. Car Dieu est Dieu •
partout, dans l'Eglise et dans la nature, dans le Verbe révélateur
et dans I'esprit humain... Pourquoi redouter les libres allures de
la raison, si la foi est divine? Et que craint-on de la foi en philoso-
phie, si cette même condition d'une origine commune nous certifie
d'avance le raccord? A-t-on peur que Dieu ne contredise Dieu?
Ou Dieu serait-il jaloux de I'essor de la pensée chez sa créature?
(21) . Os conflitos entre •a fé e a ciência são apenas aparentes: não
há uma "historiografia católica" e outra "não católica". O único
ideal do historiador cristão é conhecer a verdade do assunto por
êle estudado. Originam-se conflitos aparentes, às vêzes até trági-
cos, entre os dados certos da fé e algumas teorias científicas, as quais
não podem ter a pretensão de ser verdades inabalàvelmente esta-
belecidas; originam-se outros conflitos aparentes entre verdades his-
tóricas, rigorosamente verificadas, e certas opiniões tradicionais e
até rotineiras de certo grupo de cristãos em certa época histórica .
Desta última espécie de conflitos é exemplo típico a condenação
de Galileu (22) .

§ 69. O Mito do Progresso.

Desde o século XVIII tem-se manifestado uma forte tendên-


cia no pensamento'ocidental para substituir o fim transcendente e
"meta-histórico" da história por um fim imanente no próprio pro-
cesso histórico: o Progresso . Na quanta parte dêste livro preten-
demos esboçar as diversas fases históricas dessa teoria (cf. §§ 84-
104); aqui apresentamos ao leitor algumas observações fundamen-
tais.

I. O Fato do Progresso .

Há inegàvelmente certo progresso na história, e já lhe consa-


gramos umas palavras (cf. § 10). Acumulam-se cada vez mais
conhecimentos, que se vão aprofundando e difundindo; aumenta-se.
incessantemente o número de meios técnicos para dominarmos a
natureza, principalmente nos dois últimos séculos. E até no setor
moral observa-se certo progresso. Diz Maritain (23): Et même
lei niveau a monté, dis pas vie .12-10 yriale ni de rideol moral,.

. — A.-D. Sertillanges, Saint nomes d'Aquin, Paris, Flarnmarion, 1931, pág. 56.
. — Para êsses conflitos veja-se R. Aubert, The Freedom of The Catholic Historiar„
in Truth and Freedom, Duquesne University, Pittsburgh & Nauwelaerts, Lou-
vain, 1954, págs. 79-89.
(23). — J. Maritais,, Religion et Culture, Paris, Desclée De Brouwer, 1930, pág. 30..
— 223 —

mais des notions et deis sentiments qui forment comme le condi-


tionnement statique de la vie morale: structure je le sais,-
mais enfin I'idée de l'esclavage ou de la torture.. et un certain
nombre d'idées semblables, répugnent aujourd'hui spontanément,
semble-t-il, à plus d'individus qu'aufrefois. Considerado assim, a
Progresso é um fato sólido, difícil de negar e já conhecido de Aris-
tóteles, alguns pré-socráticos, Sêneca e muitos medievos, por exem-
plo São Tomás. Até podemos dizer que a certas interrupções do
progresso, que parecem periódicas, se seguem geralmente épocas
em que a marcha recomeça num ritmo acelerado.

II. Origem e Caráter do Mito.

Não é dêsse Progresso, bem visível e evidente, que pretende-


mos falar neste parágrafo: é o Mito do Progresso que nos chama ,

a atenção. E' uma herança da Éra das Luzes, que pretendia ter des-
coberto o derradeiro sentido da história por meio de uma obser-
vação racional e "científica" dos fenômenos históricos, investigan-
do-lhes as leis imanentes. Ratio liberata facit omnia nova: a Razão,
libertada dos preconceitos dogmáticos de uma fé superada e da ti-
rania de uma tradição ignorante, mudaria a face da terra . No fun-
do, o Mito do Progresso é mais uma crença pseudo-religiosa do que '

uma sólida teoria científica. Além disso, — e aí está sua grande


fôrça existencial, — é uma idéia que se tem revestido de numero-
sos elementos irracionais e emocionais, chegando a apoderar-se da
imaginação dos homens modernos pelo caminho do menor esfôrço
(24) . A teoria do Progresso falta quase por completo aos pensa-
dores da Antigüidade, sendo uma secularização de uma idéia cristã:
it is as Christian by derivation as it is anti-Christian by implica-
tion and definitely foreign to the thought ancients (25) . Embo-
ra haja, hoje em dia, poucos autores a defenderem o mito antiqüado
na sua forma radical (26), ainda continua a subsistir como um
axioma na mentalidade de muitos contemporâneos que, impressio-
nados pelas conquistas triunfantes da ciência e da técnica, delas
esperam uma melhoria integral do destino humano. As tristes ex-
periências de duas guerras mundiais e os graves sintomas da ho-
dierna decomposição moral e social não conseguiram destruí-lo.

(24). — Cf. J. Maritain, Théonas, Paris, Nouvelle Libra'rie Nationale, 1925, págs. 116-
142. — O autor brasileiro, Tristão de Athayde (..---Alceu Amoroso Lima), pu-
blicou um artigo interessante sabre o Progresso na revista francesa La Vie
lntellectuelle, XVI (1932, fasc. 1-2), págs. 54-82. — Cf. também E. Mounier,
La Petite Peur du XXe Siècle, Neuchatel — Paris, 1948, págs. 97-152; e Paul^
Ricoeur, Histoire et Vérité, Paris, Éditions du Seuil (Collection: "Esprit"), 1955,
págs. 80-102.
. — K. Ldwith, Meaning in History, The University of Chicago Press, 1950, pág. 61..
. — Assinalamos aqui apenas um artigo meio otimista de Robert C. rollock, pu-
blicado na revista americana Thought (XXVII, 1952, págs. 400-420): Freedom-
and History.
— 224 —

O Mito do Progresso consiste em pensar que haja uma evolu-


ção necessária para um fim glorioso da história, situado no tempo,
trazendo consigo o aperfeiçoamento indefinido do gênero humano
(27). Traduzido para a linguagem grosseira do povo, acaba por
significar: more cinemas, motor-cars for ali, wire1ess installations,
more elabora te methods of killing peop/e, purchase on the hire sys-
tem, preserved foods and picture papers. (28), coisas essas tão ar-
dentemente desejadas que vieram a suplantar a antiga esperança
na eterna Salvação.

III. Exame Crítico.

a) Atribuir ao processo histórico um fim imanente que tenha


significado universal e absoluto, é um contrasenso. Os fenômenos
da história são contingentes e relativos. O Mito do Progesso quer-
nos fazer acreditar numa evolução progressiva de fenômenos rela-
tivos, chegando a conceber a própria relatividade como um prin-
cípio absoluto. Se é que a história possui fim e sentido absolutos,
têm êles de situar-se além do tempo, além da história. Une réussite
historique ne saurait en effet servir de critère pour assurer la sig-
nification réelle d'aucune réalisation; des succés ainsi obtenus n'ont
auc-une en sei (29). Se a vida do homem se limitar ao
mundo histórico, todos os seus esforços para atingir o Absoluto,
serão iguais ao trabalho de Sísifo, de quem nos fala a mitologia
grega: um constante recomeçar (30), e sua existência será "vai-
dade de vaidades" (Eclesiastes, 11) ou até um absurdo, como di-
zem alguns existencialistas modernos.
•b) Porventura não somos vítimas de uma ilusão egocên-
trica, ao reduzirmos a razão de ser do passado a um instrumento
para a construção do futuro, — o que pràticamente muitas vêzes
equivale a dizer: para a construção dos tempos atuais? Já Goethe
ridicularizava, na figura do fâmulo Wagner, o pedantismo dos adep-
tos do Progresso, fazendo-o dizer: "Sinto uma delícia inexprimí-
vel ao colocar-me no espírito dos tempos pretéritos e ao contem-
plar os pensamentos de um sábio de outrora, para depois verifi-

• — Segundo os progressistas, o fim pode estar indefinidamente afastado, ou então


relativamente próximo, mas, em qualquer hipótese, é imanente, quer dizer:
está situado no próprio processo histórico, no tempo.
. — Christopher Dawson, Progress and Religinn, London, Sheed & Ward, 1938,
pág. 8.
(29). — N. Berdiaiev, Le Sens de l'Histoire, Paris, Aubier, 1948, pág. 182.
x(30). — Sísifo era filho de tolo e rei de Corinto, famoso por sua astúcia pouco escru-
pulosa. Foi condenado pelos deuses, a quem ultrajara, a rolar nos infernos
uma pedra até o alto de uma montanha; cada vez que seu trabalho laborioso
chegava ao fim, a pedra caía, e Sísifo tinha de recomeçar.
— 225 --

car com grande satisfação como estamos adiantados!" (31). Será


que os gregos só criaram e pensaram com o fim de nos deixar al-
guns elementos de que a posteridade se pudesse aproveitar, adap-
tando-os às suas necessidades? E, no plano prático: será que Des-
cartes e Newton fizeram as suas descobertas com o fim de nos
enriquecer de uma geladeira? Ficar satisfeito com a idéia de es-
tar adiantado em comparação com o nível de gerações anteriores,
não será igual a se conformar com urna triste mediocridade? Com
efeito, parece-nos mais prudente admitir com Ranke (32) que
tõdas as épocas históricas se acham à mesma distância de Deus.
Tôdas as gerações humanas tiveram, — histèricamente falando,
— um fim em, si, e não viveram por nós. Nemo alii nascitur, sibi
moriturus. O valor da pessoa humana é incompatível com a fun-
ção de ser simplesmente um elo num processo evolutivo.
Nada nos prova que o processo seja necessário, nem se-
quer nos terrenos acima demarcados. Antes, implica a livre coope-
ração do homem, que o pode efetuar e acelerar, mas também re-
tardar ou até aniquilar. Os tempos modernos vão descobrindo
cada vez mais que o homem não é um ser determinado, mas mui-
to mais um ser determinante: está sendo reconquistada a liberda-
de, embora muitos não consigam dar-lhe o devido significado; não
dizem certos existencialistas que o homem está "condenado" a. ser
livre? O progresso histórico é inconcebível sem que o espírito hu-
mano o determine e lhe dê um sentido, uma orientação para um
determinado fim. Maxitain, descrevendo o appetitus materiae,
diz: L'homme est uri. être matériel autant que spirituel et. .. dans
la mesure oà la vie des sens predomine en lui sur celle de la rai-
son, le mouvement de I'humanité est soumis aux conditions de la
matière: dans cette même mesure, lel mouvement de rhurnanité
ira vers l'autre c,omme tel, vers le nouveau, et non pas vers le
meilleur (33).
O vertiginoso progresso científico e técnico dos últimos
séculos, o qual em grande parte é responsável pelo nascimento do
Mirto, pertence, no fundo, apenas a certa sociedade histórica em
certa fase do seu desenvolvimento. Nada nos garante que seja
necessàriamente mais permanente do que as realizações de outras

. — Goethe, Faust, I 57C-573:


"Verzeiht! es ist ein gross Ergetzen,
S'ch in den Geist der Zeiten zu versetzen;
Zu schaun, wie vor uns eM weiser Mann gedacht,
Und wie wir's dann zuletzt so herrlich weit gebracht".
. — L. Von Ranke, historiador alemão (1795-1886): "Eine solche gleichsam me-
diatisierte Generation wiirde and und fiir sich eine Bedeutung nicht haben; sie
würde nur insofem etwas bedenten, als sie die Stufe der nachfolgenden Gene-
ration wãre, und würde nicht in unmittelbarem Bezug zum Güttlichen stehen.
Ich aber behaupte: jede Epoche ist unmittelbar zu Gott, und ihr Wert
beruht gar nicht auf dem, was aus ihr hervorgeht, sondem in ihrer Existenz
selbst, in ihrem eignen Selbst" (in Weltiseschichte, IX 2, Einleitung).
. — J. Maritain, Théonas (cf. nota 24), pág. 125.
— 226 —

culturas, agora desaparecidas . As fôrças mágicas da natureza, evo-


cadas pelo homem moderno, podem-no destruir a êle e a sua ci-
vilização: as potências destruidoras da bomba atômica incutem,
na humanidade moderna, não só sentimentos de satisfação e de
segurança, mas também, de grande preocupação.
e) Tampouco é universal o progresso, no sentido de não
abranger o homem inteiro, ou a sociedade inteira. Somos mais
inteligentes, mais sábios ou artísticos do que os atenienses dos
tempos de Péricles? A vida é melhor e mais humana nas grandes
metrópoles do século XX do que o era na Florença medieval de
Dante? Não somos possuidores de numerosos instrumentos compli-
cados, mas quase ignorantes quanto ao fim para o qual os deve-
mos aplicar? (34) . A unidade espiritual dos fins humanos não
está sendo suplantada por uma unidade material de meios técni-
cos? Não há certo puerilismo, ora irrisório, ora perigoso (35), em
nossa ostentação das realizações modernas? A ciência foi capaz
de nos preservar de duas terríveis guerras mundiais, dos horrores
de um campo de concentração, ou da impiedosa exploração econô-
mica? Não se verifica um processo de desumanização do próprio
homem? A sociedade hodierna não mostra graves sintomas de de-
sintegração social e religiosa? E a arte moderna não se nos apre-
senta, em muitos casos, como um grito de desespêro?
Sem dúvida alguma, seria injusto encararmos os tempos mo-
dernos só por êsses lados negativos. Mas o fato do questionário
acima preocupar muitos dos melhores espíritos da civilização atual,
prova abundantemente que nem tudo está pelo melhor em nosso
mundo super-civilizado e mecanizado. Ou, em linguagem cristã: pro-
va que continuamos fracos filhos de Adão e Eva, prevenindo-nos de
que não tenhamos ilusões futuristas a respeito de uma perfectibi-
lidade ilimitada do gênero humano. O homem nunca será deus:
por mais que progridam as artes, as ciências, as técnicas, um abis-
mo intransponível separará o mundo relativo da história, do Valor
Absoluto que é Deus. Para o cristão o único progresso importante, ou

. Transcrevemos aqui as palavras de L. Tolstoi, citadas por Leiwith, pág. 89


(cf. nota 25): Machines, — to produce what? The telegraph, — to despatch
what? Books, papers, — to spread what kind of news? Railways, — to go to
whom and to what placa? Millions of people herded together and subject to a
supreme power, — to accomplish what? Hospitais, physicians, dispensarias in
order to prolong life, — for what? — Cf. as palavras do autor brasileiro G.
Corção, in A Descoberta do Outro (Rio de Janeiro, Agir, 1952, pág. 14): "Um
aparelho extremamente bem calculado servia para f , ns exóticos e sem senti-
do... A telefonia internacional, por exemplo, em qualquer discurso é um pro-
dígio do século: na hora de funcionar não passa de uma idiotia entre outras
idiotas... Nada poderá, ainda hoje, me convencer de que uma tolice transa-
tlântica deixa de ser urna tolice"..
. — Na falta de seriedade e responsabilidade, no enfraquecimento das nossas facul-
dades críticas, no emprêgo excessivo de slogans e de propaganda política e re-
clame econômico, na superestimação dos esportes, cf. Johan Huizinga, Nas
Sombras do Amanhã, São Paulo, Saraiva, 1946 (trad. port. de um livro holan-
dês: "In de Schaduwen van Morgen") . -- Cf. § 107.
— 227 —

melhor: a única norma de um progresso autêntico, será o progresso


moral: o aumento do amor a Deus e ao próximo. Pois a moral,
— bem diferente de um moralismo mesquinho, — tem por objeto
o fim universal e transcendente de todos os atos humanos: compe-
te-lhe, portanto, um juízo sôbre cada um dos atos particulares em
relação ao seu fim universal. Mas qual é o homem, a viver neste
mundo de aparências, capaz de emitir um julgamento sôbre a mo-
ralidade de uma época histórica?
Quer se aceite, quer se rejeite esta solução, o certo é que a
história, como ciência dos fenômenos, não é capaz de dar uma res-
posta autônoma às questões suscitadas pelo questionário; tem de
buscar as normas de sua avaliação em outras regiões.

§ 70. Só Entender ou também Julgar?

Destarte passamos a outro problema: o historiador pode julgar


os acontecimentos do passado? Ou deve contentar-se em registrá-
los e, quando muito, em "entendê-los"?
O historiador como tal não é capaz de julgar. Um jul-
gamento implica necessàriamente uma escala de normas, e elas
transcendem os fenômenos. O historiador pode e deve descrever
a origem, a evolução, a difusão e a morte de centos fenômenos do
passado, por exemplo do totalitarismo ou da democracia, acom-
panhando-lhes a fôrça existencial e a repercussão que tiveram no
tempo e no espaço. Mas êsse estudo puramente fenomenológico
não nos revela nada do valor ou do desvalor dos objetos estuda-
dos. Pode ser que o totalitarismo, em certa época histórica, tenha
sido ubíquo e onipotenté: essa circunstância não lhe modifica nem
lhe diminui o caráter nefasto. Se é que o historiador tem direito
a uma apreciação normativa dos fenômenos estudados, tem de
procurar as normas em outra disciplina: é esta a filosofia ou uma
certa "mundividência", orientada ou não por uma convicção reli-
giosa. Raras vêzes acontece, porém, que um historiador apela ex-
plicitamente para os princípios da "axiologia" (36) . Em geral,
basta uma referência ligeira às opinionee communes que o autor
supõe existirem entre êle e seus leitores. Elas, em última análise,
baseiam-se num credo religioso, em certa mundividência, ou nu-
ma axiologia filosófica, sem que seja necessário dar-lhes uma ex-
pressão formal.
Outra questão é saber se é lícito que o historiador pro-
fira uma sentença, e se não deixa ilegitimamente o seu terreno ao
(36) . — Das palavras gregas "áxios" (=digno, valioso) e "lógos". — A axiologia é
portanto a disciplina filosófica que trata dos valores. A respeito dos valores
existem numerosas teorias, que não podemos expor aqui. Basta dizermos que,
no pensamento realista, o valor é uma qualidade objetiva dos sêres, o qual se
impõe por si próprio, mesmo que não seja reconhecido e apreciado como tal.

— 228 —

fazê-lo. As respostas, dadas a essas perguntas, são divergentes.


Alguns afirmam com Leopoldo Von Ranke (37) que o historia-
dor se deve limitar a descrever com exatidão como se sucederam
os fatos, naturalmente na sua concatenação causal. E Max Bloch,
inclinado a considerar os conceitos do bem e do mal como noções
de um antropomorfismo superado, diz: Qué me importa la tar-
dia decisión de un historiador? (38) Outros dizem que a história,
por ser a ciência dos atos humanos, os quais são necessàriamente
feitos em vista de certos valores, seria muito incompleta e acaba-
ria por perder o seu interêsse para a vida, se não levasse em con-
sideração os valores realizados no passado e não os julgasse. Nós
acedemos a êste parecer. Examinemos agora até que ponto o his-
toriador pode julgar.
Mais uma vez: os atos humanos têm um fim. A histó-
ria, que é a ciência dos atos humanos, é, no dizer de J. Huizinga,
a ciência finalista por excelência (39). Fala-nos de fins conscien-
temente perseguidos, e descreve-nos os bons êxitos e os fracassos.
Este rei travou uma batalha, que perdeu ou ganhou, e aquêle go-
vêrno tomou certas medidas para combater a inflação, que se ma-
lograram ou deram bom resultado. E' em vista do fim que julga-
mos os meios escolhidos e os atos sucessivos de uma série de fatos
históricos, naturalmente sempre levando em conta as possibilida-
des materiais e a mentalidade da época. A êsse respeito não exis-
te a menor controvérsia entre os historiadores: todos êles, também
os que são contrários a um julgamento, admitem, pelo menos na
prática, a legitimidade dêsses juízos.
Mas a questão muda completamente de natureza se
fizermos esta pergunta: o historiador pode julgar também os fins
livremente propostos nos séculos passados? Eis o núcleo da ques-
tão, pois aí o historiador deve emitir um juízo axiológico. Se é
verdade que a missão do homem histórico consiste em colaborar
livremente com Deus, devendo concretizar neste mundo a Verda-
de, o Bem e o Belo, o historiador, como homem, não se pode de-
sinteressar pelos valores, que constituem o alvo de todos os atos

. — L. Von Ranke: "Man hat der Historie das Amt, die Vergangenheit zu richten,
die Mitwelt zum Nutzen zukünftiger Jahre zu belehren, beigemessen: so hoher
Arater unterwindet sich gegenwãrtiger Versuch nicht: er will bloss seigen, wie
es eigentlich gewesen (na Einleitung da sua obra: Geschichte der romanischen
und germanischen Villker) — As palavras grifadas já se encontram em Lu-
cianus, Quomodo Historia Conscribenda, 41.
. — Max Bloch, Introducción a la Historia (tra. esp.), México-Buenos Aires, 1952,
pág. 110. — Ao que parece, a aversão de muitos a julgamentos históricos (por
exemplo, de Valéry e Bloch) é originada por uma pedante historiografia didá-
tica, que julga poder dar, a cada passo, prêmios e castigos e que tem a pre-
tensão ingênua de tirar ensinamentos "cientificamente provados" dos fatos his-
tóricos.
. J. Huizinga, Sobre el Estado Actual de la Ciencia Histórica, (trad. esp., de
Maria de Meyere), Tucuman, s.d., pág. 56.
— 229 —

humanos. O químico e o físico podem fazer abstração da causa


final e, por isso mesmo, dos valores dos processos estudados: são
têrmos alheios à nomenclatura das ciências naturais. O químico
não diz que o sódio faça bem em combinar-se com o cloro a fim
de fazer sal. O historiador, porém, não pode prescindir dos valo-
res, ligados inseparavelmente ao objeto do seu estudo: os atos hu-
manos. Julgá-los é um processo muito natural e quase inevitá-
vel. E' uma questão secundária e dependente de numerosos fa-
tôres (por exemplo, do seu temperamento individual, da natureza
do trabalho, do bom gôsto, etc.), quantas vêzes deve, ou pode,
proferir uma sentença. O ponto essencial é que tem o direito de
fazê-lo, achando-o necessário ou conveniente. Não negamos que
se tem abusado de julgamentos históricos: abtzsus non tollit usam.
Nem queremos defender que seja recomendável um historiador
perder o seu tempo em questões estéreis, por exemplo no proble-
ma insolúvel da felicidade humana. Um Gibbon teve a coragem
de afirmar categõricamente: /i a man were called to fix the pe.
riod in the history of the world, during which the condition of the
human race was most happy and prosperous, he would, without
hesitation, narre that which elapsed from the death of Domitian
to the accession of Commodus (40), e no mesmo sentido se ex-
ternaram um Mommsen e um Renan. Tal avaliação apodíctica
de coisas muito íntimas, que escapam quase por completo a todos
os nossos meios de contrôle, prova que julgar é uma atitude muito
humana, inextirpável até nos historiadores "despreconcebidos". Tra-
tando-se de valores políticos, artísticos e culturais, que até certo pon-
to são verificáveis e observáveis, o historiador possui o direito de
dar um testemunho pessoal, que lhe é ditado pela religião, pela
mundividência, ou pela filosofia. Pode mostrar a sua admiração
pelo nascimento quase milagroso da cultura grega, e a sua alegria
pela vitória da jovem civilização helênica sôbre as hordas invaso-
ras dos persas, em Salamina; pode elogiar as medidas administra-
tivas do Imperador Trajano, e censurar as de Diocleciano e de
Constantino. Aqui, porém, cabem umas observações.
a) O bom gôsto e o bom senso prescrevem certa moderação.
Disse Horácio com muita razão:
Est modos in rebus, sunt certi denique fines,
Quos ultra citraque nequit consistere rectum (41) . .

E' impossível indicar com precisão matemática onde está o


reto meio. De um lado ameaça o perigo de uma historiografia pou-
co discreta, barulhenta, quase sempre tendenciosa ou propagandista;
por outro lado, é pouco satisfatória uma relação árida e sêca, prin-
(40) . — E. Gibbon, The Decline and Fall ol The Roman Empire, London-New York,
1914, in: "Everyman's Library", I, pág. 78.
(41). Horatius, Satirae, I 1, 105-106.
— 230 —

cipalmente em certos tipos de trabalhos, por exemplo em biogra-


fias e em histórias da civilização. Já dissemos (§ 63 II) que o his-
toriador, ao elaborar uma síntese, se torna testemunha; agora deve-
mos frisar que deve ser testemunha sincera, ponderada, criteriosa
e equilibrada. Seu julgamento deve ser inspirado pelos fatos his-
tóricos, tais como os entende em boa consciência, e deve dimanar
lègicamente dos mesmos. Nada de elementos artificiais ou postiços.

Não dizemos ser necessário que o historiador profira jul-


gamentos explícitos sôbre os fatos do passado; afirmamos apenas
que tal procedimento, desde que seja praticado com prudência e
moderação, é perfeitamente justificável, tornando-se quase inevi-
tável em certos tipos de trabalhos históricos e, no fundo, é mais
sincero e honesto do que uma historiografia pretensamente "cientí-
fica" ou "despreconcebida". Pois esta não é uma ilusão, ou antes,
um lôgro que precisa ser desmascarado? A nenhuma obra de sín-
tese histórica pode faltar um julgamento implícito: todo e qual-
quer historiador tem de optar na seleção dos dados e na exposição
dos fatos, dando realce a uns, relegando outros para o segundo pla-
no, e silenciando outros ainda. Ora, tal seleção é impossível sem
certo padrão de valores. A historiografia moderna confessa sem
rebuço sua dependência de uma qualquer axiologia, e aí está uma
grande promessa. O importante é agora nos acertamos sôbre a na-
tureza dos "valores". Mas êsse problema é de natureza filosófica,
não histórica.

Os exemplos dados acima provam como é fácil entrarem


em nossos julgamentos certos afetos, por exemplo, alegria, admira-
ção, desprêzo, decepção, etc. O homem é espírito encarnado: é-lhe
impossível unia atitude completamente desapaixonada. Logo que
um historiador deixa o terreno seguro, mas um tanto árido, dos
"fatos materiais", fica confrontado com valores concretos, que julga
realizados ou traídos; e pode acontecer que aí perca o sangue-frio.
Ora, não estamos defendendo uma historiografia emocional ou apai-
xonada, a degenerar geralmente em declamações tendenciosas. Se
nos é impossível, — e também desnecessário, — eliminar por com-
pleto todos os nossos afetos e paixões, devemos, ao menos, esfor-
çar-nos sinceramente por controlá-los e dominá-los; para lhes con-
trabalançar os atritos eventuais, precisamos de uma constante auto-
disciplina, de um espírito crítico, e afinal, de uma grande isenção
de ânimo. Neste sentido pode-se dizer que a história vale tanto
quanto o historiador.
O julgamento não é uma sentença "meta-histórica", quer
dizer: ao proferir um julgamento, o historiador deve ter a cons-
ciência de viver em dada situação histórica, donde tem de partir
— 231 —

para apreciar os fatos do passado, que se realizaram em outra si-


tuação histórica. Portanto não pode tornar absolutas as normas
contemporâneas, ou descurar das possibilidades e da mentalidade
de outrora. E' em vista das circunstâncias concretas, e não ape-
nas à luz de princípios abstratos que os acontecimentos e as reali-
zações do passado devem ser julgados. Para tal, o historiador ne-
cessita não só de normas axiológicas, mas também de uma extra-
ordinária erudição, que lhe permita conhecer a fundo as possibili-
dades de certa época histórica, além de uma íntima "co-experiên-
cia" mental, que lhe possibilite penetrar na mentalidade dos tem-
pos idos. Caso contrário, corre o risco de se perder em especula-
ções abstratas, talvez interessantes para o político, o economista ou
sociólogo, mas completamente estranhas à historiografia, que é
essencialmente concreta.

V. Acaso poderá o historiador julgar também a moralidade


dos atos humanos do passado? Poderá relacioná-los, não só com um
bem particular (por exemplo, com as artes, as ciências, a política,
etc.), mas também com o bem universal? Aqui se torna mais de-
licado o problema. De um lado devemos reconhecer que é quase
impossível descrever os crimes de um Nero ou as barbaridades de
um moderno campo de concentração sem proferirmos espontânea-
mente uma sentença, não só contra o crime, mas também contra as
pessoas que o cometeram. Por outro lado, não compete ao homem
julgar o seu próximo. Lembremo-nos da palavra do Apóstolo:
"Quem és tu para julgar o servo alheio?" (42). Mesmo o cristão,
,que em virtude de uma garantia divina pode considerar-se em pos-
se de certas normas absolutas, deve reconhecer com Father Rank,
padre de um romance de Graham Greene: The Church knows
' all the rules. But it doesn't know what goes on in a single human
heart (43) . Podemos descobrir, em alguns casos e até certo ponto,
papel histórico que desempenharam um Lutero e um Filipe II;
da pessoa vemos geralmente apenas a máscara (44). Os segredos
do coração humano são inacessíveis mesmo para a mais indiscreta
minuciosa investigação. A regra é absoluta: jamais podemos con-
denar a pessoa do pecador . Isso não quer dizer que tenhamos a obri-
gação de silenciar ou atenuar os pecados do passado. Mas também
neste ponto nos cabe a maior cautela e reserva. O que sabemos,
afinal, dos motivos íntimos de outras pessoas que vivem conosco?
Se é verdade que o "éthos", — isto é, o gama dos ideais morais, —

. — São Paulo, Epístola aos Romanos, XIV 4.


. Graham Greene, The Heart of The Mater, Star Editions, 1948, pág. 297.
(44).. — Cf. J. Maritain, Religion et Culture, págs. 101-106.
— 232 —

varia mais ou menos no espaço de um povo para outro (45), quanto


mais é suscetível de certas modificações através dos séculos! Vir-
tudes "modernas", tais como a sinceridade na documentação (46)
ou a tolerância civil (47), ocupavam em outros períodos históricos
um lugar bem diferente na escala dos valores morais. Mais reco-
mendáveis e fecundo é que o historiador tente transporta-se men-
talmente no espírito da época estudada, procurando "um entendi-
mento", que consiste em enquadrar orgânicamente as virtudes e os
vícios no ambiente histórico e na estrutura psicológica dos indiví-
duos e dos grupos sociais. E' bem possível que dessa maneira os
grandes heróis, supostamente impecáveis, percam a sua auréola, e
que os grandes criminosos se tornem mais humanos. Pouco impor-
ta: a história não é disciplina panegírica, nem condenatória. Um
dos seus efeitos salutares é fazer-nos compreender que todo o hu-
mano é relativo, — o que não exclui a existência de normas abso-
lutas, sendo que o relativismo absoluto é uma contradictio in ad-
jecto. Mas o relativismo legítimo torna-nos conscientes do fato de
que, neste mundo, não existe o sublime sem a fraqueza, nem o
crime sem certa grandeza. Dostoïevski, o grande conhecedor da al-
ma humana, não tinha nada de um relativista: contudo, seus cri-
minosos têm algo de simpático, e seus heróis têm momentos de mê-
do, de hesitação e de fraqueza. O santo cura de Ars dizia: Je porte
en moi le principe de tous les péchés. E já o poeta latino, na éra
pré-cristã, formulou numa sentença lapidar a sabedoria humana a
respeito dos pecados de outros: Aequum est vos cognoscere et ig-
noscere (48) .

§ 71. Filosofia e Mundividência.

Os fenômenos históricos, uma vez verificados e apurados, clas-


sificados e interpretados, admitem uma síntese superior, dando ori-
gem a uma reflexão aprofundada sôbre a natureza e as causas do

. — Por exemplo, a apreciação da vida militar na Alemanha, e o desprêzo por


ela num país mercantil, como na Holanda. — Diz o Pe. Teixeira-Leite Penido:
"Países há, em que a mentira é considerada pecadilho de somenos importân-
cia. Na Inglaterra, — mormente na Inglaterra vitoriana, -- alcunhar alguém
de mentiroso era injúria grave".
. — Escreve J. Hours (in opere citato, cf. nota 3): Ne jugeons pas à /a mesure,
d'aujourd'hui les faussaires de ces temps. Pour les esprits peu formés à l'ob-
servation, attribuant à ce qui est une importante bien moindre qu' à ce qui
doit être, introduire dans les archives le document qui y manque rnalheureu-
sement, n'est pas mentir, c'est au contraire r4tablir une vérité supérieure. —
A interpretação é meio benévola, não sendo aplicável a tôdas as falsificações
da Idade Média, — alguns documentos foram forjados com grosseiras intenções
egoístas, mas revela bem a origem de numerosos espécimes de pia fraus.
. — A tolerância civil, bem diferente da tolerância dogmática, — é esta incom-
patível com o caráter absoluto da Revelação divina, — baseia-se no amor ao
próximo e no respeito pela dignidade humana; a distinção, pelo menos, na prá-
tica, é uma conquista que a Cristandade histórica fêz à custa de muitas ex-
periências dolorosas.
(48). — Terentius, Eunuchus, 42.
— 233 —

processo histórico. Essa síntese superior é muitas vêzes chamada:.-


"Filosofia da História".

I. A Filosofia da História.

O têrmo é relativamente recente: foi empregado, pela primei-


ra vez, por Voltaire, que, em 1765, deu o título de Philosophie de
l'Histoire a um Prefácio, destinado a introduzir o seu Essai sur les
Moeurs et l'Esprit des Nations, obra essa que já data do ano 1756.
Uns vinte anos depois, a mesma palavra foi usada pelo filósofo ale-
mão Herdar no seu livro: Idéias para a Filosofia da História da
Humanidade (1784) . Daí em diante tornou-se comum a expres-
são, chegando a ser adoptada por vários idiomas (49).
Para quem imagina o inteiro processo histórico determinado
por causas universais e necessárias (por exemplo, Hegel e Marx),
o têrmo "Filosofia da História" é muito natural e lógico. Para os
tomistas a situação é evidentemente diferente (50) . Entre êles, al-
guns dizem que a palavra é ilegítima, sendo que não há ciência pa-
ra o homem senão do abstrato, do universal, do necessário; ora, o
objeto da história é de natureza empírica: o particular, o contingen-
te, o concreto. No pensamento de outros, justifica-se o emprêgo
do têrmo, numa acepção larga e derivada, sendo que um conjunto
de princípios e conclusões da metafísica, da ética e da antropologia
filosófica nos pode ajudar a chegarmos a um conhecimento, embora
muito imperfeito, das profundas causas que atuam no processo his-
tórico, as quais, na sua totalidade, são apenas conhecidas a Deus.
Aceitando-se o têrmo assim, poder-se-á falar também numa filoso-
fia cristã da história. Esta, servindo-se de algumas afirmações da
Revelação além dos dados mencionados acima, será capaz de emi-
tir um certo juízo de valor sobre a história do homem em concreto,
onde se deverá distinguir o que deriva só da filosofia e o que pro-
vém da teologia. Dizia Pitágoras: "Só Deus é sábio (sophós); o
homem pode apenas aspirar ( philéin) à sabedoria" (51), e por
isso inventou o belo nome de philo-sophía.
Não queremos tomar partido nesta questão espinhosa, que dei-
xamos aos filósofos. Nossos fins são mais práticos. A quarta parte
dêste livro será consagrada à exposição de algumas sínteses supe-
riores da história, elaboradas por vários pensadores no decurso dos
séculos. E' escusável dizermos que nos devemos limitar a um es-
— Em alemão, o têrmo Geschichtsphilosophie (=Filosofia da História) é usado
também para indicar a disciplina filosófica que trata do valor do conhecimento
histórico e da metodologia histórica em geral.
— De 6 a 8 de setembro de 1952 a questão foi tema da VIM. Reunião de Es-
tudos Filosóficos Cristãos, em Gallarate (Itália). — Foram publicadas as dis-
cussões num livro R Problema della Siaria (Brescia, Morcelliana, 1953). —
Cf. o resumo na Revista Portuguêsa de Filosofia, Vol. IX, Fasc. 3, 1953, págs.
251-277.
(51)• — Diogenes Laertius, Vitae, etc. I, 12.
— 234 —

bôço rápido: seguiremos apenas as linhas mestras, devendo prete-


rir muitos pormenores interessantes. Preferimos uma exposição cla-
ra e mais ou menos documentada de alguns sistemas, a registrar e
catalogar nomes de obras e autores. Nosso intuito é incentivar os
futures historiadores a lerem pessoalmente as grandes obras, e fa-
cilitar-lhes êsse trabalho. Tal exposição pode-lhes ser útil, pois as
grandes sínteses têm exercido profunda influência sôbre a historio-
grafia; além disso, o estudo dos diversos sistemas faz-nos acompa-
nhar as peripécias da cultura ocidental, introduzindo-nos nas men-
talidades, esperanças e preocupações das épocas sucessivas. Res-
tringimo-nos deliberadamente às sínteses históricas da cultura oci-
dental: o autor não se julga competente para falar sôbre a visão da
história entre os chineses, hindus, japoneses, etc. Dos sistemas mo-
dernos, tão numerosos e tão dif'ceis de avaliar, damos sõmente qua-
tro ou cinco, que nos parecem representativos. Falando da visão cris-
tã da história, temos em mente a visão católica: também esta, ape-
sar da sua unidade dogmática, não nos apresenta uma uniformida-
de completa, mas mostra muitas divergências mais ou menos con-
sideráveis na elaboração prática dos princípios fundamentais. Não
as pretendemos discutir, tampouco como as diversas interpretações
protestantes da história, devendo remeter o leitor a outras publica-
ções (52). Diferentemente do costume adotado por muitos livros
dêste tipo, deixaremos de lado, na medida do possível, os proble-
mas filosóficos relativos à metodologia da história: já encontramos
alguns dêles na primeira e na terceira parte dêste livro. Mas pre-
tendemos focalizar principalmente estas questões: Quais são os fa-
tôres decisivos da história? a Providência, o Destino, a atividade
humana, o "Acaso"? Qual o sentido do processo histórico? ou será
que a história não tem, significado nenhum? Qual a marcha da hu-
manidade, e principalmente a da nossa 'civilização ocidental?
O terreno, mesmo que fique delimitado dessa maneira, é vas-
tíssimo e abrange elementos heterogêneos. Alguns sistemas são ins-
pirados pela teologia cristã (por exemplo, Santo Agostinho e Bos-
suet), outros têm cunho "científico" (por exemplo, Políbio e Tai-
rie), outros possuem caráter nitidamente filosófico (por exemplo,
Regei), outros se baseiam em certa mundividência (por exemplo,
Berdiaïev e Toynbee), e outros afinal partem de um mito (por
exemplo, Rosenberg). Mas lembrados da palavra de Aristóteles:
"O philó-mythos é, em certo sentido, philó-sophos" (53), tratare-

.(52). — Citamos aqui apenas alguns livros modernos: K. Ldwith (cf. nota 22); Reinold
Niehuhr (Faith and History, 1949); Karl Barth (Kircbliche Dogmatik); O.
Cullmann (Christ et le Temps, 1947). — Cf. a série de seis conferências, pro-
feridas pelo professor Otto A. Piper na Universidade de São Paulo, que agora
estão sendo publicadas na Revista de História, V 19 e seguintes, sob o título
de: A Interpretação Cristã da História.
(53). — Aristóteles Metaphysica, I 2, 8. — Cf. Strabo, Geographica, I 8.
— 235 —

mos de mitos como também de doutrinas filosóficas e de dogmas


teológicos.
Disse Alexandre Herculano: "(A historiografia) será mais útil,
embora mais difícil, do que certas generalizações e filosofias da
história, hoje de moda, em que se generaliza o errôneo ou o incerto,
e se tiram conclusões absolutas de fatos que se reputam conformes
entre si, e que, provàvelmente, mais de uma vez os estudos sérios
virão mostrar serem diversos, quando não contrários. A poesia on-
de não cabe; a poesia na ciência é absurda" (54) . E' bem compre-
ensível essa attiude cética de um historiador "prático" perante as
especulações teóricas, muitas vêzes fantásticas, de numerosos filó-
sofos, ou pseudo-filósofos, sem a mínima formação histórica. A "Fi-
losofia da História", filha do Século das Luzes e do Romantismo,
acabou por perder o seu crédito nos meados do século passado, de-
vido a freqüentes abusos e a certa corrente de "cientismo", o qual,
em última análise, é também uma espécie de filosofia. Mas a in-
vectiva de Herculano, como a de Sainte-Beuve e tantos outros, é
uma tremenda generalização, cheia de mal-entendidos. O espírito
humano não para antes de saber o último porquê das coisas, que
esteja ao seu alcance; uma vez entrado um problema na consciên-
cia humana, é impossível eliminá-lo ou negá-lo; a questão, suscitada
pela "Filosofia da História", é, no fundo, a de saber o destino ter-
restre e transcendente da humanidade; e esta questão é de suma
importância.
Na preocupação moderna pelo descobrimento do sentido da
história vemos um sinal da inquietude do homem do século XX.
Como havemos de ver, foi o Cristianismo que atribuiu um fim trans-
cendente e um valor decisivo ao processo histórico; nos séculos
XVIII-XIX, a idéia foi sendo secularizada; os tempos modernos
presenciam uma tentativa concreta de realizar um Paraíso Terres-
tre (no marxismo e, mutatis mutandis, também no capitalismo); a
experiência de duas guerras mundiais e a ameaça de uma terceira
obrigam-nos a dar contas das possibilidades e do valor da nossa
civilização ocidental; a unificação do mundo, possibilitada pela téc-
nica moderna, vai-nos confrontando cada vez mais com outras cul-
turas. Eis alguns motivos porque a "Filosofia da História" hoje é
muito atual, tornando-se um tema predileto de teólogos, filósofos,
ensaístas e até de jornalistas.

II. A Mundividência.

Já encontramos várias vêzes a expressão "mundividência",


tradução de uma palavra bem alemã: Weltanschauung. Em certos
meios usa-se também o têrmo híbrido: "cosmovisão", ou então, pre-
(54). — A. Herculano, História de Portugal, Lisboa, 8a. edição I, pág. 6.
— 236 —

fere-se uma paráfrase: "visão, ou concepção do mundo". Perg-un-


tamos agora: que é mundividência? em que pontos difere da filo-
sofia?
Mundividência ou Cosmovisão é urna visão sintética de tôdas
as coisas: o mundo, o homem, e Deus. Seu objeto material é, por-
tanto, tão universal como o da Filosofia. Entretanto, há diferen-
ças consideráveis. A filosofia é ciência teórica e especulativa; a .

cosmovisão é de natureza prática e dinâmica. A filosofia é um sis-


tema rigorosamente metódico e crítico do pensamento humano; a
cosmovisão é mais um produto de reflexão espontânea. Aquela,
mais disciplinada, é puramente intelectual; esta, menos técnica,
aquela para tôdas as faculdades humanas: a imaginação, a vontade,
os fatôres irracionais, as tendências místicas, etc. A filosofia, pelo
menos em tese, é de todos os tempos e de todos os povos: existe
uma philosophia perennis; a mundividência é, até certo ponto, con-
dicionada pela situação histórica de quem lhe adere. Logo, ela é
mais concreta do que a sua irmã, por se revestir de feições indivi-
duais que caracterizam certa pessoa ou coletividade histórica. A .
mundividência resulta muitas vêzes numa filosofia, preservando-se
assim dos perigos inerentes a um subjetivismo caprichoso. Mas não
é preciso ser filósofo para ter urna mundividência: pode ela ser ad-
quirida por qualquer um, seja culto ou não, sendo o resultado de
uma reflexão espontânea e pessoal sôbre os grandes problemas da
vida, e não o resultado necessário de uma vasta erudição. Por ou-
tro lado, a filosofia, para não perder uma influência salutar sôbre
a vida concreta, precisa ser completada por uma certa mundividên-
cia: sem ela, o filósofo perderia fàcilmente o contacto com a rea-
lidade. Segundo Max Scheler (55), uma mundividência amadu-
recida e uma filosofia vivida convergiriam no antigo ideal de vir
sapiens.
Nosso esbôço histórico demonstrará abundantemente, o quan-
to vale a mundividência nas construções da "Filosofia da História".

§ 72. A Riqueza e a Pobreza da Hisíória.

Chegados ao fim dêste capítulo, julgamos conveniente acres-


centar algumas palavras sôbre a natureza e a importância da his-
tória, completando assim as reflexões finais da primeira parte dêste
livro.

I. A Autonomia da História.

A história é ciência pouco autônoma. Já na investigação dos


fatos materiais vê-se forçada a fazer largo uso de numerosos dis-
(55) . — Max Scheler, filósofo alemão (1874-1929).
— 237 —

ciplinas subsidiares: a filosofia, a arqueologia, a paleografia, a cro-


nologia, a geografia, etc. Na síntese histórica a situação não é di-
ferente: à medida que o espírito do historiador penetrar mais a
fundo no núcleo das questões, originadas pela sua matéria, mais
obrigado se verá a recorrer a princípios superiores aos da sua pró-
pria ciência. Poder-se-ia perguntar: Que ciência é essa? Parece
que a história não passa de um conjunto mais ou menos artificial
de elementos muito heterogêneos, sem vida própria. A objeção
parece mais grave do que é na realidade. Pois:
A história estuda os atos humanos. Ora, o homem é um
microcosmo, urna unidade substancial de alma e corpo, participan-
do da vida espiritual e sujeita às leis biológicas e físicas do mundo
material. As duas esferas nele não são completamente separadas,
como queria um Descartes, mas as interrelações são tão íntimas
que, ao estudarmos as condições materiais, não podemos prescindir
da livre atividade do espírito, e ao estudarmos a vida espiritual,
:não podemos deixar de lado as condições materiais. (cf. § 65 III).
L'homme n'est ni ande ni bête, et le nialheur veut que qui veut
feire l'ange fait la bête (56). O caráter extremamente complexo
do homem concreto, de quem nos fala a história, é o que torna ex-
tremamente cómplexa a nossa disciplina, impelindo-a incessante-
mente a recorrer aos dados de outros ramos do saber humano.
Os atos têm um fim, consciente e deliberadamente pro-
posto em vista de um valor concreto que se quer realizar. Na na-
tureza inanimada os efeitos são determinados, e no reino animal
fim das atividades instintivas não é conhecido como fim. Por
isso mesmo podemos fazer abstração da causa final e dos valores
na física e na química, e até certo ponto também na biologia. Mas
historiador não pode prescindir dos fins e dos valores. Ora, os
problemas que surgem neste problema, não podem ser resolvidos
por uma observação "científica" dos fenômenos, mas precisam ser
examinados à luz da filosofia, que trata dos fins e dos valores.
c) Apesar de ser inconcebível a história sem a ajuda de mui-
as outras disciplinas, seria uma conclusão precipitada dizer-se que
ela não possua autonomia alguma. A autonomia da história con-
siste no seu método genético de estudar os atos humanos do pas-
sado. Por estudar o seu objeto material sob o aspecto da sua su-
cessão no tempo, nossa ciência distingue-se de tôdas as outras dis-
ciplinas. Eis a vida própria da história (cf. §§ 12-13).

II. A Objetividade (cf. § 33 IV).

Percoridos os principais problemas da síntese histórica, impõe-


se mais uma vez a questão da objetividade. Já vimos que o his-
<56) . — Blaise Pascal, Pensées, éd. Brunschvicg, pág. 493.
— 238 —

toriador, ao elaborar a sua síntese, é condicionado pela situação his-


tórica em que êle próprio se acha, e que, nas suas sínteses superio-
res, item de apelar, implícita ou explicitamente, para os princípios
da filosofia. Sem falarmos em fatôres inteiramente subjetivos, —
tais como o temperamento individual do historiador, suas antipa-
tias e simpatias e seu partidarismo, — podemos perguntar se a sín-
tese histórica não é apenas uma construção arbitrária e precária,
ou até quimérica. Acreditamos que não.
A filosofia é a rectrix scientiarum, cabendo-lhe apreciar os prin-
cípios e os métodos empregados pelas ciências particulares; ne-
nhuma delas se pode esquivar ao contrôle da filosofia, o qual é
mais negativo do que positivo e não afeta a autonomia das ciências
particulares no seu próprio terreno. Por motivos já freqüentemen-
te indicados, a síntese histórica precisa mais do suporte imediato e
incessante da filosofia do que, por exemplo, as ciências "exatas".
Ora, os princípios e as conclusões da metafísica não são construções
arbitrárias. If we deemly feel, as many of us do feel (though we
may think otherwise) that theology and metaphysics are not scien-
tific, this is simply because our education has induced a mood that
regards reasoning about intangibles as mere word-spinning (57). .

O objeto próprio da ciência é o universal, o necessário; os princí-


pios da metafísica são os mais universais e necessários de todos; lo-
go, os princípios metafísicos são os mais "científicos".
Também a síntese histórica possui certo grau de objetividade
e de universalidade. Podemos dizer que ela poderá ser universal-
mente aceita, enquanto não se descobrirem documentos, até agora
desconhecidos, ou não se verificarem acontecimentos que venham
aumentar as nossas experiências. Nas duas hipóteses há passagem
da ignorância ao conhecimento, não do êrro à verdade (cf. § 16
VII).
Mas logo se vê que a objetividade na história é tato ceei°
diferente da objetividade nas matemáticas ou nas ciências naturais, •

que lidam cora objetos abstratos. Quando um princípio abstrato


desce, por assim dizer, dos céus para se aplicar à realidade concre-
ta, parece que se torna um tanto confuso o nosso espírito sob a in-
fluência das nossas paixões, interêsses e instintos. Para entrarmos
dignamente no santuário de Clio, precisamos ter o coração purifi-
cado, e cumprir três ordens de categoria moral: devemos ser sin-
ceros, serenos e corajosos. Ninguém insistirá em que o matemático
encare serenamente o teorema de Pitágoras; ninguém exigirá que
o físico seja sincero ou corajoso ao estudar a eletrodinâmica. E'
que os seus resultados são universais, abstratos, exatos e unívocos,
ao passo que a história estuda os atos humanos, que são concre-
(57) . — W . R . Thompson, Science and Comrnon Sena°, London-New York-Toronto,
1947, pág. 17.
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (III)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 23, pp 185-239, jul./set. 1955. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/023/A009N023.pdf

— 239 —

tos, únicos e finalistas. Está em jôgo a nossa concepção do mundo,


ao interpretarmos os fins livremente propostos durante os séculos
passados.
Sinceridade: jamais nos podemos desviar dos fatos bem veri-
ficados. Serenidade: jamais nos podemos deixar influenciar, cons-
cientemente, por nossas simpatias ou antipatias, por nossos afetos
ou paixões. Coragem: sempre devemos proferir a verdade, por
mais embaraçosa ou incômoda que seja a nós próprios ou ao grupo
social a que pertencemos. Ser historiador "objetivo" quer dizer:
ter a vontade de se submeter incondicionalmente à verdade dos fa-
tos; querer tomar conhecimento de tôdas as fontes disponíveis e
das várias opiniões sôbre elas formadas, sem excluir as dos nossos
adversários; aderir a nenhuma conclusão sem reflexão madura; e
afinal, testemunhar da verdade descoberta, sem temor a sem pre-
venção. Concluamos com urna palavra do Papa Leão XIII: Je-
junae narrationi opponatur investigationis labor et mora; temerí-
tati sententiarum prudentia judicii; opininnum levitati seita rerum
selectio. Enitendum magnopere, ut omnia ementita et falsa, adeun-
dis rerum fontibus, rafutentur (58).

III. Conclusão.

Destarte se nos afigura pobre e rica a história, tal como o pró-


prio homem que a criou e a investiga. Pobre, porque o homem con-
segue, com maior facilidade, conhecer o mundo quantitativo do que
o mundo complexo do espírito encarnado. "Conhece-te a ti mes-
mo" não é adágio trivial, mas uma ordem sublime, cujo profundo
significado se nos vai mais revelando na medida de nos achegarmos
do homem concreto, alcunhado por um médico francês de rhomme,
cet inconnu.
Mas, ao mesmo tempo, é riquíssima a história, e profundamen-
te humana. Torna o homem consciente da sua situação no tempo,
obrigando-o a fazer, a cada passo, perguntas do maior alcance para
a sua existência. Através dos fenômenos relativos ao passado apon-
ta para o Reino Eterno dos valores absolutos e transcendentais.

(Continua no próximo número).

JOSÉ VAN DEN BESSELAAR


Da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

(S8). — Leo PP. XIII, Seepenumero Considemntes, 17 (carta pontifical do ano 1883,
quando os arquivos do Vaticano iam ser franqueados) .
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (IV)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 24, pp 499-533, out./dez. 1955. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/024/A011N024.pdf

QUESTÕES PEDAGÓGICAS

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS (IV).

QUARTA PARTE

As Interpretações da História átravés dos Séculos.


Fundamentem enim aliud nemo potest ponere praeter id quod
posittun est, quod est Chtistus Jesus.
I Cor. 3, 11.

CAPITULO PRIMEIRO
, GREGOS, JUDEUS E CRISTÃOS

§ 73. A Antigüidade Clássica.

Se avaliarmos bem a duração secular da Antigüidade clássica


ou greco-romana, — é só dela que pretendemos falar nestas pági-
nas, — não nos custará compreender que a visão da história num
período de 1.300 anos (1) não pode ter sido completamente uni-
forme, mas deve ter evolvido junto com o pensamento geral, va-
riando conforme as mentalidades das diversas épocas e adaptan-
do-se às doutrinas das várias escolas filosóficas. Entretanto é le-
gítimo falarmos na visão "clássica" da história, visto que a mundi-
vidência dos povos clássicos constitui certa unidade "orgânica".
No fundo de quase tôdas as especulações dos antigos sôbre a po-
siçao do homem no mundo histórico encontramos umas convicções
fundamentais, que são características do paganismo pré-cristão, ou
talvez melhor: podemos verificar a ausência de certas noções que,
com o triunfo do Cristianismo, se foram integrando na consciência
da civilização ocidental (cf. § 75). O assunto é vasto e complexo,
e neste parágrafo podemos estudar-lhe apenas alguns aspectos (2).
Ao reconstruirmos a visão da História na Antigüidade, temos de
recorrera observações dispersas, encontradas não só nas obras de
historiadores e filósofos, mas também nas produções de poetas e
dramaturgos. Justifica-se êsse método pela circunstância de não
haver existido entre os gregos e os romanos uma disciplina filosó-
— A documentação escrita relativa à Antigüidade clássica vai de Homero (800
d. C.?) até os últ . mos representantes da filosofia pagã (expulsos de Atenas
em 529 d. C. pelo Imperador Justiniano).
— Não podemos dar aqui uma documentação copiosa: remetemos o leitor in-
teressado a um trabalho publicado pelo autor dêste livro: A Visão da História
na Antigüidade (in "Paideia", Revista da Faculdade de Filosofia, etc. do
Sorocaba, I 2 (1954), págs. 5-34). •
500

fica que tivesse por objeto particular os acontecimentos históricos.


Os antigos não conceberam uma "filosofia da história", nem sequer
a puderam conceber: a teologia cristã é a mãe da moderna filoso-
fia da história.
I. Os Fatôres que atuam no Processo Histórico.
O homem não é senhor absoluto do seu destino: tem de re-
conhecer que além de, ou antes: acima de seus intentos pessoais,
existe um Poder Superior, a favorecê-los ou a c•:ntrariá-los. Se
fazemos abstração de numerosos matizes individuais, às vêzes
consideráveis, que existem entre as diversas maneiras de interpre-
tar a atuação dêsse Poder Superior, podemós dizer globalmente
que o homem a concebe como uma livre disposição de uma única
Divindade, considerada como Pessoa, ou como uma intervenção
de muitos entes divinos (politeísmo), ou então, como uma opera-
ção necessária de um Todo Divino (panteísmo), o qual pode ser
racional e cognoscível, ou não (3). A primeira atitude é a do
Cristianismo; a segunda e a terceira, — que admitem várias for-
mas e interpenetrações, — são típicas do "paganismo", na acepção
mais ampla desta palavra. No politeísmo poderíamos ver um
pálido reflexo da transcendência divina; no panteísmo o da ima-
,

nência divina. A sabedoria pagã não conseguiu harmonizar êsses


dois atributos: jamais eliminou por completo as eivas do politeís-
mo ou do panteísmo.
a) A Mundividência de Homero.
Em Homero encontramos, não uma teoria metôdicamente ela-
borada, — seria incompatível com a concepção artística da epopéia
e com a mentalidade primitiva da época pré-filosófica, — e sim in-
tuições geniais que anunciam de longe temas centrais dos gran,
des historiadores, dramaturgos e filósofos. O poeta já vê, de modo
mais ou menos confuso, a coexistência de três fatôres que atuam
no processo histórico: a livre atividade humana, a intervenção ar-
bitrária de deuses antropomorfos, e o Destino impessoal e impla-
cável. A atividade humana tem certa autonomia: as figuras épi-
cas não são marionetes mecânicas nas mãos dos deuses. São ver-
dadeiros homens e verdadeiras mulheres; engrandeceu-os o poeta,
mas jamais os desfigurou, tirando-lhes a vida ou torcendo a verda-
de humana por causa de uma teologia. Contudo, não compreende-
mos bem nem o têrmo nem o sentido da atividade humana, a não
ser que conheçamos o mundo olímpico, onde são tomadas medidas
decisivas para o destino dos mortais. E êstes veneram piedosa-
mente os deuses, imploram-nos nas suas necessidades e oferecem-

(3) . — Há outra possibilidade: explicar o processo histórico pelo Acaso, cf. § 67 II.
— 501 —

lhes sacrifícios sem suspeitarem que os objetos da sua veneração


não merecem tais atos de confiança e piedade. Pois os deuses da
"religião homérica", concebidos de maneira grosseiramente antro-
pomorfa, são moralmente inferiores aos mortais, — pedra de es-
cândalo para muitos pagãos sérios (4). Corresponde-lhes uma Pro-
vidência antropomorfa: rancorosa e malévola, ou complacente e be-
nigna, mas sempre caprichosa, mais capaz de causar um mêdo su-
persticioso do que uma piedade religiosa. O partidarismo de Hera,
Afrodite, Marte e Atenas é completamente amoral, manhoso e pue-
ril, e custa muitíssimo a Zeus criar certa ordem nas reuniões baru-
lhentas e burlescas que, de vez em quando, se realizam nos palácios
celestes. Já (ou ainda?) percebemos certo henoteísmo (5) no
Zeus homérico, o mais alto e poderoso de todos os deuses. Quando
êle fala, treme o Olimpo e os demais deuses guardam um silêncio
respeitoso. Contudo, deveMos reconhecer que nem o próprio "pai
dos deuses e dos homens" é todo-poderoso: está sujeito à Fôrça
inflexível do Destino (Moira ou Ananke), e se o decreto da Moira,
às vêzes, coincide com a vontade de Zeus, outras vêzes é-lhe imposto
contra a vontade. Podemos verificar a divergência no canto da
morte de Heitor (Mias, XXII 209,etc.): o Tonante põe na balan-
ça o destino de Aquiles e o de Heitor, e vê com tristeza que a
Moira quer a morte do príncipe dos troianos.
b) Os Grandes Historiadores.
a) Heródoto é homem "religioso" com fortes preocupações
morais, diferenciando-se, nestes pontos, de Homero. O deus 'do
"pai da história" é um ente enigmático: to théion ou to daimánion
é transcendente ou imanente? Seja como fôr, Heródoto julga o
Universo cheio de entes divinos, isto é, na acepção antiga da pa-
lavra: sêres que merecem uma veneração religiosa da parte dos
homens. Segundo êle, não se compreende a história humana sem
a intervenção ,misteriosa dos deuses, ou então, sem a Lei imanente .
do Universo. Por mais problemática que seja a natureza da di-
vindade herodotiana, percebemos-lhe bem êste traço: é ciumenta
e vingativa (5a). Quando alguém (6) se atreve a ultrapassar os
. — Já dizia Xenófanes (século VI a. C.): "Homero e Hesíodo imputaram aos
deuses tudo quanto entre os homens é indecoroso e censurável: roubos, adul-
térios e enganos recíprocos" (frogm. 11; cf. 15) . — Veja também Heraclito,
Iram. 42, e Plato, Respublica III 377A-392B, e X 595A-608B.
. — O henoteismo é uma espécie de ' politeísmo, segundo o qual um deus entre
muitos deuses é concebido como o mais forte e poderoso.
(5a). — Não são raros, na obra herodotiana, traços de certo ceticismo e agnosticismo;
mas a Inveja dos deuses (grego Phthónos tôn theón) lhe parece fato indis-
cutível. Semelhante agnosticismo, mas de tendência diferente, seria professado
pelo historiador bizantino Procópio (in Buliam Gothicum, I 3, 6-8): "Con-
sidero eu como uma aberração louca têda e qualquer tentativa humana de
indagar a natureza divina. O homem nem sequer. atinge a verdade exata em
relação às coisas humanas. Quanto mais lhe são inacessíveis as coisas divinas!
Eu por mim nada quereria afirmar a respeito do Divino a não ser sua per-
feita bondade e sua onipotência absoluta".
. — Por exemplo, Creso, o rei. da Lídia (I 26-91), Polícrates, o tirano de Samos
(III 39-47), e Xerxes, o rei dos persas ( VIII 13, etc.).
— 502 --

limites humanos, — ou, por outras palavras, comete o grave pe-


cado de "descomedimento" (hfrbris), — cai sôbre êle a terrível
vingança divina, conseqüência inevitável da Inveja, forçando-o a
reconhecer que não passa de um miserável mortal. Daí residi-
rem a suprema sabedoria e a suma piedade, características da mun-
dividência de Heródoto (e de quase todos os autores gregos da
época "clássica"), em não querer abandonar presumidamente o in-
divíduo humano o lugar que deve ocupar no Kósmos (7), no Uni-
verso. Tal ato de insolência origina um desequilíbrio entre os ele-
mentos constitutivos do Todo misterioso, e cabe a ArêMesis (8) re-
conduzir o homem, descomedido para o seu lugar. Heródoto não
exclui o papel relevante da atividade humana (por exemplo, de Ci-
ro e Temístocles!), mas sua visão do mundo é essencialmente de-
terminada por um temor religioso, ou antes: supersticioso, ao "Di-
vino" que o homem tem a obrigação de respeitar.
/3) Tucídides acentua muito mais a livre atuação do homem

no processo histórico. E' o homem que determina, em boa parte, a


marcha da história, impondo-lhe seus fins e seus intentos. O ho-
mem é essencialmente animal ambicioso e interesseiro. Será gran-
de estadista quem souber tirar proveito dessas tendências profun-
damente humanas. Um conhecimento racional (ánóme) pode aju-
dar-nos a compreender o homem nas suas aspirações e nos seus
intentos. Aí está a grande utilidade de estudos históricos: por nos
darem informações exatas sôbre o passado, contêm ensinamentos
valiosos sôbre o futuro, o qual, em virtude da condição humana,
será igual ou semelhante ao que se passou (cf. § 3 II). A esfera
das atividades humanas vem ,a ser cortada freqüentemente por
uma fôrça irracional: o "acaso" (tyche), o qual contraria e ani-
quila as esperanças dos mortais. Um exemplo célebre de tal in-
tervenção imprevista e incalculável é a peste que assolou Atenas
nos primeiros anos da guerra do Peloponeso. O racionalista Tu-
cídides, apesar de reconhecer o alcance dessa fôrça misteriosa, não
entra em especulações filosóficas para lhe demarcar o terreno; mui-
to menos ainda lhe escapa uma palavra de censura, mesmo ao des-
crever os crimes mais hediondos da guerra. Limita-se a observar,
documentar e relatar com a objetividade imperturbável de quem
observa e expõe uma reação química. Neste ponto é muito instru-
tivo o diálogo entre os embaixadores de Atenas e os da ilha de Melos
(V 89-105): aí ouvimos expor cinicamente a lei fundamental da
História (a qual, para Tucídides, é essencialmente política e mi-

(7) . — A palavra Kdsmos significa "ordem" (com uma noção inerente de "beleza")
e "mundo", portanto: "o mundo ordenado e organizado". ,
(8). — Nêmesis quer dizer: "aquela que mede, distribui, proporciona" (as coisas a
cada um conforme lhe convém) . — Cf. Heródoto, I 43, 1: "Depois da saída
de Sólon, apoderou-se de Creso a terrível Nêmesis divina, a meu ver, porque
se julgava o mais feliz de todos os homens".
-503—

litar): a vida política é exclusivamente baseada no poder, e o


fraco, bom ou mau grado seu, tem de submeter-se ao forte; ques-
tões de direito discutem-se apenas entre partidos igualmente po-
derosos. Essa lei férrea e inalterável não foi inventada pelos ate-
nienses: procedem êles como também os melenses procederiam se
fôssem capazes de impor sua vontade a outros.
y) Políbio toma uma posição mais "científica" perante os
acontecimentos históricos, procurando "causas determinantes" e "leis
históricas". A formação do Império Romano é um processo natural,
digamos: racional, e, dadas certas causas determinantes (de ordem
física e moral), necessário. Tal como se sucedem, na história de
um povo, os vários regimes políticos num ritmo determinado (cf.
§ 65 IV, nota 7), assim se sucedem, num plano superior, os vários
Impérios. Roma liqüidou, graças à sua excelente legislação e pru-
dente organização política, o poder êmulo de Cartago e conquistou
o mundo mediterrâneo, mas, como tôdas as coisas terrestres, está
sujeita à lei da corrupção. Políbio julga-se até capaz de predizer
as catástrofes internas que ameaçam a Cidade (VI 57 e VI 9, 11) .
Torna-o melancólico a consideração das vicissitudes humanas: tam-
bém Roma ouvirá, muito provàvelmente, um dia uma sentença de
maldição, proferida contra ela por um soberbo vencedor (XXXIX
3, 6-7) . A T3'7che polibiana, que decide da sorte humana, difere
bastante da 7Whe irracional e incalculável de Tucídides: é a Hei-
marméne (9) da Estoa, a lei imanente do Universo, em última aná-
lise, racional e, portanto, cognoscível à inteligência humana, pelo
menos, até certo ponto. O historiador não ignora o que há, muitas
vêzes, de misterioso no Destino para o homem, nem subestima a im-
portância dos grandes personagens, por exemplo, a dos Cipiões (10),
mas, apesar dessas concessões, é sobretudo determinista . Nenhum
historiador da Antigüidade achegou-se tão perto dos conceitos mo-
dernos de evolução e de leis históricas como Políbio. Parece-lhe
mera superstição a religião, a qual, porém, pode prestar serviços
úteis para dominar as massas: se o Estado se compusesse exclusi-
vamente de sábios, não teria cabimentd (VI 56) .
Entre os historiadores romanos cumpre destacarmos Salústio,
que costumava introduzir suas monografias por um breve Prefá-
cio de cunho 'filosófico. O autor é moralista, mas, ao contrário de
Heródoto, não baseia sua moral explicitamente numa concepção
teológica do mundo. A moral salustiana é• cívica, austera e prag-
matista, típica de um povo de ação como era o romano. E' a
virtus que funda e cimenta os Impérios, a manifestar-se em labor,
(0) — A palavra Heimarméne é derivada da mesma raiz que Moira, a saber i•
a-mer-(= "porção"), a qual encontramos também nas palavras latinas mora
e memor.
(10) . — Polybius, Historial), X 21, 3; d. X 2-5 (Cipião-o-Velho) e XXXII 11-14
(Cipião-o-Moço) .

— 504 —

oontinentia e aequitas. Mas a posse segura dos benefícios mate-


riais, acarretados por um longo período de paz, acaba por entor-
pecer e desmoralizar os cidadãos, fazendo com que percam a he-
gemonia. Roma, por se entregar à desidia, à libido e à superbia,
vai seguindo o caminho fatal dos demais Impérios (11) . A inter-
pretação moralista da história, aliás bastante comum em tôdas as
épocas e não desconhecida dos gregos, é corriqueira na literatura
latina, e encontra-se por exemplo também em Tito-Lívio (12).
c) Os Poetas Gregos da Época Clássica.
Os progressos dos gregos no setor religioso e no campo da es-
peculação filosófica deviam resultar numa atitude mais crítica
ante os mitos imorais de Homero, e num esfôrço de reconciliar a
Necessidade( grego: Anánke) com a Justiça. Já em Hesíodo ve-
mos uma primeira tentativa de relacionar a cega Moira de Home-
ro com uma disposição justa: as três Moiras do poeta beócio são
filhas de Zeus e Têmis, a deusa das leis eternas, a prudente e justa
conselheira do Tonante. Dike é igualmente filha de Zeus, sendo a
omnipotentia supplex junto ao trono de seu pai, quando ofendida
pelos mortais (13). Se é lícito transportarmos essas figuras mito-
lógicas para o terreno de conceitos abstratos, podemos dizer que
Dike (latim: jus) é, entre os homens, a manifestação da divina
Têmis (latim: Fas): personificou-as a viva imaginação dos gre-
gos, ao passo que os romanos as concebiam como abstrações im-
pessoais.
Não podemos acompanhar nos pormenores a evolução do
pensamento religioso dos gregos: basta- delinearmos a atitude dos
grandes dramaturgos, que lutam constantemente com o problema
do mal.
a) Segundo Ésquilo (±- 525-±- 455), — poeta influenciado
P elo orfismo (14), — . existe uma Ordem divina e justa, a lei ima-
. Transcrevemos aqui o passo mais importante (Sallustius, Catilinae Conjuratio,
II 3-6): Quod si regum at que imperatorum animi virtus in paca ita ut in
bailo valeret, aequabilius atque conStantius sese res humanae haberent, negue
aliud alio ferri negue mutari ac misceri omnia comeres. Nem imper:tem lucile
iis artibus retinetur quibus • initio partum est. Verum ubi pro labore desidia,
pro continentia et aeqdtate lubido atque superbia invasora, fortuna simul
cum moribus immutatur , Ita impariam semper ad optirrrum quetnque a minus
bono transfertur .
. Titus Livius, Ab Urbe Condita, Praefatio, I 9 e 12.
. — Hesiodus, Theogonia, 901-906; cf. Opera et Dias, 256-260. — Mas em
Theogonia, 218 as três Moiras (Klothó, Láchesis e Atropos) são filhas de
Nys (= Noite), e em Plato (Respublica, X 617 C-D) elas são filhas da'
Anánke (= Necessidade), e dominam o passado, o presente e o futuro.
. O Orfismo, cujas origens remontam à época pré-homérica, era uma seita
religiosa, que começou a tomar grande surto a partir do século VI a. C.
(Empédocles, Pitégoras, Platão, etc.) . Sendo um dos chamados "mistérios"
antigos, foi-se aliando ao culto de Dioniso, ganhando assim em elementos or-
gíacos. Era uma espécie de "religião revelada", que tinha seus livros sagra-
dos. — A seita tinha uma teogonia e cosmogonia; praticava unia austera as-
cese (abstenção de certos alimentos que contêm os germes de nova vida);
acreditava na renovação periódica do mundo e na metempsicose. Contribuir*
muitíssimo para a crença na imortalidade da alma humana, da qual só os
"iniciados nos mistérios" podam gozar. Muitos pontos da sua doutrina e
da sua evolução histórica continuam obscuros.
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nente do Universo, em que o homem vem a ser integrado orgâ-


nicamente: é a Dike. Destarte o dramaturgo consegue dar fei-
ções morais e religiosas ao Destino implacável de Homero, sem
inteligência e sem amor. Mas seu esfôrço, por mais grandioso que
seja, tem algo de desesperado: como harmonizar os caprichos do
Fado com as exigências da lei moral? Como explicar e justificar
o terrível enigma do sofrimento humano? O poeta curva religio-
samente a cabeça diante dêsses mistérios, mas julga saber que-nem
sempre o pecador é punido imediatamente: o pecado de um indi-
víduo transmite-se de geração à geração, e muitas vêzes acontece
que os netos sofrem pelos crimes de seus avós (15) . Além disso,
o sofrimento possui poder purificador: as tristes experiências cons-
tituem ensinamentos valiosos para o homem (16) .
fl) Em Sófocles (496-406) percebemos a tendência de fa-
zer coincidir a Moira com o caráter do herói trágico; seus dramas,
mais "humanos" e mais psicológicos do que as tragédias "divinas"
de Ésquilo, comprovam a verdade dá profunda palavra de He-
raclito: "Para cada homem, a própria índole é seu destino" (17) .
Nenhum dos três grandes dramaturgos frisa com tanta ênfase a
harmonia universal, a que deve corresponder, por nossa parte, uma
resignação absoluta: "Os dados de Zeus caem sempre acertada-
mente" (Sophocles, fragmentum, 809) .
y) Assim como Ésquilo, Sófocles e Píndaro (18), — cada
um à sua maneira, — mostram uma posição religiosa perante os
problemas da vida, assim Eurípides (480-405) é filho do Raciona-
lismo da época dos sofistas (cf. Tucídides) . Existem, contudo,
diferenças consideráveis. O dramaturgo é um revoltado, um eter-
no inquieto, que anda torturado pelos enigmas da existência hu-
mana: é o filósofo do palco ateniense, que nunca cessa de venti-
lar seus pensamentos apreensivos. O historiador, porém, em nenhu-
ma ocasião perde o sangue-frio, e abstém-se metõdicamente de es-
peculações que ultrapassem a capacidade do intelecto humano. Pa-
ra ambos existem fôrças misteriosas, e nenhum dos dois cogita em
identificar a Moira com a Dike. Mas Tucídides, cético esclarecido,
não nos revela seu pensamento sôbre o Divino r ao passo que Eurí-
pides incrimina os deuses de crueldade, põe-lhes em dúvida a exis-
tência, impugna os mitos imorais, e se empenha em atingir uma

. — Aeschylus, Agamemnon, 7.50-781. — Cf. a pergunta dos discípulos a Jesus:


"Mestre, quem pecou, êste (o homem cego de nascença) ou seus pais?" (Ev.
João, IX 4) .
. — Aeschylus, Agamemnon, 146: páthei máthos, palavra freqüentemente citada
por A. Toynbee.
. — Heraclitus, fregm., 119.
. O poeta tebano Píndaro (518-422) acredita, como Heródoto e Ésquilo, na
vingança celeste, conseqüência inevitável da hybris humana e do phthónos
divino.
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idéia mais elevada da Divindade. Ao que parece, acredita numa


"moral laica".
d) Os Filósofos:
Os chamados pré-socráticos tinham integrado o homem nas
leis universais do Kósmos; com os sofistas (18a), o homem torna-
va-se o centro das especulações filosóficas; Sócrates (18b) e Pla-
tão, muito embora inimigos figadais do ceticismo e do relativismo
dos inovadores, consagravam um interêsse especial ao estudo do
homem, e essa atitude "humanista" seria adotada por quase todos
os pensadorès da Antigüidade. Eram intensas as especulações dos
gregos sôbre o homem: provocava-lhes a curiosidade não só o
problema do homem moral, — quer do indivíduo, quer da coleti-
vidade, — mas também a questão do homem religioso. Apesar
de todos êsses esforços, continua a existir um abismo entre os
resultados da "teologia" grega e os dados da Revelação cristã.
Platão e Aristóteles chegaram ao conceito de um Deus trans-
cendente. Mas não conseguiram eliminar por completo o politeís-
mo, questão secundária, ao que parece, para os pensadores gre-
gos, mas que os impedia, de ficarem com uma noção aprofundada
da Divina Providência. (Plato) is not troubled further, any mo-
re than another Greek would be, by the question of polytheism or
manotheism (18c). Ademais, desconheciam o conceito da Cria-
ção: um mundo que recebe a totalidade do Ser da Vontade sobe-
rana de um Deus-Pessoa, sem que nele haja uma necessidade in-
trínseca de criar e sem que haja uma matéria préexistente, —
eis uma noção fecunda em conseqüências graves, que se procura
em vão fora da tradição bíblica . A Criação é exclusivamente cris-
tã. Tous les systèmes anciens, même les plus profonds et les plus
élevés laissaient subsistes un dualisme métaphysique jamais réduit,
un élément de réalité demeurant étranger à la causalité première,
Dieu n'étant cause que de mouvements, d'arrangements, de formes,
et non pas d'être (19). Além disso, as especulações filosóficas pou-
— Os sofistas eram os expoentes do racionalismo e do ceticismo grego (segunda
metade do século V a. C.); ensinavam a "sabedoria e a virtude humanas",
indo de cidade à cidade (seu terreno principal era Atenas), e faziam pagar
suas aulas. Suas doutrinas ousadas impressionavam muito os moços, e eram
combatidas pelos conservadores. Sua atuação constituía a fase crítica do 'pen-
samento grego (superada por Platão e Aristóteles). Os principais sofistas
eram Protágoras de Abdera: ("O homem é a medida de todas as coisas"),
Górgias de Leontini: ("Nada existe; mesmo que existisse uma coisa, seria
incognoscível; mesmo que fôsse cognoscível uma coisa, seria incomunicável"),
e o enciclopedista Hípias de Tida. — As figuras de Cálicles e de Trasímaco
(cf. § 81 II e 8 109 II) talvez sejam ficções literárias de Platão. — Cf.
também § 87 III.
— Segundo Xenophon (Memorebilia, I 1, 9 e 19), Sócrates acreditava na Pro-
vidência divina; cf. também Plato, Apologia Socratis, 40-41 (com certa nota
de agnosticismo).
— W. K. C. Guthrie, The Greeks and Their Gods, London, Methuen & Co,
1954,, pág. 351.
(19) . — A. D. Sertillanges, Le Christiart:sme et Les Philosophies, Paris, Aubier,
1939, I pág. 50.
— 507 —

co repercutiram na vida religiosa da maior parte dos antigos: nao


possuiam os. sábios da Grécia o zêlo dos profetas de Israel em tes.!
temunhar solenemente o Deus uno e vivo, que nos chama imperio-
samente e a cuja chamada devemos nós obedecer incondicionalmen-
te. As massas eram deixadas entregues a um antropomorfismo gros-
seiro, a um fatalismo obsessor, ou então, a uma teurgia desesperada.
Havia um divórcio entre a religião particular dos sábios, o culto
oficial e formalista da cidade, e as crenças e praxes supersticiosas
do povo.

a) Quanto a Platão, tout est dieu ou divin chez ce trop divin


Platon: les Idées ou Formes intelligibles, l'Idée du Bien, l'Idée
du Beau, l'Intellect, l'Âme, .le Monde, les Astres, noite intellect et
notre âme à nous, sans parler (deis) dieux de la mythologie. . .
(20). O Divino Demiurgo ordena e organiza a matéria, tomando
por modêlo a Idéia inteligível, que vive em si e contém em si tô-
das as idéias inteligíveis; o mundo visível é a cópia imperfeita,
embora bela e divina, do mundo inteligível; seu movimento per-
pétuo e circular imita de qualquer maneira a eterna imobilidade
da Idéia Suprema. Levou-o o Amor a organizar o Kósmos, ao
qual procura comunicar, na medida do possível, a sua própria per-
feição. E' o Pastor dos homens, que guarda, cheio de bondade, o
mundo e tudo o que há no mundo. O Amor rege o Universo, e
a essa harmonia universal do Kósmos deve corresponder uma con-
córdia universal entre os homens (20a) . Entretanto, algo escapa
fatalmer.t4 ao contrôle divino: num processo cíclico de constante
repetição, o mundo é movido ora por uma causa externa e divina,
ora por uma fôrça cega, inerente à matéria: a Heimarméne, prin-
cípio de cobiça e desagregação. Deixado entregue às suas próprias
fôrças, estaria prestes a recair no caos informe, se o Demiurgo
não retomasse o leme, infundindo-lhe novamente a ordem e a
imortalidade. Apesar de tantas belas páginas que Platão consa-
grou ao govêrno divino, sua Providência é uma instância precá-
ria, muito diferente da Providência cristã: comove-nos a piedade
platônica, mas decepciona-nos 2 irredutível oposição entre sua
Providência e o Fado, entre a Forma e a Matéria.
/3) O neoplatônico Plotino (204-270 d. C.), distinguindo
entre a Providência e o Fado, e fazendo depender da Divindade,
tanto êste como aquela, granjeou os louvores de Santo Agostinho

(20) . A. Diès, Autour de Pluton, Paris, Beauchesne, 1927, II pág. 555.


(20a). — Plato, Leges, 711 D-E. — No Symposium, 202 D-E, Eros é um dáimon
intermediário entre os deuses e os homens, um vago pressent'mento da ne-
cessidade da Redenção. Cf. Simone Weil, Intuitions Pré-Chrétiennes, Paris,
La Colombe, 1951, e Alfred Noyes, The Unknawn God, London, Sheed 8s
Ward, 1945.
— 508 —

(21). Mas também êle não chegou à idéia cristã da Criação nem
ao Providencialismo cristão: como todos os antigos, é politeísta
(ou panteísta dinâmico?), visto que o yno (a Divindade Supre-
ma), a Mente e a Alma do Mundo são entes divinos: assim como
Deus está além do Ser, assim a matéria, privação absoluta e prin-
cípio do mal, está aquém do Ser; outrossim, a Criação não é livre
ato de Deus, mas um processo necessário de emanações divinas,
em que o Espírito,, atingindo forçosamente o limite final, se trans-
forma em matéria, o Bem no mal, e a Luz nas trevas; e afinal,
Plotino, separando a Providêncià do Uno, coloca-a na Mente Di-
vina, primeira emanação do Uno.
y) Para Aristóteles, Deus é a causa final, não a causa efi-
ciente do mundo. E' o pensamento do pensamento, inteiramente
separado do mundo (22). Se existe um movimento ascendente
do mundo para Deus, não há descida alguma de Deus para o mun-
do, o qual, no pensamento cristão, existe apenas por participar do
ser divino. Pois, se Deus é o absolutamente Separado do mun-
do, o mundo não é separado de Deus (cf. § 68 IIa), e Deus, ao
pensar-se a si próprio, conhece tudo, porque nada possui inteli-
gibilidade a não ser por participar da essência divina. Para o Es-
tagirita, porém, a matéria impensável, princípio do contingente,
do particular, do concreto, — coisas rebeldes a todo e qualquer
conceito abstrato, — não deve sua existência ao Ato Puro que é
Deus, mas é eternamente independente dêle. No seu sistema, o
Kósmos sem. Deus não é menos inconcebível do que Deus sem o
inundo. Le philosophe ne distingue pas entre le nécessaire absolu,
qui est Dieu même, et le nécessaire dérivé, qui est l'ensemble de
la création avec ses grands rouages (23). Por ser a matéria irre-
conciliável com a ordem inteligível que deriva de Deus, o mundo
histórico, que é o terreno do contingente (cf. também § 31 I, nota
2), subtrai-se à Divina Providência . Deus sublunaria rzon curat,
sendo-lhe indiferente a sorte humana. O nosso globo está sujeito
ao Acaso, ou então, a certas leis imanentes.
8) O Providencialismo fica eliminado por completo no sis-
tema de Epicuro, que "explica" o mundo pelo Acaso. Existem
deuses, sim, mas moram lá• nos imensos intermúndios sem se preo-
cuparem do destino humano. As religiões fizeram muito mal à

. — Augustinus, De Civitate Dei, X 14. — Cf. a distinção clássica de Boécio in


De Consolatione Philosophirte, IV, Prosa VI 7: Nam Providencia est ipsa
divina ratio, in summo omnium principe constituta, quae cuncta disponit;
faturn vero inhaerens rebus mobilibus dispositio per quem Providenda suis
quaeque nectit ordinibus.
. — Aristóteles Metaphysica, xo 7. — Cf. A.-J. Festugière, L'Idéal Relidieux
des Grecs et l'Évanãile, Paris, Lecoffre, 1932, págs. 54-58. — Em nossa
rápida exposição devemos simplificar um pouco os problemas; o leitor inte-
ressado poderá encontrar ampla bibliografia e exposição mais sistemática nos
livros citados nas notas dêste capítulo.
. — A.-D. Sertillange, in opere citado, pág. 154.
--- 509 --

humanidade, escravizando-a e tornando-a supersticiosa, cruel e re-


ceosa: tantum religio potuit suadere malorum! (24). O mundo
histórico, resultado do jôgo fortuito dos átomos, é uma burla si-
nistra.
E) Os Estóicos (25), renunciando ao ,Deus transcedente da
Academia (26) e da Escola peripatética (27), identificavam-no
com o mundo e interpretavam os deuses tradicionais de modo ale-
górico (28). O homem é parcela do Todo Divino, e por partici-
par de uma substância divina, tem a possibilidade e até a obriga-
ção de se integrar ná Ordem universal: naturae convenienter vive-
re. A Providência do Pórtico, ora chamada Prónoia, ora Heimar-
méne, ora T3'7che, é, em última análise, o desenvolvimento filosó-
fico, científico e sobretudo ético da Anan.ke e Moira dos tempos
primitivos, e tem só o nome em comum com a Providência cris-
tã. Diz Cícero: Nec vero universo generi hominum solum, seer
etiam singulis a dia immortalibus consuli et provideri solet (29).
Daí um' certo otimismo, embora um tanto artificial e forçado: pois
não se alicerçava numa esperança escatológica nem numa confian-
ça no govêrno justo de um Deus-Pessoa (29a), mas numa concep-
ção monista do mundo, numa moral autônoma e orgulhosa, numa
ascese austera, tornada um fim em si, e numa heróica fôrça J de
vontade que se recusava obstinadamente a reconhecer a realidade
do mal. Distinguia a Estoa entre o "interêsse do Todo" e o "in-
terêsse individual", aceitando com uma resignação admirável a
discrepância entre os dois. Diz Epicteto (30): "Que és tu? Um
homem. Se te consideras como membro separado, é conveniente
à tua natureza viveres até idade avançada, sêres rico e sadio; se
te consideras, porém, como homem e como membro de um Todo,
convém que tu, por causa dêsse Todo, ora adoeças, ora fiques ex-

<24) . — Lucretius, De Rerum Natura, I 110. — Cf. A.-J. Festugière, Épicure et ses
Dieux, Paris, Presses Universitaires, 1946.
. — Os Estóicos contituiam uma escola filosófica, fundada por Zenão e Crisipo
(séculos IV-III a. C.), que professava um materialismo panteísta e tinha
sobretudo preocupações éticas. Por reunir-se no "Pórtico" de Atenas (grego:
stoé), ficou com o nome de "Estoa".
— A Academia é a Escola de Platão: nome de uma chácara, perto de Atenas
e consagrada ao semi-deus Akádemos, comprada pelo filósofo por volta de
387, onde lecionou até o ano da sua morte (347) •
<27) . — A escola peripatética é a de Aristóteles, visto que o mestre costumava dar
aula passeando (grego: peripetéin = "passear") .
— Cf. Cícero, De Natura Deorum, 11 -24, 64. — Daí as etimologias ineptas dos
estóicos que "racionalizavam" os nomes dos deuses tradicionais, por exemplo:
Krónos (= Saturnus) = Chrónos (=- "tempo"); Juppiter = Juvans Peter.
— Cícero, De Natura Deorum, II 65, 164.
(29a). — Cf. Seneca, De Providentia, V 8: Quid est boni viri? Praebere se fato.
Grande solatium est cum universo rapi. Quitiquid est quod nos sic vivere, sic
mori jussit, eadem necessitate et deos alIigat. Irrevocabilis humana pariter
ac divina cursos vehit.
— Epictetus, Dissertationes, II 5, .25. — Epicteto 60-±140 d. \ C. ) era
um liberto, que se converteu ao Pórtico e vivia divulgando e popularizando
a doutrina da escola. Não deixou livro algum, mas seu discípulo Arriano
(também conliecido como historiador das campanhas de Alexandre Magno)
publicou os ensinamentos do mestre, servindo-se de anotações estenográficas.
— 510 —

posto aos perigos de uma navegação, ora suportes a pobreza, e


até morras antes do teu tempo". Mas os Estóicos, nas suas fre-
qüentes discussões com os que negavam a Providência, viam-se
amiúde forçados a fazer esta concessão: Magna di curant, parva
negligunt (31). Estamos longe da palavra do Evangelho: "Até os
próprios cabelos da vossa cabeça estão todos contados" (Mt:, X
30) .
e) O Fatalismo antigo.
A exposição anterior não deixa 'a menor dúvida: na Antigüi-
dade clássica predominava a crença no Destino, no Faturo, ao qual
nem os platônicos conseguiram esquivar-se por completo. Eis uma
das fontes do "pessimismo grego". Les grecs avaient un sentiment
si áccablant de la méchanceté des dieux, de la fatalité qui pousse
non seulement au malheur mais au crime, qu'ils ont voulu, devant
cet océan d'horreur, devant ce monde divin inexplicable, sauver au
moins quelque chose, la seule valeur qui restait à l'homme, sa li-
berte, son sens de l'honneur, sa valeur d'homme enfin (32). O
homem não é mau: maus são os deuses e o Destino, que aguardam
maliciosamente uma oportunidade de arruinar o homem, apro-
veitando-se de um êrro ou mau passo humano, ou então, fazendo-o
perder a juízo (33): nas duas hipóteses, o homem não é compfeta-
mente responsável por seus atos. Para os antigos, — globalmente
falando (34), — o pecado não está radicado na possibilidade trá-
gica de o homem dizer: Non serviam; não consiste em apartar-se
a vontade criada, consciente e livremente, da Vontade Soberana
do Criador; não afeta o núcleo mais íntimo da pessoa humana.
O mal é, por assim dizer, algo de exterior; reside fora do homem,
fora daquilo que lhe constitui o âmago da alma: na matéria caótica
e desagregadora, fatalmente sujeita ao Destino e eternamente re-
belde à influência salutar de Deus; ou .então, reside na vontade
caprichosa e depravada de deuses antropomorfos. Um só momen-
to de irreflexão, um só mau passo basta para perder irremediável-
mente o homem, sujeito que está às condições da matéria.

(31). — Cícero, De Natura Deorum, II 66, 167. — Cf. o adágio jurídico dos romanos:
Mínima non curat praetor.
(32) • — Ch. Moeller, Sagesse grecque et Paradoxo chrétien, Tourna:-Paris, Casterman,
1948, pág. 95.
(33). — E' a cegueira (grego: ate). — Cf. o provérbio latino: Deus quem perdere
vult, prius dementat (cf. Scholia in Sophoclis Antigonen, 620).
<34). — Cf. Ch. Moeller (in opere citato, pág. 93, nota 1): Seul Euripide a entreva
le "video meliora proboque, deteriora sequor" (Ovidius, Meternorphoses, VII
20-21; cf. Rom., VII 21)... Aristote a vu la même chose dans se critique
de la vertu-scIence (de Sócrates, cf. § 75 II). Mais c'est là une vue apore-
dique, restée sans écho. Elle ne va pas au delé, du reste, d'une constatation
de fait, sur la difficulté de suivre "le juste" quand on i'a vu. Il n'y a pas
sentiment de l'impuissance totale à feire le bien. Jamais un grec n'aurait
ima,giné pareille "détréliction" de I'homme... — Cf. também L. Rougier,
Celsa, ou Le Conflit 4e la Civilisation Antique et du Christiardsrne
Paris, Editions du Siècle, 1925, págs. 67-75.
— 511 —

O milagre do humanismo greco-romano está no fato de se


afirmar com ênfase, a despeito dessa mundividência sombria, a
dignidade humana. Os antigos, confiantes no "valor humano" (gre-
go: areté, latim: virtus), não se deixavam possuir de um desespêro
enervante, mas, moderando suas esperanças e circunscrevendo-se
nos limites intransponíveis da existência humana, sustentavam um
ideal francamente humanista, que os habilitava a enfrentar cora-
josamente os contratempos da vida e até a morte. Pôsto que sejam
cruéis os deuses e implacável o Destino, o homem é um raio de
luz. na vasta escuridão do Universo. O homem é superior a essas
fôrças misteriosas sem amor e sem piedade, o homem pode ser "belo
e bom" (kalokagathós, cf. § 92 III a, nota 93). E tudo nos leva a
crer que êsse ideal não era construção especulativa de filósofos e
artistas, mas tinha as suas raízes nos instintos do povo (35). En-
tretanto, o homem é mortal, e ao mortal cabem pensamentos de um
mortal: .é ato de 173',bris ter aspirações sobre-humanas ou absolutas.
Por isso, o "ethos" grego, por mais heróico que seja, é inseparável
de certa moderação (sophrosfrne) e resignação; traz em si uma no-
bre melancolia, não inativa ou inerte, mas varonil e realista; o ho-.
mem grego renuncia deliberadamente à esperança de jamais po-
der atingir o Absoluto; seu equilíbrio não é devido à falta de tensões
psíquicas, mas é o resultado feliz de um intenso esfôrço para criar
um mundo verdadeiramente humano e uma vida que valha a pe-
na de ser vivida (grego: bíos biotós) . E' incompleto o ideal gre-
go, bem o sabemos: faltam-lhe a contrição, a inquietude, a humil-
dade e a esperança, potências humanas que foram despertadas pe-
lo Cristianismo. A Hélade é uma promessa, um preâmbulo, uma
ânsia sincera por um humanismo autêntico e integral; não é o apo-
geu absoluto da história humana, e seu politeísmo não merece as
lágrimas de poetas românticos (35a). A Grécia moldou a cultura
humanista do mundo ocidental, uma cultura que depois seria inspi-
rada e batizada pelo Cristianismo: por isso não podemos evocá-la
sem sentimentos de gratidão e ternura. E o homem técnico e meca-
nizado do século XX pode encontrar, na pátria do humanismo oci-
dental, um poderoso corretivo à uma barbárie civilizada (35b).

(35). — Revela-se a nota de equilíbrio, de moderação e de resignação em quase tôdas


as realizações do gênio grego: na literatura, na arquitetura, na filosofia, nas
artes, nos provérbios, etc. "Nada demasiadamente" e "Conhece-te a ti mesmo"
são as divisas da civilização helênica, principalmente na época clássica.
— Cf. A. de Musset, Prologue de Rolla, o poeta alemão Fr. Von Schiller, Die
Giitter Griechenlends (= "Os Deuses da Grécia"), e muitos outros, que so-
nhavam com "o belo mundo pagão, alegre e inocente". — Cf. também Nietzsche,
§ 109 III.
Cf. os livros interessantes de Sir R. W. Livingstone, Greek Ideais and Mo-
dem Life, London, Oxford University Press, 1944 3 e The Greek Genius and
Ita Meaning to Us, London, Oxford University Press, 19333.
— 512 —

II. O Sentido da História. -


Os antigos não conheciam um fim transcedente da história
(35c). Mesmo para os que acreditavam na imortalidade da alma
(35d), o além-túmulo era concebido de maneira bem diferente
do céu cristão: ou desconheciam a imortalidade da alma indivi-
dual, ou então concebiam o além-túmulo, não como o fim absoluto
e definitivo .da vida terrestre, mas apenas como uma das fases de
um processo cósmico de eterna repetição (35e). E para a grande
maioria, enquanto não duvidasse da sobrevivência ou não a negas-
se (36), a alma de um falecido não passava de uma "sombra" a
levar uma existência obscura e triste no Inferno, e a nutrir sau-
dades impotentes da vida "real" neste mundo (37) . A crença na
imortalidade da alma exercia pouca influência sôbre a moralidade
das massas: estas procuravam garantir a felicidade futura em
iniciações mecânicas, ou numa teurgia ocultista. Por outro lado,
cs antigos não imaginavam um fim' imanente da história: um He-
gel, Marx e Comte são figuras desconhecidas da sabedoria greco-
romana, o que vem confirmar a tese de que êsses filósofos, mau
grado seu, devem muitíssimo ao seu ambiente judeo-cristão.
a) O Progresso.
Os gregos e os romanos nunca sonharam com a perfectibili-
dade progressiva e ilimitada do gênero humano, nem tinham ilusões
a respeito de um futuro paradisíaco que desse sentido universal ao
processo histórico. Sem dúvida, conheciam o progresso das artes
e das ciências, — aliás, um fato bem observável e saliente. Já o
pré-socrático Xenófanes observava: "Ao princípio, nem tôdas as
coisas os deuses ensinaram aos homens; mas pouco a pouco vão
êles descobrindo o melhor" (38). E Sêneca afirma: Veniét tem-
pus quo posteri nostri tam aperta nos nescisse mirentur (39).
— Devemos fazer uma exceção para os persas, que desde os tempos de Zoroastro
(século VI a. C.?) ader'am a um dualismo radical, admitindo a existência de
dois Princípios coeternos e não criados: Ormuzd ou Ahura Mazda (o Bem) e
Ahriman (o Mal). Os dois repartem entre si, não sem tremendas lutas, tôdas
as coisas do Universo, e cada homem tem de optar por um dêles. A história
humana não é nada mais senão a luta sem trégua entre êsses dois Princípios, mas
no fim, o Mal será vencido definitivamente, e será criado um novo Universo
de Luz e Verdade. — Este dualismo absoluto (segundo alguns, uma evolução
posterior da doutrina de Zoroastro) seria adotado, na éra cristã, por várias
seitas gnósticas, principalmente pelos maniqueus (cf. § 76 I a, nota 15).
— Alegamos aqui um só/epitáfio (CIL, VI 11252, 3-5):
Sed mea divina non est itura sub timbras
Ceelestis anima. Afundas me sumpsit et astra.
Corpus habet tellus et sazum nomen inane.
<35e). — Cf. Pinto, Respublica, X 614B-621D; Vergilius, Aeneis, VI 724-751; etc.
— Cf. CIL, VI 26003 (outro epitáfio):
Nihil sumus et fuimus mortales. Respiee factor.
In nihil ab nichilo quem cito recidirnus.
— Diz Aquiles a Ulisses no inferno: "Eu preferiria ser humilde empregado de uma
pessoa sem muitos bens na terra a ter o domínio sôbre todos os mortos no
Hades" (Odyssea, XI 489-491).
— Xenophanes, fragor, 18. — Quanto à evolução biológica, veja Anazimander,
(In Diais, A 30).
— Seneca, Quaestiones Naturales, VII 25, 5.
-513—

Contudo, o Progressismo moderno, que atribui valor absoluto aos


acontecimentos relativos da história, é alheio ao pensamento an-
tigo, o qual era mais fatalista, menos otimista, e frisava, antes de
mais nada, a necessidade
, de ser o homem moderado nas suas as-
pirações. Sófocles canta o poder do homem: "Há muitas maravi-
lhas; nada, porém, é mais maravilhoso do que o • homem" (40).
O homem atravessa os mares, cultiva os campos, domina as feras,
constrói cidades e organiza-se em sociedades. Mas as conquistas
não são ilimitadas: o homem tem de morrer, não podendo escapar
ao Hades inevitável. Outrossim, vai tanto para o mal como para
o bem: o domínio sôbre a natureza não o premune contra a lij',bris,
o pior de todos os pecados.
b) O Mito de Prometeu.
Em Hesíodo (41) lemos o mito de Prometeu, elaborado de-
pois por vários autores, entre os quais pelo dramaturgo Ésquilo
(42) numa das suas trilogias. O mito é significativo, não só da
mentalidade grega, como também de muitos outros tipos de "paga-
nismo". Prometeu, filho de um titã e primo de Zeus, é o amigo
ardiloso e hábil dos homens, ajudando-os na sua luta contínua
contra o regime tirânico do Tonante. Por isso aconselha-lhes que,
ao sacrificarem um boi ao pai celeste, reservem para si as melho-
res partes da vítima e ofereçam a Zeus apenas os ossos, envoltos
em camadas de banha; quando Zeus percebe o lôgro, retira o fogo
aos mortais, mas Prometeu consegue roubá-lo do céu, benefician-
do outra vez a humanidade. O titã possui também o dom divinató-
rio: sabendo que Zeus pretende enviar ao mundo uma mulher,
Pandora, para punição do gênero humano, adverte seu irmão, Epi-
meteu (43), da catástrofe iminente, avisando-o contra todo e qual-
quer presente de Zeus. Mais tarde, sabendo que o Olímpico quer
destruir a humanidade por meio de um dilúvio, exorta seu filho,
Deucalião, a construir uma arca para ficar salvo das águas. Eis
alguns benefícios que a astúcia de Prometeu trouxe aos homens:
alguns dêles são permanentes, e outros frustram, em parte, os si-
nistros planos de Zeus. A interpretação "clássica" do mito não é
uniforme, mas varia, ao que parece, conforme os autores e as épo-
cas; visto que se perderam muitas fontes relativas ao nosso assun-
to, é um tanto precária a reconstrução do seu significado no

— Sophocles, Antigone, 332-375.


— Hesiodus, Theogortie, 508-616; Opera et Dies, 50-105.
(42) . — Alguns filólogos põem em dúvida a autenticidade do drama (por critérios in-
ternos), atribuindo-o a outro dramaturgo mais recente (por volta de 450 a.
C.). — Para o mito de Prometeu na elaboração platônica, cf. Plato, Protegeras,
320C-323D.
(43). — Epimeteu, porém, não obedeceu, mas casou-se com Pandora e gerou Pirra, a
futura espôsa de seu primo Deucalião, filho de Prometeu e da ninfa Clímene
ou Celeno. — O nome "Prometeu" significa: "o que pensa antes", e "Epime-
teu" quer dizer: "o que pensa depois".
— 514 —

mundo grego. Mas podemos dizer com bastante verossimilhança


que o Prometeu "clássico" é muito diferente do Prometeu "român-
tico" (44): não é o eterno revoltado nem o definitivamente eman-
cipado do jugo dos deuses, mas reconcilia-se com o pai celeste,
garantidor da •Ordem Universal, e submete-se às leis razoáveis do
Kósmos. Jamais o homem será deus. Não mostravam os gregos
uma admiração incondicional, — embora muita simpatia, — pela
figura do rebelde Prometeu, nem aprovavam uma concepção "pro-
metéica" da cultura humana. Atrever-se a desafiar a Deus era ato
de 113',bris, e falta de sophrosyne.
Contudo, o mito é significativo por nos revelar certo dualis-
mo no seio da própria divindade, idéia essa que, por mais errônea
que seja, sobrevive nos tempos modernos, e é típica de certo "pa-
ganismo". O pagão de uma cultura primitiva esforça-se por pro-
curar meios para conjurar o Destino ou os caprichos dos deuses,
mediante a magia, e para saber o futuro, mediante oráculos e ho-
róscopos. O pagão de uma civilização adiantada tem a esperança
de poder eliminar o Grande Mistério e de se tornar senhor absoluto
do seu destino, mediante o estudo metódico das leis imanentes do
mundo. Segundo muitas mitologias, o homem estaria envolvido
numa luta desesperada e sem trégua contra Deus, furtando-lhe
ardilosamente os segredos e forçando-o imperiosamente a obedecer
aos esquemas humanos. Luta desigual e, na realidade, inexistente!
O homem não é parceiro de Deus, sendo absurda uma competição
entre o Criador e a criatura. Tôdas as conquistas do homem são
"humanas", isto é, devem sua existência a Uma investigação autô-
noma da natureza (não idêntica à divindade!) pelo homem, e são
igualmente "criaturas", isto é, não poderiam realizar-se sem o ato
criador de Deus, do qual dependem tôdas as coisas extra-divinas,
— também a cultura humana, — na sua essência e na sua exis-
tência. E tôdas as conquistas humanas têm por fim derradeiro a
glorificação de Deus mediante a perfeição das suas criaturas. A
majestade divina não admite nenhum deus competidor, e não
se avilta a ponto de ter ciumes das obras realizadas por suas cria-
turas: o plano divino é incomensurável com os planos humanos.
Separar em Deus o Amor do Poder, é um conceito inaceitável pa-
ra o cristão: o Deus único é o Transcendente, o Todo-Poderoso, o
livre Criador do mundo e, ao mesmo tempo, o Onipresente, o Amor
que rege intimamente tôdas as coisas. O cristão não vê um tirano
em Deus, mas o adora como o tremendo Onipotente e o venera co-
mo o inefável mistério de Amor. Por afirmar com igual ênfase o
amor poderoso e o poder amoroso em Deus, — muito embora a

(44) . — Prometeu tornou-se figura predileta da época do Romantismo: Goethe (balada),


Shelley (Prometheus Unbound, 1820), e Beethoven (Die Geschdpfe des Pro-
rnetheus, 1801) .
— 515 --

realidade divina seja incompreensível para nossa inteligência, —


o Cristianismo rejeita resolutamente urna dialética "prometéica"
entre Deus e o mundo. O sublime paradoxo cristão é a combina-
ção de temor piedoso e de amor confiante. Não obstante, a cren-
ça mitológica subsiste ainda em alguns meios modernos gire têm
a ilusão de se poder emancipar da "tirania" de Deus pelas ciên-
cias e pela técnica. L'erreur de Pesprit mythologique est de croire
que, sous les coups de la science, dast Pimage de Dieu qui s'écroule,
alors que ce sont uniquement ses caricatures (45).
A Teoria da Degeneração.
Os antigos não tinham ilusões futuristas, mas sonhavam com
um Paraíso Terrestre, no comêço da história. Um lugar comum
da poesia clássica, principalmente da latina, era a crença na cons-
tante deterioração da humanidade (46). Cantava Horácio:
Damnosa quid non imminuit dies?
Aetas parentum, pejor avis, tulit
Nos nequiores, mox daturos
Progeniem vitiosiorem (47).
A idéia remonta, em última ánálise, a Hesíodo que distingui-
ra entre cinco gerações de homens ou idades do mundo, a mostra-
rem um processo quase ininterrupto de corrupção progressiva (48).
Na idade de ouro, ou de Saturno (= grego: "Krónos"), os ho-
mens, justos e piedosos, não precisavam trabalhar, visto que a ter-
ra tud9 produzia espontâneamente: reinava a paz universal. Na
idade de prata, os mortais se revoltavam contra os deuses. A épo-
ca de bronze era um período de guerras contínuas entre os homens.
Na idade "heróica", um breve intervalo de recuperação relativa,
os Aquiles e os Adrastos marchavam contra Tebas e Tróia. A
quinta, a de ferro, é a pior de tôdas: o poeta lamenta estar con-
denado a viver neste período, em que não há respeito pelos direi-
tos humanos nem piedade para com os deuses. A essa visão pessi-
mista da história o poeta acrescenta o mito de Pandora, a Eva da
mitologia grega: tôdas as boas dádivas, com que enriqueceram os
deuses a primeira mulher, foram-se esvaecendo, ao abrir-se a cai-
xa, exceto a Esperança, a qual, no pensamento de• Hesíodo, é mais
um mal do que um bem: a Ilusão (49).
Os Ciclos históricos.
Entretanto, a lei da constante corrupção de per si não dava a
derradeira explicação do processo histórico: fazia parte de uma
— P. Rostenne, La Foi des Athées, Paris, Plon, 1953, pág. 83; Cf. Paul Ricoeur,
Histoire et Verité, Paris, Éditions du Seuil, págs. 86-87.
— Por exemplo, Ovidius, Metemorphoses, I 89-150 (4 períodos); Aratus, Pheeno-
mena, (3 períodos); Tibuilus, Elegiae, I 3, 35-50 (2 períodos).
— Horatius, Carmina, In 6, 33-36.
— Hesiodus, Opera et Dies, 109-196.
— Ibidem, 50-105.
— 516 --

lei mais ampla, a lei do movimento circular de geração e corrup-


ção. Ao cabo de certo número de anos perecerá êste mundo, mas
nascerá outro, que será uma cópia mais ou menos exata dêste; ter-
minado o segundo, iniciar-se-á o terceiro, e assim por diante, usque
in infinitum. Repete-se a história a todo o transe. Esta teoria,
que nos parece tão estranha, tão esquisita, -não se limita ao perío-
do do declínio da cultura antiga, mas se nos apresenta também
no apogeu do seu poder criador, e manteve-se em vida até o fim
da Antigüidade. Aliás encontrâmo-la também em numerosas ou-
tras civilizações (50). Já Hesíodo (51) se refere a ela, e muitos, qua-
se todos os filósofos da Antigüidade clássica, lhe deram sua adesão,
adaptando-a, de uma ou de outra maneira, ao seu sistema: os pré-
socráticos, Platão, Aristóteles, os pitagóricos, os estóicos, os epi-
curistas, os neoplatônicos, etc. A teoria, que admitia vários mati-
zes individuais, impossíveis de expor aqui, encontrâmo-la, na sua
forma mais radical, entre os pitagóricos e os estóicos . Segundo
aquêles, diz Eudemo: "Eu vos narrarei a mesma história com o
mesmo bastão na mão, e vós estareis sentados, como estais agora,
e tôdas as coisas se verificarão do mesmo modo" (52). E os Es-
tóicds: "Haverá outra vez um Sócrates e um Platão como também
cada um dos homens que com êles viveram, e os mesmos amigos
e concidadãos. Todos êles terão as mesmas experiências..., e
isso acontecerá não só uma vez, mas muitas vêzes, ou melhor: ês-
se processo de repetição não terá fim" (53) .
Chamava-se Magnus Annus (grego: "téleos eniautós")"o pe-
ríodo multimilenário da duração de um mundo, em cujo inverno
devia ocorrer uni dilúvio e em cujo verão devia realizar-se uma
conflagração mundial. Ao nascer um' novo mundo, todos os as-
tros deviam ocupar a mesma posição que ocuparam ao iniciar-se o
primeiro mundo, ou então, — na hipótese de ser eterno o mundo,
— ao iniciarem todos os mundos anteriores. Por meio de obser-
vações astronômicas, alguns se julgavam capazes de calcular a. du-
ração de tal Magnus Annus, mas os resultados dêsses cálculos eram
muito divergentes: uns acreditavam em períodos de 10.000 anos
solares, outros em períodos de 12.000, 15.000, 18.000, ou muito mais
anos ainda.
A lei do Eterno Retôrno pressupõe a existência de um mundo
eterno, — ou, pelo menos, de uma matéria eterna, — mas visto
que êste mundo não é inalterável, torna a ocupar, peribdicamente, a
mesma posição. Para o pensamento grego, o mundo, — ou uma

(50) • — Por exemplo, na China, na Mesopotêmia, na índia, etc. — Cf. Paul Duhem,
Le Sysferne do Monde, Paris, 1913, Vols. I-II.
— Hesiodus, Opera et Dies, 174-175: "Oxalá, não pertencesse eu a esta geração,
mas tivesse morrido antes ou nascido depois!"
— Eudemus, fragm. 51 (in Fragm. Philasophorom Graecorum, ed. Mullachius,
III pág. 250; cf. C. J. de Vogel, Greek Philosophy, Leiden, 1950, I pág. 11).
— Nemesius, De Nature Honainis, 38.
— 517 —

matéria, cuja existência é independente de Deus, — é tão neces-


sário como o próprio Deus: os antigos não tinham uma idéia acer-
tada da contingência por não possuírem uma noção aprofundada
da Criação; destarte não viam que só em Deus, o Ipsum. Esse, a
existência coincide absolutamente com a essência. Não precisa-
mos insistir em que a crença em ciclos históricos de natureza cós-
mica não podia resultar numa "filosofia da história": para os an-
tigos, a própria sucessão no tempo torna-se um conceito relativo,
e até enganador, visto que seu movimento progressivo é simultâ-
neamente um movimento retrógrado, quer dizer, ao ponto de par-
tida. Diz Aristóteles que a questão de saber se somos posteriores
ou anteriores à guerra troiana tem pouco cabimento, já que todos
os acontecimentos se efetuam num eterno ciclo de repetição (54).
A Missão de Roma.
Segundo alguns, a missão civilizadora de Roma, tema predileto
de 'tantos poetas, retores e historiadores (55), teria sido um dos
elementos que contribuiram para os antigos irem procurar o "sentido
da história". A Pax Romana, — como hoje em dia, a Pax Americana,
ou a Pax Russica, — teria sido concebida como a gloriosa época
final da história, que pudesse dar sentido ao processo histórico.
Acreditamos nós que tal opinião é um anacronismo, não abonado
pelos textos. Apesár de tôda a veneração que os romanos tinham
pela Urbs Aeterna (56), não tinham visões apocalípticas, compará-
veis às de alguns profetas modernos. No fundo, os panegiristas de
Roma esperavam a volta periódica da idade do Saturno (nos fins
da República e nos tempos de Augusto, por exemplo Vergílio e
Horácio), ou idealizavam os benefícios do Império Romano o qual
viam ameaçado pelas ondas invasoras de bárbáros (durante a Gran-
de Migração dos Povos, por exemplo Rutílio Namaciano e Clau-
diano), ou então, eram cristãos e acreditavam que a missão histó-
rica de Roma consistia em preparar o caminho para a chegada do
Reino Universal de Cristo (por exemplo, Ambrósio e Prudêncio) .
Só neste último caso, poderíamos falar num significado definitivo
do processo histórico.
A Visão Cósmica da Histórica.
Os antigos viam no processo histórico um fenômeno cósmico.
Assim como o Kásmos apresenta lei de um eterno nascimento,
crescimento e morte, assim dévia também a história estar sujeita
à lei do Eterno Retôrno. Tal como outra Fênix (56a), o mundo
— Aristoteles, Problemeta, XVII 3.
— Lembramos aqui apenas as célebres palavras de Vergílio: Excudent alii spi-
rezaria mollius aere. etc. (Aeneis, VI 847-853).
— A expressão encontra-se, pela primeira vez, em Tibullus, Elegiae, 5, 23-24.
(56a). — Para a lendária Fênix, veja Herodotus, Histories, II 73; Ovidius, 1;feramorphoses,
XV 392-407; Tacitus, Aluirdes, VI 28; etc. Os astrólogos relacionavam o re-
nascimento periódico dessa ave com o Magnas Annus.
— 518 —

morto devia renascer das suas próprias cinzas. Numerosós mitos,


de origem diferente, mas de tendência semelhante, exprimem essa
atitude do homem antigo ante seu destino, — outra fonte de pes-
simismo! A religiosidade greco-romana conhecia vários "salvado-
res": Dioniso, Orfeu, Osíris, Mitra, etc., mas todos êles são figu-
ras vinculadas, presas que estão ao próprio processo cíclico da
natureza. Daí lhes ser comum a todos êles uma nota de profunda
, melancolia. Desconheciam os antigos a alegria dos filhos de Deus,
porque nada sabiam de uma salvação fora dos ciclos cósmicos.
Assim compreendemos a amarga sentença do poeta Teógnis: "O
melhor para o homem é não ter' nascido e não enxergar os raios
do sol; depois disso, atravessar quanto antes o limiar do Hades e
jazer no túmulo" (57); assim podemos situar o tom pessimista de
inúmeros autores clássicos desde Homero até o fim da Antigüida-
de. O maior grau de piedade, acessível a um pagão, era dissolver-
se resignadamente no Pan, no Tudo incompreensível, constituído
pela Natureza, da qual o Bem e o Mal faziam parte integrante, do
mesmo modo que o dia é inconcebível sem a noite, e a vida sem
a morte. Vivendo sem esperança num fim escatológico definitivo,
mas não como desesperados; lutando heròicamente contra o Des-
tino, mas não como revoltados, quiseram salvar a dignidade ', hu-
mana, isentando o homem do mal ubíquo no Universo. Inegável-
mente tem algo de grandeza impressionante o ideal antigo, mas a
atitude um tanto forçada devia resultar amiúde num taedium
vitae, confessado francamente por Sêneca: Omnia sic transeunt
ut revertantur. Nihil novi Meio, nihil novi video: fit aliquando et
hujus rei nausea. Multi sunt qui non acerbum judicent vivere, sed
supervacaneum (58).
Concluamos êste parágrafo com a interpretação simbólica, não
filológica, de uma fábula transmitida por Plutarco (59) . Diz o
autor que, sob o reinado do Imperador Tibério, certo Tamus, ca-
pitão de um navio egípcio, navegava ao longo da costa da Grécia.
De repente ouviu, em presença de muitos navegantes, o grito mis-
terioso: "O' Tamus, ó Tamus, morreu o Grande Pan!" e recebeu
a ordem categórica de comunicar a infausta notícia a certo pro-
montório. Obedecendo à voz sobrenatural, Tamus levou a infor-
mação ao lugar indicado, e aí pôde ouvir, como todos os seus com-
panheiros, as lamentações dolorosas de muitas pessoas que, no con-
tinente, choravam a morte do grande Pan. Tornou-se tão conhe-
cido o fato que o próprio Imperador o soube e fêz questão de rece-
ber pessoalmente o capitão a fim de investigar quem era Pan
de quem falara a voz. Os cristãos interpretaram o conto como

(57) . Theognis, Elegiee, 425-428. — Cf. Sophocles, Oedipus Coloneus, 1225-1227.


(58). — Seneca, Epistolas ad Lucilium, XXIV 26.
(59) . — Plutarchus, De Detecte Oreculoruzn, XVII.
— 519 —

uma referência à morte de Jesus, como uma espécie de revelação


sobrenatural do Drama do Calvário aos pagãos. Tal opinião está
hoje abandonada. Entretanto, a lenda Possui grande valor simbó-
lico. Com a morte de Jesus, morreu, de fato, "Pan", o Universo
etérno e divino do paganismo, e ficou salvo o homem dos vínculos
do Kósmos. Cristo quebrou o encanto dos ciclos históricos, natu-
ralizando a natureza, humanizando o homem, e divinizando a
Deus. Poderíamos acrescentar: dando sentido e importância aos
acontecimentos particulares da história". "Morreu o Grande Pan!"
Sua morte é o ponto de partida de um novo humanismo e de uma
gloriosa liberdade (59a) .

§ 74. A visão da Bíblia.

O lugar, ocupado pelos judeus entre os povos antigos, era


insignificante: medíocres nos parecem suas realizações culturais,
comparadas com as de Hélade, e pouco extensas e duradouras suas
conquistas territoriais, confrontadas com as de Roma. Entretanto,
possuíam um privilégio de sumo valor no setor religioso: a noção
de um único Deus transcendente, livre Criador do mundo e Se-
nhor absolutO da história.
I. O Velho Testamento.
a) O Deus de Israel.
Quando Deus apareceu a Moisés numa sarça que ardia, dis-
se-lhe: "Eu sou o que sou... Assim dirás aos filhos de Israel:
Aquêle que é, enviou-me a vós" (60) . Estas palavras contêm 'os
germes de uma nova metafísica (61): "ser" é o nome próprio de
Deus, isto é, Deus é o único Ser a existir necessàriamente e por si;
tôdas as coisas extradivinas poderiam não existir, e devem sua
existência exclusivamente ao ato criador de Deus. Tal conceito
de um Deus transcendente: "excelso sôbre tôdas as nações e cuja
glória está acima dos céus" (Salmo, CXII 4), exclui forçosamen-

(59a). — O conto de Plutarco foi recentemente tratado também por Ernesto Grassi tTn
"Diálogo" I 1, págs. 9-12) e interpretado como a "morte do mito". Mas, para
êste "phil ó-mythos", a morte de Pan não é uma libertação gloriosa, e sim um
acontec'mento desa stroso.
(60) . — Êxodo, III 14. — A palavra hebraica é "Jahvé", menos corretamente "Je-
hová". Aos judeus era proibido pronunciar êsse nome sagrado de Deus; por
isso usavam o têrmo "Adonai" (= meu Senhor"). — Os filósofos gregos fa-
lam repetidamente em "to on" (= "aquilo que é"), e não em "ho ôn" (=
"aquêle que é"), não chegando a atribuir a Deus a personalidade, ou, pelo
menos, muito raras vêzes, e sem repercussão observável na sua atitude re-
ligiosa.
(61). — A conclusão metafísica foi tirada por numerosos Padres da Igreja, dos quais
citamos aqui S. Augustinus (Enarratio in Psalmum CXXXIV 4): Sublatis
de medio omnibus quibus appeilari possit et dici Deus,. Ipsum Esse se vacar!
respondit; et tamquam hoc esset ei nomen: "Hoc dices eis", inquit: "Qui est,
misit me". /ta enim ille est, ut in ejus comparatione ea, quae lacta sunt, non
sint. Illo non comparai°, sunt, quoniam ab illo sunt; llli comperata, non sunt,
quis verem esse incommutabile est, quod ate solus est.
--- 520 —

te uma interpretação panteísta ou politeísta (62): "Ouve, ó Israel,


o Senhor nosso Deus é o único Senhor" (Deut., VI 4). Jahvé
não é deus nacional, mas o Deus universal de todos os povos e de
todos os reis, quer o reconheçam ou não. Serve-se dêles para rea-
lizar os seus planos inabaláveis: a uns eleva e ergue, a outros que-
bra e destrói, que todos estão "na mão do oleiro" (Jeremias, XVIII
5).'este mundo teve seu início absoluto e terá seu têrmo absoluto:
"No princípio criou Deus o céu e a terra" (63), e: "No princípio,
Senhòr, fundaste a terra, e os céus são obras das tuas mãos. Êles
perecerão, mas tu permanecerás... Tu, porém, és sempre o mes-
mo" (Salmo, CI 26-28).
b) O Homem.
Diz a Bíblia: "E criou Deus o homem à sua imagem; criou-o
à imagem de Deus, e criou-os varão e fêmea. E Deus os aben-
çoou, e disse: Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra,. e sujei-
tai-a" (Gên., I 27-28). O Deus Todo-Poderoso da Bíblia não tem
os ciúmes mesquinhos do Zeus da mitologia grega: concede, de
livre e soberana vontade; ao homem o domínio sôbre a terra, in-
cumbindo-o, desde o início, de uma Missão cultural. Ao exercer
essas atividades, o homem faz uma obra aprazível a Deus. Se
Jahvé pode ser chamado um Deus zeloso, é que não tolera outros
deuses diante de si: nem as obras das mãos divinas, nem os pro-
dutos das diversas atividades humanas (Êx., XX 3-5). Neste
ponto, é intransigente.
Considerando a grandeza do homem, o Salmista exclama:
"Que é o homem para te lembrares dêle? Ou que é o filho do ho-
mem para o visitares? Tu o fizeste pouco inferior aos anjos; de
glória e de honra o coroaste, e lhe deste o mando sôbre as obras
das tuas mãos" (Salmo, VIII 5-7). O homem é o rei da criação,
encarregado por Deus de dominar a terra, a qual perdeu seu falso
encanto de ente divino, ficando reduzida à sua verdadeira posi-
ção: à de ser obra de Deus. Se o conceito do "trágico" envolve
grandeza e culpa da parte do herói, a Queda do primeiro homem
é a maior de tôdas as tragédias, prima malorum causa; despojou
o homem dos seus privilégios, afastou-o de Deus, e acarretou-lhe
conflitos internos e externos. Disse Deus a Adão: "A terra será
maldita por tua causa; tirarás dela o sustento com trabalhos pe-
nosos todos os dias da tua vida. Ela te produzirá espinhos e abro-
lhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o pão com o suor dc
teu rosto, até que voltes à terra de que fôste tomado; porque tu
és pó, e em pó te hás de tornar" (Gên., III 17-19). O homem
— Na prática, porém, o monoteísmo dos hebreus era sempre ameaçado pelo
politeísmo dos povos vizinhos. Também é problemático até que ponto o povo
era monoteísta convicto e não aderia a uma espécie de henoteísmo.
— Gênesis, I 1 (cf. § 68 II, nota 10) . — Cf. também Salmo, CM e Jó,
— 521 —

caído, spoliatus gratuitis, vulneratus in naturalibus (64), é um rei:


destronado, e o mundo histórico torna-se trágico.
c) A Aliança de Deus com o seu Povo.
Mas Deus, apiedando-se da lastimável condição do homem
caído, fêz uma aliança com o patriarca Abraão (65), à qual Israel,.
o povo eleito, devia seu lugar excepcional entre todos' os povos da
Antigüidade, aliança essa tão estreita que Jahvé pôde dizer a Moi-.
sés: "O Senhor Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus
de Isac, e o Deus de Jacó: êste é o meu . nome por tôda a eterni-
dade, e com êste nome serei recordado de geração em geração
(Êx., III 15; cf. Atos, III 32) . E Abraão, o pai do povo eleito, re-
cebeu esta promessa de Deus: "Eu te abençoarei, e multiplicarei
a tua estirpe como as estrêlas do céu, e como a areia que há sô-
bre a praia do mar; a tua descendência possuirá as portas de seus.
inimigos, e na tua descendência serão benditas tôdas as nações da
terra" (Gên., XXII 17-18) . A aliança foi várias vêzes renovada,
por exemplo nos tempos de Moisés: "Por isso dize aos filhos de.
Israel: Eu sou o Senhor, que vos tirarei de sob o jugo dos egípcios,
e vos livrarei da escravidão... e vos tomarei por meu povo, e se-
rei o vosso Deus, e sabereis que eu sou o Senhor vosso Deus"
(Éx., VI 6-7) .
Em virtude dessa aliança, ratificada a uma voz pelo povo de
Israel (Êx., XXIV 3), a história dos judeus tornou-se uma escola
de pedagogia divina. Da fidelidade dos israelitas à palavra dada
dependia a sorte não só dos indivíduos, mas também a da coletivi-
dade (Êx., XX 5-6) . Sendo fiel, o povo podia contar com a pro-
teção divina, a manifestar-se em prosperidade, vitórias e paz; apos-
tatando de Jahvé, era castigado e humilhado perante os seus ini-
migos. E' êsse o leitmotiv dos historiadores bíblicos. Dos nume-
rosos exemplos que poderíamos alegar, citamos apenas um episó-
dio do reinado de Roboão, filho de Salomão: a êle se dirige o pro-
feta Semeias com estas palavras: "Eis o que diz o Senhor: Vós
desamparastes-me, e eu vos desampararei também nas mãos de
Sesac. E, consternados, os príncipes de Israel e o rei disseram:
O Senhor é justo. E vendo o Senhor que se tinham humilhado, fa-
lou a Semeias, dizendo: Visto que êles se humilharam, não os
perderei, mas dar-lhes-ei algum auxílio, e não farei cair o meu fu-
ror sôbre Jerusalém por mão de Sesac" (Paralip., II 12, 5-7).

— O pecado original consiste, formaliter, na privação culpável dos nossos bens


sobrenaturais e preternaturais; materialiter, na desordem das nossas faculda-
des (= concupiscência). Mas, diz o adágio escolástico: naturalia manserunt
integra; o hipotético homem "natural" difere do homem caído sicut nudus a-
spoliato. — Os protestantes e os jansenistas dão uma interpretação muito
mais pessimista do pecado original, identificando-o com a concupiscência; visto
que ela subsiste no homem batizado, o pecado não nos é perdoado pelo batismo.
— A essa aliança já precedera uma aliança "cósmica", feita com Noé e simboli-
zada pelo arco-íris (Gênesis, IX 8-17).
— 522 —

Mas além dessa lei de retribuição, aplicada pelos historiado-


res aos acontecimentos contemporâneos bem como aos do passado,
percebemos outras vozes. O autor anônimo do maravilhoso livro
de Jó reconhece que a criatura não pode arrogar-se o direito de
entrar nos segredos insondáveis de Deus: "Por isso confesso que
falei nèsciamente, e sôbre coisas que ultrapassam sobremaneira a
minha ciência" (Jó, XLII 3). O autor é pensador arrojado, e não
pode conformar-se com a explicação simplista, dada por seus coe=
tâneos à distribuição do mal e do bem neste mundo. Apesar de
ainda andar no vislumbre do Velho Testamento, anela pela pleni-
tude da Revelação: "O', se Deus me revivificasse d'epois da mi-
nha morte, ficaria esperando todos os dias da minha vida que che-
gasse a minha mudança!" (J6, XIV 14). Mas o autor não avista
os horizontes resplandecentes de um além-túmulo, onde os sofre-
dores justos dêste mundo serão recompensados: acredita num som-
brio inferno, Xeól, igual para todos, sejam justos, sejam injustos .

(66), e a verdadeira vida humana limita-se à terra. Mas como ex-


plicar, então, o sofrirpento do justo? Jó ensina-nos a aceitar o so-
frimento como um mistério inescrutável, como o procedimento so-
berano de um Deus transcendente (67), o qual devemos aceitar
com respeito religioso, assim como devemos aceitar a felicidade .com
sentimentos de gratidão. Por mais incompleta que seja essa respos-
ta, constitui um grande progresso sôbre a idéia primitiva e antro-
pomorfa da retribuição. O problema do mal, insolúvel para a inte-
ligência humana, era mais obscuro ainda para os pensadores do Ve-
lho Testamento, que ignoravam o destino transcendente do homem.
E o Eclesiastes, "o primeiro existencialista da literatura mundial".
é torturado pelo mesmo enigma, vendo com espanto que "o bom é
tratado com o pecador, o perjuro como aquêle que jura a verdade"
(Ecl., IX 2) .
Os profetas salientam o caráter pedagógico das provações a
que está sujeito o povo eleito, frisando, ao mesmo 'tempo, que Deus
é misericordioso e paciente. A obediência à lei divina não consiste
em oferecer holocaustos, mas em ter o coração compungido (Sal-
mos, XLIX .e L; cf. Amós, V 22-24; Oséias, VI 6; etc.): é mais do
que um culto escrupuloso e formalista a Jahvé, é o cumprimento
fiel da sua lei moral. A moralidade interior (cf. Deut., VI 5), em-
bora sempre ameaçada por um formalismo exterior, é inseparável
da religião que o Deus de Israel ensinou ao seu povo.

. — Ao lado dessas idéias pessimistas sôbre o Xeól, onde redire quemquarn neéant,
percebemos, no decurso dos séculos também vozes mais esperançosas, por
exemplo nos Salmos, XLIX e LXXIII .
. — Cf. Jó, XXXVIII-XXXIX, e São Paulo, Rom, IX 20: "O' homem, quem
és tu, para replicares a Deus? Porventura o vaso de barro diz a quem o fêz:
Por que me fizeste assim?"
— 523 —

d) O Messianismo.
Jahvé protegia visivelmente seu povo eleito, quando o liberta
va do jugo egípcio e o apossava na terra de Canaã. Nesses fatos
históricos, que demonstram bem o poder do Deus de Israel, basea-
va-se a esperança dos judeus. Deus é fiel à palavra dada e, apesar
de todos os pecados de chefes e populares, há de realizar seus pla-
nos mediante o povo eleito. Haverá uma constante redução de
fiéis, mas sempre subsistirá um resto, do qual Deus se servirá, ao ,
manifestar-se ao mundo para o bem da humanidade inteira . "O
resto que ainda subsiste" (cf. IV Reis, XIX 4) há de ver nascer
no seu meio o Messias, que um dia proferirá sua terrível sentença
contra os gentios, fazendo plenamente justiça a seu povo. Então
se iniciará a gloriosa época de Israel, o reino messiânico, a última
fase da história humana: "O lobo e o cordeiro pastarão juntos, o
leão e o boi comerão palha; e o pó será para a serpente o seu ali-
mento. Não haverá quem faça mal, nem cause mortes em todo o
meu santo nome, diz o Senhor" (Isaías, LV 25). Então Jahvé
esmagará os maus, e glorificará os bons, pois a salvação não se li-
mitará ao sangue de Abraão: "E acontecerá que todo o que invo-
car o nome do Senhor será salvo; porque a salvação se achará, como
o Senhor disse, sôbre o monte Sião e em Jerusalém, e entre os res-
tos que o Senhor tiver chamado" (Joel, II 32). O reino messiâni-
co, — não uma repetição de um movimento circular, imanente ao
Kósmos, mas uma inovação completamente original, devida à von-
tade soberana de um Deus transcendente, fiel à sua palavra, —
eis o sentido da história. Daí a esperança firme dos judeus na vinda
do Messias, a crescer continuamente, apesar de êles viverem num
período de decadência política e de humilhação perante os seus ini-
migos. "Oxalá romperas tu os céus e desceras de lá! (Isaías,
LXIV 1).
O messianismo dos judeus tem uma longa história, durante
a qual se vai precisando a promessa divina: aqui podemos assina-
lar apenas alguns dos seus pontos culminantes. Vê-se a primeira
alusão ao Messias nas palavras do chamado "Proto-Evangelho"
(Gên., III 15): "Porei inimizades entre ti (a serpente) e a mu-
lher, e entre a tua posteridade e a posteridade dela. Ela (68) te
pisará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar". Anun-
cia-se aqui, embora em têrmos vagos, a vitória definitiva do bem
sôbre o mal, e a salvação prometida tem Caráter universal. Quan-
do Abraão não hesita em sacrificar seu filho Isac a Jahvé, êste
lhe renova as promessas, já feitas anteriormente, dizendo: "Por
mim jurei, diz o Senhor: porque fizeste tal coisa, e não perdoaste
a teu filho único por amor de mim, eu te abençoarei e multipli--

(68). — Cf. § 44 II, c, nota 12.


— 524 —

carei a tua estirpe... e na tua descendência serão benditas tôdas


as nações da terra, porque obedeceste à minha voz" (Gên., XXII
16-18). A salvação prometida continua a ser universal, mas ao
povo eleito, e particularmente à tribo de Judá (Gên., XLIX 10),
caberá um papel de destaque na execução dos planos divinos. Es-
ta eleição envolve graves obrigações para o povo, como diz Deus,
nos tempos de Moisés: "Eis que eu ponho hoje diante dos vossos
olhos a bênção e a maldição; a bênção, se obedecerdes aos manda-
mentos do Senhor vosso Deus, que eu hoje vos prescrevo; a mal-
dição, se não obedecerdes aos mandamentos do Senhor vosso Deus,
mas vos apartardes do caminho que eu hoje vos mostro, e fordes
após os deuses estranhos, que não conheceis" (Deut., XI 26-28).
Com a consolidação do povo israelita, as esperanças messiânicas
vão-se revestindo de caracteres particularistas e até materialistas:
o povo eleito será o grande beneficiado pela salvação, e tôdas as
outras nações servirão Israel. A divisão das doze tribos, a deca-
dência política, as guerras externas, o cativeiro de Babilônia e as
perseguições religiosas não conseguem destruir . o messianismo do
povo humilhado: pelo contrário, continua êste a esperar a salva-
ção contra tôdas as aparências, num porvir cada vez mais próxi-
mo, e as esperanças vão-se casando com rancores contra os "gen-
tios", dos quais se vingará um dia o glorioso Rei de Israel. Em vão
protestam os profetas contra a profanação do messianismo, salien-
tando o caráter espiritual e universal da salvação, e exortando o
povo a converter-se a Deus. O novo Rei de Israel será um Prín-
cipe de paz e justiça, seu reino abrangerá o mundo inteiro, e seu
povo será humilde e piedoso; nem todos os que são da descendên-
cia de Abraão serão salvos: "Então eu darei aos povos lábios pu-
ros, para que todos invoquem o nome do Senhor, e se submetam
ao seu jugo num mesmo' espírito... Naquele dia, ó Jerusalém...,
exterminarei do meio de ti aquêles que, com as suas palavras faus-
tosas, excitavam a tua soberba, e tu, para o futuro, não te orgulha-
rás mais por possuires o meu santo monte de Sião. E deixarei no
meio de ti um povo pobre e humilde; e êles esperarão no nome
do Senhor"' (Sof., III 9-12) . O nacionalismo inveterado e o ma-
terialismo enraigado eram grandes obstáculos para os judeus acei-
tarem tais advertências, e ainda nos tempos de Jesus subsistia o
messianismo terrestre. Perguntaram-lhe, no dia da sua Ascenção,
os discípulos: "Senhor, porventura chegou o tempo em que resta-
belecereis o reino de Israel?" (Atos, 1 6). E, uns quarenta anos
depois, Flávio Josefo chegou a tal ponto de adulação que conside-
rou o Imperador Vespasiano como o Messias do povo judeu (69).

(69) Flavius Josephus, Bellum Judeicum, VI 5,4.


— 525 —

O messianismo é o traço mais saliente da visão da história


no Velho Testamento: ao passo que os outros povos tinham sau-
dades de uma idade de ouro, a renovar-se periõdicamente, os ju-
deus tinham os olhares esperançosamente dirigidos para o futuro.
Ou, para usarmos um têrmo moderno, tinham uma visão escato-
lógica do procesSo histórico.
e) O Livro da Sabedoria.
No limiar do Novo Testamento acha-se o Livro da Sabedo-
ria, escrito em grego na Alexandria dos Ptolomeus, o último livro
do cânon do Velho Testamento (século I). Segundo o autor anô-
nimo, a Sabedoria "é uma exalação do poder de Deus, e uma co-
mo emanação da claridade de Deus onipotente, e por isso não se
pode encontrar nela a menor impureza, porque ela é o clarão da
luz eterna, e o espêlho sem mácula da majestade de Deus, e a
imagem da sua bondade. E, sendo uma só, pode tudo; e, perma-
necendo em si mesma, renova tôdas as coisas, e, através das gera-
ções, transfunde-se nas almas santas, e forma os amigos de Deus
os profetas" (Sab., VII 25-27). Foi ela que criou o mundo, foi
ela que guiou o povo eleito; foi ela que "formou o homem... a
fim de que tivesse o domínio sôbre as criaturas... e governasse
mundo cofn equidade e justiça" (Ibidem, IX 2-3); ela é a con-
selheira de Deus e a diretriz das suas obras; nos capítulos IX-XIX
encontramos o primeiro esbôço de uma teologia da história, a en-
sinar-nos que a Sabedoria salva a humanidade, assim como salvou
povo de Israel, e que os homens se perdem por abandoná-la.
Por essas exposições ficamos preparados ao ensinamento do Novo
Testamento de que a Sabedoria é a segunda Pessoa da Santíssima
Trindade, o Verbo Divino (70), "pelo qual tôdas as coisas foram
feitas, e nada do que foi feito, foi feito sem êle" (Ev. João, I 3) .
Ainda por outro motivo é interessante êste livro: o autor,
diferentemente de Jó e do Eclesiastes, já abre perspectivas ao des-
tino transcedente do homem, e consegue destarte penetrar mais a
fundo no mistério do mal. "Porque Deus criou o homem imortal,
o fêz à sua imagem e semelhança. Mas por inveja do demônio,
entrou no mundo a morte, e imitam-no aquêles que são do seu
partido. Mas as almas dos justos estão nas mãos de Deus, e não
os tocará o tormento da morte. Pareceu aos olhos dos insensatos
que morriam..., mas êles estão em paz. E, se êles sofreram tor-
mentos diante dos homens, a sua esperança está cheia de imorta-
lidade... Eles julgarão as nações, e dominarão os povos, e o seu
Senhor reinará para sempre" (Sab., II 23-111 8). A esperança
num glorioso futuro messiânico para o povo judeu neste mundo vem

(70) . — Já no Livro dos Provérbios, VII 22-31, encontramos a personificação da


Sabedoria, em que muitos exegetas vêem a Sabedoria não criada.
-526—

a ser substituída por uma esperança num fim meta-histórico (71).


Neste ponto, o autor supera todos os livros do Velho Testamento.
Ainda não é cristão. Pois,- embora saiba que há um céu em que
os sofrimentos serão recompensados, ainda ignora que a chave do
céu é a morte voluntária de Cristo no Calvário. Mas sua obra
anuncia a aurora da Redenção.
O Novo Testamento.
Os autores do Novo Testamento vivem na certeza de ter
vindo o Messias na pessoa de Jesús Cristo. A Igreja, por Éle fun-
dada, é o reino messiânico, tão ansiosamente esperado pelos ju-
deus, mas ela, em oposição às crenças judaicas, tem de sofrer mui-
tas perseguições neste mundo. Diz São João: "Caríssimos, agora
somos filhos de Deus; mas não se manifestou ainda o que seremos
um dia. Sabemos que, quando êle se manifestar, seremos seme-
lhantes a êle na glória, porque o veremos como êle é" (I Ep., III
2). Ainda não se iniciou a época vitoriosa: revelou-se Deus, to-
mando a forma de servo. O Verbo Encarnado "veio para o que era
seu, e os seus não o receberam" (Ev. João, I 11) . Mas todos os
que o receberam tinham firme esperança "na glória vindoura que
se manifestará em nós. Pelo que êste mundo espera ansiosamen-
te a manifestação dos filhos de Deus... Porque sabemos que tô-
das as criaturas gemem e estão como que com dores de parto até
agora" (Rom., VIII 18-22). E os primeiros cristãos estavam in-
clinados a esperar na segunda vinda do Senhor (grego: parousía)
como num acontecimento muito próximo, desejando entrar com
Cristo na eterna glória do Pai e suspirando com São João: "Vem,
Senhor Jesus!" (Apoc., XXII 20).
Jesus Cristo é o Alfa e o Ômega (Ibidem, I 8), o princípio
o fim, o Senhor da história: através de tôdas as peripécias do
drama histórico, incoerentes e caóticas para o intelecto criado,
atinge êle com certeza infalível o seu fim. Éle, o Cordeiro imolado
o Deus ressuscitado, é o único capaz de abrir o, livro da história
os sete selos, que simbolizam as diversas fases da história hu-
mana (Ibidem, V-VIII) . E' um drama cheio de flagelos e cala-
midades. Mas a fase final é esplêndida: será criado um novo céu
uma nova terra, onde Deus habitará com os seus eleitos: "E.
Deus lhes enxugará tôdas as lágrimas dos seus olhos, e não haverá
mais morte, nem luto, nem clamor, nem mais dor, porque as pri-
meiras coisas passaram" (Ibidem, XXI 4). E' a derrota definitiva
de todos os seus adversários. "Assim serão restauradas em Cristo
tôdas as coisas, assim as que há no céu, como as que há na terra"
(Ef., I 10). A história da humanidade, por ter seu têrmo final
no Kfrios Jesus, possui sublime significado: não obstante serem

(71) . — Cf. também Daniel, XII 1-'3; Macab., II 7 e II 12, 42-46.


— 527 —

pavorosos os seus atos terrestres, o drama resulta numa apoteose


eterna e meta-histórica de todos os que adoraram o Cordeiro. A
essa visão magnífica de Apocalipse a arte européia deve algumas
inspirações grandiosas: o painel. dos irmãos Van Eyck na catedral
de Gand, e o côro final do oratório "Messias" de Hãndel: "Digno
é o Cordeiro, que foi morto, de receber a virtude, e a divindade,
e a sabedoria, e a fortaleza, e a honra, e a glória, e a bênção' .
(Apoc., V 12) .
§ 75. O originalidade da concepção cristã .
Durante a longa história da' humanidade, o Cristianismo foi
a única revolução séria, mas, infelizmente, não foi levada a efeito
com seriedade a não ser por' alguns santós. Neste parágrafo pre-
tendemos examinar umas inovações originais que o Cristianismo
trouxe ao mundo, opondo-as às teorias gregas: o mundo pós-cris-
- tão podia renegá-las ou impugná-las; era-lhe, porém, impossível ig-
norá-las. Muitas teorias modernas, mesmo de tendência anti-cristã,
são produtos derivados de uma civilização que por muitos séculos
viveu da Boa Nova, e seriam inconcebíveis ou até absurdas na An-
tigüidade clássica. Por isso mesmo um confrônto entre as duas
mundividências pode ser útil, também para quem não acredita no
caráter sobrenatural e absoluto da Revelação. Muitas vêzes po-
deremos referir-nos a observações já feitas nos parágrafos anteriores.
I. Transcendência e Imanência de Deus.
Já vimos várias vêzes que o\ Deus dos cristãos (72) é trans-
cendente e imanente: oportet quod Deus sit in omnibus rebus et
intime, diz São Tomás, num artigo já citado (73). Ora, o Cristia-
nismo, afirmando a transcendência divina com os judeus, deu um
significado mais profundo e sublime à imanência divina, conhecida
dos gregos, pelo mistério da Encarnação (74). Na Pessoa de Jesus
Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, reconcilia-se a opo-
sição, irredutível a uma fórmula abstrata: é a solução concreta e
viva de um mistério que ultrapassa as faculdades do intelecto hu-
mano.
A êsse conceito de Deus corresponde a noção cristã da Divina
Providência, que é transcendente e imanente ao mesmo tempo. E'

. — Cristo não veio destruir a lei ou os profetas, mas sim para os cumprir (cf .
Mt., V (17) . Os dois Testamentos são do mesmo Deus, cf. Augustinus (Contra
Adimantum, XVII 2): Haec est brevissima et apertissima difterentia duorum
testamentorum: timor et amor: illud ad vetarem, hoc ad novum hom:nem per-
tinet; utrumque temer: unias bei misericordissima dispensatione prolatum atque
conjunctum.
. — Cf. $ 68 II a; â 73 II b; etc. — Cf. também A. Grégoire, S. J., brema-
nence et Transcendance, Bruxelles-Paris, 1939.
. — As duas verdades simétricas: a transcendência e a imanência divinas, não se
acham no mesmo plano; no Deus transcendente não há relação real com o
Universo, e sua imanência não é uma emanação necessária.
— 528 —

-Verdade, Deus atua no mundo histórico normalmente mediante as


causas secundárias, que são suas criaturas, mas a Providência não
se limita a ser apenas a base fundamental dessas causas: Deus se
revelou ao homem, irrompendo no processo histórico, mediante os
patriarcas e os profetas, e culminantemente mediante seu Filho, o
Deus-Homem (cf. Hebr., I 1). Pour I'esprit enfermé dans sa "phi-
losophie", c'est scandale et folie de devoir s'incliner devant cette
liaison, apparemment arbitraire, de I'absolu à une contingence his-
torique (75), mas para o cristão, Deus é muito mais do que o Pri-
mus Motor Immotus ou o "Pensamento do Pensamento", simples
conclusões metafísicas que a nada obrigam. Deus é uma tremenda
realidade, que "habita numa luz inacessível" (I Tim., VI 16) e se
manifesta ao povo de Israel por meio de relâmpagos e trovões (cf.
✓x., XIX 16). Deus é o Soberano que chama seus servos e exige
que lhe respondam, como Moisés: "Aqui estou" (Êx., III 4) . Deus
é Pessoa, com quem podemos comunicar por livres atos de inteli-
gência e de amor. Deus é sobretudo um mistério de amor, que
ama suas criaturas e quer que elas lhe correspondam o amor: "Deus
é caridade" (I Ep. João, IV 8). A suprema dialética do processo his-
tórico consiste num diálogo amoroso entre Deus e as criaturas
racionais. Não basta reconhecermos a Deus como a Primeira Cau-
sa de maneira formalista: devemos "amá-lo de todo o nosso co-
ração, e de tôda a nossa alma, e de todo o nosso espírito" (Mi.,
XXII 36). Compreende-se agora o grito extático de Pascal: Dieu
d'Abraham, Dieu d'Isaac, Dieu de Jacob, non des philosophes et
des savants. Certitude. Certitude. Sentiment. Joie. Paix (76) .
II. A Contingência da Criação.
Também vimos que Deus criou, de livre e soberana vontade,
o mundo, o qual poderia não existir, ou ser diferente do atual
Au lieu d'être suspendu à la nécessité d'une pensée qui se
pense; l'univers est suspendu à la liberté d'une volonté qui le veut
Os antigos não possuiam uma noção aprofundada da con-
tingência por não fazerem a devida distinção entre o necessário
absoluto, que é Deus, e o necessário derivado, que é o mundo. Por
isso era-lhes impossível penetrar no fundamento metafísico da li-
berdade humana, que é a liberdade divina . Concebiam, sim, a
liberdade política e social, — principalmente os jônios, os atenien-
ses e, depois, os romanos, — e seus filósofos se esforçavam por
precisar a noção da liberdade, sobretudo Aristóteles e a Eston.
Mas essas tentativas, por mais generosas que fôssem, pouco se

— R. Guardini, Pesca!, ou Le Drerrte de la Conscienee Chrétienne, Paris, Édition


du Seuil, 1953, pág. 38.
— Mémorial de Pascal in Pensées et Opuscules, éd. Brunschvig, pág. 142.
— Cf. $ 68 II a; $ 73 I d.
— É. Gilson, L'Esprit de la Philosophie Médiévale, Paris, Vrin, 1932, ‘ I pág. 74.
— 529 —

compadeciam com outras teses fundamentais dos seus sistemas.


Não conheciam "a liberdade gloriosa dos filhos de Deus" (Rom.,
VIII 21).
E' significativo o fato de faltar aos antigos o conceito do peca-
do: em geral, imputavam seus maus passos a um juízo de juízo,
não raro originado pelo cego Destino ou pela malevolência dos
deuses. Os espíritos esclarecidos tinham geralmente uma idéia
intelectualista da moral, resumida no adágio socrático: "Ninguém
peca voluntàriamente" (78a). Ao que o Salmista opõe: Delicta
quis intellegit? (78b) . O Cristianismo, descobrindo novas dimen-
sões no coração humano,- mostrou os abismos vertiginosos do rnys-
terium iniquitatis: o pecado é um ato rebelde, por parte da criatu-
ra, de negação, de destruição, de niilismo; o pecador, enquanto de-
pende dêle, nega, destrói e aniquila a existência, a verdade e a so-
berania de Deus; é ineficaz, objetivamente falando, êsse ato, mas
esta circunstância não lhe diminui a horrível intenção. Sem exa-
gêro, podemos dizer que o Cristianismo despertou no homem le
sentiment du gouffre (Baudelaire) bem como a ânsia de uma per-
feição completa.
A liberdade soberana e criadora de' Deus corresponde, no ho-
mem, a• uma liberdade relativa e criada, responsável por seus atos.
Histèricamente falando, podemos verificar que o Cristianismo - deu
ao homem sua verdadeira dignidade: a de ser pessoa (79) . E' só
a esta condição que êle se pode tornar filho de Deus.
III. O Tempo.
O Cristianismo substituiu o conceito de um movimento cir-
cular, bastante comum entre os povos de Antigüidade, pela idéia
do tempo retilíneo, o qual tem por limites a Criação e o Juízo Final
(80). Logo se percebe que a Lei do Eterno Retôrno é incompatível
com os dogmas fundamentais da fé cristã. Se admitirmos ciclos his-
tóricos, no sentido "cósmico da palavra", haverá outro Adão, a pe-
car por comer do fruto poibido, e outro Redentor, a expirar os pe-
cados do gênero humano. Diz São Paulo: "Jesus não entrou para
se oferecer muitas vêzes a si mesmo..., mas apareceu uma só vez
no fim dos séculos, para destruir o pecado com o sacrifício de si

— Cf. os textos colecionados por C. J. de Vogel (cf. nota 52), págs. 134-139.
— Aristóteles (ia Ethica Nicomacheia, In 5; cf. VII 3) distancia-se da dou-
trina de Sócrates, e admite a responsabilidade humana por seus atos.
— Salmo, XVIII 13. — O significado dêsse passo deve ser: "Quem conhece
tôdas as suas falhas"7, :nas a interpretação dada acima é tradicional nos Padres.
— E' significativo o' fato de ter sido formulada e definição de "pessoa" a pro-
pósito das disputas cristológicas. Cf. § 17 III b, nota 3.
—, Cf. A. Toynbee; Greek Civiliration and Character, ("A Mentor flook",
New York, 1953, pág. VI): For them (os cronistas medievos) the history
et menlcind appeared, through the christian lens, as EM interlude played, in
Time, and upon the backéround ol Eternity. It begon at e definite moment
with the Creation ol the World; it wes to end, equally abruptly, with the
Last Judgment.
— 530 —

mesmo. E assim como está decretado que os homens morram uma


só vez, e que depois disso se siga o juízo, assim também Cristo se
ofereceu uma só vez, em sacrifício para apagar os pecados de mui-
tos; e a segunda vez aparecerá, não por causa do pecado, Mas para
salvação daqueles que o esperam" (Hebr., IX 25-28).
O movimento eternamente repetido dos ciclos históricos ex-
clui não só a liberdade humana, mas também a possibilidade de
haver coisas novas e originais. O Cristianismo dá valor positivo
aos acontecimentos singulares, que são únicos e irrevogáveis, e por
isso mesmo possuem importância e sentido. A fé na Revelação
baseia-se em fatos históricos, sendo tampouco fundada num mito
como numa especulação filosófica. A Encarnação é um fato his-
tórico, a realizar-se sob o Império de Augusto (Lc., II 1-2; cf. III
1-2), não é um conto mitológico, a começar pelas palavras este-
reotipadas: "Era uma vez...", aplicáveis a todos os mitos, que se
perdem num passado nebuloso. Destarte se reveste de uma im-
portância relevante a história para a consciência cristã: Hujus re-
ligionis sectandae caput est historia et prophetia dispensationis tem-
poralis divinae providentiae, pro salute generis humani in aeternam
vitam reformandi atque reparandi (81).
O processo histórico, relativo , por definição, não pode possuir
sentido absoluto: o fim da história é transcedente,- "meta-históri-
co", situado além dos lirres do tempo. "Eu tenho por certo que
os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a gló-
ria vindoura que se manifestará em nós" (Rom., VIII 18). Cristo
nasceu "na plenitude dos tempos" (E f., I 10; Gál., I 4): debaixo
do ponto de vista da história sagrada, não virá outra época mais
perfeita, pois a salvação que fôra prometida nas épocas anteriores,
nos foi dada definitivamente pelo Sacrifício divino de Jesus Cris-
to. E' uma aquisição para sempre, porque nada poderá anular os
eternos decretos divinos. Rien jamais ne pourra plus séparer la
nature humaine de la nature divine. Aucune rechute n'est plus
possible. L'humanité est substantiellement sauvée. Reste la ques-
tion de I'extension aux individus de ce qui est acquis à la nature
entière (82). Com a Encarnação, a história entrou na sua fase
final. As seis épocas, em que Santo Agostinho e outros Padres di-
videm a história (cf. § 26 VII), constituem seis fases sucessivas
de uma educação progressiva por Deus, devida à qual o homem,
finalmente, atinge sua plena maturidade na Pessoa do Deus-Ho-
mem. A idéia do Progresso, ausente do pensamente grego e pre-
paraão pelo messianismo dos judeus, tem seu ponto de partida na
visão cristã da história.

. — Augustinus, De Vera Religione, VII 13.


. — J. Daniélou, Essai sur le Mystère de l'Histoire, Paris, P..ditions du Seuil,
1953, pág. 10.
— 531 —

afinal, o tempo histórico é o quadro em que o homem, —


livre e responsável por seus atos, — toma decisões importantíssi-
mas, não só para seu destino terrestre como também para seu fim
transcedente e eterno. Se esta vida 'é uma peregrinação runfo à
Jerusalém celeste, cumpre não perdermos de vista a nossa ,ver-
dadeira pátria.
IV. Otimismo e Esperança.
Cristianismo repudia todo e qualquer dualismo metafísi-
co: tôdas as coisas, enquanto são, são boas, por serem criaturas
de Deus e participarem, em escalas diferentes, do ser divino. Tal
atitude exclui a obsessão do Fado, as astúcias ineptas do "prome-
teísmo" e um pessimismo radical quanto à origem da matéria.
"Creio na ressurreição da carne", é um dos artigos da fé. A mun-
dividência cristã é essencialmente baseada no ordo rerum, na hie-
rarquia objetiva dos valores. O equilíbrio espontâneo das facul-
dades humanas foi destruído pelo pecado original; destarte se tor-
na necessária uma ascese, uma mortificação, a qual, porém, nunca
pode ser um fim em si, como o é para algumas seitas orientais.
O exemplo clássico de um asceta otimista, inspirado por um amor
ordenado, é São Francisco de Assis, que cantava o Hino ao Sol
e chamava seu corpo "meu irmão burro".
A êsse otimismo, fundado na noção acertada da Criação, o
Cristianismo ajunta uma firme esperança na manifesta glória vin-
doura de Deus, pela qual também o homem entrará no gauchara
Domini . A esperança é uma das três virtudes divinas, a basear-
se na fidelidade do Senhor às suas promessas: "Porque na espe-
rança é que fomos salvos. Ora a esperança que se vê, nãó é es-
perança; porque, como esperar aquilo que se vê?" (Rom., VIII
24) . Os cristãos primitivos, sublimando as esperanças messiâni-
cas dos judeus, desejavam ardentemente a segunda vinda do Se-
nhor: Marán Athá! (I Cor., XVI 22). Talvez não seja temerário
dizer que a esperança moderna na perfectibilidade ilimitada da
humanidade, apesar das suas tendências anti-cristãs, é produto de-
rivado e secularizado da esperança cristã e do otimismo cristão.
V. A Unidade do Gênero Humano.
Cristianismo teirn sempre ensinado com ênfase a unidade do
gênero humano (83). Os indivíduos da espécie humana, diferen-
temente dos espíritos puros, formae subsistentes, não existem in-
dependentemente uns dos outros, mas "co-existem": une-os estrei-
tamente um laço de parentesco, no plano biológico; une-os, mais
'intimamente ainda, um laço de solidariedade, no plano sobrena-

(83) . — últimamente pela Encíclica Humani Ge/leria do Papa Pio XII (1950).
— 532 —

tural. Diz São Paulo: "Mas Cristo ressuscitou dos mortos, sendo
êle as primícias dos que dormem; porque, assim como a morte
veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição
dos mortos. E, assim como todos morreram em Adão, assim tam-
bém todos serão vivificados em Cristo" (I Cor., XV 20-22). Eis
o fundamento teológico da solidariedade humana. O homem não
é parcela exígua de um conjunto abstrato (por exemplo, da raça,
do proletariado, da humanidade), mas todos nós somos irmãos de
Cristo que se fêz homem para nós podermos tornar-nos filhos de
Deus. E assim como Cristo "se humilhou, feito obediente até à
morte, e morte de cruz" (Fil., II 8) e lavou os pés aos apóstolos
(Ev. João, XIII 1-17), assim os homens devem imitar o exemplo
divino em servir uns aos outros. "Na verdade, vos digo que tôdas
as vêzes que vós fizestes isto a um dêstes meus irmãos mais pe-
queninos, a mim o fizestes" (Mt., XXV 40). O amor ordenado ao
próximo (83a) concreto (cf. "o bom samaritano", Lc., X 26-37)
é o segundo mandamento da Nova Lei (Mt., XXII 39) e, aos
olhos do cristão, ato sumamente religioso.
VI. História Sagrada e História Profana.
A verdadeira história, a mais real, porém a mais escondida,
é a história sagrada: a das obras de Deus relativa à nossa salva-
ção. Não é idêntica à histórica eclesiástica, que lhe representa
apenas os aspectos exteriores e visíveis: é uma historia abscondita,
um diálogo íntimo entre Deus e as almas. As maravilhas de san-
tificação que Deus efetuou no Velho e no Novo Testamento, não
cessaram depois da Ressurreição (84): continuam a viver entre
nós os magnalia Dei (Atos, II 11), mas êles se subtraem aos olhos
humanos, menos em alguns casos, garantidos pelo magistério in-
falível da Igreja. Dessa história verdadeiramente mística descre-
veu a origem, o desenvolvimento e o fim Santo Agostinho na obra
De Civitate Dei (cf. § 76).
A história profana, que nos fala de Impérios, de batalhas, de
conquistas humanas no terreno das ciências, artes e técnicas, não
tem valor religioso prÓpriamente dito para o cristão, ao contrário
do grego, cujo universo era divino e cuja civilização, apesar de
todos os seus elementos humanistas, possuia feições profundamen-
te religiosas. Cristo separou definitivamente as duas esferas, di-
zendo: "Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus"
(Mt., XXII 21). O Cristianismo não se identifica com nenhuma
civilização histórica, — não é grego, nem latino, nem russo, nem

(83a). — O Marxismo por exemplo str:rifica o homem concreto atual ao homem abstrato
do futuro: Pateai pomo, vivat humanitas! — E Nietzsche apregoava o amor
ao "longínquo".
(84) . — Augustinus, De Cateellizandis Rudibus. XXIV 45.
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (IV)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 24, pp 499-533, out./dez. 1955. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/024/A011N024.pdf

— 533 —

francês, — mas transcende tôdas as culturas, "fazendo-se", com o


Apóstolo, "tudo para todos, para salvar a todos" (I Cor., IX 22).
Mas, ao mesmo tempo, "encarna-se" nelas, batizando-as, inspiran-
do-as, penetrando-as; e separando-se delas logo que se guindam à
condição de um Absoluto.
A Igreja, o Corpo Místico de Cristo, refletindo a natureza do
seu Noivo Divino, é transcedente e imanente, sendo de caráter
"teândrico", isto é, divino-humano. Como tal, é gloriosa e fraca ao
mesmo tempo. Quem quer eliminar um dêsses dois aspectos, mu-
tila-lhe a natureza complexa. Cai-se no êrro do Modernismo, por
afirmar-se apenas a imanência (84a); cai-se no êrro oposto do
"integrismo" (85), por frisar-se apenas a transcendência. Like
Christ Himself, His Church is not an invisible spiritual community,
but an incarnation of the divine in the domain of the terrestrial
and the human. Her supernatural essence likewise reveals itself
to us in the "condition of a slave". Her "exaninitio" (86) is even
incomparably more profound and extensive than the dispossession
of Christ and His revealed Word, especially because the Church
is not the Word Incarnate ltself, but His mystical Body (87).
Eis algumas noções que nos parecem importantes para a com-
preensão das fôrças espirituais, que foram despertadas, pelo Cris-
tianismo ,e que contribuiram para a formação da cultura ocidental.

(Continua no próximo número).

JOSE' VAN DEN BESSELAAR


da Pontifícia Universidade Católica de São Paillo

(84a ). — Cf. Vincentius Lirinensis, Commonitoriutn, XXVIII: (Eoclesia) crescat igitur


et multum vehementerque proficiat, tem singulorum quem ~nitra!, tam unius
hominis quem totius Ecclesiee, aetatum ac saeculortun gradibus, intelligentia,
scientia, aapientia: sed in suo durntazat ganem, in eodem scilicet dogmate,
cedera sensu eademque sententia
. — Cf. Emmanuel Cardinal Subard, Essor ou Déclin de I'Église, Paris, 1947.
. — As palavras entre aspas são alusões a um texto de São Paulo (Fil., II 5-7) .
. — Palavras • de X. Adam, citadas por R. Aubert, in Truth and Freedom, "Du-
quesne Studies", Pittsburg-Louvain, 1954, pág. 84.
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (V)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 26, pp 491-527, abr./jun. 1956. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/026/A011N026.pdf

QUESTÕES PEDAGÓGICAS
INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS (V).

QUARTA PARTE

As Interpretações da História através dos séculos .


(Continuação)

CAPITULO SEGUNDO

A CIDADE DE DEUS.
§ 76. A resposta de Santo Agostinho. .
Os primeiros cristãos viviam na expectativa ansiosa da segun-
da vinda do Senhor e faziam pouco caso da vida política e cultural,
aliás, constituíam uma minoria exígua e sofriam muitas vêzes perse-
guições. Mas à medida que o Império se ia cristalizando, tendiam
a situar a parousia num porvir mais •remoto e a tornar-se mais
conscientes das suas obrigações para com o Estado, a sociedade e
a cultura. Às perturbações sociais e políticas, que atravessou a
cikouméne entre 180 e 284 d.C., pôs têrmo o braço forte do Im-
perador Diocleciano, o último perseguidor da Igreja. A obra de res-
tauração foi continuada por Constantino, o autor do Édito de Tole-
rância, promulgado em Milão (313 d. C.) . Mas a ordem, restabe-
lecida pelos dois Imperadores enérgicos, era a de um prisão, e a
tranqüilidade a de um cemitério: não deviam sobreviver ao século
IV. Em 376, o mundo civilizado presenciou com pavor o início da
Grande Migração dos Povos. Dividido o Império em duas meta-
des (1), o Ocidente era prêsa fácil para os bárbaros, que iam in-
vadindo o território romano de todos os lados (2). Em 410 deu-se
a grande catástrofe: Roma, a cidade invencível, que em oito sécu-
los não tinha visto nenhum conquistador estrangeiro (3), foi tomada
pelos visigodos do capitão Alarico. Foi enorme a repercussão que

(1) . — Cf. § 21 I, nota 14. — A bipartição da dignidade imperial remonta aos dias do
Imperador-filósofo Marco Aurélio (161-180), e toma-se comum desde Diocle-
ciano (2 Augusti e 2 Caesares) . Só em 364, a bipartição tomou o caráter de
uma divisão do próprio Império, a qual se tornou definitiva em 395 (se fa-
zemos abstração do breve período de Restauração, sob o Imperador Justiniano) .
— Em 406 várias tribos germânicas (vândalos, burgundos, suevos e alanos) atra-
vessaram o 'Reno, invadindo a Dália e as Espanhas; os visigodos, saindo da
Mésia (=Bulgária), infestaram a . Itália três ou quatro vêzes no primeiro de-
cênio do século V; a Britânia, invadida pelos anglos e saxões, foi abandonada
pelas legiões romanas em meados do mesmo século.
— Foi em 387 a.C. que Roma fôra tornada pelos gauleses: Vae victis!
— 492 —

desastre teve na Imaginação dos contemporâneos: não cairam


apenas as muralhas, as pedras, os palácios de Roma; caira, — o
que impressionava incomparàvelmente mais, — o Mito, a Lenda
de Roma. Foi a bomba atômica do século V, e muitos acredita-
vam que estivesse próximo o fim do mundo. Os pagãos que ainda
restavam e não poucos cristãos frouxos e pusilânimes, convertidos
só exteriormente por ser o Cristianismo religião de moda, imputa-
vam a causa dos males recentes ao fato de haver sido abandonado
culto dos deuses antigos, sob cuja visível proteção a Cidade Eter-
na prosperara e conquistara o mundo. A Queda de Roma pare-
cia comprometer a nova fé e o Império cristão (4) . As queixas
as acusações ameaçavam abalar também a fé dos cristãos na
África, onde Santo Agostinho (354-430) era bispo da cidadezinha
de Hipona . Aos tímidos entre seus paroquianos parecia melhor
não se tocar na questão espinhosa: Sed non dicat de Roma, dictum
est ;me. O, si taceat de Roma! Quasi ego irOultator sim,, et non .

potius Domini deprecator, at vester qualiscumque exhortator(5).


Mas o bispo não era homem para evadir problemas cruciantes, e
obrigou os pessimistas e os resmungões a ouvirem uns sermões (6),
em que destruía o Mito de Roma, e demonstrava residir a esperança
da nova religião, não em construções humanas, mas em promessas
divinas. Além disso, instado pelos pedidos incessantes do seu ami-
go Marcelino, pôs-se a escrever o De Civitate Dei (7), em que se
dirigia a um público culto.

I. A Composição da Obra.
A primeira parte da obra (livros I-X) é de natureza apologé-
tica: nela o autor refuta as incriminações e pretensões do paganismo.
Na segunda parte (livros XI-XXII) dá uma visão teológica da his-
tória e da sociedade (8) .
Roma é uma cidade perecível, construída por mãos humanas,
tôdas essas construções têm o seu fim. Sempre nos impressionam
mais as calamidades atuais do que as do passado: o que Roma so-
freu, sofreu conforme o mos hostium, aplicado em tôdas as épocas
a todos os derrotados por todos os vencedores, também pelos pró-
prios romanos. Não eram catastróficas, nos tempos idos, as conquis-
tas romanas para outros povos? (9) É ilegítimo responsabilizar o
— O Império cristão, preparado por Constantino, data do ano 380: Édito do Im-
— Augustinus, Sermo, CV 12
perador Teodósio, cf. Codex Theodosianus, XVI 1,2.
— Augustnus, Sermones, LXXXI, CV e CCXCVI. — CL Sermo de Excidío Urbis,
in Migne, PL XLII, 715 sqq.
— A obra compõe-se de 22 livros (661 capítulos, com numerosíssimas digres-
sões), e foi escrita de 411. a 426/7. — Documentação abundante relativa
ao De Civitate encontra-se em Miscelânea "Universitas" (da Fac. de Filos.,
etc. de Sorocaba), I, 1955 (. págs. 55-90), artigo de lavra do autor dêste livro.
— Cf. Augustinus, Retractationes, II 43.
— Já Cícero (in De Republica, III 13,10) disserra: Quae sunt patriae commoda
nIsi alterius civitatis .aut gentis incommoda?
— 493 —

Cristianismo pelas desgraças contemporâneas: são elas de todos os


tempos, e o autor dá a longa lista das calamidades de outrora, a co-
meçar por Tróia, a metrópole dos romanos, que foi tomada, saqueada
e incendiada pelos gregos. E tudo isso acontecia, enquanto os
deuses pagãos eram escrupulosamente venerados. Roma caíu,
porque estava decadente, fato sobejamente confirmado pelo
testemunho insuspeito de autores clássicos, tais como Cícero, Sa-
lústio e Juvenal. Até mitigou o Cristianismo os horrores da depreda-
ção, que antigamente eram ilimitados. Pois os gôdos, cristãos, em-
bora hereges, pouparam os santuários da capital, e muitos pagãos
aproveitaram-se, nesses dias pavorosos, dos asilos que lhes oferecia o
Deus dos Cristãos. Roma foi humilhada, é verdade, e aflige-nos o
destino dos ricos que foram despojados, dos jovens que foram cati-
vados e transportados, dos cidadãos que foram massacrados e deixa-
dos insepultos, das virgens que foram violentadas e, depois, num
ato de desespêro, se suicidaram. Mas será que Roma não foi hu-
milhada por causa da sua soberba? Por causa do seu paganismo
clandestino? Por causa do seu Cristianismo exterior e superficial?
Sem dúvida, a catástrofe a todos atingiu, aos bons e aos maus: mas
quem se pode chamar "justo" perante Deus? Todos nós não somos
pecadores? Tal desastre é uma provação para o justo, e um castigo
para o pecador.
Em seguida, o autor mostra que o povo romano não deveu a
sua prosperidade aos deuses pagãos nem ao Fado. As grandes rea-
lizações do passado explicam-se pela virtus e pelo amor laudis dos
romanos primitivos: recompensou-as a justiça divina, dando-lhes o
maior Império de todos os tempos. "Já receberam a sua recom-
pensa" (Mt . VI 2). Nem é de estranhar que, degeneradas essas
virtudes naturais, tenham decaído também o poder e o prestígio do
povo romano. Mas não nos iludamos com aparências especiosas!
Pois, como tôdas as outras realizações humanas autônomas, tam-
bém o Estado Romano tinha os males da nossa natureza corrom-
pida. Daí a idolatria, a favorecer e a sancionar os vícios mais ver-
gonhosos. Daí a libido dominandi, egoísmo coletivo, sem verdadeiro
amor ao próximo. Daí a luxúria insaciável. Daí a soberba e o or-
gulho, essas máscaras com que o homem tenta disfarçar a sua misé-
ria: Tolle jactantiam, et omnes homines quid sunt nisi homines?(10)
Nada de piedade, na obra do Hiponense, para com a religião
antiga (11): nem •a religio civilis (do Estado), nem a religio fabu-
losa (dos poetas), nem a religio naturalis ou physica (dos filósofos)
estava ao abrigo das suas invectivas sarcásticas. Desmascarava o ca-

— Augustinus, De Civitate Dei, V. 17,2.


— No pensamento de Santo Agostinho, os deuses pagãos eram ou anjos revoltados
(=demônios), ou então homens, divinizados depois da sua morte pela su-
perstição ignorante dos sobreviventes. Esta última teoria, bastante comum en-
tre os Padres da Igreja, remonta ao filósofo helenista Evêmero (século III a.C.).
--- 494 —

ráter imoral da mitologia, ridicularizava as inépcias da religião civil,


e demonstrava a insuficiência dos sistemas filosóficos para efetuar a
nossa eterna salvação, aduzindo numerosas incoerências e contradi-
ções nas obras dos sábios segundo as normas dêste século. A nova fé
não se baseia nem em ficções poéticas, nem em especulações cos-
mológicas, nem num culto formalista ou orgíaco, mas funda-se em
dados históricos de uma Revelação progressiva. Entretanto, o autor
não é apenas desmoronador: mostra singela admiração pela figura
de Sócrates, pelos Estóicos, e principalmente por Platão, cuja dou-
trina identificava com a dos neoplatônicos (12); sua admiração
não era, porém, ilimitada. Critica várias vêzes os orgulhosos qui
secundum elementa hujus mundi philosophantur(13), exprobrando-
lhes que, apesar das suas teorias elevadas, continuavam idólatras,
negavam a possibilidade da ressurreição da carne, acreditavam
no Eterno Retôrno e na metempsicose, etc. Além disso, faltava-lhes
o fervor apostólico, êsse característico dos adeptos de Cristo, e sobre-
tudo ignoravam a obra da Redenção e o sacrifício divino, que exi-
ge da nossa parte lágrimas de penitência e de amor(14) .
Eis o resumo magro dos dez primeiros livros. Examinemos
agora ràpidamente o conteúdo dos doze últimos, que se subdividem
em três partes:

a) Exortas ou o Princípio das duas Cidades (XI-XIV) .

O mundo é o terreno onde se combatem dois poderes ou duas


Cidades: a Cidade de Deus, e a Cidade do Diabo ou a Cidade Ter-
restre. Deus criou o universo, os anjos e os homens num estado
bom e inocente, pois tudo o que sai das mãos divinas, é essencial-
mente bom. O bispo de Hipona está longe do maniqueísmo (15),
a que aderira na sua juventude: o ser, enquanto é, é bom; todo o ser,
inclusive a matéria, vem de Deus. Deus fêz o universo, cujos pri-
meiros habitantes, os anjos, eram os primeiros cidadãos da Cidade de
Deus. Mas o livre arbítrio, dádiva precária para as criaturas racio-
nais, tornou-se desastroso para uma parte da criação . Alguns dos
anjos se revoltaram contra Deus, pelo que passaram a ser demônios,

— Santo Agostinho acha muito provável que Platão tenha possuído um conheci-
&mento, embora indireto, dos livros sagrados, cf. De Civitate Dei, VIII 11.
— Ibidem, VIII 10,1.
— Cf. Augustinus, Confessiones, VII 21: Non habent illae paginae vultum pie-
tatis illius, lacrimas confessionis, sacrificium Tuum, spiritum contritum et
hamiliatum, populi salutem, sponsam civitatem, cerram Spiritus Sancti, pocu-
lum Pretii nostri.
— O maniqueísmo, seita rel'giosa, foi fundado pelo persa Mani, degolado por or-
dem do rei persa Bahram em 276. Originariamente um sistema pagão, influen-
ciado por elementos heterogêneos (persas, babilônios e budistas), acabou por
pedir emprestados elementos cristãos e, principalmente, gnósticos. O mani-
queísmo ensina um dualismo metafísico: dois Reinos eternos, — o divino
(a Luz) e o diabólico (as Trevas), — combatem-se eternamente; a matéria
é má em sí; no fim do mundo, o Reino das Trevas será aniquilado pelo Reino da
Luz. — O maniqueísmo sobreviveu até à Idade Média (Cátaros ou Albigenses).
— 495 —

4 ou por outras palavras: alguns dos cidadãos celestes transforma-


ram-se em cidadãos terrestres. Pois,• assim como a Cidade Celeste
é a obra de Deus, assim a Cidade Terrestre é fruto do pecado. Os
anjos seduziram. Eva, e mediante ela, causaram a queda do primeiro
homem. Fecerunt itaque civitates duas amores duo: terrenam scili-
cet amor sui usque ad contemptum Dei, caelestem, vero amor Dei
usque ad conternptum sui (16).

Procursus ou o Desenvolvimento das duas Cidades


(XV-XVIII) .

Fundada a Cidade Terrestre pela revolta dos anjos e estabe-


lecida na terra pelo pecado do primeiro homem, Caim, depois de ter
matado o seu irmão Abel, foi o primeiro a construir uma cidade visí-
vel (Gênesis, IV 7), como se quisesse simbolizar o caráter perma-
nente do seu reino, ao passo que Abel não fundou cidade alguma, en-
tremostrando assim que esta vida não passa de uma peregrinação pa-
ra uma morada eterna. Pois o cidadão terrestre goza (fruitur) das
coisas criadas como de fins em si, o cidadão usa-as (utitur) como
meios que o devem levar para o seu fim verdadeiro, que é Deus.
Nestes quatro livros, o autor esboça a história das duas Cidades
no tempo: a luta entre o mal e o bem. Não é uma história uni-
versal, e muito menos ainda uma relação sistemática ou pormenori-
zada dos destinos profanos da humanidade . Santo Agostinho es-
colhe apenas alguns episódios da história bíblica e profana, que
para êle são manifestações visíveis das duas Cidades místicas. Em
Noé revela-se a Cidade de Deus, a construção da tôrre de Babel é
a obra dos cidadãos terrestres. Desde os tempos do patriarca Abraão,
as duas Cidades vão-se organizando cada vez mais: a Cidade de
Deus no povo eleito para se concentrar em Cristo e na Igreja, a
Cidade Terrestre nos impérios mundanos da Assíria e de Roma.

Fines Debiti ou os Fins das Duas Cidades (XIX-XXII) .

Nos quatro livros finais, Santo Agostinho trata da moral, da


paz e da justiça que reinam entre os cidadãos do povo de Deus, e da
desordem e da confusão que lavram no Reino do Diabo. E afinal,
expõe a escatologia cristã: a vinda do Anticristo, o fim do mundo, a
ressurreição da carne, o Juízo Final, a criação do novo Kósmos, e a
bem-aventurança eterna. A Cidade de Deus terá o seu fim no Céu,
a Cidade Terrestre no Inferno.

(16) . — Augustinus, De Civitate Dei, XIV 28.


— 496 —

II. O Significado das Duas Cidades.

As duas Cidades, concebidas pelo bispo de Hipona, não são fe-


nômenos históricos, mas entidades místicas. A Cidade de Deus é a
comunhão de todos os sêres racionais que, num ascenso de amor,
se submetem incondicionalmente à Vontade incriada de Deus, a Ci-
dade Terrestre é a organização orgulhosa das criaturas racionais
que procuram subtrair-se à sua Origem e ao seu Fim. Solidariedade
no bem, e solidariedade no mal. A Cidade de Deus não coinci-
de com a Igreja, porque esta, enquanto vive no tempo, contém
também pecadores (17); outrossim, a Cidade de Deus compõe-se
dos anjos e dos justos já glorificados no céu, e só uma mínima parte
vive neste momento no mundo, viajando para a sua pátria eterna.
Afinal, também fora da Igreja, houve e há almas justas, por exem-
plo, no Velho Testamento, Abraão e Davi, e até entre os gentios, por
exemplo, a Sibila, e jó(18) . Por outro lado, nem a Cidade Terrestre
coincide com o Estado, porque êste, correspondendo às exigências
da natureza humana, criada por Deus, não é mau em si (18a); além
disso, fazem parte da Cidade Terrestre também os diabos e todos os
eternamente condenados, ao passo que do Estado fazem parte tam-
bém os cidadãos celestes, enquanto vivem no mundo. Perplexae sunt
igitur duae civitates in hoc saeculo, donec ultimo judicio diriman-
tur( 19) .
Mas, de fato, a Igreja é a única instituição a preparar e a cons-
truir, no tempo, a Cidade de Deus: aedificatur enim domus Domino
Civitas Dei, quae est sancta Ecclesia, in omni terra (20). Para tal foi
fundada por Cristo, e recebe a divina assistência até a consumação
dos séculos. E, de fato, estão corrompidos e pervertidos os Estados
históricos por causa da sua aliança com os ídolos e devido à sua
libido dominandi. Embora a organização política como tal não
seja obra do diabo, numerosos exemplos, tirados da história antiga,
— também do povo romano, — provam a decadência efetiva do r-
Estado antigo.
O fim de tôda e qualquer sociedade é a paz, que é a tranquilli-
tas ordinis(21) . Também o Estado ama a paz, e esta não é des-
prezível. Mas a verdadeira paz é inconcebível sem a verdadeira
ordem: Ordo est parium dispariumque rerum sua cuique loca tri-
. — Ibidem, I 35: Etiam Dei civitas habet secum, quamdiu peregrinatur in mundo,
connexos communione sacramentorum, nec secum futuros in aeterna sorte SEUIC-•
foram, qui afiam cum ipsis inimicis adversas Deum, cajus sacramentam &-
rant, murmurare non dubitant, modo cum illis theatra, modo ecclesias nobis-
cum replentes.
. — Ibidem, XVIII 23,2 ( a Sibila, cf. § 48 I a); XVIII 47 (Jér) .
(18a) . — Ibidem, XV 4: Terrena porra civitas... hic habet suum, cajus societate
Iaetatur, qualis esse de talibus rebus potest. — Quanto à cultura, cf. Augustinus,
De Doctrine Christiana (passim) •
(19). — Ibidem, I 35.
. — Ibidem, VIII 24,2.
. Ibidem, XIX, 1'3,1.
— 497 —

4 buem dispositio(22). Ora, o Estado antigo pecava cabalmente con-


tra a Justiça, — sua cuique distribuere (cf. XIX 21,2), — por negar
aDeus o culto que lhe era devido. Dessa Injustiça primordial decor-
rem tôdas outras injustiças: Remota itaque justitia, quid sunt regna
nisi magna latrocinia? (23) . Partindo da definição ciceroniana de
um povo: coetus multitudinis, juris consensu et utilitatis commu-
nione sociatus (24), o autor chega à conclusão de que nem o povo
romano constituía um povo no sentido próprio da palavra (25). Mas
dá também outra definição: Populus est coetus multitudinis ratio-
nalis, rerum quas diligit concordi communione sociatus(26) . Evi-
dentemente, o povo romano constituía um povo, embora mau, nesta
acepção do têrmo.
Afastando-se por vêzes do sentido alegórico das duas Cidades,
-- sobretudo em outras obras, em que a elas se refere (27), — o Hi-
pcnense chega a identificar, pelo menos aparentemente, a Cidade de
b► - Deus com o povo eleito e com a Igreja, e a Cidade Terrestre com
'r" o Estado e, em geral, com a cultura autônoma do homem, corrompido
-pelo pecado original. Não esqueçamos que tinha fins polêmicos, ao
escrever o seu livro, e que sistematizava pouco. Destarte não é de
estranhar que o pensamento simplificador de gerações posteriores,
preterindo as inúmeras e sutís distinções do mestre, tenha identi-
ficado simplesmente a Cidade de Deus com a Christianitas, — o
povo de Deus, — uma única sociedade universal, a caminhar através
"dêstes maus tempos" para as moradas eternas no céu. E a essa
única sociedade competia uma única autoridade: a do Papa, de cujo
poder espiritual devia depender o poder temporal, exercido pelo Im-
perador ad nutum et patientiam sacerdotis (28). A situação histórica
em que viviam os medievos, era muito diferente da época de transi-
ção em que escrevera Santo Agostinho. Para êles tratava-se de
santificar o Estado, o que lhes parecia possível por fazê-lo absor-
ik., ver pela Igreja. Muitos passos da obra agostiniana como também
-1.

— Ibidem. XIX 13,1.


— Ibidem, IV 4.
— Cicero, De Respublica, I 25,39 (Cf. Augustinus, De Civitate Dei, XIX, 21,1 e
II 24,2).
<25). -- Ibidem XIX 23,5: Quapropter ubi non est ista justitia, ut secundum suam gratiam
civitati obedienti Deus imperet unus et summus, ne cuiquam sacrificet, nisi
tantum sibi; et per hoc in omnibus hominibus. animus etiam corpori, atque
ratio v:ths, ordine legitimo fideliter imperet: .profecto non est coetus homi-
num juris consensu et utilitatis communione sociatus. Quod si non est, utique
populus non est.
— Augustinus, De Civitate Dei, XIX, 24.
— Cf. sobretudo, Augustinus, Enarrationes in Pselmos, LI 1, 4 e 6; LXI 8:
CXXXVI 2. Nesses passos tende a confundir o Estado com a Cdade do Diabo,
e a Igreja com a Cidade de Deus. — Mas também no De Civitate Dei
há passos que, embora não criem uma oposição absoluta entre a Igreja e o Esta-
a, do, podiam prestar-se fàcilmente a mal-entendidos, veja por exemplo, VIII 24,2;
XIII 16; XVI 2,3 e XX 9,3, onde identifica a Igreja com a Cidade de Deus,
sem precisar o seu pensamento.
<28). — As palavras são da bula papal Unam Sanctam, promulgada pelo Papa Bonifácio
VIII (1302).

Revista de História n.. 26


--- 498 —

seu exemplo prático de recorrer ao Estado para defender a Igreja


das heresias(29), davam-lhes ensejo de apelarem para o Hiponense,
ao construirem e elaborarem a doutrina teocrática do Sacro Impé-
rio; mas também os adversários da teoria apelavam para os escri-
tos do maior Padre da Igreja latina, inclusive para o De Civitate
Dei. O certo é que Santo Agostinho nunca formulou a doutrina da
teocracia medieval: Quantum enfim pertinet ad hanc vitam morta-
lium, quae paucis diebus ducitur et finitur, quid interest sub cujus
imperio vivat homo moriturus, si illi qui imperant ad impia et iníqua
non cogant?(30) . Apesar das expressões ambíguas, que se encon-
tram nas suas obras, não se pode responsabilizar o bispo de Hipona
pela evolução histórica de suas idéias na Idade Média. Limitou-se a
dizer que o Estado tem um fim subordinado ao da Igreja, e a elogiar
as figuras de dois grandes Imperadores cristãos: Constantino e Teo-
dósio. Sed felices eos dicimus, si juste imperant , si suam po-
testatem ad Dei cultum maxime dilatandum majestati ejus famulam
faciunt(31) .
O ideal teocrático foi concebido, muito provàvelmente só no
século IX, não pela cúria romana, mas pelo clero carolíngio(32).
The state was no longer regarded as something distinct frcm the
Church with independent rights and powers. It was itself a part, or
rather an aspect, of the Church(33). Mas, ao lado dessa concepção,
continuava a existir na sociedade medieval o conceito profano do
Império, cujos adeptos recorriam igualmente à autoridade de Santo
Agostinho. E assim como a primeira tendência, nas dadas circunstân-
cias, devia resultar na "papocracia" medieval, assim a segunda devia
redundar em Cesaropapismo. Uma vez transpostos os conceitos mís-
ticos do Hiponense em realidades históricas, tornou-se inevitável
um conflito entre os dois poderes: o Sacerdotium e o Imperium.
uma história variada, cheia de aspirações idealistas, de infrações mú-
tuas e de deficiências humanas. Seus primórdios remontam aos
dias dos primeiros Imperadores cristãos, e só uns mil anos após, e
nos tempos de Filipe, o Belo e Bonifácio VIII, devia ir morrendo
o universalismo medieval, o qual continua a ser sinal de contradição:
pedra de escândalo para muitos, ou, pelo menos, mera contingência
histórica; para outros, ideal obrigatório de tôda e qualquer organi-
zação cristã da humanidade.

. — Cf. Augustinus, Epistolae, XLIII e CLXXXV.


. Augustinus, De Civitate Dei, V 17.
. — Ibidem, V 24.
— Já para Carlos Magno era leitura predileta o De Civitate Dei, cf. Eginhardua,
Vita Caroli Magni Imperatoris: Delectabatur et libris sancti Augustini, prae-
cipueque his qui de Civitate Dei praetitulati sunt (c. 24) .
— Christopher Dawson, The Making of Europe, London, 1936, pág. 261.
— 499 —

III. Santo Agostinho e a História .

O De Civitate. Dei foi um dos livros mais lidos da Idade Média,


e chegou aos nossos dias em mais de 500 manuscritos. Aí os me-.
,clievos buscavam a solução de numerosos problemas: a posição do
homem perante a natureza, a cultura, o trabalho; a questão da
escravatura; a apreciação da família e do casamento, etc. E a vi-
são agostiniana da história dominava, globalmente falando, o pen-
samento europeu até os tempos de Bossuet; nem depois lhe fal-
tavam admiradores, um dos quais éra Augusto Comte (34) .
A obra exerceu uma influência duradoura, também no setor
da historiografia. Exteriormente, por sua divisão da história mun-
dial em seis épocas(35) e por seu retrato de certos personagens
históricos, tais como Catão, Décio, Alexandre Magno, etc. Mais
profundamente, porém, por acabar com a teoria dos ciclos histó-
ir ricos(36), substituindo-a pela fé numa Revelação progressiva atra-
vés dos séculos: a recta eruditio do gênero humano(37); por in-
sistir na origem comum de todos os homens (38); por frisar o sentido
transcedente da história; por salientar o govêrno justo e universal,
exercido pela Divina Providência, sem que êste nos tire a liberdade.
Contando com dados inacessíveis para a sabedoria pagã, abre
horizontes nunca avistados pelos filósofos da Antigüidade. Fides
,quaerens intellectum.
O De Civitate Dei não dá uma filosofia da história, no sen-
tido próprio da palavra, mas é antes uma teologia da história,
cujas perspectivas são meta-históricas. Não pretende descrever os
destinos ou as realizações dos vários povos por causa da sua im-
portância intrínseca: êste mundo é um "interim", pouco capaz de
cativar o interêsse daquele que tem os olhos dirigidos para a sua
eterna pátria. É parquíssimo em relacionar os acontecimentos da
bk. história profana com a história escondida das duas Cidades: não
u fala no papel providencial da filosofia grega, como fizeram alguns
Padres gregos, nem atribui uma função providencial ao Império Ro-
mano, como fizeram alguns latinos (39). Não sonha com a unificação

. — A obra foi por êle adotada na Bibliothèque Positive, figurando 'aí no quarto
lugar da quarta secção: 1) A Ética e a Política de Aristóteles; 2) A Bíblia;
3) O Alcorão; 4) A Cidade de Deus; 5) Le Discours de l'H:stoire Universelle,
de Bossuet; 6) Esquisse Historique des Progrès de l'Esprit Humain, de Coa-
dorcet.
. — Augustinus, De Civitate Dei, XXII 30,5; De Catechizandis Rud'bus, XXII 39;
De Diversis Quaestionibus, LXXXIII, 58,2-3; De Genesi contra Manichaeos,
I 35-42. — Cf. § 26 VII.
. — Augustinus, De Civitate Dei, XII 12-14, e 17.
(37). — Ibidem, V 18,3: Revelante Testamento Novo, quod in Vetere velatum luit...;
cf. Quaestiones in Heptateuchum, II 83: In vetere novum latet, et in novo
vetus patet. — Daí possuir caráter profético- o Velho Testamento, cf De Di-
versis Quaestionibus LXXXIII, 58, 2.
(38) . — Augustinus, De Civitate Dei, XII 21: XVI 8, 1-2.
.(39). — Dos gregos mencionamos Justino e Clemente de Alexandria; entre os latinos,
Ambrósio e o poeta Prudêncio.
— 500 —

política do mundo, e embora acredite que se possa restabelecer o Im-


pério(40), não crê na eternidade de Roma nem cede à tentação de ".,k■
predizer o próximo fim do mundo. São coisas que Deus não se
dignou comunicar-nos. Reconhece apenas que a pax romana, por
mais frágil e precária que seja, pode ser útil e proveitosa para os
cidadãos celestes. Em geral, não vai além de afirmações muito gené-
ricas, não se atrevendo a entrar nos segredos divinos: Haec plane
Deus unus et verus regit et gubernat ut placet: et si occultis causis,
numquid injustis? (41) .

§ 77. Paulo Orósio

Foi o sacerdote Paulo Orósio, natural de Braga em Portugal,


que entre 416 e 418 tratou de transpor os princípios do mestre
(42) para o plano da historiografia pràpriamente dita, no seu livro:
Historiarum Adversus Paganos Libri VII. O título já anuncia o ca-
ráter apologético da obra. Com efeito, o sacerdote bracarense
pretende apontar aos pagãos teimosos a esplêndida atuação da Di-
vina Providência nos acontecimentos históricos. A obra baseia-se
principalmente nos autores profanos Floro, Justino e Eutrópio(43);
além disso, na Bíblia e na História Eclesiástica de Eusébio, tradu-
zida por Rufino. Ao que parece, não tinha conhecimentos pessoais
dos grandes historiadores clássicos(44), mas a despeito de nume-
rosas deficiências historiográficas e alguns erros crassos, a obra
de Orósio gozava de uma imensa popularidade na Idade Média.

1. Tudo é meio em relação a Deus, até os Estados orgulhosos


que têm a pretensão de constituir um fim em si. Em última análise,
êles não decaem por motivos de ordem meramente biológica ou so-
cial, mas por serem órgãos que deixaram de exercer a sua função
sobrenatural. Os reinos de Babilônia, de Macedônia, de Cartago

(40). — Augustinus, Sermo, LXXXI 8: Mandas senesc't...; 9: Fartasse Roma


non perit: forte flagellate est, non interempta: forte castigata est, non deleta.
Forte Roma non perit, si Romani non pereant. . — A partir do ano 417-8,
talvez sob a influênc'a dos acontecimentos na . Espanha (cf. nota 48), Santo
Agostinho torna-se mais otimista quanto à sobrevivência do Império; foram
desiludidas as suas esperanças: em 430 o bispo morreu, enquanto Hipona era cer-
cada pelos vândalos.
<41). — Augustinus, De Civitate Dei, V 21.
— Orósio escreveu sua obra a pedido de Santo Agostinho, elaborando os ^prin-
cípios que o mestre expusera nos três primeiros livros.
— Floro, coevo do Imperador Adriano, escreveu uma Epitome Bellorum Romanorum
Libri H, obra baseada em excertos de Tito--Lívio e exemplo clássico de his-
toire-batailles (desde Rômulo até Augusto); Justino (século III) resumiu os 44
livros das Historiae Philippicae de Pompeu Trogo, contemporâneo de Tito-
Lívio; sua obra era uma espécie de história universal que tinha tendências
anti-romanas e focalizava principalmente o reino macedônico (como a obra do
h'storiador grego Éforo, cf. § 22 I, nota 19); Eutrópio, chanceler do Imperador
Valens (século IV); escreveu um Breviarium ab Urbe Condita em 10 livros
(de Rômulo até o seu tempo).
<44). — Segundo Orósio, Suetônio seria o autor do De Dello Gania°, e Salústio teria
relatado a guerra dácica do Imperador Trajanot
— 501 --

e de Roma desempenharam uma função messiânica de importância


progres(sivamente maior por se relacionarem, inconscientemente,
com Cristo e a salvação dos homens. Deus quis a vitória de Ciro
sôbre os babilônios para que os judeus pudessem regressar a Jeru-
salém; Deus quis a derrota de Aníbal para que o mundo se um-
ficasse sob o Império romano; Deus quis a unificação do mundo
sob Augusto para que se facilitasse a pregação do Evangelho e
para que Cristo, civis romanus, pudesse falar aos eives romani da
oikouméne mediante os seus apóstolos. Deus quis isto e aquilo.
E atualmente parece-nos o grande êrro de Orósio o de não ter igno-
rado nada dos desígnios divinos.

II. Mais interessante se nos afigura seu relativismo histórico


sistemático quanto ao árduo problema da felicidade humana, —
‹.r
tema êsse que, no século XIX, seria tratado outra vez, embora em
sentido diferente, pelo historiador suiço J. Burckhardt (cf. § 106 I).
A originalidade de Orósio não está em ter formulado(45), e sim
em ter aplicado sistematicamente, pela primeira vez, à matéria his-
tórica esta regra: a nossa emotividade ante o mal está na razão
inversa da sua distância, no tempo e no espaço(46) . Pouco nos
impressionam as derrotas dos inimigos de Roma: não obstante foi--
lhes causa de extrema miséria a nossa vitória. Poucos gratos so-
mos pela diminuição de certas catástrofes físicas em nossos dias,
por exemplo, a erupção do Etna e a praga dos gafanhotos na África
(47) . É a estreiteza egocêntrica do espírito humano que dá valor
completamente subjetivo a todos êsses fatôres. Orósio, porém, pro-
cede de maneira diferente: acentua os males do passado e ameniza
os do presente, chegando a certo juízo otimista (48) no que diz res-
peito aos tempos cristãos: a época das Grandes Invasões . Será
que trazem apenas calamidades? O autor nega-se a admití-lo, apre-
sentando aos seus leitores uma porção de razões consoladoras: os
bárbaros tornam-se cristãos, chegando a respeitar a vida e os bens
dos romanos; vão adotando cada vez mais os costumes e as insti-
tuições dos vencidos: inter Romanos Romanus, inter Chrisitianos
Christianus, inter homines homo legibus imploro rempublicam, re-

. — Já dissera Ammianus Marcellinus, Rerum Gestarum, XXXI 5,11: Negant anti-


quitatum ignari tantis malorum tenebris obfusam aVquando fuisse rempublicean,
sed falluntur malorum recentium stupore confixi; namque, si superiores vel
retens praeteritae evolvantur aetates, tales tarnque tristes rerum motus saepe
contigisse monstrabunt.
. — Devemos esta formulação ao livro de Mário Martins, S.J., Correntes da Fi-
losofia Religiosa em Braga dos Séculos IV a VII, Pôrto, 1950, pág. 189.
. — Orosius, Historiarum, V 2,6; I 6,1; I 21,17.
(48). — O otimismo de Orósio parecia, até certo ponto, justificado pela submissão dos
gôdos e seu chefe Ataulfo ao Império, no ano 417. Cf. P. Courcelle,
Paris, Hachette, 1949,
Histoire Littéraire des Grandes Invasions Germaniques,
págs. 80-89.
— 502 —

ligione conscientiam, communione naturam (49). Há mais: os


gôdos, há pouco o flagelo do Império, vão assumindo a defesa do
mundo civilizado sob seu chefe Ataulfo: (illum) elegisse saltem, ut
gloriam Gibi de restituendo in integrum augendoque Romano nomine
Gothorum viribus quaereret, habereturque apud posteros Romanac
restitutionis auctor, postquam esse non potuerat immutator (50).
O autor não nega os múltiplos males que atormentam a humani-
dade e que imputa ao pecado original: ego initium miseriae homi-
num ab initio peccantis hominis ducere institui(51) . Contudo, não
há desproporção entre os males nos tempos pagãos e os nos tem-
pos cristãos, como pretendem alguns pessimistas: as calamidades
são de tôdas as épocas e, no pensamento de Orósio, o Cristianismo
trouxe alguns bens visíveis ao mundo, por ser o cimento entre povos.
e civilizações diferentes. Eis a fonte de seu otimismo.

§ 79. O Evangelho Eterno

Os bárbaros que invadiram o território do Império Ocidental,.


não destruiram, — nem sequer quiseram destruir, — a civilização
helenista-romana: quiseram aproveitar-se dela, principalmente dos,
seus benefícios materiais(51a) . Uma vez passados os primeiros,
choques violentos, os germanos iam assimilando, aos poucos, a cul-
tura do Baixo Império, adaptando-a à nova situação, dando-lhe im-
pulsos originais e infundindo-lhe vigor juvenil. É evidente que com
n desaparecimento do antigo quadro social, político e racial certos
elementos foram eliminados, e outros profundamente modificados;
contudo, há certa continuidade com os antigos, muito mais do que
nas províncias romanas que foram ocupadas pelo Islam(52) .
essa continuidade efetuou-a a Igreja, a única instituição a sobrevi-
ver ao temporal da Grande Migração dos Povos. A Igreja, o pro-
longamento da Encarnação divina entre os homens, organizou
t
diretamente a nova sociedade européia. A época ficou com o nome
'•

depreciativo de "Idade Média" (cf. § 28 I): humanistas, protes-


tantes, e nacionalistas contribuiram para a difamação daquela "noi-
te milenária", degradando o adjetivo "medieval" a um sinônimo de
atrasado, "obscurantista, ignorante e supersticioso". Se não existe

— Orosius, Historiarum, V 2,3.


lbidem, VII. 43,6. — É nesse passo que aparece, pela primeira vez, a palavra
Romania.
Ibidem, I 1.1.
(51a). — O livro recente de P. Courcelle (cf. nota 48) foi inspirado, ao que nos parece,
pelos acontecimentos da segunda guerra mundial.
— Recomendamos a leitura das seguintes obras sintéticas, primeira iniciação na
cultura da Idade Média: Christopher Dawson, The Making of Europe, London,
Sheed & Ward, 1936'; do mesmo autor, Religion and The Rise of Western Cul-
4).1.
ture, London & New York, Sheed & Ward, 1951 5 ; H. Pirenne, Mahoznet et
Charlemagne, Bruxelles, 1936; E. K. Rand, Founders of The Middle Ages,
Cambridge, Mass., 1925; G. Schnürer, lerche und Kultur im Mittelalter 1-111,
'
Paderborn, 1924-1929 1 (trad. franc., L'Église et la Civilisation au Moyen
Age, Paris, Payot, 1933) .
— 503 —

011 motivo nenhum para idealizar a Idade Média nem para a consi-
derar como modêlo perfeito de valor absoluto para tôdas as épocas,
não é menos absurdo desacreditá-la como um período de barba-
rismo. Não podemos entrar aqui na discussão desta questão que'
quase nunca é tratada com a devida calma, nem sequer com os neces-
sários conhecimentos históricos. Basta dizermos aqui que o univer-
salismo medieval, a abranger todos os valores numa ordem hierár-
quica e objetiva, bem como sua visão teocêntrica nos parecem con-
cepções grandiosas, bem capazes de nos encherem de sentimentos
de saudades. Mas a luz resplandescente do ideal nos deve esconder
a presença de numerosas sombras na realidade medieva .
No dizer de Gilson(53), a concepção medieval da história
n'est ni ceife d'une décadence continue, puisque, au contraire, elle
affirme la réalité d'un progrès collectif et régulier de l'humanité
comine telle, ni celle d'un progrès indéfini, puisque elle affirme, au
contraire, que le progrès tend vers sa perfection comme vers un fin;
elle est bien plutôt Phistoire d'un progrès orienté vers un certain
terme. Os medievais, bem conscientes da sua situação histórica,
julgavam-se no setor da filosofia, das ciências e das artes, tributá-
rios dos antigos, e bem sabiam que seu Sacro Império -vera um
precursor no Império profano dos Césares; essas e muitas outras
heranças longe de os condenarem a uma vida inerte e vegetativa,
obrigavam-nos constantemente a um esfôrço original: o de enqua-
drá-las harmônicamente na sua concepção cristã do mundo e de
continuar uma gloriosa trEdção secular. É verdade, não possuiam o
"senso histórico" na acepção moderna da palavra, mas dêle se
aproximavam muito mais do que os antigos, devido à sua apreci-
ação positiva do processo histórico; tampouco chegavam a uma
"filosofia da história" prèpriamente dita (54 ) . Predominava uma
visão teológica da história, inspirada pela obra agostiniana (55) .
Neste parágrafo pretendemos falar de Joaquim de Fiore, cujos
livros revelam uma ruptura com essa tradição secular.
I. Joaquim de Fiore ( 1140-1202 ), abade de um mosteiro
cisterciense na Calábria, partindo de uma noção pouco ortodoxa
da Santíssima Trindade, dividia a História em três períodos
(status), cada um dos quais devia ser a manifestação de uma das
três Pessoas divinas (56) . A época do Pai começou com Adão e

(53) . — E. Gilson, L'Esprit de la Philosophie Médiévale, Paris, Vrin, II pág. 187.


— Mencionamos aqui um filósofo árabe, Ibn Chaldun ou Abendjaldun (1332-1406),
que elaborou nos Prolegômenos da sua História Universal uma filosofia da his-
tória, que, na Europa, nasceria só no século XVIII. Os interessados na obra de
Ibn Chaldun consultem Julían Marfas, La Filosofia en sus Textos, Barcelona,
etc., Editorial Labor, 1950, I págs. 450-463, e A. Toynbee, A Study of History,
por exemplo. III págs. 321-328, e X págs. 84-87.
— Assinalamos aqui apenas uma Crônica medieval de cunho filosófico, escrita por
Otão de Freising (±- 1115-1158): Chron:ca, sive Historia da Duabus Civitatibus.
Já o título traz uma reminiscência da obra agostiniana.
— Num tratado contra o Liber Sententiarum de Pedro Lombardo (bispo de Paris,
século XII), Joaquim chegava a certo "triteí smo", d zendo unitatem (divi-
— 504—

teve seu têrmo na vida e na morte de Jesus Cristo; começou a fru-


tificar em Abraão . Caracterizava-se pelo temor servil à lei e pelo
duro trabalho: era o status dos leigos e casados, e possuía apenas
a scientia, um conhecimento muito imperfeito dos planos divinos.
A segunda época começou com o profeta Eliseu (século IX a.C. )
ou com Oséias, o último rei de Israel (século VIII a. C.), e teria
seu fim num futuro muito próximo (por volta do ano 1260 d.C. );
começou a frutificar em Jesus Cristo. É época do Filho, caracte-
rizada pela obediência filial, pela fé e pela humildade, a possuir a
sapientia ex parte: por ser ligada a um livro e aos sacramentos, —
coisas exteriores, — é o meio-termo entre a escravidão e a liberdade,
entre a carne e o espírito, o status dos clérigos. A terceira época é
a do Espírito Santo ou do Evangelho Eterno, a qual não tardará
em vir; começou com a fundação do monacato ocidental por São Ben-
to e terá seu têrmo quando reaparecer o profeta Elias. Será a época
da sapientia perfecta e da completa liberdade espiritual; não pos-
suirá uma hierarquia, cuja característica é o dominium saeculare,
mas .todos serão livres e obedecerão, de boa vontade, à orientação
inteiramente espiritual de uma nova ordem, Ordo Justorum (= Cis-
tercienses?). Será o status dos monges. Como se vê, não são com-
pletamente distintos os três períodos, mas eles coincidem parcial-
mente: estando no seu apogeu o status Patris, anuncia-se o do Filho,
e êste, por sua vez, chegado à sua plenitude, deve ceder seu lugar ao
do Espírito. Há um processo ininterrupto de progresso espiritual
na história humana, o qual terá por prolongamento a vida na Eter-
nidade.
II. Joaquim pretendia ter recebido uma revelação particular
na festa de Pentecostes (entre 1190 e 1195), a expor-lhe o sen-
tido oculto do Apocalipse (57): em virtude dela julgava-se capaz de
interpretar a marcha da história, embora tomasse o , cuidado de se
servir de uma linguageni muito obscura. São Tomás deu a resposta
católica às especulações vagas e místicas de Joaquim, dizendo:
Lex nova, cum omnibus moclis perfecta sit, nulla alia lex ei succedet,
sed usque ad saeculi consummationem est duratura (58). Com
efeito, Cristo trouxe a plenitude da Revelação, a qual neste mundo
não será aperfeiçoada, e o Santo Espírito apareceu aos apóstolos,
comunicando-lhes tudo quanto deviam saber em relação à eterna
salvação: non tamen docuit eos de omnibus futuris eventibus; hoc

nem) non verem et propriam, sed quasi collectivam et similitudinariani es-


se. quemadmodum dicuntur multi homines anus popu/us, et multi /ideies
una Ecclesia, teoria essa que foi condenada pelo Quarto Concilio do Laterano
em 1215 (Denzinger, 431) •
. — As obras principais de Joaquim são: Concordia Novi et Veteris Testamenti,
Expositio in Apocalypsim, e Psalterium Decem Chordarum .
. — Sanctus Thomas, Surnma Theologica, Ia-IIae, a. 106, q. 4 (conclusio et ad
Zum) .
— 505 —

enfim ad eos non pertinebat, secundum illud: "Non est vestrum,


nosse tempora vel momenta, quae Pater posuit in potestate sua"
(Atos, I 7) .

III. Joaquim, aderindo a uma espécie de "triteísmo", acreditava


em três Testamentos progressivos: o Velho Testamento, o Novo
Testamento e o Evangelho Eterno; admitia dois "éschata": um
fim histórico, — o Evangelho Eterno, — e um fim meta-histórico,
— a vida eterna (58a) . Por mais heterodoxas que fôssem essas
idéias, não eram poucos os que atribuiam muita importância
às profecias joaquinas: não se conformavam com a seculari-
zação da Igreja, e viam no zeloso abade um inspirado de
Deus. O franciscano italiano Gerardo di Borgo S. Donnino, que
estudava em Paris, publicou em 1254 um tratado, chamado: Intro-
ductorius in Evangelium Aeternum, em que identificava as obras
de Joaquim com o Evangelho Eterno de que falara o Apocalipse
(XIV 6); ceder-lhe-ia o lugar o Evangelium Christi no ano 1260
(59); a nova ordem, da qual falara o abade calabrês, seria a que
havia pouco fôra fundada por São Francisco de Assis (1182-1226):
era êste o novus dux, anunciado por Joaquim. Essa interpretação
foi adotada pelos Espirituais ou Fraticelli, os observadores rigoro- -
sos e intransigentes da regra franciscana, que constituíam um ele-
mento revolucionário na história da Igreja medieval e consideravam
a Igreja romana, com sua hierarquia, como carnal: Babylon et me- .
retrix, expressões que, uns três séculos depois, se tornariam corri-
queiras no vocabulário de Lutero. Abominando a pessoa do Impe-
rador Frederico II, identificavam-no os Espirituais com o Anti- -
cristo(60), que se esforçaria em vão por contrariar a vinda do Evan-
gelho Eterno. Nem a morte do. Imperador (1250) nem as fre- .
qüentes condenações eclesiásticas conseguiram pôr têrmo defini-
tivo à heresia, que perdurou até os fins da Idade Média. Dante,
embora acreditasse na plenitude do Evangelho de Jesus Cristo e
pouco simpatizasse com os Fraticelli, os desprezadores do Império,
fêz menção honrosa de Joaquim dando-lhe' um lugar de destaque no .
Paraíso: il calabrese , abate Gioacchino, di spirito profetico dota-
to(61) - .

(58a) . — Por isso Joaquim pertence, suo modo, — aos chamados "quiliastas" ou
"milenários", seitas heterodoxas que acred , tam na vinda de um reino messiâ-
nico (de 1000 anos, cf. Apocalipse, XX) neste mundo, antes da consuma-
ção dos tempos. Ass'm opinavam, na Antigüidade cristã, por exemplo Lac-
tâncio e Tertuliano (montanistas!), e nos tempos modernos, por exemplo os
adventistas e os mormões.
(59). — O cálculo é baseado nestas especulações: São Mateus (I 27) dá 42 gerações
de Abraão a Cristo. Ora, 42 gerações, cada uma de 30 anos. fazem 1260 anos,
a duração de um período joaquino. Também o Apocalipse (XI 3; XII 6) fala
em períodos de 1260 anos. Joaquim pertencia, portanto, à quadragésima ge-
ração depois de Cristo.
. — Joaquim admitia dois Anticristos: um no fim do segundo período, o outro
no fim da h'storia.
. — Dante, Paradiso, XII 140-141.
— 506 --

§ 80. As metamorfoses da Cidade de Deus

Chamamos agora a atenção dos leitores para duas "metamor-


foses" medievais da Cidade de Deus (62) .
I. Rogério Bacon (1215-1294); franciscano inglês e sábio
universal (62a), que adivinhava um desenvolvimento vertiginoso das
ciências e das técnicas(63), concebia o ideal de uma respublica
fidelium, dirigida pelo papa (64) e a ser orientada pela sapientia.
Apesar de ser composta dos mesmos membros que a Igreja, não se
confunde com ela, porque esta tem um fim sobrenatural, ao passo
que a respublica tem por finalidade o bem-estar temporal e material
dos fiéis. Em tese é universal, do mesmo modo que a Igreja, e deve
esforçar-se por sê-lo na realidade: propagar o Cristianismo, median-
te a persuasão e, sendo necessário, mediante a coação, será uma
das suas tarefas principais. Para êsse fim duplo, — garantir a fe-
licidade temporal dos súditos e propagar a fé cristã, — devem
contribuir observações científicas, experiências físicas, estudos ma-
temáticos: "o alfabeto de tôda a filosofia", e afinal, o emprêgo de
instrumentos mecânicos. A classe dominante da respublica baco-
niana será constituída pelos filósofos e cientistas, os possuidores da
sapientia, o que, nessa época, equivale a dizer: serão os clérigos
esclarecidos os orientadores da Cristandade, sob o primado uni-
versal do Papa. O autor era inimigo figadal do Direito Romano,
que no seu tempo começava a seduzir tantos espíritos: "uma in-
venção de leigos para governar leigos": queria substituí-lo pelo direito
canônico, que é verdadeiramente universal. Adepto da teoria platô-
nico-agostiniana de que o homem adquire os primeiros princípios
mediante uma intervenção particular de Deus, Bacon, ao contrário
de São Tomás, mistura ciência e fé, e torna confusos 'os limites entre
a natureza e o sobrenatural; apesar de seu pendor por experiências
científicas e a despeito das suas inclinações por assuntos filosófi-
ficos, não atribui valor autônomo às ciências ou à filosofia, redu-

. — Cf. E. Gilson, Les Métamorphoses de la Cité de Dieu, LouvaM-Paris, 1952,


e a crítica a êsse livro, feita pelo Prof. L. Van Acher in Revista Brasileira
de Filosofia, IV 4 (1954) .
(62a) . — Bacon tinha vastos conhecimentos lingüísticos para seu tempo: latim, grego,
hebraico, árabe e caldeu. Criticava o texto parisiense da Vulgata que chamava
corruptus horribiliter, e numa carta ao papa Clemente IV dizia: . .quot sunt
!actores per mundum, tot sunt correctores seu magis corruptores, suplicando-
lhe que mandasse fazer uma edição crít'ca. Editou uma gramática grega (a
única do século!) — Além disso ocupava-se com a química, ótica, física,
filosofia, teolog'a, etc. Ficou o original frade com a alcunha de Doctor Mi-
rabilis
. —No capítulo IV do seu livro De secretis operibus artis et naturae prediz'a a
invenção do vapor d'água, do automóvel e do aeroplano.
— A respublica fidelium deverá ser dirigida por um príncipe temporal, mas sob
a orientação do papa e dos clérigos. — Bacon dedicava seu Opus Tertium
ao Papa Clemente IV (1265-1268), seu antigo companheiro de estudos em
Paris, d zendo-lhe: Habetis Ecclesiam Dei in potestate vestra, et mundum ha-
betis dirigere.

— 507 —

zindo-as, em última análise, à uma iluminação divina. Assim como ,


nega a existência de um legítimo saber humano, assim nega também a
autonomia do poder temporal, chegando a fazer absorver o Estado
pela Igreja.
II. O poeta florentino Dante Alighieri (1265-1321) desen-
volvia, no seu opúsculo De Monarchia (escrito em latim), idéias de-
tendência mais laica . Como Bacon, sonha com um Império univer-
sal e cristão, dando-lhe, porém, feições bem diferentes. As três
grandes teses do seu tratado, escrito com todo o rigor lógico da es-
colástica são estas: a monarquia universal é necessária para o bem-
estar do mundo por corresponder perfeitamente à vontade divina e à.
natureza do homem (65); o povo romano conquistou com muito di-
reito a monarquia universal, a qual foi reconhecida pelo próprio

■ Cristo(66); e afinal, o poder do Imperador não depende diretamente


!tí, do Vigário de Cristo(67) . Os duo luminaria humanitatis depen-
dem diretamente de Deus. Visto que o Império mundial é uma
instituição ordenada por Deus, o Imperador Constantino não tinha o
direito de alhear a propriedade do mundo ocidental ao papa(68) .
Assim como Bacon impugnava os "legistas", assim Dante combate
os decretalistas, qui theologiae ac philosophiae cujuslibet expertes,,
suis decretalibus tota intentione innixi, de illorum praeva-
lentia, credo, spe?antes, imperio derogant (69) . Não chega, porém,
à negar certa subordinação do Imperador ao Papa: Quae quidem ve.
ritas ultimae quaestionis non sic stricte recipienda est, ut Romanus
Princeps in aliquo Romano Pontifici non subjaceat: quum mortalis
ista felicitas quodammodo ad immortalem felicitatem ordinetur.
Illa igitur reverentia Caesar utatur ad Petrum, qua primogenitus
filius debet uti ad patrem: ut lute paternae gratie illustratus vir-
— Dante, De Monarchia, I 2: Est ergo temporalis Monarchia, quam dicunt Im-
perium, unicus Principatus et super ornnes in tempore vel in his et super iis
quae tempore mensurantur. — Cf. I 8: O gênero humano deve imitar, na me-
dida do possível, a un'clade divina; ora, essa unidade do género humano pode
ser melhor efetuada por uma única monarquia universal; logo, a monarquia.
universal corresponde aos desígnios divinos.
— Ao conquistar o Império, o povo romano não se deixava guiar por cobiça ou
sentimentos de vingança, mas (II 6): subjiciendo sibi orbem, finem juris
intendi!. Cristo reconheceu a legitimidade do Império, submetendo-se à juris-
dição de Pôncio Pilatos (II 13): Si ergo sub ordinario jud:ce Christus passus
non fuisset, illa poena punitio non fuisset. Et judex ordinarius esse non po-
terat, nisi supra totum genus humanum jurisdictionem habens... Et supra to-
tum humanus genus Tiberius Caesar, cujus vicarius erat Pila tua, jurisdictionem.
non habuisset, nisi Romanum Imperium de jure fuisset. — Cf. também §
49 II b.
— Ibidem, III 4: Sed ergo dito, quod regnum temporale non recipit esse a spi--
rituali, nec virtutem, quae est ejus auctoritas, nec etiam operationem simpliciter;
sed bene ab eo recipit, ut virtuosius operetur per fucem gratiae quam in caelo
et in terra benedictio summi Pontificas infundit
. Ibidem, III 10: Nemini licet ea facere per officium sibi deputatum quae sunt
contra illucl officium; guia sic idem, in quantum idem, esset contrarium sibi;
quod est impossibile; sed contra officium deputatum Imperatori est scindere
Imperium, cum officium ejus sit humanum genus uni velle et uni noIlle tenere-
subjectum...; ergo scindela Imper:um Imperatori non licet. — Cf. § 48 I
nota 75.
. — Ibidem, III 3.
---- 508 ---

tuosius orbem, terrae irradiet, cui ab Illo sole praefectus est, qui est
omnium spiritualium et temporalium gubernator (70) .
As tendências imperialistas do De Monarchia, compreensíveis
numa época em que as usurpações da política papal provocavam
uma reação forte (Bonifácio VIII), prejudicaram a boa reputação
opúsculo de Dante: freqüentemente impugnado durante a Idade
Média, o tratado foi pôsto no Index Librorum Prohibitorum (século
XVI), do qual o tirou só o Papa Leão XIII.

(70) . — Ibidem, III 16. — Cf. E. Gilson, Dante et Ia Philosophie, Paris, Vrin, 1952 2,
págs. 163-222 .
CAPITULO TERCEIRO
DA TEOLOGIA A FILOSOFIA DA HISTÓRIA

§ 80. A Renascença
Originàriamente, o têrmo "Renascença" ou "Renascimento"
indicava apenas um novo estilo nas belas artes, inspirado pelos mo-
numentos da Antigüidade e oposto ao estilo "gótico" ou "bárbaro"
da Idade Média: nasceu na Itália e espalhou-se, aos poucos, por
outros países europeus, onde, porém, nunca chegou à popularidade
de que gozava na terra da sua origem. Como outros têrmos esti-
lísticos (cf.. § 28), acabou por designar uma época histórica (sé-
culos XV e XVI), que marca uma profunda incisão na vida cul-
.

tural do Ocidente. A Renascença é um fenômeno bastante com-


plexo, a reunir em si várias correntes que, à primeira vista, pode-
riam parecer contraditórias. Neste parágrafo introdutório assina-
lamos sàmente algumas das suas feições mais características.
I. Absolutismo e Nacionalismo.
A sociedade medieval tinha-se organizado sob os auspícios,
e até sob a liderança direta, da Igreja. A Renascença presenciou o
nascimento do absolutismo e do nacionalismo, ambos em oposição
ao ideal medievo de uma teocracia — ou de um Império, — univer-
sal. O processo de transição foi preparado pelo estudo do Direito Ro-
mano e favorecido pela desagregação do poder papal desde o pon-
tificado de Bonifácio VIII (1294-1303), seguido do cativeiro dos
"<" papas em Avinhão (1309-1377) e do Grande Cisma Ocidental
(1378-1429) . A Universidade de Bolonha, continuando uma tra-
dição que remontava à Antigüidade, era o centro de estudos jurí-
dicos, onde ensinavam os grandes "legistas" ou "glosadores" da
época (1) . As lutas do Imperador Frederico II (1212-1250) e as
do rei Filipe, o Belo (1285-1313) contra os papas tinham solapado
a hegemonia do Sacerdotium, a qual nos tempos de Gregório VII
(1073-1085) e de Inocêncio III (1195-1216) fôra uma realidade
impressionante. E os papas da Renascença (2), na maioria, infe-
. — Aí estudou por exemplo o célebre jurisconsulto português João das Regras,
chanceler-mor de D. João I (1385-1433), talvez o primeiro compilador das
famosas "Ordenações", e um dos principais personagens do romance histórico
de Alexandre Herculano: O Monge de Cister (1848) .
. — A série dos papas renascentistas começa por Nicolau V (1447-1455), e termina
por Clemente VII (1523-1534) . O infeliz Adriano VI (holandês, 1522-1523)-
foi o último papa não italiano.
— 510 ----

lizmente, mais príncipes mundanos do que pastores do rebanho de


Cristo, prejudicavam o prestígio do poder espiritual penosamente
reconquistado, depois de estar comprometido seu poder temporal
sôbre os reis cristãos. O Sacro Império, que, apesar de quase sem-
pre constituir uma realidade precária, nunca deixara de ser uma alta
aspiração da Cristandade medieva, ia sendo abandonado como ideal.
II. Descobrimentos e Descobertas.
Caracteriza-se a Renascença pelo descobrimento do mundo ma-
terial (3), da natureza (4) e do homem na sua individualidade e
originalidade (5) . O homem ocidental descobre a terra com suas
maravilhas, e descobrindo em si potências adormecidas, vai-se afir-
mando a si próprio; sacode de si os inúmeros laços sociais e con-
vencionais que lhe poderiam impedir o livre e autônomo desenvol-
vimento das suas faculdades. Entusiasma-o o ideal do "grande indi-
víduo forte" (6) que, livre de embaraços sociais e prevenções tra-
dicionais, cria o seu mundo, fazendo conquistas, pesquisas e experi-
ências; que consegue impor briosamente sua vontade a outros; que
leva uma vida intensa, dinâmica e original. Afirmando com ênfase
os valores da terra, — já não considerada como vallis lacrimarum,
— corre o risco de ir esquecendo seu destino transcendente; mara-
vilhado pelas grandiosas descobertas, tende a menosprezar as artes
e a filosofia (7 ), da Idade Média, e a exaltar as realizações de um
novo século de ouro.
(3) . E' bem conhecida a escola de navegação que o Infante D. Henrique (1394-
1460) fundou em Sagres; ao morrer, deixava reconhecida a costa africana
até a Serra Leôa. Em 1471, os portuguêses passaram o Equador. Em 1487,
Bartolomeu Dias dobrou o Cabo Tormentoso (=depois, o Cabo de Boa Es-
perança) . Em 1492, Cr'stóváo Colombo descobriu o arquipélago das Baamas,
Cuba, etc. Em 1497-1948, Vasco de Gama descobriu o caminho marítimo para
as índias. Em 1500, Cabral descobriu o Brasil. De 1519 a 1522 realizou-se
a primeira circunavegação do globo (Magalhães e Elcano) . — E' interessante
confrontar a mentalidade conquistadora e aventureira do poeta renascentista,
Luís de Camões (" ...as memórias gloriosas daqueles reis que foram dilatando a
Fé, o Império... cantando espalharei por tôda parte") com a interpretação
"medieval" das viagens de Ulisses por Dante ( cf. Inferno, XXVI) .
— Em diversos sentidos da palavra: descobre-se a beleza da paisagem e do corpo
humano; os fenômenos físicos vão sendo estudados cada vez mais de maneira
empírica, vindo a ser abalada a autoridade de Aristóteles neste ponto; a in-
venção da bússola e o emprêgo de mapas científicos possibilitam o descobri-
mento de outros continentes; mencionamos ainda a invenção da tipografia, e a
revolução na astronomia feita por Copérnico (1473-1543) .
— Segundo o h'storiador francês, Jules Michelet (1798-1874), a originalidade
da Renascença seria la clécouverte de Phomme et de la nature (in Histoire
de France, 1835), tese essa que depois seria reencetada e desenvolvida por
J. Burckhardt (in A Cultura da Renascença na Itália, 1860) . Essa opinião,
que se tem mantido até os nossos dias, exige várias precisões e restrições. Visto
ser impossível "defini" as tipologias históricas, é bastante perigoso jurar por
fórmulas sem lhes examinar o conteúdo.
. E' chamado, na política, l'uomo di virtà ("homem de valor", ou "homem
forte"), ao qual corresponde, na vida cultural, l'uomo universale (exemplos,
Giovanni Pico della Mirandola, 1463-1494, que discuta de omni re scibili
et inscibUi, e o genial Leonardo da Vinci, 1452-1519) .
. — A escolástica do fim da Idade Média sofria de graves defeitos: não prestava a
devida atenção aos problemas reais, contentando-se com soluções fáceis e su-
perfic'ais, e eliminando o mistério; renunciava ao espírito de invenção, e repe-
tia as palavras dos mestres do passado; além disso, ia-se diluindo no Termi-
nismo, seita filosófica fundada pelo frade franciscano William Ockham (1295-
1349), que negava o valor objetivo dos universais.
— 511 —

A Renascença é, por assim dizer, a crise de puberdade da socie-


dade européia, a qual, até então, tinha sido educada pela Igreja: o
homem ocidental julga chegado o momento de organizar autono-
mamente o mundo sem a intervenção da mãe que lhe guiara os
passos durante a infância . Destruídas ou enfraquecidas antigas uni-
dades sociais, o renascentista, anàlogamente a um adolescente: se
,

siente solo, aislado, con su nuda individualidad; siente a la vez el


riesgo y la delicia de esta independencia desligada; está lleno de in-
seguridad y de audacia (8) . O processo de emancipação não foi sem
experiências dolorosas e decepções amargas, e o homem do século
XX, neto do renascentista, está farto da liberdade levada ao ex-
tremo, e vai procurando novas ligações .
Se a Renascença é uma crise muito grave no terreno da reali-
dade, da moral e da filosofia, é uma fase esplêndida no campo das
artes, ciências e letras. Muitas vêzes se salienta o elemento pa-
-ik gão da época (o imoralismo, a volúpia do poder, a libidinagem, o
"estetismo", o desprêzo da religião, etc.). Decerto, êsse não lhe falta,
mas devemos reconhecer que há também uma Renascença cristã,
não menos vigorosa e brilhante do que a outra . Vistos na sua to-
talidade, os séculos XV e XVI são mais cristãos e, em alguns pon-
tos, até mais "medievais" do que se pensa freqüentemente: a gran-
de ruptura com o passado cristão verificou-se só na segunda metade
do século XVII. Mas a Renascença, por manifestar uma confiança
excessiva nas possibilidades do "homem natural", preparava a men-
talidade "naturalista" de gerações posteriores; a afirmação enérgica
do valor do "grande indivíduo", ao qual não raro era sacrificada a
dignidade da pessoa humana, podia resultar facilmente no abandôno
dos autênticos valores sociais e da autoridade; a proclamação da auto-
nomia humana, a qual, em última análise, é a independência de um
ser dependente, podia degenerar numa concepção antropocêntrica do
mundo; e a ilusão racionalista, podia originar uma atitude "a-histó-
rica", a revelar-se num menoscabo à tradição e às instituições do pas-
sado como também numa tentativa esforçada de "reviver", na reali-
dade, a vida da Grécia e de Roma. Contudo, o pensamento renas-
centista não chega, em geral, ao relativismo dos tempos modernos,
mas continua "absolutista" e autoritário: à autoridade da Bíblia e
da Igreja acrescenta-se, — ou opõe-se, — a dos grandes autores clás-
sicos. Ainda se procuram normas absolutas, mas se lhes dá uma
base diferente da que tinham na Idade Média.

c,

(5) • — Julían Marías, La Filosofia en sus Textos, Editorial Labor, Barcelona, 1950,
I pág. 697.
— 512 —

III. O Regresso à Antigüidade.

O "Regresso à Antigüidade", muito embora seja um traço sa-


liente e integrante da Renascença, não passa de uma das suas carac-
terísticas secundárias . Não foram os renascentistas que "descobri-
ram" a Antigüidade: também a Idade Média lia, copiava e estu-
dava os autores clássicos na medida do possível (9); o "humanismo"
do século XIII era até mais harmônico e profundo do que o huma-
nismo um tanto exaltado e pedante da Renascença . Mas os renas-
centistas, em virtude da sua posição alterada ante o mundo, o
:homem e a sociedade, estudavam e interpretavam os antigos com
preocupações que eram alheias aos medievos. Êstes eram clérigos, a
interessar-se principalmente pelo aspecto da verdade nos textos clás-
sicos, e essa verdade procuravam integrá-la num sistema religioso
de verdades reveladas, transmitidas e explicadas pela Igreja; na Re-
nascença, os leigos iam contestando cada vez mais ao clero o mono-
pólio do alto saber e, ao se dirigirem à Antigüidade, tinham sobre-
tudo ideais estéticos e interêsses laicos, não teológicos. Mantinham
um verdadeiro culto ao belo, culto amiúde um pouco frio e forma-
lista, e desprezando quase totalmente a cultura clerical dos séculos
passados, idolatravam a literatura clássica, a revelação do "homem
natural", a qual ameaçava ir substituindo a Revelação divina da
Bíblia. Ia-se formando uma respublica bonarum litteratum, possi-
bilitada pela nova invenção da tipografia e composta da elite cul-
tural de vários países: seus ministros eram os humanistas que, vi-
vendo afastados do povo (10), consideravam como uma espécie de
apostolado emendar, editar, comentar e imitar os autores da Grécia
(11) e de Roma. Reserva-se, em geral, o têrmo "humanismo" para
o estudo aprofundado da literatura clássica, praticado com tanta
paixão nessa época: o "humanismo" constitui, portanto, o aspecto

. — Lembramos apenas o programa escolar das 7 artes liberales (grammatica, rhe-


torica, dialectica, arittunetica, geometria, musica e astronomia), que remonta
a uma praxe do Baixo Império; o copiar e o estudo dos textos latinos nos mos-
teiros; a renascença carolíngia e otoníngia; o renascimento dos estudos aristo-
télicos no século XIII ( em traduções latinas, das qua's a mais importante é
a do flamengo Willem van Moerbeke, utilizada por São Tomás) .
. — Conforme o dito de Horácio (Carmina, III 11,1, que podia servir de divisa
para a maior parte dos humanistas: Odi profanam wulgus et arceo.
— Os autores gregos eram mal conhecidos na Idade Média, pelo menos direta-
mente; o prime'ro professor de grego no Ocidente foi Manoel Crisoloras (em
Florença, 1397; cf. Roger Bacon, § 80 I, nota 62); Petrarca (1304-1374),
apesar dos seus estudos com o monge basiliano Barlaamo, não conseguiu ler
correntemente grego. A s'tuação começou a modificar-se só no século XV, prin-
cipalmente depois da Queda de Constantinopla (1453), quando muitos eruditos
bizantinos fugiram para a Itália, levando consigo manuscritos e conhecimentos
práticos. Nos séculos XVI e XVII, o humanismo europeu baseava-se prepon-
derantemente nos estudos latinos; se fizermos abstração de alguns helenistas ilus-
tres (Erasmo, Vossius, Stephanus, etc.), o grego, após uma renascença pouco
duradoura, era menos conhecido nesses séculos pelas pessoas cultas da Europa
do que no século XIX, e êsse novo surto era principalmente devido ao Neo-
Humanismo de origem alemã.
-513—

literário e filológico da Renascença. Nasceu igualmente na Itália,


que nunca perdera por completo os laços que a prendiam à Antigüi-
dade, mas, ao contrário do estilo renascentista, conseguiu tornar-se
um fenômeno internacional (12), ainda que sempre limitado às
classes cultas da sociedade, e sobreviveu à Renascença.

IV. A Reforma.

A essas correntes de confiança otimista nas possibilidades do


"homem natural" e na razão humana, opõe-se o Protestantismo, a
professar a corrupção completa da natureza humana e a desconfiar
cia razão (13) . Mas, ao examinarmos bem alguns aspectos do Pro-
testantismo primitivo (14), podemos verificar que se coadunam
orgânicamente com certas convicções fundamentais da época. Assim
como o humanista despreza a Idade Média como um período de
barbárie, esperando um novo apogeu da cultura humana graças
er,
aos estudos clássicos, assim o reformador, no setor religioso, abo-
mina a Igreja secularizada e exteriorizada da Idade Média, queren-
do regressar à simplicidade espiritual do Cristianismo primitivo,
sem a intervenção de uma tradição corrompida. O renascentista
frisa a autonomia do homem no seu esfôrço de organizar o mundo
e a sociedade, e de conhecer a natureza; o reformador exige êsse di-
reito também na sua vida religiosa, proclamando o livre exame da
Bíblia e detestando a hierarquia da Igreja Romana.
Não devemos subestimar a inspiração genuinamente religiosa
dos reformadores e sua profunda indignação moral contra os abusos
existentes na Igreja durante o "Outono da Idade Média". Com efeito,
a Igreja, por demais incorporada numa sociedade histórica ao ponto
de se identificar com ela, estava sèriamente comprometida, e Lutero
tinha mais preocupações religiosas do que seu parceiro, o papa Leão
X. Mas o Protestantismo, por acentuar unilateralmente a transcen-
dência de Deus e por regressar ao Jahvé inclemente do Velho Testa-
mento, chegava a esquecer-se do Deus de amor e do mistério cen-
tral da fé cristã: a Encarnação. Atacando os abusos humanos, de-
e

. — Muretus e Valla na Itália; Scaliger (pai e filho) na França; Thomas Morus na


Inglaterra; Erasmo na Holanda; Melanchthon na Alemanha; Vives na Espanha;
D. Jerônimo de Osório em Portugal.
. Segundo Lutero, a razão é "a grande meretriz, a noiva do diabo" (d.'e Erzhure
und Teufelsbraut), "a inimiga primeira da fé" (die Erzfeindin des Glaubens)
ou "a boba que deve ser estrangulada" (der Nãrrin Vernunft den Hals um-
drehen). — Calvino não usou expressões tão fortes, mas seu sistema, a exaltar
a majestade de Deus em detrimento da liberdade humana, está longe do hu-
manismo medieval; aos dois reformadores é comum uma depreciação radical
da natureza humana em razão do pecado original, o qual não é efetivamente
perdoado pelo batismo.
4 (14). — E' importante distinguirmos entre o Protestantismo primitivo (séculos XVI-
XVII), autoritário e absolutista, e o Protestantismo moderno (desde 1750), sub-
jetivista e relativista. — Cf. E. Troeltsch, El Protestantismo y el Mundo Mo-
derno, Breviario del Fondo de Cultura Económica, México-Buenos Aires, 1951.
— '514

sumarnzavam a religião; realçando a majestade divina, aniquila-


vam o homem. As distinções fecundas, ;laboradas por tantos . pep-
sadores medievais, entre a graça e a natureza, entre a têologia' e'a
filosofia, entre a religião e a cultura, passaram a ser oposições fa-
tais e irreconciliáveis. Foi destruída a síntese entre o céu e a terra,
e o abismo, criado entre Deus e o homem, devia resultar na seculari-
zação da cultura ocidental.
Segundo alguns historiadores (15), o Protestantismo, por fri-
sar a vocação terrestre do homem e por dignificar o trabalho e a
profissão, seria o grande responsável pelo nascimento ou, ao menos,
pelo desenvolvimento do espírito capitalista nos tempos modernos.
É uma questão complexa, tornada mais complicada ainda pelo
equívoco do têrmo "Capitalismo", muitas vêzes confundido com
"mamonismo", vício inerente a tôdas as gerações humanas. O capi-
talismo como concepção individualista e utilitarista da riqueza, a
ser adquirida e desfrutada com liberdade, ilimitada, ,é, anterior, ao
Protestantismo, e chegou a ser uma mentalidade., predominante em
diversas repúblicas da Itália do Norte nos séculos XIV e XV (16);
Lutero e Calvino eram 'adversários irredutíveis dessa mentalidade;
por outro lado, não foram êles os primeiros a propor ao homem
sua missão terrestre, pois já a Igreja medieval tinha dignificado,
e até santificado, o trabalho e a profissão (corporações, o trabalho
manual dos monges, etc. ), e a Contra-Reforma não deixava de
afirmar os mesmos ensinamentos (São Francisco de Sales!). Pode
ser, porém, que algumas seitas protestantes, principalmente as de
origem calvinista, por se considerarem um novo "povo eleito," por
condenarem todo o luxo, e por verem na riqueza uma prova visível
da predestinação divina, tenham favorecido positivamente o desen-
volvimento do espírito capitalista. Mais importante, contudo, é a
influência negativa: Protestantism encouraged capitalism inasmuch
as it denied the relation between earthly action and eternal recom-
pense. . . Calvin linked salvation to arbitrary divino predestination,
Luther mude it depend upon faith alone . . Such an assertion inva-
lidates any supernatural morality, hence alho the. economic ethics of
Catholicism, and opens the way to a thouaand moral systems, all
natural, ali earthly, ali based on principies inherent in human
affairs (17).

( 15 ) . — Principalmente Max Weber, in Die protestantische E thik und der Geist des
Kapitalismus (= "A Ética do Protestantismo e o Espírito do Capitalismo" )
. — Sobretudo em Florença e Veneza. — Cf. os Medic . , família de banqueiros em
Florença, e também o nome da moeda "florim".
. — A . Fanfan', • Catholicism, Protestantism and Capitalism, London, Sheed & Ward,
1939, págs. 205-206 (trad. ingl. da obra ital'ana: Cattolicesimo e Protestart-
tesimo nella Formazione Storica dei Capitalismo) .


— 515 —

Mais espinhosa ainda é a questão muito discutida (cf . § 94


II) de saber se o Protestantismo tem sido a alàvanca dc; Progresso
social, científico e técnico nos últimos séculos. O problema, muitas
vêzes mal pôsto, não admite uma solução simplista, mas exige nu-
merosas distinções, cuja exposição nos levaria muito longe . Basta
dizermos aqui que, para o católico, o Protestantismo como , tal não
poderia ser a fôrça dinâmica do verdadeiro Progresso, visto que é
um "protesto" contra a plenitude da Revelação divina, guardada
'e transmitida pela instituição hierárquica da Igreja, fundada por
Cristo; mas cumpre reconhecermos que muitos indivíduos e -muitas
coletividades protestantes não pouco têm contribuido para o enri-
quecimento da- cultura humana, e assim para a glorificação de Deus
nas suas obras.
A Reforma é, em última análise, um mistério da Divina-Provi-
dência, cujo derradeiro significado se subtrai ao intelecto humano:
umas das suas salutares conseqüências acidentais, — tais como a
'Contra-Reforma, e a nobre competição entre as diversas confissões
cristãs para praticar as virtudes evangélicas, — não são capazes,
humanamente falando, de consolar o católico pela perda ainda não
restaurada da unidade eclesiástica. Protestantes e católicos tornam-
se cada vez mais conscientes do fato de violar a separação, a ordem
divina do Fundador: ut omnes unum sint, sicut et Pater et ego
(Ev. João, XVII 11): com efeito, a separação é um pecado da
Cristandade histórica. Sem querermos negar ao movimento ecu-
mênico dos nossos dias uma certa tendência lastimável para '"con-
fusionismo", incompatível com o caráter absoluto e intransigente da
Verdade Revelada, podemos dizer que a contrição pelos próprios
pecados e a ânsia pela restauração da unidade cristã, a manifestar-
se em orações comuns e em diálogos serenos, — não em discussões
polêmicas, — criam condições mais favoráveis à volta de todos
os fiéis ao redil de Cristo do que uma atitude meramente comba-
tiva.

§ 81. Três figuras da Renascença.

• • No que. diz respeito à historiografia, a Reriascehça tratava de


imitar os grandes historiadores da Antigüidade, principalmente Tu-
cídides, Tito-Lívio e Tácito (cf . § 6). Mostrava interêsse especial
pelo aspecto literário e estético, pela erudição, e pela restituição
crítica dos textos escritos, sem chegar ao conceito moderno da his-
J tória. A historiografia renascentista, além de ser deturpada fre-
qüentemente por elementos declamatórios e especulações moralis-
tas, alheias ao assunto, escravizava-se não raro aos interêsses di-
násticos dos príncipes reinantes, ou era porta-voz das lutas confes-
sionárias da época. Tampouco criava uma filosofia da história.
— 516 —

Contudo, merecem nossa atenção três figuras que representam três


aspectos diferentes da Renascença.
Nicolau de Cusa (18), humanista de erudição extraordiná-
ria, cardeal desde 1448 e zeloso pela reforma eclesiástica, interes-
sa-nos aqui como autor de um opúsculo: Conjectura de Ultimis
Diebus (1452). Mediante uma mística de números que bem qua-
drava com seu sistema neoplatônico, Nicolau pretendia esclarecer
a marcha da história. O número 7 é perfeito (cf. § 55 I a), e por
isso 49 (=7x7) é número perfeitíssimo. A história da humanidade,
depois da Encarnação, divide-se em períodos de 50 anos (=49 anos
1 ano jubilar), e cada um dêsses períodos reflete fielmente um
ano da vida de Nosso Senhor. Em 1452, ou seja no início do 29.°'
período histórico, o qual corresponde ao ano em que João-Batista
ministrava o batismo aos judeus, preparando-os para a Boa Nova,
inicia-se uma grande reforma eclesiástica, pela qual tanto se em-
penhava o douto cardeal. Nos três períodos seguintes (de 1501 a
1650), que correspondem à vida pública de Jesus, o Evangelho
será pregado a todos os povos, mas no 34.° período (de 1651 a
1700), correspondente ao último ano de Jesus, haverá uma perse-
guição universal e uma apostasia geral: aos olhos dos seus inimi-
gos, a Igreja parecerá morta. Mas Cristo ressurgirá por ocasião do
34.° jubileu, no ano 1700, e a Igreja, limpa de tôdas as máculas,
esperará ansiosamente a segunda vinda do Senhor, que se dará en-
tre 1700 e 1734. Não se cumpriu a profecia de Nicolau, e mais
acertada foi a do cardeal Pierre d'Ailly (1350-1420), que se basea-
va em especulações astronômicas (19). As duas tentativas são
características do fim da Idade Média e da Renascença (20).
Teve mais repercussão o livro famoso 11 Principe (1513)
de Niccolò Machiavelli (1469-1527), representante típico do as,..
pecto paganizante da Renascença italiana. O autor defende, ou pa-
rece defender (21), um conceito completamente amoral da política,
atribuindo-lhe êste único fim: ter bom êxito. O livro retrata cini-

(18) — Nicolau de Cura nasceu em Cues sôbre o Mosela, na Alemanha " (1401), e fa-
leceu em 1461 em Todi (Itália). Seu nome original era Chrypffs ou Krebs. —
Cf. Lívio Teixeira, Nicolau de, Cusa (in "Coleção da Revista de História" II) e
Oeuvres choisies de Nicolas de Cues (ed. Maurice de' Gandillac), Paris, Aubier,
1942, págs. 359-363.
(19). — Na obra Concordia Astronomiae cum historica Veritate (1414), em que pre-
dizia para o ano 1789: multae tunc et magnae et mirabiles altercationes futurae
sunt, maxime circa leáes et sectas.
. — Mencionamos ainda as profecias obscuras de Michel de Nostre-Dame (= Nostra-
damus) (1503-1566), astrólogo francês, de descendência judia. O frade
dominicano Tommaso Campanella (1568-1639) predizia o fim do mundo para
o ano 1600.
. — Há quem defenda o autor de amoralismo, mas os argumentos alegados não nos
parecem convincentes; cf. E. Cassirer, El Mito del Estado, Fondo de Cultura
Económica, México-Buenos Aires, 1947, págs. 166-193. — Segundo outros,
;Aí,'
Rousseau é um déles, — Maquiavel teria dado esse retrato hediondo de
um príncipe para torná-lo repugnante, sendo republicano disfarçado, como nô-lo
mostram os Discorsi.
-517 —

emente l'uomo di virtà (22), que não despreza meio algum• para
alcançar seus fins: será justo ou injusto, clemente ou cruel, reli-
gioso ou ateu, conforme o exigirem as circunstâncias. Pois tam-
bém a religião não passa de um instrumento (23) nas mãos do
príncipe para poder dominar e enfrear a estúpida multidão: o autor
ataca sobretudo o Cristianismo, que ensinaria apenas a sofrer e a
tolerar as injustiças (24) . Tem má reputação o capítulo XVIII,
onde Machiavelli diz que o príncipe deve cumprir sua palavra
sômente quando o puder sem se prejudicar a si mesmo; contudo,
fica-lhe bem conservar as boas aparências: A uno principe, adunque,
non è necessario avere in fatto tutte le soprascritte qualità, ma
è bene necessario parere di averle. Anzi, ardirà di dite questa, aven-
dole e osservandole sempre, sono dannose, e parendo di averle, sono
utili; come parere pietoso, fedele, umano, intero, religioso, ed essere;
ma stare in modo edificato con l'animo, che bisognando non essere,
tu (25) possa e sappi mutare il contrario. E hassi ad intendere
questo, che uno principe, e massime uno principe nuovo, non pua
osservare tutte quelle cose per le quali gli uomini sono tenuti buoni,
sendo spesse necessitato, per mantenere lo stato, operare contro alia
fede, contro alia caritó, contro alia umanitá, contro alia religione.
Por isso mesmo, o príncipe dominará a arte de hipocrisia, sendo que
a ralé julga apenas pelas aparências. Todos os conselhos são abo-
nados com numerosos exemplos da história antiga e contemporânea.
E o livro termina por uma calorosa exortação a Lourenço II para
livrar a Itália do jugo estrangeiro.
Maquiavel não foi o primeiro, — nem seria o último, — a justi-
ficar e a glorificar o "homem forte", não incomodado por escrúpulo
algum: já na Antigüidade, o sofista Trasímaco, combatido por
Platão, emitia teorias semelhantes dizendo: "Eu digo não ser nada
a justiça senão o proveito do poderoso" (26) . A realidade política
Piri• de tôdas as épocas vem a confirmar, infelizmente, a exatidão

— O exemplo de um uomo di virai, admirado pelo autor, é César Bórgia, cf.


II Principe, Capítulo VII.
— A religião é simplesmente instrumentum regni no livro H Principe; nos Disoorsi,
porém, é apresentada como o fundamentum reipublicae (II 2), mas também
neste caso ela não possui valor transcendente.
— Cf. Discorsi, II 2: La religione arnica, oltre a di questa, non beatificava se
non uomini pieni di mondana gloria, como erano capitani di eserciti e principi
di republiche. La nostra religione ha glorificato piú gil uomini umili e contem-
plativi che gli attivi. Ha dipoi posto il sorrimo bene nella umiltà, abiezione,
e nel dispregio delle cose umane: quell'altra lo poneva nelle grandezza dello
animo, nella fortezza dei corpo ed in tutte le altre cose atte a fare gli uomini
fortissimi. E se M religione nostra rechiede che tu abbi in te fortezza, vuole
che tu sia atto a patire piìt che a fare una cosa forte. Questo modo di vivere
it adunque pare che abbi renduto il mondo debole, e datai° in preda agli uomini
scelerati.
— O autor se dirige a Lourenço II de Medicis, senhor de Florença (1512-1519).
— Cf. também Disccorsi, III 41.
— Plato, Respublica, 338 C.
518 —

das observações realistas de Maquiavel, mas elevar êsses fatos à ca-


tegckiá .de um imperativo ou de uma necessidade, é sintoma de
grande decadência moral. O autor não é desculpado nem por uma
referência ao adágio latino: Salus populi, lex suprema (26á), nem
por seus sentimentos patrióticos de aflição por 'ver uma Italia irra-
dental, desunida e impotente, nem pelo título que falsamente lhe é
atribuído, de ser o "fundador da ciência política". Pois assim não se
resolve o problema moral inerente a tôdas as 'questões políticas.
Têm estas um fim humano, do qual a justiça na acèpção mais ampla :
da palavra faz parte integrante: o bem político, que é um bem parti-:
cular, não pode fazer abstração do bem universal, fim derradeiro' da'
todos os atos humanos, também dos atos políticos.' Maquiavel, ,suma'
expressão da statolatria renascentista, apregoa a emancipação da Polí-1
tica, da moral, logo seguida da emancipação econômica: dois acon 2
tecimentos que se tornaram catastróficos para a civilização cristã
(27) . Talvez seja mais pernicioso ainda seu desprêzo total 'peia
dignidade humana, a qual tem as suas raízes numa realidade trans=
candente à política: o homem não existe para a política, e sim a
política para o homem.
O mesmo autor escreveu duas outras obras de certo interêsse
para o historiador (28), nas quais se mostrava partidário da his-
toriografia pragmática . O homem é ser essencialmente ambicioso e
interesseiro (29), igual através de todos os séculos (30): mudam
os tempos, sim, mas os homens não. Destarte, a história é o drama
estúpido das paixões humanas, sem fim transcendente nem fim ima-
nente: de vez em quando, a Fortuna escolhe um uomo di virtà
para criar certa ordem no caos (31) . Mas as realizações são pouco
duradouras. Maquiavel, encetando uma tradição antiga, acredita no
revezamento cíclico dos três regimes políticos, porém: quasi nessu-
na republica puà assere di tanta vita che possa passare molte volte
pér queste mutazioni e rimanere in piada (32) . Como se vê, o au- "In
tor repete muitas das idéias clássicas: a historiografia didática, o
fatalismo (33), e os ciclos históricos (embora não no sentido "cós-
mico" da palavra).
(26a.). Cicero, De Leãibus, III 3, 8. — Cf. Os versos de Eurípedes (Phoenisaae,
524, 525), traduzidos desta forma por Júlio César para o latim:
Nem si violandum est jus, regnandi gratia,
• • "Violandurn est, alija tabus pietatem colas, . .
(Suetonius, Vita Divi Julii, XXX) .
— O maquiavelismo, — têrmo forjado por Bayle, — foi combatido por vários
autores, entre outros por Jean Bodin (in Les Six Livres de la République,
1576) e por Frederico II da Rússia (in L'Anti-Machiavel, 1738). Frederico,
uma vez rei da Prússia (desde .1740), mostrou-se na prática verdadeiro ma-
quiavelista.
— 1 tre Libri de Discorsi sopra la prima Deca di Tito Livio (publicados em 1531),
e Istorie Fiorientini (publicados em 1532).
— Cf. a atitude de Tucídides, § 73 I b.
— Discorsi, I 39.
— Ibidem, II 29.
— Ibidem, I 2.
— Ibidem, II 29; cf. II Principe, XXV.
— 519 —

III. O humanista francês Jean Bodin ou Bodinus (1530-1596)


04 escreveu, em 1556, um tratado meio técnico e árido: Methodus ad
facilem historiarum cognitionem (34) . Por chamar a atenção para
os fatôres, geográficos no processo histórico, pode ser considerado
como um `dpS– jirec.ursores de Montesquieu. Não elimina a Provi-
dência, mas' a reduz à Providência imanente dos autores clássicos.
Em oposição a Maquiavel, reconhece o direito natural, ao qual está
sujeito "também o Estado. Estabelecendo um método comparativo
de cronológia e dê' culturas, rejeita a periodização medieval da
história em quatro épocas, conforme a visão de Daniel, como tam-
bém a ép'oca de ouro das lendas antigas. Os povos orientais; os
gregos e os romanos foram grandes profetas, sábios e estadistas,
mas sobrepujain-nos os setentrionais com as suas invenções cien-
tíficas e técnicas, que caracterizam a Renascença. Bodin possui
Muita confiança na sua época: ad nostra tempora relabor, quibus
multo postquam litterae toto pene terrarum orbe conquierant, tantus
subito sciehtiarum splendor affulsit, tanta fertilitas extitit ingenio-
rum, ut nullis umquam aetatibus minor (35) . Na sua obra Collo-
quium Heptaplomeres, escondida muito tempo a fim de evitar um
'escândalo público, o autor defendia uma religião natural, de cará-
ter ético e aceitável para todos os povos: anuncia as publicações
deístas do século XVIII (cf . § 84 V), que propagavam a tolerân-
cia dogmática e o indiferentismo.

• § 82. O Discurso de Bossuet.'

Por volta de 1550, nasceu na Itália um novo estilo, que no sé-


culo XVIII ficaria com o nome depreciativo de "Barroco" (cf. § 28
I c): como a palavra "Renascença", o têrmo "Barroco" (36) acabou
por designar uma nova fase da cultura ocidental, tendo por sede, se
não exclusiva, ao menos principal, os países católicos, revigorados pe-
lo Concílio de Trento (1545-1563). De origem italiana, espalhou-se o
o -novo estilo pela Espanha e Portugal, — e daí pela América la-
tina, — chegou à França no século XVII, e depois à Alemanha,
onde teve seu apogeu (sobretudo na Austria e nas regiões católicas)

(34) . — A obra foi reeditada em 1951 por Les Presses Universitaires. em Paris.
(35). Methodus, pág. 227 B (da edição citada na nota anterior) .
(36) . — O Barroco é, nos países católicos, a época do catolicismo (aparentemente)
triunfador sôbre as heresias (Contra-Reforma!) e conquistador de novos con-
tinentes (América Latina, índia, China, Japão); até o absolutismo se reveste
de feições religiosas (na Espanha de Filipe II; Bossuet escrevia um tratado
Politique tirée de l'Écriture Sainte, em que defendia a monarquia absoluta
como o regime político ordenado por Deus; o rei, possuindo um droit divin,
_ não é responsável a nenhum de seus súditos, devendo prestar contas só a Deus);
é a época das devoções populares, das concentrações maciças, dos sermões im-
9r. pressionantes, e também dos retiros e dos "exercícios" espirituais (Ignácio de
Loyola, 1491-1556); e afinal é a época de certas tendências heterodoxas mal
reprimidas: o jansenismo, o quietismo, e o galicanismo.
— 520 —

só nos primeiros decênios do século XVIII. Em certo sentido, a


Barroco é um regresso ao espírito medieval: frisa, por exemplo,
a concepção teocêntrica do mundo, o conceito orgânico da sociedade,
a ordem universal; como estilo, redescobre o expressionismo dos
séculos medievos. Mas são consideráveis as diferenças: a concep-
ção orgânica e universalista é mais imposta do que espontâneamente
aceita, e as realidades celestes, em vez de constituirem o fim trans-
cendentes das atividades humanas, correm o risco de serem re-
baixadas a um humilde papel secundário: o de dar mais brilho
às realidades terrestres. Ademais, o Barroco não têm as suas
raízes na cultura do povo, como a teve o estilo gótico nas corpora-
ções medievais, mas é essencialmente uma arte das côrtes, sendo a
esplêndida expressão do absolutismo. Põe-se deliberadamente a
serviço dos grandes soberanos (Filipe II, Luís XIV, etc.), dos pa-
pas, bispos e abades. É arte para o povo sem ser de inspiração
popular . Renuncia à beleza estática e um tanto fria da Renascença,
procura impressionar mediante formas exuberantes e dinâmicas,
exprimindo emoções intensas (êxtases!) em imagens comoventes
dramáticas, às vêzes patéticas e teatrais. Não atinge a simpli-
cidade encantadora da Idade Média nem o recato espiritual, mas,.
por se deleitar em formas exteriores, tende para certa ênfase retó-
rica, não só nas belas artes, mas também nos outros setores da
vida cultural. Apesar disso, foi uma grande época com realiza-
ções duradouras e valiosas, talvez a última a representar, embora
de modo forçado, o anelo da cultura européia pela unidade espi-
ritual que se tinha perdido na época da Reforma.
I . Um representante ilustre do Barroco católico é Jacques-
Bénigne Bossuet (1627-1704), l'aigle de Meaux. Como educador
do Delfim (37), escreveu uma obra que logo se tornou clássica
na literatura francesa: Discours sur l'Histoire Universelle (1681) .
O livro vai até os tempos de Carlos Magno; a segunda parte, prome-
tida no capítulo final, nunca saiu à luza No Discours, Bossuet se
dirige contra les libertins do seu século: os ateus e os céticos, que
se atreviam a negar a atuação da Divina Providência na história,
principalmente por aí serem repartidos injustamente o bem e o
mal. Convencido da existência de um sublime plano divino, cujas
linhas foram traçadas pela Bíblia e cuja elaboração podemos acom-
panhar através da história da Igreja Católica, o autor assume a tarefa
de mostrar os caminhos do Senhor, concedendo aos adversários que

(37) — "Delfim" (francês: Dauphin), título dado aos príncipes herdeiros da França,
desde 1349 até 1830. — Bossuet consagrou-se onze anos (1670-1681) à edu-
caçio do filho de Luís XIV, e seu discípulo faleceu em 1711. Fénelon (1651-
1715) foi nomeado educador•do filho do Dauphin em 1689; também êste (que.
era neto de Luís XIV) não subiu ao trono, mas morreu em 1712.
— 521 —

há muita desordem e injustiça no mundo, mas salientando, ao mes-


mo tempo, uma verdade superior: a impressão caótica da história,
tão preponderante para quem a contempla com os olhos deficien-
tes da sabedoria humana, vai-se esvaecendo para quem a examina
sub specie aeternitatis (38). A obra de Bossuet divide-se em três
secções: as Épocas, as Religiões, e os Impérios. Comparada com o
De Civitate Dei, revela mais "senso histórico" e maior interêsse pela
concatenação pragmática de causas e efeitos (39) . O Discours é,,
quanto a elaboração da tese, algo parecido com a História de Oró-
sio, mas a supera em sólidos conhecimentos históricos e em gran-
.
deza de expressão.
II. Bossuet reconhece a atuação de causas particulares: ce
même Dieu qui a fait l'enchainement de l'univers,... ce même
Dieu a voulu aussi que le cours de choses humaines eât sa suite
et ses proportions; je veux dire que les hommes et les nations ont
eu des qualités proportionnées à l'élévation à laquelle ils étaient
destines; et qu'à la reserve de cer-tains coups extraordinaires ou Dieu
voulait que sa main pariit toute seule, il n'est point arrive de grand
changement qui n'ait eu ses causes dans les siècles précédents (40).
Mas essas causas secundárias não passam de instrumentos incons-
cientes nas mãos de Deus. En un mot il n'y a point de puissance
humaine qui ne serve malgré elle à d'autres desseins que les siens
(41) . Os exemplos são numerosos: Deus se valeu dos babilônios e
dos assírios para castigar o povo eleito; dos persas, para reconduzi-
lo à Palestina; do rei Antíoco, para prová-lo; da pax romana, para
disseminar o Evangelho; da desobediência dos soldados romanos à .

ordem do Imperador Tito de poupar o templo de Jesusalém, para


realçar a verdade da profecia de Cristo; da impiedade de Juliano, o
Apóstata, que queria restaurar o templo, para confirmar novamen-
te a verdade da mesma profecia (42). Partindo da parábola evan-
gélica dos maus vinhateiros (Mt., XXI 33-41), Bossuet diz: Ces
trois choses devaient dons concourir ensemble: l'envoi du Fils de
Dieu, la réprobation des Juifs, et la vocation des gentils. II ne faut
plus de commentaire à la parabole que l'événement a interprété
(43) . Tôda a história da Igreja Católica, que continua orgânica-
mente a do povo eleito, prova abundantemente a origem divina des-
sa instituição: a Igreja tem encontrado no seu caminho inúmeras

— Cf. Discours, II 29, III 8.


— Ibidem, III 2 e III 7. — Sôbre o historiador Bossuet (autor também de uma.
Histoire de France) cf. A. Rébelliau, Bossuet, Paris, Hachette, 1900, pégs-
101-118.
—'Ibidem, III 2.
— Ibidem, III 8.
— Ibidem, III 1, e II 22.
— Ibidem, II 29.

heresias e outros obstáculos, mas sempre para dêles triunfar, po-


dendo-se gabar de uma sucessão ininterrupta que remonta aos tem- - lt
pos dos apóstolos: C'est aussi cette succession que nulle hérésie,
nulle secte, nulle société que la seule Égliss de Dieu n'a pu se
donner (44). Para quem não fecha obstinadamente os olhos, o es:
tudo das religiões e dos impérios prova que o Católicismo tem por
fundador o Criador do Universo. A frase inicial do último capítulo
resume bem o pensamento do autor: Mais, s. ouvenêz-vouz, Monseig-
neur que ce long enchainement des causes particuliêres qui font
et défont les empires, dépend des ordres secrets de la divine Provi-
dence. Dieu tient du plus haut des cieux les rênes de tous les roy-
aumes; il a tous les coeurs en sa main; tantôt il retient les passions,
tantôt il leur lâche la bride, et par là il remue tout le genre humain.
Aos olhos profanos, a história poderia parecer uma série de fracas-
sos humanos, mas a mesma, observada à luz da revelação divina,
executa um desígnio sobrenatural e transcendente, cheio de signi-
ficado.
III. As grandes teses de Bossuet têm valor para todos os tem-
pos por serem verdades fundamentais do Cristianismo: a Providên-
cia rege soberanamente os destinos da humanidade sem que êste
govêrno universal e absoluto desrespeite ou aniquile a atuação livre
ou determinada das causas secundárias; o homem serve muitas vêzes
a um fim que êle próprio desconhece ou nem sequer deseja. Mas
nem por isso podemos usurpar uma visão pormenorizadádos planos
divinos na sua elaboração concreta. Ao leitor moderno do Discours,
mesmo ao católico, as tentativas de Bossuet para harmonizar a his-
tória sagrada com a profana, parecem amiúde arrojadas é até temerá-
rias. A more modest use of providence would be less .qà estionable
-and more Christian (45). Veio atrasada a apologia eloqüente da
Providência: explicava demais, e explicava de menos. Considerar
a história do povo eleito como o eixo em volta do qual 1girava tôda
a Antigüidade, podia parecer um contrasenso numa época que ado-
rava Grécia e Roma, e estava descobrindo outras civilizações fora
da ocidental: na China, na índia, no Japão; como enquadrá-las

(44). — Ibidem, II 30. — Bossuet, que aplaudia a revogação do Edito de Nantes


(1685), publicou em 1688 os dois volumes da Histoire des Variations des
Églises Protestantes, em que sustentava a tese de ser nocivo o abandôno da
autoridade eclesiástica não só à religião e à moral, mas também ao Estado e à
cultura. Também entretinha uma longa correspondência com Leibniz sôbre a
reunião das Igrejas protestantes com a católica, em que igualmente frisava a
necessidade de uma autoridade na matéria da religião, e destacava as conse-
qüências desastrosas do "livre exame". Fracassaram as tentativas bem inten-
cionadas: é célebre a resposta de Leibniz: Ii nous plait, Mons&gneur, d'être
de cette église toujours mouvante et éternellement variable. — O Barroco
católico, que via no Protestantismo mais um cisma do que uma heresia, não per-
dera a esperança num regresso maciço para a unidade eclesiástica.
(45) . — K. LOwith, Meaning in History, Chicago, 1950, pág. 142.
— 523 —

na história sagrada? O conceito "eclesiástico" do Cristianismo, ti


pico do Barroco católico que acentuava o triunfo da Igreja reorga-
nizada 'e redisciplinada sôbre as heresias dissolventes, devia.
irritar muitos leitores e, podia parecer pouco convincente a outros
que viam crescer continuamente o prestígio e o poder das nações
protestantes. As•constantes referências a uma Providência transcen-
dente fàcilmente podiam ser interpretadas como testimonia pau-
pertatis num período que coMeçava a interessar-se intensamente
pela investigação das causas imanentes. Por isso o Discours não
conseguiu retardar as ondas violentas de ceticismo e de nacionalis-
mo: seria um alvo sem defesa para os sarcasmos de Voltaire (46)

§ 83. O nascimento da Filosofia da História

Giambattista Vico (1668-1744), professor de retórica na Uni-


versidade de Nápoles, publicava, em 1725, uma obra chamada:'
Princípi di Scienza Nuova d'intorno alia comune natura
Nazione. O livro, que inaugurava a "filosofia da história", foi reedi-'
tado em 1730, e mais uma vez em 1744, pouco após a morte do'
autor (47).
I. Opondo-se ao critério cartesiano da verdade: les idées
res et distinctes, Vico afirma que conhecemos plenamente só o que
nós próprios fizemos. Deus criou tôdas as coisas: por isso possui
Ale um conhecimento perfeito do mundo, ao passo que o homem
não pode ir além de certa coscienza. No setor das disciplinas mate- ,
máticas, onde o homem é capaz de criar a seus objetos, atingimos'
a verdade demonstrável e perfeita, mas êsse conhecimento não'
passa de uma construção abstrata, não nos revelando nada da ín-
tima estrutura das coisas concretas. É diferente a estrutura do mun-
do histórico: .aqui encontramos o próprio homem como criador, e
portanto podemos descobrir i princípi , dentro le modificazione della
nostra medeshna mente umana (48) . Até agora, os filósofos,'
dedicando-se quase exclusivamente à contemplação de i/ vero
(=a idéia eterna e universal), não prestaram a devida atenção
a il certo (=os produtos concretos e contingentes do livre arbítrio)
(49). A "Ciência Nova", que é filosofia e, ao mesmo tempo, a his-
tória da humanidade, realizará a ,conexão, por desvendar, nos fenô-
menos passageiros e contingentes do passado, o elemento eterno e

— Cf. § 22 I; § 86 II.
— Utilizamo-nos da edição de Fausto Nicolini (Bari, 19534 ): La Scienza Nuova
Second,: giusta l'Edizione del 1744.
'48). — La Scienza Nouva, 331.
(49). — Ibidem, 141-142: L'umano arbitrio, di sua natura incertissimo, egli si accerta
e determina coi senso comune degli uomini d'intorno tale umane necessitá o
urlitá... II senso comune è un giudizio senz'alcuna ritlessione, comunemente
sentito da tutto un ordine, da tutto un popolo, da tutta una nazione o da tutto
il áener ameno.
524 —

necessário. Torna-se-nos compreensível a storia ideal eterna, ao exa-


minarmos os dados da filologia, o sia la dottrina di tutte le cose le
quali dipendono dall'umano arbítrio come sono tutte le storie deite
lingue, de' costurai, e de' fatti cosi della pace come delle guerre
popoli (50). A filologia e a história, desprezadas por Descartes,,
são reabilitadas por Vico, chegando a ser elevadas à categoria de
disciplinas filosóficas. Não é conhecimento meramente racional,
mas serve-se, a cada passo, de imaginação criadora com o fim de
interpretar os vestígios do passado, sendo a ciência da "criação hu-
mana" pela própria humanidade. Por ser completamente apropria-
da à nossa natureza, ministrar-nos-á uri divin piacere, in questo
corpo mortale, di contemplare nelle divine idee questo mondo di na-
zione per tutta la distesa de'loro luoghi, tempi e varietà (51) .
II. Pois o mundo histórico, por mais "humano" que seja, apon-
ta para Deus: Jovis omnia plena, e. a Jove principium musae (52) .
Os estudos históricos mostram que o homem não é senhor absoluto
da história: o homem cria o mundo histórico, ma egli è questo mon-
do, senza dubbio, uscito de una mente, spesso diversa ed alie volte
tutta contraria e sempre superiore ad essi fini particolari ch'essi uomi-
ni avevan proposti (53). Destarte a "Ciência Nova" chega a ser
una teologia civile ragionata della provvedenza divine (54). O ho-
mem procura satisfazer aos seus instintos sexuais: inaugura-se o ma-
trimônio casto, a origen da família. Os patroni abusam do seu po-
der sôbre os clientes: nasce o poder civil da Cidade. Os nobres exer-
cem arbitràriamente as suas prerrogativas: são obrigados a sujei-
tar-se a uma legislação uniforme e universal. O povo quer subtrair-
se às leis: são submetidos à vontade enérgica de um monarca ou
désposta, e assim por diante. Quest°, che fece tutto ciò , fu pur men-
te, perché '1 fecero gli uomini con intelligenza; non fu fato, perché
'1 fecero con eclezione; non caso, perché con perpetuitá, sempre cosi
faccendo, escono nelle medesime cose (55) . A dialéctica entre os
intentos particulares e o fim universal, ou entre os objetivos huma-
nos e os seus resultados, não é uma comédia humana de erros, —
como o quer Croce, — mas um sublime drama de verdade divina,.
porque Deus atinge seu fim apesar de todos os desvios humanos.
A "Ciência Nova" é, portanto, a ilustração, ç até a demonstração,
da ação divina mediante os atos humanos.

— Ibidem, 7.
— Ibidem,345.
— Ibidem, 379 e 391. — A palavra é de Vergilius, Ecloga, III 60.
— Ibidem, 1108.
— Ibidem, 2. — Três fatos fundamentais, encontrados entre todos os povos: a
religião, o matr'mônio e a sepultura dos mortos, apontam para um principio
comuna di vero, que é a Providência, cf. La Scienza Nuova, 333.
— Ibidem, 1108.
— 525 —

III. Partindo dêsses princípios, Vico julga-se capaz de ler o


livro da história. Distingue entre três idades: a época divina, na
qual os homens vivem sob um govêrno teocrático, usando larga-
mente de oráculos e auspícios; a época heróica, na qual os homens
vivem em repúblicas aristocráticas por ser reputada certa classe da
sociedade superior ao resto da população; e afinal, a época humana,
na qual todos os homens são considerados iguais quanto à sua natu-
reza, estabelecendo regimes populares ou então monarquias. As três
épocas, que se sucedem em longos intervalos, não se diferenciam
apenas pelos regimes políticos, mas também pelas leis, instituições,
costumes, línguas, artes, ciências, etc. Ultrapassando os limites po-
líticos, Vico abre perspectivas para a vida cultural da humanidade:
sua grande originalidade está em encarar a cultura no seu caráter
orgânico e genético. Gli uomini sentono il necessario, dipoi badano
all'utile, appresso avvertiscono il comodo, piei innanzi si dilettano
del piacere, quindi si dissolvono nel Tusso, e finalmente impazzano
in istrapazzar le sostanze (56). Uma civilização, depois de percor-
rer as três idades, termina em decadência, decomposição, dissolu-
ção, e a barbaridade de uma época civilizada é pior do que a dos
tempos primitivos. Desta se serve a Providência para educar a
humanidade para uma fase superior; daquela, para fazê-la regres-
sar à barbaridade criadora dos tempos primitivos, que é simples e
teme a Deus. Por outra: terminado um corso de três épocas, começa
ricorso, que se caracteriza por feições semelhantes às do corso.
O ricorso não é, porém, um processo cósmico, como o imaginavam os
antigos, nem uma repetição idêntica dos acontecimentos do corso
anterior, mas admite modificações consideráveis e níveis diferentes:
processo histórico realiza-se, por assim dizer, em forma de uma
espiral. Falhou o corso histórico: o ricorso é como que um apêlo
para o Supremo Tribunal da história, presidido pela Divina Provi-
dência. Vico conhece dois dêsses ciclos históricos: uma abrange a
Elgio
Antigüidade (corso), o outro a história da Europa desde a Queda de
Roma (ricorso,) cuja época teocrática vai até às Cruzadas, cuja
época heróica termina nos tempos de Dante, e cuja época humana
se iniciou na Renascença. Assim Vico relega a Idade Média entre os
períodos "bárbaros", seguindo, neste ponto, os preconceitos dos sé-.
culos XVII e XVIII (57) . Ao passo que estuda com amor dedi-
cado a fase bárbara dos povos clássicos (por exemplo, Homero, as
Leis das XII Tábuas, etc. ), interessam-lhe pouquíssimo os séculos
da formação do mundo ocidental. Muito menos ainda lhe cativam
interêsse a época heróica e a época humana do ricorso, mas tôda a

. — Ibidem, 241.
. — Vico fala do ricorso no Libro Quinto (1046-1096) .
— .526 —

sua atenção está voltada para os primórdios da Grécia e de Roma,


:os quais analisa e interpreta com uma perspicácia extraordinária
com métodos inteiramente novos no seu tempo.

IV. A "Ciência Nova" poderia ter marcado uma nova fase na


metodologia da . história, mas, de fato, passou quase despercebidá,
.visto que o século XVIII preferia explicações racionalistas e fáceis
, a um profundo "entendimento" histórico. Assim como o Discours
de Bossuet saiu atrasado, assim a Scienza Nuova veio adiantada:
,Proh dolor, quantum refert, in quae tempora vel optimi cujusque
virtus incidat! (58) . O próprio autor confessava numa carta a um
'amigo que tinha a impressão de ter publicado seu livro num deserto:
ninguém lhe ligava . O resumo que acabamos de dar, não faz justiça
à riqueza dos pensamentos originais de Vico: o professor napolitano
antecipou muitas teorias que o movimento romântico do século
XIX havia de redescobrir e de desenvolver, muitas vêzes com me-
nos prudência e equilíbrio do que . Vico (59) . A "Ciência Nova" 4 01
anuncia o trabalho de F . A. Wolf na questão homérica, o de B.G.
Niebuhr na reconstrução metódica da história primitiva de Roma.
de Fustel de Coulanges no entendimento da cidade antiga e seus
fundamentos religiosos, o de Bachofen na interpretação da mitolo-
gia; até mesmo anuncia alguns conceitos fecundos de Hegel, Dilthey
Spengler. O escopo dêste livro não nos permite entrarmos nestes
. assuntos, por mais interessantes que sejam. A obra de Vico foi des-
coberta só no século atual, que lhe destacou os grandes méritos,
contudo, não sem lhe criticar as deficiências e as falhas. Vico
:fala apenas da civilização ocidental, um terreno muito limitado
para tirar conclusões de tamanho alcance; e nela se limita quase
exclusivamente aos primórdios dos povos clássicos; além disso, é
muitas vêzes incoerente, sobretudo na apreciação da sua própria
época; e afinal, sua Providência é uma instância tão natural, tãp
fácil e tão lógica que parece coincidir com a lei imanente da história 110'”

social.
V. Com efeito, por mais contrário que Vico fôsse ao ponto
de partida cartesiano, não conseguiu esquivar-se por completo ao
espírito racionalista da época. Católico convicto, acreditava na
Providência cristã, no Deus dos patriarcas e dos profetas, a revelar-
se ao homem durante o processo histórico; mas não sabia integrá-la
de modo harmônico no seu sistema científico. Ao que parece, para
êle, a Providência cristã era objeto da fé, não da ciência. Eis

— Epitáfio do papa Adriano VI.


— Em 1827, o historiador francês J. Michelet publicou uma traduçãcç ou antes,.
uma adaptação francesa da obra de Vico, sob o título de Príncipes de la
Philosophie . de l'Histoire. — O ensaísta espanhol, Juan Donoso Cortés (cf.
§ 94 I), publicou 11 artigos sôbre a obra de Vico en El Correu Nacional (1838).
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (V)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 26, pp 491-527, abr./jun. 1956. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/026/A011N026.pdf

— 527 —

porque deixa em silêncio a história dos israelitas, pretere a dife-


rença radical entre os tempos pré-cristãos e pós-cristãos, e não consi-
dera a Encarnação como o ponto central da história. Sem dúvida,.
fala della veritá della religion cristiana (60), professa ser a deprava-
ção humana uma conseqüência do pecado original, faz começar a
história profana só a partir do dilúvio, admira a coragem heróica
dos mártires, mas cada vez que toca nesses assuntos, sente-se o em-
baraço do autor em harmonizar os dados da fé com os resultados das
suas investigações científicas. Compreende-se fàcilmente que tal
atitude era interpretada como revolucionária pelos católicos conser-
vadores da Itália, que viam na "Ciência Nova" um golpe à Provi-
dência da Revelação cristã. E os protestantes esclarecidos da Ale-
manha julgavam-na a obra de um jesuíta disfarçado, escrita com
intúitos reacionários em favor do papismo. Tão diversos eram os
mal-entendidos. Mas logo se acalmaram as discussões sôbre o H-
O,' vro, porque as obras racionalistas vieram a chamar a atenção do •
mundo erudito. Até em nossos dias foi contestada a catolicidade do
autor pelo filósofo italiano B. Croce (61), que deu uma interpre-
tação hegeliana das idéias de Vico, explicando os ocasionais pro-
testos de fé como concessões mais ou menos obrigatórias aos pre--
conceitos religiosos da época. Tal interpretação nos parece errônea .
Separar o sobrenatural do natural, e a história sagrada, da profana,
não é o mesmo que negar a existência do sobrenatural sem a da his-
tória sagrada. Também seria injusto pôr-se em dúvida a sinceridade-
religiosa de Descartes (62). Acreditemos igualmente na sinceri-
dade das palavras finais da obra de Vico: questa Scienza porta indi-
visibilmente seco lo studio della pietá, e (che) se non siesi pio, non
si puà daddovero assar. saggio (63) . Mas devemos confessar que a .

separação metódica das duas esferas, resultado de uma evolução


histórica que se iniciou na Renascença, podia terminar fàcilmente
na eliminação sistemática, — portanto, na negação explícita, — do
fator sobrenatural, processo êsse que se verificou no século XVIII,
como havemos de ver no capítulo seguinte.
(Continua no próximo número).

JOSE' VAN DEN BESSELAAR


da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

(60). — La Scienza Nuova, 223; 310; 1092, etc.


. — B. Croce, La Filosofia de G.-B. Vico, Bari, 1911.
. — Combatida por G. Cantecor e H. Leroy, a sinceridade religiosa de Descartes
é defendida por Laberthonnière, Blondel, Gilson, e outros. — Cf. agora
Lívio Teixeira, A Religião de Descartes, in Revista de História, VI 20-21
(1955), págs. 171-208.
. — La Scienza Nuova, 1112. — Sôbre Vico, cf. um trabalho recente de Mes-
quita Pimentel, nas Vozes de Petrópolis, XIII (1935), págs. 1-9, e 113-120, e-
José Ferrater Mora, Cuatro Visiones de la Historia Universal, Buenos Aires,
Editorial Losada, 1945, págs. 85-139.
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (VI)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 27, pp 183-228 jul./set. 1956. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/027/A009N027.pdf

QUESTÕES PEDAGÓGICAS

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS


HISTÓRICOS (VI).

QUARTA PARTE

As Interpretações da História através dos Séculos .


CAPÍTULO QUARTO

A RUPTURA COM O PROVIDENCIALISMO.


§ 84. O século das luzes.
A grande ruptura com o passado cristão da Europa verificou-
se, não na Renascença, mas uns dois ou três séculos depois, naquela,
época que Paul Hazard qualificou de La Crise de la Conscience Eu-
ropéenne (1). Em todos os países adiantados do Velho Mundo sur-
giam novos profetas, que pretendiam estabelecer o domínio da Ra-
zão autônoma, sem o pêso molesto da Tradição, sem os mistérios
obscuros da Fé, e sem as imposições arbitrárias da Autoridade. A.
N. Whitehead, contrapondo a Idade Média ao século XVIII, diz:
The earlier period was the age of faith, based upon reason. In the
latter period, they let sleeping dogs lie: it was the age of reason,
based upon faith (2). Com efeito, o entusiasmo fervoroso dos ino-
vadores tinha algo de irracional, vindo a ser uma crença, uma reli-
gião, a culminar no culto à Razão, prestado a uma mulher na
Notre-Dame de Paris, no dia 10 de novembro de 1793.
I. Os Têrmos.
A nova época chama-se "O Século (ou, a Éra) das Luzes"; le
siècle des lumières, em francês; Enlightenment, em inglês; Auf-
klãrung, em alemão. Tôdas essas palavras, inclusive o têrmo Ilu-
minismo, relacionam-se com a Luz, símbolo da Razão emancipada,
que havia de dispersar as trevas da ignorância, da superstição, da
tirania. "Os raios do Sol dispersam a noite, aniquilando o poder
usurpado ardilosamente pelos hipócritas" (3). Os hipócritas são
— P. Hazard, La Crise de la Conscience Européenne, 1680-1715, Paris, Boivin,
1936; do mesmo autor: La Pensée Européenne au XVIIIe Siècle (2 volumes),
Paris, Boivin, 1946.
— A. N. Whitehead, Science and The Modero World, London, Penguin Books,
1938, pág. 73.
(3) . — Palavras da cena final da ópera A Flauta Mágica (1791), composta por
Mozart, que desde 1785 era franco-mação.
— 184 —

todos os "reacionários" da época: os clérigos, os déspotas, os obs-


curantistas.
II. Destruição e Novas Construções.
Não veio imprevista a nova éra: os séculos anteriores haviam
preparado uma mentalidade favorável à aceitação das idéias escla-
recidas. O Renascimento revelara uma confiança otimista nas pos-
sibilidades do "homem natural", e afirmara a autonomia da cul-
tura humana; a Reforma criara um abismo entre a natureza e o
sobrenatural, e fomentara, por apregoar o livre exame da Bíblia,
um subjetivismo religioso; o Barroco fôra uma tentativa meio for-
çada de dar todo o brilho exterior a uma vitória precária, que a
Igreja alcançara sôbre um mundo que se ia emancipando da sua
tutela direta; as descobertas esplêndidas no terreno das ciências na-
turais abalaram os alicerces da mundividência medieval, baseada
em teorias agora insustentáveis; e a nova filosofia liqüidara, junta-
mente com a física de Aristóteles, também a metafísica do Esta-
girita .
Francis Bacon (1561-1626), desprezando a filosofia aristoté-
lica, impugnava a dedução e o silogismo, e exaltava a importância
da indução e das experimentações. René Descartes (1596-1650),
partindo de uma dúvida universal, à qual só resistia o Cogito, ergo
som, admitia como único critério da verdade as ideae clarae et dis-
tinctae. Benedictus Spinoza (1632-1677) construía um sistema
panteísta e destruía a liberdade humana . John Locke (1632-1704)
declarava ser incognoscível a substância. David Hume (1711-1776)
(4) negava a realidade da substância, aviltando-lhe o conceito e re-
duzindo-a a uma coleção de propriedades sensíveis. Também a al
ma humana não passaria de uma cadeia de fenômenos, um desfilar
ininterrupto de percepções e imagens. O princípio de causalidade se-
ria destituído de valor objetivo, visto que nasce de uma associação
de imagens produzida pela seqüência constante de dois fenômenos:
ninguém sustentará a tese de que a noite seja a causa do dia, ou
vice-versa!
Destarte os filósofos acabaram por destruir a metafísica, che-
gando a dar valor excessivo ao raciocínio geométrico e às experiên-
cias científicas. E de fato, nestes terrenos as conquistas eram des-
lumbrantes, capazes de fascinar tôdas as inteligências e de atrair irre-
sistivelmente tôda a atenção. Não podemos acompanhar aqui a mar-
cha triunfal das novas ciências: bem parecia ela justificar uma es-
perança quase ilimitada nas possibilidades da razão humana, agora
chegada à sua maturidade. Basta mencionarmos os nomes de alguns
(4) . — Hume escreveu também uma History of Great Britain, em 8 volumes
(1754-1763) . Em outras publicações considera o "ambiente sociológico" como
o grande fator diferencial entre os vários povos, diminuindo a importância
de fatôres geográficos e climáticos.
— 185 —

ilustres cientistas (entre os quais havia também filósofos) que revo-


lucionaram a antiga concepção do mundo: Kepler, Huyghens, New--
ton, Pascal, Leibniz, Descartes, Galileu, Euler, Lavoisier e van Leeu-
wenhoek. As investigações científicas, não incomodadas pelas teorias
antiquadas de Aristóteles ou pelos preconceitos do dogma cristão, iam
abrindo novas perspectivas, antes jamais avistadas; emancipada de
um jugo secular, a razão humana havia de resolver, se não todos, ao
menos os mais importantes problemas para a felicidade da vida ter-
restre. E muitos pensavam que, uma vez liqüidada a herança molesta
de séculos ignorantes e supersticiosos, a ciência poderia orientar a
sociedade humana, proporcionando-lhe conhecimentos exatos e ve-
rificáveis, e garantindo-lhe o bem-estar e a felicidade. O homem do
século XVIII ia-se embriagando pelo descobrimento das fôrças ima-
nentes da natureza (4a) a ponto de se esquecer do seu destino
transcendente e de colocar o fim da sua vida neste mundo.
III. Posições Superadas e Errôneas.
Ao contrário de outras crises espirituais em séculos anteriores,
o Racionalismo militante do século XVIII não era apenas uma re-
volta contra a Igreja de Roma, — sua hierarquia e seus dogmas, —
mas uma apostasia radical de Jesus Cristo, o Deus-Homem, •e uma
negação total de tôda e qualquer religião revelada . Infelizmente,
muitos cristãos não avaliavam a gravidade da crise: demasiadamen-
te convencidos de que "as portas do inferno não prevalecerão contra
a Igreja", encerravam-se numa tôrre de marfim, julgando poder con-
jurar o perigo por meio de proibições e imposições, mediante dispu-
tas livrescas ou então, um "pietismo" recolhido. Outros tornavam-
se cúmplices das ondas revolucionárias por sua mesquinhez, falta
de caridade cristã, e hipocrisia.
O nascimento de uma nova época é um processo doloroso,
também, ou melhor: principalmente, para a Cristandade: revela-nos
a precariedade de tôda e qualquer "encarnação" do Cristianismo no
mundo histórico, a qual tem de ceder o seu lugar a outra, uma vez
superadas as condições que a criaram. Tais épocas nos mostram
também de maneira saliente a trágica tensão entre a dignidade do
Cristianismo e a indignidade do cristão, — êsse tema eterno da his-
tória eclesiástica. Só Deus pode saber onde acaba a fraqueza humana,
e onde começa a traição aos princípios do Cristianismo. Seja como
fôr, o historiador católico pode verificar, com objetividade e, ao
mesmo tempo, com sentimentos de certo mal-estar, que a reação

(4a) . ;— Cf. os versos de Fabre d'Églantine (cf. § 52 III g, nota 25):


Nature! oui, je le sens, c'est cette heureuse étude
Qui seule nourrit l'âme, affranchit la raison
Des fers, des préjugés, et de Fopinion.
Cf. também R. Guardini, La Fin des Temps Modernes, Paris, Éditions du
Seuil, 1952, págs. 46-59.
— 186 —

católica aos golpes dos inovadores não estava à altura dos seus ad-
versários; que muitos apologistas defendiam posições antiqüadas e
identificavam certas verdades humanas com a Verdade revelada;
que numerosos autores católicos preferiam discussões estéreis e po-
lêmicas políticas com seus correligionários a um estudo aprofun-
dado e sincero dos problemas, que lhes eram propostos pelos revo-
lucionários; que não poucos, afinal, comprometiam a santidade da
religião por confundirem o Cristianismo com a sua posição social
privilegiada.
Eram trágicas as conseqüências da medida eclesiástica tomada
contra Galileu (5): devido a essa condenação, a Igreja ia perden- k4

do a possibilidade de orientar as novas ciências num sentido cris-


tão, e muitos católicos, desanimados de tomarem parte ativa nas
grandes pesquisas da época, seguiam com suspeitas mal fundadas
o surto da astronomia, física e química, chegando a criar entre a
ciência e a religião uma antinomia que, na realidade, não existe.
Se, nesse tempo, tivesse aparecido um espírito aberto, resoluto a
abandonar a física obsoleta de Aristóteles e capaz de enquadrar os
novos dados nos moldes da philosophia perennis, a evolução his-
tórica da cultura ocidental poderia ter sido diferente: não desagre-
gação da unidade espiritual, mas integração das novas conquistas
numa síntese superior .

IV. A Reflexão sôbre a História .

Para os nossos fins são muito importantes dois aspectos cio.


Iluminismo: o deísmo e a crença otimista na perfectibilidade ilimi-
tada do gênero humano. Ambos repercutiram profundamente na
reflexão sôbm a história, e são comuns a quase todos os sistemas
do século XVIII. O homem, a descobrir as fôrças imanentes da
natureza, põe-se a descobri-las também no mundo histórico, tenden-
do a eliminar a Providência cristã, as causas finais, e o fim trans-
cendente. Já a Renascença e o Barroco tinham despertado o inte-
rêsse pelas causas secundárias (cf. Capítulo III), mas o Raciona-
lismo ia muito mais longe, chegando a negar a existência de um
Deus pessoal, ou então, a separar completamente êste mundo da
livre atuação divina . Assim procedendo, regressava, em alguns
pontos, ao imanentismo dos povos clássicos, e ao deus "metafísico"
de Aristóteles. Mas há diferenças consideráveis: o imanentismo
grego é de cunho filosófico; o dos racionalistas é mais "científico" e
baseia-se numa análise metódica de dados incomparàvelmente mais
ricos e variados. O imanentismo grego é um certo fatalismo, tem-
perado pela sophrosfine (cf. § 73 I e); os racionalistas, menos "cós-
micos" e mais antropocêntricos, professam uma doutrina mais dinâ-

(5). — Cf. Fr. Dessauer, Der Fall Galli& und Wir, Frankfurt am Main, 1951 3 .
— 187 --

mica e esperançosa: quase todos êles são adeptos da teoria do ,


Progresso, desconhecida dos antigos e nascida num mundo que vi-
vera vários séculos da substância do Evangelho. O fim transcen-
dente da história, inadmissível numa sociedade secularizada, ia-se-
transformando num fim imanente (cf. § 69 I-II).

V. O Deísmo (6).
O Deísmo reconhece a Deus como o Arquiteto do Universo,„
no qual Ele produz e mantém uma ordem admirável (7), mas re-
cusa-se a admitir a "intervenção divina" (cf. § 68 II) nos aconte-
cimentos humanos. O Universo, uma vez criado e provido de leis
invariáveis, é deixado entregue às suas próprias fôrças imanentes„„
tornando-se impossíveis milagres e tôda e qualquer Revelação so-
brenatural. Deus passa a ser, por assim dizer, o rei constitucional
do mundo, tendo de respeitar incondicionalmente as leis que o re- •

.gem, ou por outras palavras: Deus é na natureza e não na história,


deixando ao homem o livre desenvolvimento do seu destino. O ho-
mem, escutando a voz da sua consciência e valendo-se dos dados:
que lhe fornece a observação dos fenômenos, é capaz de atingir a.
Deus, sem a ajuda da Revelação, — aliás impossível, — e sem o
intermédio da Tradição ou da Autoridade. Que lhe baste êsse co--
nhecimento racional! O Deus, descoberto pelos racionalistas, mere-
ce nosso respeito e veneração, e não nossa confiança ou amor filial„„
e muito menos ainda nosso temor. Tôdas as religiões são tentativas.
humanas de venerar o Ente Supremo como bem o entendem (7a):
nenhuma delas pode arrogar-se a pretensão de possuir a verdade
infalível. Por isso mesmo, o Cristianismo, e principalmente o Cato-
licismo, com suas pretensões absolutas, é o alvo dos ataques dos
deístas, o grande inimigo do gênero humano. O deísmo apresenta-
se como a religião natural, vagamente pressentida pelas religiões_
históricas, mas por elas também desfigurada, devido à ignorância
. — Nossa exposição tem de simplificar um pouco um fenômeno bastante complexo.
Havia vários sistemas deístas: o deísmo finalista dos inglêses, o deísmo agres- -
sivo e intolerante de Voltaire, o deísmo sentimental de Rousseau, o deísmo ,
complacente de Lessing, etc.
. — Dois fatos são importantes para a compreensão do deísmo: o sistema helio-
cêntrico de Copérnico e outros, devido ao qual o nosso planeta perdia sua..
posição central no universo ("será que Deus se ocupa com o destino humano, -
o qual tem por palco exígüo um ponto infinitamente pequeno num espaço
infinitamente grande?"); e o mundo mecânico, pressuposto por Descartes e
confirmado por Isac Newton (1647-1723): o universo é uma enorme máquina,
cujos movimentos, desde a queda de uma fôlha até o giro dos planetas,
obedecem a uma lei universal, exprimível numa fórmula matemática; Deus..
vem a ser o grande Relojoeiro, cuja tarefa termina uma vez fabricado o re-
lógio. — Cf. John H. Randall Jr., La Fortnación del Pensamiento Mo-
derno (trad. esp. do livro: The Making of The Modern Mind), Buenos
Aires, Editorial Nova, 1952, págs. 263-285 e 301-303.
(7a). — Cf. as palavras iniciais do Universal Prayer, do poeta inglês A. Pope (1738),
apêndice do seu Essay on Man (1733-1734):
Father of All! in every Age,
In every Clime adored,
By Saint, by Savage, and by Sege,
Jehovah, Jove, or Lord!
— 188 —

das épocas anteriores e à exploração ardilosa do povo pelos sacer-


dotes: só a descobriu na sua verdadeira natureza o século das Lu-
zes (8) . Seu dogma central é a tolerância, desconhecida dos judeus,
muçulmanos e cristãos. Não havendo interrelações entre o Ente
Supremo e o mundo histórico, êste se torna o terreno do relativo,
também em matéria de religião, e o relativismo resulta làgicamente
em indiferentismo. Outro dogma essencial do deísmo é o dever
humano de ser benévolo para com todos os indivíduos da espécie
humana: vem sendo revivificada a palavra grega, tanto em voga
entre os estóicos, filantropia, destinada a suplantar o têrmo cristão
"caridade", têrmo manchado pela superstição e pela intolerância
de outrora: o amor abstrato à humanidade tende a substituir o
amor concreto ao nosso próximo (9) . O deísta não acredita nas•
opiniões quiméricas de uma metafísica ininteligível, nem nos ins-
trumentos exteriores e mecânicos da salvação eterna, mas na ado-
ração interior e na justiça. Faire le bien, voilà son culte; être sou-
Mis à Dieu, voilà sa doctrine. Le Mahométan lui crie: "Prends
garde à toi si tu ne fais pas le, pèlerinage de la Mecque!" "Malheur
à toi, lui dit un récollet, si tu ne fais pas un voyage à Notre-Dame
de Lorette!" 11 rit de Lorette et de la Mecque; mais il secourt l'in-
digent et il défend l'opprimé (10) . Os deístas inglêses organiza-
ram-se, desde os inícios do século XVIII, na franco-maçonaria, que
dentro de pouco tempo, se espalharia por quase todos os países
da. Europa e da América (11) .
VI. O Absolutismo.
Outro inimigo declarado dos espíritos esclarecidos era, além
da Igreja, o absolutismo que existia em quase todos os países euro-
. — Daí a preocupação dos deístas inglêses (freethinkers = "livres-pensadores")
de roubar o Cristianismo do seu conteúdo sobrenatural, e de reduzir todos os
dogmas cristãos a verdades naturais. Mencionamos aqui, além de Lord E. H.
of Cherbury (1581-1641) que, como Bodin, quer'a instituir uma verdadeira
religião "católica", aceitável para todos: John Toland (1670-1722), autor de
Christianity not Mysterious (1696) e We Freethinkers (1711); Matthew
Tindal (1656-1733), autor de Christianity as oid as the Criation, or The
Gospe/ a Recluplication of The Refiéion of Nature (1731); e finalmente,
Lord Bolingbroke (1658-1751), cético brilhante, alcunhado de "Volteira
inglês".
. — Cf. A. Pope, Essay on Man, IV 361-363; 367-368:
God /oves from Whole to Parts: Hut human sorri
Musf rise from indiyklual to the Whole.
Self-love but serves the virtuous mind to wake...
Fricnd, parent, neidhbour, first il will embrace;
His country next; and next ali - human roce.
Disse alguém que os medievos faziam questão de conhecer o abstrato, e se
esforçavam por amar os sêres concretos; o homem moderno. invertendo essa
ordem, tem a pretensão de conhecer o concreto, e ama abstrações (cf.
75 V) .
. — Voltaire, in Encyclopédie, s. v. Théiste.
. — A franco-maçonaria foi fundada em Londres (24-VI-1717); Anderson deu-lhe,
em 1723, as Constituições; a Loja foi fundada em França (1725), em Es-
panha (1728), na América do Norte (1730), em Portugal (1735), na Ale-
manha (1737) . Em 1773, Voltaire iniciou-se, com grandes festividades, na
franco-maçonaria. — Frederico II da Prússia, Herder, Goethe, Lessing e
Mozart eram franco-mações.
— 189 ---

peus (12). O absolutismo, defendido por tantos católicos e pro-


testantes como uma instituição divina (13) e idolatrado por ou-
tros (14), constituia, aos olhos dos "livres-pensadores", o segundo
obstáculo ao progresso da humanidade. O país de uma liberdade
modelar era para muitos a Inglaterra, cujo regime político era estu-
dado e preconizado por numerosos publicistas europeus, principal-
mente pelos franceses, que viviam sob uma monarquia autocrá-
tica (15) .

VII. A Divisão da Matéria.

Neste capítulo pretendemos acompanhar, nas linhas gerais, al-


gumas doutrinas relativas à interpretação da história que foram
elaboradas no Século das Luzes. O Iluminismo é um fenômeno
europeu, a afetar sobretudo a Inglaterra, a Holanda, a França e a
Alemanha. Nasceu, não se pode dizer com precisão, quando ou on-
de. O certo é que a Inglaterra contribuiu muitíssimo para o nasci-
mento das novas idéias, mas que nenhum país tanto fêz para as
desenvolver e divulgar como a França. Nos fins do século XVII,
os inglêses estavam muito "adiantados" em relação aos outros po-
vos, mas, como diz Paul Hazard: Ce n'est pas en vain que le déisme
a fini de s'élaborer dans un pays dont les habitante ont coutume
d'arrêter letir pensée assez exactement au point oà ila le veulent;
oà on brisa ?élan d'une doctrine quand elle va trop loira et qu'elle
devient dangereuse pour la sécurité morale du peuple (16). A
França, porém, elaborou as novas doutrinas com maior arrôjo, e
tornou-as universalmente conhecidas. A repercussão mundial do
filosofismo francês é, em boa parte, devida à sua agradável forma
literária, que é elegante, espirituosa e ligeira. A Alemanha, satélite
cultural da França até a segunda metade do século, conseguiu li-
bertar-se do jugo estrangeiro só por volta de 1750.
— Exceções eram a Holanda, a Suiça e a Inglaterra. — Cf. nota 15.
— Cf. Bossuet (§ 82, nota 36). — O rei Jaime I da Inglaterra (1603-1625)
e seus teólogos defendiam a mesma tese em sentido protestante. O jesuíta
F. Suarez (1548-1617) combatia-a no seu trabalho De Legibus.
{14). — Cf. Machiavelli (§ 81 II). Mencionamos ainda Gabriel Naudé, autor das
Considdrations sue les Coups d'État (1639) e principalmente Thomas Hobbes,
filósofo inglês (1588-1679), autor do tratado Leviathan (1651). Segundo
êle. o homem é brutalmente egoísta; daí um be<lum omnium in omnes (cf.
homo homini lupus). Os indivíduos, porém, ensinados pela experiência, sub-
metem-se incondicionalmente, por meio de um contrato irrevogável, à auto-
fdade civil, cedendo-lhe definitivamente todos os seus direitos. O Estado
toma-se a única fonte da moral e do direito. (O têrmo Leviathan, de origem
hebraica, quer dizer: "monstro"; cf. Jó, III 8; Salmos, LXXIII 14, e CIII 26).
— Cf. Montesquieu (§ 87 III). — Em 1688, o Príncipe Guilherme de Orange,
"stadhouder" da Holanda, invadiu a Inglaterra, acabando com a monarquia
absoluta (The Glorious Revolution); a Inglaterra não possui uma Constituição
no sentido técnico da palavra; a Constituição inglêsa é uma aglomeração de
costumes, tradições, privilégios, leis, etc., cuja base é a Magna Charra (Li-
bertatum), dada em 1215 por John II Lackland (= Sem Terra).
— P. Hazard, La Crise, etc., pág. 264. — Uma analogia interessante é a evo-
lução moderna do socialismo inglês para o "trabalhismo". — Cf. § 103 I.
— 190 —

Aqui não falaremos nem dos inglêses nem dos holandeses, se-
não de passagem. Os §§ 85-89 serão consagrados aos franceses, os
,§§ 90-92 aos alemães, e os §§ 93-94 à Reação católica.

A. O FILOSOFISMO FRANCÊS.

§ 85. Os primórdios.

inova interpretação da história é anunciada, na França, pelas .


obras de Fontenelle, Perrault e o abbé de St.-Pierre.
I. Em 1687, Bernard le Bovier de Fontenelle (1657-1757),
sobrinho do dramaturgo Pierre Corneille, publicou L'Histoire des
Oracles (17), opúsculo aparentemente inspirado por um zêlo orto-
,

doxo à causa cristã, mas na realidade um ataque oblíquo do ceti-


cismo nascente ao caráter sobrenatural do Cristianismo (18) . Cer-
tos apologistas cristãos da época (19) consideravam como um ar-
gumento muito forte em favor da religião revelada o fato de ter
-sido predita a vinda de Cristo por alguns oráculos pagãos, princi-
palmente pelos livros sibilinos (cf. § 48 I a): segundo êles, — e aí
se baseavam na demonologia de muitos Padres eclesiásticos, a qual
era influenciada pelo neoplatonismo, — os oráculos teriam sido mi-
,

nistrados pelos demônios (= anjos caídos), os quais de vez em


quando eram obrigados por Deus a falar a verdade; após a Encar-
nação, teriam desaparecido os vaticínios por já não poderem exer-
cer os demônios o seu domínio sôbre os homens. Ora, Fontenelle
prova que nos oráculos não há nada de extraordinário senão a su-
perstição ignorante dos homens: não passam de instrumentos en-
genhosamente excogitados e hàbilmente explorados por sacerdotes
com o fim de lograr o povo demasiadamente crédulo; prova também
que êsse gênero de fraude ainda subsiste nos tempos depois de Cris-
,

to. Apelando para a autoridade de alguns autores esclarecidos da


Antigüidade, dá inúmeros exemplos de tais artifícios, m!-.quinados
por sujeitos gananciosos e pouco escrupulosos, e é impiedoso em
pôr a nu as incoerências e a obscuridade proverbial dos oráculos.
-

Tese inocente e, em nossos dias, até banal. Mas, nos dias de Fon-

(17) . — Fontenelle nada fazia senão divulgar, de maneira elegante, as idéias do erud'to
médico holandês Antoon Van Dele (1638-1708): De Oraculis Veterum Ethni-
corum (1683) . •
, (18) . — Fontenelle fazia a mesma coisa em L'Origine des Fables (1686): as fábulas
são alucinações de espíritos contemplativos que ingênuamente atribuem fenô-
menos mal compreendidos à ação de sêres superiores; artistas e poetas tor-
nam-se cúmplices por propagar essas invenções quiméricas de uma época não
científica. O autor não fala nas "fábulas cristãs", mas suas insinuações dão a
entender que a explicação racionalista é de alcance geral.
(10) . — Por exemplo Bossuet e Huet. — Pierre-Daniel Huet (1630-1721), teólogo e
apologista francês, adversário de Descartes, com tendências pietistas, educador
do Delfim (textos clássicos ia usura Delphini), e autor de muitas obras, das
quais mencionamos a Demonstratio Evangeiica (1679) .
— 191 —

tenelle era uma revolução que ameaçavam abalar um dos alicerces da


apologia cristã. E deduzir da inexistência do milagre' pagão a inexis-
tência do milagre cristão podia parecer uma das conclusões mais
naturais, impostas pelo bom senso, principalmente naqueles am-
bientes franceses em que o Cristianismo estava sendo roubado do
seu conteúdo sobrenatural. As insinuações do autor, por mais dis-
cretas que fôssem, revelavam a tendência racionalista de conside-
rar tôda e qualquer religião revelada como superstição e prova de
ignorância .
II. O mesmo autor tomava também parte ativa na célebre
questão, conhecida sob o nome: La Querelle des Anciens et des
Modernes (1687), entre Boileau, o defensor dos antigos, e Char-
les Perrault (1628-1703), o patrono dos modernos, polêmica essa
que, alguns anos após, foi prosseguida entre Madame Dacier e La
Motte (1713) . Perrault atrevia-se a escrever uma paródia de Enei-
da; La Motte deleitava-se em patentear grosserias, incoerências, uma
composição defeituosa, e• falta de bom gôsto nas epopéias de Ho-
mero (20) . O problema, originàriamente de caráter literário e es-
tético, era mal pôsto dos dois lados, mas todos os homens cultos se-
guiam com imenso interesse a controvérsia, em que o próprio prin-
cípio do classicismo francês estava em jôgo: a imitatio. Não tar-
dou que a questão se estendesse também ao setor social, moral e
cultural, vindo a ser discutida com paixão nos salões elegantes de
Paris: le grand siècle é inferior ou superior à época de., Péricles
ou de Augusto? Fontenelle (21), que não gostava da tradição de
modo algum, dizia que um sábio moderno é dez vezes mais sábio
do que o homem mais erudito da Antigüidade: un bon esprit cultivé
est, pour ainsi dire, composé de tous les esprits des siècles précé-
dents; ce n'est qu'un même 'esprit qui s'est cultivé pendant tout ce
temps-là. Combatia com muita graça a veneração supersticiosa aos
antigos, dizendo que nós somos os antigos e que os autores clássi-
cos representam a juventude da humanidade; ridicularizava o sé-
culo de Péricles e de Cícero em que não existiam a polidez requin-
tada e a arte de conversar (22); julgava que a filosofia não fizera
nada senão repetir as inépcias de um Platão e de um Aristóteles
.

até que foi, finalmente, posta no caminho reto por Descartes. Fon-
tenelle escapa ao ceticismo da sua juventude por professar, nas nu-
merosas publicações da sua idade madura, uma confiança quase

(20) . — Em 1714, Fénelon tentava reconciliar os dois partidos, escrevendo na sua


Lettre à l'Académie (devida a uma das numerosas iniciativas do abbé de St.-
Pierre, qï. § 85 Je ne vante point les anciens comme des modèles sana
imperfection; je ne veux point ôter à personne l'espérance de les vaincre; je
souhaite, au contrai te, de voir les , modernes victorieux par l'étude des
anciens mêmes qu'ils auront vaincus. Mais je croirais ni'égarer au-delà de
mes borres, si je me mêlais de juger jamais pour le prix entre les combattants.
(21). — Nos Dialogues des Morta e na Digression sur les Anciens et les Modernes•
— 192 —

ilimitada nas novas ciências (la Philosophie Expérimentale), as


-quais vulgariza e torna acessíveis a todos com fervor apostólico.
11 est le sécrétaire général du monde scientifique (22a.).
III. O que insinuava Fontenelle, foi elaborado mais sistemà-
ticamente por Charles-François Castel, alcunhado de abbé de Saint-
Pierre (1658-1743), inventor infatigável e inovador atrevido (23).
Ao terminar a Guerra da Sucessão da Espanha pelo Tratado de
Utrecht (1713), publicou o Projet pour rendre Ia Paix perpétuelle
-en Europe, em que projetava uma Sociedade ou Confederação de
18 nações européias (24), com o fim de garantir a paz, mediante
arbitragem e deliberações coletivas, ficando cada um dos Estados
participantes com os seus direitos soberanos (25). No pensamento
do abbé, os gregos do tempo de Péricles eram crianças, compa-
rados com os parisienses esclarecidos da sua época. Opondo-se ao
mito dos tempos satúrnios (cf. § 73 II c), preconizava o aumento
perpétuo e ilimitado da razão humana e, por conseguinte, o pro-
gresso indefinido do gênero humano, pelo menos na sua coletivi-
dade. O abbé inventou também a palavra bienfaisance, para subs-
tituir o têrmo cristão charité, o qual teria sido desabonado pelo
-abuso que dêle fizeram os cristãos, ao maltratarem os seus inimi-
gos e ao perseguirem os hereges (25a).

§ 86. Voltaire.

O representante acabado do filosofismo francês foi Voltaire,


pseudônimo de François-Marie Arouet le Jeune (1694-1778). Co-
-

mo poucos autores, antes ou depois, exerceu uma verdadeira hege-


monia na república das letras, e influenciou profundamente o pen-

. — Cf. D. Mornet, La Penaíe Française au XVIIIe Siècle, Paris, Armand Colin,


1947', Chap. II: L'Esprit Mondain, págs. 16-26.
(22a) . —E. Faguet, Diz-Huitième Siècle, Paris, Boivin, 44e. édit+on. pág. 51.
. — Apresentou um projeto sôbre o consêrto das estradas públicas da França;
propôs a fundação de uma Academia política, e a fabricação de poltronas
mecânicas, etc. — Voltaire, que não gostava do homem, escrevia êste epi-
grama para o busto dêle:
Ce n'est lá qu'tm portrait,
L'oriÉinal dirait que/que sottise.
<24). — França, Espanha, Inglaterra, Holanda, Portugal, Suiça, Florença, Gênova,
Estados Eclesiásticos, Veneza, Savóia, Lorena, Dinamarca, Curlândia e Danzig, o
Império alemão, Polônia, Suécia, Moscóvia (= Rússia) . — Cf. E. Gilson,
Les Métamorphoses de la Cité de Dietz, págs. 207-227.
,(25) . — No fim do século XVIII, o filósofo alemão I. Kant consagrou um tratado ao
assunto: Zum Ewigen Frieden (= "Para a Paz Perpétua") . — Desde o século
XIX houve muitas iniciativas nesse sentido; só em 1948 realizou-se o Pri-
meiro Congresso da Europa Unida em Haia. e a unidade federativa da Europa
ainda hoje está longe de uma sólida realidade. Tantae molis erat Europae
condere Éentem! — A Liga das Nações, organização mundial, foi fundada em
1919 (Presidente Wilson), e em 1945 substituída pela UNO (= United Na-
tions OrÉanization), ou ONU (= Organizaçào das Nações Unidas).
(25a). — Cf. Voltaire que num poema fala de certo legislador o qual:
Vient de créer un mot qui manque à Vaugelas (gramático francês, 1585-
16.50); Ce mot est "b.entaisance": il me plait.. .
— 193 —

sarnento de duas ou três gerações. Era venerado como o apóstolo


do Evangelho da Razão, consultado como um oráculo por reis, prín-
cipes, cardeais, literatos e cientistas, e aplaudido como o milagre do
século por nobres e burgueses. Autor universal (26), estilista lú-
cido e brilhante, literato inteligente e espirituoso, era, no fundo um
espírito destrutivo, pensador superficial, que vivia de idéias alheias,
e poeta medíocre e declamatório. Caráter sumamente complexo,
era vaidoso e rancoroso, mas tinha também a paixão da justiça,
defendia a dignidade da pessoa humana, — se nem sempre na prá-
tica, ao menos nos livros — e era às vêzes capaz de atos generosos.
Seu deísmo era agressivo e intolerante, seu ódio ao Cristianismo im-
placável e até mórbido. Nos últimos anos da sua vida, tornava-se-
lhe uma verdadeira obsessão a própria figura de Cristo: cet affreux
petit juif (27). Apesar de suas extraordinárias faculdades men-
tais, faltava-lhe algo de essencialmente humano: a experiência aper-
feiçoadora da dor profunda (28). Neste parágrafo comentamos duas
obras voltaireanas de nosso interêsse: Candide (1759) e o Essai
(1756).
I. 'Candide é um romance satírico, em que o autor ridicula-
riza o otimismo sistemático da escola leibniziana (29), contido no
adágio: tudo está pelo melhor no melhor possível dos mundos; ao
mesmo tempo, combate a teleologia cristã e leibniziana do processo
histórico. Candide é moço alemão, educado de acôrdo com as dou-
trinas otimistas e finalistas de seu mestre Pangloss (= Leibniz):
Remarquez hien que les nez ont été faits pour porter des lunettes:
aussi avons-nous des lunettes. Les jambes sont visiblement insti-
tuées pour être chaussées, et nous avons des chausses (30). As tris-
tes aventuras que o herói experimenta, vêm a desmentir cruelmen-
te êsse ôco palavreado, reduzindo a um absurdo o providencialismo
propositadamente mal interpretado . Candide assiste aos horrores
(26) . — Escrevia dramas (por exemplo Zaire), uma epopéia La Henriade, (em que
glorificava Henrique IV da França), romances (por exemplo, Candide), ensaios,
poemas, epigramas, além de numerosíssimas cartas (cf. § 36 W, nota 10).
— Nos fins da sua vida. Voltaire assinava seus escritos com a abreviatura:
Écr. Pint. = Écrasez l'infême (superstition, ou, segundo outros, Christ). Con-
dorcet, na Vie de Voltaire, cita estas palavras: Je suis Ias d'entendre répéter
que douze hommes ont suffi pour établir le christianisme, et j'ai envie de
prouver qu'il n'en faut qu'un pour le clétruire.
— Cf. Guerra Junqueiro, in A Velhice do Padre Eterno (A Semana Santa):
"O teu gênio, Voltaire, é como o Sol do Inverno,
Dá muitíssima luz, mas não aquece nada...
E' que nunca soubeste o que é a dor profunda
Que estala fibra a fibra os grandes corações;
E' que nunca choraste, ó Prometeu coracunda,
Como Dente chorou, como chorou Camões".
— G. W. Leibniz (1646-1716), filósofo alemão e um dos sábios mais univer-
sais dos Tempos Modernos, reduziu a importância do mal, dando-lhe um
sentido dentro da "harmonia pré-estabelecida". Foi êle quem forjou o têrmo
"teodicéia" (= "justificação de Deus"). — Voltaire, originàriamente adepto
do Progressismo, embora moderado, passou a ser cada vez mais pessimista,
principalmente a partir de 1753 (rompimento com Frederico II).
(30) . — Voltaire, Candide; Chapitre I.

Revista de História n.° 27


-- 194 —

da guerra, vê a estupidez e a arrogância humanas, presencia o ter-


remoto de Lisboa (31), assassina, sem querer, várias pessoas, es-
capa por nada à Inquisição, visita rtodos os lugares do mundo, e por
tôda a parte sofre perseguições por causa da ignorância e do fana-
tismo dos homens, ou então suporta a inclemência da cega Fortuna.
Qual a conclusão que se impõe? O acaso rege o mundo histórico,
não a Divina Providência . Pode ser que Deus reine (32), mas em
todo o caso não governa os destinos humanos: deixa entregue êste
mundo a causas mecânicas, a funcionarem desvairadamente, e o
caos piora pela ignorância e pela maldade do homem. Nosso autor
se ri da miséria humana como se estivesse ao abrigo do infortúnio:
diz Madame de Staël; o romance é ouvrage d'une gaieté infernale.
Não há salvação? Há, sim, pelo menos parcial. Voltaire termina
seu livro com as célebres palavras: II faut cultivar notre jardin,
quer dizer: devemos trabalhar e agir, combatendo a ignorância e
o despotismo, a superstição e os preconceitos. Eis o nosso único
remédio. O autor não acredita num progresso ilimitado, como mui-
tos dos seus contemporâneos, mas vê no processo histórico a alter-
nação contínua de progresso e retrocesso, julgando que a evolução
para o bem é contrariada pelos caprichos do Destino e pelas pai-
xões atrasadoras do homem. Seu progressismo consiste em elimi-
nar o mais possível a ação nefasta dêsses dois fatôres. Um dêles
está completamente fora de nosso contrôle, o outro não. Daí a ne-
cessidade de criar um espírito crítico e uma mentalidade racional;
daí a obrigação de desmascarar as diversas loucuras que deturpam
o ser humano, daí o dever de trabalhar. E a outra obra voltaireana
nos fará ver qual é o trabalho mais importante para o homem, no
pensamento do autor.
II. L'Essai sur les Moeurs et l'Esprit des Nations pretende
continuar o Discours de Bossuet. Originàriamente abrangia o pe-
ríodo que vai de Carlos Magno até os tempos de Luís XIII; de-
pois a obra foi completada pela história da Antigüidade e por duas
monografias: Le Siècle de Louis XIV (cf. § 29 I) e Le Siècle de
Louis XV; afinal, foi enriquecida de uma Introdução, onde encon-
tramos, pela primeira vez, a expressão La Philosophie de l'Histoire
(cf. § 71 I). Na realidade, o Essai de Voltaire é a negação radical
. — Voltaire escreveu um Poème sur le Désastre de Lisbonne (1756), no qual,
dirigindo-se contra os jesuítas, que interpretavam a catástrofe como um cas-
tigo do céu, dizia:
Lisbonne, qui n'est plus, eut-elle plus de vices
Que Londres, que Paris, plongals dans les défices?
Lisbonne est abimée, et l'on danse à Paris!
. — Voltaire nunca duvidava da existênc a de Deus, cf. as palavras amiúde
citadas:
Croyez-moi, plus j'y pense et moins je puis songer
Que cette horloge existe et n'ait pas d'horloger .
Quanto à imortalidade da alma humana, originàriamente Voltaire a afirmava,
depois duvidava dela, para finalmente a negar.
— 195 —

das idéias do bispo de Meaux, e a refutação da interpretação tradi-


cional da história. O autor, censurando a falta de universalidade
no Discours, impugna com muita ironia a idéia de girar a história
de todos os povos antigos à roda da história dos judeus. Bossuet ex-
plicara a derrota do povo eleito pelos babilônios como um castigo
divino, e a vitória de Ciro como outra intervenção divina nos des-
tinos humanos (cf. § 82 II), e assim por diante. Nous parlerons
des Juifs comme nous parlerions des Scythes et des Grecs (33).
Com efeito, o Essai abrange mais civilizações, mas por isso não se
torna universal: falta-lhe completamente a idéia de um fim e de
um sentido universal. O livro começa pela história dos chineses
(cf. § 22 I), aos quais admira muito por possuirem uma religião
sem mistérios e uma ética superior à moral cristã: Nous avons ca-
lomnié les Chinois, uniquement parce que leur métaphysique n'esf
pas la nôtre: nous aurions dã admirer en eux deux mérites qui con-
elanment à la fois les superstitions des païens et les moeurs des chré-
tiens. Jamais la religion des lettrés (chinois) ne fut déshonorée par
des fables, ni souillée par des querelles et des guerres civiles (34).
Depois trata dos outros povos: hindus, persas, árabes, romanos,
etc., eliminando sistematicamente o maravilhoso e o sobrenatural,
também daqueles episódios históricos que uma tradição secular con-
siderava como inseparáveis da verdade revelada. Não acredita na
unidade do gênero humano, destaca paralelos entre o dogma cris-
tão e certas crenças supersticiosas dos gentios, e detesta os judeus,
cujo messianismo ridiculariza. Abomina sobremaneira a Idade Mé-
dia: Ainsi, pendant neuf cent années, le génie des Français a été
presque toujours rétréci sous un gouvernement gothique (cf. § 28 I
f), au milieu des divisions et des guerres civiles, n'ayant ni Mis ni
coutumes fixes, changeant de deux siècles en deux siècles un langua-
ge toujours grossier; les nobles sans discipline, ne connaissant que
le guerre et foisiveté; les ecclésiastiques vivant dans le désordre et
dans l'ignorance; et les peuples sans industrie, croupissant dans leur
misère (35) . Quem estudar sem preconceitos a história, verá, insi-
nua o autor, que os anais da humanidade não nos revelam nada da
existência de um Govêrno Divino, nem a luta entre o céu e o in-
ferno, mas nos patenteiam a luta entre a razão e a não-razão, entre
o esclarecimento e a ignorância. A história é um drama estúpido
de perseguições, crueldade, malevolência, mesquinhez, e de outras
paixões calamitosas, às quais se acrescenta a atuação do Acaso: só
de vez em quando, algumas pessoas esclarecidas conseguem criar
aí certa ordem. A grande lição para l'esprit philosophique é forne-
cer-nos a história armas proveitosas para o combate contra a igno-
. — Voltaire, Essai, Introduct'on, XXXVIII.
. — Ibidern, Chapitre II.
. — Voltaire, Le Siècle de Louis XIV, Chapitre I.
— 196 --

rância e pelo progresso racional da humanidade. O historiador in-


teligente selecionará, entre os inúmeros fatos do passado, não as
guerras e os dogmas, produtos das paixões e dos preconceitos, mas
os costumes, as instituições, as descobertas científicas e as inven-
ções técnicas, produtos do espírito inventor dos povos. Je voudrais
découvrir quelle était alors la société des hommes, comment on vi- ,
vait dans I'intérieur des familles, quels arts étaient cultivés plú tot
que de répéter tant de malheurs et tant de cornbats funestes, objets
de Phistoire et lieux communs de la méchanceté humairze (36) .
São as realizações concretas e práticas, às vêzes modestas, mas sem-
pre importantes para o bem-estar do gênero humano que chamam a
atenção do historiador: o arado, o fuso, a serra, etc.
III. Devemos reconhecer que Voltaire merece a nossa gra-
tidão por ter ampliado o terreno da historiografia, e igualmente por
ter acabado com muitas lendas que desfiguravam a tradição histó-
rica. Por outro lado, faz-se mister frisar que seu utilitarismo exa-
gerado táila pouco caso das correntes ideológicas e religiosas, sem
as quais mal se entende a história e, às vêzes, nem sequer se che-
ga a uma compreensão de certas descobertas científicas e técnicas.
Além disso, amiúde substitui uma lenda por outra, um preconceito
por outro. Ainda mais grave se nos afigura seu método de encarar
as civilizações como entidades estáticas, faltando-lhe quase por com-
pleto uma visão orgânica e dinâmica do processo histórico. Cada
um dos períodos é tratado isoladamente, ou nas palavras de Bréhier:
Chacune de ces époques forme un tout presque isolé qui n'est pas
solidaire du passé; l'histoire, chez Voltaire, semble avoir surto& à
coeuz d'empêcher le passé de peser sur le présent (37). E afinal,
seu racionalismo inteligente, mas frio e altivo levava-o a um des-
prêzo preconcebido pelos fatôres irracionais e superracionais, tão
importantes na vida dos indivíduos e dos povos.

§ 87. Montesquieu.

Mais construtivo do que o patriarca de Fernay é o sensato


e equilibrado Charles Secondat, barão de Montesquieu (1689-1755).
I. Em 1721, Montesquieu abriu sua carreira literária com a
publicação de Les Lettres Persanes, uma coleção de 160 cartas que
o autor supõe constituirem a correspondência de dois persas, Usbek
e Rica, visitantes de Paris, com seus amigos que ficaram no Oriente.
Mediante êsse disfarce, Montesquieu submete a uma crítica siste-
mática a sociedade francesa durante os últimos anos de Luís XIV
. — Voltaire, Essei, Chapitre LXXXI.
. — E. Bréhier, Histoire de le Phiiosophie, Paris, Presses Universitaires, 190 5,
II pág. 462.
— 197 --

e a Regência. Dois maometanos, escrevendo a maometanos, podiam


permitir-se a liberdade de falar a verdade nua, e o público sabo-
reava as sátiras brilhantes: dentro de 20 meses sairam 20 edições
da obra. Les Lettres Persanes traçam o retrato de Luís XIV enve-
lhecido, dão uma descrição irônica da vagabundagem dos parisien-
ses, da coquetterie das mulheres, dos mexericos que circulavam nas
rodas da aristocracia francesa, e patenteiam as manobras perver-
sas dos financeiros. Retrata o rei da França como un grand magi-
cien: il exerce son empine sur l'esprit même de ses sujets; il les
fait pensar c,omme il veut. S'il n'a qu'un million d'écus dans son
trésor, et qu'il en ait besoin de deux, il n'a qu'à leur persuader qu'un
écu en vaut deux, et ils le croient. .. Mas um outro mágico, mais
poderoso ainda, é o papa: Tantôt il lui (ao rei) fait croire que trois
ne kfont qu'un, que le pain qu'on manga n'est pas du pain, ou que
le vin qu'on boit n'est pas du vin, et mille autres choses de cette
espèce (38). O Catolicismo, por impor o celibato aos sacerdotes,
favorece a depopulação: ce métier de continence a anéanfi plus
d'hommes que les pestes et les guerras les plus sanglantes n'ont
jamais fait (39): o Protestantismo fomenta o progresso econômico
e social dos povos. Na carta LXXXV apregoa a tolerância, e aduz
vários argumentos para demonstrar que é útil para o Estado a con-
vivência de várias seitas no seu território.
II. Em 1734, Montesquieu publicou uma obra mais séria:
Considérations sur les Causes de la Grandeur et de la Décadence
des Rornains. Prudentemente não rejeita a idéia da Divina Pro-
vidência para evitar um escândalo: não fala nela, mas dá uma ex-
plicação racional e científica da história romana (40), deixando em
silêncio as causas finais dos providencialistas e prestando tôda a
atenção às causas secundárias. Também Bossuet consagrara dois
capítulos a êsse assunto (41), mas Montesquieu, além de ver nas
causas secundárias a explicação total dos acontecimentos históri-
cos, estudava nelas não só os fatôres morais, mas também os físi-
cos. Estas palavras resumem bem o pensamento do autor: Ce n'est
pas la fortuna qui domine le monde. 11 y a des causes générales,
soit morales, soit physiques, qui agissent dans chague monarchie,
l'élèvent, la maintiennent, ou la précipitent; tous les accidents sont
soumis à ces causes, et, si l'hasard d'une bataille, c'est à dire uno
cause particulière, a ruiné un État, il y avait une cause générale qui
faisait que cet État devait périt par une seule bataille: en un mot,
l'allure principale entraine avec elle tous les accidents particuliers
(38) . — Montesquieu, Les Lettres Persanes, XXIV.
(39). — Ibidem, CXVII.
. — O livro compõe-se de 24 capítulos: 9 tratam das causas da grandeza, 10
das da decadência de Roma, e 4 das da sobrevivência do Império Bizantino.
. — Bossuet, Discours, III 6-7.
— 198 —

(42) . Para êle, como para os estóicos, — não era Políbio seu mo-
dêlo admirado? — o mundo é o efeito de uma causa racional e
única, que contém em si a concatenação lógica das causas parti-
culares. Assim se explica de maneira muito natural a história do
povo romano. Os romanos conquistaram o mundo, graças à sua
férrea disciplina militar, ao seu amor pela liberdade, à sua vida
frugal, à sua legislação sábia, e o desaparecimento dêsses fatôres
tornou-se desastroso para o Império. La vertu (-= patriotismo sa-
crificado, desêjo de glória, etc.) ia diminuindo, à medida que o Im-
pério se ia estendendo a países fora da Itália. Pouco interessa a
Montesquieu a religião romana, e quando encontra no seu caminho
o Cristianismo, fala dêle com reserva e com certo embaraço.
III. Na sua obra principal, L'Esprit des Lois (1748), o autor
desenvolve a idéia fundamental das Considérations. Montesquieu
procura entender um problema que já era discutido apaixonada-
mente pelos sofistas gregos: as instituições e as leis, tão diferentes
entre os diversos povos, devem ser interpretadas em função de um
ideal absoluto (a justiça eterna ou a razão universal), ou devem
ser consideradas como expressões de uma vontade arbitrária? Por
outras palavras: as leis das nações se baseiam na natureza (grego:
phf/sis), ou na convenção (grego: ,nómos)? Montesquieu não se
conforma com esta alternativa, mas dá uma resposta original, que
já anuncia a concepção orgânica da história. O "espírito das leis"
decorre logicamente do "espírito" de cada povo, o qual é constituída
pelo total de fatôres empíricos, tais como o clima, o solo, o nível
de cultura, os costumes, a religião, etc. Urna lei, por mais capri-
chosa que pareça, pressupõe sempre uma relação íntima com êsses
fatôres naturais, e o bom legislador leva êstes em consideração com
o fim de realizar o melhor resultado para um povo concreto que
vive nestas circunstâncias concretas. As leis são, portanto, deter-
minadas por "causas gerais" de caráter físico ou moral, mas por isso
não são necessidades absolutas, e sim relativas, visto serem diferentes
entre si as "causas gerais". As leis serão boas, não na medida de
realizarem as normas absolutas da Justiça, mas na medida de se
harmonizarem com as normas relativas, ditadas pelo clima e pela
situação do país, como também pelos costumes do povo. Assim se
explica a diversidade das leis e da sua eficiência (43).
Montesquieu foi o primeiro a introduzir na filosofia da histó-
ria o conceito de "lei", — têrmo equívoco, ora empregado no sen-
tido de lei física, ora no de obrigação moral ou jurídica, ora no de
princípio matemático ou até metafísico. São estas as palavras Mi-

— Montesquieu, Considérations, Chapitre XVIII.


— Montesquieu, L'Esprit des Lois, I 3.
— 199

ciais da sua obra: Les Lois, dans la signification la plus étendue,


sont les rapports nécessaires qui dérivent de la nature des choses
et, dans ce sens, tout les êtres ont leurs leis; la Divinité a ses leis;
le monde matériel a ses lois; les intelligences supérieures à l'homme
ont leurs lois; les bêtes ont leurs lois; I'homme a ses lois. Essas re-
lações não são arbitrárias, mas lógicas e necessárias, ditadas por
uma Inteligência pré-existente às coisas criadas. Dieu a du rapport
avec l'univer•, comme créateur et comme conservateur: les Lois se-
lon lesquelles il a créé sant celles selon lesquelles il conserve (44).
O autor não admite a atuação determinista de causas físicas no
processo histórico, mas reconhece a livre operação de causas morais:
Ce sont les mauvais législateurs qui ont favorisé les vices du climat et
les bons sont ceux qui s'y sont opposés. . . Plus les causes physiques
portent les hommes au repos, plus les causes morales les en doivent
éloigner (45). Apesar de afirmar o livre arbítrio (46), aproxima-se,
em alguns capítulos, de um determinismo simplista, mormente de
caráter biológico e geográfico (47), e sua teoria de rapports nécessai-
res entra fàcilmente em conflito com seu conceito precário da liber-
dade humana .
A mentalidade anticristã, agressiva e satírica, de Les Lettres
Persanes, cede lugar, no L'Esprit des Lois, a certo respeito, embora
frio e formalista, e a certa simpatia pelo Cristianismo. Chose ad-
mirable! la religion chrétienne, qui ne semble avoir d'objet que la
felicite de l'autre vie, fait encore notre bonheur dans celle-ci (48).
Mas o autor não tem profunda convicção cristã: no fundo é deísta
moderado, indiferente à verdade sobrenatural da religião revelada
e à santidade da sua doutrina moral, e encara o Cristianismo só
em relação à vida política e social, e até tende a considerá-lo (prin-
cipalmente no Livro XXV, bem diferente do Livro XXIV) como
um dos fatôres naturais de uma dada sociedade histórica . E sua
Providência, bastante parecida com a imanente causa universal dos
estóicos, é puramente racional e investigável para a inteligência
humana . Por isso evita propositadamente as questões cardiais das
obras de Santo Agostinho, Orósio e Bossuet: a história do povo
eleito, a Encarnação, a soteriologia são assuntos que não quadram
com a mentalidade racionalista do autor .
L'Esprit des Lois é talvez mais importante ainda para a evo-
lução do pensamento político do que para a filosofia da história:
tomando por modêlo — mais ou menos ingênuamente — a Ingla-
terra "constitucionalista", formulou a doutrina da Irias politica: os
— Ibidem, 1 1.
— Ibidem, XV 5.
— Cf. Les Lettres Persanes, LXIX e L'Esprit des Lois, 1 1.
— Ibidem, XIV 12 (suicídso na Inglaterra); XIV 15 (a índole dos japoneses
e dos hindus).
— Ibidem, XXIV 3.
-- 200 --

três poderes do govêrno (o legislativo, o executivo e o judiciário)


funcionarão melhor, se um funcionar o mais independentemente pos-
sível do outro; êste sistema exclui o despotismo, e garante a liberda-
de dos cidadãos (48a) .

§ 88. A Enciclopédia, Turgot e Condorcet.

Na Antigüidade grega, a palavra "enkYklios paidéia" signifi-


cava o ciclo de conhecimentos julgados indispensáveis para um fu-
turo intelectual: era o orbis doctrinae (48b), que desde a época
helenística coincidia mais ou menos perfeitamente com as sete artes
liberales da Idade Média, que as herdara do Baixo Império. Só os
tempos Modernos foram ligando ao têrmo duas noções complemen-
tares: a da unidade e a da totalidade do saber humano. Ao que
parece, foi o humanista flamengo Sterck de Ringelberg o primeiro
a empregar a palavra para designar um dicionário contendo tôdas
as ciências do tempo (49). Em 1695-1697, o cético Pierre Bayle
(50) editou o Dictionnaire Historique et Critique (em dois vo-
lumes), e em 1727 o inglês Ephraim Chambers publicou a Cyclo-
paedia, or Universal Dictionnary of Arts and Sciences (em dois
volumes). As duas obras possuíam fortes tendências racionalistas,
e seriam de suma importância para a concepção da Encyclopédie
francesa.
I. Um golpe mal disfarçado à mundividência cristã foi a edi-
ção da Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des Sciences, dei
,

Arta et des Métiers, publicada em 35 volumes entre 1751 e 1780.


Era a Cruzada coletiva de todos os homens esclarecidos da época
contra a ignorância, a superstição e a metafísica, a Summa Scien-
tiarum dos Tempos Modernos, que devia revolucionar mentalmente
a Europa inteira. A obra dividia-se em três seções: la mémoire
(a história, etc.), la raison (a filosofia, etc.), e l'imagination (a poe-
sia, etc.). Redator-chefe era Denis Diderot (1713-1783), literato
de uma energia indomável, o qual tomava conta de 1.139 artigos,
entre os quais: Christianisme, Foi, Liberté, Morale, Philosophie,
Providence, etc. Conseguia assegurar-se da colaboração dos notá-
veis matemáticos D'Alembert (1717-1783) e Condorcet (cf. II b),
dos filósofos Voltaire e Montesquieu, dos economistas Turgot (cf.

(48a). —Ibidem, XI 6.
(48b) . — Quintilianus, Institutio Orataria, E 10, 1. — E' bem possível que a palavra
"enkyklios paidéía", na Grécia antiga, tenha significado: "educação comum,
corrente".
(49). — Cf. H.-I. Marrou, Saint Augustin et la FM de la Culture Antique, Paris,
Boccard, 1948, págs. 228-229.
(50) . — Pierre Bayle (1647-1706), filósofo francês que, desde 1681, vivia em Rotter-
dam; mudou várias vêzes de religião e de filosofia para terminar num ceti-
cismo destrutivo.
— 201 ----

§ II a) e Necker (51), de vários ilustres médicos, engenheiros, cien-


tistas. Os ataques ao Cristianismo e à Autoridade civil são quase
sempre indiretos, mas traiçoeiros. São corretos e inofensivos, em
geral, os artigos que a censura podia suspeitar de heterodoxia ou
de espírito subversivo; em compensação, são numerosas as dúvidas,
as insinuações, as observações irônicas ditas de passagem, as críti-•
cas (aparentemente inócuas) ao dogma, à tradição, à autoridade..
Mais perigosas ainda são as preterições propositadas, e a inversão
sistemática dos valores tradicionais. O mistério já não existe: é a
razão humana que julga, em última análise, tôdas as coisas: graças
a ela, o gênero humano tem conseguido progredir, afastando-se, aos
poucos, da sua fase inicial: a animalidade. No artigo Pain Béni, .

Diderot calcula as despesas anuais de pão bento e de velas em


8.000.000 de libras, sem falar em outras coisas completamente des-
necessárias, que cada ano custam uma fortuna ao povo francês, ví-
tima de uma religião exteriorizada: Populus hic labiis me honorat
(Mt., XV 8). La religion ne consiste pas à décorer des temples, à
charmer les yeux, ou les oreilles, mais à révérer sincèrement le Créa-
teur, et à nous rendre conformes à Jésus-Christ. Tais preocupações
hipócritas pela pureza da religião cristã são encontradiças pelos 35
volumes da Encyclopédie: a Igreja, discernindo as tendências anti-
cristãs, pôs no Índice o spissurn opus in plures tomos, cujus est ti-
tulus "Encyclopédie"; e o Ancien Régime suspendeu duas vêzes, em .

1752 e em 1759, a publicação. Pouco adiantavam as medidas


coercivas: a obra granjeava a admiração do público culto, que se
ia apaixonando pelas idéias revolucionárias sem avaliar bem que
estava brincando com fogo. O Terror jacobino seria a execução
drástica dos versos de Diderot:

Et ses mains ourdiraient les entrailles du prêtre,


A défaut de cordon, pour étrangler les rois!
II. Afinal, merecem ser mencionados aqui dois adeptos do
Progressismo: Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781) e Jean
Nicolas de Condorcet (1743-1794).

a) Turgot.
Com 23 anos de idade, o então seminarista Turgot proferiu,.
em 1750, dois discursos brilhantes na Sorbonne, chamados: Dis-
cours sur les avantages que I'établissement du Christiarrisme a pro-
cure au gene humain, e Discours sur les progrès successifs de res.
prit humain. No primeiro, o orador assinala as visíveis vantagens
(51) • — Jacques Necker (1732-1804), financista e ministro francês (1777-1781, e
1788-1789), partidário do mercant lismo; pai de Madame de Staël (cf. nota
97) .
— 202 —

que o Cristianismo trouxe ao mundo (cf. Orósio, no § 78 II): a


religião do Nazareno originou uma revolução nos corações dos ho-
mens, mitigando os bárbaros costumes da guerra, da legislação e da
escravatura, e tornando melhores, mais justos e mais felizes os ho-
mens. Não obstante, revela uma atitude condescendente com a Ida-
de Média, e proclama sua fé na filosofia racionalista de Descartes:
Grand Descartes! S'il ne vous a pas été donné de trouver toujours
la vérité, du moins vous avez détruit la tyrannie de Perreur! (52) .
No segundo Discurso, Turgot, partindo de um ditado de Pascal (cf.
§ 9, nota 2), diz: Les phénomènes de la nature, soumis à des lois
constantes, sont renfermés dans un cercle de révolutions toujours
les mêmes. La succession des hommes, au contraire, offre de siè-
cle en siècle un spectacle toujours varie. La raison, les passions, la
liberte, produisent sans cesse de nouveaux événements,. Tous les
áges sont enchainés. . et le gene humain, considere depuis son
origine, parait aux yeux d'un philosophe un tout immense, qui lui-
même, a comme cheque individu, son enfance et ses progrès (53) .
A humanidade, através de épocas sucessivas de calma e de agita-
ção, que se revezam, caminha ininterruptamente, embora devagar,
rumo a um mundo melhor. Já encontramos nas obras de Turgot a
antecipação da lei des trois états successifs, que no século XIX seria
desenvolvida por Comte. E Turgot, cheio de confiança na vitória
do Tempo, exclama: Temps, déploye tes ailes rapides! Siècle des
Louis, siècle des Grands-Hommes, siècle de la Raison, hâtez-vous!
(54) .

b) Condorcet.

Condorcet era notável matemático e grande filantropo: seria


um dos "santos" da humanidade, canonizados por Comte. Como
filósofo não era original, sendo apenas o expoente do pensamento
empírico e progressista da sua época. Nos dias mais pavorosos do
Terror escrevia a Esquisse d'un Tableau historique d'es Progrès de
l'esprit humain, na qual estudava as invenções cada vez mais fe-
cundas e brilhantes do espírito humano, dividindo-as em nove épo-
cas, e consagrando o Capítulo X às descobertas grandiosas do fu-
turo. Segundo êle, o Progresso é uma necessidade histórica, que ad-
mite apenas interrupções passageiras e. incidentais; além assa,
la perfectibilité de Phomme est réellement indéfinie; les progrès
de cette perfectibilité, désormais indépendants de toute puissance
qui voudrait les arrêter, n'ont d'autre terme que la durée du globe

. — Turgot, Oeuvres, II pág. 89 (éd. Guillaumin; Paris, 1844) .


. — Ibidem, II págs. 597-598. Cf. Pascal (§ 9 no fim) .
. — Ibidem, II pág. 88.
— 203 —

oà la nature nous a jetés (55). Cada momento da história humana


constitui um passo para frente, e uma conquista parcial, mas dura-
doura, da verdade e da felicidade. O estudos históricos, praticados
sem preconceitos, capacitam-nos, não só para predizer o futuro, co-
mo também para acelerar o ritmo do Progresso. A instrução geral
e uniforme, a ser dada a todos os cidadãos dos Tempos Modernos,
tornará universais o saber, a virtude e a felicidade. Condorcet, em-
bora perseguido por seus inimigos (56), prevê um porvir magnífico
para a humanidade: ll arrivera donc, ce moment, oà le soleil n'éclai-
rera plus sur la ferre que des hommes libres, ne reconnaissant d'au-
tre maitre que leur raison: oà les tyrans et les esclaves, les prêtres
et leurs stupides ou hypocrites instruments n'existeront plus que
dans I'histoire et sur les théâtres; oà l'on ne s'en occupera plus que
pour plaindre leurs victimes et leurs dupes; pour s'entretenir, par
l'horreur de leurs excès, dans une utile vigilance; pour savoir re-
connaitre et étouffer, sous le poids de la raison, les premiers ger-
mes de la superstition et de la tyrannie, si jamais osaient repa-
raitre (57).
§ 89. Rousseau.
Outro aspecto do século XVIII se nos manifesta na figura de
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o precursor do Romantismo.
Com seu sentimentalismo e sua crença no bon sauvage, poderia pa-
recer, à primeira vista, um filósofo extraviado, cercado que está
por racionalistas e progressistas. Por mais que contraste com os
outros pensadores, pertence bem à época, pelo menos no que diz
respeito à sua atitude ante a Revelação, o poder absoluto, e a tra-
dição.
I. O autor granjeou fama mundial pela resposta que deu a
um concurso acadêmico, aberto em 1749 pela Academia de Dijon:
Si le rétablissement des sciences et des arts a contribue à épurer les
moeurs. Reencetando a tese dos cínicos (58), Rousseau responsa-
biliza deliberadamente a civilização pela corrupção dos costumes.

. — Condorcet, Esquisse, Introduction.


. — Condorcet, como gerondino, era perseguido pelos jacobinos e, ao escrever a.
Esquisse, escondia-se na casa de Madame Vernet, onde não podia consultar
livro algum (de dezembro de 1793 a março de 1794) . Por mêdo de arruinar
sua benfeitora, tomou veneno e assim escapou ao cadafalso.
(57). — Condorcet, Esquisse, Chapitre IX. — Cf. as palavras de Gibbon: We may
therefore acquiesce in the pleasing condusion that every age of the world has
increased and still increases the real wealth, the happiness, the knowledge,
and perhaps the virtue, of the human rate (in General Observations, do Chap-
ter XXXVIII da obra The Decline and Fall of The Roman Empire)..
(58) . — Há, porém, uma diferença entre os cínicos (Diógenes de Sinope, contem-
porâneo de Alexandre Magno, é o representante mais conhecido desta esco-
la) e Rousseau: para aquêles, a natureza é um limite que os homens nunca
deveriam ter passado; para êste, a natureza é um ideal de perfeição, para o
qual devem tender todos os homens, pela afirmação da sua essência e pela-
livre expansão de sua personalidade.
— 204 —

Prefere os espartanos aos atenienses, os romanos primitivos aos ro-


manos helenizados, e os citas aos romanos. Inflige a Sabedoria Eter-
na todos os males à humanidade, quando esta procura esquivar-se
ao seu estado natural de ignorância feliz (58a).
II. No Discours sur POrigine et les Fondements de l'Inégalité
parmi les Hommes (1754), Rousseau pinta com côres vivas l'état
de nature do gênero humano (59). Originàriamente, o homem vi-
veria solitário, errando pelas florestas virgens, livre, feliz e bom
(59a), quase sem pensamentos e sem linguagem, e com uns poucos
instintos, perfeitamente apropriados à sua situação (59b) . Só cir-
cunstâncias acidentais, tais como sêcas e inundações, levaram-no a
aliar-se a outros indivíduos da sua espécie, alianças originàriamente
passageiras que com o tempo ficaram com caráter permanente.
Ora, a convivência com os seus semelhantes, além de originar nele
quelque sorte de réflexion, ou plutôt une prudence machinale (59c),
contém em si os germes de corrupção moral: a sociedade transfor-
ma o homem que, por natureza, é livre, bom e feliz, em escravo,
criminoso e miserável. E' a sociedade que é responsável pelos ví-
cios humanos: o orgulho, a rivalidade, a ganância, o desprêzo a ou-
trem, a cobiça, a vingança, — e não a natureza corrompida do ho-
mem, como o queria o dogma cristão. Inicia-se Pétat sauvage, em
que se instituem a família, habitações separadas e a propriedade
privada, instituições que foram fomentadas e desenvolvidas pela in-

(58a). — Cf. Rousseau, Discours de 1750 (I): Voilà comment le luze, la dissolution
et Pesclavage ont été de tout temps le châtiment des efforts orgueil1eux que
nous avons faits pour sortir de I'heureuse ignorance af la sagesse éternelle
nous avait placés.
(59)• — Rousseau não pretende dar uma reconstrução de fatos históricos, mas antes
uma hipótese, ou melhor ainda, um mito. Mas se considerarmos êsse mito pai-
cológicamente; na consciência individual, l'état de nature é uma realidade
efetiva. Diz o autor (no exórdio do Discours sur ?Origine, etc.): Commen-
çons dons pour écarter tous les feita, car ils ne touchent point à la question.
11 ne faut pas prendre les recherches dans lesquelles on peut entres sur ce
sujei pour des véritéks historiques, mais seulement pour les raisonnements hy-
pothétiques et conditionnels, pisas propres à éclaircir la nature qu'à en mon-
trer la véritable origine, et semblables à ceux que font tous les jours nos
physic:ens sur la formation du monde.
—Discours sur ?Origine, etc. I: ...on pourrait dire que les sauvages ne sont
pas méchants précisément parce qu'ils ne savent pas ce que c'est qu'être
bons; car ce n'est ni le développement des lumiàres, ni le frein de la loi,
mais le calme des passions et l'ignorance du vice, qui les empêchent de mal
feire. "Tanto pisas In illis proficit vitiorum •ignoratio quem in his cognitio
virtutis”. — Além disso, o homem do estado de natureza tinha como virtude
positiva: la piêfé, disposition convenable à des êtres aussi faibles et sujeis
à autant de maus que nous le sommes...: elle précède en lui l'usage de
toute réflexion, et (est) si naturelle que les bêtes mêmes en donnent quel-
quefois des signes.
Ibidem, 1: Ce fut par une providence três sege que les lacultés qu'il avait
en puissance, ne devaient se développer qu'avec les occasions de les exer-
cer, afin qu'elles ne lui fussent ni superflues et à charge avara le temps, ni
fardives et Mutiles au besoin. 11 avait dans le seul instinct tout ce qu'il lui
fallait pour vivre dans l'état de nature; il n'a dans une raison cultivée que
ce qu'il lui faut pour vivre en société.
(59c) . — Ibidem, I.
— 205 —

venção do ferro e da agricultura, as quais, por sua vez, aumentaram


a desigualdade, a criminalidade e a miséria (59d). Visto serem
desiguais os talentos dos indivíduos, foi a lei impiedosa do mais for-
te e do mais hábil que organizou essa sociedade primitiva: destar-
te apareceram a escravatura, a opressão social, a separação das clas-
ses, o roubo e o latrocínio. Aumentam as paixões e a reflexão ra-
cional com o crescimento constante das necessidades mútuas, e
vice-versa, num círculo vicioso, de modo que cada um dos indiví-
duos, também os ricos e poderosos, acabam por ser escravos e de-
pendentes um de outro. Ao espírito dos ricos se apresentou então
le projet le plus réfléchi qui soit jamais entré dans l'esprit humain;
diziam êles 'entre si: Unissons-nous... pour garantir de l'oppres-
sion des faibles, contenir les ambitieux, et assurer à chacun la pos-
session de ce qui lui appartient: institutions des réglements de jus-
tice et de paix auxquel tous soient obligés de se conformer . . (59e).
Assim nasceu l'état social ou civil, o qual, comparado com a fase an-
terior, constitui um certo progresso por eliminar, até certo ponto, a
arbitrariedade ilimitada e os caprichos do acaso, mas constitui um
retrocesso lastimável, confrontrado com l'état de nature, já que pro-
cura perpetuar uma situação criada despèticamente e contrária à
,

natureza humana.
III. Pois a natureza quer que o homem seja livre: L'homme
est né livre, et partout il est dans les Lera (60). Qual a saída dessa
situação insuportável e indigna do homem? Rousseau vê muito bem
ser inexiqüível um retôrno radical ao estado primitivo da humani-
dade. No Contrat Social (1762) empenha-se em solucionar o ár-
duo problema, sempre no sentido de salvar, na medida do possível,
as vantagens de l'état de nature. A liberdade e a igualdade, dois
direitos inalienáveis do indivíduo humano, que lhe foram extorqui-
dos pela sociedade e pelo Estado, lhe devem ser restituídas, enquan-
to o permitir o bem-estar de todos. No seu estado de natureza, o
homem dependia apenas das coisas, não dos seus semelhantes, o
que é humilhante, visto que o homem nasce livre: na sociedade do
futuro, o homem dependerá apenas da lei, expressão impessoal da
volonté générale, sem estar sujeito às postergações atuais da sua li-
berdade por parte dos homens. La volonté générale, meio-têrmo
entre a realidade e a norma ideal, prescinde de tôdas as vontades
particulares bem como de todo e qualquer interêsse particular. Sem-
pre justa e infalível, visa só ao verdadeiro bem comum, sendo muito
diferente de la volante de tous, que é o total dos interêsses parti-
—Ibidem, II: La métallurgie et l'agriculture furent les deux arts dont l'in-
vention produisit cette grande révolution. Pour le poète, c'est l'or et l'argent,
mais pour le philosophe, ce sont le fer et le blé qui ont civilisé les hommes,
et perdu le genre humain.
— Ibidem, II.
(60). — Rousseau, Da Contrat Social, 1 2.
206 —

culares. Essa vontade geral pode entrar em existência e ficar com


caráter obrigatório apenas em virtude de um contrat social, pelo
qual o indivíduo renuncia incondicionalmente aos seus direitos em
favor de uma autoridade, representante de la volonté generale. Les
clauses (dêste contrato), bien entendues, se réduisent toutes à une
seule: totale de chague associe avec tous ses droits à
Coute la communauté (61) . O indivíduo perde pelo contrato so-
cial sa liberté natgrelk et un droit illimité à tout ce qu'il tente et
qu'il peut atteindre: ce qu'il gagne, c'est la liberté civile et la pro-
priété de tout ce qu'il possède (62), erguendo-se assim à categoria
de um ente moral e jurídico. Como Locke (63), Rousseau consi-
dera o soberano como o mandatário do povo: opondo-se, como o
filósofo inglês, às teorias de Hobbes, afirma que, em caso de con-
flirto entre o govêrno e os governados prevalece a vontade suprema
do povo. Êste delega apenas ao soberano a administração do po-
der, ficando com o direito de revogar o mandato, julgando-o conve-
niente. O Estado professa uma religião civil, que tem por dogmas
positivos a crença na existência de um Deus, na vida futura, bem-
aventurada para os justos e miserável para os maus, e no caráter
sagrado do Contrato Social e das leis; por dogma negativo: a in-
tolerância. O soberano não pode obrigar nenhum dos cidadãos a
crer nesses dogmas, mas tem a faculdade de banir, não como ím-
pios, mas como indivíduos insociáveis, todos os que se recusarem a
dar-lhes a sua adesão.
IV. Rousseau é deísta sentimental, que respeita, até certo
ponto, o Cristianismo (64), menos a intolerância cristã: a ordem
do universo, — aliás interpretada de maneira bastante antropo-
morfa, — e a voz íntima da consciência provam abundantemente
a existência de Deus. Suspeitando uma metafísica racional que,
segundo êle, apenas suscita problemas insolúveis e dúvidas, e nos
torna orgulhosos, toma outro guia, dizendo: Consultons la lumière
intérieure, elle m'égarera moins qu'ils (= os filósofos) ne m'égarent,
ou du moins mon erreur sera la mienne, et je me dépraverai moias

(61) . — Ibidem, I 6.
(62). — Ibidem, I 8.
(63) . — John Locke (cf. § 84 II), o exaltador do regime liberal, estabelecido na In-
glaterra pelo rei Guilherme III (cf. nota 15), expunha suas idéias nos Two
Treatises on Government (1689) : segundo êle, o contrato social não cria
direitos novos, mas o indivíduo procura na sociedade a garantia de seus
direitos naturais e inalienáveis, pelos quais os direitos do govêmo ficam 1;-
mitados; surgindo conflitos entre o govêrno e o povo, prevalece a suprema
vontade da nação. — Quanto a Hobbes, cf. nota 14 dêste capítulo.
(64). — Porém, no Contrai Social, IV 8, censura o Cristianismo, qui ne prêche que
servitude et dependance. Son esprit est trop favorable à la tyrannie pow
qu'elle n'en profite toujours. Les vrais chrétiens sont feita pour être esclaves;
ils /e savent et ne s'en émeuvent guère; cette courte vie a trop per' de
prix à loura yeux• Une société chrétienne, à force d'être parfaite, manqueraii de
liaison. — Cf. § 81 II, nota 18. — O argumento já foi combatido per
Santo Agostinho, Epistola, CXXXVI.
— 207 —

en suivant mes propres illusions qu'en me livrant à leurs mensonges


(65) . No livro IV do Emile, lemos o credo religioso de Rousseau,
belas páginas literárias que escondem um pensamento pobre: sua
religião é vaga, agnóstica, humanitária, e principalmente tolerante e
emocional. Exister, pour nous, c'est sentir; notre sensibilité est in-
contestablement antérieure à notre intelligence, et nous avons eu des
sentiments avant des idées. . . Cet être qui veut et qui peut, cet
être actif par lui-même, cet être enfin, quel qu'il soit, qui meut
í'univers et °reforme toutes choses, je l'appele Dieu. . .; il se dérobe
également à mes sens et à mon entendement; plus j'y pense, plus je
me confonds! je sais très clairement qu'il existe. .. J'aperçois Dieu
partout dans ses oeuvres, je le sens en moi, je le vais autour de
moi. . . Plus je rentre en moi, plus je me consulte, et plus je lis ces
mots écrits dans mon âme: "Sois juste, et tu setas heureuf . Ou
toutes les religions sont bonnes et agréables à Dieu, ou s'il en est
une qu'il prescrive aux hommes et qu'il les punisse de méconnaïtre,
il lui a donnée des signes certains et manifestes pour être distinguée
et connue pour la seule véritable. .. Si le fils d'un chrétien fait
bien de suivre, sans un examen profond et impartial, la religion de
son père, pourquoi le fils d'un Turc ferait-il mal de suivre de mê-
me la religion du sien?... Je vous avoue aussi que la majesté des
Écritures m'étonne, la sainteté de L'Évangile parle à mon soeur
(66).
V. Rousseau não era historiador, nem pretendia sê-lo, mas
muitas das suas idéias entraram na historiografia romântica: desco-
briu o pitoresco, ressaltou o valor dos fatôres irracionais e da vida
sentimental nos acontecimentos históricos, e destacou a dignidade e
a originalidade do indivíduo humano (67) . Inconscientemente de-
ve muitíssimo ao Evangelho: muitas •das suas convicções fundamen-
tais seriam inconcebíveis no mundo pré-cristão. Nas suas obras en-
contramos, para falarmos com Chesterton, many virtues let loose;
. . . the modern world is full of the old Christian virtues gone mad.
The virtues have gone mad because they have been isolated from
each other and are wandering alone (68) . Rousseau é um profeta
do Progresso sui generis: por proclamar o dogma da bondade origi-
nal do homem e por possibilitar-lhe um retôrno parcial à bem-
aventurança de um Paraíso terrestre, — igualitário e humanitário,
— não irrevogàvelmente perdido, partilha, mau grado seu, uma idéia
(65) . Rousseau, Emile, IV (éd. Flammarion, 1935, vol. II, pág. 12) .
(66). — Ibidem, pág. 44; 24; 25; 33; 55; 70; 71.
. — Um filósofo tomista faria urna distinção, preterida por Rousseau, entre "pes-
soa" e "indivíduo". A doutrina de Rousseau não é personalismo, e sim indi-
vidualismo, o qual deve resultar em "atomismo".
— G. K. Chesterton, Orthodoxy, London, 1934, pág. 51. — Rousseau é muitas
vêzes incoerente, mas quase sempre eloqüente e sedutor. Assinalamos aqui ape-
nas que o defensor infatigável do indivíduo sancionava o despotismo da maioria
por endeusar a tirania da volonté ténérale!
-- 208 —

predileta dos filósofos racionalistas que combatia com tanta elo-


qüência emocional. E' um dos profetas dos Tempos Modernos, e
só o século XX procura liqüidar, — dolorosamente, ao que parece,
— os elementos duvidosos e subversivos, contidos nos ensinamentos
do grande precursor do Romantismo, que era um dos pais da de-
mocracia moderna: transposição de uma idéia cristã para o plano
terrestre.

B. A "AUFIKLÃRUNG" ALEMÃ.

§ 90. Características gerais.

Fôra catastrófica a Guerra de Trinta Anos (1618-1648) para


a Alemanha. Ao passo que a França e a Inglaterra tinham realizado
a unidade nacional e gozavam de um padrão de vida relativamen-
te elevado, a Alemanha estava dividida em inúmeros Estados minús-
culos e lutava com as maiores dificuldades internas. O pensamento
francês e a língua francesa predominavam nas ciências e na filo-
sofia (69); nas artes e na literatura preponderava um classicismo
importado de sabor francês. Até Frederico II, apesar de presenciar
a aurora da literatura nacional, desprezava a língua vernácula. Só
na segunda metade do século XVIII, a Alemanha foi recuperando,
aos poucos, a sua autonomia cultural.

I. As idéias esclarecidas, oriundas da Inglaterra e sobretudo


da França, afetaram profundamente a Alemanha, mas aí sofreram
também modificações consideráveis, principalmente desde 1750.
Não nos interessa muito a primeira fase da Aufklárung alemã, que
era dominada pelo racionalista pedante Christian Wolff (70), ou
então, era uma cópia mal feita do filosofismo francês e do Enligh-
tenment inglês. Mais importante é para nós o segundo período, no
qual o pensamento alemão se vai revestindo de formas próprias.
Sem dúvida, a Aufklãrung partilha, com suas irmãs dos outros paí-
ses europeus, certas persausões íntimas, por exemplo a confiança oti-
mista na Razão emancipada, a ruptura com a Revelação sobrena-
tural como dado absoluto, e uma atitude crítica que não respeita
as tradições mais veneráveis. Mas, por outro lado, envereda por
caminhos que a distinguem decisivamente do filosofismo francês.
Embora sejamos conscientes de serem um tanto perigosas e até in-
justas certas generalizações "raciais", pretendemos indicar, neste
. — O grande Leibniz escrevia suas obras em latim ou em francês; assim faziam
os filólogos, historiadores e cientistas da Alemanha; a literatura nacional des-
sa época é insignificante.
. — Christian Wolff (1679-1754), discípulo de Leibniz, cuja doutrina "sistema-
tizava" e "completava", diluindo o pensamento do mestre; foi o primeiro fi-
lósofo alemão a servir-se da língua vernácula (cf. Descartes em França) .
Foi êle que inventou o térreo Aufkliirtmg.
— 209 —

- parágrafo, algumas oposições entre a mundividência francesa e a


alemã.
Os franceses buscam, em geral, causas mecânicas; os ale-
mães leis biológicas ou orgânicas. Assim como aquêles tendem pa-
ra um deísmo vago ou para um materialismo declarado, assim pro-
pendem êstes para certo panteísmo. Os franceses gostam de idéias
claras e distintas, são brilhantes e elegantes, mas correm o risco
de identificar um dito espirituoso ou uma fórmula feliz com a pró-
pria verdade; os alemães suspeitam da elegância como nociva à
profundidade: menos brilhantes e mais laboriosos, são eternos in-
quietos; interessa-lhes mais o opus faciendum do que o opus facturn
(71), mas arriscam perder-se em especulações nebulosas. O tour
d'esprit francês é racionalista; o pensamento alemão visa a uma
intuição direta da realidade numa visão total, que una o objeto ao
-espírito numa espécie de comunhão vital: é a filosofia "vivida", a
"vivência" (alemão: das Erlebnis), palavra tão importante no voca-
bulário filosófico e artístico dos alemães. O germano prefere o
"devir" ou o "vir a ser" (alemão: das Werden) ao "ser", ou melhor:
subordina êste àquêle, por possuir uma estrutura dinâmica (72) .
O francês é individualista ou personalista; o alemão pensa em cate-
gorias de coletividade: raça, povo, nação. Admira, e até adora o
-gênio, mas sempre vendo nele uma manifestação superior da co-
letividade.
O gênio alemão, apesar de ter recebido muitos valiosos
impulsos da França, pôs-se deliberadamente, uma vez chegado à
maioridade, em oposição ao espírito latino (culture-latrines!), re-
presentado mormente pela cultura francesa (72a). Prefere Homero
a Vergílio, Shakespeare a Racine, a arquitetura gótica ao classicis-
mo. O apogeu grandioso da cultura alemã, por volta de 1800, em
-quase todos os setores das ciências e artes, e — last, not least, —
no terreno da filosofia, originou o mito de ser a Germânia a Nova
Grécia, um povo de poetas e de filósofos (73) . No século XIX, e
mais ainda no século XX, o mundo verificaria que por dentro des-

— Cf. Lessing, in Eine Duplik I: "Se Deus segurasse na mão direita tôda a ver-
dade, e na mão esquerda apenas o desêjo sempre vivo de verdade, e me
dizendo: "O' Pai celeste, dai-me isto! A verdade pura ó só para Vós!"
e dizendo: "O' Pai celeste, dai-me isto ! A verdade pura é só para V.5s!"
— No drama Faust de Goethe (I 1224-1237), o herói interpreta as palavras
iniciais do Evangelho de João ("No princípio era o Verbo" = grego: Lógoz)
como: "No início era a Ação" Um Anfang war die Tat).
(72a). — Lessing, na Hamburgische Dramaturgie, impugnava o drama clássico da es-
cola francesa, ridicularizando-lhe as três regras, a artificialidade, e exprobran-
do-lhe falta de imaginação e de "interioridade" (alemão: Innerlichkeif, outra
palavra significativa do vocábulo alemão!). — A tendência anti-francesa en-
contra-se também nas obras de Herdar, Goethe, Hegel, etc.
<73). — O mito do Volk der Dichter und Denker foi criado pelas publicações de J. X.
Musaeus (1735-1787) e de Jean-Paul Fr. Richter (1763-1825); Madame
de Staël (cf. nota 97) contribuiu muito para o divulgar nos países latinos.

Revista de História n.0 27


— 210 ---

ta Alemanha mítica existia também uma Prússia militarista e in-


dustrializada.
A Aufklãrung mostrava-se, em geral, menos abertamen-
te anti-cristã do que o filosofismo francês. Explica-se essa diferen-
ça não só por ainda constituir, na Alemanha, o Cristianismo urna
fôrça viva, mas sobretudo pela própria natureza do seu pensamento
histórico, que sabia apreciar o Evangelho como uma fase impor-
tante na evolução histórica da humanidade. Assim procedendo, re-
duzia o Cristianismo a um fator histórico e a um valor relativo,
preparando o caminho para o protestantismo liberal e o moder-
nismo.
Nos §§ 91-92 trataremos de dois representantes do pen-
samento alemão: Lessing e Herder. Aquêle pertence ainda à
Aufklãrung, êste já anuncia o Romantismo das gerações vindouras.

§ 91. Lessing.

Godofredo Efraim Lessing (1729-1781) era deísta cético e após-


tolo da tolerância. Ensaísta notável, crítico penetrante da litera-
tura e das artes, dramaturgo de destaque, contribuiu muito para a
emancipação das letras nacionais.
I. Lessing provocou grande escândalo pela publicação de
um manuscrito inédito do falecido H. S. Reimarus (74), uma apo-
logia pela religião natural, não revelada, que assinalava as incoe-
rências e até as imoralidades na Bíblia . Implicou-o a publicação
numa polêmica prolongada contra o pastor luterano Goeze em Ham-
burgo (1778), que não estava à altura do seu adversário, escritor
hábil, erudito e espirituoso. Apesar da violência, com que se tra-
vavam as discussões, Lessing distanciava-se de um deísmo agressivo:
i/ ne partageait à aucun degré l'opinion simpliste, que l'Église de
Dieu s'est établie par un complot grossier, conçu par les prêtres et
par les rois complicas. Puisque l'exigence d'une foi était un fait, pri-
mitif, assentia], puérils étaient ceux qui le niaient: il fallait seulement
determinar sa nature, le &ativer de ce qui n'était pas lui-même, et
lui donner son vrai sens (75) .

(74). — H. S. Reimarus (1694-1768) é o fundador do deísmo alemão (in "Tratado


sóbre as principais Verdades da Religião Natural", 1754); até é morte traba-
lhava na "Apologia pelos veneradores racionais de Deus", obra essa que
escondia escrupulosamente do público; dêsse livro Lessing publicou indiscre-
tamente alguns fragmentos. Reirnw-us explica a origem do Cristianismo psi-
cologicamente, a saber pela frustração das esperanças messiânicas terrestres
do povo judeu. — O fundador da exegese "histórica" da Bíblia entre os ca-
tólicos é o oratoriano francês Richard Simon (1638-1712), difamado durante
a vida e veemente combatido por Bossuet.
(75) . — P. Hazard, La Pensée Européenne au XVIlle Siècle, II pág. 212.
— 211 —

II. No seu drama "Natã, o Sábio" (alemão: "Nathan der


Weise"), composto em 1779, demonstrava ao público culto . o. Válát' •
relativo do Cristianismo, mediante a fábula dos três anéis (76). Nu-
ma dinastia havia um anel hereditário, que possuía o poder má-
gico de tornar amável e simpático o seu dono. Era costume que
pai, ao morrer, o legasse a seu filho predileto. Aconteceu, porém,
que certo rei tinha três filhos a quem queria bem com amor igual:
por isso deu a cada um dêles um anel de ouro. Depois da morte
do pai, os três herdeiros conferiram entre si os anéis, e cada qual
pretendia que o seu fôsse o único autêntico, acusando os outros de
falsificação. Qual dos três anéis era o autêntico? Afinal, o sábio
juiz para quem apelaram, declarou o seguinte: nenhum dos três,
no sentido absoluto; cada um dos três, num sentido relativo. Per-
dera-se o anel autêntico, e o pai mandara fazer três anéis para subs-
tituí-lo. A tendência é evidente: as três grandes religiões (o Cris-
tianismo, o Judaísmo e o Islam) devem considerar sua "verdade"
como um bem precioso, mas relativo, subordinando-a, em senti-
mentos de mútua estima, à Verdade absoluta, que consiste em pra-
ticar o amor ao próximo sem preconceitos dogmáticos. Este sofis-
ma tornou-se um lugar-comum nas calorosas discussões sôbre a to-
lerância na Alemanha.
III. Em 1780, Lessing publicou o opúsculo, consagrado' à fi-
losofia da história: Educação do Gênero Humano (alemão: "Die
Erziehung des Menschengeschlechts"). O autor começa pela afir-
mação: "O que é a educação para o homem individual, é a Reve-
lação para o gênero humano" (77). E depois: "A educação nada
ministra ao homem, que êste não pudesse atingir por suas próprias
fôrças: apenas o ajuda a aprender com maior facilidade e rapi-
dez" (78). A conclusão é evidente: também a Revelação nada en-
sina ao gênero humano que êste não pudesse aprender por si mes-
mo: só lhe facilita e acelera o processo de evolução. O homem, ini-
cialmente dotado da noção de um Deus transcendente, decaiu para
politeísmo e a idolatria. Essa fase de degeneração religiosa e
moral poderia ter perdurado por milhões de anos, se Deus não ti-
vesse intervindo por meio de uma revelação. Para tal fim escolheu
povo bárbaro dos judeus, o representante da humanidade na sua

. — Ao que parece, a fábula remonta ao círculo deísta dos judeus esclarecidos,


discípulos do filósofo rabino Maimônides, que vivia no século XII em Cór-
dova. Encontrâmo-la também no Decamerone de Boccaccio (Giornata, I 3),
a fonte imediata de Lessing. — Desde os fins da Idade Média circulavam,
em certos meios anti-cristãos, brochuras e panfletos em que Moisés, Cristo e
Maomé eram representados como os "trés impostores" da humanidade; a
publicação mais conhecida dêste tipo de livros é o De Tribus Impostoribus,
editado em Viena (1753), que deve ter sido escrito em Hamburgo pelo ju-
rista J. J. Müller, entre 1685 e 1695.
. — Lessing, A Educação, I.
. — Ibidern, 4.
—.212 —

infância. Educou-o Deus, como um pai educaria um menino: me-


ca'stigos e prêmios imediatos e bem visíveis. Essa pedago-
gia era bem apropriada a um povo em estado de menoridade; aliás,
o Antigo Testamento mostra que o povo eleito, apesar de possuir
um Educador Divino, continuava a ter idéias muito grosseiras, so-
bretudo no que diz respeito à sobrevivência da alma humana . Ou-
tros povos seguiam independentemente o seu caminho, só guiados
pela luz da razão: a maior parte dêles ficava muito atrás dos ju-
deus; alguns, porém, por exemplo os persas, conseguiram superá-
los. Destarte, quando os israelitas, disciplinados por uma obediên-
cia heróica a Jahvé, seu deus nacional, entraram em contacto com
os povos da Mesopotâmia, começaram a medir suas crenças religio-
sas e seus preceitos morais pelas normas dos persas. Até então a
Revelação guiara a razão, daí em diante a razão iria guiar a Re-
velação. Os judeus, de volta à sua pátria, conhecendo doravante o
Deus universal, aperfeiçoaram sua fé pelos conhecimentos adqui-
ridos no estrangeiro. Depois de alguns séculos veio Cristo ao mun-
do, — o autor não se pronuncia sôbre a questão espinhosa se era
Filho de Deus ou se fêz milagres (79), — um Mestres admirável,
a expor o ensinamento prático da imortalidade da alma, doutrina
essa que já os filósofos da Grécia expuseram de modo teórico, sem
influirem na praxe da vida cotidiana . Outra vez a Revelação veio
ajudar a razão: começou a fase da adolescência da humanidade.
Mas também esta fase terá o seu fim. Pois a razão humana, desper-
tada pelos magníficos ensinamentos do Mestre, continuará a pro-
gredir e chegará um dia à sua plena maturidade, já não precisando
de mistérios e de milagres, simples instrumentos da educação di-
vina. Torna-se patética a voz de Lessing, ao anunciar o triunfo da
Razão, o Novo Evangelho (cf. § 79) dos Tempos Modernos. O ho-
mem do futuro será capaz de se aproximar cada vez mais da verdade
completa, e de praticar o bem, sem ser estimulado por prêmios ou
amedrontado por castigos. O Cristianismo não passa de um elo na ca-
deia da evolução histórica . Agora que chegamos à maioridade, po-
demos ter tôda a confiança nas nossas próprias fôrças. Pode ser
que a nova época ainda se demore algum tempo: a Providência
conta com milhares de anos. "Não é verdade que seja sempre reta
a linha mais curta" (80). E afinal, não é provável a palingenesia,
uma doutrina tão antiga e venerável? Como se vê, o Progressismo
de Lessing reveste-se de certas feições religiosas e éticas; nele a evo-
lução do gênero humano é um processo mais interior do que na
maior parte dos autores franceses.

-- Ibidem, 59.
-- Ibidem, 91.
— 213 —

§ 92. Herder.

Em João Godofredo Herder (1744-1803) anuncia-se a auto-


nomia do pensamento alemão em assuntos históricos. Isso não quer
dizer que não tenha recebido vários impulsos do estrangeiro. Her-
der era muito erudito e possuía vastos conhecimentos da literatura
mundial; conhecia bem o pensamento de Leibniz, Spinoza, Rous-
seau e Montesquieu, cujas influências se fazem sentir nos seus li-
vros. Sua síntese superava o Racionalismo unilateral da Aufklürung,
e fazia justiça também à imaginação, à originalidade dos fenôme-
nos históricos, e às necessidades místicas (aliás, interpretadas em
sentido naturalista!) do homem. As idéias de Herder enriquece-
ram a historiografia do século XIX; mas devido a certos exageros
e postulados "românticos", oprimiram-na também de umas mistifi-
cações.
I. Em 1774, Herder publicou uma obra polêmica, dirigida
contra as doutrinas esclarecidas do século XVIII, — principalmen-
te as de Voltaire, — e chamada: "Outra Filosofia da História" (ale-
mão: "Auch eine Philosophie der Geschichte" (81). Segundo Her-
der, as investigações recentes tornam cada vez mais provável o con-
to bíblico de descender tôda a humanidade de um único casal: to-
dos os povos da terra são ramos e galhos de um tronco comum.
Os primórdios da história humana, — Herder não fala no Paraíso
Terrestre nem na queda de Adão, — não era uma época de barbárie,
mas um período de felicidade sob o govêrno de uma Providência
maternal: sagesse en guise de science, crainte de Dieu en guise de
sagesse, amour des parents, des époux, des enf anta à la place des
gentillesses et du libertinage, vie ordonnée, domination et souve-
raineté dívine d'une maison. .. (82). Era a infância do gênero hu-
mano, representada pelos povos orientais, — pastores e nômades,
— dos quais nos fala a Bíblia: a idade patriarcal. O Egito repre-
senta a juventude, a Grécia a idade madura, e Roma a velhice e a
decrepitude dos povos antigos. Depois recomeça o ciclo histórico
com as invasões dos povos nórdicos (83) e os germanos vão se mis-
turando com as nações meridionais: La Providente avait trouvé
bon de préparer et d'adjoindre à cette nouvelle fermentation d'élé-
ments nordiques et méridionaux un nouveau ferment: la religion

(81). — Traduzido para o francês, em 1943, por Max Rouché, sob o título de:
Une Autre Philosophie de l'Histoire (Paris, Aubier); nossas citações são
t:radas da versão francesa.
. — Herder, Une Autre Philosophie, etc., pág. 119.
. — A exposição de Herder é pouco clara: há continuidade, ou mera sucessão
entre a cultura antiga e moderna? Ora fala na "árvore da humanidade", cujo
tronco crescido é a civilização romana, e cujos ramos são constituídos pela
cultura medieva (ibidem, pág. 227); ora, predominando a metáfora das "ida-
des", antec i pa uma idéia de Spengler, e a Idade Média seria um recomêço
absoluto (ibidem, pág. 165 e 195-197) .
214 —

chrétienne (84). A Idade Média, que Herder estuda principal-


mente sob o aspecto social, político e jurídico, é a época patriarcal,
o início de uma nova civilização, que começa a degenerar durante
a Renascença e passa para sua fase de senilidade durante o Sé-
culo das Luzes . Herder é o profeta da "primitividade" criadora, ino-
cente, imaginativa e "religiosa", e opõe êsse ideal romântico aos ído-
los do seu tempo: racionalismo, utilitarismo, mecanização, progres-
so. Aos pedantes filósofos dirige esta apóstrofe irônica: Voyez, à
quelle diffusion des lumières, quelle vertu, quelle félicité le monde
est parvenu! et moi tout en haut de la bascule! petite a%guille dorée
de la balance du monde: regardez-moi! (85) . Com êsse primitivis-
mo combina, — de maneira bastante incoerente, — uma visão re-
lativista de tôdas as civilizações históricas: nenhuma delas pode
arrogar-se a pretensão ridícula de ser superior a outra, mas cada
uma constitui um organismo, ao qual não se aplica o têrmo "pro-
gresso", mas os conceitos biológicos de nascer, crescer, murchar e
morrer. La Providence. . . n'a voulu atteindre son but qu'au moyen
du changement, d'un relai eftectué par l'éveil de forces nouvelles et
l'extinction d'autres forces (86). Já bateu a hora da morte da Eu-
ropa: novas hordas, provenientes dos estepes da Ásia, iniciarão um
novo ciclo `histórico . Mas também a Alemanha, providencialmente
privilegiada de uma vitalidade superior à dos outros povos, admi-
te certas esperanças, contanto que aprenda a buscar as fontes da
sua originalidade, que se encontram na Idade Média germânica.
A Providência guia os destinos de todos os povos: coletividades
e indivíduos vivem na ilusão de serem livres, mas, na realidade, não
passam de instrumentos nas mãos de Deus. Não interpretemos es-
sas palavras no sentido de Bossuet: os planos divinos, — e Deus
é para Herder o Todo maravilhoso, — excluem a liberdade humana;
a história não tem fim transcendente, mas cada época contribui pa-
ra o esplendor do manto sagrado da Divindade. E a Providência
atinge os seus fins, servindo-se de certas circunstâncias para a edu-
cação de cada povo: o clima e o solo (os quais determinam a here-
ditariedade), e principalmente o tempo (daí a importância das
"idades" sucessivas). E' legítimo vermos no conceito herderiano do
"tempo" como fator irreversível e irrevogável a reminiscência de
uma idéia cristã, mas, ao mesmo tempo, é para êle também uma
máquina de guerra contra o "classicismo" francês, que pretendia
"reviver" e "imitar" a Antigüidade.
II. Menos declamatória, mas não menos incoerente é outra
obra de Herder, publicada em 1784 sob o título de: "Idéias para a

— Ibidem, pág. 201.


— Ibidem, pág. 299.
— Ibidem, pág. 179.
— 215 —

Filosofia da História da Humanidade" (em alemão: /deen zur


Philosophie der GeschiChte der Menschheit) (87). A história hu-
mana é o complemento necessário da evolução que, por tôda a par-
te, encontramos na natureza, sendo a manifestação da Divindade.
O homem é o meio-têrmo entre Deus e a natureza irracional (88),
e deve sua existência a um ato particular do Criador (= Nature-
za?) . O Universo, do qual o homem faz parte integrante, é um or-
ganismo vivo, que no seu desenvolvimento é determinado por um
fim imanente. Assim como as diversas espécies de plantas e ani-
mais rivalizam entre si com o fim de produzir o máximo das suas
possibilidades, assim os diversos povos estão envolvidos num su-
blime certame para realizar o grau supremo das suas potências. O
têrmo final é die Humanitãt, quer dizer, o pleno desenvolvimento
de tôdas as faculdades humanas, no sentido mais amplo da pala-
vra: abrange não só seu progresso intelectual e técnico, — coisas
superestimadas pelo filosofismo francês, mas meib desprezadas por
Herder, — como também o aperfeiçoamento estético, moral e re-
ligioso. Pois também a religião, embora seja um conceito vago e
pouco positivo na ideologia do autor alemão, faz parte da Humanitãt,
sendo uma das Graças da vida humana (89). O estado atual do
gênero humano é provàvelmente uma fase intermediária entre a
mortalidade e a imortalidade (90). Mas logo depois, Herde'r fala
na alma coletiva das diversas nações, que constituem também "or-
ganismos", e não se vê bem se devemos acreditar apenas na sobre-
vivência da alma coletiva (do Universo, ou dos povos individuais?),
ou também na da alma individual. Constituindo um organismo, ca-
da uma das almas coletivas obedece, não a uma causa mecânica,
mas a uma lei imanente, não redutível a uma fórmula racional: é
uma fôrça vital que busca realizar espontâneamente uma finalida-
de intrínseca, a qual pode ser entendida apenas pelo conjunto de
tôdas as nossas faculdades. Todos os povos esforçam-se, amiúde
inconscientemente, mas sempre dirigidos pela Divina Providência,

(87) . Kant criticava severamente esta obra de Harder, reconhecendo-lhe uma gran-
de sagacidade em descobrir analogias e uma fecunda imaginação, mas expro-
brando-lhe a tendência de explicar obscurum per obscttrius (in "Sãmtliche
Werke", Insel-Ausgube, I pág. 253). — Quanto a Kant, cf. Kant, la Philosophie
de l'Histoire, (Opuscules), Introd. et Trad. par St. Piobetta, Paris, Aubier,
1947. E o "olimpico" Goethe (in Mazimen und Reflezionen): "Creio no triun-
fo final da Humanitãt: só tenho mêdo de que o mundo se transforme num gran-
de hospital, onde um sirva de enfermeiro a outro"-; e numa carta a Zelter
(27-VII-1807): "Escuto com muito interêsse, quando uma pessoa me comu-
nica o quanto perdeu, ou receia perder: não me custa consolá-lo. Mas, quando
os homens lamentam a perda de "um todo" (ein Ganzes), que ninguém jamais
viu e pelo qual ninguém jamais se preocupou, estou prestes a perder a paciência,
e custa-me muito não ficar descortês ou não passar por um egoísta". — Sôbre
Goethe e a história, cf. K. Lhwith, Von Hegel zu Nietzsche, Stuttgart, 1953,
págs. 239-251.
— Herdar, Idéias, etc., II 4.
— Ibidem, IX 5, e IV 6.
— Ibidem, V 7.
— 216 —

por se aproximar o mais perto possível do fim, que lhes foi propos-
to por Deus. Nenhuma dessas-tentativas tem êxito perfeito: cada
qual representa apenas um aspecto particular de uma realidade di-
vina e inesgotável. A morte de certas civilizações históricas é o
nascimento de outras culturas juvenis. Contudo, Herder julga pro-
vável um lento progresso no processo histórico, pelo menos, visto
na sua totalidade (91): a Humanitãt será, num futuro distante,,
mais duradoura e geral do que agora . A religião, pregada por Je-
sus, foi um passo muito importante rumo ao ideal da Humanitãtp,
mas o Cristianismo histórico, principalmente o Catolicismo, detur-
pou a mensagem sublime do Mestre (92).
III. Em outras obras de Herder, que não podemos analisar
aqui, encontramos umas idéias que tiveram grande repercussão na
historiografia e na filosofia da história.

Um povo é um organismo, e todos os seus produtos devem
ser entendidos à luz dessa unidade orgânica. Também a poesia é
produto nacional, impossível de importar ou de exportar. Dante
não seria Dante, se tivesse vivido na Inglaterra da rainha Elisabeth, ,

ou na Rússia dos Czares. Shakespeare teve de compor dramas di-


ferentes de Sófocles. E' um absurdo os alemães do ano 1800 ten-
tarem imitar os autores clássicos. Sem dúvida, Homero e Vergílio.
podem ajudar-nos a fazer outras obras de arte, apropriadas à nos-
sa mentalidade, mas nada de imitatio (o princípio do classicismo
italiano e francês): devemos penetrar no fundo espiritual dos au-
tores clássicos a fim de tirar dêles uma lição perene (o princípio
do Neo-Humanismo alemão). "Não devemos construir uma nova
Esparta ou Atenas: nossa tarefa é a construção da Europa, não em,
vista do ideal antigo de kalokagathía (93), professado por um fi-
lósofo ou artista grego, mas em vista da Humanitãt e da Razão, as
quais, com o tempo, abrangerão o globo inteiro" (94).
Para os alemães, e os povos germânicos em geral, é indis-
pensável procurar as fontes de urna inspiração genuína no seu pró-
prio passado: os artistas e os literatos da Idade Média ser-lhes-ão
guias seguros, visto que neles se manifesta o mesmo gênio nacional.

. Ibidem, XV 4.
. — Ibidem, XVII '1.
. — Cf. § 73 I e. — Kalokagathía (kalós = "belo", e, agatliós — "bom" era o ,
ideal do Neo-Humanismo alemão, que visava ao antigo ideal— helênco de um
"bom espírito" num "belo corpo", ou de maneira mais geral: uma combinação
harmônica de "interioridade" (Innerlichkeit) com a "exterioridade" (Formvollen--
dung): — W. Von Humboldt (1767-1835), irmão do descobridor Alexandre
Von Humboldt (1769-1859), era um dos principais representantes dessa cor-
rente. O mesmo escreveu (1821) über cl2e ~gabe des Geschichtschreibers
"Sôbre a Tarefa do Historiador"), em que defende uma idéia dinâmica,.
da historiografia.
(95). — Herder, Idéias, etc. XX 4.
— 217 —

(o princípio do Romantismo alemão) . Assim a Alemanha, racio--


nalizada por teorias importadas, conseguiria reconquistar a sua ver- -
dadeira originalidade. Herder reabilitou a Idade Média, sem dúvi-
da, uma Idade Média idealizada e côr-de-rosa, inexistente na rea-
lidade: mas graças à sua influência, a Alemanha foi redescobrindo
a beleza das catedrais góticas, da poesia dos trovadores, das sagas
das instituições sociais, etc. E a mesma predileção por "culturas pri-
mitivas" fazia com que se redescobrisse também a beleza da Bí- -
blia . Tudo isso contribuiu para uma nova apreciação do Cristianis- -
mo histórico, e até originou um certo "Cristianismo estético", não
só na Alemanha, mas também no estrangeiro, onde as idéias de.
Herder se casavam com as de Rousseau. Exemplos bem conheci-
dos dessa correnteza romântica são Novalis (95) e Chateaubriand _
(96) .
A poesia é a linguagem primitiva dos povos; a prosa é uma
linguagem cristalizada, petrificada, gasta pelo uso. A poesia não é
produto da razão, mas filha da imaginação livre e espontânea. To- -
dos os homens primitivos são poetas, variando só gradualmente a
sua faculdade poética. Em tempos remotos foram as coletividades,..
que compuseram os mais belõs poemas (Homero, os cantos da Bí-
blia, as sagas germânicas); nos Tempos Modernos, um processo
contínuo de racionalização e de individualização secou essas fon-
tes maravilhosas de poesia encantadora; hoje em dia, o poeta, —.
como, aliás, também o filósofo, — é um especialista que exerce
uma profissão. Esta teoria romântica de um povo-poeta repercutiu
muitíssimo na questão homérica e na análise da Bíblia; atualmente
está abandonada, sendo que investigações posteriores vieram a de-
monstrar a inexistência de tal povo-poeta.
Herder frisa a importância da alma coletiva de um povo
(alemão: Volksgeist), causa imanente do processo histórico, a qual, •
por sua vez, é condicionada, — ou determinada? — por fatôres bio-
lógicos, climáticos e "temporais". Visto que os povos constituem
"organismos" (influência das mônadas leibnizianas?), possuem seu
próprio caráter específico, o qual se esquiva a uma análise mera-
mente racional (aí se diferencia de autores como Bodin e Montes-
quieu). Herder realça o valor dos fatôres irracionais na formação
dos povos: não é um contrato social ou uma delegação popular

(95). — P. L. Voa Hardenberg Novalis (1772-1801), autor exaltado, escreveu um


artigo: "A Cristandade ou a Europa" (Die Christenheit oder Europa), em
que pleiteava um retômo à Idade Média, baseando-se quase exclusivamente
em argumentos sentimentais e estéticos, e secularizando a própria idéia do
Cristianismo.
(96) . — François-René Vicomte de Chateaubriand (1768-1848), autor de Génie du
Christianisme, uma reabilitação romântica do Cristianismo, o qual ôle apre-
, cia principalmente por seus aspectos estéticos.
— 218 --

(Hobbes, Locke e Rousseau) que cimente uma nação, mas um con-


junto de vários fatôres que só, até certo ponto, são racionais e ape-
lam para o homem inteiro: descendência e tradição comuns, a lín-
gua, os bens culturais, os costumes, a religião, etc. Assim o naciona-
lismo ficou com novas bases. Foi criada também uma oposição ir-
redutível entre os latinos (principalmente os detestados franceses),
os germanos e os eslavos: e não tardou que se proclamasse, na li-
teratura e na filosofia da Alemanha, — a superiodidade incontestá-
vel da raça germânica (97) .
IV. A base filosófica não é o ponto mais apreciável da obra
herderiana: o autor era pouco sistemático e suas idéias evolviam
incessantemente de modo que é dificílimo fixá-las. E pior ainda:
encontramos em seus escritos numerosas contradições e inconsistên-
cias, difíceis de harmonizar:„ o fim imanente e o fim transcendente
da história; a liberdade humana e as leis necessárias; os organis-
mos com as suas leis imanentes e as causas mecânicas, etc. Quase
nunca dá uma definição nem sequer uma formulação exata: é vago
nebuloso. Quanto à sua atitude religiosa, é panteísta (Spinoza!):
fala sempre com muito respeito de Cristo, a quem considera como
um gênio religioso. Não dá um sistema acabado, mas é rico em
sugestões valiosas, como também em soluções precipitadas. Seria
errôneo pensar-se que tôdas as suas idéias tenham sido originais.
Mas nenhum autor alemão sabia formular com tanta eloqüência
erudição os princípios do Romantismo como ele; nenhum falava
uma linguagem tão acomodada ao gôsto da época, que estava farta
das idéias esclarecidas (também por motivos nacionalistas!). As
idéias de Herder influenciaram profundamente o pensamento rus-
so, — o próprio autor era natural da Prússia oriental e conhecia
pessoalmente os eslavos, — e, indiretamente, repercutiram também
no mundo latino.

C. A REAÇÃO CATÓLICA.
§ 93. Joseph de Maistre.
A palavra "reação" não soa bem aos ouvidos dos homens mo-
dernos: são qualificados de "reacionários" os inimigos da liberda-
de, do progresso social, da tolerância, da democracia. E já que todo
mundo se arroga o direito de interpretar à sua livre vontade êsses
conceitos, carregados de potências mágicas, tende a tachar de rea-
cionário qualquer um que tenha a triste coragem de interpretá-los
em sentido diferente. Com muita razão escreve N. Berdiaïev: Ce
(97) . — Madame de Staêl (1766-1817) = Germaine Necker, filho do ministro Necker
(cf. nota S1), publicou, em 1813, De l'Allemagrze, em que formulava uma
oposição romântica entre o "espírito religioso" dos nórdicos, capazes de en-
tusiasmo, e o "espírito pagão" dos meridionais, racionarstas e egoístas.
— 219 —

qu'on peut definir cornme proprement réactionnaire, c'est Ia volon-


té de revenir à un passé tout proche, à I'état d'esprit et aux manières.
de vivre qui régnaient jusqu'à l'heure d'un tout récent bouleverse-
ment. Ainsi, après Ia Révolution française, il était extrêmement-
réactionnaire de vouloir revenir à l'organisation matérielle et spi-
rituelle du XVIII-ème siècle, organisatian qui, précisément, avait
engendre la Revolution, — et il n'était pas réactionnaire du tout de
vouloir revenir aux principes médiévaux, à ce qu'ils ont d'éternel,,
enfim à ce que le passé comporte d'éternel (98). Os reacionários,
dos quais pretendemos falar aqui, não combateram as novas dou-
trinas por verem ameçada sua posição privilegiada ou por procura-
rem recuperá-la, mas em virtude de alguns princípios, que conside-
ravam eternos e importantes para o bem-estar da humanidade. O'
fato de êles procurarem o modêlo histórico na Cristandade medie-
val não os torna "passadistas": as abstrações do racionalismo, irre-
verente para com a tradição e a realidade concreta, deviam pro--
vocar protestos, e as construções anti-cristãs da época deviam sus-
citar defensores do papel civilizador do Cristianismo. Suas teorias.
são geralmente mais difamadas do que estudadas com serenidade .
Sem dúvida, os "reacionários" tendiam a exagerar os aspectos ne-
gros do mundo moderno, em que viam só desordem e caos; tinham.
um conceito por demais estático da "Ordem"; igualmente estavam
inclinados a idealizar a Idade Média, em que julgavam encontrar
uma sociedade modelar para todos os séculos, esquecendo-se de que
também êste período histórico não passa de uma das "encarnações"'
temporárias do Cristianismo. Contudo, devemos reconhecer que
nas suas obras encontramos muitas idéias sadias e certos princípios
sólidos que não perderam sua importância para os nossos tempos.
I. Entre êles o mais talentoso foi Joseph de Maistre (1754--
1821), autor brilhante e sentencioso, pensador independente e um
tanto autodidata, denunciador intrépido, — não sem exageros, --
dos absurdos da época. Contemporâneo da Revolução francesa,.
que abominava como a obra do próprio Satanás (99), via na prá-
tica as conseqüências nefastas das belas palavras de fraternité, li-
berte et égalité: assim assumiu corajosamente a defesa da ordem,
da autoridade e da tradição (100). Suas obras principais são:-
Considérations sur l'Histoire de France (1797), Du Pape (1819),
— N. Berdidiev, Un Nouveau Moyen Âge, Paris, Plon, 1933, págs. 101-102.
— J. de Maistre, Du Pape (Discours Préliminaire, II): La révolution française
ne ressemble à rien de ce qu'on a vu dans les temps passés. Elie est satanique
dans son essence, — Cf. Considérations, X 3.
— Outro adversário irredutível da Revolução francesa era o inglês E. Burke-
(1729-1797), cujas idéias apresentam certas semelhanças com as de de
Maistre: 1 can never think or speak (da Revolução) without a mixed sensation
of disgust, of horror, and of detestation, not easy to be expressed. The ne-
larious monsters destroyed their country of what was good in it (apud Alexandre
Correia, A Concepção Histórica do Direito, São Paulo, 1934, pág. 10).
— 220 —

e Soirées de Saint-Pétersbourg (obra póstuma e inacabada, 1821).


O livro sôbre o Papa foi julgado digno por Comte de figurar entre
as obras da sua Bibliothèque Positive, e ainda hoje em dia, a obra
de Maistre é pedra de escândalo para uns, e para outros suma ex-
pressão do pensamento ortodoxo (100a).
Aos apriorismos das doutrinas esclarecidas do século
XVIII opunha de Maistre a tese de ser a política uma ciência emi-
nentemente experimental. A Revolução francesa, desde a sua ori-
gem viciada pelas teorias abstratas de um Rousseau, Voltaire e
Condorcet, julgava-se capaz de elaborar a Constituição "do homem",
que existe apenas nos espaços imaginários. Or, il n'y a point d'hom-
me dans le monde. J'ai vu, dans ma vie, des Français, des Italiens,
des Russes, etc.; je sais même, grâces à Montesquieu, qu'on peut
être Persan: mais quant à Phomme, je déclare ne I'avoir encon-
tre de ma vie; s'il existe, c'est bien à mon insu (101). Eis o absur-
do de fabricar constituições sem levar em consideração a mentali-
dade, a tradição e o crescimento orgânico de um povo. Com assen-
timento cita as palavras de Horácio: Crescit occulto velut arbor
sevo (102), dizendo que tôdas as grandes coisas, nem sequer ex-
ceto a Igreja, estão sujeitas à lei universal de desenvolvimento or-
gânico e discreto. Qual será a melhor Constituição? Étànt données
la population, les moeurs, la religion, la situation géographique, les
relations politiques, les richesses, les bonnes et les mauvaises qua-
lités d'une certaine nation, trouver les lois qui lui conviennent (103).
De Maistre tem horror à mania de querer fixar tudo por escrito.
Os direitos dos povos jamais foram escritos, ou, pelo menos, os atos
constitutivos ou as leis fundamentais escritas não passam de títulos
declaratórios de direitos anteriores, dos quais só se pode dizer que
existem porque existem (104). A história é, portanto, a melhor
escola de política, e os anais de Roma e da Inglaterra nos mos-
tram a eficácia de uma política empírica. O filosofismo, desarrai-
gando o pensamento de suas bases históricas e tradicionais, é inca-
paz de organizar a vida social: la raison humaine, réduite à ses
torces individuellement, n'est qu'une brute dont la seule puissance
se réduit à détruire (105) .
Rousseau criara o mito do homem selvagem, livre e bom,
um ser fantástico e completamente individualista, que se teria asso-
(100a). — Cf. Ch. Baussan, Joseph de Maistre et PIdée de POrdre, Paris, Beauchesne,
1921; Cf. Goyau, La Pensée Religieuse de Joseph de Maistre, Paris, Perrin, 1921.
— Considérations, etc., VI .
— Principe Générateur, XXIII. — Cf. Horatius, Carmina, I 12, 45.
0103). — Considérations, etc., VI.
(104). — Cf. A. Correia (nota 100), pág. 35. — De Maistre, Principe Générateur,
XVII: Jamais n'a cherché à écrire ses clogtnes: tou;ours on l'y a
forcée. .. Les véritables auteurs du concile de Trente furent les deux grands
novateurs du XVIe siècie.
(105) — Étude sur la Souveraineté, I 8.
— 221 —

dado a seus semelhantes em virtude de um contrato social, revo-


gável a todo e qualquer momento. De Maistre demonstra que o
homem é essencialmente um ser sociável, o que é provado pelo fato
inegável de se encontrar, até nas civilizações mais primitivas, a
linguagem (106). Nulle langue n'a pu être inventée, ni par un hom-
me qui n'aurait pu se faire obéir, ni par plusieurs qui n'auraient pu
s'entendre... Toute langue particulière nait comme l'animal, par
voie d'explosion et de développement, sana que rhomme ait jamais
passé de l'état d'aphonie à l'usage de la parole. Toujours il a par-
M, et c'est avec une sublime raison que les Hébreux l'ont appelé
"âme parlante" (107). Aliás, a história não conhece tal selvagem
individualista, invenção de uma época sofista, mas sempre nos fa-
la de homens em estado social. O homem, ser perfectível, busca
na sociedade e no seu ambiente material os meios de se aperfeiçoar.
IV. Contudo, não crê na perfectibilidade indefinida e neces-
sária do gênero humano. O homem é um ser decaído, em conse-
qüência do pecado original. L'homme entier n'est qu'une maladie
(108) .0 pecado original explica tudo, sem êle não se explica na-
da. Sem dúvida, é um mistério insondável, mas assim mesmo tem
os seus lados plausíveis, também à luz da inteligência natural. Pa-
ra de Maistre não há dogmas religiosos nem costumes disciplina-
res na vida da Igreja que não tenham as suas afinidades misterio-
sas com a natureza humana. Acredita em certa analogia entre o
dogma cristão, e as opiniões e as crenças que se encontram no seio
de povos muito diferentes através de tôdas as épocas e que, por
assim dizer, são prefigurações naturais de uma verdade sobrenatu-
ral. Tout être qui a la faculté de se propager ne saurait produire
qu'un être semblable à lui. . Mais il faut bien observer qu'il y a
entre rhomme infirme et rhomme malade la même différence qui
a lieu entre I'homme vicieux et l'homme coupable. La maladie
aiguê n'est pas transmissible; mais celle qui vicie les humeurs de-
vient maladie originelle, et peut gâter toute une race. II en est de
même des maladies morales (109) . O primeiro homem, depois da
sua queda, tinha de gerar homens degenerados. De Maistre não
partilha as crenças otimistas de Rousseau: Je ne sais ce qu'est la

. — Desde os tempos pré-filosóficos, o homem era "onomaturgo", isto é, "dava


nomes" às coisas, e nessa nomenclatura mostrava profundos conhecimentos es-
pirituais, às vêzes muito mais profundos do que os ineptos vocábulos, inven-
tados pelos filósofos. — Entre os chamados "tradicionalistas", a filosofia
d'a linguagem foi desenvolvida principalmente por Louis de Bonald (1754-
1840), amigo de de Maistre: a linguagem não é instituição humana, nem
convenção social, mas fruto de uma direta revelação divina; conseguintemente,
a comunicação da linguagem traz em si a comunicação das verdades.
. — Les Soirées, II.
(108). — II. — A palavra é de Hipócrates (carta a Damageta, in Eptsto-
lographi Graeci, ed. R. Hercher, Paris, Didot, 1871, pág. 304) .
1(109) . — Les Soirées, II.
— 222

vie d'un coquin: je ne l'ai jamais été; mais celle d'un honnête hom-
me est abominable (110) .
Ao dogma da liberdade ilimitada, contrapõe os princí-
pios da autoridade e da ordem, chegando a dizer: S'il était permis
d'établir des degrés .d'importance parmis choses d'institution di-
vine, je placerais la hiérarchie avant le dogme, tant elle est indis-
pensable au maintíen de la foi (111) . A autoridade, expressão da
'ordem e da unidade, é uma instituição divina, que foi sendo der-
rubada sucessivamente pela Reforma, pelo galicanismo, e afinal pe-
ia Revolução, — três movimentos históricos em que o autor vê
apenas fôrças destrutivas. Por tôda a parte podemos verificar na
natureza inanimada a ordem, a apontar para uma Inteligência cria-
dora e governadora. Encontrâmo-la também na marcha da história
humana: é a Providência. A ordem deve ser estabelecida livre-
mente pelo homem no govêrno das nações e na organização da vida
social: ora, ela é inconcebível sem a autoridade. Tôda e qualquer
tentativa humana de indagar independentemente a verdade ou de
estabelecer autônomamente uma organização social e política re-
sultou num malôgro deplorável. A autoridade civil em questões hu-
manas é supostamente infalível: a infalibilidade de ordens militares,
sentenças judiciárias, disposições legais, etc. é uma exigência im-
prescindível para o bom funcionamento da vida social, e prática-
mente aceita por tôdas as sociedades que não queiram perecer. A
autoridade papal em assuntos religiosos é infalível em virtude de
uma promessa divina. Assim de Maistre opõe três espécies de au-
toridade às teses niilistas da Revolução: a autoridade divina, a atuar
misteriosamente no govêrno universal do mundo: a Providência; a
.autoridade de origem divina, mas exercida por um homem de modo
infalível: a do papa; e a autoridade, igualmente de origem divina,
exercida também por um homem, de modo supostamente infalível:
-.a do rei.

Deus governa o homem, embora de maneira incompre-


ensível, movendo tôdas as coisas de acôrdo com a natureza que ca-
da uma delas possui: o homem, criatura livre, é movido livremente.
O govêrno divino é justo, apesar dos inúmeros males existentes nes-
te mundo. Deus governa o mundo por leis gerais: une loi générale,
'si elle n'est injuste pour tous, ne saurait l'être pour I'individu (112).
(110). — Cf. Chanoine Lecigne, Joseph de Maistre, Paris, Lethielleux, 1914, pág. 231.
,(M). — Lettre à une Dame russe (do ano 1810); cf. Les Soirées, Mais avant tout
je voudrais vous proposer le motif de décision qui doit précéder tous les
autres: c'est celui de l'autorité, etc., e o autor apela para Santo Agostinho,
De Mor:bus Ecclesiae, II 3. — A reação de de Maistre é compreensível nu-
ma época racionalista e anarquista; por isso não é acertada sua tese. O
argumentum es auctoritate, embora tenha anterioridade cronológica, é, na
sua natureza, o mais fraco de todos os argumentos.
;(112). -- Les Soirées, I.
— 223 —

Os bons e os maus estão, na sua vida terrestre, sujeitos às mesmas


leis gerais: Deus poderia poupar as catástrofes aos inocentes, inter-
vindo constantemente por meio de milagres, mas tal intervenção vi-
ria destruir a ordem universal, tornando regra a exceção. A mesma
lei geral é também a base da ordem moral: Supposez que chague
action vertueuse soit payée, pour ainsi dire, par qualquer avantage
temporel, l'acte, n'ayant plus rien de surnaturel, ne pourrait plus mé-
riter une récompense de ce gene (113). Há mais: o mal moral é
fruto de nossa vontade depravada pelo pecado original: desde Adão,
o pecado é onipresente, a trazer consigo uma multidão de outros ma-
les. O fiel, reconhecendo sua miséria, reconhece também a justiça
do govêrno divino: todos nós somos pecadores. Os males dêste
mundo são provações e purificações para o "justo", mas castigos e
advertências para o pecador. A Providência é o grande princípio
de ordem na história, o que é abundantemente provado pela marcha
da Revolução: o homem crê conduzir os atos a um fim humano,
mas, na realidade, obedece a uma lei superior. E' significativo o
fato de devorar a Revolução seus próprios filhos. On ne aaurait
trop le répéter: ce ne sont point les hommes qui mènent la révo-
lution; c'est la révolution qui emploie les hommes. . . Si (la Divi-
nité) emploie les instruments les plus vils, c'est qu'elle punit ,pour
régénérer (114) . Eis uma tese que já encontramos na obra de Bos-
suet e de Vico, e que havemos de encontrar também em Hegel; de
Maistre acrescenta-lhe a lei da regeneração: as revoluções políticas
e sociais têm por fim preparar uma revolução moral e interna.
Oxalá compreenda a França a lição!
VII. Como já vimos, o autor não considera a monarquia co-
mo a única forma legítima de regime político: o valor de uma cons-
tituição depende da tradição e da mentalidade de um dado povo.
Ao invés do que se pensa muitas vêzes, é inimigo declarado do ab-
solutismo: ces monstres de faiblesse n'existent plus que par leur
aplomb, escreve a um amigo, falando das monarquias de Espanha
e de Portugal (115). Mas mostra uma predileção francamente con-
fessada pela monarquia hereditária do tipo medieval: uma monar-
quia patriarcal, enraizada numa aristocracia consciente das suas res-
ponsabilidades, temperada por uma sadia legislação, alicerçada na
tradição, e santificada pela religião. No seu pensamento, o Cristia-
nismo aliou-se à monarquia, sagrando-a, moderando-a e subtraindo-
lhe o domínio sôbre a consciência dos súditos. Por mais arbitrária

— Ibidem, I.
— Considérations, I.
— Lettre au Baron Vignet des Étoles (do ano 1794): Si la monarchie vJus pte
reit forte à mesure qu'elle est plus absolue, dans ce cas, Naples, Madrid,
Lisbonne, etc., doivent vous paraitre des gouvernements vigoureux.
— 224 —

e fortuita que possa parecer a instituição da monarquia hereditária,


medida pelas normas de um raciocínio abstrato, fornece, na reali-
dade, as melhores garantias para excluir a arbitradiedade e o despo-
tismo (116). Mas a moderação, a ser imposta aos soberanos pelo
Cristianismo, será eficaz apenas quando houver, acima de todos os
reis, um Supremo Árbitro: o Papa. De Maistre quer regressar à
supremacia papal tal como era concebida na Idade Média: não ne-
ga a autonomia do poder temporal, mas o considera sujeito ao po-
der espiritual ratione peccati, como dizem os teólogos, ou no dizer
do próprio autor: (Les Papes) ont le droit de juger les princes qui
leur (sont) soumis dans Pordre espirituel, lorsque ces princes (se
rendent) coupables de certains crimes (117) . Da restauração dês-
se princípio depende, no pensamento do autor, a possibilidade de
se restabelecer a Europa. Na Idade Média: toutes les souveraine-
tés chrétiennes (étaient) réunies par la fraternité religieuse en une
sorte de république universelle, sous la suprématie mesurée du pou-
voir spirituel suprême. . . Je ne vais pas que les temps modernes
aient imaginé rien de meilleur, ni même d'aussi bon (118).

§ 94. Dois pensadores espanhóis.

' Afinal, merecem nossa atenção dois autores espanhóis: o leigo


Juan Donoso Cortés e o padre Jayme Balmes. Ambos já perten-
cem ao século XIX, mas, como impugnadores das "idéias revolucio-
nárias", — no sentido mais amplo da palavra, — os dois podem
concluir convenientemente o resumo histórico do século das Luzes.
I. Juan Donoso Cortés (1809-1853) (118a) publicava em
1851 o Ensayo sobre el Catolicismo, el Liberalismo y el Socialismo.
A obra pretende refutar as idéias de alguns inovadores modernos,
sobretudo de Guizot e de Proudhon. Este último, ateu militante,
considerava todo o progresso humano como uma derrota da Divina
Providência, e escrevia: 11 est surprenant qu'au fond de notre po-
litigue nous trouvions toujours la théologie (119). Ao que responde

(116). — Principe Générateur, Préface: L'histoire cependant, qui est la politique ex-
périmentale, démontre que la monarchie hérédieire est le gouvemement le
plua stable, le pies heureux, le pies natural é Phornme; et la monarchie éieo.
tive, au contraire, la pire espèce des gouvernements connus.
,(117). — De Pape, II 8.
— Ibidem, II 10.
(118a). —Cf. Fr. Elias de Tejada, Donoso Cortés, in "Revista da Universidade Católica
de São Paulo", III 5 (1953), Págs. 73-86 .
— P. J. Proudhon (cf. § 97 II) escrevera (ia Systéme des Contradictiona Éce•-
nomiques, Prologue, III): Nous sommes pleins de la Divinité, "Joyis orneia
plena" (cf. § 83, nota 52): nos monumento, nos traditions, nos lois, nos idées,
nos langues et nos sciences, tout est infecté de cette indélible superstition
hors de laquelle il ne nous est pas donné de parler ai d'agir, et sano laquelle
nous ne pensons seulement pas.
--- 225 —

Cortés: Nada hay aqui que pueda causar sorpresa, sino la sorpresa
de Mr. Proudhon. La teologia, por lo mismo que es la ciencia de
Dios, es el Océano que contiene y abarca todas las ciencias, así co-
rno Dios es el Oceano que contiene y abarca todas las cosas (120).
A diminuição da fé traz forçosamente consigo a aberração da inte-
ligência humana: as coisas visíveis podem ser explicadas apenas por
coisas invisíveis, as coisas naturais apenas por coisas sobrenaturais.
Pois, no fundo, tôda e qualquer questão humana envolve uma ques-
tão divina. Deus criou a ordem, e o homem perturbou-a, pelo peca-
do de Adão e por seus pecados pessoais. Deus restabeleceu a ordem,
mandando seu Filho à terra, obra redentora que depois é continua-
da pela Igreja. El orden pasó del mundo religioso al mundo moral,
y del mundo moral al mundo político (121). O homem tornou a
perturbar a ordem, apostatando da Igreja de Deus. As soluções,
propostas pelo liberalismo (122) e pelo socialismo (123), são ine-
ficientes, porque provêm do orgulho e do pecado. Entre la verdad
y la razón humana, después de la prevaricación del hombre, ha pues-
to Dios una repugnancia imortal y una repulsión irrvencible. . En-
tre la razón humana y lo absurdo hay una afinidad secreta, un paren-
tesco estrechísimo; el pecado los ha unido con el vínculo de un
indisoluble matrimonio (124). A única solução dos problemas so-
ciais e políticos que atormentam a Europa agonizante, é o retôrno
aos princípios divinos do Catolicismo: el orden universal está en
que todo se ordena armoniosamente para aquel fin supremo que ima
puso Dios a la universalidad de las cosas . El supremo fin de las co-
sas consiste en la manifestación exterior de las divinas perfecciones
(125) . Ora, no mundo a Ordem Divina é representada pela Igre-
ja Católica, o Corpo Místico de Cristo, a única instituição a possuir
uma perfeita humanidade: separar-se dela é igual a afastar-se do
Deus-Homem, e por isso mesmo da verdadeira humanidade: a dig-
nidade humana reside exclusivamente na Encarnação: Yo de mí sé
decir que si mi Dios no hubiera tomado carne en las entravas de una
mujer, y si no hubiera muerto en una cruz por todo el linaje humano,

— Citamos esta e outras obras de Cortés segundo a edição do Dr. Don Juan
Juretschke (in BAC = Biblioteca de Autores Cristianos, I-II, Madrid, 1946).
— O texto a que se refere esta nota, encontra-se nas Obras, I pág. 347.
— Ibidem, II pág. 358.
— Ibidem, II pág. 446: De todas las escudas, ésta es la más estéril, porque
es la menos docta y Ia más egoísta. Como se ve, - nada sabe de la naturaleza
dei mal ni del bien; apenas rena noticia de Dios, y no tiene noticia ninguna
del hombre... Esta escuda no domina sino suando la sociedad desfallece; el
período de su dominación es aquel transitorio y fugitivo en que el mundo no
sabe si irse con Barrabás o con Jesus y está suspenso entre una afirmación
dogmática y una negación suprema.
( 123 ) . — Ibidem, II págs. 449-470 (principalmente contra Proudhon).
— Ibidem, II pág. 379; cf. 402 (onde prec'sa seu pensamento) e pág. 441
(onde resume desta maneira): La ciencia de los misterios, si bien se mira,
no viene a ser otra cosa sino la ciencia de todas las soluciones.
— Ibidem, II pág. 528.

Revista de História n.. 27


— 226 —

el reptil que piso con mis pies seria a mis ojos menos despreciable
que el hombre (126) .
Donoso Cortés tinha pouca confiança na conversão do mundo
aos princípios do Evangelho, os quais êle próprio confessava com
tanta convicção e propagava com tanto afinco: preocupava-o o fu-
turo sombrio da Europa, no qual previa "o grande dilúvio". Escre-
via a seu amigo, Gabino Tejado: Mi libro ha salido a la luz lucra
de tiempo: ha salido antes y debía salir después del diluvio. En
el diluvio se ahogarán todos, menos yo: es dicer, las doctrinas de
todos, menos las mias. Mi gran época no ha llegado aún, pero va
a llegar. Ya verá usted que naufragio y cómo todos los náufragos
buscan refugio en el puerto (127) . 0 livro, escrito em estilo es-
plêndido e paradoxal, é fraco quanto à base filosófica (o autor des-
preza completamente a razão humana não iluminada pela Reve-
lação!), provocava grande escândalo, também entre os católicos.
O abbé Gaduel, Vigário Geral da diocese de Orleans, combatia-o
numa série de artigos, publicados na revista: Ami de la Religion;
defendia-o vigorosamente, no jornal L'Univers, o militante jorna-
lista Louis Veuillot (1813-1883), que traduzia as obras do espa-
nhol para o francês. El Ensayo, submetido ao juízo da Santa Sé,
não foi condenado. Contudo, não se pode negar que o livro de Cor-
tés, apesar de conter páginas sublimes, era incapaz de enfrentar os
ataques do racionalismo pós-kantiano.
O autor, que era estadista e diplomata, não hesitava em prefe-
rir a ditadura do govêrno à ditadura da plebe (128), a. decisão mi-
litar dos exércitos às discussões estéreis dos parlamentos, pois el
mal está en los gobernados: el mal está en que los gobernados han
llegado a ser ingobernables (129) . Contudo, Cortés não era apenas
"profeta do passado" nem reacionário vulgar: via mais claramente
do que a maioria de seus contemporâneos, a urgência da solução do
problema social e econômico, da qual dependeria a sobrevivência
da Europa (130) . Além disso, revelava, na sua correspondência e
nos seus discursos, uma rara perspicácia na interpretação dos acon-
tecimentos políticos dos meados do século XIX, e possuía um dom ,

verdadeiramente profético quanto às calamidades que ameaçavam


a sociedade liberal. Previa o despotismo moderno, ajudado pelas
conquistas da técnica (131), numa época que sonhava apenas com
— Ibidem, II pág. 532.
— Ibidem, II pág. 578.
— Ibidem, II pág. 306.
— Ibidem, II pág. 204.
— Ibidem, II pág. 598: Esta, setiora (= Maria Cr'stina), es la única cuestión
que hoy se agita en el mundo. Si los gobemadores de las naciones no la
resuelven, el socialismo vendrá a resolver el problema, y le resolverá poniendo
a saco a las naciones.
— Ibidem, II pág. 201, e pág. 197: El mundo, seilores, camina con presos ra-
pidísimos a la constitución de un despotismo, el más gigantesco y asolador
de que hay memoria en los hombres; cf. pág. 228, e pág. 618.
— 227 —

os triunfos da ciência e a marcha irresistível do liberalismo; previa


a aliança dos eslavos com o socialismo, a realizar-se num porvir não
muito remoto (132) . E a geração atual está redescobrindo as obras
proféticas dêsse intrépido espanhol, — intransigente (132a), retó-
rico e nem sempre moderado, — chegando a considerá-lo como um
dos precursores de Spengler (133), título êsse que o próprio autor
— católico integral — decerto teria repudiado.
II. Menos divinatório, porém mais equilibrado era o padre
Jayme Balmes (1810-1848), que em 1842 publicou: El Protestan-
tismo comparado con el Catolicismo, obra originàriamente plane-
jada como uma resposta ao livro de Guizot (134): Histoire de la
Civilisation (1829-1835), e, em muitos pontos, parecida com uma
obra de Bossuet, de que já falamos (cf. § 82 II, nota 44). O autor
vê nas inúmeras seitas protestantes só uma concordância: protes-
tar contra la autoridad de la Iglesia (135). Pelo resto, sua histó-
ria representa apenas perpétuas alterações: El Protestantismo es
invulnerable, porque invulnerable es lo que carece de cuerpo. . .
Esta variedad. . . al paso que nos indica que él no está en posesión
de la verdad, nos revela también que el principio que le mueve y
le agite no es un principio de vida, sino un elemento disolvente
. A obra de Balmes é um dos livros clássicos da apologia ca-
tólica contra o Protestantismo, e a tendência apologética não lhe
prejudica a serenidade, nem exclui certa compreensão do ponto de
vista de heterodoxos. E' uma exposição magistral dos benefícios que
o Catolicismo trouxe ao mundo por ter orientado a organização so-
cial e política da Europa, e por ter inspirado e guiado as artes e as
ciências; o Protestantismo, porém, introduzindo o subjetivismo e o
individualismo, torceu lastimàvelmente o curso dessa grandiosa ci-
vilização. Os progressos nos últimos séculos, segundo Balmes, não
têm sido realizados graças ao Protestantismo, mas mau grado seu.
Eis um tema delicado, que seria discutido com muita paixão duran-
te o século XIX e ainda continua a atrair a atenção no século atual
. O autor espanhol desenvolve seus argumentos sem fanatis-

— Ibidem, II págs. 309-312.


(132a) . —Ibidem, II pág. 633: Todos los estados intermedios perecen con todas las
doctrinas transigidas y todos se disuelven unos en pos de otros... Leo en la
Sagrada Escritura que Dios hizo la noche y 64 dia, mas no leo en ella que
hiciera Dios e/ crepúsculo.
— Cf. H. J. Schoeps, Vorliiuter Spenglers, Leiden-K61n, 1953, págs. 82-88.
. — F. Guizot (1787-1874), historiador francês e político (líder dos chamados
"doctrinaires")
. — El Protestantismo, etc., I.
. — Ibidem, I.
. — E. de Lavaleye (1822-1892), econom'sta belga, publicava, em 1875, na
Revoe de Belgique um artigo: De l'Avenir des Peuples Catluiliques O autor
impressionado pela vitória da Prússia protestante sôbre a França católica, pre-
dizia a decadência progressiva dos povos católicos em proveito das nações
protestantes. A resposta católica veio do Barão de Hauleville (1876) . —
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (VI)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 27, pp 183-228 jul./set. 1956. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/027/A009N027.pdf

— 228 —

submete sua obra sem reserva ao juízo das competentes autoridades


eclesiásticas, dizendo no capítulo final: Haciendo la debida justicia
a las hombres, atribuí gran parte del dalio a la mísera condición
de la humanidad, a la flaqueza de nuestro espíritu, a ese legado
de maldad y de tinieblas que nos transmitió la caída del primer pa-
dre (138) .

(Continua no próximo número)

JOSE' VAN DEN BESSELAAR


da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Cf. a polêmica, no Brasil, entre E. C. Pereira (O Problema Religioso da


América Latina, 1920), e o Pe. Leonel Franca (A Igreja, a Reforma e a
Civilização, 1922).
(138). — El Protestantismo, etc., LXXIII.
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (VII)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 28, pp 413-509, out./dez. 1956. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/028/A006N028.pdf

QUESTÕES PEDAGÓGICAS

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS


HISTÓRICOS (VII).

QUARTA PARTE

As Interpretações da História através dos Séculos .


(Continuação)

CAPITULO QUINTO

OS GRANDES SISTEMAS PROGRESSISTAS

§ 95. O século dezenove.

E' bastante difícil, ou até impossível, definir as "tipologias"


históricas: já o vimos repetidas vêzes. Ao tentar uma caracterís-
tica geral do século XIX (1), o historiador sente, porém, um emba-
raço muito especial. Para falarmos com Lytton Strachey: we know
too much of it. For ignorance is the first requisite of the hist°.
rian. . (2). Digamos de maneira menos paradoxal: oprime-nos
uma superabundância de fatos e de ideologias, difíceis de selecionar
e de ordenar, e impossíveis de dominar. Justamente por nos achar-
mos a uma distância relativamente pequena dessa época, nossa po-
sição é pouco favorável a adquirirmos uma visão do conjunto: as
numerosas árvores que nos reclamam a atenção, impedem-nos a
vista da floresta.

I. A Antinomia entre dois Séculos.

O século atual é, em muitos pontos, comparável a um' filho


que perdeu a confiança nos ensinamentos e nos ideais de seus pais.
Com efeito, filhos desiludidos que somos de uma geração esperan-
çosa e otimista, estamos muito naturalmente inclinados a queixar-
nos de uma educação falha, e sentimos certa satisfação em poder
desmascarar a superficialidade, a retórica e a covardia dos que nos
. — Sob o ponto de vista da história da civil zação ocidental, o século XIX vai
de 1815 (batalha de Waterloo) até 1914 (Primeira Guerra Mundial) .
. — Lytton Strachey, Eminent Victorians (do ano 1918) no Preface.
— 414 —

- legaram êste mundo desacertado. Ce stupide dix-neuviène siècle, di-


-zem muitos com Léon Daudet (3), investindo contra o racionalis-
-rno, o individualismo, a mediocridade e a ingenuidade do século
passado, como se todos nós não devêssemos muitíssimo à "estupidez"
de nossos antepassados. Afinal de contas, também nessas declama-
ções há muita retórica, muito exagêro, e muita injustiça. Sem dú-
vida, a gratidão filial pelo legado de nossos pais não nos obriga a
aceitar dêles servilmente tôdas as suas doutrinas, e muito menos
ainda, todos os seus ideais. As conquistas do século XIX, prin- —

cipalmente no campo das ciências e da técnica, — não foram sem


perdas lastimáveis: a proletarização das massas, a descristianização
-de diversas camadas da sociedade, e a secularização da cultura
ocidental. Até podemos dizer que o século passado, tão fecundo em
invenções científicas e técnicas, acabou por esquecer-se dos verda-
deiros fins humanos, sem os quais tôdas as realizações históricas
-se transformam em ídolos e em monstros. The time is out of joint
(4), mas êsse desarranjo não é apenas a culpa de nossos pais: não
deixamos de acrescentar as nossas tolices às imprudências do pas-
sado. Opondo um desespêro orgulhoso às esperanças otimistas, um
falso misticismo ao culto da razão, um coletivismo desumano aos
desvios do liberalismo, caímos muitas vêzes de Cila em Caribdes.
_Nenhuma época pode viver de reações, de simples antíteses, de ne-
gações. A síntese poderá ser efetuada pelo restabelecimento do es-
pírito, o único capaz de reconciliar as antinomias existentes e de
-ordenar todos os valores humanos segundo uma ordem hierárqui-
-ca. E para o cristão, é claro, essa hierarquização deverá resultar e
culminar no Valor Absoluto que é Deus: não um Deus-Abstração,
:unas o vivo Deus "de nossos pais que glorificou o seu filho Jesus"
(Atos, III 13) .

II. O Século das Contradições.


Para nós, os filhos revoltados de gerações racionalistas, afi-
-gura-se enigmática a face autêntica do século XIX, no qual vamos
.descobrindo cada vez mais contradições internas. Apostatando de
Deus, chegava a endeusar o homem; repudiando a Revelação e a
Graça, acreditava firmemente numa moral laica, na prática amiúde
-não menos hipócrita do que o farisaísmo imputado aos cristãos
(5); negando o destino transcendente da humanidade, afirmava
(3) . — Léon Daudet, filho do romancista Alphonse Daudet, era com Ch. Maurras
e Jacques Bainville um dos líderes mais prestigiosos da Action Française.
Em 1921 publicou o livro: Le Stupide XIXe S;ècle. Exposé des Insanités
Meurtrières qui se sont abattues sur la Franoe depuis 130 ans (1789-1919).
— :0 subtítulo já indica o caráter panfletário dêste livro retórico e exal-
tado.
(4). — William Shakespeare, Hamlet, Act I, Scene V (no fim) .
t(5) — Cf. o ',Mo hig.,: The ninereenth century was ruled, not by Kant, buí
by "cant"•
--- 415 --

com paixão o fim imanente da história; cheio de esperanças futu-


ristas, adorava o passado, revivendo-o românticamente em estilos
históricos; orgulhoso das suas realizações, mostrava-se pouco segu-
ro de si, sendo a época de -ismos efêmeros; idolatrando a razão, pro-
curava refúgio num romantismo sentimental e subjetivo. Talvez
estejam gerações posteriores mais capacitadas do que a atual para
descobrir a homogeneidade latente dêsse século contraditório. Nes-
tas páginas queremos prestar atenção só a alguns aspectos impor-
tantes para o nosso assunto.
III. A Hegemonia da Europa .
O século XIX foi o período da hegemonia indisputada da Eu-
ropa capitalista e tecnocrata sôbre o mundo inteiro: a Inglaterra
imperialista e industrializada dominava os mares de todos os con-
tinentes; a França ditava a moda na literatura, nas artes e nas revo-
luções; a Alemanha, que ia sendo "prussificada", fornecia ao mundo
as idéias avançadas e o alto saber (6) . Esta última potência che-
gou à sua unidade política, — embora parcial, — só em 1870, como
também a Itália, — formações que vieram atrasadas, se levamos
em consideração que a evolução técnica e econômica caminhava, a
passos firmes, para a unificação do mundo. Mas, — outro fenô-
meno paradoxal! — o nacionalismo exaltado tinha exatamente seu
apogeu naquela época que queria substituir a fé num Deus-Pessoa pe-
lo culto racionalista à Humanidade abstrata. Entre os grandes Estados
europeus existia certo sistema de "equilíbrio" (7), princípio material
e reminiscência pálida do que fôra, em tempos mais cristãos, uma
unidade espiritual. A cultura européia parecia predestinada a lide-
rar para sempre todos os povos do globo: e quis o destino que a
Europa civilizada fizesse mais questão de exportar os produtos das
suas fábricas e suas idéias revolucionárias do que os fundamentos
espirituais da sua cultura (8): o Cristianismo e sua grandiosa tra-
dição humanista.
. — Cf. H. Ibsen, Peer Gynt, Act IV, Scene 1: By birth, yes, Pm a Norivegicn;
but by disposition 1 am a citizen of the world. For the good fortuna
Pve enjoyed, 1 have to thank America; my well-stocked library 1 ~e to
Germany's advanced young thinkers; from France I get my taste in dress,
my manners, and whatever turra 1 have for subtleness of mind; England
has taught me industry and core for my own interests. O drama data
de 1867, e o trecho transcrito revela a concepção utilitarista do cosmopoli-
tismo burguês do século XIX; Peer Gynt superou o "nacionalismo" estreito
do seu tempo, mas só para fins egoístas. O compositor norueguês E.
Grieg (1843-1907) compôs duas Suestes musicais para o drama de Ibsen.
. — A expressão "equilíbrio dos poderes" foi usada primeiramente pelo renas-
centista Lourenço de' Mediei (cf. § 81 II, nota 25); desde o fim da século
XVII, tornava-se uma divisa da política européia (ingjlês: Balance of
Powers) princípio adotado oficialmente em 1713 (Tratado de Utrecht).
Cf. a sátira de B. Shaw in The Man of Destiny (1895): Every Englishman
is bom wilh a miraculous power that maltes Fim :mister of the world. • •
When he wants a new market for his adulterated Manchester goods, he sends
a rnissionary to teach the nativas the Gospel of Peace. The nativas kll the
missionary; he Ines to arras in defence of Christianity; lights for it; conquers
it; and takes the market as a reward from heaven•
416 —

Ao lado das potências européias, iam-se desenvolvendo, fora


-da Europa, dois Estados pujantes: os Estados Unidos da América
do Norte e a Rússia, que seriam the big two dos meados do século
.XX. Por volta de 1850, eram relativamente poucos os que viam
as enormes possibilidades dos novos continentes (9) . Só uns trinta
anos depois, quando a América acabava de superar as crises inter-
_nas, Uncle Sam, hábil e prático, mas barulhento e vulgar, começa-
va a ser considerado como parceiro das grandes potências européias,
embora sempre de segunda categoria. E a Rússia, colosso sonha-
dor e atrasado, atraía principalmente a curiosidade das classes
cultas devido à sua esplêndida literatura, antídoto místico, sofrega-
mente tragado pela burguesia racionalizada do mundo ocidental.
Contudo, os horizontes culturais e econômicos do século XIX limi-
tavam-se principalmente à Europa, ao Velho MundO, ainda não
qualificado de moribundo (10) .

IV. Liberalismo, Socialismo e Democracia.

Três soberanos (11) contraíram, em 1815, a "Santa Aliança",


com o fito de "governar seus povos conforme as leis da justiça, ca-
ridade e paz", baseando-se nas "verdades sublimes da santa religião
cristã" e prometendo-se mútuo auxílio contra "a ímpia revolução".
Suas tentativas de restabelecer o Ancien Régime, originàriamente
talvez bem intencionadas, mas, desde o comêço anacrônicas e logo
deturpadas por uma política dràsticamente reacionária e grossei-
ramente egoísta, ficaram frustradas pelo espectro da Revolução
(12) . Em quase todos os países europeus, o absolutismo teve de
ceder ao liberalismo, cuja vitória um tanto precária era logo dispu-
tada pelo socialismo (cf. § 97 III) . Não podemos acompanhar
aqui as lutas incessantes entre o absolutismo, o liberalismo e o
socialismo que são características da evolução política do século
XIX; basta assinalarmos os anos 1830, 1848 e 1870 na história
da França, — o país clássico das revoluções, — etapas importan-

. — Hav.a algumas exceções, por exemplo Marx e Engels, e o historiador francês


Alexis de Toqueville (1805-1859), autor do livro De la Démocrmie en
Amérique (1836-1839) .
. — A guerra entre a Rússia e o Japão (1904-1905) terminou na derrota de um
povo branco, e promoveu uma das "raças amarelas" à categoria de uma
grande potência.
. — Eram Alexandre I, o Czar da Rússia (ortodoxo), Frederico Guilherme III, o
rei da Prússia (protestante), e Francisco I, o Imperador da Áustria ( católi-
co) . A Santa Aliança devia sua existência a uma iniciativa do Czar, o qual
era influenciado pela exaltada baronesa Bárbara Juliana Von Krüdener (1764-
1824); quem lhe dava uma orientação prática e um caráter reacionário, •era
o ministro prepotente de Áustria, Clemente Von Metternich (1773-1859) .
vf 12) . — Cf. o exórdio do Manifesto Comunista de Marx-Engels: A spectre is haunting
Europe — the spectre of Communism. All the Powers of old Europe have
entered : Ilto a holy alliance to exorcise Chis spectre: Pope and Czar, Metternich
and Guizot, French Radicais and German police-spies.
— 417 —

tes na marcha triunfante das novas idéias. Contudo, a partir de


1880, iam perdendo em intensidade e violência as lutas sociais e
econômicas: por tôda a parte crescia a prosperidade material, da
qual podiam aproveitar tôdas as classes da sociedade (the gay
nineties!). No fim do século, muitos propendiam a adotar uma
fórmula conciliatória: não uma revolução violenta, mas uma lenta
e constante reforma legal havia de resolver a questão social. Em
quase todos os países europeus nasciam "Partidos Sociais Demo-
cratas", que com o tempo se iam aburguesando e nacionalizando.

V. A Técnica (13).

A técnica simboliza bem nossa condição de animal racional:


originada pelas necessidades práticas da vida e, conseguintemen-
te, procurada espontâneamente pelos instintos, é possibilitada ape-
nas por um raciocínio teórico e até desinteressado. Por outras
palavras: por mais interesseira que seja a técnica, é impossível
sem certo grau de abnegação: uma obediência incondicional aos
fatos objetivos da natureza. O domínio humano sôbre a natureza
mediante métodos racionais é eqüeva da humanidade: já é téc-
nico o homem primitivo que sabe produzir fogo por meio de uma
pederneira. Mas a técnica moderna, que se tem desenvolvido nos
dois últimos séculos, reveste-se de certas formas peculiares que
a distinguem da técnica anterior. O domínio humano sôbre a na-
tureza não é resultado de uma reflexão mais ou menos imediata,
a ser despertada pela convivência cotidiana do homem com as
fôrças físicas, mas é fruto de conhecimentos científicos e de ex-
perimentações metódicas. Já não são utilizadas pelo tecnólogo
moderno as qualidades diretamente perceptíveis, mas leis inter-
nas e escondidas, susceptíveis de uma utilização progressiva me-
diante pesquisas sistemáticas e pacientes. O técnico moderno sub-
mete a matéria a um interrogatório apertado e rigoroso, forçando-
a a der uma resposta determinada: não possuísse uma formação
adeqüada e especializada, não conseguiria proceder assim. Êsse
procedimento racional tem revolucionado o mundo contemporâ-
neo, dando origem ao homo faber, que ameaça obscurecer o homo

(13) . — Por que os gregos tão maravilhosamente prendados M .10 chegaram a uma
cultura técnica tal como a conceberam os tempos modernos? Ao que parece,
dois fatõres contribuiram para o fato de se desenvolver relativamente pouo
a técnica na Antigüidade: a superabundância de escravos (mão-de-obra ba-
rata), e um certo desprêzo concomitante por todo trabalho manual, desqua-
lificado de "servil". Para os gregos era mais elevada uma ciênc a na medida
de ela se manter mais "pura" e "especulativa" (cf. Plato, Philebus; Arisroteles,
Ethica Nicom., e Plutarchus, Vita Marcelli, XIV) . — Mas não nos parece
temerário afirmar que o Cristianismo, por naturalizar o natureza e por lhe
tirar o encanto de um ser d'vino (cf. § 73 II f), criou condições mais favo-
ráveis a pesquisas físicas do -que o antigo paganismo.

Revista de História n.o 28


--- 418 —

sapiens. Invenções espetaculares têm mudado a face da terra,


vindo a sobrepujar as expectativas mais atrevidas do século pas-
sado (por exemplo Jules Verne, 1828-1905) .
A vida e a cultura humanas são impossíveis sem certa técnica;
por outro lado, a técnica pode destruir a cultura. E a técnica mo-
derna, cujas conseqüências são tão radicais para a vida e a cultura,
põe o homem diante de numerosos problemas vitais, de cuja solu-
ção pode depender a sobrevivência do mundo ocidental (14) . Uns,
embriagados pelas maravilhas da técnica, já não se contentam de co-
operar com o ato criador de Deus, mas julgam o homem capaz de
criar soberanamente um novo mundo, cujo senhor absoluto será o
homem; eliminando a Deus como o grande obstáculo à realização
dêsse sonho prometeico, substituem a esperança na salvação eter-
na e espiritual pela salvação terrena do homem mediante matéria, e
o hino á Deus pelo hino à máquina: et eritis sicut dii (Gên., III 5) .
Essa atitude não encontra boa acolhida entre os pensadores 'ho-
diernos que vêem a ambivalência de todo o progresso técnico, mas
era bastante comum no século passado. Outros, revoltados contra
os excessos da tecnocracia atual, chegam a abominar • máquina,
tendendo a considerá-la como uma invenção diabólica para o mal
da humanidade: teria desumanizado o trabalho humano, mecani-
zado a sociedade, profanado a cultura, amontoado o dinheiro nas
mãos de uma oligarquia anônima sem responsabilidade, criando, ao
mesmo tempo, um proletariado miserável, e teria preparado o ca-
minho para as ditaduras totalitárias de nossos dias. Essa opinião
romântica que, levada ao seu extremo, pode fàcilmente degenerar
numa heresia gnóstica, não é menos absurda do que a primeira.
Tt seems that if a task requires no more intelligence than is em-
bodied in a machine, it is hardly a task suitable for human beings,
and is best left to the machine. The solution is not to eliminate the
machine and force mankind down to its levei, but to use it to free
mankind for more definitely human tasks. This is no doubt diffi-
cult, but not at ali impossible (15) .
Pois, em última análise, não foi a máquina que escravizou o
homem e mecanizou a sociedade: foi às tentações do espírito que
o espírito cedeu. A tecnocracia moderna é um pecado do espírito con-
tra o espírito, não uma conjuração das fôrças da matéria contra o
homem. A máquina em si é neutra, podendo ser usada mal ou
bem; até possui certo valor intrínseco, na medida em que traduz
o império do homem sôbre a natureza. Tudo depende do rectus
. — Literatura moderna sôbre o assunto: F. Dessauer, Philosophie der Technik,
1933.; F. Muckermann, S. J., Der Mensch im ZeitaIter der Technik, 1942;
Nic. Berdidiev, L'Homme et la Machine, Paris 1946; G. Corção, As Fron-
teiras da Técnica, Rio de Jane'ro, Agir, 1953.; Gabr. Marcel, Os Homens
contra o Homem (trad. port. pelo prof. Dr. Vieira de Almeida), Pôrto, s. .d.
. — W. R. Thompson, Science and Common Sense, London, Longmans, 1937,
pág. 2.
-- 419 —

usus da máquina, não da máquina em si. Escreve Gustavo Cor-


ção: "A bomba atômica ... obedece a três ou quatro palavras es-
critas numa fôlha de serviço. E' um leviatã dócil. Quem nem sem-
pre é dócil é o homem que assina a ordem de serviço. Certas pes-
soas têm mêdo da técnica e da bomba; eu tenho mêdo do memo-
randum" (16) .
E' verdade, o homem cede fàcilmente às tentações dos seus
próprios inventos (17), ora por puerilismo, ora por egoísmo, ora
por volúpia de poder, ora por comodismo, ora por orgulho e por
tantos outros vícios inerentes à sua natureza: já o sabia Homero
(18) . O homem moderno é semelhante ao aprendiz do feiticeiro,
de quem nos fala Goethe (19), podendo exclamar com êle: "Os
demônios que evoquei, não sei como me posso livrar dêles" (20) .
Assim como o aprendiz ativo mas pouco experimentado deseja com
ânsia a volta do mestre, do mesmo modo os tempos modernos ane-
lam pela restauração do espírito, o qual nos poderá livrar da tira-
nia que sôbre nós exercem os inventos do nosso próprio espírito.
Isso quer dizer: só a livre aceitação de normas espirituais conse-
guirá subordinar a técnica a um fim humano, integrando-a numa or-
dem hierárquica para o bem dos corpos e das almas.

VI. A Igreja.

As idéias revolucionárias afetaram profundamente a situação


histórica da Igreja. Desde os tempos de Constantino Magno e,
principalmente desde os de Carlos Magno, existira uma aliança
muito estreita, embora nunca sem fortes tensões internas, entre a
Igreja e o Estado. A concepção medieval era universalista, a abran-
ger o céu e a terra; era teocrática, a considerar a Cristandade como
a parte peregrinante da Cidade de Deus rumo ao Jerusalém celes-
te, dirigida pela Igreja. Essa concepção alquebrou-a a Reforma,

. — G. Corção, in opere citai(' (nota 14), pág. 12.


. — Cf. G. Marcel, Être e Avoir, Paris, Aubier, 1935, pág. 99: Pcsséder c'est
presque inévitablement être possédd. — Cf. o Pe. A. Thill, O Conceito da
Alienação e a Concepção Cristã do Homem, UI Rev. da Univ. Cat. de São
Paulo, III 5 (1953), págs. 67-72 .
. — Homerus, Odyssea, XIX 13 (cf. XVI 194): "O ferro atra' espontânearnente
o homem para si". Por isso, diz o poeta, é necessário que as armas sejam
postas de lado.
. — Goethe in Der Zauberlehrling, remodelando uma lenda do autor grego Lu-
ciano (in Philopseudes, 34-36) . Cf. também o "scherzo" sinfônico de Paul
Dukas: L'Apprenti Sorcier (1897) . O aprendiz, durante a ausência do mes-
tre, quer experimentar urna arte de que mal entende, e transforma uma sas-
soura num fâmulo infatigável que não cessa de trazer e de despejar baldes cheios
de água; quando vê, porém, o perigo de uma inundação da casa, não se lem-
bra da fórmula magsca apropriada para fazer-lhe parar o serviço; desesperado,
corta o fâmulo em duas metades, mas, para o seu espanto, vê dois fâmulos
trazendo e despejando baldes. Afinal aparece o mestre, que restabelece a
ordem e transforma os fâmulos em vassouras.
. — Goethe, in Der Zauberlehrling (alemão: Dfe ich rief, die Geister, werd'ich
nun nicht los).
— 420 --

ajudada pelo absolutismo dos reis que, adotando a devisa: cujus


regio, illius et religio (21), tentavam, escravizar a Igreja ao Estado
(22), não só nos países protestantes. Com o triunfo das idéias li-
berais, tornava-se radical a separação entre as duas sociedades: o
Estado moderno é, no mais das vêzes, nitidamente laico ou indife-
rente ao Cristianismo, ou em alguns casos, é-lhe declaradamente
hostil. Deus é o Grande Ausente da sociedade contemporânea, e a
religião perdeu seu prestígio secular no espírito dos povos e nas
instituições públicas, — fenômeno talvez único na longa história da
humanidade. Compreende-se que a nova situação suscita novos
problemas para a consciência cristã, a qual, muito embora reconhe-
cendo a autonomia do Estado no seu próprio terreno, não pode
aquiescer na separação total do cidadão e do cristão. O problema,
ainda hoje existente, era calorosamente discutido durante o século
passado, mormente na França, Alemanha e Itália. De um lado,
surgia o êrro dos "passadistas", que consistia em pensar que só a
volta a certas formas históricas, confundidas com a essência do
Cristianismo, pudesse garantir a salvação eterna do homem; por
outro lado, ameaçava o perigo dos "modernistas" que queriam aco-
modar os princípios eternos do Evangelho às exigências pretensa-
mente científicas da evolução histórica. Éstes se esqueciam do ca-
ráter transcendente da Revelação cristã, acabando por reduzí-la a
unia crença de valor relativo e a uma ética humanista; aquêles,
ainda que frisassem com ênfase a transcendência da fé, arriscavam-
se a cair no êrro paradoxal de considerarem como Fundador da
Igreja, não a Deus, mas Constantino ou Carlos Magno, e de pen-
sarem que bastava a reconquista do poder para a recristianização vi-
tal do mundo.
Nenhuma aliança histórica da Igreja com um regime políti-
co ou com uma cultura é permanente ou essencial; tôdas elas são
encarnações transitórias. A Igreja bem como o Estado são "socie-
dades perfeitas"; cada uma delas é autônoma dentro dos seus pró-
prios limites; entre as duas deve haver uma harmonia concorde,
principalmente nas chamadas questões mistas (casamentos, edu-
cação, etc.) (23); em casos de conflitos ou interêsses contrários,
deve prevalecer a voz da Igreja, visto que o fim do Estado, que
é natural, se deve subordinar ao fim sobrenatural da Igreja.

. — Princípio adotado pela "Pacificação Religiosa" em Augsburgo (1555) .


. — Os príncipes protestantes da Alemanha e dos países escandinavos; o rei Hen-
rique VIII da Inglaterra (anglicanismo); o Czar Pedro da Rússia (abolição
do Patriarcado de Moscou em 1721); nos países católicos encontramos o Gali-
canismo (na França) e o Josefinismo (na Áustria), etc.
. — Leo Para XIII in Encyclica Inunurtale Dei (1885), 53: /n negotiis autem
mixti juris, maxime esse secundam naturam itemque secundam Dei consilia
ncn secess'onem alterius potestatis ai, altera, multoque minus conternionem,
sed plane concordiam, eamque cum Causis proximis congruentem, quae causae
utramque societatem genuerunt.
-421 —

A Igreja atual, achando-se num mundo inteiramente secula-


rizado e até ateu, já não tem a possibilidade de liderar a socie-
dade e a cultura modernas; vê-se obrigada a aguardar a sua hora,
e esta é livre dádiva de Deus. O cristão pode prepará-la só espi-
ritualmente por suas orações e por uma revolução interna dos co-
rações humanos; por outro lado, não pode deixar passar oportu-
nidade alguma de testemunhar, a verdade ou de transformar o
mundo no sentido cristão. Saindo do ghetto, no qual o encerra-
ram o ódio de seus adversários e sua própria timidez, o cristão
deve enfrentar corajosamente o mundo hodierno, não para re-
conquistar o poder, e sim "para restaurar tôdas as coisas em Cris-
to" (Ef., I 10). A única verdadeira conversão do mundo consiste
numa "metánoia", isto é, numa reorientação radical das fôrças
espirituais do homem. Tal atitude poderá santificar o mundo, e
reconduzir tôdas as realizações culturais do homem a Deus: a rea-
leza e a república, o arado e o trator, o teatro e o cinema, o arte-
sanato e a indústria (23a). O fato de Deus nos ter pôsto nesta
situação concreta condena tôda e qualquer tentativa do cristão
para viver num estado de desencarnação angélica como uma eva-
siva indigna, e obriga-nos a certo dever de lealdade para com o
mundo atual (24): é só a esta condição que poderemos transfor-
mar o mundo.

VII. A Divisão da Matéria.

Neste capítulo pretendemos expor quatro grande sistemas


"progressistas" do século XIX: o Idealismo de Hegel (§ 96), o
Marxismo (§§ 97-99), o Positivismo (§§ 100-102), e o Evolu-
cionismo (§§ 103-104).

A. O IDEALISMO.

§ 96. A glorificação da cultura germânica.

Herder falara na alma coletiva de um povo, e outros autores


alemães deram origem ao mito de ser a Alemanha a Grécia dos
Tempos Modernos (cf. § 90 III). Foram necessárias as guerras
napoleônicas para que o povo alemão se tornasse consciente, po-

(23a). — Cf. K. Rahner, L'Église a-t-elle encore se chance?. Paris. Les Éditoos du
Cerf, 1953; J. Leclercq, Penser chr4tiennement notre Temtps, Paris, Téqui, 1951.
(24). — Cf. G. K. Chesterton, Orthocloxy (London, 1934!!), pág. 119: The world is
not a lodging-house at Brighton, which we are to leave because it is mise-
rabie. . (pág. 128): No one doubts that an ordinary man can get on w:th
this world: but we demand not strength enough to get on with it, but strength
enough to get it on. Can he hate it enough to change it, and yet love it
enough to think it worth changing? — Sublime paradoxo do Cristianismo!

— 422 —

iticamente falando, da sua alma nacional. O nacionalismo recém-


nascido aliava certos conceitos românticos a um racionalismo de
feição alemã, aprofundado pela crítica penetrante de Kant (25):
com o tempo, ia dispondo também de um instrumento poderoso
na máquina militar da Prússia. A Alemanha, outrora uma expres-
são geográfica e cultural, caminhava a passos firmes para a unidade
política, a ser realizada, embora parcialmente, em 1870. Era enor-
me o prestígio mundial da ciência germânica, comparável ao das
letras francesas no século anterior: o século XIX era a época
clássica do Império dos professôres alemães. A filosofia alemã
ocupava-se intensamente com o problema da história. Das nume-
rosas tentativas para entender o processo histórico, mencionamos
aqui, apenas de passagem, a de Fichte (26) e a de Schelling (27),
para falarmos um pouco mais detidamente no sistema vasto e im-
ponente de Jorge Guilherme Frederico Hegel (1770-1831).

d. Hegel, o Obscuro.

Hegel passa por ser o Heraclito da filosofia moderna: é ex-


tremamente obscuro e difícil. Ao exporem a doutrina hegeliana,
muitos autores se referem a uma observação pouco animadora,
feita pelo próprio pensador: "Um só homem me entendeu, e êsse
me entendeu mal" (28) . Complica-se a dificuldade, quando o au-
tor, como em nosso caso, dispõe apenas de algumas páginas para
expor um sistema vastíssimo. O resultado inevitável é uma sim-
plificação desfiguradora da verdade, a qual, no pensamento do
mestre, é um todo. Vai-se-nos patenteando o alcance do pensa-
mento hegeliano sôbre a história sèmente depois de compreender-
mos a estrutura geral do seu sistema: sua filosofia culmina numa
filosofia da história, onde totum in partibus relucet. Por isso
não podemos deixar de abordar algumas questões puramente fi-
losóficas, mas nos esforçaremos por expô-las na linguagem mais
simples possível, e 'sempre em função do nosso tema. Por mais
elementares que sejam estas noções, podem preparar . o caminho

(25). — Sôbre Kant e a história, 'cf. Eug. Imaz, Kant: Filosofia de la Historia, Mó-
x:co, 1952. — Cf. A. Xisto de Queiroz, in Kriterion, 27-28 (1954), págs.
32-37.
(26) . — J. G. Fichte (1762-1814) dirigia-se, em 1807-1808, ao povo alemão, nos
seus famosos "Discursos" (Reden an dia deutsche Nation): neles exorta seus
patrícios, abatidos pelos reveses da guerra contra Napoleão, a soerg-ier-se
moralmente, e exalta até delir: o o valor incomparável da nação e da cultura
alemãs: o povo germânico virá a ser o regenerador do mundo inteiro.
(27 ) . — F. W. J. Schelling (1775-1854) elaborou vários sistemas, impossíveis de
caracter:zar em algumas linhas. Basta dizer que, no fim da sua carreira, pro-
pendia para teorias místicas e teosóficas; a natureza é a humanização de Deus,
e a história o processo de divinização do homem. A existência das coisas
individuais é apostasia das Idéias divinas, e por isso pecado. Mas o mal
não pode ser eterno: é apenas uma fase de transição do Absoluto, que se
manifesta, se contempla e se redime.
(28) . — Alemão: Nur einer hat micte versfanden, und der hat mich missver,danden.
— 423 —

para um estudo aprofundado do sistema hegeliano, mediante os


grandes manuais da história da filosofia, as monografias (29), e
as obras do próprio filósofo (30).

II. A Idéia.
Base do sistema é esta convicção: "Tudo o que é real, é ra-
cional, e inversamente, tudo o que é racional, é real". A tese quer
dizer, entre muitas outras coisas, que nada escapa ao intelecto
humano, o qual está perfeitamente à altura da realidade . Hegel
é racionalista à outrance, julgando-se capaz de entender tôda a
realidade: o abstrato e o concreto, o finito e o infinito, excluiu termi-
nantemente o mistério. Ao considerarmos esta frase do filósofo, é im-
portante não perdermos de vista que, para Hegel, o acento cai, não na
realidade, mas na racionalidade: a realidade é composta de ele-
• mentos ideais, que são adegiiadamente, embora sucessivamente,
inteligíveis para o homem (Idealismo absoluto) . O método racio-
nalista de Hegel é essencialmente apriorístico, não indutivo ou
experimental: para êle, as experimentações científicas possuem só
valor acessório, que consiste em demonstrar que a natureza não
se podia comportar de outra maneira a não ser em conformidade
com as regras estabelecidas pela razão . Só a filosofia é saber au-
têntico e total.
A única Realidade, fora da qual não existe nada, é a Idéia,
o único objeto da filosofia.: para Hegel, a lógica se converte na meta-
física. A Idéia é o Pensamento pensante. Mas tenhamos cuidado de
não a identificar com o Deus dos cristãos. Êste se pensa a si mesmo,
e por ésse ato conhece tudo, visto que nada é cognoscível a não ser
por uma participação da essência divina; a Idéia hegeliana não é o
Ato Puro, absolutamente distinto do mundo, mas com èle coinci-
de (panteísmo) . Além disso, conhece tudo, — inclusivamente a
si mesmo, — só potencialmente, sendo que no início, de fato, não
conhece nada. Por outras palavras, Deus não é, mas vem a ser
(alemão: Gott im Werden), chegando a atingir sua plena auto-
realização e sua perfeita auto-consciência só no fim do processo
histórico. Para Hegel, o Absoluto realiza-se graças a um processo
ininterrupto de fenômenos relativos; para o cristão, a totalidade
de fenômenos relativos pressupõe uma relação real e necessária,
( 29 ) . — Boa leitura iniciadora é F. Grégoire, Aux Sources de la Pensées de Marx:
Hegel-Feuerbach, Louvain-Par' s, 1947. — Cf. também E. Blo ^h, El Pen-
samiento de Hegel, México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1949,
e P. Roques, Hegel, Sa Vie et ses Oeuvres, Paris, Alcan, 1912.
( 30 ) . As obras principais de Hegel são : A Fenomenologia do Espírito ( 1807 ) ; A
Ciência da Lógica, ( 1821-1816 ) ; A Enciclopédia das Ciências Filosó-
ficas ( 1817 ); Os Princípios da Filosofia do Direito (1 . 821 ) . — Depois da
morte do mestre, seus alunos publicaram os apontamentos das aulas beroli-
nenses, por exemplo: A Filosofia da História (editada por E. Gans e K. Hegel,
1840 ) . — Nestas páginas citamos a Jubilêumausgabe, publicada em 20 vo-
lumes ( com índices copiosos) por H. Glockner ( Stuttgart, 1927-1930) •
— 424 —

por parte do mundo relativo, com um Ser Absoluto e Transcen-


dente, o qual, por sua vez não tem relação real ou necessária com
o mundo relativo (cf. § 68 II). Essa Realidade auto-dinâmica
de Hegel é perfeita: visto que o perfeito não poderia não exis-
tir (31), é absolutamente necessária sua existência, é absoluta-
mente necessário também seu movimento intrínseco. Hegel, por-
tanto, exclui a contingência e a liberdade da evolução histórica
(= divina, para êle), ou melhor, dá-lhes um significado bem di-
ferente do que possuem num sistema que parte da livre criação
do mundo por Deus.

III. A Dialética (32).

A Idéia, longe de constituir o Ipsum Esse, está sujeita a um


processo necessário de evolução, não devido a um movimento me-
cânico (seria uma incoerência), mas por possuir uma atividade
imanente e finalista. O processo é dialético, quer dizer: efetua-
se mediante o ritmo triádico de tese, antítese e síntese (têrmos
pouco usados por Hegel, mas sempre empregados ao falar-se do
seu sistema) (33).
Para compreendermos essa lei, podemos partir de um exem-
plo muito simples. "Pedro é bom", é uma afirmação (tese) que
necessàriamente produz sua antítese ou negação: pois cada ver-
dade deve ser relacionada com tôdas as outras verdades; conside-
rada em si, é contraditória e falsa. Pedro, ser relativo, não é bom
no sentido absoluto, mas só sob certos aspectos; num juízo simples
nunca conseguimos exprimir adeqüadamente a verdade absoluta.
Por isso a tese: "Pedro é bom" tende a destruir-se a si mesma, re-
sultando na antítese: "Pedro não é bom". Mas também essa ne-

— Hegel, julgando perfeita a totalidade da evolução dialética da Idéia, consi-


dera-a também necessária, valendo-se do chamado "argumento ontológ'co", já
usado por Santo Anselmo (1033-1109) para provar a priori a existém..ia de
Deus. O argumento, reduzido à sua forma mais simples, é êste: Deus est
id quo majus cogitari nequit (cf. Augustinus, De Doctrina Christian., 1,
7, 7); atqui id quo majus cogitari nequit, exsistit, nem si non exsisteret, pos-
set cogitari maius, nempe exsistentia praeditum; ergo Deus exsistit. — A.
resposta clássica a êsse argumento foi dada por São Tomás, in Summa Theo-
logica, I q. 1, a. 1, e Summa Contra Gentiles, 1 11.
— A palavra "dialética" já era empregada pelos gregos clássicos: era a arte de
disputar; duas afirmações opostas eram examinadas com o fim de chegar a
uma noção aprofundada e acertada da verdade (Sócrates e Platão), ou então.
com o fim de demonstrar o caráter subjetivo dos nossos conhecimentos (os
sofistas). Entre os gregos, degenerava facilmente na chamada "erística'', ou.
"arte de contenção". — A dialética era a terceira das sete arfes liberais, e
indicava não só "a arte de raciocinar bem" (= lógica formal) como também.
"a arte de persuasão" (a serviço da retórica). — Na Idade Média, a palavra
era empregada com os mesmos significados, prevalecendo o de "lógica".
— Já os neoplatôniqos e São Tomás conheciam a tríade dialética (via at firma-
tionis, via negationis, et via eminentiae), empregando-a para chegar a um co-
nhecimento mais aprofundado dos atributos divinos. Nicolau de Cusa (cf. §
81 I), o autor da obra De Docta Ignorantfa (1440) (cf. Augustinus, Epistola,.
CXXX 15, 28), chamava a Deus de coincidentia oppositortim.
-425—

gação não é um juízo em que possamos encontrar repouso com-


pleto, ou em que se exprima perfeitamente a verdade. Exprime-a
perfeitamente a síntese : "Pedro é bom suo modo", uma fórmula
que faz justiça ao caráter concreto e particular da bondade de
Pedro dentro de um conceito universal, e abrange a realidade dos
seus elementos contraditórios. Pois a síntese (alemão: Aufhebung),
conforme os três significados do verbo aufheben, "aniquila" a opo-
sição entre a tese e a antítese, e "conserva" e "supera ou sublima" a
verdade contida em cada uma delas. A síntese não é, portanto, um
vago meio-têrmo, um compromisso, mas uma verdade superior e
original.
Ora, essa lei dialética possui, para Hegel, não só valor lógico,
mas se aplica à própria realidade (pois a Idéia = a Realidade).
Aplicada à Idéia Pura, — o objeto da lógica = metafísica, — re-
sulta na síntese do "Devir" (alemão: Werden). Pois o "ser" (tese)
é o primeiro, mas também o mais vago conceito que se pode formar
da Idéia (alemão: das unbestimmte Unmittelbare): é pura inde-
terminação, a despertar necessàriamente o conceito do "não-ser" ou
"nada" (antítese). O "devir" reconcilia e supera a oposição entre o
"ser" e o "nada", visto que é a transição do "ser" ao "não-ser" e do
"não-ser" ao "ser". Destarte, o "devir", pelo qual a Idéia vem a ser
"algo" ou passa da indeterminação à determinação, é a lei fundamen-
tal da Idéia = Realidade.
A Idéia acha-se, pois, em constante movimento, obedecendo com
necessidade à lei triádica. No primeiro momento, ela se põe ou se
afirma (tese): é a Idéia pura, em si (alemão: an und für sich),
fase anterior a tôda e qualquer manifestação finita e concreta. Em
seguida, manifesta-se fora de si, opondo-se a si mesma (antítese):
é a Idéia na sua forma de alteridade, de exteriorização, de aliena-
ção (alemão: Anderssein). Finalmente, regressa a si (síntese): é
a Idéia na sua fase de reconcentração, de reintegração, de volta a
si mesma (alemão: Beisichsein). A essas três fases sucessivas cor-
respondem as três divisões da filosofia hegeliana: a lógica = me-
tafísica; a filosofia da natureza; a filosofia do Espírito. Em cada
uma das três divisões encontramos sempre a mesma lei triádica,
aplicável a tôdas as manifestações da Idéia, a caminho de se rea-
lizar. Pois cada síntese pode servir de ponto de partida a um re-
começar do processo dialético: no imenso Oceano dialético há inú-
meros vagalhões e ondas que obedecem necessàriamente ao mes-
mo ritmo. Tudo o que existe é um momento da Idéia, uma etapa
da evolução dialética, a culminar na filosofia (= a síntese final),
onde o Espírito Absoluto se possui completamente a si mesmo num
saber total, isto é, num saber não condicionado ou limitado por al-
guma posição subjetiva ou por alguma situação histórica.
--426—

A dialética aplica-se, por exemplo, também ao desenvolvi-


mento histórico do pensamento humano. Éste começa por fazer
afirmações claras e distintas: é a época do "intelecto" (alemão:
Verstand). Mas o "intelecto" desperta necessàriamente a antítese
da "razão" (alemão: Vernunft), a qual nega as delimitações do "in-
telecto": é a época do Ceticismo e do Criticismo (na Grécia, os
sofistas; nos Tempos Modernos, os Enciclopedistas e Kant) . Mas o
pensamento humano encontra finalmente repouso no "Espírito" (ale-
mão: Geist), o qual reconcilia as afirmações do "intelecto" com as
negações da "razão", num plano superior (na Grécia: Platão e Aris-
tóteles; nos Tempos Modernos, definitivamente: Hegel).

. IV. A Filosofia do Espírito.

Não nos interessa aqui a filosofia hegeliana da natureza, —


aliás, a parte mais fraca do sistema (34), — o que nos importa é
a filosofia do Espírito, em que o autor fala da história. No seu
pensamento, a história é o processo evolutivo do Espírito através
da humanidade, durante o qual êle se torna cada vez mais cons-
ciente, livre e interiorizado. O sistema hegeliano é uma vasta
teogonia.
Na filosofia do Espírito, Hegel distingue entre três fases: o
Espírito Subjetivo (tese), o Espírito Objetivo (antítese), e o
Espírito Absoluto (síntese) .
A evolução do Espírito Subjetivo abrange estas três fases: a
antropologia, a fenomenologia e a psicologia. A antropologia tra-
ta da alma, ou do Espírito na fase da sua dependência da Natu-
reza (alemão: Seele oder Naturgeist). E' o primeiro triunfo do
Espírito sôbre a exterioridade da matéria, sendo que a alma or-
ganiza e unifica todos os órgãos do corpo. Mas o Espírito está
ainda submerso na natureza, e sofre de alienação (alemão: Ert-
ãusserung), não chegando a ultrapassar os limites de uma cons-
ciência sensível. Na fenomenologia, o Espírito 'eleva-se à auto-
consciência (alemão: Selbstbewusstsoin): os objetos concretos da
vida são como que um espêlho a "refletir" o que eu sou em mim.
E' preciso que eu saia de mim mesmo, apoderando-me do meu ser
`refletido" na vida exterior, para me poder possuir e conhecer per-
feitamente. Devido à causalidade recíproca do processo dialéti-
co, descubro-me a mim mesmo no mundo exterior, e descubro as
leis da natureza em mim mesmo. A auto-consciência é a identi-
dade do Espírito consigo mesmo. Mas na terceira fase, a psicolo-
(34) . — A filosofia da natureza de Hegel é muito inferior à sua filosofia do Espirito:
o filósofo força a realidade a obedecer a urna construção apriorística. Quando
amigos do pensador lhe chamavam a atenção para a divergência entre a dou-
trina e os fatos observados, respondeu êle: "Tanto pior para a natureza!"
(alemão: Um so schlimrrtler für die Natur!).
— 427 --

gia, o Espírito supera a oposição que existia entre as coisas e o ,


Espírito, chegando a ver a identidade do sujeito e do objeto ("tu-
do o que é. é pensado, e tudo o que é pensado, é"). E' a fase do-
Espírito exteriorizado e interiorizado ao mesmo tempo, a manifes-
tar-se, teÓricamente, no pensamento, e, pràticamente, na vontade:
reconciliam-se a teoria e a prática no Espírito livre, o qual tende:
a si próprio como ao seu objeto adeqüado. Resumindo, podemos
dizer que, durante a evolução do Espírito Subjetivo, nasce o indi-
víduo humano, consciente, racional e livre (35).
Mas o espiritual individual, incapaz de alcançar, no seu iso-
lamento, a plena consciência, racionalidade e liberdade, desperta_
a antítese do Espírito Objetivo, no qual as aquisições do Espírita .

Subjetivo vão sendo concretizadas em formas sociais e externas que,,


apesar de não possuirem uma existência individual nem uma cons-
ciência individual, se impõem imperiosamente às livres consciên-
cias dos indivíduos, constituindo uma realidade supra-individual. .

O Espírito Objetivo manifesta-se, sucessivamente, no Direito, na.


Moralidade (alemão: die Moralitàt), e na Eticidade (alemão:
die Sittlichkeit). O Direito visa ao bem abstrato universal, e fun-
da por exemplo a propriedade privada. A Moralidade, sendo a .

reflexão da vontade sôbre si mesma, trata da liberdade interior.


Mas a síntese do bem objetivo e do bem subjetivo é a Eticidad,e.
cujas formas concretas são sucessivamente: a família, as diversas.
sociedades econômicas, e afinal, o Estado.
O Espírito Absoluto é a fase do Espírito voltado a si, a expri-
mir se nas coisas próprias do Espírito: a Arte, a Religião e a Fi-
losofia. A espiritualidade humana, adquirida durante a evolução..
do Espírito Subjetivo e exteriorizada durante as sucessivas realiza-
ções do Espírito Objetivo, precisa regressar a si. Só aí o Espírito po-
derá realizar livremente coisas espirituais, principalmente na filoso-
fia: ela, para nos ensinar como o mundo deveria ser, vem sempre_
atrasada: "A coruja de Minerva empreende o vôo só ao iniciar-se o.
crepúsculo vespertino" (36) .

V. A Filosofia da História.
Destaquemos agora alguns elementos da filosofia hegeliana,.
relativos à filosofia da história.
. — Segundo Hegel, a liberdade é a necessidade resconhecida, ou absorvida, pela
canse .éncia; a necessidade é cega apenas enquanto não é conhecida. Não pode
haver conflitos entre a liberdade e a racionalidade: as duas constituem o nú- •
c/eo mais íntimo do nosso ser. — No sistema hegel:ano, não há lugar nem
para o livre arbítrio pràpriamente dito, nem para a cont ngência; os dois .
são momentos dialéticos (necessários) subordinados à lei universal e iacional
do Eterno Movimento necessário.
. — Hegel, Filosofia do Direito (Vol. VII, pág. 37): Wenn die Philosophie ihr
Grau :m Grau malt, dann ist eine Gestalt des Lebens alt Acworden, und mit
Grau in Grau lüsst sie sich nicht verjüngen, sondern nur erkennen; die
der Minerva beginnt erst mit der einbrechenden Dãrnmerung ihren Flug.
— 428 —

a) A Dialética entre o Senhor e o Escravo.

Já dissera Heraclito: "A guerra é o pai de tôdas as coisas"


(fragm. 52), e essa sentença ganha em significado para Hegel,
que é o filósofo por excelência do "devir". Segundo êle, inicia-se
a história humana por um episódio, conhecido sob o nome de "A
Luta" (alemão: der Kampf). Dois sêres pré-históricos se encon-
tram: biológicamente falando, podem ser homens, mas não lhes
convém ainda êste qualificativo por não ultrapassarem a nature-
za orgânica sem auto-consciência . Os dois se envolvem numa luta .
Se um matar o outro, o vencedor ficará encerrado na natureza or-
gânica, e não se iniciará o processo histórico (= humano), na
acepção hegeliana da palavra. Mas pode acontecer que um dos
dois, num gesto desesperado de agonia, se renda ao outro: o ven-
cido, preferindo a vida aos seus instintos de ser "reconhecido" (ale-
mão: das Anerkanntsein), reconhece a superioridade do vencedor
e começa a "ser para o outro"; e o vencedor vem a ser homem de-
vido ao fato de ser reconhecido por seu adversário. E' êsse o mo-
mento inicial do Estado.
Agora começa um processo dialético entre o senhor e o es-
cravo, de suma importância para a evolução da humanidade. Pois,
uma vez despertada a auto-consciência, o desêjo de ser reconhe-
cido por outros pode ser saciado apenas pelo reconhecimento uni-
versal, — livre e racional, — de todos por todos. O senhor se
sente superior ao escravo porque o força a produzir ciosas para
si; ao passo que êle as desfruta livremente, o escravo vive afas-
tado dos produtos do seu trabalho (é outro caso de alienação =
Entãusserung). Mas também o senhor sofre de alienação, porque
domina o escravo através das coisas, e as coisas através do escra-
vo. Chega, porém, o momento antitético em que o escravo passa
a dominar o senhor, por se tornar consciente do fato de que êste
não poderia viver sem os produtos do seu trabalho: o domínio do
senhor sôbre o escravo transforma-se num domínio do escravo sô-
bre o senhor. Se o escravo se aproveitasse dêsse momento para
trocar os papéis, o processo dialético não teria fim. Mas dá-se ne-
cessàriamente um terceiro momento, a síntese. Histõricamente
falando, deu-se êsse momento com o aparecimento da Estoa Ro-
mana: o escravo Epicteto compreende que a única verdadeira es-
cravidão é deixar-se dominar pelas paixões e pela fortuna; o Im-
perador Marco Aurélio compreende que o único verdadeiro domí-
nio é o que está além das paixões e da fortuna, ou o domínio sô-
bre si mesmo. Mas esta síntese estóica (o desapêgo voluntário e
o domínio voluntário) ainda não é definitiva por ser demasiada-
mente abstrata e especulativa. Só o Cristianismo trouxe a "liber-
dade absoluta", — concreta e prática, — ao mundo, e caberá ao
— 429 —

povo germânico realizar êsse ideal na sua plenitude. A Luta,


começada assim por dois sêres pré-históricos, terminará na fase
definitiva da história humana, em que todos livremente reconhe-
cerão os outros. Pois a liberdade do Espírito consiste em reconhe-
cer a obrigação que nos é imposta pela razão, o núcleo mais ínti-
mo do nosso ser.

b) O Estado.

Podemos distinguir três espécies de Estados, corresponden-


tes à evolução política da humanidade. No Estado despótico (os
Impérios orientais, que representam a infância do gênero huma-
no), era livre e reconhecido como tal, só o déspota: era êle o úni-
co consciente de si mesmo, isto é, das razões por que decide o que
decide, ficando os outros condenados a uma obediência irracional.
Para os orientais, o Estado era um poder exterior, e a lei uma ex-
pressão de uma vontade estranha aos indivíduos governados. E'
diferente a situação na Grécia e em Roma, onde o Estado é "po-
pular" (essas duas fases da Antigüidade clássica representam a
adolescência e a idade adulta da humanidade; uma é "democráti-
.ca", a outra é "aristocrática"): muitos são livres e reconhecidos
como tais, mas essa libredade existe apenas por haver um maior
número ainda de escravos e de povos subjugados, forçados por
meios violentos a obedecerem. A síntese é o Estado monárquico,
o qual convém à velhice do gênero humano: é representado pe-
los povos germânicos e principalmente pela Prússia. Novamente
lá um único a decidir, mas êle é o primeiro a submeter-se às leis;
promulgando uma lei, pode contar com a livre adesão de todos
.os seus súditos, visto que êles 'reconhecem espontâneamente o ca-
ráter racional da lei. Chegado a essa fase de evolução, o Estado
será o que deve ser, e Hegel julga o Estado prussiano muito pró-
ximo ao ideal.
O Estado hegeliano é absoluto, tendo por única norma a sua
:nacionalidade como também a dos cidadãos. No Estado ideal rei-
na a Razão: é êle "o caminhar de Deus pelo mundo" (alemão:
der Gang Gottes in der Welt) (37), e a realização da liberdade
concreta. E' o fim derradeiro, embora parcial (38), dos indiví-
duos. O Estado tem certas obrigações para com os indivíduos (por
exemplo, a garantia da propriedade privada, da livre escôlha de
uma profissão, etc.), mas as obrigações dos indivíduos para com o
Estado são muito maiores, e em certos casos de emergência, até
irrestritas. Aliás, o indivíduo, consciente da sua identidade com o
(37) . — Já Herder dissera, falando da história: Geng Gottes über die Nationen (in
Auch eine Philosophie der Geschichte, pág. 316; cf. § 90 1) .
(38). — Pois :ac'ma das realizações do Espírito Objetivo, estão as do Espírito Absoluto:
a Arte, a Religião, a Filosofia.
--- 430 —

-Espírito Objetivo, sacrifica livremente os seus interêsses particula-


res ao Interêsse do Estado. Em última análise, não pode haver
choques entre a racionalidade individual e a coletiva . O Estado
ideal, síntese de todos os regimes anteriores, será autoritário e
,constitucional ao mesmo tempo; não admitirá a separação do po-
der legislativo e do poder executivo; o soberano não será o man-
datário ou o doméstico do povo, demissível conforme os capri-
chos de uma maioria sempre variável. A Constituição não será
o resultado de um Contrato Social, mas a expressão da "alma na-
cional" (alemão: Volksgeist). A monarquia será hereditária, e
'exercerá um grande poder. O povo será representado por dele-
gados, repartidos entre duas Câmaras e votados indiretamente.
,Os direitos cívicos não serão igualitários, mas corresponderão às
capacidades mentais, à posição social, e à situação econômica.
Em cada povo histórico aparece certa "alma coletiva" (cf.
§ 93 III), apropriada a dada fase da evolução do Espírito Obje-
tivo em dada época histórica: uma vez acabada sua missão his-
tórica, tem de morrer e ceder seu lugar a outro povo, sendo uma
-manifestação efêmera da "alma do mundo" (alemão: Weltgeist)
.que é imortal. A alma coletiva do povo alemão é predestinada a
levar o Espírito ao supremo grau do seu desenvolvimento. Os po-
vos latinos, devido ao seu sangue misto, sofrem de certo "desdo-
bramento" (alemão: Entzweiung) fatal: não sabem reconciliar a
'exterioridade" com a "interioridade". Conseguem reconciliá-las,
:sim, os germanos: a palavra alemã, Gemüt, intraduzível para ou-
tros idiomas, indica a síntese admirável dos germanos entre o es-
pírito e o sentimento. A Reforma de Lutero, a Aufklarung alemã
.e o Criticismo de Kant, a arte romântica, a monarquia constitu-
cionalista, eis algumas manifestações esplêndidas do Volksgeist
'germânico nos Tempos Modernos. Este efetuará a síntese entre
o coletivismo amorfo dos povos orientais e o individualismo esté-
tico, respectivamente jurídico, dos gregos e dos romanos.
Entre si, os Estados, inteiramente soberanos, praticam um
•egoísmo sagrado, não reconhecendo normas superiores às razões
estatais: suas interrelações não se baseiam num direito internacio-
nal, mas em tratados que devem ser observados pelos partidos con-
.tratantes. Surgindo divergências quanto à interpretação dêsses
tratados ou havendo outros conflitos, a guerra será inevitável, a
qual exprime a lei dialética do Espírito entre os Estados. A guer-
ra não é apenas necessária, mas também constitui um grande va-
lor: tira os povos da sua inércia, exigindo-lhes o sacrifício dos bens
materiais e da vida, e manifestando assim a importância eminente
-e supra-individual do Estado. Contra seus resultados ninguém se
pode levantar: a vitória de um povo é prova suficiente do seu di-
— 431 —

reito. A marcha do processo histórico traz em si a justificação das


peripécias a que estão sujeitos os Estados: "a História Universal
é o Juízo Final" (alemão: Die Weltgcschichte ist das Weltgericht)
(39) . Dado o direito absoluto do povo alemão de ser o protago-
nista nos Tempos Modernos, o Estado prussiano pode agir com
os demais Estados de maneira bastante arbitrária. O amor à hu-
manidade é, segundo Hegel, uma invenção estúpida, e a "Paz Eter-
na", apregoada por Kant (cf. § 85 III, nota 25), um ideal quimé-
rico. Um Super-Estado, ou uma Confederação mundial de Esta-
dos, seria um absurdo, visto que tal instituição acabaria por des-
truir o Estado individual que é, para Hegel, "Deus presente no
mundo".
As grandes figuras históricas, tais como Alexandre Magno,
Júlio César e Napoleão (40), são instrumentos inconscientes do
Espírito Objetivo. Indignado, Hegel investe contra as tendências
niveladoras de certos psicólogos que querem reduzir o herói histó-
rico ao tamanho de seu doméstico (41): tampouco se aplicam as
normas da moral corriqueira ao comportamento do grande indiví-
duo (42) . O Espírito é ardiloso (alemão: List der Vernunft), ser-
vindo-se das paixões, dos instintos e da cobiça dos indivíduos como
de estrategemas para realizar os seus planos, que são eternos, ne-
cessários e racionais, e por isso mesmo se justificam. Mau grado
seu, os grandes personagens; apesar de sua crueldade e imorali-
dade, contribuem para o nascimento de manifestações superiores
do Espírito Objetivo, graças às quais a humanidade pode chegar
a um grau cada vez mais elevado de auto-consciência, racionali-
dade e liberdade.
Certaines thèses de Hebel ord contribué d'une façon active à
l'intoxication de I'esprit allemand, et l'effet en a été ressenti beau-
coup plus loin encore (43). Mencionamos aqui o endeusamento

(39) . — Esta palavra é do poeta alemão Fr. Von Schiller, in Resignation (1784) .
(40). — Alexandre o Magno é o mais belo indivíduo de todos os tempos, segundo He-
gel; foi êle que derrotou definitivamente o mundo oriental. — César, servindo
ás suas ambições e agindo contra a constitu ção romana, realizou, ao atraves-
sar o Rúbicon, o que teve de ser realizado. --i Quando Hegel, em 1806,
(batalha de Iena), via Napoleão, falava dêle como "da Idéia Un . versal mon-
tado a cavalo".
. — Partindo do ditado: // n'y a point d'héros pour les valeis de chsmbre, Hcgel
diz (in Die Vernunft in der Geschichte, ed. G. Lasson, Leipzig, 1930', pág. 81):
Für einen Kammerdiener gibt es ke'nen Helden. ., nicht aber da-um. weil
dieser ke'n Held, sondem weil jener der Kammerdi ener ist... Für den Kam-
merdiener gibt es den Helden nicht: der ist für die Welt, die Wirklichkeit, die
Geschichte.
. — Ibidem, pág. 83: So haben soiche welthistor'schen Individuen allerd;ngs in
ihren grossen Interessen, heilige Rechte, ieichtherzig, flüchtig, momentan,
rücksichtslos behandelt, eine Behandlungsweise, die moralischem Tad,' ausge-
setzt ist. Aber ihre Stellung überhaupt ist als eine andere zu fassen. Eme
grosse Gestalt, die da einherschreitet, zertritf manche unschuidige Blume, muss
auf iterem Wege manches zertrümmern.
. — A.-D. Sertillanges, Le Christianisme et les Philosophies, Paris, Aubier, 1941,
II pág. 211.
— 432 —

do Estado, a exaltação da superioridade germânica, a glorificação


da guerra (44), o desprêzo ao direito internacional, e a justifica-
ção dos atos do grande homem (45). Contudo, devemos reconhe-
cer que o totalitarismo, o militarismo e o racismo são doutrinas vio-
lentamente separadas do corpo do sistema hegeliano, o qual ad-
mite, acima das manifestações do Espírito Objetivo, as regiões su-
periores do Espírito Absoluto: a arte, a religião e a filosofia. A
vida interior possui, para o pensador alemão, mais importância
do que a vida social, representada pelo Estado.

c) A Arte.

A Arte é o Espírito Absoluto que se exprime numa matéria


individual e apela à nossa imaginação: o Belo é "o resplandescer
sensível da Idéia" (alemão: das sinnliche Scheinen der Idee).
Será mais bela uma coisa, na medida em que nela fôr melhor rea-
lizado o domínio da Idéia sôbre a matéria. Destarte Hegel chega
a esta classificação das artes: a arquitetura, a escultura, a pintura,
a música e a poesia. A pintura e a música são superiores à arqui-
tetura e à escultura, porque as côres e o som são acidentais em
relação ao seu significado espiritual; a poesia é a síntese de tôdas
as outras artes: ela espiritualiza a plástica e o som, e é capaz de
descrever todo e qualquer acontecimento, e de traduzir o senti- '
inento e o pensamento. Na parte histórica da sua Estética, Hegel
fala das três formas principais da arte: a arte simbólica dos po-
vos orientais, a arte clássica dos gregos e dos romanos, e a arte
romântica dos Tempos Modernos (já começada na Idade Mé-
dia). Na arte simbólica, o Espírito é apenas indicado vaga e con-
fusamente, prevalecendo a forma exterior; na arte clássica, há per-
feito equilíbrio entre a interioridade e a exterioridade; na arte
romântica, o Espírito consegue estabelecer o seu predomínio sô-
bre a forma exterior. E' o triunfo da beleza espiritual, a manifes-
tar-se por exemplo nas majestosas catedrais da Idade Média, êsses
sublimes Pensamentos humanos transformados em pedras, na pin-

— A expressão clássica do militarismo prussiano encontra-se numa carta do


general H. Von Moltke (1800-1891): Perpetuai Peace is a dream -- and
not even a beautiful dream — and War is an integral part (e.n Glied) of
God's ordering of the Universe (Weltordnung). In War Man's noblest vir-
tuas come into play (entfalten sich): courage and renuntiation, fidekty to
duty and a readiness for sacrificas, that does nor stop short of &tering up
Life itself. Without War the World would become swamped in materiarsm
(apud A. Toynbee, A Study of History, IV pág. 643). — Cf. a sentença de H.
Leo, § 115 I, nota 248.
— Outro exaltador do herói, — aliás, profundamente influenciado pela lite-
ratura alemã, — foi o inglês Thomas Carlyle (1795-1881), autor do livro:
On Heroes, Hero-Worship and The Heroic in History (1840). — Sólne 'este
autor, cf. E. Cass'rer, El Mito dei Estado, México-Buenos Aires, 1947, págs.
222-264.
— 433 —

tura holandesa, nos dramas de Shakespeare, e na poesia de Schil-


ler e Goethe.

d) A Religião.
Numa obra de arte, Deus se manifesta à consciência in-
dividual como um Todo, mas mediante a religião, Deus se
-manifesta à sociedade, tornando-a consciente do Espírito Abso-
luto. Contudo, a religião, por necessitar de símbolos e por
apelar não só para o pensamento, mas também para a intui-
ção sensível (alemão: die Anschauung), não poderia ser a expres-
são adeqüada do Todo: é o terreno da "representação" (alemão:
die Vorstellung), o meio-têrmo entre as imagens da arte e a pura
'noção" filosófica (alemão: der Begriff). Só na filosofia, o Espí-
rito está completamente de volta a si, chegando a conhecer a ver-
dade na sua unidade necessária. Também a religião cristã é ge-
radora de razão: suas verdades sobrenaturais, envolvidas em ima-
gens e símbolos, são originàriamente irracionais, mas despertam
inevitavelmente a reflexão, devido à qual se transformam em ver-
dades racionais, em "saber absoluto". A religião é, por assim di-
zer, o último trampolim para as regiões superiOres da filosofia.
-O Cristianismo de Hegel é uma religião racionalizada, destituída
de mistérios, ou melhor, uma religião de mistérios diluídos em con-
ceitos filosóficos. Alguns dogmas cristãos prestam-se muito bem
a uma interpretação gnóstica: o mistério da Santíssima Trindade
se enquadra perfeitamente no esquema hegeliano de tríades, e a
Encarnação prepara o homem para a "apoteose" final. Mas esta apo-
teose não é obra redentora de um Deus transcendente nem se re-
fere a uma vida além-túmulo; a apoteose hegeliana é o têrmo
-final da história humana. neste mundo.
As religiões primitivas dos povos orientais são naturalistas
-e deterministas: Deus é concebido como um ente submerso na na-
tureza e destituído de liberdade, ou então como uma vontade es-
tranha ao homem. Nas religiões clássicas (dos judeus, gregos , e ro-
manos), podemos verificar um esfôrço para elevar a Deus acima
da natureza: Ele vai-se revestindo de uma individualidade espi-
ritual (alemão: Religionen der geistigen Individualitãt). Mas o
Cristianismo é a religião absoluta: Deus se manifesta ao homem
como Espírito Puro, na forma de um homem. Quem diz Espírito,
diz liberdade: o Cristianismo, já não permitindo que o homem de-
pendesse dos seus semelhantes ou de coisas exteriores, aboliu a
-escravatura e os oráculos. A idéia cristã, originàriamente existindo
'só nos corações dos indivíduos, tendia necessariamente a concreti-
zar-se na realidade. Foi essa a tarefa histórica dos povos români-

_Revista de História n.o 28


— 434 —

cos e germânicos, principalmente dêstes últimos, porque neles já


não há aquêle "desmembramento" próprio dos povos latinos. Na
Idade Média manifesta-se o "desmembramento" na separação dos
dois poderes, no ascetismo e no celibato dos monges; o Catolicis-
mo adora a Deus na Hóstia, "uma coisa exterior". Só a Reforma,
realizada por um monge alemão, conseguiu reconciliar o homem
com Deus, ou o homem exterior com o homem interior. O Lute-
ranismo, afirmando com ênfase que o mundo é bom, atribui valor
às realidades terrestres: à profissão, ao Estado, ao casamento, etc.
Assim a religião absoluta culmina em outra manifestação do gênio
germânico: o luteranismo.

e) A Filosofia.

A Filosofia é a suprema manifestação do Espírito Absoluto:


é o regresso completo (grego: apokatástasis, têrmo empregado pe-
los neoplatônicos) do Espírito a si mesmo, ou a Idéia que "se
pensa a si mesma" (46). A verdadeira filosofia não poderia re-
signar-se com a pergunta cética de Pilatos: "Que coisa é a ver-
dade?" (Ev. João, XVIII 38), mas procura descobrir a natureza
da realidade e chega ao conhecimento cada vez mais aprofundado
de que ela se acha num movimento perpétuo, necessário e dialé-
tico. A história da filosofia nos permite recompor a verdade total,
a qual chega a brotar só nos fins da evolução do pensamento hu-
mano. A filosofia parte das noções mais abstratas (o "ser" dos
.eleatas, e o "devir" de Heraclito), descobre a "essência" com Platão
e a "noção" (alemão Begriff) com Aristóteles, chega à "cons-
ciência" com Descartes e à "auto-consciência" com Kant, e cul-
mina na "Idéia" dos filósofos alemães Schelling e Hegel. Destar-
te, a filosofia hegeliana constitui o têrmo final do pensamento hu-
mano: nela se encontra virtualmente tudo o que há de vir depois.
No capítulo final da sua "História da Filosofia" lemos esta decla-
ração solene: "A êste ponto chegou o Espírito Universal. A últi-
ma filosofia é o resultado de tôdas as anteriores; nada se perdeu;
todos os princípios estão conservados. Esta Idéia concreta é o re-
sultado dos esforços do Espírito através de quase 2500 anos (Tales
nasceu no ano 640 a. C.), do seu trabalho mais sério para se tor-
nar objetivo a si mesmo, para se conhecer a si mesmo:
Tantae molis erat se ipsam cognoscere mentem" (47).
(46) . — Com um passo da Metafísica de Aristóteles (XII 7), onde se encontram estas
palavras: ("o pensamento do pensamento" = grego: nóesis noéseos), termina
a Enciclopédia de Hegel.
(47). — Hegel, Geschichte der Philosophie (Bd. XIX, pág. 685): Bis hierher ist
nua der Weltgeist gekommen. Die letzte Philosophie ist der Resuitat alie,
früheren; nichts ist verloren; alie Prinzip'en sino' erhalten. Diese konkrete
Idee ist das Resultai der Bemühungen des Geistes durch fast 2500 falire
— 435 —

VI. O Progressismo de Hegel.

Hegel é progressista, embora à sua maneira. Freqüentemente


emprega o têrmo "evolução?' (alemão: Entwicklung), mas seu
«evolucionismo" é bastante diferente do de Darwin ou Spencer.
Para êle só o homem tem história; quanto à gênese das espécies
vivas, é adversário do transformismo, acreditando na fixidez das
espécies; quanto ao mundo inanimado, êsse existiu, segundo êle,
sempre na forma atual. Não adere a uma perfectibilidade inde-
finida •do gênero humano, como a concebiam alguns filósofos es-
clarecidos do século XVIII; em vez de um progresso retilíneo com
um têrmo indefinido, sustenta uma espécie de progresso circular
com determinado têrmo final: o repouso eterno no movimento.
O movimento da Idéia é finalista: a Idéia Pura, universal e abs-
trata, possui, desde o início, a tendência de se transformar, através
da alienação das coisas particulares, no Espírito, que é universal
e concreto; aí a Idéia se redescobre a si mesma num plano supe-
rior e num estado mais rico. "O comêço é o fim" (48) . Já se Mi-
ciou o têrmo final da história na esplêndida civilização germânica,
das quais o Estado constitucionalista, a arte romântica, o lutera-
nismo e o "Idealismo Absoluto" são as principais expressões. He-
gel não nutre tanto esperanças futuristas, como está satisfeito com
o presente. Ce qui dans le passé était rationnel, c'était le réel
en mouvement; mais, désormais, c'est beaucoup plutôt le réel en
repos. Le célebre axiome: "le réel est rationnel" a de la sorte
pour le passe un sens révolutionnaire, et pour l'avenir un sens
conservateur (49) .
A história universal é a cativante odisséia do Espírito, que
chega a ser cada cez mais consciente, racional e livre através de
processos ininterruptos de reintegração, os quais se seguem neces-
ràriamente a processos de alienação. As culturas orientais, — e,
a fortiori, as civilizações primitivas dos indígenas da África e da
América, — vivem alienadas do Espírito. No Egito, o pensamen-
to humano esforça-se por livrar-se da natureza, fato êsse que é sim-
bolizado pelo Esfinge, figura meio-animal, meio-humana. Mas é
só na Grécia que se nos manifesta pela primeira vez o Espírito
("Conhece-te a ti mesmo!"): nessa fase, porém, o Espírito ainda

(Thales worde 640 vor Christus geboren), — seiner ernstha`testen Arbeit, eich
selbst objektiv zu werden, sich zu erkennen: Tantae molis erat, se ipsam
cognoscere mentem! (cf. Vergilius, Aeneis, I 33) .
— Hegel, Logik, II 3 (Bd. V, pág. 228): Man kann daher von der teolo-
gischen Tritigkeit sagen, dass in ihr das Ende der Anfang, die Folge der
Grund, die Wirkung die Ursache sei, dass sie ein Werden des Gewordenen
sei, dass in ihr nur das schon Existentierende in die Existenz komme, usw.
— Cf. págs. 350-351.
— F. Grégoire (cf. nota 29), págs. 130-131.
— 436 —

precisa da natureza para se poder exprimir (daí o culto grego do


belo). Em Roma, o Espírito abandona a bela união com a natu-
reza para regressar a si mesmo; mas a liberdade romana é uma
coisa abstrata, a exprimir-se num direito abstrato, impôsto pela
fôrça das armas: o homem perde a bela individualidade, mas ga-
nha a "personalidade jurídica". O Cristianismo, cujo nascimento
é o ponto central da história humana, ensinou aos homens que o
Espírito é idêntico ao Absoluto, e que o homem, por ser espírito,
participa do Absoluto. E cabe aos povos germânicos, como já vi-
mos, a tarefa histórica de concretizar e de elaborar essa mensa-
gem do Cristianismo.
Como se vê, Deus não é transcendente a governar soberana-
mente a história humana, mas se identifica com o mundo histó-
rico. Ao contrário de Santo Agostinho e de Bossuet, Hegel não
distingue a história profana da história sagrada: há sàmente uma
história que é essencialmente sagrada e divina . A história hege-
liana é a verdadeira teodicéia, a justificação de Deus. Tudo o que
aconteceu, teve de acontecer, e tudo o que teve de acontecer,
.aconteceu. O sábio que ascendeu aos altos cumes desta contem-
plação, faz as pazes com a história universal e com a vida coti-
diana (50) .

B. O MARXISMO.

§ 97. A esquerda hegeliana e o socialismo.


Logo depois da morte de Hegel, que fôra, por assim dizer, o
filósofo oficial da Prússia, dividiram-se seus discípulos em três
alas, das quais nos interessa aqui apenas a esquerda (51). Para
esta, era menos importante a doutrina idealista do mestre do que
seu método dialético, segundo o qual, — na interpretação dos "es-
querdistas", — tudo o que existe, com o tempo, se torna necessà-
Tiamente "irracional" e se altera .no seu oposto. Podia parecer uma
conseqüência lógica da filosofia hegeliana considerar o idealismo
como uma fase superada e transformá-lo em materialismo. Esta
ala aliava-se ao materialismo e ao socialismo nascente (principal-
(50) . Bege!. Philosophie der Geschichte, IV (Bd. XI, pág. 569): Dass d .e
'Weltgeschichte diesel Entwickelungsgang und das wirktiohe Werden des
Geistes ;st, unter dem wechseinden Schauspiele ihrer Geschichten, — dies ist
die wahrhafte Theodizee, die Rechtfertigung Gaites in der Geschichte. Nur
d'e Einsicht kann den Geist mit der Weltgeschichte und der Wirklichkeit
vers6hnen, dass das, was geschehen ist und alie Tage geschieht, nicht nur
nicht chne Gott, sondern wesentlich das Werk seiner selbst ist.
'(51). — A ala direita, representada por Gabler e Von Henning, sustentava o teísmo,
a imortalidade da alma individual, a divindade de Cristo, etc.; a ala inter-
mediária, representada por Gans e pelo historiador da filosofia grega E. Zel-
ler, tinha idéias panteístas; a ala esquerda (os chamados "neo-hegelianos",
por exemplo Strauss, Feuerbach, Bauer, Marx e Engels) transformava a
dialética do mestre numa máquina revolucionária contra a religião cristã e a
sociedade burguesa.
— 437 —

mente ao marxismo); outros alunos de Hegel aplicavam a dialé-


tica à Bíblia, tornando-se os fundadores da "teologia liberal". Nes-
te parágrafo esboçaremos ràpidamente as três correntes.

I. A "Alta Crítica" da Bíblia.

Reimarus fôra na Alemanha do século XVIII, o inaugurador


da crítica racionalista à Bíblia (cf. § 91 I, nota 74); nos inícios do
século XIX, outro professor alemão, H. E. G. Paulus, prosseguia
os ataques aos livros sagrados, dando uma interpretação ingênua-
mente naturalista dos milagres. Mais influentes eram três hege-
lianos: Strauss, Baur e Bauer.
D. F. Strauss (52) publicou, em 1835, "A Vida de
Jesus" (alemão: Leben Jesu), obra que teve uma enorme reper-
cussão na exegese da Bíblia. A religião era, segundo Hegel, uma
"representação" do Espírito Absoluto, suscetível de ser sublima-
da, pelo filósofo, a um "conceito" (cf. § 96 V d); reduzia-a Strauss
a um "mito",, isto é, livre imaginação humana própria de uma épo-
ca não crítica, a exprimir um conceito ideal na forma de um fato
histórico. O autor não duvida da historicidade de Jesus nem dos
fatos principais da sua vida, mas êstes foram misturados pelos
Evangelistas com elementos míticos, os quais traduzem as aspira-
ções do povo judeu a atingir a idéia de uma humanidade ideal,
unida substancialmente com o Espírito Absoluto. A tarefa prin-
cipal do filólogo consiste em separar os elementos míticos dos fa-
tos históricos; para tal, os milagres precisam ser eliminados siste-
màticamente (cf. a atitude de Renan, § 102 II).
F. C. Baur (53), exprobrando a Strauss a tendência
de transformar realidades históricas em mitos e de isolar a Bíblia
do mundo helenístico, queria insuflar nova vida à história, a qual
êle concebia em sentido' hegeliano. A Igreja Católica seria a sín-
tese do "petrinismo" e do "paulinismo": êste era helenista, uni-
versalista e "interior" (alemão: Geisteskirche), aquêle era judai-
co, messiânico, particularista e juridicista (alemão: Gesetzkirche).
O Catolicismo ter-se-ia formado no século II sob a pressão exte-
rior de várias heresias gnósticas. Dos livros do Novo Testamento
seriam autênticos apenas o Apocalipse (petrinista), e quatro Epís-
tolas de Paulo (Gal., Rom., e I-II Cor.); os demais teriam sido
escritos no século II com o fim de reconciliar os dois partidos.

. — David Friedrich Strauss (1808-1874), aluno sucessivamente de Schelling,


Schleiermacher e Hegel, escreveu "A Vida de Jesus" (Leben Jesu) em 1835,
e na sua última obra "A Antiga e a Nova Fé" (1872) professava um ma-
terialismo grosseiro.
. — Ferdinand Christian Baur (1792-1860) escreveu "Paulo, o Apóstolo de Je-
sus Cristo" (1845) .

— 438 —

c) B. Bauer (54) considerava o Evangelho segundo Marcos


como a fonte dos dois outros evangelistas sinópticos (Mateus e
Lucas), e negava (como Strauss) ao Evangelho de João (que
realça a divindade de Jesus) todo e qualquer caráter histórico,
declarando-o um produto "místico". A figura de Cristo seria a
criação, não da imaginação popular (como queria Strauss) nem
de partidos eclesiásticos (como queria. Baur), mas de Marcos, cuja
obra seria continuada, em sentido cada vez mais místico, pelos ou-
tros Evangelistas. "O mito de Jesus" não é, portanto, o produto,
mas o criador da primitiva sociedade cristã.

II . O Materialismo.
Já nos séculos XVII e XVIII, alguns folósofos tinham sus-
tentado o materialismo (por exemplo, Hobbes, na Inglaterra; d'Hol-
bach e de la Mettrie, na França). Ésse materialismo, em geral,
tributário do antigo epicurismo e favorecido pelo grande surto
das ciências físicas, tinha cunho mecanicista, isto é, o movimento
da matéria era explicado • por fatôres externos, não por uma fôrça
auto-dinâmica da matéria'. Era radicalmente determinista, isto
quer dizer, excluia sistematicamente todo e qualquer movimento
finalista da matéria.
a) Um dos iniciadores do Materialismo moderno, embora
não em sua forma vulgar (55), foi Ludwig Feuerbach (56), dis-
cípulo de Hegel. Para êste, a única realidade é a Idéia que, num
processo dialético, atinge sua plena realização no Espírito Abso-
luto; para Feuerbach, a única realidade é a matéria que, num
processo dialético, se organiza em formas cada vez mais perfei-
tas para, finalmente, atingir a consciência no homem e a plena
perfeição na sociedade humana. Hegel, embaraçado pelos casos
concretos da natureza (= "a exteriorização do Espírito"), fala na
"inadeqüação da realidade ao conceito"; Feuerbach, invertendo es-
sa tese, fala na "inadeqüação do conceito à realidade". Os dois
são racionalistas, mas Hegel segue preferencialmente o método de-
dutivo e apriorístico, ao passo que Feuerbach dá mais valor ao
método indutivo e experimental.
(54) . — Bruno Bauer (1809-1862), autor de "Um Ultimato" (1841) e muitos
outros livros, acabou por ser ateu.
" • , (55) -. Apesar de ter escrito a famosa frase: "O homem é o que come" (aia:não:
Der Mensch ist was er isst, 1850), Feuerbach combatia o materialismo vul-
gar do século XVIII (utilitar . sta e sensual), e considerava sua filosofia co-
mo a síntese do materialismo francês e do idealismo alemão. Seu "huma-
nismo absoluto" é de inspiração religiosa, sendo não a simples negação, mas
a Authebung das religiões anteriores (cf. Conste) . Feuerbach era "ateu
piedoso" (Stirne) .
(56). Ludwig Feuerbach (1804-1872), autor de "A Essência do Cristian•smo" (Das
Wesen des Christentums) (1841) e de "Noções Básicas da Filosofia do Fu-
turo" (1843), e outros livros. — Mais fêz conhecimento da primeira des-
sas obras já em 1842, leitura que o impressionou profundamente.
— 439 —

Interessa-nos aqui principalmente a crítica de Feuerbach à


religião, muito mais radical do que a de Strauss. Não é Deus que
criou o homem, mas é o homem que criou a Deus mediante um
processo psicológico de "alienação". A crença em Deus, seja Apo-
io, Wodan ou Cristo, é fruto de um sonho humano, no qual o
homem chega a objetivar ou "substantificar" sua própria essên-
cia (alemão: sein entãussertes Selbst). A essência divina não é
nada mais que a essência humana (= razão, vontade e coração)
supra-individual e objetivada. Par suite, la distinction entre l'hu-
main et le divin est illusoire: c'est simplement la distinction entre
l'essence de L'homme et l'indiviclu hurnain. L'être c'est
l'être humain délivré des limites de l'individualité, l'être humain ob-
jective, c'est-â-dire contemplé et adoré comme un être à part (57).
O homem primitivo sente vaga e confusamente o seu próprio va-
lor absoluto: o homem finito julga:se na posse do infinito; ingê-
nuamente, isto é, sem reflexão, tende a pensar conforme as leis
da razão, a agir conforme as normas da sua consciência, e a amar
conforme os impulsos do seu coração (tese) . Mas a observação
dos fatos e a reflexão sôbre os mesmos ensinam ao homem indi-
vidual a tomar consciência dos seus limites: visto que não pode
viver sem a idéia dos atributos infinitos: a Sabedoria, a Justiça
e o Amor, que são essencialmente humanos, chega a atribuir-lhes
uma existência fora de si, em um ou em mais entes divinos, per-
feitamente sábios, justos e benévolos; assim se introduz um di-
vórcio fatal entre o homem finito e a hipóstase imaginária do in-
finito (antítese) . "Deus é o ser infinito; o homem é o ser limi-
tado. Deus é perfeito; o homem é imperfeito. Deus é o eterno;
o homem é temporal. Deus é todo-poderoso; o homem é impotente,
Deus é santo; o homem é pecador. Deus e o homem são dois ex-
tremos; o primeiro é absolutamente positivo, o conjunto de tôda
a realidade; o homem é absolutamente negativo, o conjunto de
tôdas as nulidades" (58) . Mas essa fase de desmembramento de-
ve ser superada por uma síntese superior: daqui em diante, a no-
va filosofia confirmará o vago sentimento do coração (a identifi-
cação ingênua do infinito e do finito) mediante as conclusões
acertadas da reflexão racional. As ciências da natureza e uma
antropologia filosófica farão futuramente as vêzes da religião, en-
Ch. Werner, La Philosophie Moderne, Paris, Payot, 1954, pág. 209.
— L. Feuerbat,h, in Skirritliche Werke, VIII pág. 28: Die Rel:gion ist die Entzwei-
ung des Menschen mit sich selbst: er setzt sich Gott als eM ihm entgegen-
gesetztes Wesen gegenüber. Gott ist nicht, was der Mensch ist, — der Mensch
ist nicht, was Gott ist. Gott ist das unendliche, der Mensch das endliche We-
sen; Gott ist vollkommen, der Mensch unvollkommen; Gott ist ewig, der
Mensch zeitlich; Gott allmtichtig, der Mensch ohnmtichtig; Gott heitia, der
Mensch sündhaft. Gott und Mensch sind Extreme: Gott das schlechthin Po-
sitive, der Inbegriff eller Realitüten, der Mensch das schlechtweg Negative,
der Inbegriff aller Nichtigkeiten.
--- 440

Finando ao homem de que maneira poderá satisfazer às aspira-


ções infinitas do seu coração. Deus dissolve-se no homem (ale-
mão: die Aufkisung Gottes im Menschen). E o infinito não é o
homem individual, mas o gênero humano na sua totalidade: "O
homem singular por si não possui a essência do homem, nem como
ser mortal, nem como ser pensante. A essência do homem reside
apenas na comunidade, na unidade do homem com o homem, uni-
dade essa que, no entanto, só se baseia na realidade da diferença
entre Eu e Tu" (59). O humanismo absoluto ou o "antropoteís-
mo" substituirá a crença num Deus ilusório: Homo homini Deus.
"Deus foi meu primeiro pensamento, a Razão o segundo, e o ho-
mem o terceiro e o último" (60). A nova filosofia terá por tarefa
principal reconduzir o homem ao homem, e instalar o "Reino do
Homem" (cf. Comte, § 100 VI).
b) Outros materialistas da época, sem a inspiração religio-
sa de Feuerbach, eram: Jacobus Moleschott (61), Karl Vogt (62>
e Louis Büchner (63), na Alemanha; Le Dantec (64), na Fran-
ça; Mantegazza (65), na Itália. O escôpo dêste livro não nos per-
mite entrarmos na exposição dos vários sistemas (66).

III. O Socialismo.

Os primeiros decênios do século passado presenciaram o nas-


cimento de vários sistemas socialistas, reações violentas contra os
excessos de um industrialismo desumano. Êsses sistemas seriam qua-
lificados de "românticos" ou "utópicos" por Marx e Engels, porque
conservavam a crença em "idéias pré-existentes à realidade eco-

(59) . — L. Feuerbach, in Sãmtliche Werke, II pág. 318: Der einzelne Mensch für
sich hat das Wesen des Menschen weder in sich els moralischem, noch in
sich als • denkendem Wesen. Das Wesen des Menschen ist nur in der Ge-
meinschaft, in der Einheit des Menschen mit dem Menschen enthalten, —
eine Einheit, die sich aber nur auf die Realitat des Unterschieds von IcIr
Du stiitzt
(60). — Ibidem, II pág. 388: Gott war meie erster Gedanke, die Vernunft mem.
zweiter, der Mensch mein dritter und letzter Gedanke
. — Jacobus Moleschott (1822-1893), de or . gem holandesa, escreveu entre outras
obras: "O Círculo da Vida" (1852); ai encontramos expressões tais como:
"Sem fósoforo (= o elemento químico) nada de pensamento", pois: "èste é
um movimento da matéria". Tudo é matéria, e a matéria reveste-se, num
processo cíclico, de formas dif
erentes, mas sempre fica igual quanto à massa
e à energia.
. — Karl Vogt (1817-1895), autor do livro "A Fé do Carvoeiro e a Ciência"
(1855), onde lemos: "O cérebro segrega o pensamento como os rins segre-
gam a urina".
(63).. — Louis Büchner (1824-1899), autor de um livro mutíssimo popular no sé-
culo passado, intitulado: "Energia e Matéria" (Kraft und Stoff) (1854) •
(64) • — Le Dantec era um dos divulgadores das idéias materialistas e cientistas do
professor alemão E. Haeckel (1834-1919), que escreveu (1899) "Enigmas
do Universo" (WeltrZitsel), Bíblia positivista das ..:lasses semi-cultas.
— Pealo Mantegazza (1831-1910), autor de Igiene dell'Amore, e de Fisiologia.
dell'Amore (1873) .
— Cf. Pe. Leonel Franca, Noções de' História da Filosofia, Rio de Janeiro, Agir,.
1952'", págs. 197-201.,

— 441 —

nômica" e confiavam na "fôrça da persuasão" em vez de considera-


rem o triunfo do socialismo como o resultado de uma evolução
histórica necessária.
Mencionamos aqui de passagem Ch. Fourier (67), o pai
do sistema falansteriano, Saint-Simon (68), o autor do "Novo Cris-
tianismo", e Robert Owen (69), industrial escocês e reformador -
social.
Para nossos fins é mais importante Pierre-Joseph Prou-
dhon (1809-1865) autodidata e autor de inúmeras obras eloqüen-
tes, mas confusas e incoerentes, filósofo diletante e superficial, mas
polemista vigoroso e tenaz, profeta do ateísmo militante, e teólogo ,
do Progresso (70). Em 1840, participou de um concurso acadê-
mico cujo assunto era: Qu'est-ce que la propriété? Tornou-se cé-
lebre a resposta de Proudhon: La propriété, c'est le vol (71). O.
mesmo autor elaborava também uma teoria progressista sôbre a
história: Deus é o grande obstáculo ao progresso humano, o dés-
pota, o tirano, o fantasma da consciência humana: anti-civilisateur,_
anti-libéral, anti-humain (72). E' uma das mais graves obrigações-
. — Ch. Fourier (1772-1837), autor de Théorie des Quatre Mouvements et des
Destinées Générales, e de La Fausse Industrie. — Cf. R. Ruyer, L'Utopie et
les Utopies, Paris, Presses Univers'taires, 1950, págs. 217-222.
. Claude Henry de Rouvroy Comte de Saint-Simon (1760-1825), autor de
muitas obras, das quais nomeamos: De l'Industrie, Catéchisme des Industrieis,
-e Le Nouveau — O autor tinha idéias exorbitantes: julga--
va-se descendente de Carlos Magno, que lhe teria aparecido, dizendo: Depu's
que le monde existe, aucune famille n'a joui de I'honneur de produire un
héros et 'un philosophe de primière ligne; cet honneur était reserve à ma
maison. Mon fils, tes succès comme philosophe é'galeront ceux que j'ai
obtenus comme militaire et comme polit?que. Deplorando o caráter revo-
lucionário e destrutivo da filosofia do século XVIII, concebeu a idéia de
organizar a sociedade do século XIX pelas ciências (cf. Comte) . As reli-
giões históricas devem desaparecer para se instalar no mundo a rel'gião cien-
tífica. Ao lado de Deus está sentado Newton; na terra, Deus está represen- -
tado por um colégio de cientistas (le Conseil de Newton), a substituir o
Vaticano. Este conselho mundial deverá eleger conselhos nacionais, igual-
mente compostos de cientistas., Eles exercerão o novo poder espiritual. D'zia.
Saint-Simon: C'est Dieu qui m'a parle; un homme aurait-il pu inventei
une religion supérieure à toutes celles qui ont existe? — Cf. E. Gilson, Lese
Métamorphoses, etc., págs. 248-253.
. Robert Owen (1771-1858), filho de pais pobres, era, aos trinta anus. d're-
tor de uma fábrica de fiação, onde trabalhavam 2.500 operários. Para lhes
melhorar a condição, Owen fazia grandes esforços, diminuindo o horôrio dos
empregados, proibindo o trabalho de crianças, fundando lojas barateiras per-
to da fábrica, etc. Em 1818, dirigiu-se à Santa Aliança (reun'cla em Aix-
la-Chapelle) a fim de que ela elaborasse uma organização internacional do
trabalho. Fracassaram suas tentativas de fundar uma Bolsa Operária (em
Londres) como também a de criar uma colônia comunista (na América) .
Suas idéias acabaram por evolver no sentido do comunismo.
. Proudhon escreveu entre outras obras: Qu'est-ce que la Propriété? (1840);
Système des Contradictons Économiques, ou Philosophie de la Misère (1846),
obra replicada por Donoso Cortés (cf. § 92 II) e por Marx (cf. nota 77),
Philosonhie du Progrès (1852), De la Justice dans la Revolution et dans
I'Église (1858), e La Guerre et La Paix (1861) . — Cf. H. de Lubac, Prou--
dhon et le Christianisme, Paris, Éditions du Selai, 1945.
. — Já m 1780, J.-P. Brissot de Warville (1754-1793) tinha dito: Cette pro-
'priété exclusive est un del't véritable dans la nature.
. — Proudhon, Système, etc., Chapitre VIII. — O revolucionário Proudhon, um
dos pais do sindicalismo moderno, não eliminava o elemento místico da sua,
doutrina, mas queria preparar la foi nouvelle, e acabava por desacreditar sua.
própria tese originária de que "a antinomia entre Deus e o homem" lôsse.
suscetível de uma solução final e definitiva.
— 442 —

de um homem esclarecido lutar à viva fôrça contra a idéia de Deus


e da Divina Providência: défataliser le monde. Pois o Fatum, ou
— o que é, para Proudhon, o mesmo, — a Providência, é irrecon-
ciliável com a livre e consciente expansão da atividade humana.
A atividade social, possibilitada e orientada por uma filosofia prá-
tica e popular, eis a grande incumbência dos Tempos Modernos.
Philosopher pour philosopher est une idée qui n'entrera jamais dans
un esprit sain (73). A fé otimista nas possibilidades ilimitadas do
Eterno Movimento emancipará o homem, livrando-o da crença ob-
soleta na existência de um Deus pessoal. En effet, si nous appli-
cons à l'Être Suprême la condition de mouvement, de progrès...,
il va arriver que cet être ne sera plus, comme jadis, simple, absolu,
immuable, éternel, infini, en tout sens et toute faculte, mais orga-
nisé, progresSif, évolutif, perfectible par conséquent, susceptible
d'acquisition en science, vertu, etc., à l'infini. L'infini ou rabsolu
de cet être n'est plus dans Pactuei, il est dans le potentiel... Dieu
ne peut que "devenir", c'est à cette condition seulement qu'il est
. O progresso histórico efetua-se mediante crises revolucioná-
rias, cujo fim definitivo será a igualdade de todos os homens peran-
te todos. A primeira revolução, originada por Jesus, tinha caráter
religioso, e visava à igualdade de todos perante Deus. A segunda,
causada pela Reforma e por Descartes, estabeleceu a igualdade dos
homens perante a consciência e a razão. A terceira, de caráter po-
lítico, foi a Revolução Francesa, a criar a igualdade dos homens
perante a lei. Mas a quarta completará o progresso da humanida-
de, coroando-o da igualdade social e econômica. O Estado será
substituído pela oficina, o cidadão pelo produtor, e a guerra pelo
trabalho produtivo e civilizador. La politique, aujourd'hui, est de
réconornie politique: que voulez-vous que la guerre aille feire là?
.
Proudhon, anàlogamente a Heraclito e aos Estóicos, admite,
como Princípio do Movimento Eterno, la Justice, uma fôrça equi-
libradora das tendências contrárias da natureza, muito diferente
da síntese hegeliana ou marxista: é ela que dirige o Universo, é
ela o critério da nossa razão e a norma do nosso comportamento.
Elle est sentiment et notion, manifestation et loi, idée et fait:
elle est la vie, resprit, la raison universels (76) . Descobrir essa
lei imanente não poderia ser a obra de um indivíduo: é a socie-

. — Proudhon, De Ia Justice, etc., pág. 205.


. — Proudhon, Philosophie du Progrès, I 6. -o O passo revela a influência que
o pensamento .hegeliano teve sôbre o autor francês. Entretanto, Proudhon
nunca deu plena adesão ao sistema de Hegel, considerando-o "místico e alheio
ao espírito francês", e buscando um "meio-têrmo de reconc liação". — Cf.
Marx, Misère de Ia Philosophie, II (Quatrième Observation) .
. — Proudhon, La Guerre• et la Paix, II pág. 291.
— Proudhon, De Ia Justice, etc., pág. 223.
— 443 —

dade que a descobre espontâneamente, em certa fase da sua evo-


lução histórica. A ética social, relativista e humanista, é a apli-
cação da Justice à sociedade humana.

§ 98. Marx e Engels.

A essas doutrinas "românticas" ou "utópicas" CarlosJienri-


que Marx (77) opôs o seu sistema de "socialismo científico", hoje
geralmente conhecido sob o nome de "Marxismo". Talvez seja,
pouco exato o apelido, porque é sabido que Frederico Engels (78),
colaborador íntimo de Marx durante uns quarenta anos, — fato
único na história das idéias, — contribuiu muito para a elabora-
ção do socialismo científico. Respeitemos, porém, as palavras do ,
próprio Engels (79) que limitava explicitamente seu papel ao de-
um colaborador subalterno.

I . O Marxismo como Mundividência.

O Marxismo não é apenas uma doutrina social, econômica e ,


política: no dizer dos seus propugnadores, aspira ao título de mun-
dividência completa. Assim como o proletariado é o coração da
emancipação humana, dizia Marx, assim sua cabeça é a filosofia,.
e Lênin particulariza: The teaching of Marx is all-powerful be-
cause it is true. It is complete and symmetrical, offering an'in-
tegrated view of the world, irreconcilable with any reactionism,
or with any defense of bourgeois oppression. It is the legitimate-
inheritor of the best that humanity created in the 19th century
in the forme of German philosophy, English politkal economy,
French socialism (80). Também Stálin e outros representantes.

(77)• — C. li. Marx, judeu alemão (1818-1883), escreveu (1847) Misère de la


Philosophie (réplica, em francês, à obra de Proudhon, cf. nota 70; Contri-
bution to the Critique of Political Economy (1859); Capital ( I, 1867; II,
1885; III, 1894; os volumes II-III sairam póstumos); XI Theses on Feuerbach
(1845). — Em colaboração com Engels: The Holy Famly (1845, obra di-
rigida contra Bruno Bauer e outros neo-hegelianos); The Communist Mani-
festo (1848); The German Ideology (1846). Tôdas essas obras foram redi-•
gidas em alemão; nós nos servimos da tradução americana publicada 2.M Noa
Iorque pelos International Publishers, Inc. ("Marxist Library").
— F. Engels (1820-1895) escreveu: The Origin of the Fam .ly, Private Property -
and The State (1884); Anti-Dühring (1878), e Ludwig Feuerbach and 7'he
End of The Class .cal German Philosophy (1888). — Cf. nota 77.
— Engels, Feuerbach, etc., págs. 52-53: I canr2ot deny that both bafore and clu-
ring my forty years' collaboration with Marx I had 'a certain independent
share in laying the foundations, and more particularly in elaborating the-
theory. But the greater part of its leading basic principies, particularly in
the realm of economics and history and above ali, its f'naA clear formei:anon,
belong to Marx... Marx was a genius; we others were at best talented.
Without him the theory would not be what it is to-day. It therefore rightly -
bears his flama.
— Lenin, The Three Sources and Three Constituent Parts of Marxism (1913),.
in Max Eastman, Capital and Other Writings by Karl Marx, The Modera.
Library, New York, 1932, pág. XXI.
— 444 —

do marxismo ortodoxo têm frisado muitas vêzes a importância vi-


tal da "filosofia" para a ação revolucionária. E o marxista fran-
cês H. Lefèbvre chega a dizer que, hoje em dia, pelo menos na
França, se enfrentam só duas mundividências, aliás irredutivel-
mente adversárias: a católica e a marxista (81). Diante dessas
declarações solenes, não nos parece trabalho inútil examinarmos
atentamente a "mundividência marxista".

II. A Inversão da Filosofia Hegeliana.

Diz Engels: The dialectic of Hegel was placed upon its head'
(by Marx); or rather, turned off its head, on which it was stan-
ding before, and placed upon its feet again (82) . Em que' consis-
te essa inversão?

a) O Realismo.
Dissera Hegel: "O critério da realidade é o racional"; dizia.
Marx: "A norma da verdade é a realidade". Marx, acusando He-
gel de "subjetivismo" (83) ou, ao menos, de "abstracionismo" (84),
transportou o acento do "pensamento" para a "realidade extra-
mental", e essa realidade concebia-a da maneira mais concreta
possível (cf. Feuerbach, § 97 II a) . Afirmava apaixonadamente
a existência objetiva das coisas extra-mentais, e a prioridade das
mesmas sôbre nosso pensamento. Igualmente declarava ser apto
nosso intelecto para se apoderar progressivamente da realidade,
não mediante um raciocínio abstrato e apriorístico, mas por meio
de uma análise científica e experimental da realidade concreta.
The idea is nothing else than the material world reflected by hu-
man mind, and translated finto forms of thought (85). Em rigor,
esta frase poderia ser interpretada no sentido do adágio aristoté-
lico-tomista: Nihil est in intellectu, quod prius non fuerit in sensu..
Mas, na realidade, há um abismo que separa as duas afirmações:
Marx considera a matéria como a única •realidade, ao passo que o
tomista admite também a existência do 'espírito, realidade abso-
lutamente distinta da matéria.
— H. Lefèbvre, Le Marxisme (in Collection "Que Sa's-je?", Paris, Prc-sses
Universitaires, 1954, pág. 14). — O mesmo autor escreveu também: Le Ma--
tdcialisme Dialectique, Paris, Alcan, 1939. — Apreciações do Marxismo. fei-
tas por católicos, são, por exemplo, os livros de E. Boas, lntroduction au
Marxisme,. Colmar-Paris, 1954, e de M. Duquesne, Brèves Réflexions sur
l'Athellisme Marxista, Paris, Téqui, 1953.
Engels, •euerbach, etc., pág. 53. Cf. Marx, Capital, II pág. 873 (ed. Eden '
& Cedar Paul, London, 1930).
— Na realidade, Hegel não era, de forma alguma, "subjetivista"; veja F. Gré--
goire, in opere citato (cf. nota 29), págs. 69-71 e 178.
— Cf. R. Vancourt, Marxisme et Pensée Chrétienne, Paris, Bloud & Gay, 1948,
pág. 32, nota 2.
— Marx, Capital, Preface, Volume I, pág. XXX.
— 445 —

b) O Materialismo.

Dissera Hegel: "A única Realidade é a Idéia"; dizia Marx:


`A única Realidade é a Matéria"; e os dois afirmam ser absoluta-
mente necessária a existência dé tal única Realidade. O socialis-
mo científico é, no dizer dos seus inauguradores e adeptos, um
sistema nitidamente materialista, e como tal, hostil à religião e à
metafísica. Já na sua tese de doutorado, Marx tomava por divisa
do seu Prefácio esta sentença rebelde de Prometeu: "Numa pala-
vra, odeio todos os deuses" (86), e mais tarde, alegava com pleno
assentimento esta frase de Feuerbach: "Um metafísico não passa
de um sacerdote disfarçado". Mas visto que o têrmo "materialis-
mo" se presta a mais de uma interpretação (87), convêm exami-
narmos em que sentido o Marxismo deve ser considerado como
doutrina materialista.
Podemos verificar que Marx, principalmente quando jovem,
impugnava com paixão o materialismo vulgar e grosseiro, sus-
tentado por alguns filósofos franceses durante o século XVIII e
continuado, depois, na Alemanha, por Moleschott, Vogt e Büchner
(cf. § 97 II b). Êstes filósofos reconheciam apenas um movi-
-mento "mecanicista" da matéria, cego e determinista, sem finali-
dade e obedecendo a eternas leis sempre idênticas; nesta acepção
da palavra "materialismo", o movimento é uma fôrça exterior, a
afetar de fora a matéria; o que é pior ainda, o próprio fato do mo-
vimento não é explicado; e afinal, a evolução da matéria é con-
siderada como um processo quantitativo de aumento e diminui-
um processo de eterna repetição das mesmas leis. Marx, dis-
cípulo de Hegel, mas invertendo a tese do mestre, adere a um
materialismo dinâmico e dialético: o movimento é um atributo
intrínseco e necessário da matéria. II n'y a d'immuable que l'abs-
traction du mouvement: "mors immortalis" (88) . Para Marx, a
Realidade = Matéria, é cheia de contradições internas, elemen-
tos inseparáveis de uma única Realidade, os quais tendem neces-
sàriamente a reconciliar-se numa síntese superior.
As três afirmações fundamentais do "Materialismo Dialéti-
co" são estas: a Realidade = Matéria é a unidade de opostos,
cuja coexistência deve explicar o fato do movimento omnipresente e

. — Marx, in Difierenz der demokritischen und epikureischen Naturphilosophie


(tese de doutorado, 1841) . A palavra citada ó de Aes.:hylus, PlmoUheus,
975.
. — Cf. F. Grégoire, La Pensée Communiste, Louvais, 1950, III págs. 1-2 (cur-
so mimeografado sôbre as bases ideológicas do Marxismo, em 4 fascículos)
. — Marx, Misère de Ia Philosophie, II (Deuxième Observation ) .
— 446 —

imanente (89); a lei da transformação de propriedades quanti-


tativas em propriedades qualitativas, que deve explicar como o
movimento da matéria pode originar de repente algo de comple-
tamente novo (90); e afinal, a lei da negação da negação, que de-
ve explicar como a nova qualidade procede da qualidade anterior
mediante um processo necessário de finalidade intrínseca (91).
A influência de Hegel, nos três pontos, dá na vista.
Nas obras de Marx, procuraríamos em vão uma exposição
clara e metódica quanto às interrelações entre a matéria e a vida
mental; não era êle filósofo a definir com cautela escrupulosa os
termos que empregava, importando-lhe muito mais a análise cien-
tífica da realidade social e econômica como base de uma ativi-
dade revolucionária. The philosophers have only interpreted the
world in various ways; the point, however, is to change it (92).
Engels é mais explícito, chegando a dizer que o espírito é apenas
um produto superior da matéria (93) . Nenhum dos dois nega
uma certa repercussão da vida mental sôbre a matéria, mas am-
bos declaram que tôdas as "ideologias", em última análise, são ine-
ficazes diante da lei dialética da matéria, a qual forçosamente atin-
girá o seu fim. O materialismo de Marx e Engels corresponde,
portanto, perfeitamente à definição afamada de A. Comte: Le
,Inatérialisme est la tendance à expliquer (colite que colite) le su-
périeur par finférieur.
(89) . Assim o Marxismo julga poder dispensar-se de admitir um Pr:mus Motor
lmtnotus, fias cf. Ch. J. McFadden, The Metaphysical Foundations of Dia-
lectic Materialism, Dissertation Washington, 1938, pág. 120: To put it pra-
tically, albeit facetiously: two opposed buf inert elements in concreto reality
could not, of themselves, produce a confrct any more than a thousand dead
Capitalists and a million dead Communists could produce a class war. Oppo-
sites must be endowed with activity bafore they can cause conflict. E, na
pág. 117: Our first criticism of "the law of opposites" is that it does not
explain the presence of motion in matter, — it presupposes
'190) . — Também aqui podemos observar a influência de Hegel, que fala na "passa-
gem lenta e gradual" (alemão: die Allmühligkeit) de uma transformação quan-
titativa, e no "salto brusco" (alemão: der Sprung) de uma transformação
qualitativa. — Engels dá um exemplo da transformação de propriedades
quantitativas em propriedades qualitativas in AnC-Dühring, pág. 145, falando
das diversas combinações de átomos de carbônio e de hidrogênio. — Cf. Mac-
fadden, in opere citato, págs. 56-63, e 132-143.
(91). — Esta lei é a Aufhebung hegeliana; pois a síntese não aniquila simplesmente
a realidade (e a verdade) da tese e da antítese, mas destrói a opos ção exis-
tente entre elas, e "conserva" e "ergue ou sublima" a realidade (e a verdade)
nelas contida, sendo uma realidade (e verdade) superior e original. — Cf.
§ 96 UI. — Cf. também G. A. Wetter, El Materialismo Dialéctico Sovi
tico, Buenos Aires, Editorial Difusión, 1950, págs. 237-241 (orig nal italiano:
Il Materialismo Dialettico Sovietico, Torino , 1948) . Depois publicou o mes-
mo autor (em alemão) : Der dialektische Materialismus, Seine Gesch:chte und
sein System in der Sowjet-Union, Freiburg i. Br., Herder, 1953.
(92) . — Marx, Theses on Feuerbach, XI.
...(93). — Engels, Anti-Dühring, pág. 31: If the question is raised: whaf then are
thought and consciousness, and whence do they come, it becomes apparent that
they are products of the human brain, and that man himself is a product
of nature, which has been developed in and along with its environment:
whence it is self-evident that the products of the human brain, being in the
Last analysis celso products of nature, do not contradict the rest of nature,
but are :21 correspondente with it. — Cf. Engels, Feuerbach, etc., pág. 36:
Spirit is only the product of matter,
-- 447 —

c) O Ativismo.

Dissera Hegel: "A síntese final da história é a completa in-


teriorização da Idéia, devido à qual o espírito humano compreen-
derá perfeitamente o Todo Divino"; dizia Marx: "A síntese final
da história é a completa organização científica da matéria me-
diante uma incessante atividade inteligente da parte do homem".
O núcleo do sistema marxista é a consciente ação humana, secun-
dada por uma reflexão científica sôbre a matéria. Escreve Marx:
The chief defect of all materialismo up to now (including Feuer-
hach's) is, that the object, reality, what we apprehend through our
senses, is understood only in the forro of the object or contempla-
tion; but not as sensuous human activity, as practice; not subjec-
tively (94) . O homem, o ser supremo da realidade, pelo menos
para o homem (cf. Feuerbach, § 97 II a), não é apenas movido,
mas move também, modelando conscientemente a realidade não-
humana e humana, e o grau da consciência humana corresponde
ao grau do desenvolvimento da matéria. Por outras palavras: o
constante crescer da consciente atividade humana faz parte da
grande lei dialética, princípio universal do movimento da matéria.
Mediante seu trabalho consciente e inteligente (95), o homem
transforma e humaniza a natureza inorgânica, transformando-a,
por assim dizer, em seu corpo inorgânico; mas a lei dialética dêsse
trabalho quer que o homem, por humanizar a natureza, se huma-
nize também a si mesmo, tornando-se cada vez mais consciente,
inteligente e livre (96) . A consciente atividade humana cria o
mundo, e acaba por criar o homem.
Evidentemente, êsse trabalho humano não poderia ser indi-
vidual, mas é necessàriamente coletivo. Eis o quarto elemento
que deve entrar na definição marxista do homem: o homem é es-
sencialmente um ser social, existindo apenas pela e para a socie-
dade. Diz Marx: The essence of man is no abstraction inherent
in each separate individual.. In its reality it is the "ensemble"
(aggregate) of social relations (97) . E' verdade, na fase atual
da história, há uma antinomia entre o indivíduo e a sociedade,
por causa da propriedade privada, mas na futura sociedade comu-
nista, os indivíduos gozarão uma liberdade completa mediante a

. — Marx, Theses on Feuerbach, 1.


. — O homem, como "animal inteligente", é capaz de atingir a "essência" das co . -
sas, mas esta sentença de Marx deve ser interpretada em sentido positivista:
a essência, segundo êle, não é princípio metafísico de .propriedades empíricas,
e sim o nexo interno e constante entre fenômenos.
. — A "liberdade" marxista não é idêntica ao "livre arbítrio" dos tomistas (do-
minium et potestas sui actus ad opposita), mas consiste em aceitar a neces-
sidade das leis da realidade, não para pensar a realidade (como queria He-
gel), mas para a transformar.
(97). — Marx, Theses on Feuerbach, VI.
— 448 —

coletividade. O trabalho humano, — inteligente, livre e coletivo


,

-- reconciliará o indivíduo com a sociedade, assim como trans-


formará a natureza num reflexo da inteligência humana.
Para Hegel, a história humana culminava na esplêndida ci-
vilização germânica dos seus dias; Marx, com muita razão, perce-
bendo o caráter relativo dessas realizações históricas, não podia
convencer-se de que a síntese hegeliana fôsse a síntese , final, e
relegou-a para o futuro: a sociedade comunista. Também neste
ponto é pouco explícito: segundo alguns (98), teria acreditado
num progresso indefinido; atualmente seríamos apenas capazes de
predizer a vinda da sociedade comunista como síntese mais ou
menos provisória, escapando-nos por completo a evolução ulte-
rior da humanidade; segundo outros (99), — e esta opinião nos
parece mais em conformidade com os textos, — a fase comunista
é a síntese definitiva da história; a humanidade, uma vez chega-
da a êsse ponto de evolução, já não conhecerá revoluções violen-
tas, contradições internas ou antíteses dilaceradoras, mas há de
enveredar pelo caminho de uma evolução pacífica, contínua e har-
mônica. Seja como fôr, Marx julga-se •capaz de predizer, em ra-
zão de suas análises científicas da vida econômica moderna, a vi-
tória necessária do comunismo: é essa necessidade que o leva a
designar seu sistema como "socialismo científico". Mas o fato de
ser inevitável o triunfo do comunismo não condena os homens ao
papel passivo de simples autômatos: o comunismo há de triunfar
graças a um esfôrço "livre" do homem, se não do indivíduo, ao
menos da çoletividade. E êsse esfôrço "livre" se produzirá Me-
vitàvelmente no decurso dos séculos, por fazer parte da lei dia-
lética da evolução universal. Isso quer dizer também que o ho-
mem pode retardar ou acelerar "livremente" a inauguração da
sociedade sem classes e sem propriedade privada. The materia-
listic doctrine concerning the changing of circumstances and edu-
cation forgets that circumstances are changed by men and that
the educator must himself be educated. . The coincidence of the
changing of circumstances and of human activity can only be com-
prehended and rationally understood as "revolutionary practice"
(100) .

(98) . — Cf. R. Vancourt (nota 84), págs. 152-158, e H. Lefèbvre, La Marxisme, pág.
101.
(99) . — Cf. F. Grégbire, La Pensée Communiste, III pág. 26, e págs. 54-57. O autor
fr ∎ sa, ao que parece, com muita razão, que os passos em que Marx se refere
ao progresso indefinido, tratam do chamado "comun'smo negativo", hoje muitas
vêzes indicado com o tétano "socialismo" ou "ditadura do proletariado", a fase
anterior ao período final da história que é o comunismo total ou "positivo".
(100). — Marx, Theses on Feuerbach, III.
— 449 —

III. O Materialismo Histórico.

O Materialismo Histórico não é nada senão a aplicação da


grande lei dialética, base da evolução da Realidade, à história.
E' uma doutrina que tem a pretensão de explicar a totalidade do
-

processo histórico, ao qual atribui um inerente desenvolvimento


progressivo (101). Examinemos-lhe alguns aspectos.

a) O Farto Econômico e as Superestruturas.

O homem é um animal que produz bens materiais: a produ-


cão é o fato primordial e essencial da história. Segundo Marx, o
homem vem a ser homem, diferenciando-se dos animais, por co-
meçar a produzir seus próprios meios de subsistência, aliás, um
passo necessitado por sua organização física. Devido ao fato de
ser necessária para o homem a produção de bens materiais, êle
entra em contacto com a natureza inorgânica, reune-se em socie-
dades, e torna-se cada vez mais homem. The sum of these tela-
tions forms the economic structure af society, the real basis upon
which a juridical and political superstructure arises, and to which
definite social forms correspond. The mode of production of the
material subsistence, conditions the social, political and spiritual
life-process in general. It is not the consciousness of men which
determines their existence, but on the contrary it is their social
existence which determines their consciousness (102). E' claro
o sentido dessa passagem: a estrutura econômica de dada época
histórica, — e, de modo particular, — os métodos coletivos de pro-
dução, determinam-lhe necessàriamente as "ideologias" religiosas,
filosóficas, jurídicas, políticas, artísticas, etc. Elas são reflexos in-
conscientes e "epifenômenos" mais ou menos ilusórios (103) da

, Engels, Feuerhach, et-., pág. 54: The great basic thought that the world is
not to be comprehended as a complex of ready-made thing s, but as a coiss.3lex
of processes, in which the th'nes apparently stable no le- ss thals their mind-
images in our heads, the concepts, go through an ininterrupted chsnge of co-
min4 finto being and passing away, in which in spite of all seeming accidents
and of all temporary retrogression, a progressive development asserts itself irt
the end .
. Marx, Grife of Political Economy, Introduction, ed. Eastman (cf. nota 80),
págs. 10-11, e XIII. — O leitor repare na terminologia incoerente (condi-
tions e determines).
. — Marx-Engels, Manifesto (ed. Eastman, pág. 341): What else does the his-
tory of ideas prove than that intellectual production changes in character in
proportion as material production is changed? The ruling ideas of each age
has ever been the fdeas of the ruling class. — O fato de muitas pessoas acre-
ditarem na existência de "verdades eternas" durante a longa história da hu-
manidade é explicado pelos autores como uma prova de haver existido até
agora sempre um antagonismo entre as diversas classes sociais. — O Marxismo
não nega, porém, a repercussão das "ideologias" sôbre a realidade; principal-
mente a religião é um "ep . fenórneno" perigoso e atrasador, razão porque deve
ser combatida na fase atual do capitalismo moribundo, e destruída pela di-
tadura do proletariado.

Revista de História n.o 28


— 450 --

realidade fundamental, que é a estrutura econômica de certa épo-


ca. Com a aquisição de novas "fôrças produtivas" (104), os ho-
mens modificam seus métodos de produzir, e modificando-os, che-
gam a modificar também seus métodos de produção: o moinho
à mão dá origem a uma sociedade de senhores feudais, o moinho
a vapor a uma sociedade de capitalistas burgueses. Ora, os ho-
mens que organizam a sociedade de acôrdo com o grau de desen-
volvimento das fôrças produtivas de dada época histórica, conce-
bem também suas idéias e suas normas em conformidade com as
condições sociais em que se acham nesse período da sua evolu-
ção. Ainsi, ces idées, ces catégories sont aussi peu éternelles que
les relations qu'elles expriment. Elles sont des produits histori-
ques et transitoires (105). Julgar as revoluções do passado pelas
normas "ideológicas" dos seus atores seria um êrro não menos
grave do que julgar uma pessoa pelas idéias subjetivas que ela
tem de si mesma. Trata-se de desvendar, atrás dessas ideologias
passageiras, a realidade fundamental que, em última análise, lhes
dava origem: a estrutura econômica. Esta se presta a um exame
científico e exato tal como uma reação química no laboratório de
um cientista (105a).

b) As Alienações do Homem.

Dissera Hegel: "Deus não é, mas vem a ser"; dizia Marx: "O
homem não é, mas vem a ser". E assim como o Espírito Abso-
luto de Hegel se realiza mediante um processo necessário e dia-
lético de "exteriorizações" ou "alienações" relativas, assim o ho-
mem ideal de Marx vem a ser mediante um processo necessário
dialético de luta do homem contra o não-humano. Por outras
palavras, é através do não-humano que o homem se desenvolve
atinge sua plena maturidade. Só depois de ficar alienado de
si, poderá regressar a si mesmo, redescobrindo-se num plano supe-
rior, em que tôdas as aquisições de estados anteriores estarão con-
servadas e sublimadas. Nesta idéia reconhecemos fàcilmente uma
aplicação da lei triádica de Hegel.
O homem ideal, concebido por Marx, produz bens materiais
culturais em plena liberdade, e trabalha à sua completa satis-

. —As fôrças produtivas são: a fôrça física dos operários, a energia da natureza,
e principalmente os instrumentos e as máquinas. Cf. Marx, Capital, I pág.
170.
. — Marx, Misère de la Philosophie, II (Deuxième Observat'on) .
(105a) . — Cf. Engels, Feuerbach, etc., pág. 60: But while in ali earlier periods the
investigation of these driving causes of history was almost impossible, — on
account of the complicated and concealed interconnections between them and
their effects, — our present period has so lar simplified these interconnec-
tions that the riddle could be • solved
— 451 — ,

fação; contempla e utiliza prazeirosamente as obras das suas mãos;


vive em perfeita harmonia com a natureza, consigo mesmo e com
seus semelhantes. Mas o homem na fase atual da história acha-
se muito longe dêsse estado ideal: a dialética entre o senhor e o
escravo, esboçada por Hegel (cf. § 96 V a), será rematada por
Marx . O operário moderno, que com seu trabalho não cessa de
produzir novas riquezas, vive, na realidade, afastado dos seus pro-
dutos: outros os gozam, êle próprio continua a viver pobre e mi-
serável. A antinomia inerente ao sistema capitalista traz consigo
que ao enriquecimento progressivo de cada vez menos burgueses
corresponde o empobrecimento gradual de cada vez mais operá-
rios. O proletário contemporâneo vê-se forçado a oferecer seu tra-
balho como uma mercadoria: destarte o trabalho inteligente e li-
vre, que é o verdadeiro destino humano, torna-se cada vez mais um
pêso humilhante para a maior parte dos trabalhadores atuais. O
homem fica alienado, não só dos produtos do seu trabalho, mas
também do próprio trabalho que o embrutece e o transforma num
simples objeto, em vez de o humanizar e enobrecer. Também a
natureza inorgânica que incessantemente se humaniza nas obras
do operário, torna-se cada vez menos humana para o operário, de
modo que ela acaba por lhe ser hostil, negando-lhe o livre exercí-
cio das suas atividades e até os meios de sustento. Ele, por estar
condenado a trabalhar com o único fito de ganhar uma existência
elementar para si e os seus, fica alienado também da sua própria
natureza: a essência do homem, sua razão de ser é o trabalho li-
vre e inteligente, mas o trabalho degenera, para o proletário, nu-
ma dura necessidade, numa lei férrea e completamente exterior. E
finalmente, o sistema capitalista faz com que o operário viva sepa-
rado e alienado do grupo dos não-operários, os burgueses, nos quais
não pode deixar de ver uma classe de exploradores que' o tratam
como um objeto vil e como simples meio de produção. Esta fase
capitalista, tão cheia de contradições internas, muito embora seja
necessária no caminho evolutivo da humanidade, tem de "ser su-
perada" (alemão: aufgehoben werden) pela fase comunista, em que
todos os homens produzirão tudo livre e inteligentemente para
todos.
• Mas além dessas alienações diretas do trabalho existem outras
indiretas, não menos funestas para a plena expansão das faculda-
des humanas, ainda que sejam igualmente necessárias: são as alie-
nações ideológicas, das quais mencionamos aqui a religião, a meta-
física, a moral, o Estado e a família.
L. Feuerbach tinha reduzido o fenômeno da religiosidade hu-
mana a um processo psicológico de alienação (cf. § 97 II a). Marx
— 452 —

ia mais longe. Não humanizava a religião (como Feuerbach e


'Strauss), nem a repudiava simplesmente (como Bauer), mas con-
cebia uma futura situação histórica, — a vir necessàriamente, —
em que seria absolutamente impossível surgir qualquer forma de
religião (106) . Pois o mundo atual é um "mundo invertido", em
que os produtos das mãos humanas (as mercadorias) bem como
os produtos das cabeças humanas (as ideologias) se tornam ver-
dadeiros tiranos da humanidade em vez de os dominarem livre-
mente os homens: ou, para falarmos na terminologia marxista, são
'feitiços" (107). A estrutura econômica das diversas épocas his-
tóricas tem sido muito deficiente até agora, cheia de antinomias
internas e profundas, de modo que os homens não têm consegui-
do satisfazer às suas necessidades autênticas. Eles, conscientes
dêste fato, mas ignorando de que modo poderiam remediar sua
miséria, chegam a imaginar um mundo melhor, que lhes possa dar
a ilusão de bem-aventurança perfeita no além-túmulo e consôlo
na vida terrestre. Pela religião o homem projeta o mundo sub-
jetivo dos seus desejos frustrados num mundo imaginário de per-
feita justiça, bondade e felicidade. La religion est le soupir de la
créature accablée par le malheur, l'âme, d'un monde sans coeur,
de même qu'elle est l'esprit d'une époque sans esprit. C'est l'opium
üu peuple (108). E evidentemente, torna-se um instrumento de
exploração do povo nas mãos da classe dominadora e opressora;
na sociedade vindoura, não terá cabimento.
A metafísica (109) e a moral "burguesa" são igualmente pro-
dutos acessórios de certa época histórica que ainda não conseguiu
livrar-se das alienações do trabalho humano. Entretanto, o Mar-
xismo, apesar de considerar a moral vigente como uma superes-
trutura, não abandona inteiramente um ideal absoluto: o de li-
bertar o homem das suas inúmeras alienações; além disso, o ideal
moral do Marxismo exige dos seus adeptos paciência, submis-
. — A não ser a religião do homem divinizado (cf. o antropoteísmo de Feuerbach);
Marx, porém, é muito menos lírico do que seu predecessor, e não fala na
apoteose da humlanidade. Contudo, escreve a Hardmann: La religion des
travailleurs est sans Dieu, parte qu'elle cherche à restaurer la divinité de
rhomme (apud H. de Lubac, Le Drame de l'Athéisme Athée, Paris, Spes,
1945 ,', pág. 38) . •
. — A palavra "feitiço", de origem portuguêsa, foi descoberta pelos etnólogos
na costa ocidental da Africa, e entrou na linguagem científica sob a forma
afrancesada de "feticho" (francês: fetiche) . Um "feitiço" é qualquer objeto
considerado por povos primitivos como a sede de fôrças sobrenaturais.
, . — Marx, apud H. de Lubac (cf. nota 106), pág. 36. — O ditado: "A religião
é o ópio do povo", não tinha originár'amente o significado de ser a religião
uma droga narcótica, fabricada e ministrada pelos exploradores do povo
(= sacerdotes), como o queriam um Fontenelle e um Voltaire ou como, hoje
em dia, é muitas vêzes interpretado por comunistas militantes; significava an-
tes que a religião sopita os desejos frustrados de um povo explorado. — Lênin
fêz gravar essas palavras na porta do Cremlim, onde antigamente havia uma
icone muito venerada pelo povo russo.
. — Ao combater a metafísica, Marx tinha principalmente em vista o idealismo
• de Hegel. — Cf. também supra, II b.
— 453 ---

são, e até sacrifcício de abnegação heróica. Se o homem agir


conscientemente em vista dêste derradeiro fim absoluto, sua ati-
vidade será "moral", segundo a concepção marxista, quaisquer que
sejam os meios empregados. A esta ética, como a tantos outros.
si stemas modernos de moral, falta completamente a verdadeira no-
ção de obrigatoriedade que consiste em reconhecer o homem cria-
do a relação ontológica da sua dependência total de Deus, seu .
Criador. E a moral marxista não hesita em sacrificar impiedosa-
mente o homem concreto do presente ao homem abstrato e ide3i
do futuro (110) .
O Estado, outra alienação de uma época contraditória, não ,
passa, na fase atual, de um meio de coerção: Political power, pro-
perly so called, is merely the organized power of one class for
oppressing another (111). E a família? On what foundation is the
present family, the bourgeois family, based? On capital, on pri-
vate gain. In its completely developed form, this family exists
only among the bourgeosie (112), evidentemente com o fim de
garantir que o capital, adquirido pelos pais, possa passar segura-
mente para os filhos (113).

c) A Luta das Classes (114).

The history of all hitherto existing society is the history of


olass struggles (115). Essa luta de classes se realiza conforme
a lei dialética de tese, antítese e síntese. Destarte poderíamos
dividir a história humana, — que é essencialmente econômica, —
em três grandes períodso: o Comunismo Primitivo (tese), a Pro
priedade Privada (antítese) e o Comunismo Moderno (síntese) .
E do mesmo modo que, no sistema hegeliano, cada uma das três
fases fundamentais da evolução da Idéia (Idéia Pura, Natureza e
Espírito) é subdividida em inúmeras tríades secundárias, assim
os três períodos históricos de Marx se subdividem em várias fases •
,subalternas.
O Comunismo Primitivo é a fase inicial da história humana,
ou pelo menos a primeira que nos seja investigável. O homem
produz pouco, possuindo uma técnica muito elementar; pràtica-
mente, não existe uma divisão do trabalho, a não ser uma divisão
muito rudimentar entre os dois sexos. Nenhum indivíduo possui
. — Para a ética marxista, cf. Vancourt, in opere cifato, págs. 251-272, e F.
Grégoire, La Pensée Communiste, IV págs. 60-67.
. — Marx, Manifesto (ed. Eastman), pág. 343.
. — Ibidem, pág. 339.
. — O casamento é estudado com mais serenidade e profundidade por Engels, no.
livro Origin of The Family, Private Property and The State (1884) .
. — Quando Darwin lançou sua famosa teoria de struggle for life (cf. § 103 III
b), Marx saudou nele um aliado natural.
„' — Marx-Engels, Manifesto (ed. Eeastman), pág. 321.

4
— 454 —

pessoalmente os meios de produção, de modo que ninguém força


outras pessoas a trabalharem para si; quem os possui, é a família
ou, mais tarde, o clã, a viverem sob o regime patriarcal de um pa-
ter famílias ou de um chefe primitivo. Each is owner of the ins-
truments which he or she makes and uses: the man of the wea-
pons, the hunting and fishing irnpfements, the woman of the hou-
sehold gear. The housekeeping is communál among several and
often many families. What is made and used in common is com-
mon property, — the house, the garden, the long-boat (116) .
Mas o homem, animal inteligente, aprende a domesticar va-
cas e cavalos, inventa a agricultura, a fundição de bronze, a fia-
ção, o tear, e numerosos outros instrumentos. A êsse progresso
da técnica corresponde uma divisão progressiva do trabalho. Os
proprietários dos meios de produção forçam os have-nots a tra-
balharem para si. Esta fase antitética da história pode ser sub-
dividida em três grandes períodos: o regime da escravatura, o re-
gime feudal e o regime capitalista . Sucedem-se êsses três regimes
porque, no fim de cada um dêles, as fôrças produtivas da socie-
dade entram em choque com os vigentes métodos de produzir,
e assim se tornam inevitáveis revoluções. As massas oprimidas
tornam-se conscientes do seu poder, aliam-se contra a classe opres-
sora, vencem-na e passam a ser, por sua vez, a classe opressora
(117). Foi o que se verificou, por exemplo, nos fins da Idade
Média, quando os burgueses conseguiram emancipar-se do jugo
feudal para se metamorfosear, aos poucos, nos capitalistas moder-
nos, os reis absolutos da sociedade contemporânea . Vista na sua
totalidade, a fase da Propriedade Privada, apresenta-nos um de-
senvolvimento constante dos meios técnicos e um aumento imen-
so de riquezas, ambos em oposição flagrante à pobreza rudimen-
tar do Comunismo Primitivo. Mas sua contradição interna reside
na acumulação cada vez maior dessas riquezas enormes nas mãos
de número cada vez menor de capitalistas: os que trabalham tor-
nam-se cada vez mais pobres, e os que não trabalham tornam-se
cada vez mais ricos.
A síntese final será o Comunismo que, longe de constituir
um simples regresso ao Comunismo Primitivo, será uma fase ori-
ginal, a conservar e a sublimar as aquisições das épocas anterio-
res. Aí todos trabalharão, e todos serão proprietários coletivos dos
. — Engels, Origin, etc., Chapter IX.
. — Marx, Critique of Political Econorny (ed. Eastman, pág. 11): At a certain
stage of ther development the material productive forces of society come
into contradiction with the existing production-relations, or what is merely
juridical expression for the same thing, the property relations within which
they have operated before. From being forms of development of the pro-
ductive forces, these relations turn into fetters upon the2r development. Then
comes an epoch of social revolution.
-- 455 —

meios de produção. A síntese comunista reconciliará harmônica-


mente as vantagens da tese (o trabalhador confunde-se com o
proprietário) e da antítese (o incremento enorme dos meios de pro-
dução e das riquezas), eliminando, ao mesmo tempo, as desvan-
tagens próprias de cada uma delas: a pobreza coletiva, da tese,
e a exploração de um indivíduo humano por outro, da antítese.

d) O Proletariado (118).

Marx julga que o período capitalista, justamente por intensi-


ficar imensamente as alienações do homem, está no fim da fase
antitética da história humana: seu desenvolvimento, por mais im-
pressionante que pareça, tem de provocar a revolução dos deses-
perados, a qual levará a causa do comunismo ao seu triunfo defi-
nitivo. The development of Modern Industry, therefore, cuts from
under its feet the very foundation on which the bourgeosie pro-
duces and appropriates products. What the bourgeosie therefore
produces, above ali, are its awn grave diggers. Its fali and the
victory of the proletariat are equally inevitable (119) .
Nas revoluções anteriores, por exemplo na revolta da burgue-
sia medieval contra a aristocracia feudal, subsistia sempre uma
terceira classe, — a dos pequenos burgueses, — a mitigar, até
certo ponto, as oposições entre os vencedores e os vencidos. No
sistema capitalista, a sobrevivência de uma classe intermediária é
iMpossível. Ao enriquecimento ininterrupto de número cada vez
menor de capitalistas está necessàriamente ligada a pauperização in-
cessante de todos os outros, de modo que a humanidade fica divi-
dida em dois campos hostis: os capitalistas e os proletários. Of
ali the classes that stand face to face with the bourgeosie today,
the proletariat alone is a really revolutionnary class. The other
classes decay and finally disappear in the face of modern indus-
try; the proletariat is its special and essential product (120). Aos
proletários, — uma classe eminentemente revolucionária, — ca-
be uma missão messiânica na grande tarefa histórcia de criar um
mundo humano, sem alienações. Proclamara Sieyès, nos dias da
Revolução francesa: Qu'est-ce que le Tiers Etat? Rien! Qu'est-ce

. — Na antiga Roma, os proletarii constituíam juntamente com os capite censi


uma das 5 centuriae infra ciassem, em oposição aos chamados assidui. —
Cf. Aulus Gellius, Noctes Atticae, XVI 10: Proletariorum tamen ordo ho-
nestior aliquanto, et re et ~line quam capite censorum fuit; nam et asperis
rei publicae temporibus, cum juventutis inopia esset, in militiam tumultuariam
legebantur armaque iis sumptu publico praebebantur; et non tapitis censione,
sed prosperiore vocabulo a numere offic;'oque prolis edendae appellati sunt:
quod, cum re familiari parva minus possent rem publicam juvare, subolis ta-
men gignendae copia civitatem frequentarent. — Etimologia discutida.
. Marx-Engels, Manifesto (ed. Eastman), pág. 334.
. — Ibidem, págs. 331-332.
— 456 ---

qu'il doit être? Tout! Dizia Marx que le quatrième état, — o pro-
letariado, — era predestinado a tornar-se tudo justamente por
ainda não ser nada. O operário atual, simples mercadoria, viven-
do alienado dos produtos do seu trabalho, da natureza, da socie-
dade e do próprio trabalho; o operário completamente desumani-
zado e embrutecido pelo capitalismo, tem a função dialética de ,
criar o homem ideal do futuro: o homem coletivo. O proletaria-
do, em virtude de não defender interêsses particulares, é a classe
privilegiada que traz em si os germes do vindouro "homem• uni-
versal": através do proletariado a humanidade inteira chegará ao
seu grandioso destino e ao têrmo final da sua evolução histórica,.
em que o homem individual viverá completamente reconciliado
com seu trabalho, com a natureza e com a sociedade.
Antes de se poder iniciar a fase final da história, será necessá-
rio inaugurar, como fase de transição, a ditadura do proletariado,.
muitas 'vêzes chamada: a fase socialista, da qual o mundo moder-
no, desde 1917, possui um exemplo na União Soviética da Rússia..
O proletariado vencedor estabelecerá uma ditadura imposta pela
fôrça, e desapropriará todos os meios de produção, antigamente ,
na posse de poucos capitalistas, para pô-los a serviço de um Es-
tado•totalitário. Este fiscalizará e dirigirá tôda a vida social e eco-
nômica. Todos deverão trabalhar, e cada um receberá um salário
conforme o valor do trabalho realizado: a remuneração deixará_
de ser uma esmola. O indivíduo, já não podendo explorar o tra-
balho de outrem, pelo fato de tôda a produção industrial e agrí-
cola pertencer ao Estado, ficará acostumado a trabalhar e a com-
portar-se como membro da coletividade. Ao Estado socialista ca-
berá reprimir dràsticamente tôda e qualquer tentativa "reacioná--
ria" de restabelecer o regime burguês. Sendo necessário, não 3e
absterá das medidas, mais enérgicas para extirpar radicalmente os,
resíduos subsistentes do período capitalista, e as diversas ideolo-
gias nocivas (principalmente a religião).
Mas êsse regime de socialismo estatal há de terminar, — não
se pode predizer com exatidão, quando. Com o desaparecimen-
to das antigas classes sociais e com a morte das ideologias supe-
radas, finar-se-á também o Estado, e aí: society (may) inscribe
on its banners: "From everyone according to his faculties, to eve-
ryone according to his needs" (121) . Estarão extintos os últimos,
vestígios da Propriedade Privada e, conseguintemente, da explo-
ração econômica e de tôda e qualquer discriminação social. To-
dos serão operários, e todos serão proprietários; o trabalho inteli-
gente e livre não será um simples meio de' viver, mas uma neces-
(121) . — Marx, The Criticism of The Gotha Program (ed. Eastman), pág. 7.
— 457 —

sidade vital, sentida è estimada por todos; haverá abundância de-


produção, e todos poderão satisfazer às suas necessidades mate-
riais e culturais; a humanidade poderá dedicar-se ao estudo dos
problemas verdadeiramente humanos sem ser incomodada pelas
contradições de outrora . In placa of the old bourgeois society,.
with its classes and class antagonisms, we shall have an associa-
tion in which the free development of each is the condition for
the free development of all (122) . O Paraíso Terrestre, na con-
cepção marxista, não está no início, mas no fim da história hu-
mana .
IV. Observações Críticas.
As Teorias Econômicas.
Ao analisar a estrutura da sociedade capitalista, Marx ela-
bora várias teorias econômicas, algumas das quais já vimos. Por
mais importantes que elas sejam para a compreensão do seu sis-
tema, interessam só indiretamente ao historiador: levar-nos-ia mui-
to longe se entrássemos na exposição e na discussão das mesmas.
Basta assinalarmos aqui as principais teses: o valor de uma mer-
cadoria depende exclusivamente do trabalho requisitado para fa-
bricá-la; a lei da mais-valia (123); a teoria das crises periódicas,
que se vão agravando progressivamente; a teoria da concentração
gradual de tôdas as riquezas nas mãos de poucos capitalistas, fe-
nômeno inevitável a que corresponde o processo necessário de pro-
letarização e de pauperização das massas operárias. E' um estudo
interessante para o historiador o de investigar até que ponto se
cumpriram as profecias econômicas de Marx. Muitos entendidos
consideram-nas desmentidas pela evolução contemporânea do ca-
pitalismo. Remetemos o leitor, para essas e semelhantes questões,
a trabalhos especializados (124).
Insuficiências e Incoerências do Sistema.
Tampouco nos demoraremos muito em expor como é incom-
pleta a resposta do Marxismo aos problemas viscerais da humani-
dade, remetendo o leitor aos estudos já citados de Grégoire, Mcfad-
. — Marx-Engels, Manifesto (ed. Eastman), pág. 343.
. — A mais-valia é o excesso de lucro do capital sta em detrimento do operário;
o industrial paga-lhe apenas o necessário para êste poder viver e procriar
nova geração de "proletários"• mas o trabalho do operário, — considerado por
Marx também como "mercadoria",' no regime atual, — dá muno mais lucro,
e êste excesso vai-se acrescentando cada vez mais ao capital.
. — Cf. F. Grégoire, Le Pensée Communiste, III págs. 60-71. Marx, por exemplo,
não previu o papel importantíssimo do "sindicalismo" atual, nem a diferen-
ciação moderna do operariado, nem o "trabalhisrro" (tal como existe, por
exemplo, na Inglaterra, nos países escandinavos, na Holanda, etc.) . Tampouco
previu a evolução interna do capitalismo que, hoje em dia, se transforma cada
vez mais em "gerentocracia", isto é, num domínio dos manegers.
— 458 —

den e Vancourt, e a um trabalho de Chr. Dawson (125) . Chama-


mos a atenção para urna contradição interna do materialismo his-
tórico: a matéria, tal como a concebe Marx, não é substrato bruto
ou inerte, mas princípio altamente ativo e vivo, em que, ao que
parece, fica integrada tôda e qualquer manifestação do espírito
(o qual, contudo, não passaria de um reflexo da matéria) . Diz o Pe.
Sertillanges: Donner et retenir ne vaut. Esprit, ou matière? II faut
choisir. II est bien facile de se passer de l'esprit, après l'avoir in-
corpore à la matière. Et quand ensuite on tire de fesprit, reflet
prétendu de la matière, tout ce qui se place sous le nom de civi-
lisation, on doit convenir qu'on avait commencé par enrichir la
matière de tout cela, et que c'est pour cette raison qu'on l'y retrou-
ve (126) .
Outro perigo a que fica exposto o Marxismo, é esta incoerên-
cia: se não há verdades eternas, mas apenas ideologias passagei-
ras, determinadas, em última análise, pela estrutura econômica de
cada sociedade histórica, será que também o materialismo históri-
co, reflexo da época final do capitalismo, não está condenado a desa-
parecer? Essa questão, muito discutida entre os adeptos e os adver-
sários do sistema, não pode ser exposta aqui: as soluções (e as es-
capatórias) são diferentes (127) .

V. Elementos Místicos.

Parece-nos mais importante assinalar uns elementos "místicos"


no socialismo pretensamente "científico". Com efeito, o poder aqui-
sitivo do comunismo não reside, para a grande maioria dos seus par-
tidários, nas suas doutrinas econômicas, muitas vêzes pouco conhe-
cidas e freqüentemente superadas, nem na sua filosofia materialis-
ta, geralmente desmentida pela atitude idealista dos seus seqüazes
convictos, e sim nos seus elementos místicos: a indignação moral
contra as injustiças da sociedade moderna que bradam aos céus, a
apreciação quase religiosa do papel messiânico do proletariado, e a
visão apolíptica do futuro. Com muita razão diz F. J. Sheed:
Communism is almost never discussed calmly±. . Now, if Can-um
nism were merely an economic system, this would hardly be so.
lf there is a defect in it, it is to everybody's interest (itS advocates
included) that this should be discovered. But in the advocate ol
Communisrn, the mere hint ai a criticism produces an instante emo-
tional reaction more proper to a religious than to an economic dia-

. — Chr. Dawson, Relig'on and The Modern State, New York, 1936.
. — A.-D. Sertillanges, Le Christianisme et les Philosophies, Paris, Aubier, 1941,
II, pág. '220.
. — Cf. R. Vancourt (in opere citato), págs. 225-249.
— 459 —

cussion (128). Para muitos contemporâneos, o Marxismo se torna


uma espécie de religião: uma causa sagrada que lhes parece mere-
cer os maiores sacrifícios pessoais; um ideal empolgante que lhes
parece dar significado a uma vida outrora absurda, trivial e incolor;
uma verdade triunfantemente superior, capaz de esmagar as menti-
ras e as atitudes farisaicas da sociedade "burguesa". Pois, infeliz-
' mente, o mundo atual, — pràticamente ateu, — revela muitas vê-
zes menos idealismo do que os materialistas ateus inspirados por
Marx: ao passo que aquêle, — o mundo burguês, — morre daquilo
que afirma hipÓcritamente, êstes, — os comunistas, — vivem da-
quilo que negam: o espírito. O Marxismo transforma-se numa ver-
dadeira "soteriologia" humanista, urna nova religião, a possuir seu
templo na fábrica, seu altar na máquina, seu sacerdote no técnico,
e sua Bíblia nos escritos de Marx, Engels, Lênin e outros autores
"ortodoxos". E essa inspiração pseudo-religiosa já se encontra na
obra de seu fundador, o judeu Marx.
Marx contrapõe com firmeza seu sistema "científico" aos
sonhos ilusórios dos "utópicos", e ridiculariza os "sentimentalistas"
que se esforçam por melhorar a situação do operariado dentro do
regime capitalista: ufana-se de ter descoberto a "lei férrea" da
evolução humana. Seria só uma conseqüência lógica da sua dou-
trina, se considerasse corno elementos necessários, 'úteis e até bons
os capitalistas exploradores das massas, pois êles contribuem po-
sitivamente, ainda que não o saibam nem o queiram, para a vitó-
ria do proletariado: quanto mais intensas se tornam as antino-
mias, tanto mais se acelera o desmoronamento da classe podre.
Marx porém, não os considera como elementos bons. Pelo contrá-
rio, embora declare estar insento de preconceitos morais "bur-
gueses", fala sempre no tom de quem desafia, acusa e protesta, em
"opressores, tiranos e tubarões", têrmos pouco calmos na bôca de
um cientista. Sua indignação moral, pôsto que não seja choramin-
gueira, é autêntica, e explica-se, não por seu materialismo dialé-
tico, e sim por sua sêde de justiça social. Uma figura. como Marx,
acusador intrépido da exploração humana, seria inconcebível na
Antigüidade clássica: sua inspiração deve muitíssimo às invectivas
dos antigos profetas israelitas contra a injustiça (129) e ao am-
biente histórico do mundo ocidental, impregnado de muitos sé-
culos de Cristianismo.
Outra característica judia de Marx é seu messianismo:
o proletariado moderno é a única classe não manchada pelos pe-
. — F. J. Sheed, Communism and Man, London, Sheed & Ward, 1946, pág. VII.
- O caráter místico do marxismo é bem relevado no livro interessantíssimo
de Ignace Lepp, Itinéraire de Karl Marx à Jésus-Christ, Paris, Aub:er, 1955.
. — Principalmente nos Salmos e nos livros proféticos de Amós e Oséias, cf. John
I4. Randail, La Formación del Pensamiento Moderno, Buenos Aires, Editorial
Nova, 1952 (trad. esp. de J. A. Vázquez), págs. 43-46.
— 460 --

cados econômicos do passado, e por isso será digno de desempe-


nhar um papel messiânico para tôda a humanidade. A verdade do
proletariado de hoje será a verdade de todos os homens de ama-
nhã. Os operários são o novo povo eleito, que há de estabelecer
no mundo o reino da paz e da justiça. Por promover o ódio entre
as classes sociais à categoria de princípio de progresso histórico,.
Marx inverte cabalmente a doutrina evangélica de amor fraternal
e de solidariedade universal. Mas, assim procedendo, trai também
sua descendência judia: os burgueses de hoje são os inimigos na-
turais e detestados do proletariado moderno como o eram os gen-
tios abominados do antigo povo eleito.
c) Ao descrever os benefícios da fase final da história, Marx,,
apesar de ser prudentemente reservado neste ponto, é profeta visio-
nário, prosseguindo a tradição apocalíptica do povo israelita . Ao.
expor as delícias da sociedade vindoura, — é verdade, com muito
menos lirismo do que Feuerbach ou Comte, — não fala em bens
materiais ou em prazeres vulgares e grosseiros, e sim em realiza-
ções, sumamente humanas. E' sempre em vista do futuro "homem
ideal" que acoima as misérias do homem atual, alienado, explora-
do, escravizado, em suma, desumanizado. O novo homem será in-
teiramente livre, podendo criar livremente tudo de que precisar
para satisfazer 'às suas necessidades verdadeiramente espirituais; :

possuirá sua personalidade íntegra, e viverá em perfeita harmonia


com a natureza e a sociedade; será completamente consciente de
si e de suas fôrças criadoras, sendo soberano ilimitado e, ao mesmo
tempo, colaborador humilde. O acorde final do materialismo his-
tórico não é um materialismo repugnante, mas o cumprimento das
aspirações mais nobres do coração humano.
Nem é de estranhar que o povo russo. com sua sêde de justiça
social, com seu messianismo secular; com sua visão apocalíptica da
história, seja material excelente para a experiência comunista.

§ 99 . Do Marxismo ao Bolchevismo .

Já Marx e Engels viam-se obrigados a impugnar várias inter-


pretações pouco "ortodoxas" da sua doutrina . Alguns revolucioná-
rios apregoavam ser necessária a liqüidação total do passado para
a reconstrução do mundo; outros queriam que a emancipação do
proletariado se processasse, não por uma revolução violenta, e sim
por mèios legais; outros ainda atribuíam valor autônomo à religião
(130) ou à vida nacional (131); outros, finalmente, se limitavam

(130) . — Por exemplo o socialista belga Hendrik de Man, autor de Au delà du


Marxisme (Bruxelles, 1927) e de outros livros.
(131). — Principalmente os franceses sob a influência dos chamados radicaux-sucialistes
(desde 1903).
— 461 —

.a exigir a execução de certas medidas sociais e econômicas, conti-


das no Manifesto, renunciando, porém, à luta das classes e à mun-
dividência materialista. E' a história interessante do• Anarquismo,
Comunismo, Socialismo, Trabalhismo (132), Revisionismo, Bol-
chevismo (133), etc., que não podemos acompanhar nestas páginas.
Consagraremos apenas algumas palavras às três ou quatro Interna-
cionasi que se sucederam, e ao Bolchevismo.

I. As Internacionais.

Houve três (ou quatro?) Internacionais.


Os Estatutos da Primeira foram elaborados por Marx
(Londres, 1864) . De caráter puramente internacional, servia de
modêlo para a organização de grande número de sindicatos, nacio-
nais que, antes de 1864, ainda não existiam na maior parte dos paí-
ses participantes. Desde o comêço, Marx tinha de enfrentar a opo-
sição do socialista Proudhon e, a partir de 1869, a do anarquista
russo Bakunin (cf. § 99 II a) . Tornaram-se patentes as antino-
mias na Conferência em Haia (1872), onde houve um "cisma": a
sede foi transferida para Nova Iorque, o que praticamente signi-
ficava o fim das atividades da Primeira Internacional, que expirou,
oficialmente, em 1876.
A Segunda Internacional foi fundada em Paris por oca-
-sião do Primeiro Centenário da Revolução francesa (1889) . Engels,
apoiado principalmente pelos socialistas alemães, tomava parte ativa
do movimento até o ano da sua morte (1895) . O dia 1.0 de maio
foi proclamado "Dia do Trabalho" (desde 1889) . Não tardaram
, em surgir dificuldades para o bom funcionamento da Segunda In-

ternacional, devidas principalmente à rivalidade entre os repre-


sentantes da França e os da Alemanha, como também à atitude
reservada e neutra da . Inglaterra. Muitas questões espinhosas di-
vidiam os espíritos, por exemplo: qual a atitude que os sindicatos
-deviam tomar em caso de um conflito armado entre as nações?
(134) . A sede da Segunda Internacional foi transferida, em 1900,
para Bruxelas, e em 1915, durante a Primeira Guerra Mundial,

<132) . — Em 1903 fundaram Keir Hardie e outros socialistas inglêses o Labour Party,
partido isento do Marxismo doutrinário; na segunda metade do século XIX,
a Inglaterra possuía uma legislação social mais avançada do que a maior parte
dos outros países europeus; as Igrejas tinham sido muito ativas entre os
operários (o Cardeal Mann'ng, os anglicanos Maurice e Kingsly, etc.); e
afinal, a índole prática do povo britânico é avêssa ao doutrinarismo no ter-
reno político e social. Esses e outros motivos podem explicar o fracasso do
Marxismo na Inglaterra.
.(133) . — Cf. G. A. Wetter, O Materialismo Diallctico Soviético (nota 91), passim;
e N. Berdyaev, The Origin of Russían Communsim, London, 1934.
(134). — Os líderes socialistas, reunidos em Bruxelas (julho de 1914), aprovaram quase
unâninemente uma resolução no sentido de votar contra os créditos de guerra;
uma vez chegados à sua pátria, quase todos capitularam. A natureza é mais
forte do que a doutrina!
— 462 —

para Haia . Em 1919, os socialistas moderados tentaram ressuscitar


a Segunda Internacional (Amsterdão) .
c) No mesmo ano foi fundada em Moscou a Terceira In-
ternacional, dirigida pelas bolchevistas do Krémlim, a chamada
Komintern. Foi abolida, em 1943, por Stálin quando da Segunda
Guerra Mundial. Ressurgiu, embora com nome diferente, na Con-
ferência de Varsóvia, em 1947 (a chamada Kominform).

II. O Bolchevismo (135) .

a) Miguel Bakúnin (1814-1876), aristocrata russo, era mais


anarquista do que marxista. Sua divisa era: "Destruir é um ver-
dadeiro ato criador". Participava de quase tôdas as revoluções eu-
ropéias nos meados do século passado, sobretudo da "Comuna" em
Paris (1870) . Possuía principalmente influência nos países eslavos
e latinos que, segundo Marx e Engels, ainda estavam pouco madu-
ros para o "socialismo científico", e seu caráter emocional devia-o
levar em conflito com os fundadores do Marxismo. O radicalismo
da sua convicção fanática revela-se neste passo do seu Catéchisme
du Révolutionnaire: Le révolutionnaire est un homme condamné
d'avance; il n'a ni intérêts personnels, ni affaires, ni sentiments, ni
attachements, ,ni propriété, ni même de nom. Tout en lui est ah-
sorbé par un seul intérêt, une seule pensée, une seule passion: Ia
révolution (136) .
b) Quem introduziu o Marxismo na Rússia, foi Giorgi Ple-
chánov (1857-1918) . Apesar de pertencer ao partido dos "men-
chevistas", passa por um dos autores clássicos da doutrina marxista
(137) .
e) Os "menchevistas" (138) constituíam a ala derrotada pe-
los "bolchevistas" no Segundo Congresso Nacional dos comunistas
russos, reunidos primeiro em Bruxelas, e depois em Londres (1903).
A diferença entre as duas alas, originàriamente apenas uma questão
de divergência sôbre os Estatutos, acabava por culminar nesta al-
ternativa: a Rússia, país atrasado e feudal, deve transformar-se
num país industrializado antes de poder tentar uma revolução so-

. — No Capítulo VII deste livro tornaremos a falar sôbre a origem e a evolução


do movimento revolucionário na Rússia.
. — Apud E. Porret, Berdiaeff, Prophète des Temps Nouveaux, Neuchatel-Paris,
1951, pág. 22.
. — Escreveu entre outras obras: Anarquismo e Soc'alismo (1894), e Os Proble-
mas Básicos do Marxismo (1909) . Pleohánov e Lênim redescobriram o
caráter dialético e "ativista" do Marxismo, que ameaçava degenerar em puro
determinismo.
(138) . — A palavra russa "menchevista" significa: "membro da - minoria", a palavra
"bolchevista" quer dizer: "membro da maioria". A esses dois termos, que
originàriamente designavam apenas uma diferença quantitativa, foi-se aliando,
com o tempo, uma noção qualitativa, a saber: "maximalistas, superiores, ra-
dicais", etc. (para os bolchevistas), e "minimalistas, inferiores, oportunistas",
etc. (para os menchevistas) . •
— 463 —

cialista (era o parecer dos menchevistas, liderados por Mártov),


ou deve ser revolucionada desde já, sem que precise passar pela
fase capitalista (era a opinião dos bolchevistas, liderados por Lê-
nin)? Lênin, homem de energia férrea, frisava a necessidade de
urna intervenção humana no processo da emancipação dos prole-
táriso, e propagava a ditadura, não do proletariado (que, prática-
mente, ainda não existia na Rússia), mas da idéia do proletariado,
concretizada num Partido. O Partido seria a vanguarda do prole-
tariado, e seria composto de revolucionários profissionais, subme-
tidos a uma disciplina rigorosa e dirigidos por um diretório cen-
tralizado. Liênin, encarnação do espírito revolucionário, homem
militante, intransigente e drástico, mas, ao mesmo tempo, muito
hábil e prudente, pode ser considerado corno o segundo fundador
do Marxismo. Defendia-o não só teóricamente em várias publi-
cações (139), mas dava-lhe também uma organização prática, mui-
to superior à das duas primeiras Internacionais: na União Sovié-
tica (1917). Tendo-se apoderado do govêrno na sua pátria, fazia
esforços imensos para industrializar a Rússia e para centralizar todo
o poder nas mãos do Partido Comunista.
d) Ossip Vasiriovitch Djugachvili, ou José Stálin ("o ho
mem de aço") consolidou o Estado bolchevista, o qual, sob a sua
ditadura, se ia aliando cada vez mais ao Imperialismo russo. Era
mestre sem igual na política oportunista, conseguindo eliminar to-
dos os seus adversários (140). Nas suas publicações sôbre o Mar-
xismo mostra-se muito inferior ao seu predecessor (141).

C. O POSITIVISMO.
§ 100. O sistema de Comia.
Hegel elaborara, na Alemanha, uma imponente filosofia da
história; pouco tempo depois, semelhante tentativa foi feita, na
França, por Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier Comte (1798-

. — Dois trabalhos importantes de Vladimiro Ilitch Uliánov (= "Lênin") (1870-


1924) são : Matérialisme et Empiriocriticisme (1908), e L'État et la Eévo-
lution (1917) . No prime'ro, o autor sustenta o "realismo materialista" e de-
fende a unidade do pensamento e da ação; no segundo, descreve a necessidade
da ditadura do proletariado e o desaparecimento total do Estado, uma vez li-
qüidados os vestígios das atuais alienações humanas.
. — Um dos adversários mais conhecidos era L. Trótzky (= Bronstein) (1877-
1940), expulso da União Soviética em 1929, depois de ter exercido altos
cargos. Em 1936, organ'zou a "Quarta Internacional" com o fito de defender
o "puro Marxismo" contra as aberrações do "Stalinismo". — As diferenças
teóricas entre Stálin e Trótzky eram estas: Trótzky não acreditava na possi-
biLdade de um regime socalista num único país, mas insistia na necessidade
de preparar, antes de mais nada, a revolução mundial; opondo-se ao sistema
total'tário dos bolchevistas, exigia uma certa democracia para o partido co-
munista; e afinal, tendia, — conforme os "stalinistas", — para o materialismo
mecanicista, incompatível com a doutrina de Marx.
. — Stálin (1879-1943) escreveu entre outras obras: Les Principes du Léninisme
(ed. franc., Bruxelas, 1948), e Estudo sôbre o Materialismo Dialético e
Histórico, etc.
464 --

1857), espírito igualmente compreensivo e sistematizador, embo-


ra menos profundo (142) . Cada um dos dois considera o seu sis-
tema como a síntese definitiva, — pelo menos, virtualmente,
do pensamento humano; cada um se empenha em integrar na sua
filosofia a herança valiosa do passado . Entretanto, são bastante di-
vergentes os métodos e as posições dos dois pensadores. O sistema
hegeliano é uma vasta teodicéia a justificar os caminhos da Idéia,
ao passo que "a principal preocupação de Augusto Comte, desde os
seus primeiros trabalhos, foi o de realizar uma reforma espiritual
tão profunda que pudesse conduzir a uma verdadeira reorganização
social e política" (143). Para Comte, "a coruja de Minerva" (cf. §
- 96 IV, nota 36) voa em pleno dia, guiando a humanidade para um
destino cada vez melhor. Tanto para o Positivismo como para o
Marxismo, a filosofia possui valor essencialmente prático: :19voir
pour prévoir, et prévoir pour pourvoir.

I. Ordem e Progresso.
Ao progresso constante das ciências e da técnica, nos últimos
dois ou três séculos, não tem correspondido, segundo Comte, um
progresso no setor social e político. Com a desagregação do mundo
medieval, verificou-se um divórcio lastimável entre a Ordem e o
Progresso, latente, passageiro e espontâneo no início para se tornar
aberto, crônico e metódico a partir da Grande Crise de 1789. Des-
de aí, a Europa, — e principalmente a França, — vive num estado
de anarquia mental: todos se insurgem contra todos, disputando-se
o terreno revolucionários turbulentos e déspotas retrógrados. La
maladie occidentale consiste em separar o Progresso da Ordem. Ur-
ge encerrar-se o período revolucionário, e a tarefa histórica do Po-
sitivismo será a de reconciliar Condorcet com de Maistre. L'ordre
devient alors la condition permanente du progrès, tandis que le pro-
grès constitue le but continu de l'ordre (144). Não há Progresso
sem Ordem, e a Ordem é impossível sem a união de vontades, sen-
timentos e idéias. Na Idade Média existia uma admirável ordem
— As principais obras de Comte são: Cours de Philosophie Positive, I-VI (1830-
1842); Discours sur l'Esprit Positif (1844); Système de Politique Positive
(I-INT (1851 - 1854) ; Catéchisme Positiviste (1852).
— J. Cruz Costa, Augusto Comte e as Origens do Positivismo, São Paulo, 1951,
pág. 7; boa leitura iniciadora na obra de Comte é o trabalho de L. Lévy-
Bruhl, La Philosophie d'Auguste Comte, Paris, Alcan, 5e. Edition; cf. tam-
bém a obra já citada de H. de Lubac (nota 106); R. de Boyer de Sainte
Suzanne, Essai sue Pensée Religieuse d'Auguste Com te, Paris, Nourry,
1923; Evaristo de Morais Filho, Posição de Augusto Comte na Histór'a da
Filosofia, in "Revista Brasileira de Filosofia", V 2 (1955), págs. 222-269.
• (144). — Comte, Système, etc., I pág. 105. — Muitas vêzes encontramos, na obra
de Comte, esta fórmula: Le progrès n'est que le développement de l'ordre.
— A Ordem e o Progresso são dois aspectos inseparáveis do mesmo prin-
cípio, ou melhor, a harmonia entre êles é a expressão st3ciológ'ca da grande
lei geral, segundo a qual a atividade das partes se reconcilia sempre com a
existência do todo. Cf. as notas de Ch. Le Verrier na sua edição do Discours,
Paris, Garnier, 1949, II págs. 138-142.
— 465 — .

social, ainda que baseada em ficções hoje definitivamente supera-


da; atualmente existe harmonia apenas entre os cultivadores das
"ciências positivas", que são capazes de atingir verdades indiscutí-
veis e universalmente aceitas; no que diz respeito ao homem e à
sociedade, lavra uma confusão caótica . Graças ao desenvolvimento
'do "espírito positivo", os homens vão-se entendendo cada vez melhor
no setor das realidades infra-humanas; devido à sobrevivência do
'espírito teológico-metafísico", que ainda nestes tempos esclarecidos
continua a monopolizar o estudo dos problemas humanos, os homens
se entendem cada vez menos na questão importantíssima de organi-
zar a sociedade. E o espírito humano, que não pode deixar de viver
da unidade ou da ordem, sofre terrivelmente dêsse antagonismo fu-
nesto, e a sociedade está prestes a dissolver-se. Cumpre, portan-
to, generalizar o "método positivo" e estendê-lo aos fenômenos hu-
manos e sociais. A única vantagem prática da teologia ou da meta-
física está no seu caráter orgânico e sintético, mas o "espírito posi-
itvo" já está suficientemente maduro para empreender uma nova
síntese, desta feita não fictícia, mas real, não provisória, mas defi-
nitiva. O Positivismo dará ao gênero humano uma nova fé orgâ-
nica, não revelada mas demonstrável (145) a que todos poderão
dar espontâneamente sua plena adesão.

II. A Lei dos Três Estados.

Para melhor compreendermos o âmbito das observações an-


teriores, devemos examinar a pedra angular do sistema comtiano:
a lei dos três estados (146) . O espírito humano (147), na sua
evolução histórica, atravessa com necessidade (148) estas três
(45) . — A nova fé é demonstrável em si, embora só relativamente poucas pessoas
sejam capazes de demonstrar o caráter racional dos seus dogmas; a grande
maioria, por falta de cultura, tem de aceitá-la com sent'mentos de submissão
e de respeito, mas a submissão não tem nada de irracional, visto que não
é uma capitulação da razão perante um mistério incompreensível em si.
<146) . — Comte reivindica a autoria dessa lei para si, e cumpre reconhecermos que,
em geral, é bastante honesto, e até franco, em mostrar os méritos de seus
"precursores". Não obstante, 'alguns lhe contestam a autoria, apontando para
teor'as semelhantes nas obras de Turgot e Saint-Simon; também o tratado
de Lessing (cf. § 91 III) tinha sido traduzido para o francês (por E. Rodri-
guez, discípulo de St.-Simon, quando Comte ainda era membro do grupo) .
Entretanto, foi Comte o primeiro a generalizar a lei dos três estados e a
elaborá-la sistemàticamente.
(147) . Não só da coletividade, como também do indivíduo, cf. Comte, Cours, etc.,
I, pág. 11: Or, chacun de nous, en contemplant sa propre histoire, ne se
souv:ent il pas qu'il a été successivement, quant à ses notions les plus im-
portantes, théologien dans son enfume, métaphysicien dans sa jeunesse, et
physicien dans sa — O "evolucionismo" de Comte limita-se ao de-
senvolvimento do espírito humano; na biologia, o autor combate a teoria
transformista de Lamarck (cf. § 103, III a) e acredita na "fixidez das es-
pécies", cf. Cours, etc., III pág. 391: II semit entièrement déplacé de s'en-
gager ici dans aucune discussion spéciale sur cette ingénieuse théorie (isto é,
o transformismo) puisque la fausseté radicale en est aujourd'hui pleinement
reconnue par presque tous les naturalistes.
^(148). — As palavras nécessaire, nécessairement, avec nécessité, etc. ocorrem em qua-
se cada um dos períodos prolixos e desairosos de Comte.

:Revista de História n. 0 28
— 466 —

fases sucessivas: o estado teológico, o estado metafísico e o estado


positivo.
No •estado teológico, que é provisório, o espírito huma-
no, colocado diante dos fenômenos da natureza, tenta-os explicar
pela intervenção de um ou de mais sêres sobrenaturais. Aí pode-
mos distinguir três fases sucessivas: o 'feiticismo (certos objetos
inanimados, por exemplo, uma árvore, uma pedra, uma fonte, ou
também o sol e a lua) são concebidos como possuidores de uma
alma inteligente, capaz de sentimentos e de vontade); o politeís-
mo (os sêres sobrenaturais ficam separados dos objetos); e o mo-
noteísmo (há um só ser sobrenatural, todo-poderoso e omnisciente).
No estado metafísico, que é transitório (149), o homem
continua a propor-se problemas da mesma natureza, dando-lhes,
porém, uma solução diferente. Não desiste de indagar o "porquê"
dos fenômenos, mas, vendo a regularidade dos mesmos, chega a
explicá-los, não pela atuação de entes divinos, mas por idéias abs-
tratas (substâncias, finalidades, essência, etc.) .
No estado positivo, que é definitivo (150), o homem re-
conhece finalmente a futilidade dessas especulações, substituindo
a vã investigação das causas (151) pela observação científica dos
fenômenos, pela experimentação metódica e pelo descobrimento
paciente de leis, quer dizer: relações constantes e necessárias entre
dois fenômenos. Renunciando ao conhecimento do "Absoluto", res-
tringe-se propositadamente ao estudo de "relações", abordando ape-
nas questões ao alcance do intelecto humano. Ao passo que a teo-
logia e a metafísica são absolutas nas suas concepções e arbitrárias
nas suas aplicações, o Positivismo é relativo nas suas concepções e
necessário nas suas aplicações. O ideal da nova filosofia seria o de
reduzir todos os fenômenos observáveis a uma única lei, por exem-

. — Por mais necessário que seja êste estado como fase de transição, Comte
chega a dar-lhe valor inferior ao do estado teológico, visto que o espírito
metafísico é essencialmente crítico e destruidor.
. — O espírito positivo, uma vez chegado à sua maturidade, nunca mais abandona
as noções científicas e relativas para regressar ao absolutismo dos tempos idos,
cf. Comte, Discours, etc., I. 1 (éd. Le Verfer): Personne, sans doute, n'a
jamais démontré logiquement la non-existence d'Apollon, de Minerve, etc.,
ni ceife des fées orientares ou des diverses créations poéltiques; ce qui n'a
nullement empêché l'esprit humain d'abandonner irrévocablement les dogmes
antiques, quand ils ont enfie cessé de convenir à Pensemble de sa situation.
Essas questões teológicas e metafísicas tornam-se, com o tempo, vides de sens,
e têm de desaparecer necessária e definitivamente.
<151) . — Comte, Cours, etc., I pág. 16: Le caractère !andamento! de la philosophie
est de regarder tous les phénomènes comine assujeftis à des lois naturelles
invariables, dont la découverte précise et la réduction au moindre nombre
possible sont le but de tous nos efforts, en consideirant comme absolument
inaccessible et vide de sens pour nous la recherche de ce qu'on appelle les
causes, soit premières, soit finares. — E, falando da lei de gravitação, o
autor diz (Ibidem, pág. 11): Quant à déterminer ce que sont en elles-mêmes
cette attraction et cette pesateur, quells en sont les causes, ce sont des
questions que nous regardons toutes comine insolubles.. que nous abati-
donnons avec raison à l'imagination des théologiens ou aux subtilités des mé-
taphysiciens.
— 467 —

plo à lei da gravitação, mas Comte acha impossível a realização


dêsse ideal (152) . No entanto, não é utópico, na fase atual da
evolução humana, esperar-se que o homem, valendo-se do método
positivo e excluindo as ficções teológicas e as abstrações metafísicas,
consiga conhecer, cada vez mais adeqüadamente, as leis necessárias
que regem os fenômenos humanos e infra-humanos. Destarte o ho-
mem se tornará cada vez mais senhor consciente e livre (153) do seu
destino. La prévision rationnelle fará as vêzes da crença obsoleta
na Divina Providência.
Comte, descrevendo o espírito positivo (154), atribui-lhe es-
tas qualidades: réalité (por lidar com questões solúveis, e não com
mistérios ou quimeras), utilité (por contribuir necessàriamente pa-
ra a melhoria da condição humana, em vez de nutrir uma curiosi-
dade estéril) (155), certitude (por estabelecer espontâneamente
uma harmonia lógica no indivíduo, e uma união espiritual entre os
indivíduos da mesma espécie), précision (por atingir o grau de pre-
cisão compatível com a natureza dos fenômenos estudados, e apro-
priado às exigências das nossas verdadeiras necessidades), aptitude
organique (por ser capaz de organiiar os conhecimentos humanos
e a sociedade), e relativité (por poder apreciar o valor próprio de
tôdas as teorias, mesmo que sejam contrárias às do Positivismo, isso
em oposição às pretensões absolutas da teologia e da metafísica) .

. — Cf. Coorte, Cours, etc., I (10): Dans ma profonde conviction personnelle,


je considère ces entreprises d'explication universelie de tous les phénomènes
par une loi unique comme éminemment chimérique, même quand elIes sont
tentées par les intelligences les plus compétentes. Je crois que les moyens
de l'esprit humain sont trop faibles, et l'univers trop compliqué pour qu'une
telle perfectiore scientifique soit jamais à notre portée, et je pense, d'ailleurs,
qu'on se forme généralement une idée très exagérée des avantages qui en
résulteraient nécessairement, si elle était possible; cf. Discours, etc., I, 4.
. — Dada a natureza rigorosamente invariável das leis que regem todos os fenô-
menos naturais, morais e sociológscos (cf. Comte, Cours, etc., VI pág. 655),
a liberdade humana reduz-se, para o autor, a uma submissão consciente e in-
condicional às leis necessárias, cf. Comte, Système, etc., IV pág. 38: Il faut
que l'empire de la volonté reste subordonné constamment à celui de la né-
cessité. Pourvu que cette suborclination soit dignement acceptée, elle devient
Ia principale source de notre vra:e grandeur. — Contudo, Comte julga poder
escapar a um determinismo entorpecedor ou a um fatalismo inerte, dizendo
(Ibidam, pág. 54): Car, si pour tous les phénomènes, Pordre naturel est im-
modifiable dans ses disposieons principales, pour toas aussi, sauf ceux du
ciei, ses dispositions secondaires sont d'autant plus modifiables qu'il a'agit
d'effets plus compliqués. L'esprit positif, qui dut être fatalista tant qu'il
se borna aux études mathémat:co-astronomiques, perdit nécessairement ce
premiar caractère en s'étendant aux recherches physico-chimiques, et surtout
aux spéculations biologiques, 011 les variations deviennent si considérables. En
s'élevant enfin jusqu'au domaine sociologique . . son principal exercise se
rapportera désormais aux phénomènes les plus modifiables, surtout par notre
intervention.
— Coorte, Discours, etc., I 7.
— Comte, quando jovem, declarava numa carta a seu amigo Valat (no ano
1819): J'ai une souveraine aversion pour les travaux cientifiques dont je n'
aperçois pas clairement l'utilité. — O caráter utilitarista do comtismo va:-
se acentuando cada vez com os anos; o autor acaba por apreciar as pes-
quisas científicas só em relação com sua utilidade social. Daí interdita as
investigações acêrca da composição física dos astros e da const . tuição da ma-
téria, etc. — Cf. Pe. Leonel Franca, A Crise do Mundo Moderno, Rio de
Janeiro, Agir, 1951, pág. 96, nota 104. •
— 468 —

L'ensemble des explications indiquées. . . démontre clairement que


latis ses attributs principaux sont, au fond, les mêmes que ceux du
bon sens universel (156) . Achâmo-nos na pátria de Descartes!
(157) .

III. A Classificação das Ciências.

Se a lei dos três estados exprime o progresso do espírito hu-


mano, a classificação das ciências acode à tendência igualmente
humana de estabelecer a ordem. Uma completa a outra. Mas a
ordem comtiana, diferentemente da agostiniana que conduz a Deus
(158), será uma síntese subjetiva, isto é, ordenará todos os conhe-
cimentos em relação ao sujeito humano, excluindo ssitemàticamen-
te tôda e qualquer relação do homem com o Absoluto.
Comte elaborou uma "filosofia das ciências", mas devemos
interpretar êsse têrmo em sentido positivista. No sistema comtia-
no não há lugar para uma filosofia autônoma com objeto e método
próprios: fica interditada ao espírito positivo a busca de reali-
dades metempíricas. E lacuna grave e estranha: o problema do
conhecimento humano nem sequer é pôsto. À filosofia positivista
não cabe tarefa alguma a não ser a de sistematizar e de generalizar
(159) os métodos e os resultados das diversas disciplinas parti-
culares. Ao "filosofar", o positivista coloca-se num ponto de vista
universal, mas seu conhecimento continua relativo, não ultrapas-
sando os limites da observação, da experimentação e da indagação
de leis invariáveis; sua universalidade consiste em ilustrar a soli-
dariedade das ciências particulares entre si, em realçar a unidade
fundamental do método positivo, e em mostrar a homogeneidade
do saber humano. Considerada sob seu aspecto dinâmico, a filo-
sofia das ciências patenteará o nascimento e o desenvolvimento
das diversas disciplinas positivas na sua sucessão histórica.
Comte classifica as seis ciências positivas (a matemática, a as-
tronomia, a física, a química, a biologia e a ciência da sociedade
humana) de acôrdo com êstes dois princípios: a simplicidade de-
crescente, e a dependência crescente dos fenômenos estudados. As

(156). — Comte, Discours, etc., I 8.


(157) — Cf. Descartes, Discours de Ia Médhode, I: Le bons sens est la chose la mieux
partagée. La diversité de nos opinions ne vient pas de ce que les uns
sont plus raisonnables que les autres, mais seulement de ce que nous con-
duisons nos pensées par diversos voies et ne considérons pas les mémes choses.
(158). Augustinus, De Ordine, I 9, 27: Ordo est quem si tenuerimus in vita, per-
ducet ad Deum, et quem nisi tenuerimus in vita, non perveniemus ad Deum.
(159) . — Acima das leis especiais, particulares a certo tipo de c'ência (por exemplo
à física), existem "leis gerais ou enciclopédicas", que nos mostram a con-
vergência das leis especiais no mesmo princípio sem lhes afetar a indepen-
dência. Por exemplo, a lei da inércia (da física mecânica) encontra-se na
biologia como o "hábito" dos corpos animados, e na sociologia como o "ins-
tinto conservador" das sociedades.
— 469 —

ciências matemáticas são as mais gerais, as mais simples e as mais


abstratas; sem elas, não poderíamos abordar com proveito o estu-
do da astronomia, da física ou da química; sem conhecimentos da
química, estamos pouco capacitados para o estudo dos sêres ani-
mados na biologia, e assim por diante. Na scala intellectus, cada
ciência de estrutura simples vem seguida de uma ciência de estru-
tura mais complexa, até culminar a pirâmide das ciências numa
disciplina nova que é a mais concreta e complexa de tôdas: a
"física social" ou a "sociologia" (160): le plus grand et le plus
pressant besoin de notre intelligence. ; uma vez dado um cará-
ter positivo à sociologia, le système philosophique des modernes
sera enfin fondé dans son ensemble (161). Uma ciência mais sim-
ples (por exemplo, a geometria) influi numa ciência mais comple-
xa (por exemplo, na astronomia) sem ser influenciada por ela; na
medida em que uma ciência se torna mais complexa, leva em con-
sideração fenômenos irredutíveis aos que constituem o objeto de
uma ciência mais simples. Comte recusa-se terminantemente a re-
duzir tôdas as ciências a proposições matemáticas, mas introduz
em cada ciência superior um elemento novo e original, inexistente
numa ciência inferior. Assim a astronomia pressupõe a observa-
ção, desconhecida da álgebra; a física a experimentação, impossí-
vel na astronomia; a biologia, a comparação; e a sociologia, a evo-
lução histórica. Entre as matemáticas e a sociologia, que consti-
tuem as duas extremidades das ciências positivas, les degrés de
spécialité, de complication et de personnalité des phénomènes vont
graduellement en augmentant, ainsi que leur dépendance succes-
sive (162).
O escopo dêste livro não nos permite uma apreciação dêsse
esquema das ciências, nem uma exposição das suas numerosas sub-
divisões ou uma discussão do seu valor pedagógico. Devemos con-
tentar-nos com umas observações rápidas relacionadas com o nosso
assunto.
A classificação comtiana reflete, segundo seu autor, fielmen-
te a evolução histórica do espírito humano através dos séculos.
Pois a matemática, base indispensável de tôda e qualquer educa-
ção científica, já remonta, nos seus elementos essenciais, à Anti-
güidade; a astronomia, preparada pela astrolatria e pela asitrolo-

. — Inicialmente Comte usava o têrmo physique sociale para indicar a nova


ciência; mas o abuso dessa palavra (principalmente por parte do autor belga
L. A. J. Quételet que a empregava para des'gnar uma estatística social), le-
vou-o a forjar o hibridismo sociologia, apesar de sua profunda repugnância
por Neologismos sistemáticos, cf. Comte, Cours, etc., IV pág. 185, nota 1.
. — Comte, Cours, etc., I pág. 22.
(162). — Ibidem, pág. 75. — A bem dizer, Comte fala aqui, não das matemáticas,
e sim da astronomia como ponto de partida, mas mesmo assim, nossa for-
mulação está de acôrdo com as idéias do autor. Sôbre as matemáticas, cf.
Ibidem, I págs. 85-88.
— 470 --

gia, nasceu no século XVI (Copérnico, Kepler e Galileu); a fí-


sica, no século XVII (Huyghens, Pascal, Descartes, Newton); a
química, no século XVIII (Lavoisier); a biologia, no século XIX
(Bichat e Blainville); a sociologia ainda não existe, mas ela será
criada por Augusto Comte. Nos seis volumes do seu Cours de
Philosophie Positive, o autor expõe o sistema da filosofia positi-
vista, relevando os resultados seguros de cada uma das ciências
particulares e examinando-lhes os métodos; é uma exposição eru-
dita, enciclopédica, inteligente e lúcida, uma síntese respeitável,
mas, de vez em quando, deturpada por prevenções positivistas e
até por certa estreiteza de vistas (cf. nota 155).
Quando o filósofo, na segunda metade da' sua carreira, tinha
mais preocupações religiosas do que científicas e já não queria
ser um segundo Aristóteles mas um segundo São Paulo, modificou
e completou a classificação das ciências dada acima. Em primeiro
lugar, acrescentou-lhes uma sétima disciplina, a saber a moral, a
mais concreta e complexa de tôdas; em segundo lugar, tratou de
hierarquizá-las, atribuindo a cada uma delas maior importância na
medida da sua utilidade crescente para o gênero humano. O rela-
tivismo subjetivo de Comte resulta finalmente numa hierarquiza-
ção objetiva dos conhecimentos humanos em vista de um novo
Absoluto, que é a Humanidade. E muito naturalmente, a moral,
a ciência humana por excelência, ocupará o supremo grau na es-
cala dos valores científicos.

IV. A Filosofia da História.

A sociologia, transformada por Comte numa ciência posii-


tiva, pode ser considerada sob dois aspeotos diferentes que se com-
pletam mútuamente. A sociologia estática estuda a sociedade nas
suas condições de existência, a sociologia dinâmica estuda a mes-
ma nas suas leis de evolução . Ora, já conhecemos a lei funda-
mental da evolução humana: a lei dos três estados. Vejamos ago-
ra a aplicação dessa lei à história do gênero humano.
Cocote não dá uma história da humanidade pr6priamente di-
ta; sua exposição se limita quase exclusivamente à I'élite ou l'avant-
garde de l'humanité, comprenant la majeure , partie de la race
blanche ou les nations européennes (163) . Diferentemente de
Voltaire e Hegel, não começa por uma apreciação da cultura chi-
nesa; fala muito pouco da civilização egípcia; a Africa pràticamen-
te não existe para êle, e a América e a Rússia são, quando muito,
consideradas como apêndices da Europa. Seu terreno é o Velho
Mundo, que lhe parece o campo mais apropriado para uma inves-
(163) . — Ibidem, V pág. 7.
— 471 —

tigação científica; além disso, sua história se lhe apresenta como


característica para o desenvolvimento futuro de todos os conti-
nentes: o que a Europa é agora, o mundo inteiro o será um dia.
A missão da Europa é universal. Seu modêlo é o. Discours de
Bossuet, obra muito admirada pelo autor (cf. nota 194), mas um
Discours completamente remodelado em sentido positivista.
Seria um engano pensarmos que cada um dos três estados se-
ja inteiramente imiscível com outro. Sem dúvida, o estado teoló-
gico prepara necessariamente o estado metafísico, e êste desperta
o estado positivo; mas no primeiro já encontramos os rudimentos
do segundo, e até os lineamentos do espírito positivo. Assim se
explica a presença de certa dialética no processo histórico, que
perdurará até o espírito positivo conseguir apoderar-se definitiva-
mente de tôda a humanidade: só então, o Progresso será o aliado
inseparável da Ordem, e vice-versa.
O feiticismo é, como já vimos, a forma mais primitiva do es-
pírito teológico: o homem vê em certos animais e em certas coi-
sas inanimadas, por quelquer motivo, sêres sobrenaturais que lhe
inspiram sentimentos de veneração e de dependência completa.
Não se querendo apartar dêsses objetos sagrados, chega a domes-
ticar certos animais e a optar pela vida sedentária, e assim se ori-
ginam a pecuária e a agricultura. A imaginação exuberante ca-
racterística desta época favorece muito a ficção literária, a depo-
sitar-se em mitos e lendas, mas constitui um grande obstáculo para
o desenvolvimento do espírito científico e a organização racional
da sociedade. Devido ao contacto cotidiano com os "feitiços", 'es-
ses objetos acabam por perder sua natureza sagrada, mas o homem
primitivo, irremediavelmente supersticioso, imagina os astros como
sêres divinos, e entra na última fase do feiticismo: a astrologia,
etapa sumamente civilizadora. Ao contrário dos objetos venera-
dos na época anterior, os astros pertencem a ninguém, ou melhor,
pertencem a todos, o que favorece a transição da vida doméstica
ou, quando muito, da vida tribal, para a verdadeira vida social.
Nascem os diversos povos e, — fato importantíssimo, — as cas-
tas sacerdotais, intermediárias entre o vulgar da população e as
divindades celestes. Destarte vem sendo preparada a fase seguin-
te, a do politeísmo, sistema religioso muito propício para despertar
a curiosidade intelectual do homem: À mesure que chague corps
individuel perdait ainsi son premier caractère divin, il devenait
mieux accesible à l'esprit purement scientifique, dont le domaine
commençait dès lors à s'étendre, quoique bien humblement encore,
sans que I'explication théologique intervint aussi complétement
que jadis dans les détails des phénomènes, par suite même de sa
— 472 —

généralisation graduelle (164). Comte distingue três períodos su-


cessivos de politísmo: o período conservador (representado pelo
Egito, onde o Progresso é sacrificado à Ordem); o período militar
(de tipo intelectual, na Grécia; de tipo social, em Roma) . Desen-
volvem-se as artes e as letras, visto que cada um dos deuses ne-
cessita de um templo e de uma imagem, e precisa ser implorado
em cantos e hinos; cresce o prestígio social dos sacerdotes; nascem
as matemáticas, e os primórdios da astronomia, da mecânica (dans
le sublime génie d'Archimède), e até da política racional (dans
l'admirable Aristote), que fêz uma primeira tentativa da sociolo-
gia positiva (165) . E Roma, apesar de ter contribuído muito me-
nos do que a Grécia para o progresso científico e artístico do gê-
nero humano, não desempenhou papel menos importante na mar-
cha da civilização: seu gênio prático, jurídico e organizador, me-
lhorou a condição dos escravos e das mulheres, e criou uma socie-
dade estável e bem ordenada (166) . A apreciação comtiana da
Antigüidade difere bastante da hegeliana: para o francês, as con-
quistas do espírito especulativo têm pouco valor; o que lhe inte-
ressa, são as realizações sociais e os progressos "científicos".
O monoteísmo é uma espécie de condensação do politeísmo, e
revela a influência crescente do espírito metafísico (167): sua fa-
se final é o deísmo abstrato do século XVIII, onde Dieu règne,
mais ne gouverne pas (168) . O monoteísmo pode nascer apenas.
dentro de uma corporação de sacerdotes que se dediquem a espe-
culações filosóficas; deviam-no os judeus à sociedade teocrática
do Egito. Tendo por origem uma especulação filosófica que se re-
veste de feições religiosas, o monoteísmo acaba por liqüidar o es-
pírito teológico e prepara positivamente o espírito metafásico: aí
estão os seus grandes méritos para a história da evolução huma-
na. Mas, por outro lado, traz consigo certas tendências atrasado-

(164). — Ibidenl, V pág. 76.


. — Em Aristóteles Comte venera o protótipo de um espírito positivo, princi-
palmente como autor da Politica, concebida de maneira empírica. Em com-
pensação, deprecia Sócrates e Platão: ces prétendus philosophes
. — Comte, Cours, etc., V págs. 193-194: Né pour commander afin d'assimiler,
destiné à éteindre irrévocablement, par son universel ascendant, cette stér .le
activité guerrière qu" menaçait de prolonger indéfiniment la décomposi-
tion de l'humanité en peuolades antipathiques, ne s'accordant qu'à repousser
l'essor commun de la civilisation fondamentale, ce noble peuple, malgré ses
immenses imperfections, a manifesté certainement, à un haat degré, Pen-
semble des qualités les plus convenables à une telle mission, qui, ne pouvant
plus se reproduire ni par conséquent permettre un nouvel éclat analogue,
éternisera nécessairement son nom, à quelque âge que se prolonge la vie po-
litique de notre espèce.
.(167) — Ibidem, V págs. 196-205.
(168) . — Variação da frase famosa: Le roi règne, et ne gouverne pas, usada por L.
A. Thiers (1797-1877) no diário Le National (19-11-1830) . Já o esta-
dista polonês Jan Zamóiski (1542-1605) tinha dito no Parlamento: Rex
regnat, sed non gubernat. — Thiers era estadista francês (liberal) e autor
das obras históricas: Histoire de la Révolution française, I-X, 1823-1827,
e Histoire du Consulat et de L'Empire, I-XIX, 1845-1855.
— 473 —

ras: excita o fanatismo religioso, é incoerente e arbitrário por ad-


mitir milagres, diminui a previsão racional humana por reduzir'
tudo à Divina Providência, e atrofia os instintos simpáticos dos in-
divíduos por sacrificar a grandeza humana à majestade divina e
por frisar demasiadamente a importância da salvação individual.
Conseqüentemente, Comte devia ter menoscabado a Idade Média,.
a grande época do monoteísmo ocidental; na realidade, porém,
vemos que a nenhum período histórico rende maior homenagem
do que a ces temps mémorables, injustement qualifiés de ténébreux
par une critique métaphysique, dont le protestantisme fut le pre-
miar organe (169). Como explicar êsse milagre? E' que o mono-
teísmo, pregado por Cristo (170), foi transformado num sistema de.
maravilhoso progresso social, graças à atividade inteligente do "in-
comparável apóstolo" São Paulo. Se Jesus fundou o Cristianismo,
São Paulo fêz coisa muito melhor: fundou o Catolicismo. Afastan-
do-se, em todos os pontos essenciais, do Evangelho e vendo com
muita perspicácia a oportunidade do monoteísmo, servia-se, para
realizar seu grande ideal de dar uma sólida estrutura social ao mun-
do, da pessoa pretensamente divina de um aventureiro, destituído de-
idéias construtivas. A êsse ato de sublime abnegação de Paulo de
Tarso, o mundo deve o Catolicismo medieval (171) . Aos olhos
de um espectador esclarecido e isento de prevenções, a Idade Mé-
dia se apresenta como um período de magníficos progressos so-
ciais, que só podem passar despercebidos a espíritos superficiais,
e principalmente como uma época de uma ordem social modelar,.
embora baseada em ficções hoje superadas. O que na Idade Mé-
dia causa a maior admiração a Comte, é a separação do poder
temporal e do poder espiritual: le chef-d'oeuvre politique de la
sagesse humaine (172), a culminar na hegemonia universal do
papa . Evidentemente o dogma católico tem de desaparecer, mas,
a ordem social, estabelecida pelo Cristianismo e tão contrária à
anarquia evangélica, tem de ser adotada pela sociedade moder-
na. Le génie, éminemment social, du catholicisme a surtout con-
siste, en constituant un pouvoir moral distinct et indépendant du
pcuvoir politique proprement dit, à faire graduellement pénétrer„
autant que possible, la morale dans la politique, à laquelle jusqu'

. — Comte, Cours, etc., V págs. 360-361.


. — Jesus era para Comte, un pyérnée comparado com São Paulo, un aventurier
relgieux, essentiellement charlatan, etc. O fundador do Positivismo cogitava.
de suplantar a Paixão de Nosso Senhor por seus próprios sofrimentos e, ao
elaborar um calendário, não consagrava mês ou dia algum a Jesus.
. O que Comte apreciava sobretudo na doutrina paulina, pode ser resumido
talvez nestes três pontos: a luta permanente entre a natureza e a graça
(= a incompatibilidade do monoteísmo absorvedor coro a existência das.
tendências natura s dos homens para se amarem mirtuamente), a imagem,
inspiradora do "Corpo Místico", e afinal a palavra paulina digna de um.
positivista: "Quando estou sujeito, então sou livre".
. — Comte, Cours, etc., V pág. 231.
— 474 —

alors la morale avait toujours été. essentiellement subordonnée


(173) . Na Idade Média, o mundo ocidental começava a sentir-se
uma grande comunidade fraternal; o feudalismo originava uma
combinação admirável de instintos de independência e de senti-
mentos cavalheirescos de dedicação; a mulher era emancipada; os
servos eram libertados e iam constituindo le tiers. état; além disso,
construiu as catedrais, deu origem às corporações, fomentou cer-
tas pesquisas científicas (alquimia) e produziu o incomparável
poeta Dante .
Infelizmente, a partir do século XIV, a Idade Média, por
causa do seu dogmatismo teológico, incompatível com o espírito
progressivo da nova época nascente, vai sofrendo de ancilose. Co-
meça o estado metafísico, preparado pelas especulações filosófi-
cas dos escolásticos, e alimentado pelas lutas entre o papa e o Im-
perador. O novo espírito avança muitíssimo pela insurreição do
Protestantismo, uma religião vulgar e irracional, uma crença re-
trógrada porque regressa às páginas mais obscuras e perigosas da
Bíblia; a Reforma é anárquica por frisar o livre exame dos livros
sagrados, destrutiva por abolir o poder espiritual e o sacerdócio,
bárbara por recair no primitivismo dos tempos evangélicos (174).
Logo depois apareceram outros desmoronadores: os metafísicos e os
cientistas; a abalarem o caráter sobrenatural do Cristianismo e cs
alicerces da sociedade. O processo de desagregação social, prepa-
rada pelo ceticismo de Bayle, pelo deísmo irreverente de Voltaire
pelo materialismo d'Holbach, resulta na Revolução francesa, que
em vez de estabelecer es mútuas obrigações entre os indivíduos, lhes
reconhece apenas os direitos individuais. E' êsse o aspe.::to negativo
do estado metafísico, puramente destrutivo, embora necessário e
indispensável na história da evolução humana. Mas ao lado dêsse
aspecto negativo, podemos perceber o desenvolvimento paulatino
quase imperceptível do espírito científico ou positivo . Nascem as
diversas disciplinas positivas, as quais, porém, pouco contribuem
para a organização de uma nova sociedade por ainda não consegui-
rem generalizar os seus métodos. Mas do caos atual surgirá a so-
ciologia positivista que estabelecerá definitivamente o Reino da
Ordem esposada com o Progresso.

— Ibidem, pág. 233.


. — O próprio Catolicismo, depois da Reforma, ficou sujeito ao poder dos reis,
o papado continuou a deedr, apesar dos imensos esforços feitos pelos
jesuítas (= ignaciens) para restaurá-lo; êstes, por causa do seu monoteísmo
agora tornado insustentável, transformaram-se logo em retrógrados, hipócri-
tas e intrigantes. — E' sabido que Comte, admirando muito a sólida orga-
nização dos jesuítas (restaurados pelo papa Pio VII, em 1814: bula Sollici-
tudo Omnium Ecclesierum), tratou de convertê-los à sua religião universal
de torná-los seus alados para preparar a vinda da nova época (1857)..
— 475 —

V. A Sociologia Estática.

A Sociologia Estática está para a Sociologia Dinâmica enraio,.


no terreno da biologia, a anatomia está para a fisiologia. Mas a So- -
ciologia Estática de Comte é pobre e confusa, desfigurada, nas suas
raízes, por elementos heterogêneos de ordem religiosa e moral.
Não há diferença essencial entre os instintos dos animais e a
inteligência dos homens; a inteligência humana não é nada senão o.
prolongamento dos instintos animalescos. A êste primeiro dogma po-
sitivista se liga outro, não menos importante: o homem resume-se es-
sencialmente a um animal social (cf. Marx). L'homme proprement -
dit n'est, au fond, qu'une pure abstraction; il n'y a de rée/ que l'huma-
nité, surtout dans I'ordre intellectuel et moral (175). A sociabi- -
lidade humana é um fato, demonstrado abundantemente pela sim-
ples observação do reino animal (176) e do mundo humano, pelos
absurdos evidentes do Contrato Social (177), e afinal pela freno-
logia de Gall (178) . O indivíduo humano eclipsa-se diante da Co-
letividade, e até os grandes indivíduos da história devem mais ao
gênero humano do que êste a êles: La participation personnelle des
plus puissants rénovateurs se trouve très inferieure à cette prépa-
ration collective dont la prépondérance est d'ailleurs toujours oreis-
sante (179) . A sociedade humana é o resultado necessário de uma
disposição natural, — consenso espontâneo ou "simpatia" instinti-
va, — que tende a transformar-se necessàriamente numa "sinergia",
urna cooperação natural de todos os homens com todos os homens.
Comte não acolhe a dou':rina de Hobbes, segundo a qual o homem
é ser essencialmente egoísta, mas acredita na primazia dos instin-
tos "altruístas" (180) da humanidade, péla menos no seu estado
. — Comte, Cours, etc., VI pág. 590.
— Em alguns grupos superiores do reino animal podemos verificar uma certa-,
vida social em estado embrionário; e também os animais, incentivados por--
seus instintos naturais, são capazes de atos desinteressados.
. — Segundo Comte, a ut:lidade de urna organização social é o resultado dos
agrupamentos humanos, não é o motivo primordial, cf. Cours, etc., IV pág.
385: Car oette incontestable utilité, quelque influente qu'on lui suppose,
n'a pu réellement se manifester qu'après un Ione développement préababk
de la société dont on lui attribue ainsi Ia création. — Comte, na sua -
crítica às teorias sociais do século XVIII, serve-se muitas vêzes dos argu-
mentos formulados por de Maistre e de Bonald, embora chegue a uma
conclusão bem diferente. Na sua teoria sôbre a origem da linguagem, sus-
tenta a tese de que o homem primitivo não exprime seu pensamento com
fim de comunicá-lo, ruas o comunica pelo fato de exprimi-lo; e origirtà- -
riamente não exprime idéias, mas só emoções e afetos (cf. os animais); a
expressão lingüística é instintiva e necessár'a.
(178) . — F. J. Gall, frenólogo alemão (1785-1828) localizava determinadas funções
psíquicas em determinadas partes do cérebro; segundo êle, as disposições-
mentais são inatas, e o local "afetivo" do cérebro tem o predomínio sôbre
local "intelectual".
. — Comte, Systeme, etc., II pág. 50.
. — Outra palavra forjada por Comte (do vocábulo italiano altrui) para evitar -
têrmo cristão char:té (cf. bienfaisance, § 85 III) . Pois o cristão ama
seu próximo só através de Deus, vendo nele egoisticamente um meio de
salvação individual (cf. Discours, ïI 14) . O ideal comtiano é Vivre pour -
autrui.
— 476 —

"normal" ou positivista. O derradeiro elemento da sociologia será,


portanto, não o indivíduo, mas a menor célula social: a família A
divisão do trabalho social (e Comte pensa também em outras pro-
duções do que em bens materiais) cria espontâneamente urna or-
dem social, e uma solidariedade dos diversos grupos sociais, anàlo-
gamente aos tecidos celulares nos organismos biológicos. Essa or-
dem orgânica, ou organização ordenada, faz com que cada um aceite
sem coação seu lugar funcional no conjunto social.
Dissera Boécio (181), exprimindo uma idéia de Platão (182):
Beatas fore res publicas, si eas vel studiosi sapientiae regerent, vel
earum rectores studere sapientiae contigisset! A Idade Média, mais
guiada por seu instinto de ordem do que por uma idéia acertada de
progresso, organizara a sociedade em três classes, concedendo o pri-
meiro lugar aos sábios daqueles tempos, que eram os clérigos; a
sociedade definitiva será igualmente de estrutura hierárquica. Os
sacerdotes dos tempos modernos serão os sábios, homens recruta-
dos de tôdas as classes sociais, inspirados de altos sentimentos mo-
rais e devidamente instruídos nos princípios gerais da filosofia posi-
tiva . Não serão tanto especialistas ou eruditos, — Comte nada de-
testava mais do que uma especialização estreita, — como verda-
deiros "sábios" (savants), a exercerem o novo poder espiritual:
rintervention systématique, tantôt passive, tantôt active, destirée
à rappeler avec énergie les maximes fondamentales et à en diriger
sagement ?application (183) . O poder temporal será exercido pe-
los entrepreneurs, isto é, os banqueiros, os industriais, os comercian-
tes e os agricultores. A terceira classe será constituída pelos prole-
tários, o grupo mais numeroso da população, atualmente maltrata-
do pelos burgueses, mas predileto a Comte por causa da sua íntima
afinidade com os dogmas do Positivismo, e predestinado a desem-
penhar um grande papel na evolução da humanidade . O proletaria-
do é o aliado natural do Sacerdócio por causa do seu profundo ins-
tinto de utilidade, por seu inato realismo, não infectado pela meta-
física, por sua espontânea visão do conjunto. Comte entoa o hino
ao proletariado (184), mas hino diferente do que era cantado por
Marx . Pois, no pensamento de Comte, o proletário não é o homem
completamente alienado, destinado a desaparecer graças à dialéti-
ca do processo histórico, mas ficará sendo proletário, aluno dócil dos

(181) . — Boethius, De Consolatione Philosophiae, 1 Prosa, IV 4.


— Plato, Respublica, V 473 C-D. Palavra muitas vêzes citada na litera-
tura mund'al, já desde a Antigüidade, por exemplo, Prudentius, Contra Sym-
machum, I 30-32: .. .esset/ publica res, inquit, tune fortunata satis, si/
vel reges saperent, vel regnarent sapientes, e por Thomas Morus, ir> Utopia,
I (ed. Lupton, pág. 51) .
— Comte, Discours, etc., II 13. — O poder espiritual deverá ser decisivo nas
questões educacionais, e consultativo em todos os assuntos relativos à ação,
sendo inteiramente soberano, neste último ponto, o poder temporal.
(184) . — Comte, Discours, etc., III 17-19; cf. Catéchisme, 2e. Conférence
— 477 —

sábios (185); tampouco é o veículo de revoluções violentas, mas o


grato educando, a receber uma instrução esmerada, a deleitar-se
nas obras de arte, a cumprir com muita satisfação seu trabalho co-
tidiano. Aliás, o fundador do Positivismo não cogita de abolir a
propriedade privada (186), nem o Estado. Este continuará a exis-
tir, embora de tamanho inferior ao dos grandes países atuais. O
ideal comtiano é o tamanho da Bélgica ou da Holanda, com urna
população de mais ou menos três milhões. Não custará muito ao
Positivismo, uma vez vencedor, persuadir os Estados atuais e que
se dissolvam em territórios pequenos, organização mais conveniente
à futura fase da humanidade.

VI. 'A Religião da Humanidade.

On ne détruit que ce qu'on remplace: êsse aforismo, que Com-


te devia a um discurso de Napoleão III, o então Príncipe-Regente,
patenteia a falsa posição do Positivismo que começava por profes-
sar um relativismo integral para terminar num absolutismo insípido
•e ridículo. Deus fôra excluído, e a Humanidade usurpou-lhe o lugar,
a Humanidade com letra maiúscula, a Humanidade divinizada
(187). Comte, que se tinha apartado de Saint-Simon por causa
do "Novo Cristianismo", tratou de fundar, na segunda metade da
sua carreira, uma nova religião, — positivista e universal (188), --
uma triste paródia do Cristianismo, ou melhor, como dizia Huxley:
Catholicism without Christianism (189) . Esses devaneios religio-

(185) . — A maior parte dos proletários nunca conseguirá demonstrar as verdades po-
sitivas; mas, assim como um marinheiro acredita cegamente na aplicação
de certas proposições matemáticas, assim o proletário dos tempos vindouros
acreditará nos preceitos sociológicos e morais dos sacerdotes.
( 186) . — Comte, Système, etc., I pág. 370: Nous travaillons surtout pour nos succes-
seurs, et nos principales satisfactions proviennent de nos prédécesseurs. Cha-
gue génération produit, au delà de ses propres besoins, des richesses ma-
térielles destinées à facilitei le travail et à préparer la subsistance de la
suivante .
(187) . A religião comtiana é relativa ao sujeito humano, e só a êle, cf. Comte,
Catecismo Pozitivista (trad. bras. de M. Lemos, Rio de Janeiro, 1905):
"Nós não a (= a Deusa Humanidade) adoramos... como ao antigo Deus,
para fazer-lhe cumprimentos, mas a fim de a servir melhor aperfeiçoando-
nos"; contudo, o "relativo" comtiano torna-se, na realidade, um "absoluto".
— Comte detestava o ateísmo (une émancipat'on insuffisante) e o panteís-
mo (une parodie du Positivisme) como representantes do espírito meta-
físico, que é destrutivo, crítico e orgulhoso; êsse espírito deve ser superado
pelo Positivismo.
4188) — Cf. Comte, Système, etc., V pág. 305: Quoique son domaine social do:ve
se borner d'abord aux populations occidentales et à celles qui en dérivent,
se foi est assez réelle et assez complète pour convenir également à Coutes
les partias de la p/anète humaine. Mas o fundador do Positivismo pensa,
antes de mais nada, em converter á nova religião a cultura ocidental, he-
rança de Carlos Magno (a França, a Itália, a Espanha, a Inglaterra e a
Alemanha)
(189). — Thomas Henry Huxley, físico inglês (1825-1895), um dos primeiros adep-
tos de Darwin, representante típico do "cientismo" inglês. Seu neto é Aldous
Huxley, romancista notável dos tempos modernos (por exemplo: Breve New
World, 1932) .
— 478 —

sos custaram-lhe o alheamento de muitos de seus adeptos, por exem-


-plo de Stuart Mill (cf. § 103 II) e de Littré (190) .
Ao contrário do que julgam observadores superficiais, Comte
-acha que o homem individual bem como o homem coletivo se torna
cada, vez mais religioso: tôdas as religiões históricas do passado e
até mesmo a própria filosofia positiva, não passam de um amplo pre-
âmbulo da Religião definitiva, que é o Culto da Humanidade. Mas
cumpre examinarmos o que o autor entende pela palavra "reli-
gião". Para Comte, a religião não é o ascenso amoroso da alma hu-
mana para o Absoluto ou o desêjo da criatura, consciente, da sua
insuficiência, de entrar em relações pessoais com seu Criador; é uma
- disciplina de vida, capaz de harmonizar as diversas faculdades do ho-
mem individual e de congregar todos os indivíduos da espécie hurra-
- na (191). Assim como o cientista positivista busca certas leis natu-
rais com um fim utilitário, assim o homem "religioso" prOcura um
ente digno de sua veneração, de sua dedicação, de seu amor para
- melhor poder servir aos seus próprios instintos vitais. O objeto do
seu culto não é o Absoluto, mas o relativo; sua religião não ser-
viço de Deus, mas serviço da Humanidade para o bem da cole`.1-
vidade e do indivíduo. Mas, nos anos 1844-1846, o Pai do Positi-
-- vismo teve uma experiência sentimental de suma importância para
a evolução das suas idéias religiosas (192): o caráter demasiada-
mente cerebral do seu sistema foi sendo "super-compensado" por
- um excesso de elementos afetivos e sentimentais. A nova descober-
-ta levava-o dizer: On se lasse d'agir, onse lasse même de penser, on
ne se lasse pas d'aimer . E o amor comtiano nasce exclusivamente
dos sentimentos, dos instintos altruístas humanos que, com o tem-
po, irão predominar necessária e espontaneamente os instintos egoís-
-tas. O racionalista Comte acaba por subjugar a razão ao coração.
A Religião da Humanidade é uma forma grosseira de feiticis-
mo, o qual, segundo o autor, possui uma secreta afinidade com o
-Positivismo, visto que os dois concedem a primazia à vida afetiva,
que é criadora, inocente e sumamente moral. Se o feiticismo é Po-

(190) . — Emite Littré (1801-1881), autor do célebre Dictionnaire de la Langue fran-


çaise, I-V (1863-1878), e de uma biografia Comte e la Philosophie Positive
, ..(191) — (1863) . Antes de morrer, converteu-se ao catolic'smo.
Comte, ao explicar a palavra "religião", pensa numa etimologia errônea,
relacionando a palavra com religare (cf. Catecismo Pozitivista, Conf. 1);
o vocábulo latino "religens" quer dizer: "minucioso, meticuloso, escrupuloso"
(antônimo: "negligens") . — A palavra latina religio introduziu-se em quase
tôdas as línguas modernas, mas o holandês tem o têrmo significativo: gods-
dienst (= "serviço de Deus") .
:.:(192) . — Em abril de 1844, Comte, aos 46 anos, encontrou pela primeira vez Clotilde
de Vaux, mulher casada com um "homem indigno"; ela, bonita, doentia e
romântica, seria Pangédique inspíratrice do filósofo, que datava o nascimento
do Positivismo no dia 16 de maio de 1845, quando tinha uma das suas
conversas habituais com ela. Clotilde morreu em 1846 sem que as relações
entre cs dois tivessem ultrapassado os limites de uma amizade sentimental
e exaltada. Nela via Comte a personificação da Humanidade.
— 479 —

sitivismo primitivo, o Positivismo é feiticismo refletido. O conceito


de um progresso retilíneo vem sendo abandonado em favor de um
círculo ou de uma espiral. No fim da sua vida, Comte levava urna
existência recolhida, austera, ascética: já não lia jornais, mas sua
leitura cotidiana eram Dante (seu adorado poeta) e a Imitatio
Christi (em que substituía a palavra "Deus" por "Humanidade") .
Considerava-se como fundador de uma nova religião, de cuja boa
aceitação não duvidava: em 1851, predizia que, antes de 1860.
havia de pregar a religião universal na Notre-Dame, transformada
no Grande Templo Ocidental. Acreditava firmemente na sua mis-
são que lhe parecia confirmada pelos numerosos contratempos e so-
frimentos, com os quais queria igualar a Paixão de Jesus Cristo.
Alternando suas meditações humanitárias com atos legislativos, te
Grand-Prêtre de l'Humanité queria tudo prever, tudo regular, tudo
organizar. Dava preceitos morais (por exemplo, sôbre a indisso-
lubilidade do matrimônio, sôbre a perpétua viuvez das mulheres,
sôbre a educação, etc.), e elaborava regras pormenorizadas sobre o
novo culto. Nada escapava à sua atenção: a "orientação" e a dis-
posição dos novos templos, a côr dos paramentos sacerdotais, o Sub-
sídio Positivista (= o óbolo de São Pedro), o calendário (193), os
novos "livros sagrados" (194), etc.
A Religião da Humanidade terá o seu dogma (é a "sociologia"
coroada pela moral), o seu culto (é a "sociolatria"), e o seu regime
(é a "sociocracia"). Assim serão garantidas a "síntese", a "simpatia"
e a "sinergia" entre os indivíduos humanos, quer dizer: a unidade
das idéias, a harmonia dos sentimentos, e o acôrdo das atividades.
A Humanidade, — le Grand-Être, — é o objeto essencial de
tôda e qualquer religião, ofuscado pelas religiões históricas, mas pro-
clamado como tal solenemente pelo Positivismo (195) . Porquanto
(193) . — Conte elaborou dois calendários, um definitivo e abstrato, o outro provi-
sório e concreto. Os nomes dos meses dêste último eram : Moisés ( a teo-
cracia inicial ) , Homero ( a poesia antiga ) , Ar' stóteles ( a filosofia antiga )
Arqu' medes ( a ciência antiga) , César ( a civilização militar ) , São Paulo ( o
catolicismo organizador ) , Carlos Magno ( a civilização feudal ) , Dante ( a epo-
péia moderna ) , Gutenberg ( a indústria moderna ) , Shakespeare ( o drama
moderno ) , Descartes ( a filosofia moderna ) , Frederico ( a política moderna )
Bichat ( a ciência moderna ) . Cada um dos treze meses tinha 28 dias
( = 4 semanas) com um total de 364 dias. Acrescentava-se um dia a um
ano normal, ma's um dia adicional a um ano bissexto. A éra começava
pela Grande Crise de 1789.
( 194 ) . — Comte organizou a Bibliothèque Positive, coleção de 150 livros julgados
importantíssimos para a formação do positivista. A primeira secção abrange
30 volumes de poesia ( por exemplo, Homero, Ésquilo, Só f Deles, Terêncio,
Plauto, Vergí Tio,, Dante, Cervantas, Shakespleare, Racine, Molière, Mani-
zoni etc. ) ; a segunda seção abrange 30 volumes de obras científicas ( por
exemplo de Buf fon, Lavoisier, Condorcet, Bichat, Comte, etc. ) ; a terceira
seção compõe-se de 60 obras históricas ( por exemplo, de Plutarco, W:nckel-
mann, Hume, Voltaire, Gibbon, etc. ) ; a quarta seção ( cf. § 76 IXI, nota
34) abrange as grandes obras sintéticas do passado ( por exemplo, a Política
a Moral de Aristóteles, a Bíblia, o Alcorão, o De Civitate Dei de Agos-
tinho, a Imitatio Christi, o Discours de Bossuet, o Du Pape de de Maistre, etc.
(19 5 ). O Prefácio do Catéchisme reza assim : Au nom du passé et de Pavenir, les
serviteurs théoriques et les serviteurs pratiques de l'Humanité viennent prendre
480 —

'é na Humanidade que "vivemos, nos movemos e existimos". Não


obstante, ela não abrange todos os homens sem distinção, mas l'en-
semble continu des êtres convergents (196) . Apesar de ser "o con-
junto dos entes humanos, passados, futuros e presentes", ficam dêle
excluídos os criminosos, os parasitas, "os produtores de esterco"
(197), e compreende apenas os elementos assimiláveis, por efeito
de uma verdadeira cooperação na existência comum. E a verdadei-
ra sociabilidade humana consiste mais na continuidade sucessiva
.através dos séculos do que na solidariedade sincrônica: os vivos são
sempre, e cada vez mais, governados necessariamente pelos mortos
(198) . Juntos com o Grand-Être, são objetos •de veneração reli-
giosa: le Grand-Milieu (= o Espaço) e le Grand-Fétiche (= a Ter-
- ra), a constituirem o novo "triunvirato religioso". Outros dogmas
-positivistas são: a lei dos três estados, a relatividade de todos os
nossos conhecimentos, a sujeição de todos os fenômenos a leis in-
variáveis, etc.
Muito mais importante, porém, nesta fase do comtismo, do que
os conhecimentos puramente racionais são as nossas disposições
-morais. A divisa "Ordem e Progresso" deve ser completada desta
maneira: L'amour pour principe, I'ordre pour base, le progrès pour
but (199) . A moral é a ciência mais sintética, mais complexa e
- mais importante de tôdas: em última análise, é a sistematização
-dos afetos humanos. E' a ciência final que subordina o espírito ou
a inteligência ao coração. O verdadeiro destino das nossas fun-
ções intelectuais é o de servir os pendores sociais ou altruístas; se
•o espírito não atraiçoar sua santa missão, a personalidade se subor-
dinará fàcilmente aos instintos sociais, e a atividade seguirá espon-
tâneamente êsse impulso salutar. Assim se estabelecerá uma har-
monia universal entre os homens, e a Providência Humana será
o resultado da cooperação íntima de todos os grupos sociais, com-
pondo-se da providência intelectual dos sacerdotes (= sábios posi-
tivistas), da providência material dos patrícios (= entrepreneurs),
da providência moral ou afetiva das mulheres, e da providencia
geral dos proletários.

dignement la direction générale des affaires terrestres, pour construire enfin


la vraie providence, morale, intellectuelle et matérielle; en excluant irré-
vocablement de la suprématie politique tous les divers esclaves de Dieu, catho-
fiques, protestantes, ou déistes, conlme étant à la fois arriérés et perturbateurs.
. — Comte, Système, etc., IV pág. 30.
. Comte, Catecismo (trad. bras., pág. 7 da edição de 1890); a edição de
1905 substitui a expressão vulgar (em francês: les producteurs de futnier)
pela palavra parasitas, "de conformidade com a recomendação que o nosso
Mestre fêz a êste respeito ao seu discípulo inglês John Fisher" (Pág. 453) .
— No texto original, Comte fazia uma alusão a um verso de Aiiosto (Safiras,
III): Venuto al mondo sol per fare fetarne.
. — A teoria sôbre a Humanidade encontra-se no Catéchisme, 2e. Conférence.
. — Comte, Catolicismo (trad. bras., ed. do ano 1905, pág. 60); cf. pág. 68: "Agir
por afeição, e pensar para agir".
— 481 ---

O culto positivista será privado e público, e o primeiro se sub-


divide no culto pessoal e no culto doméstico. Cada homem encon-
tra em tôrno de si verdadeiros anjos da guarda: são as mulheres,
seja mãe, espôsa, filha ou irmã. Devemos render-lhes um culto ín-
timo, três vêzes por dia, numa oração profunda, poética, efusiva .
O culto doméstico, que liga as fases sucessivas da existência pri-
vada à vida pública, fornece uma transição natural entre o culto
privado e o culto público: nove "sacramentos" sociais (200) acom-
panharão o digno servidor da Humanidade desde o berço até o se-
pulcro, ou melhor, até a eternidade subjetiva que deve erigí-lo afi-
nal em órgão próprio da Deusa . Quanto ao culto público, todos os
centros importantes do planeta humano terão o seu Templo da
Humanidade, cada um dirigido para a metrópole geral que é Paris,
com a imagem de uma mulher de trinta anos tendo seu filho nos
braços. Haverá festas religiosas, celebrações hebdomadárias, em
que são apreciados os diversos graus essenciais do laço social .

A sociedade positivista será composta de três grandes grupos,


o conjunto dos quais constituirá a Providência Humana: o sexo afe-
tivo (as mulheres), a classe contemplativa (os sacerdotes), e a clas-
se ativa (subdividida em "patrícios" e proletários) . São assim clas-
sificados segundo sua dignidade decrescente, mas também segundo
sua independência crescente. À mulher cabe a tarefa de dar a edu-
cação espontânea aos filhos e de agir sôbre o espírito do homem pe-
lo coração, nele fazendo prevalecer a melhor disposição. Os sacer-
dotes devem ministrar a educação sistemática, e exercer uma in-
fluência consultativa . Os patrícios representam as fôrças sociais de
energia e de iniciativa, os proletários as da união e de reação. A
separação dos dois poderes continua a ser a base da ordem social:
o poder prático e especializado dos patrícios exige necessàriamen-
te ser contrabalançado e corrigido pelo poder espiritual e geral: o
dos sacerdotes, na vida pública; pelo da mulher, no santuário do-

<200) . — Os nove sacramentos são êstes: Ia Présentation (o recém-nascido é apresen-


tado pelos pais ao sacerdote da Humanidade, e recebe padrinho e madrinha);
l'Initiation (que marca a aurora da vida pública, quando o menino, aos 14
anos, passa da educação materna, que é espontânea, para a educação siste-
mática, que é ministrada pelo sacerdócio); l'Admission (pela qual o jovem de
21 anos fica autorizado a servir livremente a Humanidade, de que até então
tudo recebeu sem nada lhe retribuir); la Destination (a escôlha de uma pro-
fissão, aos 28 anos); /e Mariage (para os moços, aos 30 anos; para as mo-
ças, aos 21 anos); Ia Maturité (pela qual o homem de 42 anos fica com uma
inflexível responsabilidade perante a Humanidade); la Retraite (o velho de
63 anos abdica livremente uma atividade exausta); la Transtormation (as
honras fúnebres aos membros falecidos da sociedade para substituir Phorrible
cérémonie da Igreja Católica); e afinal, l'Incorporation (pela qual o de-
funto, sete anos depois da sua morte, — salvo em casos excepcionais de in-
dignidade caracterizada, — fica incorporado na Humanidade, isto é, ganha a
"imortalidade subjetiva", ato simbolizado pelo transporte dos seus ossos para
o Bosque Sagrado que rodeia o Templo Positivista) . Cf. Comte, Catéchisme,
4e. Conférence. A mulher, cuja vida menos perturbada não exige tantos
cuidados religiosos, fica excluída de três "consagrações" (la Destination, la
Maturité et la Retrafte).

Revista de História n.o 28


— 482 —

mésitco. O sacerdócio garantirá a submissão dos espíritos aos dog-


mas e aos decretos positivistas: haverá sermões, intervenções e até
-excomungões. Em lugar de uma liberdade ilimitada de pensar, será
introduzida uma severa disciplina, sendo que a submissão dos indi-
víduos ao dogma e à moral é base indispensável do aperfeiçoamen-
to individual e coletivo. Le Grand-Prêtre de l'Humanité que, com
.o tempo, se ia considerando cada vez mais como infalível, termi-
nava numa espécie de despotismo espiritual muito pior do que a
"anarquia" mental que pretendia liqüidar. Seu regime social de-
generava numa "pedantocracia" insuportável (Stuart Mill).

VII. Conclusão.

Se a Religião da Humanidade, triste paródia do Catolicismo,


teve relativamente pouca repercussão por, causa das suas evidentes
inépcias infantis, foi muito duradouro outro aspecto do sistema com-
tiano: o Cientismo, doutrina segundo a qual o homem pode conhe-
cer só os fenômenos e as leis que os regem, — uma decapitação do
intelecto humano (201): tôdas as indagações metempíricas são vãs
e fúteis. Outra influência nefasta da obra comtiana é a veneração
supersticiosa da sociologia, a qual tende a suplantar a moral e até
a religião (202) . O Positivismo, como doutrina, — não como méto-
do, — é um sistema incompleto e mutilador da realidade. Contu-
do, sua influência foi enorme durante o século XIX, — embora mais
indiretamente do que diretamente, — não só na França, mas tam-
bém na Inglaterra, nos Estados Unidos da América do Norte, e
last not least, no Brasil (203).
Concluamos êste parágrafo pelas palavras bem ,escolhidas de
André Cresson: Je ne sais pas s'il y a jamais eu dans l'hioire de
la pensée humaine une oeuvre plus mélangée. Tant de bon sena et
tent d'étrangetés, tant de jugement et tant de naïvetés, tent d'équi-
libre et tant de mysticismes, tant de clarté dans la pensée et tant
de maladresse dana l'expression des idées et dans le style. Grande
âme si géniale, si sublime et avec cela parfois si étroite et si peu
sensible au ridicule (204).

(201). — Cf. R. Jolivet, Traité de Philosophie, Lyon-Paris, Vitte, 1946•, 511 págs.
118-122.
(202) . — Cf. Leonel Franca, A Crise do Mundo Moderno, Rio, Agi,r pág. 98, nota
106: "Não é possível inferir do conhecimento - da natureza humana uma norma
de ação sem a supor ordenada, isto é, obra de uma inteligência orientada para
um fim. O conhecimento que se liMta a observar fatos não pode exprimir-se
senão em indicativos. A moral fala em imperativo. Não há como transformar
um é em um deves. O conteúdo da norma e a sua fôrça obrigatória trans-
cendem os domínios do empirismo puro".
Á203) . Cf. Leonel Franca, in Noções, etc., págs. 275-285.
(204) . — A. Cresson, Auguste Comte (na Coleção "Philosophes", editada por E. Bréhier)
Paris, Presses Universitaires, 195, págs. 70-71.

— 483 —

§ 101. O fanático das leis.

Hippolyte Taine (1828-1893), autor fecundo e brilhante


(205), era positivista sui generis. Afastando-se de Comte (cf. § 100
II c), procurava o Absoluto e chegava a uma espécie de meta-
física. Acreditava na possibilidade de uma ciência das primeiras
causas e de reduzir tôdas as leis a uma Lei Universal. A existên-
cia de Deus parece-lhe um fato "geometricamente demonstrado",
mas Dieu n'est point ce tyran absurde et cruel que les religions
nous enseignent et que le vulgaire adore (206). Deu§ é a Nature-
za. o Ser Abosluto, perfeito e uno, a manifestar-se necessàriamente
no mundo variável e a revelar-se em leis eternas e invariáveis; é
l'Axiome Eternel (207), síntese de tôdas as leis particulares; con-
siderado como existente, convém-lhe o nome de Deus; considerado
no seu desenvolvimento necessário, é o Mundo (panteísmo natu-
ralista) . Não passam de aparências enganadoras as coisas concre-
tas e os fenômenos particulares; as leis eternas e mecânicas do
Deus-Mundo constituem a única realidade. São várias e hetero-
gêneas as influências que se repercutem na obra de Taine: Spi-
noza, Condillac (208), Hegel, e os positivistas (209). Não po-
demos ocupar-nos aqui com as teorias de Taine no terreno da "me-
tafísica", da psicologia, da moral e da estética; pretendemos rele-
var apenas dois aspectos de interêsse para o nosso assunto: seu
"cientismo" pessimista (210) e sua famosa lei de race, milieu,
moment .

(205) . — Algumas obras 'mportantes de Taine são: De l'Infelligence (1870); Phi-


losophie de l'Art, (1880); Histoire de la Littérature Anglaise (1864);
Les Philosophes Ciassiques du XIX-e Siècle en France (1857); Essai sue
( 1856); Notes sur l'Angleterre (1871); Voyage en Italie ( 1866 )•
Voyage aux Pyrénées (1855); Notes sur Paris (1867); Les Origines de la
France Contemporaine, 1-XII ( 1875-1893) . — De 1902 a 1907 foram
publicados quatro volumes importantes sob o título de H. Taine, Sa Vie
et Sa Correspondence (Paris, Hachette) .
(206). Ta'ne, Correspondence, I pág. 150.
(207) — Taine, Les Philosophes, etc., págs. 370-371: Au suprême somrnet des cho-
ses, au plus hauf de l'éther Iumineux et inaccessible, se prononce l'axione
éternel, et le retentissement prolongé de cette formule créatrice compose,
par ses ondulations inépuisables, l'immensité de l'univers Toute forme, tout
mouvement, tout changement, toute idée est un de ses actes. Elle subsiste
en toutes choses, et elle n'est bornée par aucune chose .
(208). Étienne Condillac (1715-1780), filósofo francês, chefe da escola sensualista,
e autor do Trdté des Sensations, em que desenvolve a tese do "homem-es-
tátua". Sôbre êle cf. H. Padovani — I. Castagnola, História da Filosofia,
São Paulo, "Melhoramentos", 1954, págs. 285-286.
. — Era mais influenciado pelos positivistas inglêses (Stuart Mill e Spencer)
do que por Comte.
. — Taine, Correspondence, IV pág. 159: Plus j' étudie les choses morales, plus
j'y trouve au fond des notions mathématiques. Là aussi, ã s' agit de noter
les quanetés Je ne me suis jaz-1.'1s contenté que Iorque j' ai pu en es-
thelique, en morale, en politique, en histoire, démêler ces notions mathéma-
tiques. — Sôbre a misantropia e o pessimismo de Taine, cf. K. de Schaepdrij-
ver, Hippolyte Taine, Essai sur l'Unité de sa Pensée, Paris, Droz, 1938,
págs. 15-42, e 90-160.
— 484 —,

I. O Cientista Misantropo.

La naissance et le développment des sciences positives est,


rlepuis trois siècles, l'événement capital de l'histoire. Aucune au-
tre construction humaine, ni l'État, ni la religion, ni la líttérature,
ne peut se considérer comme inébranlable. .. Au contraire, l'ac-
croissement des sciences est infini. . 0,n peut prévoir qu'il arri-
vera un temps oìl elles • règneront en souveraines sur toute la pen-
sée comme sur touté vi'action de l'homme, sane rien laisser à leurs
rivales 'qu'une existence rudimentaire (211) . Essas palavras de
Taine, escritas em 1864 e depois muitas vêzes confirmadas (212),
revelam bem a confiança do autor no triunfo das ciências positi-
vias. Agora que os grandes dogmas religiosos do passado estão ar-
ruinados, a nova religião da humanidade será a Ciência. Idéia
predileta do Positivismo, mas que, em Taine, se reveste de fei-
ções peculiares. Se, para êle, a religião é uma necessidade funda-
mental de ce grand coeur malheureux de l'homme moderno, tour-
menté par le besoin et l'impuissance d'adorer (213), não resulta,
como em Comte, num culto sentimental da Humanidade, nem, co-
mo em Renan, numa apoteose da bondade do homem. Em T afine,
tudo é natural e sadio; a seu espírito científico é alheia tôda e
qualquer forma de misticismo ou de exaltação. Le vrai senti-
ment religieux... n'est pas une extase, mais une clairvoyance
c'est la divination délicate qui, à travers le tumulte des ávéne-
mente et des formes palpables des objets, saisit les puissances gé-
nératrices et les bis invisibles (214) . E a ciência não nos faz
contemplar apenas a manifestação da Divindade através de leis
eternas e imutáveis, ela nos permite também, pelo menos, até cer-
to ponto, a organização do mundo. Pois o homem moderno, co-
nhecendo agora as leis do mundo físico e social, pode intervir na
marcha dos acontecimentos por lhes modificar as condições Des-
tarte o determinismo julga poder escapar à inércia do fatalismo '
com Comte (cf. § 100 II c, nota 153), Taine tem a ilusão •de que
o homem, mediante sua intervenção, possa modificar o que se-
gundo a teoria determinista, é imodificável. Pois, de acôrdo com
ela, também nossa intervenção é, em última análise, um elo da
cadeia férrea da Necessidade. Sem dúvida, se não interviéssemos,
seria diferente a marcha da história, mas o ponto importante é sa-

. Taine, num artigo sôbre o Cours de Phlosophie Positive de Comte (1864) .


. — Por exemplo, na véspera da sua morte, quando dizia a um sobrinho seu:
Je suis un dogmatique. Je crois tout possible à Pintelligence humaine. Je
crois qu'avec des données suffisantes, celles que pourront fournir les instru-
ments perfectionnés et l'observation poursuivie, on pourrla tout savoir de
Phomme et de la vie. II n'y a pas de mystère définitif .
. — Taine, La Fontaine et ses Fables, pág. 216 (ensaio escrito em 1853) .
. Tanie, Derniers Essais, pág. 80.
— 485 --

termos, não se os acontecimentos se efetuam por meio de nossa


intervenção, e sim se o total dos acontecimentos, inclusive a nossa
intervenção, é necessário ou não. O determinismo radical, profes-
sado por Taine, salva só as aparências da liberdade humana (215).
Os resultados da ciência moderna não são confortadores: la
vérité scientifique n'est supportable que pour quelques uns; il vau-
drait mieux qu'on ne pilt l'écrire qu'en latire (216). A verdade "ab-
soluta e íntima" da ciência não poderia ser fonte de uma verdadeira
moral nem de uma verdadeira estética, já que todo problema huma-
no é, no fundo, um problema de mecânica (217): se Taine acredi-
ta em certas normas morais e em certos valores estéticos, acredita
neles apesar do seu determinismo. A história não executa um pla-
no providencial, mas é um vasto cemitério, um imenso caos dos.
destinos humanos; o Universo é simplesmente monstruoso. A ciên-
cia ensina só tristes verdades que não legitimam esperança algu-
ma. Por tôda a parte reina soberanamente a Necessidade inflexível
e invencível: Ainsi va ce misérable monde, tout caduc et lugubre,
et le terme vers lequel il route est plus lugubre encore.• C'est la
destruction universelle, la fosse béante, oà chacun et tous pêle-mele
vont s'engloutir (218). Seu pessimismo é total, e envenena as raí-
zes da existência (219). Sua misantropia é a máscara de um co-
ração sensível e esperançoso, mas amargamente desiludido: fen
suis venu à un grand mépris des hommes, et tout en gardant une
grande admiration de la nature humaine... C'est un sujet de plus
de prendre les hommes en pitié, que de voir qu'avec une si parfaite
essence ils ne parviennent qu'à être des imbéciles, des frénétiques
ou des coquins (220) . Como é altivo, inclemente e inativo êsse
1Viisereor super turbam! (cf. Mc., VIII 2). Taine não celebra os
triunfos do Progresso moderno, mas acha feio e enfadonho o mundo
contemporâneo: tout devient peuple, peuple ouvrier, boutiquier, âpre
et dur, inquiet et triste (221). Dos tempos passados admira a Gré
cia, a pátria da liberdade, o berço de artistas e atletas: se tivesse
nascido aí, teria sido un bel animal, presque parent des chevaux de
noble race. . ., e teria podido décider des affaires publiques sans

— Taine, Histoire de Ia Litt'eírature Anglaise, Préface, pág. XV: Le vie et la


ver tu sont des produits comine le vitriol et le sucre. — Não obstante, o
autor tenta defender a responsabilidade humana, por exemplo, Correspondence,.
IV pág. 292.
— Taine, Correspondence, IV pág. 340.
— Taine, Le i'Intelligence, II pág. 453; cf. Essai sur Tite-Live, pág. 330; Der-
niers Essais, pág. 205, e a definição do homem: L'Homme est un théorème
qui marche.
— Taine, Voyage en Italie, II pág. 74; cf. Origines, I pág. 279: L'histoire
humaine... ne va pas vers un but, elle aboutit à un effet.
— Taine, Notes sur Paris, pág. 263: Ce n'est pas le malheur, (mais) le bonheur
qui est contre nature; cf. Les Philosophes, pág. 215: La vie est un mal.
— Tane, Correspondence, I pág. 58.
— Taine, Notes sur l'Angleterre, pág. 225.
— 486 —

remettre son autorité à des représentants, fêter des dieux sans s'en-
fermer dana les formules d'une dogme, sans se courber sous la ty-
rannie d'une toute-puissance surhumaine, sans s'absorber dans la
contemplation d'un être vague et universel (222) . Aos quinze anos,
Taine tinha perdido a fé, e nas suas obras prova freqüentemente
uma crassa ignorância do dogma cristão; nas suas afirmações con-
cernentes ao Cristianismo encontramos muitas prevenções infantis
que não deixam de nos estranhar num trabalhador consciencioso e
autor excepcionalmente proba (223) . Ao contrário da maior parte
dos seus compatriotas, sentia pouca simpatia para o Catolicismo
(224), mas admirava sobremaneira o Protestantismo que teria re-
vivificado e renovado o velho mundo: a religião reformada forme
avec la science les deux organes et comme le double coeur de la
vie européenne (225) .

II. A Lei Fundamental da História.

Para o sociólogo e historiador Taine, é fundamental a teoria


dos três fatôres: a Raça, o Meio e o Momento (226): nela encon-
tramos elementos das doutrinas de Montesquieu, Herder e Spen-
cer, mas harmonizados e aprofundados por um pensamento originai..
A raça, resultado hereditário da espécie humana ao clima, ao
solo, aos alimentos, etc., cria certas aptidões e instintos que se trans-
mitem de uma geração a outra: Quand, dans le même pavs, le sang
reste à peu près pur, le même fonds d'âme et d'esprit qui s'est mons-
tré dans les premiers grands-pères se retrouve dans les derniers
petits-enf anta (227) . Mas a essa fôrça elástica interna precede uma
fôrça externa, que é o meio: principalmente o clima, o solo e os.
alimentos. Tout sort du climat; la tête humaine ne fait que repro-
duire et concentrer la nature qui l'environne (228). Não obstante,
o meio não é exclusivamente determinado por fatôres físicos: con-
tribuem para êle também os acontecimentos políticos (por exem-
plo a Revolução francesa que é igualmente une force ,Iénératrice)
e as diversas condições sociais (por exemplo, as instituições, os cos-

(222). — Taine, Philosophie de I'Art, II págs. 114-115. •


(223) . — Seu epitáfio em Menthon-Saint-Bernard reza: Causas Rerum altissimas can-
dido et constanti animo in Philosophia Historia Litteris perscrutatus, Veri-
tatem unice dilexit.
.(224). — Taine (in Origines, XI pág. 147) dá uma apreciação entusiasta dos bene-
fícios que o Cristianismo trouxe ao mundo. — Quanto à sua aversão ao Ca-
tolicismo, Taine é um dos poucos autores franceses que adota tal atitude.
Cf. Ch. Renouvier (1815-1903), filósofo francês (criticista) que combatia
ativamente o Catolicismo, principalmente nas suas publicações periódicas:
La Critique Religieuse.
— Taine, Littérature Anglaise, IV, pág. 112.
— A teoria é exposta da maneira mais sistemática no Préface da Littérature
Anglaise, I.
— Taine, Philosophie de I'Art, II pág. 251.
— Taine, Carnets de Voyage, pág. 102.
— 487 —

tumes, a classe social, o tipo de trabalho, etc.). O terceiro fator, o


momento, é muito menos estável do que os dois outros: é o total
das influências exercidas pela natureza sôbre um certo povo his-
tórico em dado momento da sua evolução. A história humana não
passa do jôgo combinado dêsses três fatôres, cuja ação concorde
ou antagônica admite variações infinitas. Lorsque nous ovons con-
sidéré /a race. le milieu, le moment, c'e*-à-dire le ressort du de-
dans, la pression du dehors et l'impulsion déjà acquise, nous avons
épuisé non seulement toutes les causes réelles, mais encore toutes
les causes pos\sibles du mouvement (229) . A essa lei tríplice velda-
deiramente universal fica subordinada a chamada faculté maitresse,
já formulada antes (230), aplicável a indivíduos como também a
coletividades: por mais diversas e heterogêneas que nos pareçam
as atividades e as realizações de povos e indivíduos, são sempre re-
dutíveis a um denominador comum, la faculté maitresse, dont l'ac-
tion uniforme se communique différemment à nos différents roua-
ges, et imprime à notre machine un système nécessaire de mouve-
ments prévus (231). Conhecer a "fórmula matemática" de um in-
divíduo ou de uma coletividade eqüivale a saber deduzir dela tôdas
as conseqüências da sua evolução necessária: a fórmula aplicável
a Tito-Lívio (um orador que se faz historiador) explica o Ah Urbe
Condita. E assim Taine julga poder explicar Aníbal, Shakespeare,
e muitos outros grandes indivíduos da história humana.
A teoria dos três fatôres, como também a da faculté maitresse,
é valiosa, podendo ser aplicada com muito proveito pelo historiador,
contanto que não lhe atribuamos o caráter de lei rigorosa ou últi-
ma causa, como queria Taine. Organiza e classifica, — mas sem-
pre a posteriori, — os dados históricos, tornando-os compreensíveis
para a visão retrospectiva do historiador (cf. § 17 III a), por rela-
cioná-los com as principais condições (232) da existência humana.
Até poderíamos dizer que, sem o conhecimento dessas condições,
não somos capazes de "entender", embora de modo sempre deficien-
te a marcha da história. Mas a lei, tal como foi formulada por

. Taine, Littérature Anglaise, I Préface.


. — Ta ne, Essai sur Tite-Live, págs. VII-VIII.
(231). — Ibidem. — Cf. nota 217 (no fim) .
(232) . — Cf. § 66 I b, nota 12. — Cf. P. Coffey, Ontology, London, 1918, págs.
358-359: A condition, in the proper sense of necessary condition or "con-
ditio sine qua non", is something which must be realized or fulfilled before
the event. or effect in question can happen or be produced . Ou the side of
the latter, there is real dependence, but from the side of the former there
is no real and positive influence on the happening of the event. The in-
fluente of the condition is negative; or, if positive, it is only indirect, con-
sisting in the remova] of some obstacle to the positive infltbence of the
cause. In Chis precisely a condition differs from a cause; windows, for ins-
tance, are a condition for the lighting of a room in the daylight, but the
sun is the cause.

— 488 —

Taine, embora nem sempre seguida (233), é incompleta: elimina


por completo o livre arbítrio do homem, transformando a história
num processo puramente mecânico. Além das condições gerais,
atuam na história causas individuais e particulares (as livres deci-
sões da pessoa humana e o "acaso"), que escapam ao esquema rí-
gido do determinista francês e continuarão sempre misteriosos pa-
ra o intelecto humano. O determinismo radical, aplicado ao mundo
moral, é forma de pseudo-ciência e, incapaz de explicar adeqüada-
mente os acontecimentos contingentes da história, vê-se, na prática,
muitas vêzes obrigado a violentar os fatos, que êle mesmo declara
absolutos. O espírito humano reage racional e livremente às condi-
ções da sua existência. E' essa a primeira e principal objeção que
devemos fazer à teoria de Taine. Outra objeção, muitas vêzes feita
a ela, é o fato de não explicar devidamente o indivíduo. Diz Victor
Giraud: Voici deux frères: Pierre et Thomas Corneille; même race,.
même milieu, même moment. Pourquoi l'un est-il auteur de Po-
lyeucte, et l'autre l'auteur de Timocrate? A cela il n y a qu'une '

réponse: c'est que Pierre avait du génie, et que Thomas n'en avait
pas. Et pourquoi Pierre Corneille a-t-il eu du génie? Question inso-
luble, et que la théorie de la race, du milieu et du moment n'a
pas fait avancer d'un pas (234) . E' duvidoso, porém, que Taine
com sua teoria tenha tido a pretensão de explicar o "indivíduo" na
história (235): a objeção em si é justa, mas talvez não possa ser-
dirigida contra Taine, embora devamos reconhecer que o autor se-
serviu muitas vêzes de expressões fortes capazes de originar tal
eqüívoco.

§ 102. O positivismo elegante.

Ernest Renan (1823-1892) não elaborou um sistema filosófi-


co; era antes eclético, influenciado pelo pensamento de Kant e He
gel (236), pelo positivismo, pelo panteísmo de Spinoza, etc. Era
cético irônico e, se fazemos abstração de algumas idéias fundamen-
tais, tais como a crença no Progresso e e a confiança na Ciência,
não possuía convicções firmes: não raro acontece que vem negan-
do o que afirmava em livro anterior, ou até em página anterior.

. — Por exemplo, Taine, Littérature anglaise, II pág. 155: Tout vient du dedans
chez lut (Shakespeare), je veux dire de son âme et de son génie; les cir-
constances et les dehors Mont contribué que médiocrement à le développer.
Desta maneira fala também de Dante, Beethoven e M'guel-Ângelo.
. — V. Giraud, Essai sur Taine, Paris, Hachette, 1912, pág. 123.
. — Para a discussão dêste problema cf. Paul Neve, La Philosophie de Taine,.
Louvain-Paris-Bruxelles, 1908, pág. 123.
. Renan, antes da guerra de 1870, admirava muito a Alemanha, na qual via.
"um santuário, onde tudo é puro, sublime, espiritualmente belo e comovente".
— 489 —

Estilista aprimorado e erudito respeitável, era mais literato U)37),,


filólogo (238) e historiador (239) do que filósofo. Aqui nos inte-
ressam duas obras de Renan: L'Avenir de la Science (240) e Vie
de Jésus (241).

I. O Cientismo.

Deus é, para Renan, la catégorie de Pidéal, c'est-à-dire la for-


me sous laquelle nous concevo,ns I'idéal (242). Deus, o Uno, rea-
liza-se na diversidade, isto é, em fenômenos concretos (243), que-
obedecem a leis invariáveis. Conhecer as coisas é igual a conhecê-
las na sua evolução. L'histoire est la forme• nécessaire de Ia science
de tout ce qui est dans le "devenir" (244). Ora, uma ciência com-
pleta abrangeria estas sete ciências históricas: a história do período ,
atômico, do período molecular, do período solar, do período plane-
tário, do período terrestre e do período histórico (245). As cinco
primeiras têm por objeto a natureza, que deve ser estudada pela ob-
servação e pela experimentação; as duas últimas, muito mais im-
portantes (246), servem-se da documentação, e são o terreno do

— E' principalmente devido à forma agradável e elegante que a Vie de Jésus-


de Renan conquistou o público francês (cf. nota 241), que até então.
pouco se interessara por questões teológicas e exegéticas.
Editou, entre outras obras, Histoire Généra/e des Langues Sémitiques (1848),
e fundou, em 1868, o Corpus Inscriptionum Semiticarum (obra inacabada).
— Mencionamos aqui a obra seriada: Les Origines du Christianisme, em sete
volumes: Vie de Jésus (1863), Les Apôires (1866), Saint Paul (1869),
L'Antéchrist (1873), Les Évangiles (1878), L'Église Chrétienne (1879), .
Marc-Aurèle et la Fin du Monde Antique (1881). — Além disso, Histoire
du Peuple d'Israel, I-V (1887-1892), etc.
— Obra escrita em 1848, e publicada só em 1888 com poucas modificações,
ou melhor, correções. Em 1888, Renan ainda professa la religion de la'
sc3ence, mas mostra um otimismo mais moderado do que há 40 anos; ou-
trossim, já não acredita no igualitarismo, nem dos indivíduos, nem das elas.
ses sociais, nem das raças, adotando uma palavra do poeta latino Lucano,
Pharsalia, V 343: Humanum paucis vivit gentis (muito contrária ao adágio
comtiano: "Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fracos pelos
fortes", Catéchisme, 11e. Conférence). Além disso, o autor confessa que ,
o progresso, no setor soc'al e político, tem sido muito exígüo. — Alguns
anos depois, em 1898, F. Brunetière (1848-1906) anunciava la banqueroute de
la science (in Revue des Deux Mondes). E, em 1943, dois cientistas fran-
ceses, R. Charmet et L. de Broglie, publicaram novo livro L'Avenir de la
Science, de tendência bem' diferente.
— O livro saíu, pela primeira vez, em 1863; em 1867, já saiu a 13a. edição,
acompanhada de um Préface importantíssimo.
— Renan, L'Avenir de la Science, pág. 476.
Ibidem, pág. 182: Le grand progrès de la réflexion moderne a été de substi--
tuer la catégorie du devenir à la catégorie de l'être, la conception du re-
latit à la conception de l'absolu, le mouvement à l'immobilité. — Cf.
Renan, Dialogues et Fragments Philosophiques, pág. 187: Dieu alors sere'
complet, si l'on fait du moi Dieu le synonyme de Ia tateie existence. Eri-
ce sens, Dieu cera plutôt qu'il n'est; il est "in fieri", il est en vbie de se
faire, e pág. 184: Si c'est bien là ce qu'a voulu dire Hegel, soyons he
géliens.
— Renan, L'Avenir de la Science, pág. 174.
— Renan, Dialogues, etc., págs. 155-172.
— Renan, Vie de Jésus, Préface, pág. XXXI: Notre planète, croyez-moi, tra-
vaille à quelque oeuvre profonde. . . "Est Deus in nobis" (cf. Ovidius,.
Fasti, VI 5).
-490 —

mitólogo, do filólogo, do historiador prbpriamente dito (247) . Re-


nan não aprecia as construções dos filósofos da história: para que a
posteridade possa elaborar tal filosofia da história, devemos nós fa-
zer um imenso esfôrço analítico, humilde e penoso; para que o fu-
turo saiba, devemos nós resignar-nos com uma certa ignorância, con-
tentando-nos com monografias minuciosas. Oui, il viendra un, jour
oà l'humanité ne croira plus, mais oà elle saura; un jour oà elle
sagra le monde métaphysique et moral, comine elle sait déjà le
monde physique. . . Le principe indubitable, c'est que la nãture
humaine est en tout irréprochable, et marche au parfait par des for-
mes successivement et diversement imparfaites. La science est
donc une religion (248) . Sem dúvida, até agora a ciência destruiu
mais do que construiu: essa fase transitória foi necessária na evo-
lução humana. O homem primitivo vivia num estado de "sincre-
tismo", isto é, tinha uma vista geral, orgânica e construtiva das coi-
sas, mas confusa e pouco real e científica; a época seguinte, que é a
atual, tem uma visão distinta e analítica das coisas, destrutiva e
abstrata, mas exata e racional; na época definitiva será realizada
a síntese, oà la poésie, la religion, la science, la morale retrouveront
leur harmonie dans la réflexion complète. L'âge primitif était reli-
gieux, mais non scientifique; l'âge intermédiaire aura été irreligieux
mais scientifique; l'âge ultérieur sera à la fois religieux et scientifi-
que. Alors il y aura de nouveau dea Orphée et des Trismégiste, non
plus pour chanter à des peuples enfants leurs rêves ingénieux, mais
pour enseigner à l'humanité devenue sage les merveilles de la réa-
lité (249). O futuro organizará cientificamente a sociedade huma-
na. L'oeuvre universelle de tout ce qui vit étant de faire Dieu par-
fait, . . .il est indubitable que la raison. .. prendra un jour en main
l'intendance de cette grande oeuvre, et après avoir organisé l'hu-
manité, organisera Dieu (250). Pois a essência da religião, melhor
compreendida pelos gregos (251) do que pelo Cristianismo dogmá-
— Renan, L' Avenir de la Science, pág. 151: En un mot, M. Comte, n' entencl
rien aux sciences de l'humanité, parte qu' n' est pas philologue.
— Ibidem, págs. 91; 93; 108.
. — Ibidem, págs. 308-309.
— Ibidem, pág. 37. — Cf. pág. 495: Si je pouvais croire humanité éter-
nelle, je oonclurais sans hésiter qu'elie atteindrait le parfait. Mais il est
physiquement possibie que l'humanité soft dest:née à périr eu à s'épuiset
. . Dès lors, elle n' aura été qu' une forme transitoire du progrès divin de
toute chose, et du "fieri" de la consciente divine . . . Hegel est insoutenable
dans le rôle exclusif qu'il attribue à l'humanité, laquelle n' est pas sans
doute la seule forme consciente du divin, b:en que ce soit la plus evancée
que nous connaissions
. — Nos Souvenirs d'Enfance et de Jeunesse (págs. 62-72) encontramos a cé-
lebre Prière sur. Acropole, dirigida à deusa grega Palas Atena. Nesta ora-
ção de um cético lemos as palavras: Les Scythes ont conquis le monde; ii
n'y a plus de république d' hommes libres. Une "pambéotie" redoutable, une
ligue de toutes les sottises, étend sur le monde un couvercle de piorai?,
sous leque! on étouf fe . . Te rappelles-tu ce jour . . . , oà un laid petit jud,
parlant de grec des Syriens, vint ici, parcourut tes parvis seus te com-
prendre, lut tes inscriptions tout de travers et crut trouver dans ton ~tinte
un autel dédié à un dieu, qui serait le Dieu inconnu . En bien, ce petit juif
491 —

tico, é um ato entusiasta de veneração, o sentimento arrebatador do,


Ideal. L'homme en face du divin sort de lui-même, se suspend
un charme celeste, anéantit sa chétive personnalité, s'exalte, s'absor-
be. Qu'est-ce que cela si ce n'est adorer? (252). E a filosofia não,
é uma ciência autônoma; assim como o filósofo é sereno especta-
dor do mundo, assim chague système est la façon dont un esprit.
éminent a vu le monde, façon toujours empreinte de l'individualité
du penseur;. . par leur individualité même ils sont incommunica-
bles et surtout indémontrables (253). Os sistemas filosóficos são.
obras de arte: todos são igualmente verdadeiros e falsos. E filoso-
fia não é uma ciência superior, — rectrix scientiarum, — mas, como,
a entenderam bem os gregos un côté de toutes les sciences... Le'
philosophe, c'est l'esprit saintement curieux de toute chose (254).
No estado atual da humanidade, ela não existe, mas um dia há de
nascer, construindo a ciência do Todo por meio de conhecimentos
exatos das partes constitutivas. Mais tarde Renan dirá que o ho-
mem não pode elevar-se a êsse ideal, condenado que está a ficar
sempre com une nuance de foi.

II. A Vida de Jesus.

Compreender a humanidade, eis o grau mais alto da cultura


intelectual. Assim como o físico compreende a natureza mediante
as leis gerais, assim o historiador compreende a humanidade atra-
vés das leis da evolução humana . Là oi) le vulgaire voit ,fantaisie
et miracle, le physicien et le philosophe voient des lois et de
raison (255). A "psicologia da humanidade" poderá capacitar-nos
a compreender as leis invariáveis que regem os destinos humanos..
Mas aqui existe o perigo de surgir um mal-entendido. O homem
moderno, habituado a um raciocínio científico e analítico, poderia es-
tar inclinado a considerar a psicologia da humanidade como cons-
tante e invariável através dos séculos. Contra essa maneira abstra-
ta de encarar o fato humano, — principalmente em relação às cren-
ças sobrenaturais, — Renan defende o método concreto ou relati-
vista: as unidades históricas devem ser estudadas em relação à.
época e à raça a que pertencem. Pois cada civilização represente,
une unité, une façon de prendre la vie, un ton dans l'humanité, une

l'a emporté: pendant rrIVIVe ans, on t'a traitée d'idole, ô Vérité; pendant
mine ans, le monde a été un désert, oà ne germait aucune fleulr. Le monde ,
ne sere sauvé qu'en revenant à toi, en. répudiant ses attaches barbares. . .
Tout n'est ici que symbole et sonde. .,. Ne rien aimer, ne rien heir abso-
lutement, devient alors une sagesse. Pouvons-nous sans folie outrecuidance
croire que I'avenir ne nous jugera pas comme nous jugeons le passé?
— Renan, Avenir de la Science, pág. 476.
— lbidem, pág. 60.
— Ibidem, pág. 154, e 157. — Cf. R. Allier, La Philosophie d'Ernest Renen„
Paris, Alcan, 1903, pág. 50.
— Renan, L'Avenir de la Science, pág. 259.
— 492 —

faculté de la grande âme (256) . A época primitiva é espontânea e


imaginativa: para quem despreza o estudo de lendas, mitos, fábu-
las, crenças e superstições daqueles tempos remotos, está cortado
o caminho de uma reconstrução científica do passado. Devemos de-
cifrar êsses documentos veneráveis em que nossos antepassados de-
positaram seus ideais, suas ânsias, seus temores, suas esperanças, e
arrancar-lhes o verdadeiro significado. O mito não é invenção fria-
mente premeditada de sacerdotes interesseiros, como o acreditava o
ímpio século XVIII, mas sans préméditation mensongère, la fable
nait d'elle-même; aussitôt née, aussitôt acceptée, elle va se grossis-
sant comme la boule de neige (257) . A poesia é a roupa encan-
tadora com que se enfeita o pensamento humano na sua infância
(cf. Herder!) .
Ora, tal mito é o Cristianismo (cf. Strauss) . Não se pode con-
testar que Jesus foi personagem histórico. Jesus de Nazaré viveu
e foi un homme admirable (258). Renan quer faire son héros beau
et charmant (car sane contredit il le fut); et cela, malgré des actes
qui, de nos jours, seraient qualifiés d'une manière défavorable (259).
Se Jesus, para Comte, é charlatan, para Renan é un charmeur, e
fundador, não de uma religião qualquer, mas da religião sem mais
nem menos, como o foi Sócrates da verdadeira filosofia. A religião
de Jesus consiste num puro e sublime serviço de Deus, sem sacer-
dotes, sem ritos, sem templos, sem culto externo: é a religião com-
pletamente interiorizada, baseada nos impulsos mais nobres do co-
ração humano. Desde a Boa Nova, pregada pelo admirável Naza-
reno, o homem se sente direta e intimamente ligado a Deus. Nada
mais alheio à mentalidade de Jesus do que definir dogmas. Jésus
a fondé la religion absolue, n'excluant rien, ne déterminant rien si
ce n'est le sentiment (260). Não tinha em mente estender sua
atividade aos povos não-judeus: seu horizonte se limitava à Pales-
tina. Mas visto que vivia numa época mitológica e messiânica, via-
se constrangido a fazer concessões ao seu ambiente histórico por fa-
zer milagres e por se declarar o Messias: só a esta condição perce-
bia que poderia cumprir sua vocação profética. Para atingir seu al-
vo, fazia-se curandeiro, fenômeno bastante comum no Oriente dês-
ses tempos, e até na Grécia (261). Beaucoup de circonstances, d'ail-
leurs, semblent indiquer que Jésus ne fut thaumaturge que tarde et
à contre-coeur (262). Nos títulos de "Filho de Deus" e de "Mes-
(256). — Ibidem, pág. 175.
(257) . — Ibidem, pág. 263.
— Quando Renan, nomeado professor das línguas orientais no Collége de
France (1862), proferia sua alta inaugural, dizendo que Jesus fôra um ho-
mem incomparável, um decreto do ministério suspendeu-lhe as atividades aca-
dêmicas, as quais pôde retomar só na Terceira República.
— Renan, Vie de Jésus, pág. XXV.
— pág.-: 462.
— Ibidem, págs. 265-280.
Ibidem, pág. 275.
— 493 —

sias" não há nada que surpreenda: em rigor, não eram usurpações


por parte de Jesus. Pois todo homem religioso é, — ou pode tor-
•nar-se, — "filho de Deus", 8 Jesus, julgando necessária a abolição da
lei exterior de Moisés tinha todo o direito de se nomear, pelo menos
na sua concepção primitiva do Universo, "Messias". Quem deu os
fundamentos teológicos, filosóficos e institucionais à doutrina de Je-
sus, foi São Paulo, o verdadeiro fundador do Cristianismo histórico:
foi êle que o transformou também numa doutrina universal e num
instituto "ecumênico" ou mundial.
Não sejamos por demais severos para com êsses desvios de Je-
sus, — thaumaturge malgré lui, — nem para com seus adeptos que
viviam num estado de poétique ignorante: tais fatos devem ser apre-
ciados à luz da psicologia primitiva. A ciência moderna demonstrou
terminantemente a impossibilidade do milagre, mas essa conclusão,
resultado de uma época crítica, não a podemos esperar nos habi-
tantes pouco cultos de uma província atrasada do Império Romano
de há quase 2.000 anos. Para termos certeza de um milagre, seria
necessário que fôssemos capazes de Tepetí-lo à vontade, mas por isso
mesmo deixaria de ser milagre. Logo, milagres não existem. A ta-
refa principal da Crítica Histórica, quando aplicada à Bíblia, consis-
te em eliminar sistemàticamente os elementos milagrosos da tradi-
ção, e substituí-los, — respeitosamente, é verdade, — por uma expli-
cação racional e científica. Les miracles sont de ces chores qui n'ar-
rivent jamais: les Bens crédules seuls croient en voir; on n'en peut
citer un seul qui se soit passé devant des témoins capables de le
,constater. . . Ce n'est pas parce qu'il m'a été préalablement démon-
tré que les Évangélistes ne méritent pas une créance absolue que je
rejette les miracles. C'est parce qu'ils racontent des miracles que
je dis: "Les Evangiles sont des légendes; ils peuvent contenir de l'his-
toire, mais certainement tout n'y est pas historique (263). A bem
dizer, Renan não dá argumentos objetivos contra a impossibilidade
do milagre, mas gira num círculo vicioso: os fatos milagrosos da vi-
da de Jesus não merecem nossa fé porque foram testemunhados por
gente inculta; e essa gente era inculta porque acreditava em mila-
gres.

D. O EVOLUCIONISMO.

§ 103. Os antecedentes de Spencer.

Para as teorias progressistas do século XVIII bem como para


"Hegel e Comte, só o homem tinha "história"; para o sistema evolu-
cionista de Herbert Spencer, a história humana passa a •ser o capí-

,(263). lbidem, pág. VI.


— 494 —

tulo final, se não o apêndice, da evolução universal. Não é apenas


o espírito humano que evolve através dos séculos; o Universo in-
teiro, a abarcar o mundo inorgânico, as plantas, o reino animal e a
cultura humana, se acha num processo ininterrupto de desenvolvi-
mento necessário. Vem sendo abandonada a visão antropocêntrica
do mundo, e o homem ocidental do século XIX regride a uma con-
cepção "cósmica" da história, embora bem diferente da Breco-roma-
na. Neste parágrafo introdutório pretendemos focalizar algumas das
raízes históricas de Spencer.

I. O Pragmatismo do Povo Britânico.

O inglês é, no dizer de Salvador de Madariaga, essencialmen-


te homem de ação: L'Anglais, pensant, médite sur des actes; le Fran-
cais, agissant, execute des pensées... L'Anglais se nourrit d'actes;
le Français d'idées, et, par conséquent, l'un n'est desinteresse que
lorsqu'il agit, l'autre lorsqu'il pense . De même que le Français de-
mande aux actes un rendement d'idées, de même l'Anglais demande
aux idées un rendement d'actes (264). O temperamento britânico
tende pouco para puras especulações metafísicas e argumentações
apriorísticas, mas procura, na filosofia, preferivelmente normas prá-
ticas de agir e de fazer, e mostra predileção espontânea pelo método
empírico e indutivo. A história do pensamento inglês ilustra bem
essas tendências inatas: Roger Bacon, Thomas More, Lord Bacon,
Hobbes, Locke, Hume, Adam Smith, Stuart Spencer e tantos
outros se ocupam preferencialmente com problemas de ordem éti-
ca, social, política, econômica, técnica, educacional, etc. Instinti-
vamente, o inglês desconfia de abstrações, não querendo perder o
contacto com a realidade concreta, considerada, em primeiro lugar,
como um campo de atividade humana . Às especulações etéreas, tan-
to apreciadas pelos alemães, opõe-se o common sense inglês, pala-
vra riquíssima em associações difíceis de traduzir para qualquer ou-
tro idioma. O cento é que o common sense envolve uma visão rea-
lista, prática e, em certo sentido, relativista do mundo, quer dizer,
avêssa a posições extremistas. E o realismo inglês, no campo intelec-
tual, é, no setor afetivo, complementado por uma simpatia profun-
da, — às vêzes, até sentimental, = para com as coisas concretas da
vida . O produto bem sucedido do casamento entre o intelecto e o
coração é o sense of humour, outra palavra intraduzível do voca-
bulário inglês: designa uma disposição mental, aparentemente fria,
mas, na realidade, não destituída de uma sensibilidade delicada, a
enfrentar com amor a vida como ela é, e a amar fleumàticamente as
coisas concretas, embora sejam pequenas, deficientes e até ridículas.
(264) . — Salvador de M.adariaga, AnO.a14, Français, Espagnols, Paria, G4Smard,
1930, pág. 72.
— 495 —

Seu espírito eminentemente prático, — how to make the best


of it, — consegue reconciliar o que, em outros países, seria irrecon-
ciliável: o Catolicismo, o Protestantismo e o Liberalismo na Church
of England (265); o socialismo e o respeito pela liberdade do indi-
víduo humano, no Labour Party; a metrópole, os dominions, os pro-
tetorados e as colônias, no British Commonwealth; formas antigas
e idéias modernas, num itradicionalism o progressista. Sua política,
— em muitos pontos, comparável à de Roma, — é essencialmente
empírica, ou, — na terminologia dos adversários da "pérfida Al-
bião", — cinicamente oportunista; seu Império não é a criação de
um genial conquistador, e sim o fruto de várias gerações de pionei-
ros experimentados e de diplomatas hábeis; sua Constituição não
foi inspirada por ideologias abstratas, mas é o resultado bastante
complexo de uma longa evolução histórica e geralmente pacífica.
Podem ser muito divergentes as apreciações da mentalidade britâ-
nica: prudência, moderação, energia, habilidade, ou covardia, hipo-
crisia, oportunismo, e espírito rasteiro? Abstenhámo-nos de julga-
mentos genéricos e sempre injustos, e reconheçamos que a cultura
anglo-saxônia representa um tipo particular da variadíssima civili-
zação ocidental, sem o qual ela seria muito mais pobre.

II. O Utilitarismo de Stuart Mill.


John Stuart Mill (1806-1873), originàriamente admirador de
Comte (266), mas alheado dêle por causa das idéias extravagantes
expostas no Systeme de Politique Positive, interessava-se por vários
assuntos filosóficos: a lógica (crítica ao silogismo; o princípio de
causalidade fica reduzido à lei positivista: uma relação constante
entre dois fenômenos); a psicologia (os fatos da vida psíquica são
associações de imagens que a ciência pode decompor por meio de
uma_ mental chemistry); a economia (propugnava inicialmente o
liberalismo, para depois aderir a um socialismo moderado); a po-
lítica (combatia a tirania da maioria, e lutava pela igualdade da mu-
lher); e finalmente, a moral, a maior preocupação do autor.
Utility, diz Stuart Mill, or The Greatest Happiness Principie,
holds that actions are right in proportion as they tend to promote
happiness, wrong as they tend to produce the reverse af happiness.
By happiness is intended pleasure, and the absence of pain; by
. — The Established Church of England é composta da High Church (catoli-
cizante), Low Church (protestante) e Broad Church (liberal) .
. — A correspondência entre Comte e Stuart Mill foi publicada, em 1899, por '
L. Lévy-Brühl (cartas de 1841 a 1847) . — Stuart Mill chega também a
outra classificação das c'ências: abstratas são a matemática e a lógica;
meio-abstratas, meio-concretas são a mecânica, a física e a química; concre-
tas são a astronomia, a biologia, a psicologia (não considerada como discipli-
na autônoma por Comte), a sociologia e a moral. — Stuart Mill escreveu
entre outras obras: A System of Logic (1843); Prfnciples of Political Eco-
nomy, I-II (1848); The Ertfranchisement of Women (1853 ) ; On Liberty
(1859); Utilitarianism (1863); Three Essays on Religion (1874), etc.
— 496 —

- unhappiness, pain, and the privation of pleasure (267) . Ao con-


trário de Bentham (268), que acreditava numa "aritmética .dos
prazeres", Stuart Mill admite diferenças qualitativas entre as di-
versas espécies de prazeres, diferenças não suscetíveis de uma sis-
- tematização rigorosamente científica, e sim de uma apreciação jus-
ta pelo juízo prudente de um homem experimentado (269) . It is
better to be a human being dissatisfied than a pig satisfied; better
to be a Socrates dissatisfied than a fool satisfied. And if the fool,
or the pig, are of a different opinion, it is because they only know
their own side of the question. The other party to the comparison
knows both rides (270) . Em segundo lugar, a norme legítima do
prazer não é a satisfação individual do agente, but the greatest
amount of happiness altogether (271). Um espírito culto, — e o
autor não duvida de que, um dia, todos os homens serão cultos,
graças a melhores condições sociais e a uma sólida instrução ra-
cional, — está habituado a sair dos limites estreitos da sua perso-
nalidade, por contemplar as maravilhas da natureza, por aprazer-
se nas obras de arte, por reviver os destinos humanos do passado,
e por nutrir-se de esperanças acêrca da humanidade vindoura. Sem
dúvida, podem surgir conflitos dolorosos entre a utilidade indivi-
dual e a coletiva, e aí serão necessários sacrifícios. The utilitarian
morality does recognize in human beings the power of sacrificing
their own greatest good for the good of others. It only refuses to
admit that the sacrifice is itself a good. A sacrifice which does not
increase, or tend to increase, the sum total of happiness, it considers
as wasted (272) . A moral utilitarista de Stuart Mill sofre dos de-
feitos de tôda e qualquer ética positivista: suas normas são rela-
tivistas, seus imperativos não possuem o caráter de uma verdadeira
obrigação moral, e às suas leis falta o elemento de sanção.

III . O Transformismo.
Mais importante ainda para a compreensão do sistema de
Spencer é o Transformismo ou o Evolucionismo (273) .

. — Stuart Mill, Utilitarianism, ed. Everyman's Library, pág. 6.


. — Jeremy Bentham (1748-1832), filósofo e jurisconsulto inglês, proclamado
cidadão francês pela Convenção. Era adversário da moral cristã, e mostrava
pouca compreensão pelos supremos valores da vida humana. Segundo êle, o
fim da moral e do direito é garantir: the greatest happiness of the greatest
number. Escreveu por exemplo: Introduction to Principies of Morais and
Legislation, Punishments and Rewards, Parliarnentary Reforrn Catechism.
(269) . Stuart Mill, UWitarianism, pág. 11: The test of quality, and the.role for
rneasuring it against quantity, being the preferente felt by those who in their
opportunities of experiente, to which must be added their habits of self-
consciousness and sell-observation, are best furnished with the means of
comparison.
(270). — Ibidem, pág. 9.
. Ibidem, pág. 10.
. — Ibidem, págs. 15-16.
(273) . — Cf. R. Boigelot, L'Homme et ?Univers (em 3 fascículos), na Coleção "Ren-
contres", Bruxelles-Paris-Liège, 1946. — Cf. § 65 IV.
— 497 —

Se fazemos abstração de umas intuições geniais de Buf-


,fon (274) e de Goethe (275), podemos considerar o biólogo fran-
cês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) como o pai do transfor-
mismo moderno (276) . Ao classificar, na sua Philosophie Zoolo-
gique (1809), as diversas classes de animais, deparava com certas
dificuldades que o levavam a considerar a espécie, não como um
grupo rigorosamente fixo e fechado, mas, em numerosos casos, co-
mo o resultado de lentas transformações acumuladas durante lon-
gos períodos de tempo. Por outras palavras, Lamarck, embora ad-
mitindo a graduação regular das espécies do reino animal como
"caso normal", via na ação do meio (alimentos, clima, etc.) um fa-
tor que muitas vêzes perturba a classificação gradativa das diver-
sas espécies. Segundo êle, a formação de certas variações no reino
animal se explica pela adaptação do organismo a um novo ambien-
te: a modificação do ambiente desperta, no organismo, novas
necessidades, e estas forçam o organismo a se ajustar ao seu
ambiente modificado; o resultado dêsse processo é a modifi-
cação, a aquisição ou a perda de certos órgãos. La fonction crée
Porgane, isto é: os indivíduos animais, originàriamente pouco dife-
renciados (Lamarck admitia uns seis tipos elementares), reagindo
e adaptando-se cada vez melhor às necessidades externas do meio
como também às suas necessidades internas, criam para si e para
•sua descendência órgãos apropriados que se tornam hereditários.
'Dessa evolução é excetuado o homem, e Deus é a Causa Primária
de todo o processo. O naturalista Cuvier (277), apoiado por Com-
te (cf. nota 147), combatia a nova teoria.
Quem a reencetou, divulgou e generalizou, dando-lhe uma
âmbito puramente determinista, foi o inglês Charles Darwin (278).
Sob a influência das teorias de Malthus (279), Darwin chega à fa-

. — Georges-Louis-Leclerc de Buffon (1707-1788), célebre naturalista francês e'


estilista aprimorado, autor da H istoire N aturei le ( 1749-1789) .
. — Goethe, influenciado pela concepção "orgán , ca" de Herder, escreveu, em
1789, V ersuch, die Metamorphose der P f anzen zu erkliiren "Tentativa
de explicar a Metamorfose das Plantas"), na qual mostrava a fôlha como o
órgão primitivo (alemão: Urorgan) de tôdas as plantas. Em 1784, desco-
briu a maxilla Goetheana (um osso maxilar, considerado como uma espécie
de missing link) .
'(276). — Já o pré-socrático Anaximandro tinha defendido, na Antigüidade, a origem
animal do homem, cf. Censorinus, De Die Natali, IV 7: Anaximander Mi-
lesius videri sibi ex aqua terraque cale/ actis exortos esse sive pisces seu
pisci bus simillima animalia; in his homines concrevisse f etusque ad puber-
taterd rotos relentos; tunc demum ruptis il lis viros mulieresque qui iam se
alere possent processisse. — Cf. Diels, Fragmente, etc., 12.
, (277) . — Georges Cuvier (1769-1832), naturalista francês, um dos criadores da ana-
tomia comparada e da paleontologia.
(278) . — Charles Darwin (1809-1882), autor das obras The Origin of S pec:es (1859)
e The Descent of Man (1871) . — O "darwinismo", que parecia compro-
meter as bases do Cristianismo e provocava grande escândalo na Igreja An-
glicana, era combatido pelo zoologista inglês Sir Richard Owen (1804-1892) .
,1(279) . — Thomas Robert Malthus (1766-1834), economista inglês, sustentava, na sua

obra Essay on the Principies of Population (1798), a tese de que a popu-


lação humana cresce em proporção geométrica, ao passo que os meios de sub-
sistência aumentam numa progressão aritmética.

Revista de História n.o 28


— 498 —

mosa doutrina da "luta pela vida" (struggle for life). Na dura luta
pela existência, poderá manter-se apenas aquêle indivíduo ou
aquela espécie que conseguir ajustar-se adeqüadamente às condi-
ções do seu ambiente. Os fracos sempre perdem, e os fortes sem-
pre vencem: é a seleção natural, ou the survival of the fittest (280).
São desenvolvidas, conservadas e transmitidas a outras gerações só
aquelas qualidades que se mostraram úteis para a subsistência e para
a vitória. Darwin, apesar de ficar cada vez mais influenciado por
seus admiradores (Huxley, cf. nota 189) indiscretos e determinis-
tas, atribuía a causa fundamental dessas transformações (as quais
abrangem também o homem) a Deus: não podia convencer-se de
que essa pujante série de acontecimentos pudesse ser o resultado
do cego acaso. Esta frase de Darwin (in The Descent of Man,
1871) é amiúde esquecida pelos adeptos e pelos impugnadores
do transformismo darwiniano.
c) Finalizando, mencionamos aqui o astrônomo e matemáti-
co francês Pierre-Simon Marquis de Laplace (1749-1827), discí-
pulo de Condorcet. Laplace e Kant (281) formularam uma cos-
mogonia científica, segundo a qual o nosso sistema solar seria o
resultado de uma evolução lenta de uma nebulosa primitiva e caó-
tica.

§ 104. O engenheiro filósofo.

Herbert Spencer (1820-1903), representante típico do indivi-


dualismo da éra vitoriana, consagrou uns cinqüenta anos da sua
vida à elaboração sistemática do Evolucionismo (282) . O "Lucré-
cio dos Tempos Modernos", que iniciara sua carreira como enge-
nheiro, dava em numerosos tratados e ensaios uma interpretação
mecanicista do Universo. Possuía uma curiosidade extraordinária
e extensos conhecimentos enciclopédicos; trabalhador infatigável,
tinha, além de uma energia férrea, um notável dom de síntese . Mas,
ao contrário do Lucrécio romano, Spencer nada tinha de um ins-
pirado, e seu De Rerum Natura é bastante prosaico, árido e até
enfadonho: no dizer de William James, o autor inglês tinha o tem-
peramento de um schoolmaster. Autodidata presunçoso, dogmáti-
co e pedante, e, a despeito de uma erudição respeitável, espírito
— A expressão, antes de ser usada por Darwin, já se encontra num ensaio de
Spencer (1857).
— Na obra Mécanique Céleste, I-V (1799-1825). A teoria, já emitida por
Kant, em 1755 (in AI,Igemeine Naturgeschichte und Theorie des Himrnels),
é conhecida sob o nome de "hipótese de Kant-Laplace" (hoje abandonada).
— As obras principais de Spencer são: First Principies (1862); Principies of
Biology, I-II (1864-1867); Principies of Psychology, I-TI (1870-1872);
Principies of Sociology, I-III (1876-1885); Principlea of Morality, I-1I (1892-
1893). Ésses 10 volumes constituem A System of Synthetic Philosophy, e
foram condensados num só volume por F. Howard Colhia na Epitome. Em
1904, saiu obra póstuma: Autobiography, e, em 1908, David Duncan editou
The Letters and Life of Herbert Spenoer.
— 499 —

estreito (283), tinha fé absoluta nos princípios uma vez adotados,


recusando-se sistematicamente a tomar conhecimento de opiniões
que contrariassem às suas. Seu sistema, mais extenso do que pro-
fundo e de construção friamente cerebral, revela muito menos inte-
rêsses históricos, literários e culturais do que os de um Hegel ou de
um Comte.

I. O Cognoscível e o Incognoscível.

De acôrdo com suas convicções positivistas, Spencer admite


epenas conhecimentos concernentes ao mundo dos fenômenos sensí-
veis. Todo o conhecimento humano é relativo, baseando-se neces-
sariamente em têrmos de comparação: diferença e semelhança
(284) . Ora, há três espécies de conhecimento: o pré-científico, o
científico e o filosófico. Knowledge of the lowest kind is un-unified
knowledge; Science is partially-unified knowledge; Philosophy is
completely-unified knowledge (285). A filosofia spenceriana não
é ciência autônoma, mas tem por tarefa de sistematizar e de gene-
ralizar os resultados das ciências particulares, que são exclusiva-
mente experimentais (cf. Comte). Nossa consciência, — uma su-
cessão ininterrupta de percepções e de impressões, — é correlativa
.da realidade persistente, a qual é relativa e se acha em perpétua
mudança. Há duas manifestações primárias dessa realidade: pela
primeira, manifesta-se-nos a Matéria indestrutível na sua existên-
cia; pela segunda, ela se nos manifesta na sua ação perpétua, di-
gamos: no seu movimento contínuo. Nenhum conhecimento é pos-
sível sem êstes dois postulados: the indestructibility of Matter, •e
the continuity of Motian. Essas duas leis fundamentais são redu-
tíveis a uma lei mais ampla ainda: the Persistence of Force, pois
a Matéria nos mostra a manifestação da fôrça como resistência, ao
passo que o Movimento nô-la apresenta como perpétuo agente..
Fôrça, portanto, é the ultimate of ultimates. It needs but to re-
member that consciousness consists of changes, to see that the ulti-
mate datum of consciousness must be that of which change is the
manifestatian (286) . A Persistência da Fôrça não pode ser de-
monstrada: é uma verdade transcendente a tôda e qualquer de-
monstração científica, for it must be assumed in every experiment

<283) . — Para ter uma idéia da "unilateralidade deformadora" do "engenheiro Spencer


a sobreviver no filósofo Spencer", leia-se Leonel Franca, A Psicologia da Fé,
Rio de Janeiro, Agir, 1952 6, págs. 103-105, e 74-76.
(284) . Spencer, First Principies, pág. 60: A thought involves relation, difference, li-
keness. Whatever does not present each of these does not admit of cognition.
And hence we may say that the Unconditioned, as presenting nono of them,
is trebly unthinkeible.
<285). — Ibidem, pág. 104.
(286). — Ibidem, pág. 132.
— 500 —

or observation by which it is proposed to prove it... (It is) the


ziltimate truth in which... Religion and Science coalesce (287).
A interpretação cada vez mais aprofundada dos fenômenos da
natureza leva o espírito humano a certas noções fundamentais que
o põem inevitàvelmente diante de enigmas indecifráveis (288),
por exemplo: o Espaço, o Tempo, a Matéria, o Movimento, a Fôr-
ça, a Consciência e a Substância, que são the ultimate scientific
Ideas. Os fenômenos relativos, incapazes de se explicar a si mes-
mos, são aparências ou símbolos de uma Realidade extra-fenomê-
nica (289): o mundo relativo dos fenômenos pressupõe necessà-
riamente a existência do Absoluto. Não fôsse assim, o próprio re-
lativo se tornaria absoluto. Mas, visto que nosso conhecimento é
relativo, escapa-nos por completo o Absoluto, o Incondicionado, o
Infinito, a Suprema Realidade. Quanto ao mundo extra-fenomêni-
co, Spencer adere a um agnosticismo completo, e servindo-se dos
argumentos formulados por dois kantianos inglêses, Hamilton (290)
e Mansel (291), chega à conclusão de que o Absoluto é para nós
um mistério total: the great Unknowable. Teísmo (292), panteís-
mo e ateísmo são posições igualmente ilegítimas, porque têm a pre-
tensão de dizer algo a respeito do que ultrapassa totalmente nossa
capacidade intelectual. E não só a razão, mas também os senti-
mentos e a vontade não acham o caminho do Absoluto, that Rea-
lity which is behind the veil of Appearance (293). O Absoluto é
até incapaz de se revelar ao homem relativo.

— Spencer, Epifome, I 61; cf. I 23: From the fact that the successively deeper
interpretations of nature which constitute advancing knowledge are merely
successive inclusions of special truths in general truths, and of general truths
in truths still more general; it obviously fo4lows that the most general truth,
not admitting of inclusion in any other, does not admit of interpretation.
— Spencer, First Principies, pág. 48: Ultimate Scientific Ideas, then, are re-
presentativo of realities that cannot be comprehended, Atter no matter how
great a progress in the colligation of facts and the establishment of genera-
lizations ever wider and wider, the fundamental truth remains as much beyond
reach as ever.
— Ibidem, pág. 65, onde Spencer opõe o "fenômeno" ao "númeno" (cf. Kant:
die Erscheinungen, und das Ding an sich), dizendo: The Noumenon, everywhere
named as the antithesis to the Phenomenon, is necessarily thought of as an
actuality. It is impossible to conceive that our knowledge is a knowledge
of Appearances only, without at the same time assuming a Reality of which
they are appearances; for appearance without reality is unthinkable.
{290). — William Hamilton (1788-1856) escreveu três artigos na Edinburgh Review
(1829-1833), nos quais, sob a influência de Kant, afirmava a insuficiência
total da razão humana de conhecer the Unconditioned, que pode ser apenas
objeto de uma ignorância douta; o homem encontra na sua moralidade mo-
tivos para crer na existência de Deus.
<291 ) . — H. L. Mansel (1820-1871) tenta, no seu livro The Limits of Religious
Thought, desmascarar as incoerências e as contradições internas dos conceitos
que a inteligência humana forma a respeito de Deus.
<292). Nem sequer podemos afirmar que Deus seja Pessoa ou infinita, cf. , Spencer,
First Principies, pág. 80: As writes Mr. Mansel. "It is our duty, then,
to think of God as personal; and it is our duty to believe that He is infinito".
Now if there be any meaning in the foregoing argumenta, duty requires us
neither to affirm nor deny personality. Our duty is to submit ourselves to the
established limita of our intelligence, and not perversely to rebel against
them. — Deus é, segundo Spencer, objeto de uma "consciência indefinida".
{ 293 ) . — Ibidem, pág. 81 .
-501—

Assim ficam rigorosamente separados os terrenos da religião


(que tem por objeto o Incognoscível) e da Ciência (que tem por
objeto o Cognoscível): nenhuma das duas tem o direito de pene-
trar no domínio da outra. Na fase atual da evolução humana, cada
uma delas nos apresenta as deficiências de um desenvolvimento im-
perfeito, mas dia virá em que entre elas reinará uma harmonia per-
feita (294). Então o cientista reconhecerá como limites intranspo-
níveis dos seus conhecimentos aquilo que o fiel venerará humilde-
mente como o mistério total. E' inevitável que o homem conceba
o Absoluto como certa modalidade de ser, mas seria audácia ím-
pia (295) atribuir a êsse conceito mais valor do que o de um sím-
bolo, que tivesse alguma semelhança com a Realidade indicada. O
Cognoscível será cada vez mais conhecido, mas o Incognoscível
continuará sempre desconhecido, por mais que progridam as ciên-
cias. May we not affirm that a sincere recognition aí the truth
that our own and all other existence is a mystery beyond our com-
prehension,, contains more of true religion than all the dogmatic theo-
logy ever written? (296) .
Tôdas as religiões históricas contêm uma verdade relativa, e
uma religião se torna "melhor" na medida em que se adapta melhor
às exigências do seu meio. Seria errôneo apreciá-las pelo critério
da verdade, — que neste terreno é inacessível ao homem, — mas
devemos julgá-las principalmente pelo grau da sua utilidade social.
Já que as condições externas se modificam incessantemente, a reli-
gião deve acompanhar êsse ritmo da evolução universal. São igual-
mente nocivos um dogmatismo intolerante e uma atitude comple-
tamente passiva perante os credos religiosos. While it is requisite
that free play should be given to canservative thought and action,
progressive thought and action must also have free play (297). Do
free play, — tradução do adágio famoso da escola liberal: laissez
feire, laissez passer (298), — o autor espera os melhores resulta-
dos para a evolução da humanidade, não só no terreno da política
e da economia, mas também no setor religioso. Conseqüentemente,
é inútil e até absurdo, no pensamento de Spencer, fazer uma tenta-
tiva de "converter" os povos primitivos ao cristianismo: as religiões
primitivas se adaptam ao nível cultural do seu meio, e constituem
fases necessárias de processo universal de evolução.
(294) . — Ibidem, pág. 80: Religion and Science are therefore necessary correlatives.
To carry further a metaphor before used, — they are the positive and
negative poles of thought; of which neither can gain in intensity without
increasing the intensity of the other.
— Ibidem, pág. 82: Volumes mlght be written upon the impiety of the pious.
— Ibidem, pág. 83.
— Ibidem, pág. 91.
— A d visa dos fisiocratas, formulada (muito provàvelmente) por Vincent de
Gournay (em 1758) contra a escola dos mercantilistas. As idéias liberais,
no setor econômico, foram propagadas por Adam Smith (1723-1790) no
livro: An Inquiry into the Natune and Causes of the Wealth of Nations
(1776).
— 502 —

O agnosticismo de Spencer não vai sem contradições. O autor


revela sólidos conhecimentos a respeito do Absoluto que presume
desconhecer totalmente; chegado a um ponto, onde as regras de
uma boa lógica lhe impõem a conclusão de certos atributos divinos,
faz de repente uma viravolta, querendo obrigar-nos a uma ignorância
total. E' que nega o valor da "analogia", solução essa situada entre
a aequivocitas e a univocitas (299) e pela qual o homem fica ca-
pacitado para atingir uma idéia, embora muito imperfeita, da es-
sência e dos atributos de Deus. Em segundo lugar, uma religião
que tem por objeto um ser do qual nada podemos saber, e com o
qual não podemos entreter relação alguma, é a própria negação do
conceito da religião. A confissão da "insuficiência humana" sem
mais sem menos ainda não é religião; vivida até seu extremo, deve
levar a um indiferentismo completo, não a um ato de veneração.
Não sabemos se o Absoluto é bom ou mau, justo ou cruel, nem se
trabalha para nossa felicidade ou para nossa perdição. Quais os
alicerces em que se pode basear o culto que lhe rendemos? E afi-
nal, na realidade, Spencer, apesar de negar a possibilidade de uma
metafísica, adere a uma metafísica implícita: tende a conceber ca-
da vez mais o seu Incognoscível como a Fôrça imanente do Uni-
verso.

II. Evolução e Dissolução.

Estabelecidos êsses princípios filosóficos, Spencer tenta dar


uma explicação científica do grande processo evolutivo do Univer-
so. A lei fundamental que o determina é: a redistribuição contínua
da Matéria e do Movimento. Na medida em que a matéria se con-
centra ou se condensa, dissipa-se o movimento; na medida em que
a matéria se desagrega, concentra-se o movimento. O primeiro pro-
cesso chama-se "evolução"; o segundo chama-se "dissolução". Evo-
lução e Dissolução são dois processos que eternamente se alter-
nam no Universo. Caracteriza-se a Evolução por uma passagem da
homogeneidade indefinida e incoerente (= instável) à heteroge-
neidade relativamente definida e coerente (= estável), ao passo que
o movimento sofre uma transformação correspondente (300) .

. — Sôbre a analogia entis, questão tornada muito atual em nossos dias pelo
teólogo protestante Karl Barth (que declara ser esta a marca divisória entre
o Catolicismo e o Protestant'smo), cf. o livro do teólogo brasileiro Tei-
xeira-Leite Penido, Le Rôle de I' Analogie en Théologie Dogmatique, Paris,
1931.
. — Spencer, First Principies, pág. 321: Evolution is an integration of matter
and concomitant dissipation of motion; clur.'ng which the matter passes from
an indefinite, incoherent homogeneity finto a relatively definite, coherent he-
terogeity; and during which the retained motion undergoes a parallel trens-
formation. A prime.ra parte desta fórmula (a passagem do homogêneo à
heterogêneo) devia-a Spencer ao zoologista alemão K. E. Von Bãr (1792-
1876) .
— 503 --

Essa lei aplica-se, em primeiro lugar, ao nascimento do pró-


prio Universo . Originàriamente havia uma nebulosa (cf. Laplace,
§ 103 III c) homogênea, confusa e de extensão indefinida que, aos
poucos, se ia transformando em mundos solidários, heterogêneos,
definidos, distintos e relativamente estáveis. Passando dessa teo-
ria( que Spencer considera como hipótese) a argumentos mais se-
guros, o autor mostra que a Terra, inicialmente uma massa homo-
gênea, incandescente e caótica, foi-se esfriando, o que dava origem
a nova fase de diferenciação: mares e continentes. Na costa fina
da Terra resfriada continuam a evolver constantemente novas dife-
renciações: a matéria inorgânica cria,,' devido a certas combinações
espontâneas de natureza química, a vida orgânica, e a vida dos ani-
mais superiores com seus organismos muito complexos origina-se das
formas pouco diferenciadas da vida inferior. A função cria o órgão
(cf. Lamarck, § 103 III a), e os organismos, envolvidos numa in-
cessante lista pela vida, vencem ou sucumbem conforme conseguem,
ou não conseguem, adaptar-se passivamente às necessidades do
meio (cf. Darwin, § 103 III b). A vida é the continuous adjustment
of internai relations to externai relations (301), e sua evolução con-
siste numa especialização progressiva dessas interrelações. Expe-
riências acumuladas pelos organismos vivos tornam-se qualidades
habituais e, depois, hereditárias: sob a influência de estímulos ex-
ternos, criam-se, nos animais superiores, funções cada vez mais
heterogêneas, estáveis e complexas: assim se originam, no homem,
o instinto, a memória, a razão, os sentimentos e a vontade. Do
protoplasma original até às faculdades pràpriamente ditas humanas
o processo evolutivo é sempre o mesmo: ininterrupto e contínuo,
não admitindo uma distinção absoluta entre o biológico e o men-
tal; além disso, o processo é completamente determinista e mecâ-
nico, aparecendo a Inteligência não no início, mas só no fim da
evolução. O indivíduo humano possui, na estrutura do seu siste-
ma nervoso e cerebral, — órgãos criados por funções (302), — a
preciosa herança das experiências acumuladas por seus antepassa-
dos, pelo que se explica biolàgicamente o progresso na história. The
ever-accumulating, ever-complicating super-organic (303) products,
material and mental, constitute a further set of factors which beco-

. — Spencer, Epítome, II 30.


. — Ibidem, II 55: Function must be regarded as taking precedence of Structu-
re, and not Structure of Function.' . (58): Functions, like structures, arise
by progressive differentiations. . This progress from simple to complex
actions, been aptly termed. .. . the "physiological division of labour".
(59) : ..At the same time thtat func ions are being differentiated, they
are also b' eing integrated. Whife in well-developed creatures the distinction
of functions is very marked, the combination of functions is very dose —
Para o s'gnificado de integration na evolução mental, cf. Ibidem, III 75-76.
. — Super-organic significa, na terminologia spenceriana, "social", cf. Epítome,
IV 5.
— 504 —

me more and more influential causes of change. The potencv of


these can hardly be overestimated (304).
O homem, — the latest and most heterogeneous creature, —
obedece, na sua evolução, à mesma lei universal. O homem é um
social unit, e a sociedade atual, diferenciada e heterogênea, é o re-
sultado de um processo natural e necessário que partiu de um sim-
ples agregado de indivíduos humanos, caótico e homogêneo. O
progresso social é devido a um ajustamento cada vez mais eficiente
dos homens ao seu ambiente natural e social. Em sociedades pri-
mitivas, a única diferença nítida entre os indivíduos humanos é a en-
tre os dois sexos; mas a evolução social traz consigo muito cedo a
diferenciação entre governadores e governados, entre sacerdotes e
profanos, e assim por diante. Os representantes das duas institui-
çõs primordiais, — o Estado e a Igreja, — não cessam de se dife-
renciar novamente em inúmeras subdivisões: os do Estado, em mo-
narcas, ministros, sátrapas, deputados, prefeitos, etc•., e os eclesiás-
ticos em papa, bispos, sacerdotes, etc. No decurso dos séculos,
vai-se diferenciando também o trabalho: nascem as diversas clas-
ses sociais que tendem cada vez mais a subdividir-se em grupos
profissionais de especialistas. A linguagem originàriamente com-
posta apenas de exclamações ou, quando muito, de verbos e subs-
tantivos, evolveu incessantemente para terminar num sistema com-
plicadíssimo de várias categorias gramaticais, cada uma das quais
não deixa de ramificar-se em numerosas classes secundárias, tais
como gênero, modo, tempo, grau, etc. A praxe de desenhar, —
inicialmente de significado sagrado e religioso, — resultou no nas-
cimento de duas artes diferentes: a pintura e a escrita, cada qual
com as suas subdivisões. O Ritmo na fala, no som e no movimen-
to, constituíam originàriamente partes de uma única coisa homo-
gênea, e só depois foi-se diferenciando em três artes bem distintas:
a Poesia, a Música e a Dança.
Basta termos dado êsses exemplos do catálogo spenceriano:
from the remotest past which Science can fathom, up to the novel-
ties of yesterday, that' in which Progress essentially consists, is the
transformation from the homogeneous into the heterogeneous (305).
Como explicar a passagem do homogêneo ao heterogêneo? Spencer
responde: Every active force praduces more than one change, —
every cause produces more than one effect (306). A decomposição
de uma fôrça indefinida e homogênea em várias fôrças definidas e
heterogêneas pode ser ilustrada por um fato muito simples: a inven-
ção da locomotiva influenciou os preços das mercadorias,•possibilitou
viagens rápidas e freqüentes, favoreceu as relações comerciais, cultu-
— Ibidem, IV 12.
— Spencer, On Progress (do ano 1857, ed. "Everyman's Library", pág. 175).
— Ibidem, pág. 176.
-505—

rais e sentimentais entre os homens, e afinal deu origem à cheap


literatura and advertisements in railway-carriages.
Destarte tudo está imerso no imenso Oceano da evolução uni-
versal: os sistemas solares, a formação do nosso planeta, a origem
do primeiro protoplasma, a vida das plantas e dos animais, o ho-
mem e a sociedade, a religião e a moral, as artes e as ciências. Na-
da se subtrai à explicação evolucionista, que confunde os limites
entre a natureza inorgânica e a vida, entre a matéria e o espírito.
Depois de ver tudo explicado pela evolução, o leitor gostaria de
ouvir uma palavra esclarecedora sôbre o próprio fato da evolução.
Mas Spencer, encerrado nas suas prevenções positivistas, esquiva-se
metedicamente dessas questões, relegando-as para o terreno do In- -
cognoscível, êsse impenetrable mystery.

III. O Progressismo de Spencer.

O Progressismo spenceriano reveste-se de feições peculiares.


O filósofo não acredita que as aquisições do Progresso sejam defi-
nitivas, mas julga que a Dissolução é o complemento necessário
da Evolução, e vice versa. As fôrças do Universo tendem para cer- -
to equilíbrio (Evolução), mas, uma vez atingido êsse estado, seguir-
se-á um movimento contrário a ter seu têrmo final na Morte (Dis-
solução) . Os dois processos, revezando-se eternamente, ilustram
the Persistence of Force. Ao que parece, Spencer adere a uma
concepção cíclica da história, mas, diferentemente de certos auto-
res antigos, não se expõe ao perigo de entrar em especulações mais
ou menos detalhadas sôbre o processo de eterna repetição: the -
questions involveci pass the bonds of rational speculations (307) .
Apesar de declarar o Progresso a beneficent necessity (308),,
o autor é incapaz de fundamentar o caráter benfazejo da evolução,
visto que professa um determinismo radical: tudo se processa de
maneira mecânica, sem finalidade imanente ou transcendente (309).
Seu Progressismo não legitima esperanças imediatas, mas exige
longa paciência e muita resginação: a lei biológica da seleção na-
tural é inexorável. O Evolucionismo de Spencer é pouco capaz' de
inspirar um programa revolucionário (Marx), ou sentimentos de
satisfação (Hegel), e muito menos ainda capaz de justificar um
culto humanista de auto-adoração (Comte) . O homem fica redu-
zido a uma peça insignificante de um mecanismo enorme, ou me-

. — Spencer, First Principies, pág. 431."


. — Spencer, On Progress, pág. 195. — Em 1902, Spencer editou uma coleção
de artigos, Facts and Comments, em que mostrava sua profunda decepção
quanto ao "progresso" moderno (Imperialismo, Militarismo, etc.) .
. — A não ser que a "coerência" implique certo finalismo; ao que parece, po-
rém, Spencer emprega êsse têrmo para indicar a "estabilidade", simples..
efeito mecânico da conservação da fôrça, efeito êsse que é contrabalançado
pelo processo de dissolução.
— 506 --

lhor, a um zero . Por isso mesmo, êste determinismo nos parece


mais deprimente ainda do que o determinismo nos sistemas ante-
riormente estudados . Se muitas conclusões do autor britânico apre-
sentam certa semelhança com as de Taine, devemos, por outro la-
do, reconhecer a superioridade do historiador francês no que diz
respeito à sua sensibilidade e aos seus conhecimentos do homem con-
creto. O fleuma imperturbável de Spencer acaba por se tornar irri-
tante, e sua falta de compreensão dos valores imponderáveis da vida
humana é insuportável.
A moral spenceriana estuda human conduct as a whole, . . . as
a part of that larger whole constituted by the conduct of animate
beings in general (310) . Enquanto existia apenas um agregado de
indivíduos humanos, a única norma da atividade humana era o
egoísmo; na medida em que se ia desenvolvendo a sociedade, —
principalmente, devido à divisão do trabalho, — o indivíduo torna-
va-se cada vez mais sensível aos sentimentos de altruísmo. E' só
na fase social da humanidade que podemos falar de uma ética pró-
priamente dita, aliás concebida de maneira completamente utili-
tarista (cf. Stuart Mill, § 103 II) . Puro egoísmo e puro altruísmo
são duas formas ilegítimas de moral. A Moral Absoluta, — por en-
quanto, um ideal inatingível, mas, um dia, uma realidade a ser al-
cançada por uma humanidade mais desenvolvida, — reconciliará o
egoísmo e o altruísmo de maneira espontânea, considerando como
bom todo ato que se adapte perfeitamente ao ambiente social, isto
é, contribua para o bem-esar do agente, da sua descendência e dos
seus semelhantes contemporâneos. Aí o altruísmo não será acom-
panhado do sentimento desagradável de abnegação, e o egoísmo não
será associado à falta de respeito por outros indivíduos. Enquanto
não estiver atingido êsse têrmo, devemos contentar-nos com urna
Moral Relativa, que conhece apenas compromissos (311) .
O liberal Spencer acredita no triunfo final do Socialismo, o
qual, para êle, não pode ser o resultado de uma ação -revolucioná-
ria:, mas o têrmo final de uma lenta evolução natural e espontânea. O
Estado não pode interferir na marcha das coisas, mas deve limitar-se
a proteger os direitos do indivíduo. Seu dogma de seleção natural fa-
zia-o inimigo declarado de . uma legislação social como também de
qualquer assistência pública aos pobres. Segundo êle, a interferência
do Estado deteria o processo de purificação, aumentaria o vício, e mul-
tiplicaria o número dos descuidados e dos incompetentes, chegando
a desalentar a iniciativa e os esforços dos competentes. Mas his
instinctive hatred of Militarism led him to elaborate a peculiar and
somewhat inconsistent theory, according to which the system of

— Spencer, Epitome, V 2.
— Ibidem, V 99-106.
— 507 —

political centralization and military organization which corresponda-


to the brain and the nervous system in the individual organism must
give place to industrialism which is the social counterpart of the
nutritive system, so that the process of social development would -
seem to lead to the increasing predominance of the stomach over
the brain (312) .
O utilitarismo de Spencer manifesta-se também no seu ensaio
On Education (313), no qual defende a superioridade de uma edu-
cação científica (que é useful) à educação humanista (que é orna-
mental). Povos primitivos preferem ornamentos a roupas; o ho-
mem de uma civilização adiantada não deve proceder assim. Com-
bate os estudos clássicos como sendo de pouco ou nenhum valor prá-
tico (314), e julga que devem ser substituídos por uma educação •
científica: Science is most worth for direct and indirect self-preser-
vation. Necessary and eternal as are its truths, all Science con-
cerns all mankind for all time (315). O racionalista e pragmatista
Spencer sacrifica o homem ao técnico.
O homem primitivo chega a uma idéia de certo "dualismo" da
natureza humana (316) mediante sonhos, sonabulismo, sombras, .
apoplexias, desmaio, ecos, etc. Estados temporários de inconsciên-
cia ficam associados com o estado permanente de inconsciência, a
morte, e conduzem o homem primitivo a acreditar num other-self
Esta "sósia" não morre junto com o indivíduo, mas lhe sobrevive
por algum tempo (propiciação das almas) ou para sempre (o cul-
to dos antepassados, a primeira forma da religião) (317). Os an-
tepassados falecidos, venerados como entes divinos, podem ser di-
vididos em heróis da família e heróis da comunidade. Uma vez
dada essa forma primitiva de religião, a evolução para formas su-
periores é muito natural. O defunto pode ser propiciado pela con-
servação do cadáver, pela fabricação de imagens parecidas com
êle (egípcios!), ou até pela veneração de uma pedra (feiticismo) .
If, as contended above, the worship of the fetich is the worship of
. — Chr. Dawson, Progress and Relig'on, London, Sheed & Ward, 1938, págs.
21-22.
. — Escrito em 1861 (já publicado em forma de artigos, anteriormente) .
. — On Education (ed. "Everyman's Library"), pág. 2: We are guilty of so-
mething like a platitude when we say that throughout his aí ter-career, a
boy, in nine cases out of ten, applies his Latin and Greek to no practical -
purpose. — Quanto à história, pág. 10: While that kfnd of information
which, in our schools, usurps the narre History, — the mere tissue of narnes
and dates and dead unmeaning events, — has a conventional value only; it
has not the remotest bearing on any of our actions. — Quanto às belas •
artes e à literatura, cf. págs. 30-31.
. — lbidem, págs. 42-43.
. — Semelhante teoria encontra-se também nas obras de Edward Burnett Tylor
1832-1917), etnólogo positivista e evolucionista (mais espec'alizado nestas
questões do que Spencer), o pai do chamado "animismo". A doutrina de
Tylor teve muito repercussão, por exemplo na obra do autor alemão E..
Rohde, Psyche (1891-1894) .
. — Spencer, Epitome, IV 204: Using the phrase ancestor-worship in its broadest
sena, as oomprehending all worship of the dead, be they of the sarne blood
or not, ancestor-worship is the root of every religion.
— 508 --

an indwelling ghost, or a supernatural being derived from the ghost;


it follows that the fetich-theory, being dependent on .the ghost-
theory, must succeed it ias order of time (318). O animismo ou o
"manismo" (319), não o feiticismo (como queria Comte), é a raiz
de tôdas as religiões. A observação de que um ovo produz uma
ave, desperta, na mente primitiva, a idéia de metamorfoses miste-
riosas: por que também o homem não poderia transformar-se num
bicho, e por que o bicho não teria alma? A alma do falecido serve-
se muitas vêzes de certos corpos animais, principalmente da cobra,
para visitar seu corpo ou sua residência anterior; bichos alados,
como a coruja e o morcego, originam a crença em anjos e demô-
nios. Até o culto da natureza se relaciona com o culto dos antepas-
sados. Damos só um exemplo: The alleged good or ill-fortune of
being looked down upon at birth by this or that star, may result
from the belief that it is a progenitor of a friendly or unfriendly
tribe (320). No pensamento e na linguagem incoerentes dos povos
primitivos, o "superior" e o "divino" são idéias e palavras eqüiva-
lentes: the chief or ruler will tend to become a deity during his life,
and a greater deity af ter his death (321). Não só príncipes e ré-
gulos, mas também inventores são considerados como divinos, fato
abundantemente provado pela mitologia greco-romana: Minerva in-
ventou o tear, Mercúrio a lira, Apolo a medicina, etc. Por um
processo análogo, povos 'conquistados consideram os conquistadores
como entes sobrenaturais: daí encontramos freqüentemente, na poe-
sia primitiva, a expressão: "deuses e homens". Nesta parte da sua
doutrina, Spencer continua e elabora a teoria do antigo Evêmero
(322): ' explica o politeísmo como uma forma desenvolvida do culto
dos antepassados, e o henoteísmo e o monoteísmo como resultados
de uma certa hierarquização e unificação do panteão anterior. O
monoteísmo, a resultar no deísmo abstrato, é a forma mais evoluída
das religiões históricas: apesar de mostrar certo respeito pelo mis-
tério, não é a Religião Absoluta, por ainda manter viva a ilusão ani-
mista.
Spencer, reconhecendo o valor altamente social das religiões,
quer expulsá-las, não da sociedade (como queria Marx), e sim da

— Ihidem, IV 162.
-- Da palavra latina Manes (= "almas dos mortos"), não da palavra melanésia
mana ou maná, empregada pelos etnólogos para indicar o conjunto de fôr-
ças sobrenaturais que operam num objeto ou numa pessoa.
— Spencer, Epitome, IV 189.
— Ihidem, IV 197.
— Cf. § 76, I, nota 11. — O Everemismo, adotado por muitos Padres da Igre-
ja para explicar a crença nos deuses pagãos, encontrâmo-lo por exemplo no
sermão interessantíssimo do primeiro bispo de Portugal, Martinus Braca-
rensis, De Correctione Rusticorum, 9: Ecce tales fuerunt illo tempore isti
perditi honores, quos ignorardes rustioi per ocEnventilorres suas peasimes
honorabant, quorum vocabula ideo sibi daemones adposuerunt, ut ipsos quasi
deos colerent et sacrifício illis offerrent et ipsortzm facto imitarentur, quoruM
nomina invocobant.
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (VII)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 28, pp 413-509, out./dez. 1956. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/028/A006N028.pdf

— 509 ---

ciência, visto que o homem não possui faculdade para poder afir-
mar ou negar algo a respeito do Absoluto. Em última análise, são
tentativas humanas de venerar, sob formas e conceitos diferentes,
o Incognoscível. In each there is something right more or less dis-
guised by other things wrong... To supposle that these multiform
conceptions should be one and all absolutely groundless, discredits
too profoundly that average human intelligence from which all our
individual intelligences are inherited (323) . A cortina que nos es-
conde o Grande Mistério, nunca será levantada .

(Continua no próximo número).

JOSE' V AN DEN BESSELAAR


da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

(323) . — Spencer, Frisf Principies, pág. 9.


BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (VIII)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 29, pp 121-219, jan./mar. 1957. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/029/A009N029op.pdf

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS


HISTÓRICOS (VIII).

QUARTA PARTE

As Interpretações da História através dos Séculos.

(Continuação)

CAPITULO SEXTO

CRÍTICOS, PROFETAS E FANÁTICOS .


§ 105. O burguês desmascarado.

No capítulo anterior, estudamos a estrutura de quatro gran-


des sistemas "progressistas"; êste capítulo, menos sistemático e
bastante heterogêneo, oporá à confiança o ceticismo, às esperanças
a desilusão, e aos raciocínios abstratos as fôrças misteriosas da._
vida .

I. Qui nous dira les torts., du bourgeois?

Os têrmos, empregados pelo historiador e pelo sociólogo, têm


os seus altos e baixos . O têrmo "burguês" era, em certa época, a
suma expressão de tudo o que é prudente e moderado, honrado e •
leal e, ao mesmo tempo, empreendedor e progressista; atualmen-
te está completamente desacreditado. Acadêmicos (1), românti-
cos, artistas e revolucionários têm concorrido para difamar ce co-
(1) . — Na gíria acadêmica dos estudantes alemães, — principalmente na dos teó-
logos, — usava-se o têrmo "filisteu" (alemão: Phi?ister) para designar o
inimigo natural da classe universitária (filisteu = adversário do povo eleito,.
da Palavra de Deus) . Quando do entêrro de um estudante, assassinado•
por um burguês em Iene (1689), um dos oradores no seu elogio fúnebre
lembrou esta palavra da Bíblia: "Sansão, os filisteus estão sôbre ti" (Juízes,
XVI 9) . Goethe introduziu o têrmo na literatura, e dêle usavam e abu-
savam os românticos. Desde 1860 (H. Leo), fala-se também em Bildungs-
philister (= pessoa que aprecia apenas o aspecto prático e econômico da,
formação cultural), têrmo tomado conhecido por Nietzsche.
— 122 —

chon qui désire mourir de vieileose (Léon Bloy). Coitado do bur-


guês! E' difícil não escrever uma sátira sôbre êle. Tudo quanto é
mesquinho e vulgar, interesseiro e reacionário, covarde e medíocre
é insinuado por esta palavra injuriosa, cheia de carga explosiva
como poucas outras. Até os próprios burguêses falam com certo
desprêzo do "burguês".
Não há têrmo mais equívoco do que a palavra "burguês". Ini-
cialmente, designava um indivíduo pertencente ao terceiro estado
que se estabelecia num burgus fortalecido para fins comerciais (2);
era êle, a princípio, humilde comparsa anônimo no palco históri-
co; graças à sua diligência e energia, passou a desempenhar papel
de destaque nos fins da Idade Média para ir obscurecendo tôdas as
outras classes sociais desde a Revolução francesa. Ora, pertencer
a certa classe social não constitui nem crime nem pecado. Diria
um Hegel ou um Marx que uma entidade social, uma vez termina-
da sua missão histórica, se torna má; um humanista cristão sabe
que nenhuma classe social, por mais promissora que seja sua au-
rora, consegue cumprir cabalmente suas promessas. Tôda e qual-
quer realização é defeituosa e provoca sua "antítese"; a síntese de-
finitiva não é dêste mundo.
A mediocridade, a mesquinhez e a covardia, — vícios êsses
cujo monopólio com tanta generosidade geralmente atribuímos ao
"burguês", — são de tôdas as épocas, sendo qualidades inatas da
espécie humana . Só se pode dizer que certos períodos históricos
constituem um solo alimentício mais favorável do aue outros para
vicejarem essas ervas. E cremos não desacertar se afirmarmos
que o século XIX chegou a sancionar o homem medíocre, incutindo-
lhe a idéia de um progresso necessário, enchendo-o de ilusões fu-
turistas, embalando-o com confôrto e segurança, e tirando-lhe, aos
poucos, a responsabilidade pessoal. Sem dúvida, avistava certos
inconvenientes acompanharem o progresso material e técnico, mas
atenuava-lhes a importância, recorrendo à evasiva ingênua: "Tu-
do acaba por arranjar-se" ,. O Mito do Progresso, a explicar e a
justificar tudo, é um monstro que devora o que há de mais hu-
mano no homem, tornando-o calculista, hipócrita e indiferente aos
sofrimentos do próximo.
II. Os Paradoxos do Burguês.
A civilização moderna começa por uma invenção bastante sig-
nificativa: o pára-raios, instrumento de segurança (3) . Sk9fety
. — O livro clássico sôbre o burguês foi escrito pelo alerr{ão Wemer Sombart
(1913), traduzido para o francês por S. Jank4lévitch: Le Bourgeois (Pa-
ris) . Cf. também R. Bertrand-Serret, Le Mythe Marxista dos "Classes",
Paris, Les Editions du Cèdre, 1955.
. — O pára-raios foi inventado pelo físico americano Benjamin Franklin (1706-
1790), um dos fundadores da independência dos Estados Unidos.
— 123 —

first! O homem moderno põe tudo no seguro, porque de tudo se


amedronta. Elimina, na medida do possível, a aventura, o risco,.
o compromisso, a responsabilidade, o heroísmo. Tudo está pre-
visto e calculado; valores incomensuráveis vão-se confundindo: Ia
commune mesure entre l'extensif (o mundo material) et l'intensif
(as regiões do espírito), dit I'assureur, c'eS t l'argent (4). Os meios.
técnicos de que dispõe o homem moderno, convidam-no a viver
na extensão, e não na profundidade, chegando a exercer uma ver-
dadeira tirania contra êle. Aos imensos esforços de multiplicar e
de aperfeiçoar nossa aparelhagem não corresponde uma diligência
análoga de chegar a um conhecimento aprofundado dos fins hu-
manos. Nossa cultura está prestes a sucumbir ao pêso das suas•
próprias invenções.
A técnica moderna produz riquezas em proporções antes ini-
magináveis: tudo parece acessível a todos. Uma publicidade in-
discreta e importuna persegue o homem até no seu próprio lar,.
apregoando-lhe incessantemente todos os produtos fabricados em
massa, ora úteis e agradáveis, ora supérfluos e feios. Ninguém
pode esquivar-se por completo ao poder monstruoso da publicida-
de, que não cessa de criar em nós artificialmente cada vez novas
necessidades, e a novidade de hoje estará amanhã superada por
já não se coadunar com os interêsses da indústria e do comércio.
A desproporção existente entre os nossos desejos constantemente
excitados e a possibilidade relativamente pequena de lhes satisfa-
zer nos torna cada vez mais descontentes. Evolução paradoxal! C>
burguês, tão satisfeito com sua época adiantada, é um desconten-
te irremediável quanto à sua posição social e econômica: sua far-
tura torna-o cada vez mais indigente, isto é, mais vulnerável, mais.
dependente de coisas exteriores, mais medroso de perdê-las. As•
massas contemporâneas, — não pensamos aqui em certa classe-
social, •e muito menos ainda nas "massas operárias", mas em to--
dos os que seguem o caminho do menor esfôrço, caminho que ho-
je é imensamente facilitado, — as "massas" são semi-civilizadas,.
habituadas a tratar as coisas da cultura como mercadorias pré-fa-
bricadas, sem que lhes seja dada a oportunidade de uma criação
ou apropriação pessoal. São crianças mimadas (5) que amuam,
exigem e reclamam: vivem reivindicando seus direitos (geralmen-
te traduzidos em têrmos de confôrto e de bem-estar material)„
sem reconhecerem suas obrigações e sem se sentirem gratas por
nada.

. G. Duhamel, Scènes de la V ie hkure, Paris, Arthème Fayard, 1927, pág.


99; o livro é uma zombaria da vida americana, considerada pelo autor como,
a imagem da futura sociedade européia.
. — Cf. José Ortega y Gasset, La Rebelión de las Mesas, Madrid, Revista de.
Ocidente, 1952 73, págs. 59-63: Comienza . la Disección del Hombre-Masa.
-- 124 --

A publicidade hodierna, além de enfraquecer as nossas fa-


culdades críticas, contribui também para o embotamento do gôsto
artístico e para a debilitação da moral. O homem de hoje não tem
a possibilidade de esquecer, fôsse por um só minuto, o poder ex-
traordinário do dinheiro; para êle, uma cantata de Bach ou uma
sonata de Mozart serve apenas para predispor o auditório a ouvir
com benevolência as qualidades inigualáveis de certa marca de
sabonete. No anúncio, tudo fica reduzido a fórmulas fáceis e sim-
plistas que nos dispensam do trabalho de uma apropriação pessoal.
Os jornais, as revistas, os programas de rádio e de televisão adu-
lam o público, impingindo-lhe cada dia noções completamente fal-
sas da vida e da escala dos valores, noções que devem acabar por
abalar as opiniões sadias de pessoas pouco advertidas. O pecado
e a própria virtude são apresentados ao grande público como ob-
jetos de sensação para lhe fazer esquecer a monotonia da vida
cotidiana que se tornou incolor e sem sabor.
A democracia moderna — outro têrmo ambíguo! (6) — re-
sulta freqüentemente em igualitarismo repugnante, em nivelamen-
to hediondo, em plebeização. As "massas" mostram um prazer
mal rebuçado em reduzir tudo ao nível da sua própria triste me-
diocridade. O Estado, também no mundo chamado livre, é o Le-
viatã, o pavoroso polvo, cujos tentáculos se vão insinuando paula-
tinamente em tôdas as esferas da vida humana. O burguês assus-
ta-se da sua liberdade, porque esta traz consigo responsabilidade
pessoal que é cheia de riscos; assusta-se da solidão, porque esta o
confronta com êle mesmo, ao qual quer escapar; daí seu desêjo
de viver no barulho, e de acreditar na estandardização. A tão fa-
lada unificação do nosso planeta, longe de se efetuar num plano
espiritual, está-se realizando, por enquanto, principalmente sob o
signo de Coca-Cola (a bebida cada dia preferida por milhões!), de
fitas melodramáticas e de canções internacionais de origem duvi-
dosa. O característico, o autóctone tende a desaparecer, e nuvens
cinzentas de monotonia amontoam-se sôbre o nosso mundo tor-
nado enfadonho.
III. A Secularização da Cultura Moderna .
O Cristianismo, outrora o fermento da sociedade ocidental,
passa hoje, aos olhos de muitos, por uma crença antiqüada, conde-
nada a morrer uma morte inglória . Diluiu-o o burguês para evi-
tar escândalos, despojando-o do seu caráter sobrenatural e trans-

(6) . — Uma apreciação do ideal democrático, feita por um tomista, saiu há pouco
em versão portuguêsa: Yves Simon, Filosofia do Goyérno Democrático, Rio
de Janeiro, Agir, 1955 (título do original: Philosophy of Democratic Go-
vernment).
— 125 —

formando-o num sistema racional aceitável para todos; ao mesmo


tempo, evaporou a moral cristã, reduzindo-a a uma ética forma-
lista de decência ou a uma higiene mental (6a) . Deus ficou en-
carregado de garantir a ordem social, a prosperidade econômica e,
a título precário, a bem-aventurança no além-túmulo. O deus dos
burgueses es un Dios que no es ya un tú, sino un ser de razón. La
religión burguesa, privada de esa potencia ele adhesión al ser y al
Principio del ser que comunica la participación vital al universo,
consiste más en una "religión" del yo a su propia imanencia, que
en una relación afectiva a la transcendencia divina (7).
A moral cristã era submetida a uma revisão burguesa: o que
não quadrasse com as altas exigências dos tempos modernos, era
eliminado. Mal vistas eram principalmente as virtudes "negativas"
do Cristianismo: a humildade, a castidade, a mortificação, etc., e
o burguês, embora mostrando um respeito sentimental pelos va-
lores morais do Cristianismo, esforçava-se por construir uma éti-
ca racional, — ou melhor, um código de comportamento humano
baseado em observações sociológicas, — que lhe permitisse domi-
nar o mundo e o tornasse satisfeito consigo, esquecendo que a pior
inimiga do Cristianismo é a satisfação.
E' bastante difícil, ou até impossível, julgar a moralidade de
uma época . Acreditamos nós que o pecador é de todos os tempos,
mas que a diferença importante entre a moralidade dos "tempos
cristãos" e a da época moderna consiste principalmente no fato
de que aquêles sempre continuavam a reconhecer a existência de
certas normas morais, tidas por inabaláveis embora nem sempre
vividas, ao passo que os modernos inventam uma teoria especiosa
para sancionar seus pecados, dando-lhes um prestígio científico.
A sociologia, e depois o freudismo e o existencialismo, têm con-
tribuído muitíssimo para a relativação da moral, se nem sempre
os iniciadores, ao menos os vulgarizadores dessas teorias. Para
as "massas" são calamitosas as conseqüências da relativação: pri-
vadas de um ponto fixo de apôio, abandonam-se aos seus instin-
tos elementares e dançam em volta do bezerro de ouro, uma dança
lúgubre incapaz de dar sentido à vida humana ou de fundar uma
verdadeira sociedade. Com a ganância desenfreada e a explora-
ção econômica impiedosa anda de mãos dadas o pansexualismo:
vivemos em tempos afrodisíacos, cujo ideal do "Eterno Feminino"

(6a) . — Cf. Le R. P. Snoeck, L'Hygréne Mentale et les Príncipes Chrétiens, Paris,


Lethielleux, 1953.
(7) . — Marcel de Corte, Ensayo sobre el Fin de nuestra Civilización, Valencia, Fo-
mento de Cultura, s.d., pág. 204; cf. pág. 218: (El prójimo) no es ya
considerado en tanto que prójimo, sino en tanto que función de valores en-
comiados. Es asido en tanto que proiongación del espíritu, es decir, de sí
mismo. Por paradójica que sea ia consecuencia de eito, el prójimo se trans-
forma en ídolo, puas no hay más que un ídolo: el sí.
126 —

se abaixa ao nível da omnipresente pin-up girl, símbolo insípido da


nossa lubricidade e da nossa virilidade enervada. Nas suas Afro-
dites e Ártemis, os gregos clássicos procuravam espiritualizar a be-
leza sensual do corpo feminino: era como que uma beleza celeste
e intocável; a pin-up girl moderna é provocação brutal, ostenta-
ção de uma beleza meramente física, prostituição mercantilizada
da mulher, a desmentir abertamente a lenda de que os tempos
modernos teriam inventado a dignidade feminina.
IV. O Mito do Moderno (8) .
A satisfação com o presente (always bigger and better!) ex-
clui forçosamente o respeito pelo passado, e acarreta facilmente
o esquecimento de um futuro mais distante . Herder, Hegel, Com-
te e até Marx, embora cada qual à sua maneira, tinham prestigia-
do as contribuições valiosas das gerações anteriores para o pro-
gresso da humanidade (9); o Mito do Progresso, transplantado
do quarto de estudos para a rua, resultou no Mito do Moderno,
mito que custa menos abnegação e adula mais as inclinações pri-
mitivas das "massas". O que o burguês adora, é o bom êxito, e no
bom êxito, tal como outro Narciso, adora-se a si próprio. Mer-
gulha com sofreguidão no caudal impetuoso do num fluens, cum-
prindo sem hesitar a ordem do poeta: Carpe Diem!, sem, con-
tudo, apreciar com êle a aequa mens (10). Ao lançar-se sôbre os
bens palpáveis da civilização contemporânea, que se multiplicam
num ritmo cada vez mais acelerado, avalia as coisas pela medida
da sua novidade, e chega a ter um, desdém altivo ou pesaroso pela
tradição. Pensam muitos como o poeta americano, Stephen Crane
(1871-1900):
Tradition, thou arf for suckling children,
Thou art the enlivening milk,for babes,
But no meat for men is in thee!
O homem moderno, reputando-se adulto e, por isso mesmo,
emancipado dos vínculos constringentes da tradição, alegra-se no
— Cf. Ch. Baudoin, Le Mythe du Moderne et Propos Annexes, Genève-Anne-
masse, 1946. — A palavra latina modernus, encontrada só em autores da
época "decadente" (Cassiodoró, Enódio e Pseudo-Prisciano, os três do sé-
culo VI), não deriva do substantivo modus (como muitos pensam, também
Ortega y Gasset), e sim do advérbio modo: ("recentemente, há pouco", cf.
hodiernus, hesternus, etc.).
— Só o "cientista" Spencer, homem com poucos interêsses culturais, é o
"bárbaro" entre os grandes progressistas do século XIX; dava êle muito menos
valor do que os outros às realizações artísticas, filosóficas e científicas do
passado.
— Horatius, Carmina, 1 11, 8: Carpe diem quem minimum credula postero;
cf. II 3, 1-4:
Aequam memento rebus in arduis
Servare mentem, non secus in banis
Ab insolenti temperatam
Laetitia, moriture Delli. (Cf. II 10, 5: aurea mediocritas).
— 127 —

movimento cego e irrefletido, sem se incomodar com o rumo do


movimento. A civilização ocidental superexalta, hoje em dia, o
dinamismo, tornando-se antípoda da cultura egípcia que erguia
monumentos para os séculos. Imediatistas que somos, fazemos ca-
so de "ser do momento", o que fatalmente quer dizer "ser para
o momento". Alardeava um poeta alemão, no fim do século pas-
sado, que já não somos clássicos nem românticos; somos apenas
modernos! (11) . A exclamação podia parecer um brado de triun-
fo há sessenta anos; hoje nos parece digno de um sorriso cético . O
que se apregoa como o estilo moderno, muitas vêzes não passa de
um revezamento maníaco de modas efêmeras, de experimentações
rebuscadas e chocantes (épater le bourgeois!). E pior ainda: os
artistas vivem afastados da sociedade, e o grande público vive mui-
to distante das criações artísticas. Devido a êsse divórcio lastimá-
vel, o artista se encerra numa tôrre de marfim, e as massas, aban-
donadas à exploração de fabricantes pouco escrupulosos, procuram
sensação ou romantismo côr-de-rosa nos cinemas, devoram histó-
rias ineptas em quadrinhos, e enfeitam suas casas com objetos fa-
bricados em série que são uma ofensa para o bom gôsto.
V. Perspectivas.
Aí está o requisitório contra a cultura burguesa. O grande
público, já há muito acostumado a ouvir essas queixas, considera-
as como lamentações improfícuas de românticos incapazes de se-
guirem o ritmo dinâmico dos tempos modernos, ou então, reage a
elas como se se referissem a um terremoto na Indonésia. São re
letivamente poucos os que percebem com nitidez: mea res agitar.
Entretanto, seria uma injustiça se condenássemos globalmente a
civilização contemporânea; parece mais conforme a realidade con-
siderá-la como atravessando uma fase crítica da sua existência.
"Crise" quer dizer "decisão": o homem da segunda metade do sé-
culo XX torna-se cada vez mais consciente da sua responsabilida-
de perante a marcha dos acontecimentos históricos. "O Declínio
do Ocidente" não é ameaça fatal, a efetuar-se sem a livre coopera-
ção do homem, antes constitui uma grave advertência acêrca de
um perigo sério, dirigida a cada um de nós. A situação atual exige
da nossa parte compreensão, firmeza e coragem. Os períodos crí-
ticos da história trazem consigo não apenas perigos, mas também

( 11 ) . — Arno Holz ( 1863-1900 ) :


Zole, Ibsen, Tolstoi,
Eine Welt liegt in den Worten,
Eine, die noch nicht verfadlt ist,
Eine, die noch kerngesund ist!
Unsre Welt ist nicht meter klassisch,
Unsre Welt ist nicht romantisch,
Unsre Welt ist nur MODERN!
-- 128 --

imensas possibilidades que devem ser aproveitadas em sentido


.autênticamente humano; não significam apenas a morte de certas
formas históricas, mas também o nascimento de novas estruturas
que, não menos do que as antigas, podem constituir os maéhina-
.menta temporalia da eterna Cidade de Deus (cf. Augustinus, Sermo,
362, 7) . Tudo depende da integração leal das novas aquisições
numa escala de valores objetivamente hierarquizados.
Não faltam sintomas promissores, ainda que menos salientes
e menos barulhentos do que os sinais de decadência . Em todos os
países está se desenvolvendo uma nova elite, formada dos melho-
res representantes de tôdas as camadas sociais e compenetrada do
seu dever de dar uma orientação "humanista" às conquistas cien-
tíficas e técnicas dos últimos séculos; há iniciativas esperançosas,
ditadas por um idealismo autêntico, de aliviar a situação dos que
-sofrem, ou são explorados e humilhados; há , tentativas de chegar
a uma cooperação cordial no plano internacional, e a uma hones-
tidade nas relações públicas; a psicologia moderna já não consi-
dera o homem como um mecanismo complicado sem valor autô-
nomo, mas vai redescobrindo cada vez mais o homem na sua to-
talidade concreta, esforçando-se por elaborar um sistema de "rela-
ções humanas"; o materialismo e o cientismo cedem seu lugar a
doutrinas que afirmam enfàticamente a autonomia do espírito; os
problemas eternamente humanos de ordem metafísica e moral co-
meçam outra vez a atrair a atenção dos pensadores; entre os jo-
-vens há muita sinceridade, muita franqueza, muita coragem e, não
raro, muita abnegação; e afinal, o Cristianismo, — sobretudo o Ca-
-tolicismo, — longe de se desagregar cada vez mais, como o prediziam
os profetas do século passado, — está dando sinais de grande vitali-
dade, se não entre as "massas", ao menos entre uma elite, fato que
prova abundantemente como a homem técnico do século XX con-
tinua a ter sêde de Deus.
Será que a nova elite é capaz de inspirar as massas, e de sal-
var a sociedade ocidental de uma barbárie civilizada ou de defen-
dê-la contra os ataques de fora? Ignorâmo-lo: nem a ciência nem
a religião nos permitem conclusões nítidas acêrca dos aconteci-
mentos contingentes do nosso futuro histórico (12) . O cristão
sabe que Cristo não prometeu a perenidade à civilização ociden-
tal, mas sabe também que, se ela perecer, não perecerá sem a cum-
plicidade humana: se o futuro é um segrêdo que a Divina Pro-
vidência reservou para si, o homem é co-responsável por seu des-

(12) . — Cf. Sanctus Thomas, Summa Theologica, X q. 106, a. 4, ad 3-um: Usque


ad diem judicii semper nova aliqua supremis angelis revelantur divinitus
de his quae pertinent ad dispositionem mundi, et praecipue ad salutem elec-
torum.
-129--

tino histórico. A um cristão convém tampouco o pessimismo co-


mo o otimismo: sua posição perante a situação histórica deve ser,
como dizia Chesterton, a de lealdade patriótica ou, como dizem
os existencialistas atuais, a de engagement personnel .
VI. A Divisão da Matéria.
De modo geral, êste capítulo tratará dos "não conformistas",
isto é, daqueles que, por qualquer motivo, se opuseram ao Progres-
sismo do século passado.
Nos dois primeiros parágrafos discorreremos sôbre o des-
tronamento da Razão: O Existencialismo (§ 106) e o Mito (§
107), uma introdução que nos parece útil para a compreensão dos
três últimos capítulos dêste livro.
Nos §§ 108-109, trataremos de dois críticos da cultura
moderna: Jakob Burckhardt e Johan Huizinga. Nesta seção se
nos impunha uma seleção rigorosa e um tanto subjetiva, visto que
sentíamos certo embarras de choix . Após madura reflexão opta-
mos por êsses dois historiadores profissionais de fama internacio-
nal, devendo passar em silêncio outras críticas feitas no século
passado e no século atual (13).
Em seguida, pretendemos falar de dois profetas: Kier-
kegaard e Nietzsche (§§ 110-111), dois pensadores que prenun-
ciam a inquietação existencial dos tempos modernos (14). Se os
profetas são pouco estimados na sua terra, tampouco o são na sua
época. O profeta ou vidente (15) é pedra de escândalo para seu
ambiente social, sendo não conformista por excelência. Ao con-
trário do crítico, não procede à maneira analítica e racional: de-
nuncia, ridiculariza e caricaturiza a "realidade" para tornar sa-
liente uma realidade superior, esquecida pela maioria dos coevos;
ao que parece, profere suas sentenças, arrebatado por um impul-
so sobrehumano; "profetiza" também, e só épocas posteriores são
capazes de lhes aquilatar a perspicácia extraordinária; geralmen-
te é uma voz solitária, abafada pelo barulho daqueles que tribu-
tam sem escrúpulo homenagem à moda do dia.
. — No século passado, assinalamos aqui: C. Fr. Vollgraff (1792-1863) e P. E.
Von Lasaulx (1815-1861); êste último infuenciou o pensamento de Burck-
hardt. — No século atual: Gonzague de Reynold, L'Europe Tragique (o
autor é professor de história na Universidade de Friburgo na Suiça); Marcel
de Corte (professor em Liège, cf. nota 7); G. Sorel (1847-1922), Les Viu-
sions du Progrès (1908), cf. § 107 III, nota 51.
. — Cf. R. Jolivet, Les Doctrines Existentialistes, Editions de Fontenelle, 1946;
o livro foi traduzido para o português: As Doutrinas Existencialistas, Pôrto,
Tavares Martins, 1953.
. — A palavra "profeta" (tradução grega, depois latinizada, do térmo hebraico
nabi) não designa originàriamente um indivíduo , que "prediz", mas uma pessoa
que "fala em nome de outrem, isto é, em nome de Deus". Cf. "vidente".

Revista de História n.o 29


-130—

d) Afinal, trataremos dos racistas. O caminho é longo e pa-


rece pouco provável: da Humanitãt herderiana, via da glorificação
hegeliana da cultura prussiana, para o misticismo zoológico dos
nazistas (16) . Na realidade foi percorrido, para grande infortúnio
da cultura moderna. Após uma rápida introdução sôbre precon-
ceitos nacionais e raciais (§ 112), traçaremos o caminho, demoran-
do-nos em três etapas: o francês de Gobineau (§ 113), o inglês
Chamberlain (§ 114) e o alemão Rosenberg (§ 115).
A. A RAZÃO DESTRONADA .
§ 106. O existencialismo.
Os gregos viam no intelecto humano (lógos) uma centelha
da sua origem divina; os cristãos, adotando a tradição bíblica se-
gundo a qual "o homem foi feito à imagem e à semelhança de Deus"
(Gên., I 26-27), elevaram a dignidade humana a uma altura mais
sublime ainda, graças ao mistério da Encarnação do Lógos Divi-
no. Et Verbum caro facturo est, et habitavit in nobis' — eis o
dogma central da fé cristã (Ev. João, I 14) . Nossa dignidade, a
basear-se no Valor primário e absoluto do nosso Criador e Reden-
tor, é uma dignidade derivada e relativa. Quand on a compris
que Dieu existe, on devient affreusement relativiste pour tout ce
qui n'est pas lui, parce qu'en presence d'un absolu authentique,
un véritablement absolu, tous les relatifs prennent leur plein Irelief
de relatif, tandis que ceux qui n'arrivent pas à apercevoir l'existen-
ce de fabsolu véritable, mêlent constamment le relatif d'absolu,
embrouillent ainsi les caries et finissent par ne plus voir cri
rien (17). A eliminação do Absoluto redunda sempre na ereção
de ídolos que, geralmente, são pouco duradouros e com a maior
leviandade são substituídos por outros. O homem ocidental, de-
pois de se apartar da Fonte da sua grandeza, chegou a endeusar-se
a si próprio e as obras das suas mãos, passando a adorar a Hu-
manidade, a Nação, a Classe, o Progresso ou a Raça: é que a ca-
rência do Absoluto criou nele um vácuo pavoroso que acabou por
angustiá-lo (18). Terminada a embriaguez passageira decorren-
te do seu ato emancipador, afigurava-se-lhe muito problemática a
dignidade humana. Abyssus abyssum invocat (Salmo, XLII 7).
(16) • — O poeta austríaco Fr. Grillparzer (1791-1872) já dissera em 1849:
Der Weg der nevem Bildung geht
Von Humanitiit
DUrch Nationalitét
Zur Bestialitiit.
(17). — J. Leclercq, Penser chrétiennement Notre Temps, Paris, Téqui, 1951 3, págs.
22-23; cf. também § 70 V.
(18) . — Cf. Goethe, Faust, I 2048-2050:
Eritis sicut Deus, scientes bonum et mal um.
Folg' nur dem elten Spruch und meiner ~me, der Schlange,
Dir wird gewiss ai:Irreal•bei deiner Gottrihnlichkeit bange!
-- 131 —

O endeusamento do homem, nos últimos séculos da história oci-


dental, converteu-se em franca negação da dignidade humana: a
filosofia e as ciências positivas conspiravam com . a técnica para
destronar o homem, declarando-o sèmente uma peça insignifican-
te de um mecanismo ou um animal ridículo por causa das suas
pretensões arrogantes. A Razão, outro ídolo erguido pela antro-
polatria das gerações anteriores, tinha o destino de tantos outros
relativos transformados ilegitimamente em absolutos. Pascal, que
não acreditava na omnipotência da razão humana, dizia num pas-
II ne faut pas que I'univers entier s'arme pour l'écraser: une goutte
roseau, le plus faible de Ia nature; mais c'est un roseau pensant.
II ne faut pas que I'univers entier s'arme pour /'écaser: une goutte
d'eau suffit pour le tuer. Mais, quand I'univers l'écraserait, l'hom-
me serait encore plus noble que ce qui le tue, parce qu'il sait qu'il
meurt, et l'avantage que I'univers a sur lui, I'univers n'en sait rien.
Toute notre dignité consiste donc en Ia pensée (19). A Razão
humana, emancipada e julgada todo-poderosa no século XVIII,
acabou sendo escarnecida, fazendo-se muito alarde dos instintos,
dos sentimentos, das misteriosas fôrças da vida. O irracionalismo
é hoje tema banal.
I. Um novo Humanismo.
No dizer de Jean-Paul Sartre, o Existencialismo est la doctri-
ne la moina scandaleuse, la plus austère; (H) est stridement des-
tine aux techniciens et aux philosophes (20). As aparências são
bem diferentes: poucas correntes filosóficas fizeram tanto barulho
como o Existencialismo, e para tal não pouco contribuiu o proce-
dimento de certos representantes da nova filosofia a dirigirem-se
ao grande público mediante romances, dramas e filmes, às vêzes
de caráter bastante sensacional. Se a concretização dos proble-
mas fundamentais relativos ao homem é uma exigência intrínseca
e, em si, não reprovável, da nova filosofia, se a beletrística existen-
cialista acode a um vivo interêsse do homem moderno pelo signi-
ficado da vida, a vulgarização traz consigo inevitàvelmente tam-
bém o perigo de simplificações, de truncamentos e de mal-enten-
didos. São numerosos os que conhecem Huis-Cios de Sartre e La
Peste de Camus, mas relativamente poucos os que leram L'Être
et le Néant de Sartre ou Sein und Zeit (= "O Ser e o Tempo")
de Heidegger. Estas e tantas outras obras volumosas e abstrusas,
escritas pelos corifeus entre os existencialistas modernos, nunca se-
rão livros de moda.

— Blaise Pascal, Pensée (éd. Brunschvicg, pág. 488).


— J.-P. Sartre, L'Existenciatisme est un Humanisrrte, Paris, Nagel, 1946, pág. 16.
— 132 --

O Existencialismo não é sistema bem definido e homogêneo:


nada mais enganador do que tomar uma parte pelo todo. Na rea-
lidade existem só pensadores existencialistas, tais como Kierke-
gaard, Nietzsche, Marcel, Heidegger, Jaspers, Merleau-Ponty, etc.,
para não falarmos em ensaístas e romancistas, muitas vêzes incor-
porados na corrente existencialista, tais como Simone Beauvoir,
Albert Camus, etc. Entre êsses autores há grande diversidade no
que diz respeito aos métodos empregados e quanto às posições to-
madas perante as questões fundamentais propostas pela filosofia
e pela vida. Uns são ateus, outros são agnósticos, outros ainda
são crentes ortodoxos. Para uns, o existencialismo consiste prin-
cipalmente em partir da experiência concreta e vivida; para ou-
tros, a existência humana é "posição pura, indeterminação comple-
ta". Uns se circunscrevem deliberadamente nos limites de uma aná-
lise fenomenológica da existência subjetiva, outros tentam construir
uma filosofia sôbre a existência, chegando a uma espécie de
ontologia. Expor e desenvolver estas e outras tantas diferenças in-
dividuais seria incompatível com o escôpo dêste livro; tampouco
podemos cogitar de discorrer sôbre os méritos filosóficos do Exis-
tencialismo (21) . Para os nossos fins basta assinalarmos algumas
tendências características da nova corrente, relacionando-as com
o nosso assunto.
O Existencialismo é uma reação contra as pretensões do Idea-
lismo e do Positivismo que ambos, embora cada um à sua manei-
ra, tendem a dissolver e a volatilizar o homem concreto num mar
de abstrações, quer sejam proposições lógicas, quer sejam leis fí-
sicas e sociológicas. O existencialista procura decifrar para si (e,
muitas vêzes, também Únicamente por si) o espantoso enigma da
existência humana: desgostado da simplificação medonha do cien-
tismo e do determinismo, esforça-se por compreender o homem
concreto na sua historicidade. Tal como outro Sócrates, quer co-
meçar por conhecer-se a si próprio, e saber qual é sua condição
humana, qual é o modo de sua inserção no universo que o en-
globa, e quais podem ser seus motivos de esperança ou de deses-
pêro . Sua preocupação predominante pela existência subjetiva po-
de levá-lo a dizer com Santo Agostinho: Deum et animam scire
copio. Nihilne plus? Nihil amnino (22), mas, geralmente, não o
— Remetemos o leitor interessado para P. Foulquié, L'Existentialisme, Paris,
Presses Universitaires (na coleção: "Que sais-je?"), 1955°; Alceu Amoroso
Lima, O Existencialismo, Rio de Janeiro, Agir, 1951; R. Jolivet (cf. nota
14); Albert Dondeyne, Foi Chrdtienne et Pensée Contemporaine, Louva'n-
Paris, 1952 2; Juan B. Lotz, S. J., Existencialismo, no livro Sujeción y Liber-
tad del Pensamiento Católico, Barcelona, Editorial Herdar, 1955, pág. 108.
— Augustinus, Soliloquia, I 1, 7. — Cf. Albert Camus, Le Mythe de Sisyphe,
Paris, Gallimard, 1942, pág. 15: // n'y a qu'un problème philosophique vrai-
ment sérieux: c'est le suicide. Juger que la via vaut ou ne vaut pas Ia peine
d'être vécue, c'est répondre à la question fondamentale de la philosophie.
--- 133 —

impede de se interessar vivamente também pelo "mundo", visto


que a existência humana é "um estar-no-mundo" e o mundo é con-
siderado como uma realidade correlata da consciência humana (23).
Mas o existencialista, reconhecendo a importância da sua "situa-
ção" (física, biológica, social e cultural), faz questão de estudar a
realidade total, mas sempre em relação ao homem e em função de
uma experiência vivida. Eis uma primeira tentativa de descrever a
atitude existencialista perante o homem e o "mundo".
II. Esse e Quidditas.
O têrmo "existência", quando usado pelos existencialistas, pos-
sui significado bem diferente daquele que possui, quando usado pe-
los tomistas. Para êstes, a "existência" (latim: esse) significa o
ato de existir, a distinguir-se realiter, em tôdes as coisas finitas, da
"essência" (latim quidditas), a qual designa aquilo pelo que uma
coisa é o que é. Vejamos primeiro esta distinção tomista, pois êste
exame, longe de ser uma digressão inútil, pode contribuir para me-
lhor compreensão histórica do ponto de vista dos existencialistas
atuais.
Para esclarecer a diferença fundamental entre "existência" e
"essência", podemos valer-nos de um exemplo bem simples como
ponto de partida.
A lâmpada que ilumina a mesa sôbre que estou escrevendo
estas regras, é lâmpada por possuir certas características comuns
a todos os entes a que compete o nome de "lâmpada"; estas carac-
terísticas constituem a "essência" da lâmpada. O conceito de "es-
sência" não implica necessâriamente a "existência" real de um ou
mais entes a que caiba tal "essência". Podemos possuir um con-
ceito perfeito da "essência" do centauro (monstro, metade homem,
metade cavalo); se existirem tais monstros, cada um dêles terá
uma "essência" correspondente a êsse conceito; caso contrário, dei-
xará de ser centauro. Mas o fato importante é sabermos se tais
monstros existem, de modo concreto, na realidade; a "essência",
considerada em si, não passa de simples possibilidade (24). A
"essência" de "a" lâmpada (abstrata) entra no reino da realidade

(23). — Cf. A. Dondeyne, in op. cit., pág. 25: La conscience est essentiellement inten-
tionnelle. Cela veut dire qu'elle est d'abord et d'emblée &ire-ao-monde, visse
do monde, rapport actif à l'autre-que-la-conscience. . La vie intentionnelle de
la conscience présente la forme d'une relation dia lectique entre une "noesis"
et un "noema , les deux s'appelant et se constituant l'un ?nutre dans une
indissoluble unité.
(24) . — A não ser que contenha elementos contraditórios, por exemplo, a essência de
um "círculo redondo" é um absurdo e, por isso mesmo, impossível de realizar;
o círculo redondo nada é, e ao nada não cabe nem essência nem existência.
— Há, portanto, essências realizáveis em si, mas inexistentes, por exemplo, a
do centauro; e essências realizadas em entes individuais, por exemplo, a da
lâmpada.
— 134 ---

pela "existência", isto é, pelo fato de existir "esta" ou "aquela" lâm-


pada (concreta), a qual, além de possuir certas características em
comum com tôdas as lâmpadas do mundo, possui também certas
características particulares, pelas quais esta lâmpada se distingue
de outros exemplares da sua espécie. A "essência universal", com-
pletada pelas características particulares, torna-se a "essência indi-
vidual". A "existência" é a realização concreta da "essência", a
passagem do possível ao real (24a): minha mesa é iluminada, não
por "a" lâmpada (abstrata), e sim por "esta" lâmpada (concreta) .
Todos os entes criados são compostos de "essência" e "exis-
tência", isto é, todos êles são, no seu ato de existir, delimitados pe-
la "essência" (por exemplo, isto é uma "lâmpada", e não um "ca-
valo"); nenhum dos entes, compostos de "essência" e de "existên-
cia", existe necessàriamen►te (minha lâmpada, embora existente
de fato, poderia também não existir) . Há um único Ser que, exis-
te necessàriamente, e cuja "essência" coincide absolutamente com
a sua "existência": é Deus, o Ipsum Esse (cf. § 73 II d; § 74 I a) .
Deus é a absoluta Existência como também a absoluta Essência,
e a Essência divina confunde-se totalmente com a Existência divi-
na . O caráter composto de todos os entes finitos, mal conhecido
dos gregos, é uma descoberta fecunda da "filosofia cristã", a possi-
bilitar a distinção fundamental entre o Ser Necessário (Deus) e o
ser contingente (a criação) .
A "existência", no sentido tomista da palavra, é princípio on-
tológico não susceptível de uma formulação conceptual: não pode
haver ciência do ato de existir: constato ou postulo a "existência",
mas ela, como tal, é extra genes notitiae. Tampouco é possível
construir uma moral sôbre o ato de existir: se encaramos mera-
mente o esse, fazendo abstração da essência das coisas existentes,
não há possibiliçlade de chegarmos a .uma escala de valores: tanto
vale um ladrão existente como um santo existente, tanto vale um
imbecil existente como um gênio existente, ou, na linguagem do
Eclesiastes (IX 4): "Mais vale um cão vivo do que um leão morto".
III. Uma Filosofia do Concreto e do Contingente.
Os existencialistas modernos, ao falarem de "existência", dão
outro valor a êste vocábulo, empregando-o no sentido de "existente
concreto" ou de "indivíduo existente". A "essência", considerada em
si, é abstrata, universal, necessária, estática ("a-histórica") e racio-
nal (conceptual); os existentes são concretos, individuais, contin-

(24a) . — Cf. Sanctus Thomas, De Potentia, p. 7, art. 2, ad 9-um: Esse est actualitas
omnium actuem et propter hoc est perfectio omnium perfectionum; cf. Corram.
in 17 Lib. Sent., Dist. 3, q. 1, art. 1 r Qtüdditas est sicut potentia, et suum
esse acquisitum est sicut actua.
— 135

gentes, dinâmicos (sendo existentes humanos, "históricos"), e irre-


dutíveis a uma formulação lógica.
O redescobrimento do concreto poderia só agradar a um to-
mista, pois, segundo êle, existem na realidade apenas entes con-
cretos e individuais, dos quais a inteligência humana parte pata
formar os conceitos abstratos, que são idéias representativas das
"essências" atualizadas no mundo da nossa experiência; as "essên-
cias puras subsistentes", admitidas por Platão, tampouco existem
para São Tomás como para Aristóteles; elas existem, de maneira
universal, só na mente humana (como conceitos), e de modo in-
dividual, nas coisas concretas do mundo extra-mental (como "for-
mas") . Como são ricas e variadas as múltiplas concretizações das
essências que encontramos na realidade! (25) . E, por outro lado,
como é deficiente a razão humana, — ou melhor, como é impoten-
te, — para "conceituar" o ente individual! As ciências positivas li-
dam com conceitos abstratos de valor universal e de caráter "a-his-
tórico"; para chegar à compreensão dos entes concretos (26) e in-
dividuais, o nosso intelecto é obrigado a servir-se de conceitos abs-
tratos e "coletivos", como que de meandros. Em parágrafos ante-
riores (27) já vimos o bastante como o individual e o concreto,
apesar de constituirem o alto objetivo do nosso conhecimento (27a),
sempre permanecem misteriosos e opacos para a luz da nossa in-
teligência . O fato de possuirmos o conceito abstrato do homem
("animal racional") dá-nos a possibilidade de concebermos o ho-
mem como um ser que constantemente muda, mas não nos per-
mite que tracemos o percurso histórico de um homem concreto,
ou da humanidade concreta, através do mundo. El orden esencial

— Platão, filósofo "essencialista", diria o contrário: como são pobres e deficientes


os entes concretos comparados com a riqueza e o esplendor das Idéias subsis-
tentes que constituem o verdadeiro Ser! Cf. o mito da Caverna, Respublica,
514A-517C. — Outro tipo de "essencialismo" é o sistema de Hegel, segundo o
qual "todo o real é racional" e "todo o racional é real", cf. § 96 II.
— Cf. A. Dondeyne, op. cit., pág. 77: (Le) concret authentique c'est d'abord
l'étant singulier en tant enveloppe dans une unité indissoluble une 1=1-
tiplicité inépuisables d'aspects, de significations, ou, si l'on veut, une infinité
de níanières de se manifestei, le concret c'est ensuite et simultanément ce
même étant singulier en tant qu'il renvoie... d l'ensemble des étants et com-
pose avec eus l'étre-en-totalitó. — O concreto, no sentido rico da palavra, não
é, portanto, idêntico ao hic et nuns da experiência sensível, objeto da percep-
ção e das ciências empíricas: êste concreto é le plus redoutable des abstraits
(Hegel).
— Cf. 13 II; 16 VIII; iZ 17 II; 65
(27a) . — Cf. Sanctus Thomas, Sumiste Theologica, I q. 84, a 7 (in corpore): Intellectus
autem humani, qui est conjtmctus corpori, proprium objectum est quidditas
sive natura in meteria corporal; existens; et per hujtsn*di naturas visibilium
rerum, etiam in invisibilium rertum aliqualem cognitionem ascendit. De ra-
tione autem hujus naturae est quod in aliquo individuo existat, quod non est
absque meteria corporali; sicut de ratione naturae lapidis est quod sit in hoc
lapide... Unde 'natura lapidis, vel cujuscumque materialis rei, cognosci non
potest complete et vere, reis; secundum quod cognoscitur .ut in particular; exis-
tens. — Cf. também, ibidem, a. 8 (in corpore)
— 136

sefiala antecipadamente lo que puede suceder, pero no determina


lo que sucederá de hecho (27b).
O Existencialismo procura compreender os entes individuais
na sua existência concreta, a qual está situada no movimento per-
pétuo do "vir a ser" ou "devir". Como filosofia dinâmica, é filha
dos tempos modernos (28), mas seu dinamismo se diferencia pro-
fundamente das doutrinas, racionalistas e deterministas de um He-
gel, Comte ou Spencer, que encerravam o homem no cárcere de
leis impessoais e de construções puramente lógicas. O Existencia-
lismo frisa a contingência dos existentes, e — tratando-se do ho-
mem, — a liberdade: a existência humana é um poder-ser, um
apêlo ao ser, ou, como diz Jaspers, "uma existência possível" (ale-
mão: eine mfigliche Existenz). O existencialista abomina o mun-
do desumanizado do Racionalismo, e acredita num mundo "signi-
ficativo", num monde-pour-fhomme, c'est-à-dire le lieu oà habitent
les hommes, oà ils poursuivent chacun leur destinée personnelle
dans I'intersubjectivité avec l'aide des choses (28a) . A existên-
cia humana é liberté engagés dans le monde (28b) . E' o homem
na sua totalidade que toma uma atitude individual perante as coi-
sas concretas da realidade, e essa realidade não é um mundo me-
cânico de fôrças cegas que acabaria por absorvê-lo, nem um sis-
tema de abstrações que o reduziria a um silogismo; o homem
tampouco é uma coisa entre muitas outras como é um raciocínio
entre muitos outros: êle é subjectivité incarnée. A existência hu-
mana efetua-se num contacto íntimo e vivido com as coisas e me-
diante as coisas do "mundo", e para alguns existencialistas, êste
processo de auto-realização é apenas possível mediante uma co-
laboração fiel e cordial com os "outros" (28c). A atitude existen-
cialista perante as coisas e os homens não é a de um cientista "ob-
jetivo", mas envolve uma participação ativa e integral da nossa
(27b). —Cf. J. B. Lotz, op. cit., pág. 108.
(28). — O século XIX começou a perceber também o desenvolvimento orgânico do
- dogma cristão, no sentido de se tornar explícito, no decurso dos séculos, o que
estava implícito no depositum fidei que é inalterável e definitivo. Esta teoria,
bem característica dos tempos modernos, já foi esboçada por J. de Maistre
(cf. § 93 II) e exposta de modo magistral por J. H. Newman, no Essay on
The Development of Christian Doctrine (1845), onde lemos (pág. 40): Old
principies reappear under new forms. (Christianism) changes with them in
order to remain the same. In a higher world it is otherwise, but here helow te
live is to change, and to be perfect is to change of ten. O autor mostra que a
Igreja Católica, apesar do seu desenvolvimento orgânico (de que enumera as
diversas características) conservou pura a doutrina evangélica, sem corrupções
e sem acréscimos.
— A. Dondeyne, op. cit., pág. 70.
—, Cf. P. Foulquié, op. cit., pág. 47: "Engagement" est pris dais deux-
acceptions: au sens passif, ce mot désigne le fait de se trouver engagé, c'est-à-
dire inséré dans un système dont on dépend; au sena actif, ii ~Arte l'acte
méme par leque! on s'engage en entrant dans une condition oú Pon devra
rester.
— G. Marcel, depois de assistir ao drama Huis-Clos de Sartre, em que Garcin, na
última cena, diz: L'enfer, c'est les autres, deve ter dito esta palavra: POUY
Moi, les autres, c'est le ciei.
— 137 —

vontade, dos nossos afetos, dos nossos instintos, etc., e pressupõe


em nós a existência de faculdades importantíssimas que não sejam
a razão; alguns existencialistas dão muito valor à fé, se não à fé
religiosa, ao menos, à fé filosófica. Daí ser o pensamento de mui-
tos existencialistas modernos um pensamento apaixonado, subje-
tivo e até patético: pregam êles le retour au coeur, não ao senti-
mentalismo romântico ou ao solipsismo subjetivista, e sim au coeur
qui a ses raisons que la raison ne connait point (28d). Santo Agos-
tinho (28e), Pascal e Newman (28f) são alguns grandes modelos
a que muitos contemporâneos se reportam com predileção.
IV. A Existência Humana .
A bem dizer, na terminologia existencialista, só o homem
existe; as coisas materiais têm apenas a "existência bruta", visto
serem completamente predeterminadas por causas fixas e inva-
riáveis. A "existência autêntica" do homem é a existência do ho-
mem concreto, enquanto se realiza a si próprio num processo his-
tórico, em virtude da sua liberdade, isto é, mediante livres deci-
sões. No mundo da nossa experiência, é só no homem que "a exis-
tência precede a essência", o homem, na medida em que existe
autênticamente, isto é, não pertence às massas anônimas que re-
nunciam à liberdade; êle escolhe livremente sua essência (indivi-
dual, segundo alguns; total, segundo outros), a qual não passa de
um produto do seu esfôrço contínuo de auto-criação (28g). O
homem "sai" (ex-) constantemente daquilo que é para "se colocar"
(-sistere) a um nível de existência que antes apenas era possível:
sua existência, segundo certos existencialistas ateus, é pura con-
tingência, liberdade total, a não depender de nada senão de si
mesma (é esta a opinião de Sartre); segundo outros, a liberdade
humana está fundada no ser (Heidegger), ou em Deus (por exem-
plo, Kierkegaard e Marcel).
Pascal, Pensées, pág. 45S (éd. Brunschvicg).
— Cf. Augustinus, Confessiones, X 16: Quid propinquius meipso mihi? Ego
certo laboro hic et' laboro in meipso: factus sum mihi terra diffic-ultatis et su,
dons ninei; cf. nota 22.
— Sua divina cardinalícia era Cor ad Cor loqtritur.
— Cf. J. H. Newman, Grammar of Assent, pág. 265: What is the peculiarity
of our nature, in contrast with the inferior animais around us? It is that. though
man cannot change what he is borne with, he is a being of progress, with
relation to his perfection and characteristic good. Other beings are complete
from their first existente, in that line ai excellence which is allotted to them;
but man begins with nothing realized (to use the word), and he has to make
capital for himself by the exercise of these faculties) which are hís natural
inheritance. Thus he gradually advances to the fulness aí his original des-
tiny. Nor is this progress mechanical, fios is it of necessity; it is committed
to the personal eflorts of each individual • of the species; each of us has the
prerogative of completing bis inchoate and rudimental nature, and of developing
his own perfection out of the living elements with which his mind began to he.
It is his gift to be the crestos of his own sutficiency, and to be ernphatically
sell-made. This is the law of his being, which the cannot escape; and whatever
is involved in that law, he is bound, or rather he is carried on, to fulfil.
— 138 —

Diz Sartre: L'existencialisme athee. declare que, si Dieu


n'existe pas, il y a au moins un être chez qui l'existence precede
l'essence, un être qui existe avant de pouvoir être défini par aucun
concept, et que cet être c'est l'homme. L'homme n'est rien d'au-
tre que ce qu'il se (29). Ao que o Salmista (XCIX 2) opõe:
Ipse fecit nos et non ipsi nos. Para Sartre, porém, a noção de Deus
é contraditória: se Deus, o ens a se, existisse, seria causa sui, pois
"existência" é sinônimo de "contingência" (29a). Além disso, se
a liberdade humana dependesse de um plano "essencial", precon-
cebido por uma mente divina e impresso na nossa substância, dei-
xaria de ser livre e se transformaria em necessidade; o homem não
teria história própriamente dita, mas seria predeterminado pela
"idéia do homem" do mesmo modo que, — segundo a opinião er-
rôneamente atribuída a muitas pessoas por Sartre, — les petits
pois... s'arrondissent conformément à fidée de petits pois et que
les cornichons sont cornichons parce qu'ils participent à l'essence
de cornichons. O homem é totalmente livre, sendo o inventor do
homem, e sua liberdade não se funda na sua racionalidade nem
na Mente divina, e sim no Nada, no Absurdo. A existência é ab-
surda, o homem é de trop, a liberdade humana, apesar de cons-
tituir l'unique source de valeur, é absurda; tôdas as minhas deci-
sões devem arrastar-me para o Nada. Nous sommes condamnés à
la liberté: a liberdade é, por assirpr dizer, a "essência" humana
(n'en déplaise à Sartre!), mas, assim sendo, a necessidade vem a
destruir a tão elogiada contingência radical. Segundo Sartre, o
homem deve escolher, sem dispor de princípio algum de escolha a
não ser sua liberdade: Nous voulons la liberté pour la liberte
(29b), uma liberdade sem fundamento, sem razão de ser, sem sig-
nificado derradeiro. Daí seu desespêro, sua angústia, seu pessi-
mismo, e até sua náusea.
Não podemos expor aqui a posição de outros existencialistas:
aliás, alguns serão estudados neste e nos outros capítulos (Kierke-
gaard, Nietzsche, Berdiáïev, Jaspers, etc.). Só queremos falar
duas ou três palavras sôbre o existencialista católico Gabriel Mar-
cel, o antípoda do existencialista ateu Sartre. Também Marcel
frisa a auto-realização humana num processo histórico mediante a
liberdade; mas a liberdade marceliana não nos leva ao Nada, e
sim a Deus: a existência humana não fica encarcerada nas diversas
,

situações históricas, mas é une existence ouverte, um convite ao

(29) . — J.-P. Sartre, L'Existentielisme est un Humanisme, págs. 21-22.


— Para a discussão do argumento de Sartre contra a existência de Deus, cf. P.
Foulquié, op. cit., págs. 82-84, e Jolivet, op. cit., pág. 202; 205; 238.
. J.-P. Sartre, L'Existentialistne est un Humanisme, pág. 84.
— 139 —

transcendente, a manifestar-nos o mistério do Ser (29c). O pro-


cesso de auto-realização exige fidelidade da parte do homem para
consigo, graças à qual poderá penetrar a fundo na sua existência;
sua existência pode ser aprofundada e aperfeiçoada semente me-
diante uma relação pessoal com os outros homens que são seus
"co-existentes"; esta fidelidade a outros cria uma verdadeira uni-
dade ontológica entre o "Eu" e o "Tu" (psicologia da "segunda"
pessoa!), a abrir-se espontâneamente à chamada do "TU" absolu-
to e incondicionado que é Deus. As categorias sartrianas de an-
gústia, desespêro e náusea são, na filosofia de Marcel, substituídas
pelas categorias de fé, esperança e amor.
V. Apreciação do Existencialismo.
O Existencialismo é uma reação compreensível, mas exagera-
da e unilateral, ao "abstracionismo" e ao determinismo da época
anterior; nos seus elementos positivos, coaduna-se perfeitamente
bem com o Cristianismo. O Cristianismo descobriu o verdadeiro
âmbito da contingência, por considerar a criação, não como uma
emanação necessária da Divindade, e sim como uma obra vo-
luntária, feita por um Deus-Pessoa . Nem é de estranhar que o
problema da "existência humana" tenha sido descoberto no plano
religioso (com Sõren Kierkegaard); só depois desceu a um plano
puramente humano.
Já vimos (§ 75 I) que a verdade objetiva da tese: "Deus
existe" não pode ser aceita com fria indiferença, como se fôsse o
resultado de um cálculo matemático ou o têrmo final de um ra-
ciocínio metafísico: o homem tem a obrigação de se compenetrar
totalmente desta verdade, deve "vivê-la". Já no judaísmo encon-
tramos uma religião voluntarista, a distinguir-se radicalmente da
religião intelectualista professada pela maior parte dos pensado-
res gregos: Deus é Pessoa, a manifestar sua divina Vontade às
criaturas humanas e .a dar-lhes ordens impreteríveis. Também
Cristo nos ensina que não devemos contentar-nos com um amor
puramente intelectual a Deus: "Amarás o Senhor teu Deus, de
todo o teu coração, e de tôda a tua alma, e de todo o teu espírito"
(Mt., XXII 37) . Além disso: a moral cristã é eminentemente
"aberta", um progresso contínuo, o motus rationalis creaturae ad
Deum, que exige que o homem sempre se supere: se o homem,
já no plano natural, tem a grave obrigação de vir a ser o que é, ao
contrário de uma mesa "acabada" uma vez para sempre, ou de
petits pois, que se desenvolvem conforme a ação ,,predeterminada
(29c) . — Cf. Jeanne Delhomme, in Existentialisme Chrétien, Gabriel Marcel, Paris,
Plon (na coleção "Présences"), 1947, pág. 158: Ce qui ne signifie pas que
le mot "mystère" soit plaqué comme l'étiquette: "prière de ne pas toucher", et
que nous soyons paradosalement condatrinés à pensar en marge de l'è'tre.
— 140

de um princípio vital contido no seu germe, ao cristão é proposto


o ideal de perfeição sobrenatural: "para chegar ao estado do ho-
mem perfeito, segundo a medida da idade completa de Cristo"
(São Paulo, Ep. Ef., IV 13) . Ideal absoluto que não permite es-
tagnação e exclui tôda e qualquer satisfação.
O Existencialismo tem muita razão em salientar a totalidade
do "Eu" concreto: o homem não é simples resultado de influên-
cias físicas, fisiológicas e sociológicas, o produto calculável de fôr-
ças externas e mecânicas, como o queria o Materialismo; nem é
pura interioridade, a construir "o mundo" segundo as leis da "Ra-
zão" autônoma, como o queria o Idealismo; o homem é unidade
substial de espírito e corpo que, além de conhecer, também tra-
balha, sente e quer, ama e odeia, sofre e se alegra, e que, além
de ser determinado, também dtermina. L'existence au sens mo-
derne, c'est le mouvernent par leque! est au monde — à travers
un corps, — s'engage dans une ~Mion physique et sociale qui de-
vient san point de vue sur le monde (30) . O homem existe "para
si", tendo valor autônomo e insubstituível, e constrói livremente
sua personalidade (sua "essência individual") em vista de valores
transcendentais.
Por essas razões o Existencialismo é uma reação sadia e sa-
lutar a sistemas racionalistas que tendiam a desencarnar e a de-
sumanizar o homem. Mas o valor de uma reação deve ser ava-
liado pela medida em que ela nos aproxima da verdade: à fôrça
de nos inculcar a importância relevante da nossa "subjetividade"
incorre fàcilmente no risco de nos fazer perder de vista a "obje-
tividade": o nóema tende a ser sacrificado à nóesis, ao passo que
só uma síntese da realidade total poderia satisfazer ao espírito
humano. La science est veste. L'esprit humain tend invincible-
ment à Amité. L'existentialisme, de son point de vue limité, ne
remplacera jamais à lui seul la connaissance objective (30a) .
Sua posição extremista pode fàcilmente resultar em subje-
tivismo intelectual e em relativismo moral, — aliás, possiões essas
que são tomadas por mais de um representante da nova filosofia.
Para certos existencialistas, a verdade e as normas éticas são cria-
das pela existência humana de maneira completamente autôno-
ma . Esta tese, levada ao extremo, redunda em franco niilismo;
na prática, significa o predomínio dos afetos, dos instintos e das
paixões sôbre o intelecto: sua cuique deus fit dica cupido (31) . De-
sirmanar a "verdade" objetiva da "veracidade" subjetiva é uma
faculdade trágiç,a do homem enquanto vive no tempo; neste mun-

— Merleau-Ponty, apud A. Dondeyne, op. cit., pág. 23.


(30a). — A.-D. Sertllanges, Le Problème du Mal, Paris, Aubier, 1948, I pág. 381.
— Vergilius, Aeneis, IX 182.
--- 141 —

do, a mentira pode "viver", e a verdade pode "estar morta": há mais


veracidade num homem impudentemente desavergonhado do que
num .cristão hipócrita que vive desmentindo a "verdade" com seus
atos. Mas por isso não deixa de ser verdade a verdade, e mentira
a mentira. Só em outro lugar haverá plena coincidência da "ver-
dade" e da "veracidade". A verdade "vivida" pela pessoa humana
— a connaturalitas (31a) — é impossível sem que haja um certo
amor a unir intimamente o sujeito com o objeto . Se a veracidade
autêntica é a "apropriação" pessoal e subjetiva da verdade objetiva
e transcendente, daí se segue que a veracidade não pode existir sem
alguma verdade: não há apropriação sem que se aproprie alguma
coisa.
§ 107. O mito contra o logos.
A existência é algo impossível de comunicar diretamente; daí
preferir o Existencialismo uma análise descritiva e histórica a uma
exposição sistemática; daí serem suas formas prediletas o romance
(Camus, Sartre), o teatro (Sartre, Marcel), o diário (Kierkegaard,
Marcel) . Outra tentativa moderna de se aproximar do concreto mis-
terioso e de dar sentido à atividade humana é o mito, hoje têrmo
de moda .
I. O Mito Primitivo (32).
O mito primitivo é uma representação plástica e antropomor-
fa, — não "conceptual", — da realidade; brota espontâneamente
da imaginação criadora de uma época pré-científica e pré-filosó-
fica, e é espontâneamente aceita pela comunidade em que nasceu;
aponta para um tempo pouco determinável, e refere-se a ações de
coisas ou fenômenos personificados com o intuito de explicar cer-
tos ritos religiosos, instituições sociais ou culturais, e sobretudo a
origem e o destino do homem.
Examinemos agora os elementos dessa descrição.
a) O mito primitivo é o produto daquela forma primordial
e intuitiva da consciência humana, em virtude de que o homem
se projeta a si mesmo nas coisas, isto é, as anima e personifica.
(31a). —,Sanctus Thomas, Summa Theologica, IIa IIae, q. 45, a. 2 (in corpore): Rec-
titude autem judicii potest contingere dupliciter: uno modo secundum perfectum
usum rationis; ano modo propter connaturalitatem quamdans ad ea de quibus
jam est judicandum; scilicet de his quae ad castitatem pertinent, per tetionis
inquisitionem recte judicat ille qui didicit scientiam mareiem; sed per quarrz.-
dam connaturalitatem ad ipsam, recte judicat de eis ille qui habet habitum
castitatis. Hujusmodi surtem compassio, sive connaturalitas ad res divinas
fit per cliaritatem, quae quidem unit nos cum Deo.
(32). — Cf. também § 37 I. — Sôbre o mito, veja E. Cassirer, El Mito dei Estada,
México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Economica, 1947 (original: The Myth
of The State); H. Rahner, S. J., Mythes Grecs et Mystère Chrétien, Paris,
Payot, 1954 (trad. de uma obra alemã); E. Bréh ,er, Philosophie et Myfhe, in
Revoe de Métaphysique et de Morale, XXII (1914), págs. 361-381; R. Guar-
.dini, Der Heilbringer (= "O Salvador"), 1947; dêste último livro não existe,
que saibamos nós, tradução francesa, ou espanhola.

— 142 ---

Não é fruto de uma fase pré-lógica, como se pudesse prescindir


totalmente do lógos; é uma forma de entender e de explicar o uni-
verso, baseada nas faculdades intelectivas do homem: a análise e
a síntese, a distinção e a combinação; já conhece o princípio de
causalidade, embora êste, de maneira antropomorfa, não se revista
de feições abstratas, e sim concretas, isto é: as causas desvendadas
pelo mito não se dirigem apenas à nossa inteligência nem se apre-
sentam como leis fixas e invariáveis, mas são disposições capri-
chosas que possuem o poder de empolgar o homem inteiro, cau-
sando nele sentimentos de veneração ou aversão, de esperança e
temor, de simpatia e antipatia. Para tal efeito, serve-se, não de
uma linguagem puramente racional ou "conceptual", e sim de ima-
gens e símbolos.
O mito era originàriamente o complemento do culto, não
podendo subsistir sem permanecer ligado a êle. O mito dá signi-
ficado às atividades humanas, estabelecendo uma espécie de har-
monia entre ela e a realidade, e ministrando, de maneira parti-
cular, um comentário dos atos do culto religioso. Os ritos primi-
tivos, além de exprimirem a emoção religiosa, têm, desde cedo,
por finalidade conjurar as fôrças misteriosas do universo. Visto
que, numa época indeterminável, se deu certo fato, cuja memória
é mantida viva pelo mito, deve-se praticar agora certo ato ritual,
e a êle se chega a atribuir um poder secreto e sobrenatural .

Originariamente, el mito es el significado de un acto ritual. El


rito es la forma, el mito es la materia, y el compuesto de esta
materia y de esta forma, un drama ritual, eni que el pensamiento
significado no se distingue aun del acto significante. Antes, todos
los hombres danzaron los mitos que, después, algunos cantaron
(33) .
O mito primitivo não é um conto simplesmente fantás-
tico, inventado livremente por um indivíduo sem conexão com as
crenças e as aspirações da comunidade; muito menos ainda serve
para divertir um público cansado da banalidade da vida cotidiana
(34), ou para burlar um auditório ignorante (35) . O mito pri-
mitivo tem a pretensão sincera, embora ingênua, de ser um con-
to verdadeiro, cujo conteúdo, de valor sobre-individual, deve ser
aceito religiosamente e, de fato, é aceito por todos os membros
da sociedade; devido a êsse consentimento tácito espontâneo
entre o mitólogo e seu público, o mito primitivo se distin-

. Eudoro de Sousa, Mitologia y Ritual, in Aneles de Arqueologia y Etnologia,


X (1949), págs. 227-228.
E' a mitologia transformada em literatura recreativa, em que nem o autor
nem o público acredita, por exemplo, as Metamorphoses de Ovídio.
(35). — Como pretendiam alguns autores esclarecidos na Éra das Luzes.
— 143 —

gue do "mito erudito" (por exemplo, Platão, Vergílio, Dante


Camões), o qual se caracteriza por um grau mais alto de reflexão
pessoal, de coerência lógica, de preocupações moralistas, e possui,
geralmente, certos elementos alegóricos. No mito primitivo, uma
sociedade pouco diferenciada ainda deposita e reconhece espon-
tâneamente sua mundividência pré-científica.
O mito primitivo é expressão do pensamento religioso,
sufocado por uma imaginação exuberante. Não foi o mito que
criou a religião (36), e sim, uma religião deturpada por magia,
feiticismo, animismo e antropomorfismo que criou o mito religioso.
A história das religiões mostra que, nas fases mais primitivas da
cultura humana, as representações do Ser Supremo estavam isen-
tas de mitos.
O mito religioso traduz o anelo natural da alma huma-
na pela felicidade, pela paz, pela imortalidade e pela "salvação",
bem como interpreta o horror a tôdas aquelas fôrças misteriosas
que poderiam estorvar essas dádivas sobrenaturais. Cria figuras
benévolas ("salvadores") que devem realizar e garantir a vitória
da luz sôbre as trevas, da vida sôbre a morte, da cultura humana
sôbre o estado animal, da ordem sôbre o caos. Pois, para a men-
talidade primitiva, o levantar do sol, o crescer e o minguar da lua,
o início da primavera, o nascimento de um filho, etc., não são
fenômenos "naturais", determinados por leis fixas e invariáveis,
mas sim acontecimentos misteriosos a originarem no homem sen-
timentos de espanto "numinoso": enchem-no de esperanças jubi-
losas como também de temor religioso (37) . O sol, no seu per-
curso diário, poderia ser derrotado pelas trevas da noite, a lua
poderia deixar de crescer novamente, etc. Sentindo-se solidário
com as fôrças misteriosas do universo, o homem primitivo, em
virtude de sua mundividência mítica, inventa ritos "simpáticos"
apropriados para socorrer as fôrças benéficas e para conjurar as
nefastas. Também as invenções humanas (o fogo, a navegação,
a agricultura, etc.) não possuem apenas caráter utilitário, mas são
tidas por presentes de "salvadores", cuja posse segura é sempre

. — Era esta a opinião da "escola mitológica", fundada por Max Müller (1823-
1900), filólogo de origem alemã, professor em Oxford desde 1850. Segundo
êle, o mito nasce da exuberância da linguagem primitiva, tão rica em me-
táforas que o homem era espontaneamente levado a personificar as misteriosas
fôrças da natureza. Nomina numina.
. — O homem sente-se dependente de fôrças que muito lhe superam as capacidades,
e que o enchem de um temor respeitoso ou "numinoso"; a divindade se lhe
afigura como um numen tremendum, cf. a palavra de Statius, Thebais, III 661:
Primus in orbe deos keit timor. — Esse "temor a Deus", inseparável de tôda
e qualquer religião, mias bem diferente de "mêdo" e de "angústia", aprofun-
dou-o o judaísmo pelas noções da transcendência absoluta e da santidade ab-
soluta de Deus, em oposição à condição do homem, o qual é criatura e peca-
dor: o Cristianismo completou-o por frisar muito mais do que o judaísmo e
qualquer paganismo, o "amor a Deus" como base da religião.
— 144 —

ameaçada pela ação danosa de outros sêres sobrenaturais. O mi-


to submerge o homem nas ondas rítmicas da vida cósmica, da
Natureza divina, do Todo absorvente; o Universo é cheio de en-
tes sobrenaturais, uns benévolos e salutares, outros malévolos e
nocivos; entre as duas categorias há um perpétuo revezamento,
uma luta sem vitória ou derrota definitiva; é um "devir" perpé-
tuo, a arremedar a eternidade divina (38).
O simbolismo próprio do mito não deve ser interpretado
como ornato postiço, acrescentado posteriormente para enfeitar
certos conceitos racionais, mas forma com êles uma unidade indi-
visível. Por outras palavras: o mito é símbolo para nós; para os
primitivos é a representação direta da realidade. Destarte se dife-
rencia da "alegoria" que é uma configuração simbólica de conceitos
abstratos; a interpretação "alegórica" do mito, tal como se pratica-
va na época helenista e no Baixo Império (39), é própria do ra-
cionalismo, e traz inevitavelmente consigo a morte do mito.
Há várias espécies de mitos: o mito teogônico (que tra-
ta da origem dos deuses), o mito cosmogônico (que trata da ori
gem do mundo), o mito escatológico (que trata do fim do mundo),
o mito antropológico (que trata da origem e do destino do ho-
mem), o mito institucional e cultural (que trata da origem e do
sentido de certas instituições políticas e sociais, e invenções téc-
nicas e culturais), etc.
II. O Mito na Filosofia 'Grega.
A filosofia grega, a que está• relacionado o nascimento da his-
tória, constitui, como já vimos (§ 2), uma tentativa de emancipar
o pensamento humano da mitologia. Esta aponta para um acon-
tecimento num tempo indeterminável e inacessível à memória hu
mana, acontecimento significativo e valioso para o tempo presen-
te; para aquela, o princípio não é simplesmente início cronológico,
dependente da disposição de uma divindade antropomorfa, mas
uma causa lógica. Segundo Heráclito de Êfeso, o mundo não foi
fogo, mas é fogo: "Tudo se troca por fogo, e fogo por tudo" (fragm.
90). "Êste Kó,imos sempre foi, é e será um fogo eternamente vivo,
que se alumia por medida e por medida se apaga" (fragm. 30): o
processo de geração e corrupção não se efetua conforme os ca-
prichos de entes sobrenaturais, e sim segundo uma ordem racional.

— O Cristianismo não é mito; Cristo é Pessoa histórica, a nascer sob Augusto, e


a morrer sob Pôncio Pilotos, o governador de Tibério; os evangelistas e os
apóstolos frisam incessantemente a historicidade da sua vida e morte. Além
disso Cristo não é um deus cósmico, um salvador vinculado ao processo de
repetição perpétua, e sim o Deus transcedente que, embora se encarne "na
plenitude do tempo", vive na eternidade. — Cf. também § 73 II f.
-- Cf. § 49 II b.
145 —

Os chamados pré-socráticos combatiam o mito no terreno da


'física" e da "teologia"; era uma inovação revolucionária que a
muitos devia afigurar-se como um sacrilégio. A reação religiosa.
representada pelo orfismo, na segunda metade do século VI, res-
tituiu o mito, purificando-o e dando-lhe feições panteístas (40).
No século V, os sofistas, procedendo de modo muito mais radical
e irreverente do que os pré-socráticos, procuravam "desmitizar" o
mundo humano (a sociedade, a religião, a moral, a tradição, etc.):
destruiam o mito pirimitimo, racionalizando-o, isto é, dando-lhe
uma interpretação alegórica (por exemplo, Protágoras e Pródico).
Sócrates rejeitava êste método, dizendo que não tinha tempo de
se dedicar a êsses estudos, visto que sua missão consistia em co-
nhecer-se a si mesmo (41): com sua profunda veneração pela tra-
dição e suas sadias tendências místicas (daimánion!), apesar da
sua confiança no lógos, não queria racionalizar a religião que
segundo êle, devia consistir, numa relação pessoal entre o ho-
mem e a divindade (42). Tucídides combatia o mito na historio-
grafia (cf. § 3 II), acusando os logógrafos de embelezarem os fatos
históricos em detrimento da verdade para cativarem o auditório
(I 21); a palavra mythódes (I 21, 1) ficou com sentido deprecia-
tivo de "fabuloso, fictício".
Platão, profundamente influenciado pelo orfismo, tentava in-
suflar vida nova ao mito, concedendo-lhe um lugar na sua filoso-
fia. O mito platônico (43) é a representação simbólica (44) de
algo que não é demonstrável, objeto não da ciência (grego: epis
téme), e sim de fé (grego: pístis). O mito é uma ponte construí-
da para se chegar a uma realidade que permanece inacessível à
dialética. Quando esta atinge a Idéia no seu caráter metafísico,
isto é, como essência existente, ela chegou ao seu limite, e o mito
fica encarregado de expor o que a razão não poderia elucidar. O
mito platônico está, ao mesmo tempo, aquém e além da ciência .
Pois ainda que Platão, às vêzes, considere o mito como uma for-
ma inferior de saber, o certo é que o aplica cada vez que se trata

— Cf. W. Jaeger, The Theology of The Early Greek Philosophers, Oxford, 1947
(sobretudo os Chapters II-IV).
Plato, Phaedrus, 219D-220A. — No cárcere, Sócrates ocupava-se em compor
as fábulas de Esopo e o hino a Apolo, cf. Phaedo, 60D-61B.
— A religião de Só.:rates continua sendo assunto discutido; remetemos o leitor
ao livro de Antônio Tovar, Sor-rate. Se Vie et Son Temps, Paris, Payot, 1954
(trad. franc. de uma obra espanhola), onde encontrará abundante bibliografia
e documentação.
— Alguns mitos de Platão são: o Demiurgo como Criador (Timaeus, 27D-30C);
a Teogonia (ibidem, 40D-41B); a criação do homem (ibidem, 41B-43B); o
Juízo Final (Gorgias, 523A-527E); o livre arbítrio do homem (Respublica,
614B-621D); o mito da Caverna (ibidem, 514A-517C); Atlântida (Timaeus,
21A-25D, e Critias, 108E-120D).
— Simbólica, e não alegórica. Nem todos os pormenores do mito precisam set
conforme a verdade, cf. Plato, Pahedo, 1.14D.

Revista de História n.o 29


— 146 —

de coroar seu sistema com um saber superior (a imortalidade da


alma, o livre arbítrio, etc.). O mito platônico traduz o anelo na-
tural da alma humana, consciente da insuficiência do seu saber,
por uma revelação sobrenatural: tendebantque manus ripas ulte -

riores amore (45); por isso possui caráter sumamente religioso .

Le mythe doit... fournir une expression au sérieux religieux qui


permet à l'homme "de donner à son âme le soin qu'elle requiert
si elle est immortelle", comine il est dit dans le Phédon (114D)
Les images qu'il développe doivent mettre sous les yeux l'essence
et la responsabilité de l'âme, les possibilités positives et négatives
de sa desitinée (46). Dada a carência de uma revelação divina,
preciso compor sôbre tais coisas mitos e lendas.
Aristóteles, embora autor da célebre frase de que o "philó-
mythos" é, até certo ponto, "philósophos" (cf. § 71 I) e admitindo
que o mito possui certo valor para a evolução histórica do pen-
samento humano (47), destrói o mito na filosofia, dizendo: "Não
vale a pena ocuparmo-nos muito tempo com os que especularam
mediante mitos; é melhor dirigirmo-nos àquêles que baseiam o
que afirmam em demonstrações" (48) . Os estóicos e outros ra-
cionalistas da época alexandrina e romana destruiram o mito por
completo, interpretando-o de maneira alegórica e demonstrando
que physica ratio non inelegans inclusa ,est in impias fabulas (49).
O neoplatonismo, filosofia impregnada de misticismo, tentava re-
vivificar o mito.
III. O Mito nos Tempos Modernos.
A Éra das Luzes julgava acabar definitivamente com o mi-
to, declarando-o um conto pueril de épocas ignorantes e supers-
ticiosas, e indigno da atenção de um homem esclarecido; para
Comte, o estado mitológico constitui a infância da humanidade, ir-
revogàvelmente encerrada e impossível de reviver na época posi-
tivista. Como se enganou o pai do Positivismo! Pois o século XIX,
mas sobretudo o século XX, presenciaria o renascimento do mito,
principalmente na Alemanha e na Rússia (50), mas também em

Vergilius, Aeneis, VI 314.


— Romano Guardini, La Mort de Socrate, Paris, Éditions du Seuil, 1956, págs.
254-255.
— Aristóteles, Metaphysica, XI 8, 13; II 1.
— Ibidem, II 4, 13.
— Cícero, De Natura Deorum, II 24, 64; daí as etimologias rebuscadas dos es-
tóicos na sua tentativa de racionalizar os mitos; por exemplo explicavam Sa-
turnus quod saturaretur annis; Krónos = Chrónos (= Tempo); Juppiter = Juin-
piter = Juvans Pater; Neptunus a nando, etc. — Cf. § 47 I, nota 60.
(50)• — Entre os filósofos da Alemanha célebre mitólogo é Schelling (cf. § 96, nota
27); J. J. Bachofen (1815-1887), professor na Universidade de Basiléia, dava
uma interpretação científica e, ao mesmo tempo, romântica do mito. — Para
os russos, cf. Capítulo VII (passim) •
-147—

outros países (51); o mito, nos tempos modernos, levantaria or-


gulhosamente a fronte, estimando-se o filho primogênito do espí-
rito humano e chegando a menoscabar seu irmão mais novo, do-
ravante tido por um pedante estéril: o lógos.
Muitas vêzes a palavra é usada mais ou menos como sinôni-
mo de "utopia": entretanto, convém fazermos uma distinção entre
"mito" e "utopia". E' esta uma construção predominantemente ra-
cional de um estado ideal e irrealizável, concebido por um fi-
lósofo individual (52); aquêle, exprimindo os sentimentos e as
aspirações de uma coletividade, é uma fôrça irracional e dinâmica
que nos quer instigar a um supremo esfôrço e nos promete um
estado superior ao da fase atual. Ao contrário da maior parte dos
mitos primitivos que nos reconduzem a um passado remoto e pou-
co definível, o mito dos tempos modernos, talvez sob a influência
da escatologia cristã, transporta-nos para um futuro mais ou me-
nos longínquo, do qual nos sugere uma imagem tentadora e atra-
ente para nos arrastar à ação; o mito é gerador de uma verdade
superior, em oposição à verdade obsoleta do momento presente.
Seu conteúdo intelectual é muito pobre, e pouco resiste a uma
análise penetrante; é uma idéia simplificada, uma concepção em-
polgante, uma representação plástica do porvir coletivo, a qual
custa pouquíssimo às nossas faculdades intelectivas e apela prin-
cipalmente para os nossos sentimentos e a nossa vontade. O mito
é a alavanca das massas. Exemplos são: "o mito do Progresso",
"o mito racista", "o mito do proletariado", etc. Até poderíamos
dizer que a publicidade moderna, os slogans políticos e sociais, tão
freqüentes na sociedade atual, são formas abreviadas de mitos.
Entre os filósofos modernos não há poucos que, revoltados
pelo dessecamento das fontes vitais do homem hodierno, têm sau-
dades do "pensamento mítico" de tempos idos; são sobretudo os
vitalistas que assim pensam, entre os quais ocupa um lugar de des-
taque o filósofo alemão Ludwig Klages (53). Segundo êle, existe
uma antinomia irredutível entre o Espírito (alemão: Geist) e a
Alma (alemão: Seele) . O Espírito é interesseiro, violador, agres-
— Na França, por exemplo, G. Sorel, Réflexions sur la Violence, 1907; Sorel
é o pai do sindicalismo moderno (1847-1922) e um dos críticos mais violen-
tos da cultura burguesa (mais tarde, também do marxismo). Desprezador dos
ideais democráticos, apregoa a vida excepcional, a luta heróica, a ação criado-
ra. Seu pensamento influiu pessoas tão diferentes como eram Lênin e Mussolini.
— Sôbre as utopias renascentistas, cf. E. Dermenghem, Thomas Morus et les
Utopistes de la Renaissance, Paris, Plon, 1927; R. Ruyer, L'Utopie et les
Utopies, Paris, Plon, 1950 (êste livro trata das utopias em geral); sôbre
a importância de "mitos" na vida de uma civilização, saiu em 1955 um livro
(em dois volumes) do professor holandês Fred. L. Polak, De Toekomest is
Verleden Tijd (= "O Futuro é Tempo Passado"), obra premiada pela Co-
munidade Européia do Carvão e do Aço (não sabemos se já existe em versão
francesa ou inglêsa).
— Ludwig Klages (nasceu em 1872) autor da obra: Der Geist ala Widersacher
der Seele, 1-111, 1929-1932 "O Espírito como Adversário da Alma").
148 —

sivo e técnico, sempre disposto a apoderar-se brutalmente do mun-


do vivo do "devir" para o apropriar ao Eu humano em conceitos
e juízos abstratos; êsse procedimento significa a morte da realida-
de dentro do próprio homem. A alma, porém, não quer "compreen-
der" (= "subjugar") as coisas, e sim "aclará-las" (alemão: aufhellen)
mediante uma contemplação desinteressada e um pensamento sim-
bólico e dinâmico, capaz de nos fazer sentir e viver a misteriosa
conexão das coisas em movimento perpétuo. Nos tempos moder-
nos, predomina o Espírito, sufocando as fôrças vitais da Alma; já
se iniciou êsse processo na Antigüidade com Anaxágoras (53a), pa-
ra ganhar em fôrça com Sócrates, Platão e Aristóteles e para atin-
gir seu apogeu com o triunfo do Cristianismo. O Espírito acabará
por matar a Alma, — o que, para Klages, discípulo e "aperfeiçoa-
dor" de Nietzsche, é motivo de pranto e de sérias acusações.
IV. Apreciação do Mito.
Se a época moderna com o seu espírito científico liqüidou, ao
que parece, definitivamente o nascimento de mitos primitivos, não
conseguiu impedir o brotar de "mitos utópicos". O fato comprova
bastante como o homem do século XX, a despeito das previsões
positivistas, continua a ter afinidades misteriosas e vitais com o
irracional, — paragens que o idealismo e o racionalismo desconhe-
ciam ou não queriam conhecer. As experiências dolorosas da hu-
manidade durante duas guerras mundiais, as investigações psica-
nalíticas, o Existencialismo e o Vitalismo vieram a ensinar-nos que
o homem não é uma proposição matemática e não pode viver de
abstrações; demonstraram também que não se pode construir uma
sociedade ou uma civilização sôbre o puro saber nem sôbre urna
tecnologia . O homem puramente racional é, em última análise ,

um mito de época racionalista . Lo abstracto, lo separado, la cons-


ciencia ideológica son incapazes de mover al hombre. No consti-
tuyen más que un canal, un marco, un exutorio que quieren Ilenar
las potencial indeterminadas, brutales y malsanos, del instinto aban-
donado a sí mismo. Qué lê queda en efecto al hombre atrinchado de-
trás de Ias abstracciónes que le fabrica el mundo actual, reducido
a un esquema lógico? qué le queda a semejante hombre para diri-
girse en la vida, sino los tentáculos del instinto y las antenas del sen-
timiento? Toda desencarnación va acompanada fatalmente de una

(53a) . — Por que Anaxágoras? Porque êste filósofo foi o primeiro a admitir um princí-
pio espiritual (grego: Nous = Espírito) na criação e na conservação do mun-
do; por isso mesmo, Anaxágoras parecia a Aristóteles "um sóbrio no meio de
ébrios que falavam à-toa" (Aristóteles, Metaphysica, III 984b = Diels, A 58) .
Sócrates, porém, não se mostrava contente com a elaboração prática dêste
princípio por Anaxágoras, cf. Plato, Phaedo, 97C-99D.
-- 149- —

animalización paralela (54). Com efeito, cortado o cordão umbilical


que une o homem à sua existência concreta neste mundo, o homem
não pode deixar de atrofiar-se, e as "massas" gozam desenfreada-
mente a vida, seguindo seus instintos e suas paixões.
Do mesmo modo que o Existencialismo, a "mitomania" mo-
derna é uma reação compreensível, mas exagerada e unilateral 'ao
racionalismo da época anterior. O homem orgulhoso excluia o mis-
tério, julgando-se capaz de tudo comprender e olvidando sua con-
dição de criatura; sobretudo repudiava o Mistério revelado, de-
clarando-o uma ilusão ou inépcia. Nos tempos cristãos, o homem
ocidental, habituado a contemplar o Mistério sobrenatural, aca-
tava com certa espontaneidade também os mistérios naturais; nem
é de estranhar que, suprimido Aquêle, tenham elanguescido êstes.
Ora, ao contrário da tese racionalista, pensamos nós que o misté-
rio é a plenitude do Ser, uma fonte inexaurível para a inteligên-
cia humana; não é escuridão, e sim superabundância de luz des-
lumbrante; é obscuro para nós, em si é suma claridade e sumo
esplendor. Os grandes Mistérios da fé cristã (por exemplo, o pe-
cado original e a Redenção), embora incompreensíveis em si, são
verdades luminosas que difundem uma luz irradiante sôbre a his-
tória inteira, muito mais do que qualquer sistema puramente hu-
mano, por mais engenhoso que seja. O homem ocidental, depois
de banir da sua vida os mistérios, os quais ia substituindo por pro-
blemas científicos, ficou desiludido da razão, e acabou por recor-
rer a mitos ineptos, renunciando, no seu fastio, à claridade do /ó-
gos. O mito primitivo era o crepúsculo matutino que anunciava
o clarão do dia; o mito moderno é o crespúsculo vespertino -que
ameaça afundar-nos nas trevas da noite. Aquêle era promessa e
esbôço, êste é apostasia e paródia . O mito tende a dissolver o ho-
mem no Kósmos, no fatalismo, na embriaguez dos sentidos e das
paixões; o mistério ajuda o homem a "personalizar-se" e a construir
uma verdadeira sociedade. O mistério eleva o homem para as es-
feras meta-humanas, o mito arrasta-o para o mundo infra-huma-
no (55).

— Marcel de Corte, opere chato, pág. 59.


— Cf. H. Rahner (veja nota 32), págs. 8-9: C'est seulement du fait de Fincar-
nation humaine de Dieu que devient transparente la douloureuse expérience
leite au cours de l'histoire et sans laquelle l'esprit de l'homme en vient à
se dessécher par un pur et simple monologue avec /ui-même (si sublime et si
beau qu'il puisse cependant être). Car l'homme, c'est le dialogue avec Dieu,
incarné dans la chair, venant du dialogue éternel, dont, acte de naissance• de
tout humanisme, la première parole s'écrit: "Créons l'homme à notre image
et ressentblance". C'est à partir de là que l'homme peut donner uns réponse à
Dieu, mais seulement en celui qui est là Anthropos et Logos. Car c'est seule-
ment de la manière dont on lui a adressé la parole que l'homme peut répondre
au Dieu vivent; toute autre chose n'est par contre qu'on monologue avec des
dieus reflets de Phornme. Dieu n'entend que son propre Verbe.
— 150 —

Os adeptos do mito vêem na linguagem simbólica e dinâmica


a única possibilidade de um contacto vital com a realidade sempre
ativa e nunca estacionária, chegando a menoscabar o pensamento
conceptual (55a), ao qual atribui um papel meramente técni
co e calculista . E' que conhecem apenas a ratio inferior, a razão
interesseira que, desde os dias de Francis Bacon (56), se tornou
preponderante na civilização ocidental. A ratio superior não quer
subjugar egoìsticamente as coisas ao indivíduo humano, e sim, en-
tender a conexão misteriosa de tôdas elas em Deus. A razão, êsse
instrumento sublime e, ao mesmo tempo defeituoso, é, para o ho-
mem o único caminho à verdade, mas ela não pode viver, neste
mundo, sem imagens (57). A imagem tem uma relação com a
verdade, predispondo a inteligência humana a "ver" as coisas no
que elas têm de essencial e de substancial, mas a imagem, muito
embora indispensável para a formação das nossas idéias, tem de
ser espiritualizada pelo intelecto. Só a esta condição pode haver
uma dialética fecunda entre o mito e o /6gos: êste, sozinho, leva-
nos às zonas glaciais, aquêle, sõzinho, arrasta-nos ao caos.
As ciências matemáticas e físicas tendem cada vez mais a
fórmulas abstratas e a conceitos "inimagináveis"; a íntima estru-
tura do mundo físico, tal como vem sendo patenteada pelos cien-
tistas hodiernos, perde cada vez mais a possibilidade de ser repre-
sentada por meio de imagens plásticas; vivemos numa época em_
que se verifica uma verdadeira "iconoclasia" nas ciências positi-
vas. Em compensação, nas ciências morais, que tratam do homem
e da cultura humana, podemos verificar uma tendência para a con--
(55a). —O conceito, longe de esgotar a realidade total, como alguns racional'stas ten-
dem a pensar, não passa de um medir= quo, ou de uma intentio, no pensa
mento dos tomlistas. O conceito não é o têrmo final do nosso conhecimento, o.
qual tem por objeto o existente concreto (cf. § 106 III, nota 27a), mas o
conceito é un instrument au seira et au service de intention cognitive qui
nous porte vers le réel dans Coute sa concrétion. Loin de nous séparer de l'être,
il contribue à nous installer en lui, à actualiser notre proximité avec l'être
Dondeyne, op. cit., pág. 98.
(56). — Fr. Bacon, in De Haeresibus: Nem et ipsa scientia potentia est; • cf. em in-
glês: Knowledge is Power, e em português: "Saber é Poder". — Em Kant -
("Crítica da Razão Pura") encontramos a mesma idéia: "A ciência deve forçar
a natureza a dar uma resposta às suas perguntas, e não pode deixar conduzir-se
em andadeiras... A Razão deve proceder como um juiz em função que obriga
as testemunhas a responder às perguntas propostas... Os objetos devem re-
gular-se por nossa sentença". A última frase (por extenso) em alemão: Main.
versuche es einmal, oh wir nicht in den Aufgaben der Metaphysik damit besser
fortkommen, dass wir annehmen, die Gegenstrinde müssen sich nach unselm
Erkenntniss richten. — K. Buchheim, in Logik der Tatsachen (Leipzig, Heg
ner, 1937) chama a atenção para o fato de que Kant aqui emprega o substan-
tivo neutro das Erkenntnis (= "a sentença judicial"), e não o substantivo fe-
nlinino die Erkenntnis (= "o conhecimento"). Esta Razão brutal, tomada cada
voz\ mais predominante desde os dias da Renascença e de grande valor nas
"ciências positivas" e na tecnologia, não pode ser identificada com a Razão dos.
antigos ou dos medievos nem com a Pensée de Pascal (cf. § 106 Z) •
(57) • Cf. Sanctus Thomas, Summa Theologica, I q. 84, a. 7, conclusio: Intellectus.
conjunctus corpori passibili non potest intelligere nisi convertendo se ad phan-.
tasmata (leia o corpus); cf. Ia-Hee, q. 74, a. 4, ad tertium: Bonitas imagi--
nationis est dispoütio ad scientiam, quae est in intetlectu.
----- 151 ---

cretização: neste terreno, a imagem ou a metáfora continua a ser-


nos um instrumento imprescindível, como também na vida cotidia-
na. Inconscientemente nos servimos de uma linguagem mitológica,
ao dizermos, por exemplo: "A Inglaterra não quer a continuação
do regime colonial". E' óbvio que "a Inglaterra" não quer nada
porque não possui personalidade alguma. Contudo, dificilmente
podemos renunciar a empregar tais expressões. Mas não sejamos
vítimas da metáfora ou da mitologia: cumpre ao espírito, e só a
êle, demarcar o âmbito e o alcance das imagens empregadas.
A imagem dirige-se aos sentimentos e à vontade do homem;
aí está sua fôrça "existencial". Jesus, interrogado por um certo
doutor da lei sôbre a questão: "Quem é meu próximo?", não deu
uma definição abstrata do próximo, composta do gentis proximum
e da differentia specifica, mas lhe ministrou um ensinamento prá-
tico e plástico na parábola do bom samaritano (Lc., X 26-37). A
imagem concreta do homem despojado pelos ladrões e abandonado à
sua sorte pelo levita e pelo sacerdote, mas acolhido pelo samaritano,
é mais convincente e mais comovente para o espírito encarnado do
homem do que poderia sê-lo a formulação de uma regra abstrata de
dever. Mas não devemos perder-nos no caminho de Jerusalém
para Jerico! A imagem desperta em nós uma idéia geral, ou me-
lhor, no exemplo concreto o nosso intelecto descobre o universal,
e êste precisa ser aplicado por cada um de nós individualmente
conforme as circunstâncias concretas da nossa vida particular. A
Igreja Católica, avaliando bem a complexidade da natureza hu-
mana, aprecia bastante a imagem, o "símbolo" (58), o culto ex-
terno como expressão do culto interno, e assim fazendo, baseia-se.
em última análise, no mistério da Encarnação: Quia per incarnati
Verbi mysterium, nova mentis nostrae oculis lux tuae claritatis in-
fulsit: ut dum visibiliter Deus cognoscimus, per hunc in
amorem rapiamur (59). Por isso acompanha a vida huma-
na com os sacramentos, êsses símbolos eficazes de uma graça di-
vina; por isso adorna todos os dias do ano inteiro com as cerimô-
nias significativas da liturgia (60); por isso instrui e encanta seus
— E' significativa a etimologia da palavra "símbolo"; symbolon (cf. latim: res-
sara hospitalis) era um caco ou urna tabuínha oferecida pelo dono da casa ao
seu hóspede no momento da despedida; o symbolon era partido em duas partes,
e cada um dos dois amigos ficava com uma parte para que, se eles ou seus
descendentes se encontrassem um dia, pudessem renovar a mútua relação. —
O homem, enquanto vive no mundo histórico, possui apenas parcelas da Ver-
dade, do Bem e do Belo; são do outro mundo a Verdade absoluta, o Bem
absoluto e o Belo absoluto; mas o homem tem a suma obrigação de não falsear
seus "símbolos" terrestres que devem ser medidos constantemente por seus
modelos correspondentes.
— Praefatio de Nativitate
"Liturgia", na antiga Atenas, era um serviço prestado por um cidadão à co-
munidade (por exemplo, custear o conserto das muralhas da cidade, os coros
trágicos, etc.); no sentido eclesiástico, quer dizer o culto rendido pela comu-
nidade a Deus.
152

fiéis com o simbolismo profundo das igrejas e catedrais; por isso


não hesitava, durante a Idade Média, em propor ao povo um cate-
cismo teatral, em forma de "mistérios" (61). Mas a mesma Igre-
ja é também a defensora da razão, protegendo-a contra todos os
ataques que pretendem aviltá-la em nome da "verdade" divina ou.
em nome da "verdade" humana; mística e realista, ao mesmo tem-
po, sintetiza o céu e a terra, o espírito e o corpo, a imagem plás-
tica e o pensamento puro. Nas suas definições dogmáticas não
recua de tomar emprestados elementos da filosofia grega: a me-
lhor homenagem possível ao poder do intelecto humano.
Ex umbris et imaginibus in veritatem, — assim reza o epitá-
fio do Cardeal Newman, escolhido por êle pessoalmente; conclua-
mos êste parágrafo com uma citação dêsse profundo conhecedor
do coração humano: Inference is necessarily concerned with surf a-
ces and aspect4• . . .it begins wiIth itself and ends with itself; .it
does not reach as far as facts; . ..it is employed 1.ipon formules;
. .as far as it takes real objects of whatever kind into account,
such as motives and actions, character and conduct, art, science,
taltes, morais, religions, it deals with them, not as \they are, but
simply in its own line, as materiais of argument or inquiry; . ..they
are to it nothing more than major and minor premisses and con-
clusions. Beijei, on the other hand, being concerned with things
concrete, not abstract, which variously excite the mind from their
moral and imaginative properties, has ,for its objects, not only what
is true, but inclusively what is beautiful, useful, admirable, heroic;
objects which kindle devotion, rouse the passions, and attach the
affections,i and thus it leads the way to actions ef every kind, to
the establishment of principies, and the formation of character,
and is thus again intimately connected with what is individual and
personal (62).
B. OS CRÍTICOS.
§ 108. O espectador sereno do drama histórico.
Quem não tributava homenagem aos ídolos da época, era o
historiador suiço (63) Jacob Burckhardt (1818-1897), espírito in-
(61). — Esta palavra não provém de mysterium, mas de rninisterium. — O "mistério"
medieval era una peça teatral de assunto religioso, em que figuravam Deus,
os anjos, os homens e os demônios; era, por assim dizer, uma ampliação do
culto litúrgico, destinada ao povo, e representava os grandes acontecimentos da
vida de Nosso Senhor (nascimento, adoração dos magos, Paixão, Morte e Res-
surreição). No decurso dos séculos, entravam nesses "mistérios" cada vez mais
elementos profanos, e as representações passavam a ser realizadas fora da igreja.
(62) . — J. H. Newrnan, A Gtammar o! Assent, New York, London, Toronto, Long-
mans, Green & Co., 1947, pág. 265.
(63). — Burckhardt era professor na Universidade de Basiléia (desde 1845); também
J. J. Bachofen (cf. nota 50), Fr. Nietzsche (de 1869 a 1879) e o teólogo
racionalista Fr. Overbeck (1837-1905) ensinavam nesta Universidade.
— 153 —

dependente e aristocrático. Nutrido pelo pensamento de Goethe,


preferia contemplar, "entender" e saborear as múltiplas formas e
modificações do espírito humano através da história, a acompanhá-
la na sua evolução ou a interpretá-las egocêntricamente em senti-
do progressista . Conseguintemente, seus estudos históricos são mais
cortes transversais do que seções longitudinais. Esteta requintado,
sobremaneira sensível a tôdas as expressões do belo, dava
sínteses brilhantes da vida cultural de tempos idos (64), e escre-
via trabalhos penetrantes e aprimorados sôbre as grandes épo-
cas das artes plásticas (65). Romântico tardio, a refugiar-se na con-
templação de um passado pitoresco para se consolar do nivelamen-
to moderno, premuniam-no contra os excessos do arrebatamento ro-
mã ntico seu temperamento equilibrado e um tanto epicurista, sua
resignação e sua ironia, bem como sua aprendizagem na escola dos
gregos e do Neo-Humanismo alemão. No meio de tantos historia-
dores obstinadamente otimistas, democráticos e "sociomaníacos",
Burckhardt, com seu profundo pessimismo, com suas predileções
por culturas aristocráticas, com seu individualismo inveterado, era
urna figura excepcional (66). Dos seus escritos interessam-nos aqui
principalmente as "Reflexões sôbre a História Mundial" (67).
I. O Hino ao Conhecimento Desinteressado.
O autor das "Reflexões" não pretende dar uma reconstrução
erudita do passado, antes quer abrir umas perspectivas sôbre o mun-
do histórico, também para não-especialistas. Muito menos ainda
quer contribuir para a teologia ou para a filosofia da história. A
solução religiosa do enigma decorre de uma faculdade especial, a
fé, que Burckhardt declara não possuir; a tentativa de Hegel pare-
ce-lhe um "centauro", já que o historiador não dispõe de um prin-
cípio ao qual poderia subordinar os fatos verificados pela investiga-
ção. Tais tentativas são arrogantes, porque nenhum homem foi

— Mencionamos aqui: A Cultura da Renascença na Itália (1860; cf. § 29 1;


§ 80 I), e A Cultura Grega, I-1V (obra póstuma, publicada em 1898-1902).
— Escreveu por exemplo: As Obras de Arte nas Cidades Belgas (1842); Cicerone,
ou Contribuições para a Apreciação das Obras de Arte na Itália (1855).
— Burckhardt não acreditava na "objetividade" da história; não tinha a preten-
são de reconstruir, como Ranke, wie es eigentlich gewesen iyt (cf. § 70 II,
nota 37), mas queria, mediante uma seleção subjetiva (isto é, condicionada
pela mentalidade do historiador e pela estrutura da época a que pertence, cf.
§ 63 I) e criteriosa, relevar um fato histórico único como típico de certo
período histórico e, ao mesmo tempo, como um depoimento da continuidade do
espírito humano através dos séculos, por lhe dar um lugar significativo num
conjunto maior. — Nietzsche elogiava Burckhardt (in Wir Philologen, 5)
porque êste, livre das petas da época, não descrevia os acontecimentos histó-
ricos do ponto de vista do "bom êxito".
— As "Reflexões" (alemão: Weltgeschichtliche Betrachtungen) são conferências
proferidas por Burckhardt em 1868 e 1870-1871 para um auditório de não
especialistas; foram editadas só em 1905 por seu sobrinho Jacob Oeri. — A
edição de que nos servimos é a de Rudolf Mara, Stuttgart, Alfred Kroner
Verlag, 19497.
-- 154 --

iniciado nos segredos da Eterna Sabedoria; o historiador deve con-


tentar-se em coordenar simplesmente suas observações, não se dei-
xando despistar por idéias preconcebidas ou por seus desejos subje-
tivos . Burckhardt parte do único ponto duradouro e, ao mesmo
tempo, acessível ao homem: do homem que sempre sofre, luta e age.
Adotando uma idéia de Goethe (68), o autor considera tôdas
as formas históricas como a roupa sempre variante do Espírito hu-
mano que, primeiramente, chegou à sua maturidade com os gre-
gos: o Tempo é Tecedor infatigável, a tecer e a destecer constan-
temente a teia admirável, mas efêmera, de tôdas as formas histó-
ricas. Nada mais instrutivo para a avaliação justa da nossa con-
dição humana do que a contemplação atenta dêsse espetáculo. Che-
gado ao fim das "Reflexões", Burckhardt canta o hino ao conheci-
mento desinteressado, e tal como outro Arquimedes (69), deseja-
ria poder ocupar um ponto fixo fora dêste mundo, não para movi-
mentá-lo, e sim para contemplá-lo. A contemplação do Drama dos
Séculos, no seu enrêdo íntimo e fascinante, afigura-se-lhe como uma
visão beatífica, bem capaz de fazer com que o homem esqueça suas
noções subjetivas de felicidade e infelicidade. Mas tal ponto meta-
histórico, o único a possibilitar o pleno conhecimento do Espírito
humano, é negado ao homem que vive no tempo, e o autor, embora
não avistando os horizontes de uma realidade superior ao mundo
histórico, não se insurge românticamente contra êsses limites im-
postos ao homem, mas, como bom discípulo dos gregos, se resigna
com a condição humana, contudo não sem sentimentos de tristeza
indefinível.
II. A Continuidade.
Nada mais característico de uma verdadeira civilização do que
a "continuidade histórica". Ela não é idêntica ao "progresso", visto
ser completo o homem desde que dêle temos conhecimentos; aliás,
ignoramos se ela existe, independentemente do espírito humano, nu-
ma consciência divina. Tampouco é ela um processo de continua-
ção puramente mecânica. A continuidade histórica é o meio-têr-
mo entre mera continuação e progresso necessário e integral:
— Goethe, Faust, I 501-509: (é o Espírito da Terra quem fala):
In Lebensfluten, in Tatensturm
Wall' ich auf und ab,
Webe hin und her!
Geburt und Grab,
Ein ewiges Meer,
EM wechselnd Weben,
Ein glühend Leben,
So schaff' ich am seusenden Webstuhl der Zeit,
Und wirke der Gaffheit lebendiges Kleicl.
— Arquimedes, que foi o primeiro a determinar cientificamente as leis da potên-
cia da alavanca, teria dito: "Dai-me um ponto de apôio, e levantarei o mundo",
cf. Plutarchus, Vita Marcelli, XIV 7, e Pappus Alexandrinus, Callectio, VIII 10.
— 155 --

consiste num esfôrço consciente do espírito humano para records.r


renovar a herança cultural que nos vem dos antepassados. À con-
tinuidade histórica, um dos bens mais preciosos da humanidade, re-
nunciam apenas os bárbaros, quer primitivos, quer civilizados (por
exemplo, os americanos!). A consciência histórica cria a tradição
viva e vivificadora, não mecânica ou rotineira, sendo um processo
de assimilação espiritual.
III. Alguns Temas de Reflexão.
Nos Capítulos II e III, Burckardt fala das três grandes potên-
cias históricas: o Estado, a Religião e a Cultura, e das suas rela-
ções recíprocas (alemão: die sechs Bedingtheiten); um leitor do sé-
culo XX poderia estranhar a ausência da economia entre as gran-
des potências históricas. O autor tem a consciência de ser bastan-
te arbitrária sua escolha, adotando-a sèmente por razões práticas:
as três potências e as seis interrelações constituem um quadro mui-
to cômodo para grande quantidade de observações históricas. Não
olvidemos que a história é a menos científica de tôdas as ciências!
(70). Por trás das diversas formas históricas, sempre singulares
individuais, o autor busca um núcleo idêntico ou aparentado. No
Capítulo IV, examina as crises históricas, isto é, os processos acele-
rados de condicionamento mútuo das três potências, consagrando
algumas páginas à crise moderna. Na sociedade burguesa do século
XIX Burckhardt vê duas tendências funestas: o espírito mercantil
a volúpia do poder (alemão: Enverbssinn und Machtsinn); elas
ameaçam absorver tôda a cultura contemporânea. A democracia
atual, — um nome coletivo que, em vão, procura reconciliar as
mundividências mais divergentes, — concorre para tornar cada vez
mais forte e prepotente o Estado, a usurpar, aos poucos, numerosas
atividades outrora reservadas para a sociedade. De que valores
viverá a humanidade vindoura? Quais as camadas sociais que pro•
duzirão os criadores de cultura? Ou será que tudo se vai transfor-
mando em business, como na América? (71).
Nos dois Capítulos finais, o autor trata respectivamente da
grandeza e da felicidade na história, revelando plenamente seu pen-
samento cético (72) . Grande é o que não somos nós: a um besou-
ro parece grande a avelã. Entretanto, o conceito da "grandeza his-
tórica" é-nos indispensável, por mais obscuro que seja e ainda que
nasça mais de afetos subjetivos do que de juízos nítidos. Poderia-
(70) . Burckhardt, Weltgeschichtliche Betrachtungen, pág. 83: Die Geschichte zst ja
iiberhacpt die unwissenschaftlichste altar Wissenschaften, nur dass sie viel Wis-
senswiirdiges überliefert.
(71). Ibidem, págs. 203-205.
(72) . — Burckhardt, Ibidem, pág. 10, diz que o "ceticismo autêntico" tem cabimento
eir■ nosso mundo, visto que lhe desconhecemos o início e o fim, e o que há
entre êsses dois têrmos se acha em perpétuo movimento.
— 156 —

mos parafrasear, não definir, a grandeza histórica como algo de úni-


co e insubstituível. Ao provérbio que reza: "Ninguém é insubstituí-
vel", Burckhardt replica que os poucos que são insubstituíveis são
grandes, embora admitindo a grande dificuldade, se não a impossi-
bilidade, de demonstrar in concreto quem foi insubstituível. Em se-
guida, submete os grandes indivíduos históricos a um exame críti-
co, conforme certas categorias: pesquisadores, filósofos, artistas, fun-
dadores de religiões, homens eclesiásticos, estadistas, generais, etc .
Os grandes indivíduos possuem umas faculdades extraordinárias (não
modelares) que se desenvolvem juntamente com as tarefas que lhe
são sucessivamente impostas; no mesmo ritmo, cresce-lhes constan-
temente a consciência do seu próprio valor . Entre seus instintos
egoístas e o bem da coletividade existe uma afinidade secreta que,
geralmente, só por gerações posteriores é reconhecida. Sua grandeza
dispensa-os, ao que parece, da observação das leis comuns da moral,
e o autor alega algumas razões que poderiam justificar tal dispen-
sa, pelo menos, até certo ponto (73) .
Segundo Hegel, "os períodos da felicidade constituem as fôlhas
em branco da história universal" (74); Burckhardt, mais exigente
em questões concernentes ao indivíduo humano, atreve-se a levan-
tar o problema árduo da felicidade humana (74), mas por lhe fal-
tar um ponto de referência objetivo, chega a identificar a felicida-
de com a "desiderabilidade" subjetiva (alemão: Wünschbarkeit).
Achamos boa sorte a vitória dos gregos em Salamina, e a dos fran-
cos em Poitiers; má sorte, a derrota de Atenas em 404, e a morte
prematura do ditador Júlio César. Na medida em que os aconte-
cimentos se aproximam de nossos dias, tornam-se mais divergentes
as nossas opiniões e ficamos mais expostos ao risco de uma ilusêo
ótica . Afinal de contas, todos êsses juízos, proferidos com tanta se-
gurança ingênua, são ditados por um egoísmo consciente ou incons-
ciente: não passam de desideratos subjetivos, semelhantes aos de
lavradores míopes que desejam sol ou chuva conforme as necessi-
dades das suas terras (75) . O mal faz parte integrante da economia
da história, e só muito raro somos capazes de ver umas conseqüên-
cias boas ("compensações") de um acontecimento desastroso. O
— Ibidem, págs. 242-244, onde enumera como razões de escusa: a violência das
paixões nos grandes indivíduos; seu mêdo de que os adversários cometam cer-
tos crimes contra êles, de modo que os antecipam; sua monopolização dos cri-
mes, e o bom êxito que justifica os meios. — Mesmo assim, Burckhardt não
defende o maquiavelismo irrestrito.
— Hegel, Philosophie der Geschlchte (Band XII, pág. 56): Die Weltgeschichte ist
nicht der Boden das Glückes. DM Pericden des Glückes sind leere Blütter in
ihr; denn sie sind die Perioden der Zusairkmenstimmung des fehlenden Gegensatzes.
— Burckhardt, Weltgesahichtliche Betrachtungen, pág. 259: "Wir" urteilen so
ond se; freilich eM anderer, der vielleicht auch aus Egoísmos — das
Gegenteil meint, sagt auch "wir", und im absoloten Sinne ist damit soviel cr-
reicht ais mit den Wünschen nach Regen oder Sonnenschein je nach den In-
teressen des einzelnen Landbauers.
— 157 —

mal histórico, — a perda de certos valores morais, artísticos ou cul-


turais, — é, no fundo, um mistério insondável para o espírito hu-
mano amarrado que está ao tempo.
IV. Os Desideratos de Burckhardt.
O livro de Burckhardt é riquíssimo em finas observações, impos-
síveis de resumir em duas ou três páginas; ainda hoje em dia, é um
vade-mecum valioso para todos os que se interessam pela história
da civilização, bem como um antídoto salutar de certas interpreta-
ções doutrinárias da história. Entretanto, por excluir sistematica-
mente o Absoluto, seu relativismo, em vez de ser benéfico, redunda
nas contradições do historicismo, do ceticismo. Na história, talvez
mais do que em qualquer outra disciplina, tem cabimento certa do-
se de relativismo, mas, aqui como acolá, o "relativismo absoluto" se
destrói a si mesmo (cf. § 33 III) . Também Burckhardt não con-
segue esquivar-se a esta incoerência. Pois, em conformidade com
suas próprias teorias, o tão elogiado valor da contemplação histó-
rica não pode ter alcance objetivo ou universal, sendo apenas um
deleite pessoal do autor. Sua insistência na necessidade da "con-
tinuidade histecica" não passa de um desiderato subjetivo, expressão
do egoísmo.
Contudo, pode ser interessante assinalarmos aqui alguns desi-
deratos de Burckhardt, o que nos levará automàticamente a falar
também de algumas das suas antipatias.
O autor aprecia sobremaneira a antiga "pólis" grega, e as viço-
sas repúblicas da Renascença italiana, tendo horror aos monstruo-
sos Estados modernos que abrangem um território imenso e se in-
terferem cada vez mais na vida econômica, social e cultural da so-
ciedade. A "pólis" antiga queria que cada qual lhe servisse de mo-
do positivo; o Estado moderno quer apenas que ninguém lhe escape
materialmente. Desde a Revolução francesa, mete-se a constituir
os direitos do homem em lugar de se restringir prudentemente a es-
tabelecer os direitos do cidadão. Burckhardt fala com ironia da
democracia, do sistema de representação popular, do sufrágio uni-
versal; ridiculariza o mito do progresso, principalmente no setor da
moral (76) e nas esferas da cultura superior (77) . Mas, em geral,
— Quanto ao moral progress, indagado por Buckle (cf. § 33 II, nota 22), Bur.
ckhardt (ibidem, págs. 65-67; 256) acha que atualmente o indivíduo é mais
eficientemente domado pelos poderes públicos do que outrora ("a polícia fun•
ciona melhor!"), e que o sentimento de superioridade moral tem sua fonte
principal no fato de hoje ser mais fácil e seguro do que em tempos idos, ganhar
dinheiro. A moral se refere a pessoas, e não a épocas; o supremo ato moral é
sacrificar a vida em benefício de outrem; já os homens das habitações la-
custres praticavam êsse ato, e os tempos modernos não têm concebido ideal
mais sublime.
— No setor da cultura intelectual, Burckhardt vê um perigo na especialização
moderna, pela qual o todo está iminente a ser sufocado pela parte: Die Kultur
klinnte leicht über itere eigenen Beine stii/pern (ibidem, pág. 66).
— 158 —

não incorre no deslize romântico de declamações retóricas ou de


invectivas gratuitas: esconde seus desideratos e aborrecimentos atrás
de palavras insinuadoras e discretamente irônicas.
Com maior franqueza se pronunciava na correspondência com
seus amigos: aí revelava seu profundo pessimismo quanto à evolução
da cultura ocidental. Previa com pavor o surto de um militarismo
asfixiante, de Estados totalitários e de hordas operárias, emancipa-
das só aparentemente para serem exploradas por demagogos vulga-
res e políticos criminosos . Verificava com espanto como o mundo
se ia transformando numa fábrica hedionda e numa caserna mons-
truosa. Via como a continuidade histórica que, — através da Idade
Média, o Império Romano e o Helenismo, — remonta aos gregos
clássicos, estava periclitando: a Revolução francesa tinha provocado
um fluxo arrastador de jacobinismo e de igualitarismo, sem o me-
nor respeito pelos valores mais sagrados do passado. Estamos a ca-
minho de uma nova barbárie, e diferentemente dos tempos de
Constantino Magno, não se avista um instituto que se poderia im-
por aos novos bárbaros, tal como a Igreja se impôs aos invasores
germânicos (77a) . O mundo moderno não aceita nem normas mo-
rais nem autoridade. O Cristianismo, outrora um ideal inspirador
e heróico, deixou de desempenhar seu papel histórico por se ter
aburguesado e secularizado: o omnipresente otimismo cultural e a
afirmação enfática dos valores terrestres têm-se apoderado também
dos cristãos hodiernos que, por isso mesmo, abrenunciam os dogmas
incômodos do Cristianismo autêntico (a cruz, a mortificação, o dom
total de si e de seus bens), e contemporizam com o espírito da
época (how to make the best of both worlds!). Qual será o ideal
das gerações vindouras? Burckhardt confessa ignorá-lo: só julga
que o ideal do mundo burguês, baseado no Machtsinn e no Er-
werbssinn, não pode constituir o fundamento de uma verdadeira
cultura. O século XX não será agradável.

§ 109. O diagnóstico do mundo enfêrmo.


As obras de Johan Huizinga (1872-1945), professor na Uni
versidade de Leida (desde 1915), já nos colocam em pleno século
XX. Por mais de um motivo, apresentam semelhanças conside-
ráveis com as de Burckhardt. Ambos são naturais de um país pe-
queno, não atingido pelas ondas revolucionárias e pelas grandes
guerras do século passado, circunstância essa que lhes possibilita
uma observação serena e "européia" dos acontecimentos contempo-

(77a) . — Burckhardt escreveu uma monografia sôbre a Época de Constantino (1853).


— 159 —

râneos (78); ambos são avessos a uma sistematização rigorosa e a
conceitos rígidos na historiografia, dando preferência a têrmos fle-
xíveis e elásticos (79); ambos separam nitidamente a história da
filosofia; ambos primam na história da civilização (80). Entretan-
to, são consideráveis também as diferenças entre os dois historia-
dores. Burckhardt era esteta de tendências neo-paganistas, Huizin-
ga era preponderantemente ético, acatando sinceramente o Cristia-
nismo e até simpatizando com o Catolicismo. Aquêle era cético re-
signado, epicurista aristocrático; êste era, principalmente nos fins
da sua vida, um inquieto, a procurar a Verdade Objetiva, em re-
giões mais altas do que a história. Moderado e equilibrado, pru-
dente e circunspecto (81), desconfiado instintivamente das paixões
turbulentas, tal como outro Erasmo (82), Huizinga era humanista
brilhante e simpático, a prosseguir uma das melhores tradições do
povo holandês. Aqui nos interessa seu livro, escrito pouco antes
de estourar a segunda guerra mundial: "Nas Sombras do Amanhã"
(83).
I. A Crise Atual.
O mundo atual está atravessando uma crise muito grave. "Vi-
vemos num mundo desmentado. Disso estamos bem certos. Para
ninguém seria surprêsa se amanhã a loucura cedesse ao frenesi, e
êste deixasse a nossa pobre Europa num estado de torpor, de per-
turbação mental, com engenhos ainda a rodar, bandeiras tremulan-
do ao vento..., mas o espírito morto" (pág. 7). Verificado êsse
fato, Huizinga procura saber se a história nos apresenta crises se-
melhantes à nossa, e chega a um resultado negativo. Outras épocas,
ao se encontrarem numa fase crítica, viviam de esperanças ou de
receios escatológicos que a geração moderna já não possui; além
. — Aos dois a "ciência" nazista chamava de Griechlein, 'isto é, "pequenos gregos"
(cf. em latim: graeculi, por exemplo em Juvenalis, Safira, III 76), já que não
passariam de contempladores estéreis do passado, semi inquietação nacional ou
política, — digamos, sem sujeitarem suas pesquisas a um programa político.
. Huizinga invoca muitas vêzes o testemunho de Burckhardt, principalmente na
sua obra A Ciência da História (cf. § 70 III, nota 39), ao defender a flexi-
bilidade dos conceitos históricos.
. — Mencionamos aqui: O Outono da Idade Média (1919, cf. § 29 I; e Homo
Ludens (1938); os dois estudos foram traduzidos para vários idiomas.
. — Devemos reconhecer que o professor holandês gosta por demais de matizes,
às vêzes, em detrimento dos claros contámos. Nas idas e vindas do seu pen-
samento cauteloso podemos verificar uns volteios e umas regressões que mais
obscurecem do que iluminam a exposição das idéias.
. — A Erasmo consagrou Huizinga uma biografia brilhante (cf. § 24 IV, nota 36),
em que encontramos uma análise genial, ou melhor, congenial, da Laus
Stultitiae.
. — Em holandês: /n de Schaduwen van Morgen (cf. § 69 III e, nota 35), obra
escrita em 1935 e traduzida para o francês, alemão, inglês, americano, espa-
nhol, polonês, checo, italiano, norueguês, húngaro e sueco. Saiu em português
(1946) sob o títuto de: Nas Sombras do Amanhã. Diagnóstico da Enfermi-
dade Espiritual do Nosso Tempo (trad. de Manuel Vieira), São Paulo, Sa-
raiva, 1946. — Servimo-nos desta versão, embora seja deficiente (feita sôbre
a tradução alemã?) .
— 160 —

disso, acreditavam na possibilidade de uma revolução total ou de


uma restauração completa, mas o homem moderno, compenetrado
da irreversibilidade do tempo e persuadido da evolução, já não po•
de recorrer a nenhum dêsses dois remédios. Uma comparação com
a decadência do Baixo Império Romano mostra que o nosso caso é
muito diferente. Naquele tempo havia diminuição da produtivida-
de econômica, perda quase total da curiosidade intelectual, enfra-
quecimento do poder político, pausa na tecnologia, estagnação do
saber, ao passo que agora muitas das citadas funções ainda estão
firmes no seu progresso, em intensidade, diversidade e requinte; e
afinal, naqueles tempos se impunha o Cristianismo como urna forma
superior de religião, a trazer consigo um intenso elemento metafísico.
Em que consiste o conceito de "cultura"? Uma definição exaus-
tiva é pràticamente impossível, segundo Huizinga. Tudo quanto po-
demos fazer é enumerar algumas condições e requisitos essenciais,
sem os quais não poderia haver cultura. Tal definição descritiva
é: "Cultura, como condição de sociedade, existe quando o domínio
sôbre a natureza no campo material, moral e espiritual assegura um
estado superior e melhor do que aquêle que adviria das condições
naturais existentes, estado cujas características se resumem num har-
monioso equilíbrio de valores materiais e espirituais, e num ideal
mais ou menos homogêneo, para cuja consecução convergem as vá-
rias atividades da comunidade" (pág. 35) . Será que a cultura mo-
derna ainda cumpre essas condições?
Sem dúvida, o homem atual domina a natureza infra-humana
num grau de realização mais elevado que o de qualquer outra ci-
vilização anterior nossa conhecida; mas não se torna cada vez mais
precário o domínio sôbre a natureza humana? Há produção imen-
sa no campo material e espiritual, mas em ambos os campos há de-
sequilíbrio acentuado: há super-produção de bens materiais, mas
ela resulta em pobreza para as massas no meio da abundância; há
super-produção também da palavra escrita e "radiodifundida", e ela
patenteia uma divergência de pensamento quase irremediável. E
tudo falta para o cumprimento da última condição, a perseguição
de um ideal amplamente homogêneo: no passado, existiam ideais
comuns, tais como "a glória de Deus, a justiça, a virtude, a sabedo-
ria", etc.; com o abandôno de tais concepções metafísicas, — hoje
em dia, tidas por obsoletas, — a homogeneidade da cultura corre
sério risco (84) . Por mais paradoxal que pareça, o ideal que anima
(84) . — Hui4nga, Nas Sombras do Arrlanhã, págs. 37-38: "O que hoje substitui êstes
altos princípios de ação é simplesmente um amontoado de ânsias contraditó-
rias. Os fatôres que encadeiam os objetivos culturais de nosso tempo, só po-
dem ser encontrados na série: prosperidade, poder e segurança (segurança,
porque esta inclui a paz e a ordem), tudo ideais mais próprios para dividir
que para unificar, e todos êles brotando diretamente de instintos naturais sem
o mais leve toque do espírito. Até o homem das cavernas os conhecia há mi-
— 161 —

uma cultura deve passar por cima dos interêsses da comunidade


que reclama a sua posse. "A cultura tem de ter o seu fim último
no metafísico, ou então, deixará de ser cultura" (pág. 38).
II. Os Sintomas da Enfermidade Atual (85).
O mundo moderno, além de ter chegado aos limites do pensa-
mento (86), sofre de um enfraquecimento da capacidade de julgar,
devido à maneira de se difundir, adaptar e usar o conhecimento.
Falando in abstracto, o mundo conhece-se muito melhor do que ja-
mais, mas o indivíduo humano faz cada vez menos caso de se co-
nhecer a si próprio, e muito menos ainda, de possuir a "sabedoria"
(= sagesse). Em outras épocas, a grande maioria das pessoas, vi-
vendo num ambiente circunscrito e possuindo uma bagagem redu-
zida de conhecimentos bem pessoais, conseguia geralmente chegar,
— dentro dos seus limites, — a uma independência de discerni-
mento, e aceitava em outras questões prontamente a autoridade de
outros. Hoje, porém, por causa da instrução obrigatória, e devido
à difusão massal de conhecimentos disparatados e, geralmente, mal
digeridos, o habitante médio da parte "civilizada" do nosso globo
sabe de tudo um pouco. A difusão descomedida de idéias por meio
de jornais, revistas, cinema e rádio, origina no homem moderno,
paradoxalmente, uma credulidade estupenda e uma ignorância eru-
dita. Até nos divertimentos o homem já não consegue manter sua
personalidade: os recreios populares são hàbilmente explorados por
uma economia gananciosa, e o homem fica condenado a um papel
passivo de espectador ou ouvinte, para o grande mal da cultura que
assim se vai desvitalizando.
Nas escolas já começa o mal: ao passo que antigamente se
apreciava, antes de mais nada, o valor educativo de uma formação
pessoal e desinteressada (87), constitui, hoje, o fim principal do
ensino uma propedêutica profissional e, nas Universidades, o adian-
tamento das ciências: o homem é sacrificado ao técnico, o todo à

lhares de anos". — Sôbre os instintos no homem moderno, cf. E. de Greeff,


Notre Destinée et Nos lnstincts, Paris, Plon (in "Présences"), 1945.
. Muitos dos males assinalados pelo autor já não são atuais (por exemplo, o na-
zismo, o racismo, o fascismo, etc.); o livro foi escrito quando a Ale-
manha estava preparando a guerra.
. Huizinga, Nas Sombras do Amanhã, págs. 53-54: "Se o pensamento científico,
em tôda a escala, se encontra hoje em estado de crise, é UMA crise vinda de
dentro, e não uma crise motivada pela contaminação dos males duma socie-
dade desordenada... A enfermidade tem as suas raízes no aperfeiçoamento
dos meios de compreensão e na intensificação do próprio desêjo de saber.
Esta crise é, pois, não só inevitável, mas também desejável e benéfica... A
crise do pensamento científico poderá levar-nos ao zênite da perplexidade; isto
será motivo de desânimo só para aquêles que não têm a coragem de aceitar
êste Mundo e esta vida, tal como nos foram dados".
. — Um livro clássico escrito com o fim de defender o caráter desinteressado da
educação universitária é o de J. H. Newman, On The Soope and Nature of
University Education (1852) .

Revista de História n. 0 29
— 162 —

parte, o desinterêsse à vantagem prática. O terrorismo da publi-


cidade não nos deixa momento algum em paz, e não só o comércio
como também a política contribuem para o enfraquecimento das nos-
sas faculdades críticas: "O desênho e o fraseado, cheios de emoção,
servem para despertar um estado que disponha o espírito a uma
decisão ao primeiro relance" (88).
O próprio princípio intelectual é repudiado, vindo a ser subs-
tituído pelo "vitalismo". Vivemos numa época sistemàticamente
anti-intelectualista, — algo de verdadeiro novo na história da cul-
tura humana (89), — que opta pelo "mito", pela "existência" (90),
pela "vida", em vez de aderir ao lógos, à essência = inteligibilida-
de, à contemplação da verdade. "Esta ânsia de vida (para empre-
gar a terminologia dos profetas dêste culto) deve ser considerada
como manifestação duma superabundância de sangue..., que na
antiga patologia se poderia ter chamado uma "pletora" Temos
vivido numa superabundância material e espiritual. Preocupamo-
nos com a vida, só porque ela nos é tão facilitada" (pág. 92). "O
incremento da segurança, do confôrto e das possibilidades de con-
quista do necessário, em suma, a maior facilidade da existência,
teve duas conseqüências. Por um lado, preparou o terreno a tô-
das as formas de renúncia à vida: negação filosófica do seu valor,
spieen puramente emotivo e aversão à própria vida; por outro la-
do, incutiu a crença no direito à felicidade: fêz com que os povos
exigissem da vida um certo número de coisas... A coletividade
aceita, sem hesitação e mais convicta do que nunca, a vida terre-
na como objeto de todo o esfôrço e ação" (pág. 94). E o autor
propõe-nos esta pergunta digna de séria reflexão: "Poderá urnu
cultura adiantada sobreviver sem que seja, em certa medida, orien-
tada para a Morte?" (pág. 94).
Há uma debilitação das normas morais. O autor, fazendo unia
distinção entre a "moral" (teórica) e a "moralidade" (prática) de
um período, acredita que esta última se tem elevado porque, atual-
mente, a ordem pública é mais eficaz do que costumava ser, na
repressão de certas formas de mau procedimento popular (91) .
Quanto à "moral", isto é, às bases da convicção sôbre que assen-
tam as crenças e os sentimentos morais, essa se tornou extrema-
mente instável para todos os que não se sentem obrigados por
— Huizinga, Nas Sombras do Amanhã, pág. 62. — Cf. § 105 II.
— Ibidem, pág. 87: "Quando as antigas correntes do pensamento recusavam
vassalagem à Razão, era sempre em favor do supra-racional. O que se alar-
deia como sendo a cultura de hoje, não só nega a Razão, mas ainda o próprio
cognoscível, e isto em favor do infra-racional: das paixões e dos instintos".
Ibidem, pág. 89: "Quando se quer convencer um auditório da profundidade
de compreensão e para isso se repetiu "dinâmico" vêzes bastantes, isto será
"existencial". A palavra servirá para despertar do espírito mais solenembnte,
um esgare a tudo o que é conhecimento e verdade".
— Ibidem, pág. 112. — Cf. Burckhardt, § 108 IV, nota 76.
— 163 --

um código ético revelado e imposto pela Fé. O materialismo his-


tórico e o freudismo têm muito concorrido, segundo o autor, para
a relativação da moral, — fenômeno perigoso para as massas. "A
fibra moral da humanidade está a ceder à pressão amolecedora do
luxo" (pág. 93), e "a sociedade cai vítima irremediável da dege-
neração sexual" (pág. 113). O heroísmo moderno (92), êsse tô-
nico para uma época fraca, e o puerilismo, que transforma o mun-
do num brinquedo para o homem (93), a desenfreada exploração
econômica e o maquiavelismo do Estado moderno são, para Hui-
zinga, tantos outros sintomas de decomposição moral.
No terreno da literatura e das artes podemos verificar um
afastamento deliberado da Razão e da Natureza: "a nova arte jul-
ga poder representar e interpretar verdadeira e sinceramente a vi-
da sem fazer uso da função intelectual, esquecendo que, apesar de
tudo, tal interpretação com a sua expressão continua a ser um
ato do intelecto" (pág. 177) . No fundo, encontramos aqui as mes-
mas tendências anti-intelectualistas. E' sempre a mesma histó-
ria: reason reasoned away by reason. "Extraordinária ilusão! O
conhecimento e a compreensão são violentamente atacados de to-
dos os lados, mas sempre com as armas do semi-conhecimento e
da incompreensão. Para provar a inutilidade do instrumento in-
telectual não há outra alternativa senão a de recorrer a outro co-
nhecimento que não seja aquêle que se desdenha" (94) .
III. Os Remédios.
Por onde devemos procurar os remédios de tantos males? Não
no progresso: "Já progredimos o bastante na arte de envenenar
o nosso mundo e a nossa sociedade" (pág. 202) . Tampouco na
transformação da estrutura econômica e social, ou dos órgãos po-
líticos, por mais conveniente ou necessária que seja: "E' necessá-
rio antes de tudo uma renovação do espírito" (pág. 206) . O úni-
co remédio eficaz será a regeneração interior do indivíduo humano.

. — Ibidem, pág. 147: "Por heroísmo entende-se sair fora dos limites habituais.
Neste mundo é por vêzes necessário que as coisas saiam fora dos limites...
Sem uma intervenção heróica, nem Concílio de Nicéia, nem destronamento dos
merovíngios, nem Constituição inglêsa, nem Reforma, nem revolta dos Países-
Baixos, nem América livre. O que conta é quem intervém, como e em nome
de quê".
. Ibidem, pág. 157: "A característica mais fundamental do autêntico jôgo... é
que em determinado momento êste cessa. Os espectadores retiram, os atores
tiram as máscaras, a exibição acabou. E aqui é que se revela o mal do nosso
tempo. E' que hoje, em muitos casos, o jôgo nunca acaba e daqui o não ser
verdadeiro jôgo. Houve uma contaminação de efeitos remotos entre jôgo e ati-
vidade séria. As duas esferas começam a misturar-se".
(94). — Ibidem, pág. 95. — Cf. o célebre silogismo de Aristóteles (in Protreptictts,
fr. 50), que damos aqui em latim: Si est philosophandum, est philosophandrurn
si non est philosophandum, etiarn est philosophandum; omnino ergo est philo..
sophandum.
--- 164 —

Para tal regeneração será imprescindível a restauração de


"verdades eternas, verdades que estejam acima da corrente da
evolução e da transformação" (pág. 215), e sobretudo o restabele-
cimento de normas morais. Ao homem moderno impõe-se uma no-
va áskesis (= ascese), para poder afugentar os maus sonhos da
noite: só com esta condição conseguirá criar uma cultura purifica-
da. A nova askesis não será uma renúncia ao mundo para con-
quistar o céu; será o domínio próprio e uma justa apreciação da
fôrça e do prazer. "Deverá comportar uma rendição, rendição a
tudo quanto se possa conceber como ideal. Nem um povo, nem
uma classe, nem a existência individual própria poderão ser ob-
jeto dêste pensamento. Felizes aquêles para quem êste princípio
só pode ter o nome de Quem disse: Eu sou o Caminho, a Verdade,
a Vida" (pág. 212; cf. Ev. João, XIV 6).
IV. O Eticismo de Huizinga .
Os livros de Huizinga (95) são um protesto eloqüente e bem
argumentado contra a "despersonalização" do homem moderno, con
tra o nacionalismo exaltado, e principalmente contra o abandôno
das verdades eternas e dos valores absolutos; sua denúncia não tem
nada de declamatório, mas é inspirada por uma preocupação sin-
cera pela sobrevivência da cultura ocidental e por sentimentos ele-
vados de responsabilidade pessoal.
Quando, nos últimos anos da sua vida, via como a dignidade
da pessoa humana era calcada, como a verdade era cinicamente tor-
cida e como os princípios morais eram brutalmente traídos, chega-
va a frisar cada vez mais a import'è'w;ia ds moral na vida dos indi-
víduos e das coletividades. O nível de i.. o cultura é determinado
não pelo valor das suas realizações artísticas, científicas ou políti-
cas, e sim pelo valor das pessoas que as efetuaram; ali nos servi-
mos de normas artísticas, científicas e utilitárias; aqui, porém, de
normas éticas. Platão é maior do que a Respublica, Dante maior do
que a Divina Commedia, Rodin maior do que k. Penseur. No livro
"O Mundo Mutilado" (págs. 65-73), Huizinga, depois de uma aná-
lise dos conceitos de "subida" e "descida" na vida de uma cultura,
passa a perguntar-se se os homens dos séculos XV e XVI eram su-
periores aos do século XIV, e sua resposta é uma réplica que nos
deixa perplexos: "Eram os homens daquela época melhores, mais
sábios, mais justos, mais misericordiosos do que seus antepassa-
dos?" Se medirmos a história por tais normas éticas, as únicas jul-

(95). — Der Mensch und die Kultur (= "O Homem e a Cultura"), Stockholm, S.
Bermann-Fischer, 1937; Conditions for e Recovery of Civitizetion, in The Fort-
nightly, April, 1940; a obra póstuma: Geschonden Wereld (= "O Mundo Muti-
lado", 1945) .
--- 165 —

gadas decisivas pelo autor, poderemos apenas exclamar com o


Salmista (CXXIX 3): "Se examinarmos, Senhor, as nossas mal-
dades, quem, Senhor, poderá subsistir?" Do ponto de vista cristão,
nenhum indivíduo, e decerto nenhum povo, nenhuma civilização.
Esvai-se a grandeza de Carlos V (96), eclipsa-se o brilho do granel
siècle (97), e o que fica não passa de ouropel. Mas, se se adotar
esta norma, já não terá muito significado o falar-se no "Outono da
Idade Média", visto que tôda a história humana constitui um imen-
so outono. Admitidos certos princípios básicos, podemos medir a
"moral", isto é, os ideais morais, já que são valores abstratos; ao
falarmos da "moral" de uma época, já se torna muito grande o
perigo de fazermos generalizações, visto que, a rigor, os ideais mo-
rais são de indivíduos, e não de coletividades; mas a passagem da
"moral" (abstrata) para a "moralidade" (concreta, ou a "moral
vivida") é inteiramente ilegítima, porque esta, no que tem de mais
íntimo, escapa quase por completo à observação, sendo um segrê-
do entre Deus e a alma, uma história abscôndita, cujo conheci-
mento nos é negado neste mundo. Solos Deus judicat: a moral e
a moralidade são duas realidades que não se correspondem intei-
ramente (cf. § 70 V). Se a moralidade de nenhuma época histó-
rica é plenamente satisfatória, ao menos podemos dizer que, ge-
ralmente, à perda de certos valores morais corresponde o ganho
de certos outros; numa época de transição, como o é a nossa, o
moralista tende fàcilmente a atribuir demasiada importância às
perdas e a preterir os ganhos, transformando-se num laudator tem-
poris acti (98). Não queremos desmerecer o papel do moralis-
ta: é êle a consciência viva de uma sociedade; nem pretendemos
apoucar o valor do diagnóstico feito por Huizinga: atina êle, mui-
tas vêzes, com as raízes da enfermidade atual; só queremos real-
çar que o historiador holandês exige o impossível do homem h;s-
tórico e do historiador, que ambos são filhos caídos de Adão e Eva.
Segundo nosso autor, a irracionalização da cultura é pernicio-
sa principalmente por induzir o homem a rejeitar as normas un;-
versais e inabaláveis da moral; ela não pode subsistir sem o reco-
nhecimento incondicional de normas cognoscíveis. O autor vai
mais longe ainda, chegando a dizer: "Só o enraizamento ético num

— HuizMga, Geschonden Wereld, pág. 73: A carreira política de Carlos V é, ini-


cialmente, urna série de disposições imprevistas da Fortuna, seguidas de outra
série de erros, medidas falhas e contraproducentes; liqüidou o Império, e deixou
a seu filho urna Espanha carcomida; a Reforma não sabia entendê-la nem tam-
pouco combatê-la efetivamente.
— lbidem, págs. 77-79: Luís XIV, o pai do militarismo moderno, era un perso-
nagem de vistas extremamente curtas, que se adorava a si próprio; sua única
virtude era sua laboriosidade; Versalhes é um monstro de corrupção; seu rei-
nado é uma época de desgovêrno, crueldade, arrogância e hipocrisia.
— Horatius, Ars Poetice, 173.
166 --

Summum Bonum poderá fazer das massas possuidoras de cultu-


ra" (ibidem, pág. 223) . No seu livro, póstumo, manifesta sua ad-
miração pelo ideal da civilitas humana, tal como foi formulada
por Dante (99): são dois os fins humanos que a Divina Provi-
dência nos propõe: a felicidade temporal, a que podemos chegar
mediante os documenta philosophica, contanto que regulemos nos-
sos atos pela lei das virtudes intelectuais e morais de ordem natu-
ral; e a felicidade eterna, que podemos atingir mediante os do-
cumenta spiritualia, inacessíveis à razão humana não iluminada
pela graça, contanto que lhe obedeçamos lealmente, procedendo
conforme as virtudes teologais: a fé, a esperança e a caridade.
Eis uma tese sólida que um humanista cristão poderia subs-
crever sem a menor hesitação. Mas, infelizmente, Huizinga se
assemelha a uma borboleta a esvoaçar em tôrno de uma lâmpada:
é fascinado pelo Cristianismo sem jamais lhe dar plena adesão.
Apesar de falar nos "graníticos alicerces do Cristianismo" (100),
apesar do texto evangélico citado acima, sua atitude perante o
Cristianismo é vacilante e pouco definida. A tão recomendada
áskesis êle não a espera da reviviscência do Cristianismo, visto q•.ie
o mundo atual está habituado a práticas diametralmente opostas
às exigências da fé cristã; além disso, acusa a Igreja de nunca ter
conseguido melhorar efetivamente o coração do homem médio.
Esta acusação bastante grave e, a nosso ver, um tanto injusta,
prescinde de um elemento importantíssimo: a aceitação vital d2s
verdades eternas e das normas absolutas do Cristianismo é o re-
sultado de uma ação recíproca entre a graça divina e o livre arbí-
trio humano, impossível de ser imposta por nenhuma fôrça exte-
rior, nem mesmo pela Igreja (100a) . Se a áskesis cristã, baseada
num Summum Bonum, inspirada pelas virtudes teologais e não
renunciando ao mundo para conquistar o céu, não trouxe melho-
— Huizinga, Geschonden Wereld, págs. 73-76; cf. Dente, De Monerchia, III 16:
Duos igitur fines Providentia illa inenarrabilis homini proposuit intendendos:
beatitudinem sciiicet hujus vitae, quae in operatione propriee virtutes consistit,
et per terrestrem Paradisum figuratur; et beatitudinem vitee aeternae, quae
consistit in fruitione divini aspectus, ad quen't virtus propria ascendere non po-
test, nisi /omine divino adjuta, quae per Paradisum caelestem intelligi detur. Ad
has quidem beatitudines, velut ad diversas conclusiones, per diversa media venire
oportet. Nem ad primam per philosophica documenta venimus, dummodo tule
sequemur, secundum virtutes morales et intellectueles operando; ed secundam
vero, per documenta spiritualia, quae humanam rationem transcendunt, dum-
modo lula sequamur secundum virtutes theologicas operando, lidem scificet,
spem et caritatern.
— Huizinga, Nas Sombras do Amanhã, pág. 207.
(100a). Cf. as palavras do Cardeal Cerejeira, Patriarca de Lisboa: To want a Church
emptied of her treasure, divino lite; a• Church who would impose herself upcn
the faithful only through outward cornpulsion; who would be maintained only
by means of official protection; who would assert herself exclusively1 by the
equilibrium of the human wisdom of its orgenization and its govemMent; to
want ali this is to dechristianize the Church herself, to continue the work of
modern civilizaticm. All this would not expand the Kingdom of God, but would
establish a new ecclesiestical tyranny... (apud J. Maritain, The Twilight of
Civilization, New York, Sheed 8s Ward, 1944, págs. 48-49).
— 167

raiventos para o mundo, que esperanças poderemos nutrir a res-


peito de uma áskesis puramente humana, alicerçada nas virtudes
naturais? Será que a sophros3'ine grega é capaz de inspirar as massas?
Huizinga aconselha-nos que renunciemos voluntàriamente a pers-
crutar certas regiões fora do alcance humano, que pratiquemos uma
áskesis do pensamento em prol da sabedoria (= sagesse), que use -

mos os meios técnicos com sobriedade em benefício da pessoa


humana, em suma, que repudiemos as coisas desnecessárias, inú-
teis, supérfluas, insípidas, nocivas e absurdas. Embora torne a fa-
lar repetidamente da áskesis, deixa de precisar seu pensamento,
de modo que o leitor, no fim, continua tão ignorante como estava
a princípio. Várias vêzes declara não querer desfazer o rumo ge
ral da recente evolução histórica, e considerar tal tentativa até
como impossível. Se seu diagnóstico da nossa enfermidade é chi-
ra e convincente, não o é o remédio indicado por êle. Outrossim,
parece-nos pouco viável sua solução e até um tanto simplista:
Huizinga, neste ponto não livre de racionalismo, quer acabar com
os males da época simplesmente por eliminá-los, se bem o enten-
demos . Mas esquece que as ciências e técnica possuem sua pró-
pria lógica: é irresistível seu clamor por um aperfeiçoamento ca-
da vez maior. Ao que nos parece, é preferível procurar-se a so-
lução do problema não na eliminação, e sim na integração de tôdas
as conquistas da civilização moderna num fim verdadeiramente
humano que transcenda, ao mesmo tempo, ao homem. Tarefa,
sem dúvida, muitíssimo árdua mas, em si, não impossível; solução
que, além disso, envolve checessàriamente uma ordenação hierér-
quica dos fins humanos e, por isso mesmo traz consigo uma certa
áskesis, isto é, uma renúncia voluntária a bens inferiores em bene-
fício dos bens superiores.

C. OS PROFETAS.
§ 110. O tremendo risco da fé .
À primeira vista, poderia causar estranheza o fato de ver irl.•
cluída, em nossa resenha de filósofos da história, a figura do pen-
sador religioso &ken Aabye Kierkegaard (1813-1853) . Sua c. ,r-
tribuição direta para a "filosofia da história" é mínima ou nula; en-
tretanto julgamos conveniente consagrar-lhe um parágrafo por es-
tes dois motivos: foi êle um dos primeiros a pôr a descoberto, de ma-
neira impiedosa, o burguês satisfeito; em segundo lugar, deve êle
ser considerado como o profeta do existencialismo moderno . Kier-
kegaard ilustra bem a tese de que os problemas religiosos têm sua
repercussão nos problemas culturais: desmascarava o cristão "es-
peculante", e outros, seguindo-lhe o exemplo, em terreno diferente,
- 1 68 ----

haviam de desmascarar o homem medíocre da cultura burguesa;


Kierkegaard lutava apaixonadamente com o problema da "exi.s-
tência cristã", e outros existencialistas, muitas vêzes ateus, haviam
de falar apenas da "existência humana". Nosso profeta veio adian-
tado, e suas obras numerosas (101) foram sendo esquecidas, tam-
bém na sua pátria; descobriram-nas os alemães, nos inícios dêste
século; após a primeira guerra mundial, o pensador dinamarquês
foi conquistando o mundo inteiro, e seus livros foram sendo tra-
duzidos para todos os idiomas importantes do globo (até para o
japonês!) (102) . Juntamente com o Cardeal Newman (103) e
Soloviev (cf. § 122), Kierkegaard é um dos mais pujantes pensa-
dores religiosos do século passado.
I. A Personalidade de Kierkegaard (104) .
Falar sôbre as teses de Kierkegaard sem tratar da sua perso-
nalidade é impossível; seus livros são a "reduplicação" das suas
lutas internas. Não são "confissões" no sentido indiscreto e estre-
pitoso de Rousseau, nem tampouco memórias escritas com o fim
de justificar o autor aos olhos de um grande público; antes são
"diálogos socráticos" com êle mesmo travados com o fim de fazer
descobrir o autor ao próprio autor . A verdade "existencial" que.
Kierkegaard propaga, não é diretamente comunicável a outros; é
uma verdade vivida, da qual tôda e qualquer obra escrita poderia
ser apenas a expressão inadequada. Inadequada, porque aquêle
em que a vida e a verdade realmente coincidem, já não sente a
necessidade de dialogar consigo. Cogito, ergo non sum, diz Kier-

— Mencionamos aqui: Enter-Ellen (= "A Alternativa", 1843); "Temor e Tre-


mor" (1843) "Migalhas Filosóficas" (1844-1846); "O Diário" (1843-1853) .
— A edição das suas obras completas em dinamarquês (Samlede Vãrker) saiu
em Copenhague, 1901-1906.
— Sôbre as traduções francesas, cf. R. Jolivet, Introduction à Kierkegaard, Éditions
de Fontenelle, 19461 ,págs. XV-XVIII. — Em versão portuguêsa: "O Deses-
pêro Humano", Pôrto, Tavares Martins, 1953 , (trad. de Adolfo Casais) .
— John Henry Newman (1801-1890), convertido ao catolicismo (1845) e nomeado
cardeal em 1879 (sua divisa cardinalícia é significativa: Cor ad Cor loquitur,
cf. § 106 III 28 O, pode ser considerado — mutatis ~landis — como pen-
sador existencialista entre os católicos do século XIX. Newman, figura cati-
vante e pensador profundo, era mal compreendido por seus contemporâneos e
mal interpretado pelos modernistas no início dêste século, mas vem atraindo
atualmente a atenção cada vez crescente de inúmeras pessoas dentro e fora
da Igreja Católica. Sôbre êle, cf. § 106, III, notas 28 e 28g; § 107 (no fim);
§ 108 II, nota 87. — No seu Bigiietto Speech (1879), considerava o relati-
visrrso religioso como o grande mal do século (the great apostasia); sôbre o
tremendo risco da fé, cf. Essay on The Development of Christian Doctrine,
pág. 357: Our choice is an awful giving forth of lots on which salvation or
rejection is inscribed. Sôbre NeKrnan, cf. M. Teixeira-Leite Penido, O Car-
deal Newman, Editôra Vozes, Petrópolis, etc., 1946; L. Bouyer, Newman. Sa
Vie. Se. Spiritualité, Paris, Les Éditions du Cerf, 1952.
— Cf. Johannes Hohlenberg, &iren Kierkegaard, Paris, Albin Michel, 1956. —
Cf. a publicação da "Revista Brasileira de Filosofia": Sdren Kierkegaard (São
Paulo, 1956), que contém estudos de Luís Washington Vita, Heraldo Barbuy,
Renato Cireli Czema, Efraín Tomás Bó, Vicente Ferreira da Silva, com Pre-
fácio de Miguel Reale.
--- 169 —

kegaard, parodiando a tese de Descartes. Se escrevia livros, se até


o fim da sua vida continuava "pregador para si mesmo", era por-
que ainda não tinha conseguido efetuar esta síntese vital.
Filho de um simples camponês que se tinha enriquecido na
cidade como comerciante; iniciado prematuramente nos tormentos
de seu pai hipocondríaco; educado numa religião sombria que pa-
recia desconhecer que o jugo de Cristo é suave e nem se regozijava
nos mandamentos do Senhor; coração extremamente sensível, do-
tado de uma imaginação sonhadora e de uma inteligência vivíssi-
ma; dialético notável, polemista agressivo e irônico virulento; me-
lancólico por temperamento e cultivador da sua própria dor; com-
panheiro espirituoso e pândego, mas, ao mesmo tempo, indivíduo
terrivelmente solitário; Kierkegaard era a encarnação do parado-
xo, um enigma para outros, e um problema cruciante para si mes-
mo. Uma figura trágica, comparável à de Hamlet (105) .
II. O Antípoda de Hegel.
Desde o ano 1835, Sõren procurava uma verdade para a qual
poderia viver e morrer; o que buscava, não era um sistema, que
tudo promete e nada dá, e sim a compreensão de si mesmo na sua
existência concreta . A princípio, seu espírito, amante do jôgo dia-
lético, lia e absorvia apaixonadamente as obras de Hegel, experiên-
cia essa que, para êle, resultou numa cruel decepção .
O sistema é especulativo, isto é, apresenta-nos umas verdades
pensadas lógicamente coordenadas e subordinadas — "essências"
abstratas e universais que, para Kierkegaard, não passam de pu-
ras possibilidades. Êle quer viver a verdade, isto é, apropriar-se
dela totalmente. Segundo êle, a única forma legítima de filosofar
é pensar com "paixão" (páthos), e o pensamento "existencial"
consiste num inter esse apaixonado pela verdade, num esfôrço su-
-

mamente pessoal para apropriar-se dela totalmente. O sistema


(hegeliano) declara necessária a existência da Idéia, e necessár i a
a existência de tôdas as manifestações concretas e finitas da mes-
ma, arrogando-se a competência de deduzi-las lógicamente; o pen-
sador abstrato tem a absurda pretensão de demonstrar sua pró-
pria existência pelo pensamento. Contradição flagrante, segundo
Kierkegaard, porque, na medida em que pensamos de maneira abs-
(105) — Os dois são dominados por uma melancolia doentia e incurável; para Hamlet,
o grande acontecimento na sua vida é a descoberta do pecado de sua mãe,
para Kierkegaard, a descoberta dos dois pecados de seu pai (êste, como me-
nino, amaldiçoara a Deus, quando apascentava o rebanho nas charnecas de
Jutlándia, e sedutira a governanta da sua casa, a mãe de Sõren; Kierkegaard
descreveu êsse "terremoto" no seu célebre "Sonho de Salomão", sublime ex-
pressão do seu terrível sofrimento, quando soube dos pecados de seu pai ado-
rado); Hamlet rejeita Ofélia, julgando-a incapaz de lhe ser companheira na
profunda tristeza; Kierkegaard rompe com sua noiva Regina Olsen por motivos
análogos.
170 —

trata, somos forçadas a fazer abstração do fato de que existimos.


A existência é radicalmente contingente, e irredutível a todo e qual-
quer conceito racional.
Há, portanto, uma luta de morte entre a "existência" concre-
ta e o pensamento abstrato. A antítese hegeliana, — segundo o di-
namarquês, uma caricatura do verdadeiro "devir", — é uma "me-
diatização" entre a tese e a síntese, um momento lógico e neces-
sário de um processo contínuo e lento, pelo qual se realiza a pas-
sagem da tese à síntese; a essa mediatização Kierkegaard opõe os
limites absolutos entre o sim e o não, a alternativa radical (Ellen-
Enter), o "salto brusco" de uma fase para outra, em virtude de
uma decisão absolutamente original, que não é a conseqüência ló-
gica da fase anterior, mas sua negação completa . Hegel é o filó-
sofo do imanentismo que procura reconciliar a multiplicidade das
coisas numa ampla síntese e acaba por racionalizar a fé; Kierke-
gaard é o arauto da transcendência que mantém as coisas absolu-
tamente separadas e acaba por transformar a fé num paradoxo, num
escândalo para a razão. Hegel é apóstolo do progresso e do oti-
mismo sistemático: para êle o indivíduo, parcela insignificante do
'rodo, consola-se da sua infelicidade pelo fato de aí descobrir o seu
lugar necessário e a sua função necessária . Segundo Kier-
kegaard, cada nova geração, ou melhor, cada indivíduo tem de co-
meçar completamente de novo, no que diz respeito à sua "existên-
cia" humana; ao otimismo, opõe êle deliberadamente o desespêro
e a angústia; o indivíduo humano possui o seu valor irredutível e
insubstituível, devendo-o às suas relações pessoais com um Deus-
Pessoa .
O que Kierkegaard deve a Hegel, é a habilidade e a prática
da dialética (106) não como jôgo brilhante de conceitos •abstra-
tos, e sim como dialética "qualitativa" e existencial a assumir li-
vremente o risco. Quando ocasionalmente fala em sistema, tem em
vista o "Eu", o foco onde convergem os diversos raios do mundo
exterior e interior.
III. Amicus Socrates, sed magia amicus Abraham (107) .
' Virando costas ao sistema "essencialista" de Hegel, Kierke-
gaard se dirige para o mestre da sabedoria pagã, Sócrates, para
quem a filosofia não era especulação vã ou ocupação profissional,
e sim paixão vital, um engagement. Sócrates que declarava peran-
. — Kierkegaard escreve no seu Diério: "O ponto de vista contrário ao que defen-
do, encontra sempre em mim o seu mais acalorado defensor". Por isso gostava
de publicar seus livros sob pseudônimos (Hilarius o Encadernador, Johannes
Clitriacus, Anticlimacus, Vigilius Haufniensis, etc.), em que expunha idéias
cada vez encaradas de um ponto de vista diferente.
. — Cf. Amicus Plato, sed magis arnica ventas (cf: Cervantes, Don Quixote, 11,
Capítulo 51), reminiscência a Aristóteles, Ethica Nicomacheia, I 4.

171 —

te seus juízes atenienses que, até no inferno, iria continuar inter-


rogando os heróis da mitologia (108); Sócrates que, antes de mais
nada, fazia questão de se conhecer a si próprio (109); Sócrates
que corria "o belo risco" de morrer livremente por uma verdade
que não sabia demonstrar cientificamente (110); Sócrates que não
se impunha aos seus contemporâneos como uma autoridade ,-em
todo o pedantismo dos filósofos profissionais, mas simplesmente
como uma "ocasião" de pensamento, ou, para falarmos com Pla-
tão (111): Sócrates que considerava seu método como uma arte
obstétrica, ajudando outros a darem à luz suas verdades "embrio-
nárias" e julgando que só a Deus cabe gerá-las. A dúvida "exis-
tencial" de Sócrates ("sei que nada sei"), a manifestar-se na
sua "ironia" inigualável (112), era mais profunda do que a dú-
vida meramente convencional dos professôres modernos de filo-
sofia: ils doutent une heure par semestre en leur chaire, et le reste
du temps pensent à autre chose (113). Tal como outro Sócrates,
Kierkegaard com seus escritos quer convidar seus leitores a dialo-
garem consigo mesmos. Coloca-se sempre no ponto de vista de
seus interlocutores fictícios, mostrando-lhes a insuficiência de tô-
das as possibilidades "finitas" e a grave obrigação de se entrega-
rem sem reserva a si .mesmos naquilo que têm de "eterno".
Mas aqui esbarramos com os limites da ironia socrática, a
qual, embora seja uma atitude sublime num plano puramente hu-
mano, é insuficiente para uma vida autênticamente cristã. Sócra-
tes, o humanista, o palrador, o esteta amante de palestras com R
juventude elegante de Atenas, o intelectualista incorrigível ("vir-
tude = ciência!") deve ceder seu lugar a Abraão (114), o pai de

( 108 ) . Plato, Apologia Socratis, 41B-C.


( 109 ) . — Plato, Phaedrus, 230A; Xenophon, Memorabilia Socratis, 1 1. — "Conhece-
te a ti mesmo" ( grego: gnóthi seautón) era a inscrição do templo de Delfos,
sendo uma oferta dos sete sábios ao santuário ( cf. Plato, Protagoras, 343A-B;
Pausanias, X 24, 1 ) ; segundo alguns, Quilão de Esparta teria inventado a
fórmula .
( 110 ) . Cf. Apologia Socratis, 40C-41B; cf. Phaedo, 114D.
( 111) . Plato, Theaetetus, 150E-D. — Em outras passagens, Sócrates é comparado
com um torpêdo ou tremelgas (Plato, Meno, 80A), ou com um moscardo
(Plato, Apologia Socratis, 30E ) . Conforme Alcibíades ( cf. Plato, Symposiuni,
215D-216C ) , Sócrates possuía a faculdade de "arrebatar" seus ouvintes, exer-
cendo um poder quase mágico sôbre êles.
( 112 ) . — A palavra "ironia" ( grego: eironêia ) significa "ignorância simulada" ( cf .
Plato, Respublica, 337A ) . — Para desmentir o oráculo de Delfos que tinha
declarado Sócrates o mais sábio dos homens, êste, sabendo que não sabia nada,
ia consultar políticos, poetas e artesões, e chegava à conclusão de que, na rea-
lidade, era mais sábio do que êles, visto os outros ignorarem a sua ignorância,
ao passo que êle a professava públicamente . Por meio' de perguntas hàbilmen te
feitas, Sócrates, convencido da sua ignorância, costumava convencer seus in-
terlocutores de que êles também eram ignorantes; ou então, como "parteiro",
ajudava-os a acharem, certas verdades. Pois Sócrates não era cético radical,
tendo confiança robusta no lógos humano, mas opondo-se a soluções fáceis e
desonestas.
( 113 ) — R. Jolivet, Introduction à Kierkegaard ( cf. nota 162 ) , pág. 60.
Temor e
( 114 ) . Cf. "A Provação de Abraão", profunda análise do ato da fé, em
Tremor.
— 172 --

todos os fiéis, que não hesitava em abandonar a terra dos seus


pais e em sacrificar Isaac, o filho da sua velhice, obedecendo a uma
ordem cruel do Senhor; Abraão que acreditava no Senhor contra
tôdas as certezas humanas e lhe obedecia contra tôdas as normat-.
da moral humana; êle agüentava sózinho o pêso penoso da deci-
são pessoal. Pois, para Sõren Kierkegaard, a existência autêntica
do indivíduo humano é perante Deus.
IV. Os Três Estádios da Existência Humana.
O desenvolvimento humano abrange três estádios, um rigo-
rosamente distinto do outro: o estádio estético, o estádio ético, e
o estádio religioso (115) . Entre os três não há passagem lenta,
contínua e necessária, mas saltos bruscos, imediatos e voluntá-
rios em virtude de uma livre decisão.
O Estádio Estético.
Neste estádio o homem (tipo: Don Juan) renuncia ao Infi-
nito, abandonando-se ao momento instantâneo e fugidio; o hom.:..m
estético é um mascarado que tem mêdo de se conhecer a si pró-
prio, e por isso procura distrair-se constantemente com coisas que
lhe são estranhas como que brinquedos, quer sejam os prazeres
mundanos e carnais, quer sejam os prazeres superficiais da cultu-
ra do espírito; julga-se senhor, mas, na realidade, é escravo mise-
rável por não poder renunciar aos objetos exteriores. O único
contínuo dêste viver no momento é um certo fastio, uma profun-
da dissatisfação melancólica (tipo: Nero que incendia Roma por
melancolia, "essa histeria do espírito"), e até o desespêro.
O Estádio Ético.
O desespêro vital pode levar o homem a uma crise existencial
que é ambígua: o indivíduo tem de optar entre o desespêro demo-
níaco (um desafio à verdade eterna e ao bem absoluto) e o deses-
pêro salutar que o faz descobrir o caráter obrigatório do bem ab-
soluto e universal. Por arriscar o salto que o levará a terras in-
cógnitas, pode chegar o homem ao estádio ético, onde se descobri-
rá a si mesmo, jurando fidelidade incondicional a si e a. tôdas as
suas ligações naturais (à espôsa, à família, à pátria, à profiss ão ,
etc.) . O homem casado — tipo do homem ético — já não quer se-
duzir como Don Juan e sim dedicar-se aos seus, individualizando
o bem universal na sua personalidade concreta . Entretanto êste
estádio não pode constituir o grau mais alto do desenvolvimento
humano: a auto-suficiência humana — êsse ideal pretencioso e al-
tivo dos antigos Estóicos — impede o homem de descobrir o nú-

(115) . Inicialmente, Kierkegaard conhecia um só estádio religioso; mais tarde, chegou


a distinguir entre o "estádio A" (a religiosidade natural) e o "estádio B" (a
religiosidade sobrenatural ou cristã) .
--- 173 —

cleo mais íntimo do seu "Eu" que é divino. O homem ético pode
encontrar-se numa situação excepcional ou melhor num caso-li-
mite tal como Abraão que se via obrigado pelo próprio Deus a
sacrificar seu filho: evidentemente uma ordem imoral. Há mais:
homem ético, na sua tentativa de construir sua autonomia, vai
descobrindo que tudo é possível para êle e por êle, chegando a
considerar sua autonomia como uma autonomia total, o que equi-
vale a dizer: uma revolta contra Deus; na medida em que se des-
cobre nas suas possibilidades infinitas, descobre-se na sua auto-
nomia total, que é revolta contra Deus, e pecado. O homem é "s:"
apenas enquanto opta por si mesmo contra Deus. Daí sua angús-
tia a constituir com a liberdade e o pecado uma trindade insepa-
rável; pois a liberdade se lhe afigura como um perigo pavoroso e
pecado — ato necessário para se afirmar a si mesmo e, ao mrv-
mo tempo, o "nada", — origina nele uma vertigem. "Vertigem
diante do que não é, mas poderá ser pelo uso de uma liberdade
que não se experimentou e que não se conhece, a angústia do es-
pírito assemelha-se à vertigem física, naquilo que ela simultânea-
mente encerra de temor e de atração, de simples vislumbre da pos-
sibilidade e também de terrível encanto. Espécie de antipatia sim-
pática ou de simpatia antipática, a angústia é o desêjo do que se
teme, temor do que se deseja. E' nesta mistura de coisas opostas,
cheia de mágica fascinação (o encantamento da serpente do Gê-
nesis) que tem lugar o primeiro pecado" (116).
c) O Estádio Religioso.
A ética condena o pecador, mas é incapaz de nos premunir
contra êle; o pecado nos individualiza e isola; só Deus pode li-
bertar-nos dêle e fazer-nos participar da sua universalidade, o que
significa o descobrimento da nossa interioridade mais íntima e pes-
soal; a consciência religiosa, perante a qual o homem nada impor-
ta e só Deus importa, instala no homem paradoxalmente o "Eu"
divino. O homem é tocado por um remorso total que nunca mais
deixa; entrega-se confiantemente a Deus, e começa a levar uma
existência autêntica. Pois "existir", para Kierkegaard é "existir pe-
rante Deus", isto é, estar em relações pessoais com o nosso Criador
Redentor .
V . Credo guia absurdum (117) .
Kierkegaard via no Evangelho uma mensagem "existencial",
não uma doutrina especulativa; a maior parte dos cristãos se, com-
— R. Jolivet, As Doutrinas Existencialistas, (cf. nota 14), págs. 57-58.
Cf. Tertullianus (155-220), no opúsculo De Carne Christi, 5 (onde replica
a um infector veritatis): Parce unicae spei totius orbis! Quid destruis necessa-
rium dedecus lidei? Quodcumque Deo indignum est, mihi expedit. Selvus sum,
si non confundar de Domino meo... Alias non invenio meterias confusionis,
quere me per contemptum ruboris probent bene impudentem et felicitei stultum.
7
•1 4

porta diante do Cristianismo como o rei Davi a quem o profeta


Natã narrava o conto do pobre despojado da sua ovelha por um
rico prepotente: "sumamente indignado contra tal homem, Davi
disse a Natã: Viva o Senhor, um homem que tal fêz é digno da
morte. Pagará o quadruplo da ovelha por ter feito dela o que
fêz, e não ter poupado o pobre. Então disse. Natã a Davi: Tu és
êsse homem" (118). Para o "especulante", Deus é o mais alto
dos valores construídos por seu próprio espírito (119) .
Para o pensador dinamarquês, o Cristianismo não era uma
doutrina ou um sistema, e sim o dever sumamente pessoal de vir
a ser cristão, de imitar pessoalmente a Cristo, de entender a Pa-
lavra Divina como sendo dirigida imediatamente a êle próprio.
E imitar Cristo quer dizer: levar a Cruz do Mestre, sofrer, ser in-
feliz neste mundo. Até chegava a dizer que o Cristianismo é para
o homem a maior maldição, a mais desumana crueldade, porque
o mundo finito não suporta a intrusão do Infinito.
Investe contra a teodicéia (120) que tem a pretensão es-
tulta, como os amigos de Jó que foram desmentidos pelo próprio
Deus (121), de justificar o govêrno de Deus no mundo: não so-
mos nós que podemos julgar a Deus, mas é Deus que nos julga
a nós. "O que é louco aos olhos humanos, é sábio perante Deus"
(I Cor., I 25) . Investe também contra tôda a apologética: é uma
blasfêmia pior do que negar a Deus, querer provar a existência
de Deus; é uma pancada no rosto do nosso Redentor querer pro-
var a divindade de Cristo pela história. O Cristianismo é um
paradoxo (nós diríamos: um mistério), um escândalo, e a fé vai
contra a razão (nós diríamos: está acima da razão). Aqui Kier-
kegaard confunde o conteúdo da fé que é incomensurável com os
argumentos racionais, e o ato humano de crer que, ao abrir-se pa-
ra o dom divino da fé, não se efetua sem a cooperação da razão.
L'erreur fondamentale (de Kierkegaard) consiste à identifier deux
termes aussi différents que ceux-ci: démontrer par Ia raison la
vérité d'un objet qui est au-dessus de la raison, démontrer par la
raison les raisons de croire à un objet qui dépasse la raison (122) .

Natus est Dei Filias: non pudet guia pudendum est; et mortuus est Die Filius:
prorsus credibile est guia ineptum est; et sepultus restSrresit: certum est guia
impossibile.
— II Reis, XII 5-7. Cf. Horatius, Safira, I 1, 69-70:
Quid rides? Mutato nomine de te labuta narratur.
Cf. as palavras de M. de Corte, citadas acima § 105 III.
—. Teodicéia (das palavras gregas: theós = deus, e dikaiós = justo) quer dizer:
"e justificação de Deus (no govêrno do mundo"); o têrmo foi forjado por
Leibniz (1646-1716) nos Essais de Th&dicée . , e tinha originàriamente signi-
ficado apologético (Leibniz se dirigia contra o cético P. Bayle); hoje, a palavra
designa muitas vêzes aquela parte da metafísica que trata do conhecimento
natural de Deus.
--- Jó, Capítulos XXXVIII-XLI.
— R. Jolivet, introduction, etc., pág. 63.
--- 175.--

Kierkegaard vê no "Deus dos Filósofos "(123) um ídolo, uma usur-


pação do intelecto humano, uma espécie de paganismo irreconci-
liável com o Cristianismo: nas suas invectivas contra a razão, é
filho de Lutero (cf. § 81 V, nota 23), desprezando (ou, desconhe-
cendo o verdadeiro alcance de) o princípio tomista de "analogia"
(124), distanciando-se da tradição cristã (125), e afastando-se
do ensinamento da própria Bíblia que frisa a possibilidade do co-
nhecimento natural de Deus (126). A Igreja Católica, que sem-
pre intervém em favor dos valores humanos e do intelecto huma-
no, defendeu a "teologia natural" no Concílio do Vaticano (127);
a posição extremista de Kierkegaard teve profunda repercussão
na chamada "teologia dialética" de Karl Barth e outros teólogos
protestantes (128).

VI. A Luta contra a Igreja Estabelecida .


Para Kierkegaard, o Cristianismo moderno, representado no
seu país pela Igreja luterana nacional, era um Cristianismo perfu-
mado: separava-se da Igreja Estabelecida para aderir a uma Igre-
ja invisível. O Cristianismo "oficializado e burocratizado" de nos-
sos dias é uma pseudo-religião, seus adeptos são "especulantes es-
téticos", pagãos disfarçados. A Igreja autêntica é invisível e com-
põe-se de almas isoladas, unidas com Cristo pela graça: cada um
de nós tem de ganhar sõzinho o céu, pela porta estreita. Não há
— Cf. R. Jolivet, Le Dieu des Philosophes et des Savants, Paris, Fayard, 1956
(na coleção: "Je sais-Je crois").
— Cf. § 104 I, nota 299.
— Recomendamos ao leitor a leitura de Augustinus, Confessiones, X 6, onde
lemos: Interrogavi mare et abyssos, et reptilia animarum vivarum, et respon-
derunt: Non sumos Deus tuus, quaere super nos! .. . Et dixi omnibus bis qui
circurn'stant fores cernis meae: Dixistis mihi de Deo meo quod vos non estis;
dicite mihi de illo aliquid. Et exclamaverunt vote magna: Ipse fecit nos! . . .
Et direxi me ad me, et dixi mihi: Tu qui es? Et respondi: Homo. Et ecc'e
corpos et anima in me praesto sunt, unum exterius et alterum interius.
Homo interior cognovit haec (se. Deum esse Creatorem hominum atque homi-
num) per exterioris ministerittm; ego interior cognovi haec, ego animus per
sensos corporis mei. Interrogavi mundi mofem de Deo meo, et respondit
Non ego som, sed ipse me fecit. Nonne omnibus quibus integer sensos est,
apparet haec species? Cur non omnibus eadem loquitur? Animalia pusilla et
magna vident eam, sed interrogare nequeunt. Non enim praeposita est in eis
nuntiantibus judex ratio. Homines ~tem possunt interrogare, ut invisibilia
Dei per ea quae facta sunt intellecta conspiciant,
— Cf. São Paulo, Epístola aos Romanos, I 18-23; Livro da Sabedoria, XIII.
— Cf. Denzinger, 1806: Si quis dixerit, Deum unum et verum, creatorem et
Dominum nostrum, per ea, quae fatia sunt, naturali rationis humanae !omine
certo cognosci non posse, anathema sít (cf. 1785).
— Karl Barth, teólogo suíço (nasceu em 1886), foi educado na teologia raciona-
lista e otimista do protestantismo liberal e teve sua crise "existencial" durante
a primeira guerra mundial. Publicou (1919) seu notável "Comentário à Epístola
de São Paulo aos Romanos", e uma "Dogmática" (em vários volumes, desde
1932) . Deus é o absolutamente Outro, o completamente Separado do homem,
o totalmente Abscôndito. A teologia dialética elabora a diferença infinita entre
a Eternidade e o tempo, o Criador e a criatura, o Absoluto e o relativo; ao
falar de Deus, limita-se a manter duas afirmações contrárias, cuja profunda
conexão só Deus pode ver, por exemplo: Deus, o Abscôndito, revelou-se ao
homent mediante Cristo, mas na medida em que se nos revela, vamos desco-
brindo cada vez mais que Deus permanece absolutamente abscôndito.
— 176 --

ilusão pior do que confundir "Cristianismo" e "Cristandade": aquê-


le é divino e transcendente, esta é humana e histórica. Aliás, a
Cristandade hodierna perdeu a fé vital nos valores eternos do Cris-
tianismo: os cristãos modernos, ao contrário dos cristãos primiti-
vos e de muitos medievos heróicos, cuja vida era sacrifício, mar-
tírio e sofrimento, contemporizam com o mundo, considerando o
Evangelho como um ganha-pão, e inventando a tolerância, essa
edição emendada do Cristianismo, proveitosa para a sociedade
e principalmente para o comércio.
Seria muito menos perigoso para o Cristianismo, diz Kierke-
gaard, se o Estado tentasse impossibilitar a Igreja do que é sua ten-
tativa atual de prolongar-lhe a vida, nomeando uns mil pregadores
oficiais do Evangelho que têm interêsse pecuniário em se consi-
derarem como cristãos seus rebanhos e um interêsse muito maior
ainda em êles não ficarem sabendo o que é o Cristianismo autên-
tico. O Estado atual metamorfoseou os sacerdotes em funcioná-
rios. Do mesmo modo que se encarrega de construir ruas, pontes
e aquedutos, encarrega-se também de garantir a bem-aventurança
no além-túmulo ao preço mais módico possível. E afinal: "Não
se pode viver de nada . Isso todos nos asseguram, principalmente
os sacerdotes. Entretanto, são êles que conseguem realizar o im-
possível: embora não exista o Cristianismo, dêle vivem os sacer-
dotes".
Kierkegaard via como o futuro da Europa ia exigir o derra-
mamento de muito sangue, não de hecatombes sacrificadas louca-
mente para saciarem a ambição de déspotas desumanos, e sim o
sangue precioso de indivíduos heróicos que, dolorosamente solitá-
rios, haviam de sacrificar sua vida para testemunharem a verda-
de eterna . Esperava que a crise política e social dos tempos mo-
dernos se transformaria numa crise religiosa, e que os eclesiásti-
cos iriam pôr sua confiança, não no poder nem na cultura, mas
no serviço do próximo, no sofrimento, no martírio .
Com seus exageros, seus paradoxos levados ao extremo, sua
negação total da imanência (Deus é, para êle, o "Infinito Ausen-
te", não o "Infinito Presente"), com seu subjetivismo, Kierkegaard
est un auteur plus stimulant que sair. Plutôt qu'une nourriture,
sa pensée est un toxique et, à trop forte dose, elle pourrait devenir
un toxique (129) . Concordamos plenamente com estas palavras,
mas julgamos também que a Cristandade aburguesada — não só
os protestantes, como também os católicos, — necessitava de um
forte antídoto.

(129). -- H. de Lubac, S. J., Le Drama de I'Humenisme Ath6e, Paris, Spes, 19504,


pág. 111.
— 177

§ 111. O homem um animal fracassado.


Frederico Nietzsche (1844-1900), pensador original e deno-
dado, mas espírito egocêntrico, indisciplinado e completamente
desequilibrado, enuncia nas suas obras proféticas a falência da cul-
tura burguesa, mostrando um prazer quase diabólico em pôr a nu
a mesquinhez e a podridão dos ideais contemporâneos. Mais poe-
ta do que filósofo, mais visionário do que sistemático, escrevia
obras empolgantes, em que revelava um poder verdadeiramen-
te mágico sôbre a palavra: externava seus pensamentos median-
te aforismos, parábolas, mitos, invectivas injuriosas e hinos exalta-
dos. Suas idéias, quase sempre incorerentes e confusas, são como
que relâmpagos coruscantes de um gênio louco, ou de um louco
genial. Seus livros, cheios de sarcasmos e blasfêmias, queriam ex-
terminar tôdas as verdades eternas e tôdas as normas absolutas que
a sociedade européia herdara do Cristianismo: tal como outro Vol-
taire, — do qual, porém, não possuía nem a lucidez nem a frieza
racionalista, — queria esmagar o Cristianismo, chegando a conside-
rar-se como o próprio Anticristo. Apesar de estar envolvido numa
luta trágica contra Deus e a despeito de seu esvaecimento mórbi-
do, estava em, busca de um ideal grandioso e desinteressado, capaz
de dar sentido à vida humana; sua vida, cheia de tensões insupor-
táveis e que havia de terminar num enlouquecimento total (1889),
afigura-se-nos uma peregrinação desesperada e malograda ao Infi-
nito. O apóstolo do materialismo ateu era atormentado pelo pro-
blema religioso, e muitas páginas escritas pelo Anticristo moderno,
mostram uma sofreguidão autêntica por Deus (130).
I. Os Três Períodos da Vida de Nietzsche.
Podemos dividir a atividade literária de Nietzsche em três pe-
ríodos nitidamente distintos:
a) O Período do Pessimismo estético, influenciado pela filo-
sofia pessimista de A. Schopenhauer (131) e pela música românti-
— Sôbre Nietzsche, cf. J. C. Lannoy, Nietzsche, ou l'Histoire d'un Égocentrisme
Athée, Paris, Desclée De Brouwer, 1952; G. Thibon, Nietzsche, ou Le Déclin
de l'Esprit, Paris, Lardanchat, 1948.
. --- Artur Schopenhauer (1788-1860) é autor de O Mundo como Representação e
como Vontade (1819) e de Parerga e Paraliponema (1851). O mundo como
fenômeno é, segundo êle, representação subjetiva (cf. Kant), mas é-nos per-
mitido um conhecimento mais profundo do mesmo mediante a nossa vontade
(no sentido mais amplo da palavra) . Assim chegamos a conhecer e a "viver"
a Real:dado una e única, a qual, ao contrário da Idéia hegeliana, é irracional
e privada de finalismo: é a Vontade cega que nada mais quer senão viver. A
Vontade vai-se concretizando no mundo da experiência até se manifestar no
homem, mas êste se torna consciente do fato de que a sêde insaciável cla Von-
tade não tem razão nem finalidade. Daí o pessimismo de Schopenhauer, a con-
solar-se da futilidade da existência com um culto ao belo; mas culmina sua
doutrina numa moral que prescreve um desapêgo ascético à vida; no sábio, a
voluntas transforma-se em noluntas; sua sabedoria consiste em negar a vida.
Se essa negação se tornar geral, terminará tôda a vida, e desaparecerá o mundo
dos fenômenos; a Vontade de viver se transformará na sua negação, e restará
apenas o Nada ou o Nirvana.

Revista de História n.o 29


— 178 ---

ca de R. Wagner (132) . Neste período Nietzsche lecionava filo-.


logia clássica em Basiléia, escrevendo trabalhos sôbre a Grécia, por
exemplo: O Nascimento da Tragédia (1872) e A Filosofia na Épo-
ca Trágica dos Gregos A 1873) . Também uma coleção de quatro
ensaios: Reflexões Intempestivas (1873-1876) pertence a esta fase.
O Período do Positivismo intelectualista, em que, decep-
cionado pelas tendências místicas de origem cristã na obra de Wag-
ner (133) e desgostado do pessimismo de Schopenhauer, recorre às
ciências positivas, as únicas capazes, segundo êle, de tornar livre e
poderoso o homem, contanto que sejam cultivadas sem a interfe-
rência de especulações religiosas ou metafísicas, e sem as fantasias
de poetas e artistas. As obras principais dêste período são: Humano
demasiado Humano (1878-1880, obra escrita a propósito do cente-
nário da morte de Voltaire) e Aurora (1881) .
O Período do Voluntarismo vitalista, em que desenvol-
ve sua doutrina definitiva (o Super-homem, a Inversão dos Valo-
res, a Moral dos Fortes, o Eterno Retôrno, etc.) . Neste período fo-
ram escritos: A Ciência Jocosa (1882), Assim falava Zaratustra,
I-IV (1883-1885), Além do Bem e do Mal (1886), A Genealogia
da Moral (1887), A Vontade do Poder (obra inacabada, 1888,
publicada em 1905), e Ecce Homo (fragmentos de uma autobiogra-
fia, editados em 1910).
II. Apoio e Dioniso.
Já no ensaio O Nascimento da Tragédia (134) encontramos a
célebre distinção entre Apoio e Dioniso, dois deuses da mitologia
grega, transformados por Nietzsche em duas fôrças antinômicas e,
ao mesmo tempb, complementares, a disputarem entre si o domínio
. — Ricardo Wagner (1813-1883), compositor de várias óperas românticas em
que tentava revivificar o drama religioso e a arte totalitária (alemão: Gesandt-
kunstwerk) dos gregos mediante a estreita aliança da Trindade artística: a
música, a poesia e a dança (alemão: Ton-, Ticht- und Tanzkunst) com a ar-
quitetura e a pintura. Nos livros Arte e Revolução (1849) e A Obra de Arte
do Futuro (1850, onde se encontra a célebre expressão: Zukunftsmusik = "Mú-
sica do Futuro") expõe suas idéias estéticas. A arte é-lhe uma espécie de reli-
gião, da qual espera a redenção do homem pelo homem; o Cristianismo, ascé-
tico que é, destruiu o belo no mundo; Wagner detesta os latinos (sobretudo
os franceses), espíritos superficiais e interesseiros, incapazes de uma verdadeira
comoção artística; admira os gregos e adora os germanos. A grande missão
dos germanos consiste em dar ao mundo degenerado urna nova arte. Nas
suas óperas observa-se um certo misticismo pagão e uma profanação de idéias
e símbolos cristãos (principalmente em Parsifal).
. — Decepcionado pelas representações ostentosas e pouco aristocráticas das óperas
wagnerianas em Bayreuth (1876), Nietzsche rompeu, definitivamente, com o
con‘positor, quando, pouco tempo depois, soube (em Sorrento) das inclina-
ções cristãs de Wagner. Esta ruptura dolorosa e nunca completamente curada
foi-lhe motivo para escrever uns panfletos injuriosos contra o mestre antiga-
mente adorado.
. O ensaio foi violentamente combatido e ridicularizado pelo jovem Ulrich Von
Wilamowitz-Moellendorf (1848-1932), numa obra com o título insinuador:
Zukunftsphilologie (= "Filologia do Futuro", cf. nota 132) . Voe Wila-
mowitz é um dos helenistas mais notáveis dos tempos nãodernos, suma ex-
pressão do Neo-Humanismo alemão; escreveu inúmeras monografias, por exem-
plo sôbre Platão, Homero, Eurípides, Píndaro, a Religião dos gregos, etc.
— 179 —

sôbre o homem e a cultura. En transposant "le monde comme vo-


lonté et comme représentation" (de Schopenhauer) en un "monde
symbolisé respectivement par Dionysos et par Apollon", il s'est créé
un mythe au lieu d'une interprétation purement rationnelle du mon-
de (135) . Apoio, o deus do sonho e das belas formas, é o símbolo
da ordem, da harmonia, da serenidade, do equilíbrio e do comedi-
mento; é êle que organiza o caos e dá origem aos indivíduos, de-
limitando-os nitidamente e mantendo-os dentro dos seus limites;
no terreno das artes, é o pai das artes plásticas e da poesia épica .
Dioniso, antigo deus da vegetação e da embriaguez, é símbolo das
fôrças inefáveis que movimentam misteriosamente o Universo, dis-
sipando as 'delimitações da nossa individualidade e fazendo-nos sen-
tir nossa unidade elementar e vital com o Kásmos; é deus do "êxtase"
(136), do "entusiasmo" (137), do arrebatamento lírico, do furor
divinus (138), da "mania (139) sagrada, como também das fes-
tas orgíacas, da lascívia voluptuosa, das danças delirantes, das ba-
canais, dos cegos desejos que podem levar o homem até ao ato
de auto-destruição. Pois Dioniso é símbolo da Natureza que nas-
ce, cresce, floresce, murcha e morre e, num processo de contínua
repetição, nunca deixa de 'rejuvenescer-se e de destruir-se a si mes-
ma; devido à influência mágica de Dioniso, o homem sente-se uma
parcela do Todo e revolve-se nas ondas agitadas dos seus instin-
tos, despojado da sua individualidade e da consciência de si pró-
prio . No terreno das artes, Dioniso é o pai da música e da dança
bem como da poesia ditirâmbica (140). Na Grécia arcaica exis-
tia uma fecunda dialética entre as duas divindades: Apoio criou o
. — Ch. Lannoy, Nietzsche, etc., pág. 109.
. — "Êxtase" (grego: ék-stasis) quer dizer: "sair fora de si".
. — "Entusiasmo" (cf. em grego: en-theos-iesmós) quer dizer: "o estado de quem
é possuido de um deus". — Cf. Ovidius, Fasti, VI 5: Est deus in nobis,
agitante calescirrus illo; cf. Ars Amatoria, ÌII 549; Herodotus, Hitoriae, IV
79, e Vergilius, Aeneis, VI 79-80.
. — Descrições célebres do furor divinus na literatura clássica são: o arrebata-
mento da vate infeliz Cassandra, in Aeschylus, Agamemnon, 1178-1330 (cf.
"Kassandra" de Schiller); e o da Sibila, in Vergilius, Aeneis, VI 45-51:
Ventum erat ad limen, cum virgo "Poscere fats1
Tempus" ait, "deus, ecce deus!" Cui talia fanti
Ante fores subito non vultos, non color unus,
Non comptae mansere comae; sed pectus anhelum,
Et rabie fera corda tument, maiorque videri
Nec mortale sonans, adflata est numine quando
Iam propiore dei...
— A palavra grega "mania" (= "arrebatamento, êxtase", etc.) relaciona-se com
mántis (= "vate, vidente, profeta") .
-- O ditirambo (grego: dithymarnbos, etimologia controvertida) é um hino exal-
tado, escrito num ritmo arrebatador, a princípio executado (com música e
dança ) exclusivamente em honra de Dioniso, depois também em honra de ou-
tros deuses e de heróis. Segundo a tradição teria sido inventado por Arião
(cf. Herodotus, Historiae, I 23) . O ditirambo (sempre executado por um
côro) está inseparàvelmente ligado à origem do drama ático, embora desco-
nheçamos os pormenores da evolução: um dos coristas apartava-se do corpo do
côro para dar respostas às perguntas do "corifeu" (= "chefe do côro"; a pa-
lavra não se relaciona com "côro"), isto é: transformava-se num "responsor"
(grego: hypocrités). Ainda possuímos tal "responsório", descoberto no Egito,
--- 180 —

mundo homérico, o oráculo de Delfos ("conhece-te a ti mesmo!" e


"nada demasiadamente!"), e o estilo clórico; mas o mundo apolí-
neo das belas aparências não poderia viver sem o elemento fecun-
dante das fôrças elementares de Dioniso: a luta heróica, o sofri-
mento trágico, o júbilo extático, em suma, a dissolução do indiví-
duo, corajosamente aceita, no Todo misterioso. Apolo e Dioniso
concluiram uma aliança muito estreita para criarem juntos a tra-
gédia, êsse milagre do gênio grego. A imaginação apolínea reveste
de formas concretas o mundo invisível da música; destarte nasce
o mito trágico. No mito trágico, o indivíduo é esmagado, e dêsse
esmagamento provém exatamente nossa alegria metafísica: sob a
máscara de Prometeu e Édipo fala-nos o eterno Dioniso, o deus
dilacerado pelos Titãs que sofre terrivelmente da individuação.
Diante dêsse sofrimento trágico, o côro afirma apaixonadamente
sua fé na vida eterna, isto é, na libertação do indivíduo a retornar
para a felicidade da vida cósmica que é eterna .
Eis uma imagem da vida grega que muitíssimo diverge das
opiniões tradicionais emitidas pelo Neo-Humanismo alemão (Win-
ckelmann, Goethe, Schiller, Von Humboldt, etc.), o qual se apra-
zia a ver na Hélade clássica o modêlo inigualável de ordem, har-
monia, serenidade, luz, e alegria ingênua (alemão: die griechische
Heiterkeit), ou — para falarmos com Nietzsche — nela via ape-
nas "os aspectos apolíneos". Nosso autor frisa, no seu ensaio, a
existência de outras fôrças na Grécia: fôrças elementares e menos
"humanas", fôrças sombrias e sinistras, fôrças cósmicas e destruti-
vas, que uma geração otimista e nacionalista não conseguia perce-
ber, cegada que era pelo brilho do sereno mundo olímpico, e in-
clinada a ver no "estrangeiro" (140a) Dioniso um intruso incô-
modo ou a apoucar-lhe a importância. No fim do seu ensaio, Nietzs-
che exclama: "Quanto deve ter sofrido êste povo para poder atin-
gir tal grau de beleza!" (140b) .

da lavra do poeta Baquílides. Quando o responsor já não recitava (èpicamente)


os feitos dos heróis, mas se ia identificando com i êles, o hypocrités tornou-se
"ator" (dramático) e nasceu o drama própriamente dito. Coisas semelhantes
se deram na Idade Média (substituição de um texto épico ou lírico, originà-
riamente recitado, pela impersonatio drarnatica).
(140a). —Dioniso (a etimologia da palavra é incerta) era considerado pelos filólogos clás-
sicos até há pouco como um intruso (de origem frígio-trácica), que teria con-
quistado a Grécia só a partir de 700 a. C. Com efeito, Homero menciona-o
só ocasionalmente, por exemplo, Dias, VI 132 e Odyssea, XI 325. A deci-
fração da escrita "linear B" das tábuas minóicas (por M. Ventris, cf. § 41
II, nota 52) revelou que, já por volta de 1450 a. C., Dioniso era conhecido
em Creta e dois séculos depois no Peloponeso.
(140b). "Seliges Volk der Hellenen! Wie grosa muss unter euch Dionysus sein, wenn
der delische Gott aniche Zauber für nótig hëit, um euren dithyrarnbischen
Wahnsinn zu heilen!" — Einem so Gestimmten dürfte aber ein greiser Athener,
mit dem erhabenen Auge des Áschylus zu ihm aufblickend, entgegnen: "Sage
aber euch dies, du wunderlicher Fremdling: wieviel musste dies Volk leidert,
um so schõn werden zu künnen! Jetzt aber folge nlWr zur Tragõdie, und opfere
mit mir im Tempel beiden Gottheiten!"

181 ---

O desmoronador da tragédia antiga foi Eurípides, que já não


nos entremostra o fundo dionisíaco de tôdas as coisas, mas se in-
teressa, antes de mais nada, pelo indivíduo: Eurípides renega Dio-
niso, e compõe epopéias dramatizadas, cheias de pensamentos pa-
radoxais — e não de contemplação apolínea — e cheias de paixões
ardentes, — e não de encanto dionisíaco. Mas atrás de Eurípides
está o mau demônio de Sócrates: Sócrates, o plebeu, cujos instin-
tos se racionalizaram, isto é, se atrofiaram e minguaram; Sócra-
t•s, o racionalista anti-esteta, para quem podia ser belo apenas o que
fôsse racional (cf. "ciência = virtude = belo"); Sócrates, o escarnece-
dor da vida instintiva, que ficava revoltado pela idéia de que um
artista criava o belo sem saber em que consiste o belo (141); Só-
crates, o protótipo do homem teórico e otimista, convencido do
triunfo da razão, é o adversário figadal de Dioniso como também
de Nietzsche, seu profeta, e continuará a sê-lo até o fim da sua
vida (142) .
III. Deus está morto ...
Nietzsche era declaradamente, — ou, segundo êle mesmo, ins-
tintivamente, — ateu desde os anos em que estudava a filologia
clássica . Deus não pode passar de uma ilusão da mente humana,
mas é uma ilusão perniciosa que avilta e humilha o homem, e por isso
mesmo deve ser extirpada.. Se Deus existisse, como suportaria o
homem não ser Deus? Portanto, proclamemos deliberadamente a
morte de Deus! "Deus está morto! Deus permanece morto! Somos
nós que o matamos. De que maneira poderemos consolar-nos nós
que somos os assassinos entre os assassinos? O bem mais sagrado e
poderoso que o mundo possuiu até agora, caiu sangrando debaixo de
nossas facas... Quem nos limpará dêste •sangue?"... Nunca houve
um ato mais sublime, e todos os que nasceram depois de nós, per-
tencerão a um período histórico superior à tôda a história passada,
por causa dêste ato!" (143) .
Essa mensagem pavorosa bradada aos ouvidos de um grande
público, reunido numa praça, produz efeitos muito diversos. Os
fiéis, ,embaídos por sua crença que os torna invulneráveis, continuam
sua vida costumeira como se não tivessem nadá com a notícia; os
ateus vulgares, que nunca acreditaram em nada, recebem o men-

. Sócrates, nas suas conversas com os poetas, chegava à conclusão de que êles
criavam suas obras não em virtude de uma sabedoria, e sim graças a um
certo dom natural e a seu "entusiasmo" (cf. nota 137), como os adivinhos:
pois também êstes falam muitas coisas belas sem delas possuirem um conhe-
cimento racional, cf. Mato, Apologia Socratis, 22A-C; /o, 533D-534E.
. Só no segundo período da sua carreira filosófica, mostrava Nietrache certa
estima pela figura de Sócrates (sobretudo em Humano demasiado Humano).
. — Nietzsche, A Ciência Jocosa, no. 125.
-- 182

sageiro agitado com risos sarcásticos, reputando-o louco. Mas, aos


poucos, alguns espíritos perspicazes vão avaliando o tremendo vácuo
que lhes causa a morte de Deus. Para uns, ela é motivo de pran-
tos lacrimosos, visto que se vêem desamparados de tudo o que os
sustentava na vida; os outros, os fortes, apesar de compreenderem
bem o caráter vertiginoso do assassínio, preparam-se para arcar co-
rajosamente com tôdas as conseqüências do seu ato (144) .
A morte de Deus, proclamada com tanta paixão por Nietzsche,
é um ato de livre decisão humana, não a refutação científica dos
argumentos em favor da sua existência . A contra-prova prática e
julgada definitiva por Nietzsche, tem algo de semelhante à de Feuer-
bach, e consiste em demonstrar como a idéia de Deus, sendo a pro-
jeção da miséria humana, conseguiu insinuar-se na consciência do
homem. A escória do gênero humano, já não capaz de enfrentar
heròicamente o seu destino, com seus instintos tolhidos e enfraque-
cidos, chega a imaginar um ente superior em que possa encontrar
proteção e amparo, consôlo e segurança . Deus é traição aos valo-
res terrestres, desprezados pelos fracos porque lhes são inacessí-
veis: "Imploro-vos, meus irmãos, ficai fiéis à terra, e não acredi-
teis nos que vos falam de esperanças celestes. São envenenadores,
quer o saibam, quer não. São desprezadores da vida, moribundos e
envenenados êles mesmos, cançados da terra: que desapareçam!"
(145) . Deus foi inventado pelos escravos, pelos rancorosos: a fran-
ca expansão das fôrças vitais nos fortes causa-lhes escândalo e in-
veja, e constitui, aos seus olhos, um crime hediondo, a bradar por
vingança, mas visto serem incapazes de se vingarem efetivamente,
imaginam um Vingador divino, ornando com auréola sua própria
fraqueza e covardia.
IV. ...Viva o Super-Homem!
A morte de Deus é a certidão de nascimento do Super-Homem.
Deus está morto, agora queremos que viva o Super-Homem para
dar sentido à terra . O homem é um animal infeliz, um animal ri-
dículo que ri e chora, um animal fracassado que perdeu "a razão
animalesca", um animal adoecido porque nele se sobrepôs aos instin-
tos vitais a razão exangue, uma corda estendida entre o macaco e o
Super-Homem. "Que é o macaco para o homem? Uma derrisão ou
uma vergonha dolorosa . Do mesmo modo o homem será para o
Super-Homem uma derrisão ou uma vergonha dolorosa" (146) .

(144). — Ibidem, n.o 343.


(145) — Nietzsche, Assim falava Zaratustra, I Prefácio, 3.
(146). -- Ibidem.
— 183 --

O "Super-Homem" (147) não será embaraçado pelas normas


da moral convencional nem estorvado pelos empecilhos da razão
atrofiante; afirmará incondicimalmente a vida, e aceitará heróica-
mente o seu destino. Agora que já não existe um Deus para dar
significado à vida humana, é o homem que deve dar sentido às coi-
sas da terra . O Super-Homem servir-se-á de todos os meios para
aumentar sua fôrça e seu poder; utilizar-se-á dos fracos como de
adubo para o pleno desenvolvimento dos seus instintos vitais; será
um herói a viver além das fronteiras da moral, mas um herói so-
litário a esconder-se dos olhos do vulgo profano; agarrado à terra,
criará soberanamente os valores; sua vida será o cúmulo de ale-
gria exuberante e, ao mesmo tempo, o auge de dôres lancinantes;
duro para si e para outros, será insensível a todos os sofrimentos, e
praticará generosamente "a virtude que dá" (alemão: die schenkende
Tugend). O Super-Homem será o oposto do homem atual, do
"último homem", do burguês, do utilitarista, do coletivista, do ho-
mem que inventou a felicidade, que se afeiçoa aos seus pequenos
deleites, e reverencia, antes de mais nada, sua própria saúde. Daí
os sarcasmos virulentos de Nietzsche contra The Greatest Happiness
Principie dos inglêses (cf. § 103 II), contra o socialismo com seus
sonhos de igualitarismo e prosperidade universal, e sobretudo con-
tra o Cristianismo com seus instintos plebeus de compaixão e amor
ao próximo: "Vosso amor ao próximo é vosso mau amor a vós mes-
mos. Fugis ao próximo por mêdo a vós mesmos, e quereis fazer
de virtuosos: mas eu desmascarei vossa abnegação... Aconselho-
vos o amor ao próximo? Antes vos aconselho a fuga do próximo e o
amor ao longínquo!" (148).
O Super-Homem é um ser enigmático: o •autor lhe consagra
centenas de páginas para lhe celebrar as virtudes, mas o leitor fica
sem saber em que consiste a perfeição do herói nietzscheano ou pa-
ra quando pode esperá-lo. Ora nos é apresentado como um ani-
mal, a viver dos seus instintos brutais sem se sentir incomodado por
nenhuma reflexão de ordem moral; ora nos é mostrado como uma
espécie de místico tomado de anseios indefiníveis, a estender as
mãos para o outro lado do mar; ora se reveste de certas feições não
indignas de um asceta ou santo cristão, a praticar atos de abnega-
ção heróica e "a virtude que dá". Em certas passagens, o Super-
Homem é o produto de uma seleção meramente biológica; em ou-
tras, é a luminosa imagem da humanidade vindoura, a ser realiza-

— A palavra Super-Homem (alemão: Vbermensch) foi usada já em 1527 pelo


frade dominicano Hermann Rab, adversário de Lutero; como têrmo teológico era
bastante comum durante os séculos XVII e XVIII; Herder e Goethe (êste no
Faust, I 490) deram-lhe sentido profano.
— Nietzsche, Assim falava Zaratustra, I ("Sôbre o Amor ao Próximo").
--- 184 ---

da apenas mediante a energia férrea dos melhores entre os homens


atuais; em outras ainda, é o ideal absoluto, a impor ao homem a du-
ra e suprema obrigação de se superar constantemente a si mesmo.
Nietzsche é autor pitoresco e lírico; consegue cativar-nos com a mag-
nificência das suas imagens vistosas; entende perfeitamente da
arte de nos seduzir com sua linguagem musical e ditirâmbica, mas,
geralmente, não consegue tornar bem claro seu pensamento, nem
evitar contradições sobressalentes. Não obstante, podemos discer-
nir, através do seu impressionante aparato literário, através dos
seus caprichos incessantes, através das reviravoltas do seu pensa-
mento apaixonado, certo fio unificador: a luta desesperada da sua
alma orgulhosa e enclaustrado para se livrar totalmente do Deus
dos cristãos, e para conquistar um humanismo completamente au-
tônomo. Por trás de numerosos ideais contemporâneos (tais como
Progresso, o humanitarismo, a democracia, etc.) suspeitava êle
andarem fantasmas de um Cristianismo secularizado, e não se can-
çava de denunciá-los, tentando dispersá-los com as torrentes de seu
sarcasmo impiedoso. O "paganismo" de Nietzsche não é genuíno
ou espontâneo: falta-lhe tôda a singeleza natural; é um paganis-
mo forçado; não é expectativa ou mundividência aberta, e sim
apostasia deliberada.
V. As Duas Morais.
Talvez consigamos compreender melhor o que Nietzsche en-
tende por seu Super-Homem, se soubermos qual é seu derradeiro
ideal moral. O autor ufanava-se do seu "imoralismo", bem o sabe-
mos, mas mesmo assim não podia dispensar completamente a moral.
Do mesmo modo que Comte, destruia apenas para substituir, e
apregoava uma "revalorização de todos os valores" (alemão: die
Umwertung aller Werte). O ponto importante, para Nietzsche, é
fato de existirem duas morais: a moral dos fracos e a moral das
fartes.
A moral dos escravos, dos rebanhos, dos "muito-demasiado-
muitos" (alemão: die Sklavenmoral, die Herdenmoral, die Moral
der Viel-zu-Vielen) é uma evasiva covarde, subterfúgio miserá-
vel inventado pelo ressentimento daqueles que são incapazes de
transformarem sua vida num ato libertador, é uma vingança ilu-
sória. No fundo, é caso análogo à invenção de Deus pelos fracos,
variante da antiga fábula das "uvas verdes (149): já na Anti-

(149) . — Cf. Phaedrus, Fabulae, IV 3:


Fama coacta vulpes alta in vinea
Uvam adpetebat surranis saliens viribus;
Quem tantlere ut non potuit, discedens ait:
"ffilondum matura est: nolo acerbam numere".
— 185 —

güidade encontramos os delineamentos gerais desta teoria (150).


Os fracos, os impotentes, os atrofiados são incapazes de dizerem
"sim" aos sublimes valores da sua vida instintiva, chegando a in-
denizar-se da sua impotência vital por contraporem aos fortes o
seu "não" odioso. Este "não" é traição ao sujeito, ao "si", à sua
vontade de poder; é reação e não ação; o fraco precisa de algo
de externo para poder agir, ao passo que o forte age e cresce es-
pontaneamente, a dizer jubilosamente "sim" a si mesmo; o fraco
inverte a equiparação dos valores criados e vividos pelo forte
("bom = aristocrata = belo = poderoso = feliz = querido aos
deuses"), e diz: "Bom = humilde = feio = doente = sofredor =
necessitado", e assim fazendo, êle pensa em si; para êle, "mau"
é o outro, por êste pertencer a uma categoria de homens superio-
res, cujos valores vitais estão fora do alcance da plebe. "O mau",
aos olhos dos fracos, é "o bom" segundo os fortes, mas visto pelo
ôlho peçonhento do ressentimento (151) . A moral dos fracos
inaugurada, na nossa história, por Sócrates, êsse plebeu, profes-
sada pelos judeus, êsse povo desprezível, e depois entronizada pe-
los cristãos, êsses decadentes miseráveis — é o triunfo da plebe
rancorosa sôbre a aristocracia, e se Nietzsche fôsse coerente, de-
veria apreciar a fôrça da plebe, o poder da fraqueza, o "não" cria-
dor dos impotentes. Na realidade, só a despreza, reputando ser o
único valor dos fracos o fato de êles constituirem excelente mate-
rial para se exercitarem os instintos dos fortes.
A essa moral mesquinha e mentirosa Nietzsche opõe a moral
dos fortes, dos senhores (alemão: die Herrenmoral), que é aristo-
crática, auto-suficiente, espontânea, soberba, dura e heróica. Ago-
ra que Deus está morto, poderia parecer que tudo seja lícito para
o homem emancipado: já não existe a ordem: "tu deves" (alemão:
Du sollst). Sem dúvida, há muitos passos na obra nietzscheana
que poderiam justificar tal interpretação, e a êles têm recorrido
os imoralistas modernos. Contudo, o "Eu quero" (alemão: Ich
will) não é a última palavra do autor, visto que atrás do "Eu que-
ro" está a dura necessidade, o "Eu tenho de" (alemão: Ich muss).
O homem forte aceita com plena consciência o seu destino, che-
gando a entregar-se-lhe sem restrição, a amá-lo tragicamente, a
abraçá-lo heròicamente: é o amor fati. "Minha fórmula para ava-

(150) . — E', segundo Platão, a doutrina do sofista Cálicles (personagem, muito provà-
velmente, não histórico, mas criado pelo filósofo ), cf. Plato, Gorgias, 482C-
4860, onde lemos: "A lei foi inventada pela massa em vista dos seus próprios
interêsses. Para amedrontar os fortes e para impedi-los de o subjugarem, o
homem da massa lhes diz que tôda e qualquer superioridade é feia, e que a
injustiça consiste cabalmente em querer elevar-se acima dos outros. Mas a
natureza nos ensina que, não só entre os animais como também entre os ho-
mens, o critékio da justiça consiste na capacidade do forte de governar o fraco".
( 151 ) . Nietzsche, A Genealogia da Moral, I 8-9.
— 186 —

liar a grandeza humana é o amor fati; o grande homem não quer


nada alterado, nem no futuro nem no presente, nem em tôda a
eternidade; não só agüenta a necessidade, e muito menos ainda a
dissimula — todo e qualquer idealismo é mentira perante a ne-
cessidade, — mas a ama" (152) .
Nietzsche elimina, como materialista radical, a existência de
Deus; elimina também, como positivista integral, todo e qualquer
finalismo na organização do Universo. O mundo nietzscheano é
um mundo dionisíaco de perpétuo vir-a-ser, um mundo que se ex-
tasia de se criar e de se destruir a si mesmo. O derradeiro conhe-
cimento racional que nos é permitido a respeito do Universo, é a
"Vontade do Poder" (alemão: der Wille zur Macht), isto é, o ins-
tinto vital de tôdas as coisas de se manterem na vida e de aumen-
tarem, na medida do possível, suas fôrças existenciais. Apesar de
constituir uma unidade o Universo, há nele uma pluralidade (mais
ou menos hierárquica) e não simplesmente urna multiplicidade
(mais ou menos caótica), de sêres concretos, em que se manifesta,
de maneiras diversas, a Vontade do Poder. No homem, a Vontade
do Poder não consiste numa adaptação mecânica das fôrças finte-
liares a condições exteriores, como queria o Evolucionismo (153),
e sim uma campanha de conquistas, organizada pelo conjunto do
homem, uma fonte de energias criadoras. O corpo, a sede dos ins-
tintos, é a parte essencial do homem, e suas faculdades espirituais
são apenas os instrumentos do corpo. A vontade, apregoada por
Nietzsche, é a vontade não guiada pelo intelecto, isto é a vontade-
instinto, a vontade que se serve do intelecto como de seu prolon-
gamento natural. O Absoluto nietzscheano é a Vontade comple-
tamente destituída de intelecto. Schopenhauer et Nietzsche ont
discerne la sombre puissance qui est à la base de 1'Absolu; mais
ils n'ont pas aparçu qu'elle y, eGt éternellement couronnée par l'in-
telligence. Nietzsche veut surmonter le pessimisme de Scho-
penhauer; mais ii conserve le fondement de ce pessimisme, I'idée
que le principe des choses est une Volonté sans intelligence. Par
là, il s'ôte la possibilite d'une vraie affirmation de l'existence (154).
Daí sua afirmação trágica da vida.
As plantas brotam, crescem, florescem, murcham e morrem em
ciclos determinados; na natureza tudo é inocente; só o espírito hu-
mano mete sua interpretação subjetiva nas coisas. O homem for-
te, entregando-se à embriaguez dionisíaca da vida, consegue ele-
var-se à "inocência do vir-a-ser" (alemão: die Unschuld des Wer-

. — Nietzsche, Ecce Humo lin "Porque sou tão inteligente", 10) .


. — Nietzsche contra Darwin, cf. . O Crepúsculo dos Ídolos (in "Correrias de um
Homem Intempestivo", 14) e A Vontade do Poder, III, n.os 684-685.
. — Ch. Werner, La Philosophie Moderne, Paris, Payot, 1954, pág. 202.
-- 187 ---

dens), afirmando enfàticamente todos os valores positivos da vi-


da e negando resolutamente tudo o que poderia obstruí-los. Mas
em que consistem os valores positivos da vida, o autor deixa de
nos esclarecer.
VI. O Eterno Retôrno.
Para dar ao homem outro atributo divino, — a eternidade, —
Nietzsche renovou a doutrina clássica do Eterno Retôrno, doutrina
que devia conhecer muito bem devido aos seus estudos da Anti-
güidade, mas que êle teimava em considerar como uma grande des-
coberta sua (155); também alguns outros cientistas e filósofos ti-
nahm-na adotado durante o século XIX (156), mas ninguém a
propagava com tanto afinco como Nietzsche, que nela via o âma-
go da sua mensagem, o golpe mortal contra o mundo cristão. Via
muito bem como o Progressismo moderno e o otimismo das esco-
las liberais e socialistas eram derivados de esperanças escatológi-
cas, transformadas por uma sociedade secularizada em sonhos ter-
restres (cf. § 69 II) . O mundo dionisíaco de Nietzsche percorre,
num eterno espaço de tempo, tôdas as combinações possíveis das
suas fôrças vitais, cujo total é finito e constante; as combinações,
das fôrças que existem no momento atual, já existiram num mo-
mento passado, e existirão outra vez no futuro. Evolução é repe
tição! (157) . O profeta Zaratustra (158), a-o dirigir-se aos seus:
animais queridos, no fim do Livro III, alude ao Magnus Annus
dos antigos, e diz tal como outro pitagórico: "Volta o nó das cau-•
sas, no qual estou entrelaçado, — êle me criará de novo! Eu pró-
prio pertenço às causas do Eterno Retôrno. Hei de voltar, com
êste sol, com esta terra, com esta águia, com esta cobra, não para
uma vida nova, uma vida melhor ou uma vida semelhante, e sim
. — Nietzsche pretende ter descoberto "esta fórmula de afirmação vital, a mais.
elevada ao alcance do homem" no mês de agôsto do ano 1881, em Silvaplana.
(Suíça); é ela a idéia do livro Assim falava Zaratustra; o projeto desta obra.
foi lançado numa fôlha com a anotação: "seis mil metros além da humanidade e.
do tempo" (cf. Ecce Homo). — Nietzsche quer demonstrar "cientificamente"
a lei do Eterno Retôrno, em A Vontade do Poder, IV, III, e no opúsculo
póstumo: O Eterno Retôrno. — Cf. também § 73 II c.
. — Cf. Alfred Fouilée, Nietzsche et Pimrnoralismie, Paris, Alcan, 5-me edifico,.
págs. 207-222.
(157). — Nietgsche, O Eterno Retôrno I, 16: "Quem não acredita num movimento cir-
cular do Universo, tem de acreditar num Deus arbitrário". Eis o grande ar-
gumento decisivo do autor: Se Deus existe, deve ser soberanamente livre em
criar ou não o mundo, e em criá-lo como Ele o quer; não quero que minha:
liberdade seja limitada pela soberania de Deus; ergo, 'Deus não existe! — Os
outros argumentos alegados pelo autor, servem apenas para embrulhar êste ar-
gumento central.
(158) . — Por que Zaratustra, o primeiro fundador de uma religião "moral"? Porque Za-•
ratustra, mais de qualquer outro moralista, reconhecia a veracidade como a
suprema virtude; por isso convém que êle seja o primeiro a reconhecer seu,
êrro inicial. — Há outros motivos: Falar a verdade e atirar flechas, eis as
grandes virtudes dos persas! E afinal, os persas foram os primeiros a conceber
uma "filosofia da história", e Nietzsche quer desmoronar a concepção cristã.
da história (cf. § 73 II, nota 35c) .
— 188 —

hei de voltar eternamente para uma vida idêntica a esta em to-


dos os pontos, até nos pormenores, a fim de vos ensinar outra vez
o Eterno Retôrno de tôdas as coisas...".
E' dificílimo, se não impossível, harmonizar a lei do Eterno
Retôrno com a doutrina do Super-Homem, e os adeptos de Nietzs-
che são obrigados a dar cambalhotas inverossímeis para nos con-
vencerem de uma conexão lógica. Seja como fôr, para o autor do
Zaratustra, o Eterno Retôrno era um motivo a mais para afirmar
heroicamente e tràgicamente a vida dionisíaca: por mais absurdo
que tudo seja, por mais desalentador que seja o domínio dos fra-
cos, cantemos o belo hino da rendição total à vida! (159). O que
para os antigos era fonte de moderação, de pessimismo, de resig-
nação ou de pranto, o que para alguns modernos (160) era causa
de desespêro, transformava-se, para o nosso autor, em motivo de
afirmar jubilosamente a existência em frases poèticamente caden-
ciadas, mas incapazes de nos ocultarem uma dor pungente. "Tu-
do vai, tudo volte, eternamente gira a roda da existência. Tudo
morre, tudo desabrocha de novo; eternamente corre o ano da exis-
tência . Tudo quebra, tudo se compõe de novo; eternamente se
constrói a casa idêntica da existência. Tudo se aparta, tudo se
cumprimenta de novo; eternamente permanece fiel a si o anel da
existência... Ai! o homem volta eternamente! O homem mesqui-
nho volta eternamente... Eterno Retôrno também do mais mes-
quinho, — eis meu tédio de tôda a existência!" (161).
VII. A Crítica da Cultura Ocidental.
A crítica nietzscheana da cultura ocidental é uma inversão ra-
dical das normas tradicionais.
Sócrates, como já vimos, é o inimigo mortal de Nietzsche: é o
triunfo do plebeu sôbre a aristocracia, da razão sôbre os instin-
tos vitais. Ao passo que os gregos pré-socráticos criavam deuses
que simbolizavam sua vontade de poder, praticavam a filosofia pa-
ra nela possuirem uma mão poderosa dos seus instintos vitais, e

. — Nietzsche, Assim falava Zaratustra, III (capítulo final: Das Ja-und Amen-
Liecl).
. — Por exemplo, Guyau (1854-1888):
Puisque tout se ressemble et se tient dans ?espace.
Tout se copie aussi, j'en ai peur, dans le temps;
Ce qui passe revient, et ce qui revient passe:
C'est un cercle sans fin que la chalne des ans...
E Shelley (1792-1822) in Deltas:
Oh, ccase! must bate and death return?
Cesse! must men kill and dy?
Cease! drain not to its dregs the um
Of bitter prophecy!
The world is weary of the past,
Oh, might it die or rest at last!
(161). — Nietzsche, Assim falava Zaratustra; III (in Der Genesende) .
— 189 —

criavam o belo sem se incomodarem com uma fórmula racional da


beleza, Sócrates, racionalista incurável, que considerava a vida co-
mo uma doença (162), inverte essa ordem, por acreditar num
Deus pessoal, por apregoar a vida especulativa, e por racionalizar
e moralizar a arte. Os filólófos alexandrinos são o triste produto
do processo de racionalização, iniciado por Sócrates: são homens
"teóricos", cuja única ambição é a "objetividade", isto é, transfor-
marem-se num zero (162a).
Mas o que Nietzsche odeia encarniçadamente, é o Cristianis-
mo, essa religião nascida no Império Romano já havia muito de-
cadente: é uma revolta de escravos possuídos de um rancor doen-
tio contra todos os instintos vitais e todos os valores terrestres.
O autor mostra, em geral, certo respeito por Jesus, e não quer res-
ponsabilizar o "galileu" pelas deformações d o Cristianismo que é
.

exatamente o contrário de tudo quanto Jesus queria . O Cristia-


nismo é produto híbrido de elementos judaicos e helenísticos, fa-
bricados por uns decadentes ressentidos, entre os quais cumpre des-
tacar a figura de Paulo de Tarso. Em Jesus tudo era natural, es-
pontâneo, interior, ingênuo e genuíno; em suma, Jesus era homem
de "instintos fortes", e adversário irredutível de dogmas, culto, sa-
cerdotes, prêmios e castigos; sua morte foi um ato afirmativo da vi-
da; com efeito, o "Eu-angélion" (Boa Nova) morreu na Cruz há
2.000 anos, mas seus pretensos sequazes exploraram a figura de
Jesus, transformando a Boa Nova num "Dys-angélion" (mensagem
ruim) . Paulo de Tarso, rabino lucífugo, exteriorizou, adulterou e
sofisticou a mensagem existencial do Mestre, atribuindo um cará-
ter transcendente ao que, em Jesus, tinha apenas valor simbólico.
O Cristianismo histórico é uma religião decadente: introduziu no
mundo as noções perversas de culpa e graça, de pecado e redenção,
de castigo e remuneração no além-túmulo; propaga a moral dos
rebanhos, e uma ascese grosseira; o Cristianismo causou a queda
do Império Romano, e impediu a expansão da cultura muçulmana
na península ibérica; ensina a humildade, a compaixão e o amor ao
próximo, acabando por aniquilar os instintos vitais do homem for-
te; frisa a igualdade de todos os homens perante Deus, preparan-
do assim o caminho para o igualitarismo democrático dos tempos

(162) . — Cf. Plato, Phaedo, 118A, onde as últimas palavras de Sócrates cão: "O'
Cristão, ainda estamos devendo um galo a Esculápio (o deus da saúde); não
esqueças de lho sacrificar". Segundo uma interpretação moderna (muito duvi-
dosa, e desmentida pelo testemunho de autores antigos), Sócrates teria consi-
derado o sacrifício de um galo a Esculápio como um ato de gratidão, visto que
a vida é uma doença.
(162a). — Cf. Assim falava Zaratustra, II 15:
Vonde der unbefleckten Erkenntniss (=_. "Sôbre o Conhecimento Imaculado") .
— 190 —

modernos; impinge aos fiéis o desprêzo do mundo, dirigindo-lhes


os olhos para uma realidade meta-histórica e ilusória (163) .
O mundo ocidental teve uma época pouco duradoura de virtà
durante a Renascença italiana, em que os próprios papas estavam
prestes a liqüidar o Cristianismo. Mas eis que de repente veio da
Alemanha outro plebeu, desta vez um monge mesquinho, chamado
Lutero, um rústico indiscreto e malcriado, um homem de vistas
curtas sem a menor noção de etiqueta e cerimônias: êste bárbaro
metera na cabeça que o homem tem o direito de conversar direta-
mente com Deus sem a intervenção de cerimoniários. Começou
novamente a luta entre os instintos sadios e a razão decadente, en-
tre o corpo e o espírito, entre os aristocratas e os plebeus, e nova-
mente venceram os últimos. O homem moderno, apesar de já não
ser cristão, continua aderindo a muitos ídolos cristãos: o igualita-
rismo hediondo, o endeusamento da razão (pela qual êle julga
poder libertar-se das fôrças obscuras e irracionais da vida), e a
crença inabalável no Progresso (substituto da antiga teleologia
cristã).
Apesar das suas invectivas ocasionais contra os judeus, a des-
peito do seu encômio da "bêsta loura" (alemão: die blonde Bestie),
não obstante seus conselhos de criar uma raça superior mediante
seleção rigorosa, Nietzsche não pode ser considerado, sem mais
nem menos, como o pai intelectual do anti-semitismo, da teutoma-
nia, ou do racismo. Sem dúvida, encontram-se na sua obra nume-
rosos passos a que os nazistas poderiam reportar-se e, de fato, se
reportaram, mas a cada uma dessas sentenças pode ser oposta ou-
tra sentença de tendência bem diferente. Nietzsche era espírito
de contradição, e a perplexidade dos seus leitores, ao procurarem
nele uma doutrina bem definida, decorre, em última análise, da
confusão no próprio autor. Boiando sôbre as ondas dos seus im-
pulsos violentos, mas momentâneos, oscilava sem rumo entre o
amor e o ódio.
Essa oscilação de Nietzsche entre o amor e o ódio (164) po-
demos verificá-la sobretudo na sua atitude ante o Cristianismo e
a Alemanha. "Cristo na Cruz é o símbolo mais sublime, ainda ho-
je" (165); o Catolicismo granjeia por certas razões a simpatia do
autor: ainda tem em alta estima o mito, ao passo que o Protestan-
tismo o racionalizou; o Catolicismo ainda possui uma instituição
aristocrática no sacerdócio um culto requintadamente simbólico na

— Cf. Nietzsche, A Vontade do Poder, II n.os 158-252; A Revalorização de todos


os Valores, Livro I: O Anticristo.
— J. Hirschberger, Geschiehte der Philosophie, Freiburg, Herder, 1952, II págs.
472-477, fala em Hassliebe, isto é, amor misturado com sentimentos de ódio,
ou ódio misturado com sentimentos de amor.
—. Nietzsche, A Vontade do Poder, II n.o 219.
— 191 —

liturgia, etc. Quanto à Alemanha, Nietzsche é muitas vêzes in-


justa para com sua pátria. Os alemães são malcriados e grossei-
ros, e corrompem a cultura européia; exalam o mau cheiro de cer-
veja; alimentam-se preferencialmente de jornais, política, cerveja
e música wagneriana; é humilhante dar-se com um alemão; seis
filósofos franceses (Montaigne, La Rochefoucauld, La Bruyère,
Fontenelle, Vauvenargues e Chamfort) valem mais do que todos
os "pensadores" alemães, etc. Não gostava da Prússia ostentosa
e banal; no fim da sua vida, gabava-se da sua origem polonesa, aliás
fictícia (Nietzsche seria Nietzky). Via bem o ridículo do nacio-
nalismo febril: "Tenhamos sem temores a pretensão de sermos bons
europeus, e trabalhemos ativamente pela fusão das nações!" (166).
Mais uma vez: Nietzsche é autor empolgante e arrebatador,
mas sua linguagem demasiado mitológica prejudica-lhe a clareza
da expressão, suas paixões tiram-lhe tôda a serenidade, e seu or-
gulho fá-lo perder de vista tôdas as proporções. Sua jactância,
originada por um egocentrismo mórbido, acaba sendo insuportá- •
vel, e sua pretensão a proclamar verdades absolutamente originais
não tem muitas vêzes o menor fundamento. "Eu contradigo como
ninguém antes de mim contradisse, e contudo sou o contrário de
um espírito negativo. Sou portador de uma Boa Nova como nin-
guém antes de mim, e sei de tarefas tão excelsas que, até agora,
lhes faltou o conceito; só a partir de mim, existem novamente boas
esperanças. Entretanto, sou necessàriamente também o homem
da fatalidade... Não sou homem, sou dinamite... Só a partir de
mim, instala-se na terra uma política grandiosa... Não quero ser
santo, antes quero ser bufão... Talvez seja, de fato, bufão" (167).
"Assim falava Zaratustra" é o título bastante peremptório da
obra mais conhecida de Nietzsche; apesar da linguagem apodíctica
do autor (168), o leitor não consegue averigüar o que dizia e pen-
sava Nietzsche. E aí está o testimonium paupertatis da filosofia
vitalista.
D. OS FANÁTICOS.
§ 112. Variantes da presunção coletiva.
Afirmam os etnólogos que tribos primitivas costumam inven-
tar apelidos depreciativos para os seus vizinhos, reservando para
si nomes formosos tais como: "os heróis, os filhos dos deuses", etc.

(166) . — Nietzsche, Humano demasiado Humano, n.o 475.


(167). — Nietzsche, Ecce Homo (capítulo final, n.o 1; ordem das frases ligeiramente
alterada) .
(168) . — Uma das obras de Nietzsche: O Crepúsculo dos Ídolos (1888) tem por sub-
título: "Como se filosofa com o martelo" (alemão: Wie man mit dem Hammer
philosophiert).
— 192

Tal costume não se limita a tribos primitivas; os povos civilizados


não são mais modestos do que seus irmãos atrasados, e geralmente
os sobrepujam no engenho de descobrirem argumentos impressio-
nantes em favor da sua superioridade. Não há ninguém, quer seja
primitivo, quer seja civilizado, que se ufane de pertencer a um
grupo inferior: o fato já prova bastante como, nestas afirmações,
se fazem valer os instintos de dominar. Por outro lado, devemos
reconhecer que o nível cultural dos diversos povos e raças varia
consideràvelmente: proclamar um igualitarismo irrestrito entre êles
seria uma solução simplista e irrisória; o pecado do racismo e de
certo tipo de colonialismo consiste em querer perpetuar uma desi-
gualdade bem real, atribuindo-a a uma fatalidade ou dando-lhe um
prestígio pseudo-religioso. Também são consideráveis as diferen-
ças entre os diversos povos civilizados: cada um dêles possui os
seus próprios valores insubstituíveis, e concorre para maior ornato
do manto divino, que é o mundo histórico; na medida em que uma
nação possui grau mais alto de cultura, torna-se geralmente mais
consciente da sua própria missão individual. Varrer essas diferen-
ças culturais e substituí-las por uma única cultura planetária, sig-
nificaria empobrecimento, monotonia e confusionismo. Se é bom
que o homem se arraigue firmemente no seu meio social, afeiçoan-
do-se aos costumes, à tradição e à cultura do seu povo, é lastimá-
vel que essa afeição o leve muitas vêzes ao exclusivismo, à ceguei-
ra, à arrogância, ao ódio. O homem esquece fàcilmente que suas ri-
quezas não passam de dádivas; quando as usurpa em domínio ab-
soluto, revela sua pobreza interior, e geralmente os pobres lançam
mão dessa riqueza, utilizando-a contra o ci-devant proprietário.
I. Gregos e Bárbaros.
A palavra "bárbaro" 'designava inicialmente um estrangeiro
que falava um língua incompreensível para o grego (cf. § 22 I, no-
ta 16) . Mas o grande surto da civilização helênica, nos séculos VI
e V a. C., fazia com que o têrmo ficasse com sentido depreciritivo,
e as guerras persas que tanto danificaram a Grécia, não pouco con-
tribuíam para que se lhe ligassem fortes sentimentos de ódio e de
vingança. "Grego" era o homem livre, a participar ativamente dos
negócios da pólis, disposto a defendê-la de todos os ataques, a exer-
citar seu corpo nos gymnásia, não para fins militaristas, mas como
meio de educação (grego: paidéia), e a desenvolver harmônica-
mente suas faculdades mentais; "bárbaro" era o escravo, a obede-
cer cegamente às ordens caprichosas de um déspota, a levar uma
existência indolente ou utilitarista, ou então, a banhar-se num luxo
amolecedor. Ninguém traduz melhor do que Heródoto os senti-
mentos briosos dos gregos em relação aos bárbaros; entretanto,
193 ---

com sua amável ironia comunica-nos que os per .sas medem o valor
de povos estrangeiros pelo grau de vizinhança com a Pérsia: quanto
mais próximos aos persas, tanto mais os estimam; quanto mais afas-
tados dêles, tanto menos os avaliam (169). Quem viaja muito
com os olhos desimpedidos, acaba sendo prudente e experimentado,
e já não acredita na superioridade absoluta ou inferioridade abso-
luta de povo nenhum. Por isso Heródoto, apesar de ser grande pa-
trióta e sincero admirador das façanhas feitas pelos gregos, prin-
cipalmente pelos atenienses, fala com muita franqueza nas virtudes
dos "bárbaros" e nos vícios dos "gregos".
Tal sublime isenção de ânimo não pode ter sido a qualidade
do povo grego na sua totalidade; não podemos descrever aqui a
história do "nacionalismo grego", mas temos motivos de sobejo para
acreditar que a maior parte dos helenos concordava plenamente com
as palavras de Ifigênia, figura dramática de Eurípides: "Convém
que os gregos dominem sôbre os bárbaros, e não os bárbaros sôbre
os gregos. São aquêles uma raça de escravos, ao passo que êstes
nasceram livres" (170) . Até espíritos esclarecidos, tal como Aris-
tóteles (171), defendiam a "escravatura natural" dos bárbaros, pre-
conceito êsse inveterado contra o qual eram improfícuos os protes-
tos ocasionais de alguns indivíduos raros. No ano 380, o retor Isó-
crates afirmava: "Tanto supera nossa cidade (isto é, Atenas) os
demais homens na arte de pensar e de falar que seus discípulos se
tornaram os mestres dos outros; é devido a ela que o nome dos gre-
gos já não indica a raça, mas certa disposição do espírito, e que são
chamados de gregos antes os que compartilham conosco a cultura
do que aquêles que conosco têm em comum a mesma origem fí-
sica" (172) . Estas palavras têm sido muitas vêzes mal interpre-
tadas: para Isócrates, os bárbaros, e principalmente os persas, eram
os inimigos naturais do povo grego (173); o retor não via num bár-
baro, por mais helenizado que fôsse, um "grego"; suas palavras sig-
nificam que, entre os helenos, só pode ser verdadeiramente "grego"
quem possua a formação ática (174).
As conquistas de Alexandre Magno modificaram profunda-
mente a vida política cultural dos gregos; o grande rei, homem im-
petuoso e destruidor de esquemas convencionais, colimava a fusão
entre os diversos povos do seu Império e fazia caso de mostrar acs

(169) . Herodotus, Historiae, I 134, 2.


<170) . — Eurípides, lphi4enia in Tauride, 1400-1401.
. — Aristóteles, Política, I 1, 5; cf. ibidem, IIi 9, 3, etc.
. — Isócrates, Panegyricus, 50.
. Isócrates, Panegyricus, 158; cf. Panathenaicus, 163.
4174). Cf. Thucydides, Historiae, II 41, 1. — Cf. Werner Jaeger, Paidéia,
1955 2, III, págs. 131-144, e U. Wilcken, Alexandre lo Grand, Paris, Payot,
1952, págs. 27-28.

Revista de História n.o 29


— 194 —

outros o caminho novo (175), desviando-se dos conselhos que lhe


foram dados por seu preceptor Aristóteles (176) . Ao mesmo tem-
po, juntamente com a decadência da antiga pólis, surgia a palavra
kosmopolítes, ou "cidadão do Universo": o cínico Diógenes é o pri-
meiro a atribuir-se êste qualificativo (177) . Na literatura estóica
torna-se lugar-comum a oposição entre a "pequena república" e a
"grande república", principalmente nos tempos do Império Roma-
no (178) . Pois os romanos, outrora igualmente considerados pelos
gregos como "bárbaros", entraram na unidade cultural do mundo
helenístico em virtude das suas conquistas brilhantes, e logo come-
çaram a usar o mesmo têrmo depreciativo, aplicando-o a todos os
não-gregos ou não-latinos. E' característico do gênio jurídico dos
romanos o fato de que êstes consideram a civilitas como o cunho
da sua superioridade sôbre os bárbaros desordenados; esta palavra in-
traduzível indica, antes de mais nada, "respeito pela ordem pública
obediência às leis" (cf. § 29 IV), embora não lhe faltem reminis-
cências do antigo ideal da paidéia grega, mas esta tornada mais
prática, mais utilitária, mais "retórica". Para o romano genuíno, a
principal tarefa da sua missão civilizadora consistia em criar ordem,
em administrar o mundo, e em divulgar certos conhecimentos úteis
práticos; sem dúvida, idolatrava a retórica (= a literatura), mas
esta lhe era mais um ornamento exterior da vida do que uma neces-
sidade vital . Para êle, "um só Catão valia mil Sócrates" (179) .
Contudo, o Império Romano conquistou vastos territórios para a
expansão da cultura helenística e fêz com que as noções de "ordem
organização" se tornassem inseparáveis do conceito da "civiliza-
ção". Outrossim, mostrava-se bastante generoso para com os an-
tigos "bárbaros", integrando-os numa unidade política, social e re-
ligiosa . A influência dos estóicos não era estranha a esta tentativa
de unificar o mundo.
Mas foi o Cristianismo que proclamou resolutamente a unida-
de do gênero humano, não num sentido cósmico e panteísta como os
Estóicos nem inspirado pelo desêjo de subjugar o mundo como as
legiões de Cipião ou de César (cf. § 75 V); ao mesmo tempo, fri-
sou a vocação espiritual e transcendente de todos os povos, sem dis-
criminação de raças, povos ou culturas. "Não há Judeu nem. Gre-
go; não há servo nem livre; não há homem nem mulher. Porque

— Arrianus, Anabasis, VII 4, 4-8, etc.


—. Cf. Strabo, Geographica, I 4, 9; Plutarchus, De Alex. M. Fortuna, 5-5.
— Cf. Diogenes Laertius, Vitee Philosophorum, VI 63.
— Cf. Sêneca, Ad Serenum de Otio, IV; Marcus Aurelius, Ad Seipium, VI 44;
4; Epictetus, Dissertationes, III 24, 10-11; etc.
— Cf. Florus, VII (poeta romano da época dos antoninos):
Sperne mores transmarinos, mille habent °Iludas;
Cive romano per orbem nervo vivit rectius:
Quippe •alim unum Catonem quem trecentos Socratas.
-- 195 ---

todos vós sois um só em Jesus Cristo" (180) . Mas essa unidade


mística não vem abolindo as diferenças reais que existem entre os
indivíduos e os povos batizados, enquanto vivem no tempo; a Igre-
ja respeita-as, e abrange-as a tôdas elas na sua catolicidade (181) .
Quando a Europa ainda era cristã, — embora no sentido forçosa-
mente precário da palavra, — havia muito pouco nacionalismo e
muito menos racismo; a Christianitas abarcava tôdas as diferenças
regionais e culturais, se nem sempre na prática, ao menos na teo-
ria, e essa conceção tem inegàvelmente algo de grandioso e invejá-
vel. Com o declínio dêsse ideal ia crescendo o particularismo dos
povos, a culminar no frenesi do racismo moderno. Segundo Arnold
Toyinbee, autor protestante que faz questão de declarar não ter pas-
sado para o Catolicismo (182), Modern Western Race-feeling has a
Protestant Background, e é uma variante moderna do "antigo povo
eleito".
II. Judeus e Infiéis.
Aqui, porém, surgem novos problemas.
Não é racista o Antigo Testamento? Poderia parecer que os
judeus tenham sido os racistas mais fervorosos de todos os tempos,
e que, ao extirparem os "gentios", tenham cumprido as ordens cruéis
de um deus racista. Entretanto, são essenciais as diferenças entre
o racismo moderno e o racismo judaico, se é que podemos empregar
esta expressão. Israel devia seu lugar privilegiado entre as nações
não à sua numerosidade, nem às suas qualidades artísticas, filosó-
ficas ou culturais, nem à sua moralidade elevada, mas exclusiva-
mente à livre eleição de Deus, soberano senhor de todos os povos.
Tampouco tinha essa eleição caráter particularista ou nacionalista,
embora os judeus estivessem sempre inclinados a interpretá-la as-
sim (183), mas Israel tinha sido eleito como uma pars pro toto,
uma pequena minoria a serviço de tôda a humanidade; o messia-
nismo dos judeus tinha caráter universal. As guerras sangrentas
que o povo eleito fazia contra os "gentios", não decorriam de uma
teoria racial e sim de uma tentativa enérgica, (até feroz, aos olhos
dos modernos) de manterem pura a sua vocação especial e de não
se confundirem com os idólatras. Pertencer a outra raça ou a ou-
tra cultura não constituía crime ou pecado, e muito menos ainda
uma fatalidade: os gentios eram combatidos como infiéis, mas os
que entre êles acreditavam no Senhor, eram admitidos como "pro-
sélitos". Esta palavra tem origem nitidamente bíblica.
— São Paulo, Epístola aos Gálatas, III 28; cf. Epístola aos Coloasenses, III 11.
— Cf. § 75 V-VI, e Yves M.-J. Congar, L'Église Catholique devant la Question
Raciale, Unesco, Paris, 1953.
— Arnold J. Toylnbee, A Study of History, I págs. 211-216.
Cf. § 74 I d.
196 ---

O Novo Testamento, que prega o amor a Deus e ao próximo,


não ordena a extirpação dos infiéis, e não admite discriminação
cultural ou racial. Se os cristãos medievais faziam muitas guerras
aos muçulmanos e perseguiam cruelmente os judeus encerrando-os
em ghettos, não era o motivo dessas hostilidades o racismo: proce-
diam contra êles simplesmente como contra infiéis, do mesmo mo-
do que tomavam também medidas drásticas contra os hereges, os
inimigos internos da sociedade cristã. Podemos condenar essas guer-
ras religiosas em virtude dos princípios do Evangelho, mas não de-
vemos esquecer que o Evangelho era um livro verdadeiramente sé-
rio para os medievais, ao passo que para nós, muitas vêzes, não pas-
sa de uma relíquia venerável, mas superada; podemos lastimar (com
muita mais razão!) que as guerras religiosas tenham sido deturpa-
das por motivos egoístas e por atos brutais, mas não devemos per-
der de vista que também os modernos ideais humanitários constituem
freqüentemente um pretexto para praticarmos atos de egoísmo re-
quintado. Ninguém deseja reiniciar as guerras religiosas da Idade
Média ou reencetar a intolerância agressiva dos tempos idos, mas
seria bom que os condenadores das praxes antigas, ao tratarem dês-
te assunto, mostrassem certo senso histórico. Lutar por um credo
religioso que se vê ameaçado não tem menos dignidade do que lu-
tar por certo nível de vida que se vê contestado. A luta religiosa
é, em última análise, uma discussão armada sôbre o significado da
vida; a luta econômica não passa de uma briga entre animais de
rapina. Defendendo esta tese, não estamos defendendo a volta à
Inquisição.
Não podemos expor aqui a longa e, muitas vêzes, dolorosa his-
tória do anti-semitismo através dos séculos; remetemos o leitor
interessado a dois livros recentemente publicados que lhe poderão
fornecer muitas informações úteis (184). O problema do anti-
semitismo é muito complexo, não podendo ser devidamente trata-
do em duas ou três páginas; o anti-semitismo moderno, de que ha-
vemos de falar nos parágrafos seguintes, combate o judeu, não por
motivos religiosos, — isto é, por uma certa convicção reputada er-
rônea e até perniciosa, — mas por uma fatalidade biológica, e por
isso é muito pior ainda do que as perseguições antigas que, por
mais cruéis e hipócritas que fôssem muitas vêzes, sempre deixavam
aos judeus a possibilidade de se converterem livremente aos cris-
tianismo. O ódio aos judeus, — sinal da eleição ou da reprovação
divina? — já remonta à Antigüidade e tem algo de verdadeira-
mente misterioso: mas não devemos esquecer que, atrás dos mo-

(184). — F. Lovsky, Antisémitisme et Mystère d'Israel, Paris, Albin Michel, 1955;


Jules Isaac, Genèse de 1'Antisémitisme, Paris, Calmann-Lévy, 1956.
--- 197 —

tivos religiosos tão levianamente alegados, muitas vêzes se ocultam


razões simplesmente inspiradas pela inveja econômica e social.
Qui veut battre son chien, I'accuse de la rage.
III. A Aliança Monstruosa da Lingüística com a Biologia.
Os judeus e os cristãos medievos dividiam os povos da terra, aliás,
mal conhecidos, em três grandes grupos: os camitas, os semitas e
os jafetitas, descendentes, respectivamente, de Cão, Sem e Jafet, os
três filhos de Noé (Gên., IX 18-29; X) . A resenha da Bíblia não
tem a pretensão de ser completa, limitando-se à raça branca e, den-
tro dos povos da raça branca, àquelas tribos e nações que tinham
certo interêsse para os hebreus; abrange apenas os habitantes da
Ásia Ocidental e a parte oriental do Mar Mediterrâneo. Foi sem
fundamento que alguns autores anglo-saxônios dos séculos XVIII
e XIX como também o autor católico Joseph de Maistre identifi-
caram a estirpe maldita de Cão com a raça negra, consideranda-a
como divinamente predestinada à escravatura.
O grande naturalista sueco Carlos Lineu (1707-1778) dividia
o Hcmo Sapiens em quatro variedades, conforme os quatro gran-
des continentes, atribuindo a cada uma delas certas qualidades mo-
rais: o Homo Americanus, governado pelo costume; é tenaz, satis-
feito e livre; o Homo Europaeus, governado pelos ritos: é descuido-
so, vivaz, e inventivo; o Homo Asiaticus, governado pela opinião:
é severo, altivo e mesquinho; o Homo Afer, governado pelo capri-
cho: é astuto, vagaroso e negligente (185) . O professor alemão
João Frederico Blumenbach (1752-1840) foi o primeiro a adotar
uma divisão das raças humanas conforme a côr da pele: na sua
obra De Generis Humani Varietate Nativa (1775) admitia cinco
raças: a raça branca ou caucásica, a raça amarela ou mongólica, a
raça negra ou etiópica, a raça vermelha ou americana, a raça par-
da ou malaia. Depois foram sendo adotados numerosos outros cri-
térios: a forma e a côr dos cabelos, a forma e o tamanho do crânio,
do nariz, etc., a estatura, os grupos sangüíneos, etc. O médico ho-
landês Pieter Camper (1722-1789) tratou especialmente do ângulo
facial das diversas raças humanas, relacionando-o com a inteligên-
cia (na sua obra póstuma: Dissertation Phy;sique, 1791); o fisió,
logo sueco Anders Retzius (1796-1860) inventou os têrmos: "do-
licocéfalo", e "braquicéfalo".
Destarte iam nascendo duas novas disciplinas: a etnologia e
a antropologia (186) que, conforme as tendências da época, eram
(185). — Cf. Julian S. Huxley y A. C. Haddon, Los Problemas Raciales, Editorial
Sudamericana, Buenos Aires, 1951 (trad. esp. de Víctor Aizábel) .
(186) . — O fundador da etnologia moderna é o inglês afrancesado William F. Edwards
que, em 1829, escreveu a A. Thierry sua famosa carta: Sur les Caractères
physiologiques des Races Humaines (cf. § 39 IV, nota 45): "uma nova dis-
--- 198 --

cultivadas em sentido predominantemente naturalista: o homem


era estudado como um apêndice do reino animal, — apêndice um
tanto embaraçoso porque teimava em não quadrar perfeitamente com
os esquemas preconcebidos dos pesquisadores racionalistas e, mui-
tas vêzes, materialistas. A moda da época queria que o homem
fôsse apenas um animal evoluído, sem mais nem menos, e que a
razão fôsse um produto tardio da evolução biológica. Buscava-se
com muito afinco the missing link, mediam-se os crânios e as os-
saturas, e formulavam-se leis que, atualmente, são tidas por hipó-
teses ingênuas e simplistas. Acumulavam-se muitos conhecimen-
tos sôbre o homem, isto é, sôbre as condições biológicas da vida
,

humana, mas ia sendo esquecido o homem no que tem de essen-


cial. As ciências "positivas" haviam de resolver o problema da exis-
tência humana, e da cultura humana. Só depois se verificou como se
entrelaçaram as paixões e os interêsses a essas especulações preten-
sarnenta científicas.
Segundo o racismo, correspondem a certas qualidades físicas
certas qualidades psicológicas e morais; as duas são hereditárias e
fatais. E' novo tipo de determinismo histórico, desta vez de cará-
ter agressivo e, quase sempre, político. Já vimos outra vez (187)
que o fator biológico, por mais importante que seja, não se presta
a um exame puro e isolado, •e que as qualidades supostamente ra-
ciais dos povos históricos são o resultado complexo de numerosos
fatôres heterogêneos, impossíveis de desemaranhar. Os biólogos
hodiernos são muito mais prudentes do que os do século XIX (188).
Foi 'desastrosa a aliança da biologia com a lingüística .
Em 1786, Sir William Jones, o fundador da Royal Asiatic So-
ciety of Calcutta (1784), descobriu o parentesco entre o sânscrito
e um grupo de idiomas europeus (grego, celta, latim e alemão); uns
trinta anos depois, o alemão Francisco Bopp lançou os alicerces
científicos da gramática comparada das chamadas línguas indo-ger-
mânicas ou indo-européias (cf. § 59 II) . A glotologia recém-nas-
cida, com a ousadia peculiar a novas disciplinas, pouco se conten-
tava com o seu âmbito natural: o conceito da unidade lingüística
ia-se transformando, aos poucos, num conceito de unidade cultural,
política, religiosa e "racial" (189), e a lingüística tornava-se a hu-
ciplina poderia prestar serviços muito grandes ao estudo das qualidades bera.
ditarias". Em 1839 foi fundada, em Paris, a Société d'Ethnologie, em 1842, a
Ethnological Soeiety em Londres. A palavra "etnologia" foi substituída pot
"antropologia" em 1859 (em Paris) e em 1863 (em Londres).
— Cf. § 11 II, e § 20 II.
— Recomendamos ao leitor, além do livro indicado na nota 185, Henri-V. Vallois,
Les Races Idurnaines, Paris, Presses Universitaires, 1951 (na coleção: "Que
sais-je?").
— A etimologia da palavra "raça" é discutida: segundo alguns, seria de origem
árabe (rez = "cabeça"); segundo outros, derivaria da forma vulgar (vão
abonada): retia = ratio ("qualidade, natureza", etc.), e teria entrado nos idio-
mas modernos via o italiano (razza).
— 199 —

milde ancila da antropologia biológica. Quem muito contribuiu


para a nefasta equiparação: unidade lingüística = raça, foi o ale-
mão Max Müller (190), embora mais tarde fizesse o possível para
corrigir o êrro. Foi êle (com de Gobineau) um dos primeiros a es-
tender o têrmo "ária" ou "ariano", que originàriamente indicava ape-
nas o ramo oriental da família indo-européia (191), à totalidade da
mesma. Introduzira-se o "ária" na ciência, e não tardou que êsse
antepassado mítico da gloriosa cultura ocidental ficasse com o mo-
nopólio absoluto de tôda e qualquer verdadeira obra civilizadora .
Nas artes e nas letras, na política e nas guerras, na religião e na
moral, o "ária" era o único criador de valores superiores, ao passo
que as outras raças não passavam de imitadores ou de parasitas.
IV. Ex Septentrione Lux! (192).
Dever compartilhar com tantos povos asiáticos, europeus e
americanos o monopólio da cultura humana, era uma honra bem
exígua. Por isso fazia-se mister reduzir a raça dos homens supe-
riores a um grupo bem menor. O antropólogo francês Georges Va-
cher de Lapouge (1854-1919), discípulo de Gobineau, dividia as ra-
ças européias em três grandes grupos: o dolicocéfalo ou nórdico, o
braquicéfalo ou alpino, e o mediterrâneo ou homo contractus. Dos
três grupos o dolicocéfalo (muitas vêzes, também chamado de "ária"
por excelência) é o mais prendado: quase tôdas as importantes con-
quistas culturais foram feitas por êle; a civilização humana pro-
gride ou diminui à medida que progride ou diminui o elemento do-
licocefálico (193).
A lenda do homem nórdico granjeou muitos adeptos na In-
glaterra (194) e na América do Norte (195), mas principalmente
na Alemanha, onde o novo credo racial se compunha de três artigos:
"Olhos azuis, cabelos louros e honra" (195a) . Recorria-se à au-
— Cf. § 107 I d, nota 36.
— Cf. § 59 II, nota 106.
Variante do antigo adágio Ex Oriente Lux (= "Do Oriente vem a luz da
civilização"), adágio cuja origem não conseguimos indagar. Muito provavel-
mente forjado sob a influência da Bíblia, o têrmo talvez contenha uma re-
miniscência ao Ev. Mt. II, 2: "Onde está o rei dos judeus que nasceu? Porque
nós vimos a sua estréia no Oriente, e viemos adorá-lo". — Pela prioridade
de uma civilização ocidental luta o Prof. Dr. Adelino J. da Silva d'Azevedo (in
Anuário da Fac. de Filos., etc. "Sedes Sapientiae", 1955-1956, págs. 105-143).
Lapouge escreveu por exemplo: Les Sélections Sociales (1896), obra original
e de certo valor científico; L'Aryen, son Rôle Social (1899), e The Funda-
mental Laws of Anthropo-Sociology (1897).
(194) . — Por exemplo, o poeta e literato Rudyard Kipling (1865-1936).
(195). — Por exemplo, Madison Grant, autor do livro: The Passing of The Great Race
(1916). — Que se pense nas Restriction Laws contra certas categorias de
imigrantes, e na questão dos negros na América do Norte. Cf. também as
"apartheidwetten" (= leis de separação total entre os brancos e a gente de
côr) na África do Sul, onde o racismo é principalmente defendido pelos Boers,
descendentes dos holandeses calvinistas.
(195a). — A doutrina racista dos nazistas era completada pelo amor mtistico e pseudo-
religioso ao solo (alemão: Blut und Boden, isto é: "Sangue e Solo").
-200—

toridade de Tácito para adquirir antigas cartas de nobreza . Os ger-


manos são uma raça castiça: Ipse eorum opinionibus accedo, qui
Germaniae populos nullis aluis aliarum conubiis infectos propriam et
sinceram et tantum sui similern gentem extitisse arbitrantur (196) .
Os germanos têm olhos azuis e cabelos louros: truces et caeruli
oculi, rutilae comae, magna corports et tantum ad impetum valida
. Os germanos têm corpos magníficos: In omni domo nudi
ac sordidi in hos aratus, in haec corpora, quase miramur, excrescunt
. Os germanos têm o sentimento de honra e de lealdade: Cum
ventura in aciem, turpe principi virtute vinci, turpe comitatui virtu-
tem principia non adaequare... Principes pro victora pugnant, co-
mites pro príncipe (199) .
O homem nórdico é honesto, leal, livre, corajoso, heróico, viril-
mente religioso, poeta e progressivo; pertence a uma raça predesti-
nada a dominar; sua missão histórica é remoçar o mundo degenera-
do; seus inimigos naturais são tôdas as raças decadentes, principal-
mente os judeus e os latinos; e o expoente mais perigoso da lati-
nidade é o Catolicismo "internacional". O racismo nórdico, tanto
na América e na Inglaterra como na Alemanha, nunca é isento de
anti-semitismo e de anti-catolicismo. O protestantismo é a religão
própria do homem "nórdico".
Antes de iniciarmos nossa exposição das idéias de de Gobineau,
queremos consagrar algumas palavras a um dos seus precursores
no século XVIII: Henri de Boulainvilliers, Comte de Saint-Sarie
(1658-1722) . Este publicista francês, combatido por Montesquieu,
mas bastante apreciado por Voltaire, demitiu-se do serviço militar
(no ano 1697) para pôr a salvo a herança paterna que lhe era con-
testada. Ao estudar os títulos dos seus antepassados, via-se obri-
gado a estudar também a história do seu povo: muito orgulhoso da
nobreza da sua linhagem, que na realidade não passava além do
século XVI, pretendia entroncá-la na família real da Hungria (Bu-
da e Estêvão), fundando-se em analogias existentes entre as armas.
Nos seus escritos, publicados depois da morte do autor (200), sus-
tentava a tese de que o sistema feudal é a obra-mestra da sabedo-
ria humana e a verdadeira base de tôda a liberdade: destarte com-
batia o govêrno popular bem como o absolutismo de Luís XIV, ne-
gando, por exemplo, ao rei o direito de cunhar moedas, de impor
tributos, de tomar a seu serviço tropas estrangeiras, etc., sem a

— Tacitus, De Germania, IV.


— Ibidem.
lbidem, XX.
— lbidem, XIV.
. (200). — Escreveu por exemplo: Histoire de l'Ancien Gouvemement de France (1727);
Etat de la France (1729); Histoire des Arabes (1731); Vie de Mahomet
(1730); Essa; sur la NobIesse de France (1732)•
— 201 —

aprovação prévia dos nobres franceses. A nobreza francesa deve


compor-se exclusivamente dos descendentes dos 100.000 francos
que venceram, nos séculos V e VI, os galo-romanos, raça decadente.
"O terceiro estado" seria a progênie dos detestáveis gauleses roma-
nizados, subjugados pela raça dominadora dos francos. Esta idéia,
por mais absurda que fôsse, surtiu muito efeito na mentalidade das-
sicista da época que tudo queria relacionar com a Antigüidade clás-
sica. Os jacobinos chegavam a considerar-se como os aborígenes da
França, finalmente libertados, do jugo insuportável dos francos bár-
baros (a aristocracia do Ancien Régime), e os nobres refugiados
viam nos revolucionários uns rebeldes desprezíveis de baixa linhagem.
§ 113. O aristocrata desgostoso.

O conde francês Arthur de Gobineau (1816-1882), que se


reputava descendente de um antigo viquingue norueguês, Ottar-
Jarl (201), era espírito curioso que acompanhava com imenso in-
terêsse tôdas as manifestações da vida cultural do seu tempo. Na
sua qualidade de diplomata, teve a possibilidade de conhecer
pessoalmente muitos países: a Suiça, a Alemanha, a Pérsia, a Ter-
ra-Nova, a Rússia, a Grécia, o Brasil (202), a Suécia (pela qual
se entusiasmava) e a Itália. Bom observador, autor de destaque e,
apesar de certas extravagâncias, pessoa simpática e cativante, a
entreter relações pessoais com várias figuras notáveis da sua épo-
ca, era, antes de mais nada, um aristocrata desgostoso com o rumo
jacobino da cultura européia do século XIX: na democracia via
apenas um processo de plebeização e decadência. Como explicar
êsse fenômeno? De Gobineau, vivamente interessado na mentali-
dade dos diversos povos que visitava e, desde cedo, fascinado pelo
estudo da lingüística e da etnologia (203), chegava a atribuir ao
fator racial o papel decisivo no destino dos povos. No seu livro
Essai sur l'Inégalité des Races Humaines (204), o conde francês

— Em 1879, de Gobineau publicou: Histoire d'Ottar-Jarl, pirate norvégien,


conquérant de Bray en Normandie, et de sa descendance
— Aqui se fêz amigo do Imperador Pedro II (un aryen pur, ou presque), mas
sentia pouca simpatia para com os brasileiros (une population toute mulâtre,
viciée dans le sang, viciée dans l'esprit, laide à feire peur.. •). — Cf. G.
Raeders, Le Comte de Gobineau au Brasil, Paris, Sorlot, 1934, e do mesmo
autor: Dom Pedro II e o Conde de Gobineau, Correspondências Inéditas, São
Paulo-Rio de Janeiro, etc., Companhia Editôra Nacional, 1938.
— De Gobineau, Essai sur des Races Humaines, Paris, Firmin-Didot,
s.d., 5-me édition (2 vols.), II págs. 550-551: 'Saiu doute, Pethnologie est
jeune. Elle a toutefois passé l'êge des prerniers bégay'ements. Elle est assez
avancée pour disposer d'un nombre suffisant de démonstrations solides sur
lesquelles on peut bâtir en toute sécurité. Cheque jour lui apporte de plus
riches contributions... En rdalité, elle n'est nutre que la racine et la vie
même de Phistoire •
— O Essai saiu, pela primeira vez, em dois volumes (1853-1855). — Além disso,
publicou de Gobineau: Les Pléiades (romance, 1874); La Renaissance (cenas
históricas, 1877); Histoire des Perses (1869); Amadis (poema, 1878) •
— 202 —

tentava promover a história à categoria de uma "verdadeira ciên-


cia", utilizando-se amplamente dos dados que lhe eram fornecidos
pelas novas disciplinas: Il s'agit de faire entrer l'histoire dans{ la
famile des sciences naturelles, de lui donner, en ne l'appuyant que
sur des faits empruntés à tous les ordres de notions capables d'en
fournir, toute la précision de cette classe de connaissances, enfin
de la soustraire à la jurisdiction intéressée dont les factions poli-
tiques lui imposent jusqu'aujourdhui farbitraire (205) . Eis um
programa pretensioso, uma revolução copernicana na historiogra-
fia; vejamos agora como o autor executou seu projeto.
I. A Raça o Fator Primordial da História.
O autor, submetendo a um exame crítico as tentativas anterior-
mente feitas para explicar o fenômeno da decadência cultural, não
considera a situação geográfica ou as circunstâncias climatológicas
nem a religião (206) ou a moral ou o regime político como os fa-
tôres decisivos da história: o que decreta, em última análise, a mor-
te das nações e das culturas, é a degeneração biológica. Je pense
donc que le mot dégénéré, dappliquant à un peuple, doit signifier
et signifie que ce peuple n'a plus la valeur intrinsèque qu'autrefois
il possédait, parca, qu'il n'a plus dans ses veines le même sang, dont
les alliages isuccesifs ont graduellemente modifié la valeur; autre-
ment dit, qu'avec le même nom il n'a pas conservé la même race
que ses fondateurs; enfin, que l'homme de la décadence... est un
produit différent, au point de vue ethnique, des héros des grande s
époques (207). Já estamos advertidos da idéia fundamental do
autor: a raça é o fator que decide fatalmente sôbre o destino dos
povos. A certas qualidades físicas (côr da pele, cabelo, ossatura, ta-
manho, forma do crânio, etc.) correspondem necessàriamente certas
qualidades intelectuais e morais, e as duas categorias de qualidades
transmitem-se como uma herança estável e bem determinada de
uma geração a outra, a não ser que intervenha outro fator biológi-
co, igualmente fatal: o cruzamento de raças diferentes. De Gobi-
neau acredita fanàticamente na "raça pura".
— De Gobineau, Essai, II pág. 548. Os instintos do aristocrata se revelam na
pág. 549: L'histoire arrachera tous les masques fottrnis par les théories sophis-
tiques; elle s'armera, pour flétrir les coupables, des anathèmes de lia religion.
Le rebelle ne sera plus devant son tribunal qu'un ambitieux impatient et nui-
sible: Timoléon, qu'un assassin; Robespierre, un immonde scélérat.
— Ibidem, I pág. 64: Le christianisme est civilisateur en tent qu'il rend l'homme
plus rdfléchi et plus doux; toutefois, ne I'est qu'indirectement, cal cette dou-
ceur et ce développement de I'intelligence, il n'a pas pour but de les appli-
quer aux choses périssables, et partout on le volt se contenter de l'était social
ou ii trouve ses néophytes, quelque imparfait que soit cet état. . (pág. 69):
II est donc nécessaire et juste de désintéresser entièrement le christianisme
dans la question. Si toldes les rates sont également capables de le connaltre
et de gouter ses bienfaits, il ne s'est pas donné de les rendre pareilles entre
elles; son royaume, on peut le dire hardiment, n'est pas de ce raonde.
— Ibidem, I pág. 24.
-203—

II. As Três Raças.


Há três grandes raças: a branca, a amarela e a negra. De Go-
bineau, como católico, convencido da unidade do gênero humano,
mas, como racista, persuadido da desigualdade fundamental das três
raças humanas, recorre a todos os meios de que dispõe seu talento
diplomático, para reconciliar as duas teses, demorando-se muito em
discutir cientificamente a origem adâmica das três raças (207a),
admitida finalmente após amplas discussões. Na primeira metade
da existência da espécie humana, — período muito longo, mas ina-
cessível a tôdas as investigações nossas, — as três raças se teriam
diferenciado uma de outra, devido à ação intensa do mundo recém-
criado e ainda não chegado ao seu estado de equilíbrio atual. L'hom-
me, étant nouvellement créé, présentait des formes encore incertai-
nes, peut-être même n'apptartenait d'une maniere bien tranchée
ni à la variété blanche, ni à la noire, ni à la jaune (208) . Mas uma
vez constituídas as três variedades, podemos verificar a desigual-
dade fundamental, permanente e irremediável entre elas. A raça
branca é incomparàvelmente mais rica do que suas duas irmãs
condenadas a um eterno atraso: até podemos dizer que (rhistoire)
nous montra que toute civilisation découle de la race blanche, qu'
aucune ne peut exister sans le concours de cette race, et qu'aucune
société n'est grande et brillante qu'à proportion qu'elle conserve le
noble groupe qui I'a créée, et que ce groupe lui-même appartient
au rameau le plus illustre de respèce (209) . Não se trata de ou-
torgar um certificado de cultura a certos indivíduos, aliás bem ra-
ros, pertencentes a raças inferiores, e sim a grupos inteiros: proce-
dendo-se assim, ver-se-á que não existem "culturas" prÓpriamente
ditas sem a colaboração ativa da parte dos brancos. De Go-
bineau conhece dez destas culturas: a índica, a egípcia, a assíria (a
qual abrange também a dos fenícios e a dos judeus, etc.), a grega,
a chinesa, a itálica, a ocidental, e três na América (por exemplo, a
dos incas) . Dans les dix civilisation, pas une race mélanienne n'ap-
parait au rang des initiateurs. Les métis seuls parviennent au rang
des initiés. De même, point de civilisationg spontanées chez les na-
tions jaunes, et la stagnation lorsque le sang arian s'est trouvé éptil-
sé (210) .
Não podemos acompanhar aqui a odisséia do autor através dos
anais da humanidade: seu livro, que contém mais de 1.100 pági-

(207a). —Quem defendia o "poligenismo" do gênero humano, no século XIX, era sobre-
tudo Ludwig Gum)plowicz (1830-1909), autor do livro Rassenkampf (= "A
Luta das Raças, 1883), e outras obras.
— Ibidem, I pág. 143.
— Ibidem, I pág. 220.
— Ibidem, I pág. 223.
— 204 —

nas, revela-nos todos os segredos das novas disciplinas e diverte o


leitor hodierno com sua "omni-sapiência". A etnologia e a gloto-
logia, mal chegadas à existência, julgavam-se capazes de resolver to-
dos os problemas da história humana, e nosso autor, aceitando dè-
cilmente conclusões precárias e hipóteses precipitadas de especia-
listas, julgava poder partir dessas "verdades inabaláveis e definiti-
vas" para criar uma síntese história completamente nova. Ademais,
sua argumentação, apesar de ser quase sempre agradável e muito
diplomática, acaba por nos decepcionar, visto que não passa de uma
petitio principii: de Gobineau promete dar-nos uma teoria históri-
ca rigorosamente baseada em fatos verificados pela ciência, mas,
para comprovar sua teoria, força muitas vêzes os fatos a obedecerem
a um esquema preconcebido (211) .
III. A Superioridade dos Árias.
O lugar ínfimo na escala dos valores raciais é ocupado pelos
pretos, uma raça que se acha num estado muito próximo à anima-
lidade: são brutos, ávidos, sensuais, apaixonados e pouco inteligen-
tes, mas dotados de sentidos bem desenvolvidos, sobretudo o pala-
dar e o olfato. A raça amarela é, por assim dizer, a antítese da ne-
gra: os amarelos são pouco fortes, utilitários, pacíficos, apáticos e
medíocres: c'est un populace et une petite bourgeoisie que tout ci-
vilisateur désirérait choisir pour base de sa société: ce n'est cepen-
dant pas de quoi créer cette société ni lui donner du nerf, de la beau-
fé et de l'action (212). Mas o autor, como católico, apressando-se
a antecipar certas objeções que poderiam surgir, diz que, por
mais bruta ou indolente que seja uma raça humana, ela sempre se
distingue essencialmente das raças animais e que é acessível aos
ensinamentos da religião (213).
A raça branca possui o monopólio absoluto de tôdas as virtu-
des civilizadoras, intelectuais e morais: os brancos são inventivos,
progressivos, têm "caráter" e possuem sobretudo o senso de liber-
dade e de honra: devido a essas qualidades são predestinadas a
criar as culturas e a liderar as outras raças. Les deux variétés in-
férieures de notre especo, la race noire et la race jaune, sont le
fond grossier, le cotton et la laine, que les familles secondaires de
la race branche assouplissent en y mêlant leur soie, tandis que le
groupe arian, faisant circuler ses filets plus minces à travers les

— Cf. E. Cassirer, El Mito del Estado, México-Buenos Aires, Fondo de Cultura


Economica, 1947, págs. 264-292.
— De Gobineau, Essai, I pág. 216.
— Ibidem, I pág. 159. — Bem diferente é a linguagem de A. Hitler in Mein
Kampf, pág. 446, onde o autor fala nas missões "importunas" das Igrejas
cristãs entre os pretos, que não desejam nem compreendem nada do Cristianismo.
-- 205 —

générations ennoblies, applique à leur surface, en éblouissant chef-


d'oeuvre, ses arabesques d'argent et d'or (214).
A raça branca, portanto, não é perfeitamente homogênea, mas
abarca "famílias secundárias" e uma "família primária", que é o
grupo ariano, a fina flor da nossa espécie. Famílias secundárias
são os camitas (215) e os semitas. Estes dois grupos, em tempos
muito remotos, despertaram as raças inferiores do seu sono secular,
criando civilizações impressionantes, principalmente no Oriente Pró-
ximo. Mas os criadores sucumbiram ao pêso da sua obra criadora:
nas suas relações inevitáveis com as raças inferiores chegaram a
amalgar-se com elas. Sem dúvida, êsses cruzamentos tinham certas
vantagens: as belas artes e a poesia lírica são produtos da mistura
dos brancos com os pretos (216); praticada entre raças inferiores,
a mistura pode produzir uma raça superior a cada uma das que a
originaram. Mas, praticada pela raça branca, les grands, du mêms
coup ont été abaissés, et c'est urn mal que rien ne compense ni ne re-
pare. . . La race blanche possédait originairement le monopole de la
beauté, de l'intelligence et de la force. À la suite de ces unions avec les
autres variétés, il se rencontra des métis beaux sans être forts, forts
sans être intelligents, intelligents avec beaucoup de laideur et de
débilité (217) . A lei fatal do sangue quer que o homem superior
sucumba ao inferior, o sublime ao vulgar, o forte ao fraco.
Os árias (218), o escol da raça branca, a viver inicialmente
nas estepes da Sibéria e a espalhar-se, aos poucos, pela Índia, pelo
Egito (!), pela China (!), pela Grécia, e pela Alemanha, França e
Escandinávia, — também os árias não puderam escapar a essa lei
calamitosa: em quase tôdas as regiões ocupadas por êles, foram-se
— Ibidem, II pág. 539.
— De Gobineau impugna a identificação: camitas = pretos, cf. ibidem, I pág.
235. — Os camitas são o resultado da mistura entre brancos e pretos; os
semitas são o resultado de cruzamentos entre brancos, pretos e (ainda pre-
càriamente) brancos.
— Ibidem, I págs. 351-365.
— Ibidem, págs. 218-219.
— O autor (ibidem, I págs. 369-372) relaciona os nomes dos "árias" (cf. § 59
II, nota 106) com as palavras gregas: Ares (= Marte), areté (= valor,
virtude), a (r ) chaioi (= aqueus); com as palavras alemãs; Herr (= Senhor)
e Ehre (= honra); com a palavra latina: (h)erus (= Senhor, dono), expli-
cando "árias" como "homens de honra". — O deus dos árias é "luminoso", o
que é provado pelas palavras Devas (sânskrito), Zeus e Theós (grego), Diewas
(lituânio), Zio (germânico), etc., cf. Essai, I págs. 380-381: Le peuple arian
voulut les (isto é, os deuses) avoir à son image. Comme ii ne connaissait rien
de supérieur à lui sur la terre, il prétendít que rien ne ft.« autrement piarfait
que lui dans le ciel... Le mot sacré de la race blanche s'oppose... à l'"Al"
des aborigènes mélaniens. Ce dernier représente la superstition, l'autre la pen-
sée; l'un est l'oeuvre de l'imagination en délire et courant à I'absurde, l'autre
sort de la raison. Quiand le "Deuts" et l'"Al" se sont mêlés, ce qui a eu Heti
par malheur trop souvent, il est arrivé, dans la doctrine religieuse, des em-
par malheur trop souvent, il est arrivé, dans la doctrine religieuse, des con-
lenges de la race noire avec la blanche. L'erreur a été d'autant plus mons-
treuse et dégraclante, qu'"Al" l'emportait davantage dans ceife union. — Cf.
ibidem, I pág. 426: Or, l'homme noir et l'homme jaune ne pouvaient hien
comprendre que le laid: c'est pour eux que le laid fut inventé et resta tou-
jours rigoureusement nécessaire.
- 206--

degenerando por causa das suas uniões com raças inferiores (no
Egito e na China) ou com grupos secundários e degenerados da ra-
ça branca (por exemplo, na Grécia e ern Roma) . Os árias invaso-
res da Índia, para quem "branco" era idêntico a "belo" e que insti-
tuíram o regime das "castas", foram derrotados pelos budistas, con-
seqüência da infiltração de sangue inferior, a manifestar-se, por
exemplo, na prioridade da moral budista à ontologia . Os gregos ho-
méricos, os "aqueus" (dos quais de Gobineau tinha conhecimentos
muito exíguos, já que escrevia sua obra antes das escavações feitas
por Schliemann e Dõrpfeld), são árias puros como também os es-
partanos, o que logo se vê pela instituição espartana dos hilotas e
dos periecos; mas êstes árias encontraram, no país conquistado por
êles, muitos habitantes pertencentes a raças inferiores, principal-
menfte de origem semítica, e êste último elemento foi-se desenvol-
vendo em detrimento dos árias castiços. Sintomas da decadência
grega são: a república e a democracia, a dedicação à pedis, e não ao
sangue, a ginástica praticada por jovens nus, etc. O autor mostra
grande admiração pelo gênio artístico dos gregos que continuava a
existir na época da sua decadência racial, tout en réservant son
respect pour des choses pias essentielles (219), e até mesmo chega
a atribuir a sensibilidade estética e a paixão intelectual dos gregos
à influência do sangue semítico (sic!), mas êste equilíbrio precário
devia perder-se com a afluência de ondas cada vez mais numerosas
e arrasadoras de asiáticos, levando a Grécia à plena decadência
moral, política e intelectual (219a). A história romana, tal como
é apresentada por de Gobineau, é muito mais complexa e• impos-
sível de expor em poucas linhas: basta dizermos aqui que para a
formação da Roma republicana não contribuiram os árias castiços,
mas só famílias secundárias da raça branca, e que a Roma imperial
acabou por semitizar-se, devendo sua longa duração exclusivamen-
te à boa organização das suas legiões.
V. Perspectivas Sombrias.
Foi então que apareceram os germanos, árias quase puros, in-
devidamente desqualificados de "bárbaros" ou apresentados como
(219). — lbidem, II pág. 45.
(219a) . — O historiador alemão J. Ph. Fallmerayer (1790-1861), homem bastante via-
jado na Grécia e no Oriente Próximo e autor de um livro intitulado: "Sôbre
a Origem dos Gregos Modernos" (1835) (obra conhecida de de Gobineau),
sustentava a tese de que os gregos modernos não são os descendentes dos gre-
gos clássicos, e sim de albanos e eslavos. Assim procurava explicar a dege-
neração cultural e moral dos gregos nos tempos modernos. Esta tese, aliás
mal fundamentada, era um golpe ao "filelenismo" europeu dos primeiros de-
cênios do século XIX que idealizava loucamente os gregos clássicos e os gregos
modernos (então envolvidos na sua guerra de independência contra a Turquia)
por causa dos gregos clássicos. Esta guerra (1822-1830) atraía muitos entu-
siastas para a Grécia, um dos quais foi o célebre poeta britânico Lord Byron
morto (1824) no sítio da cidade de Missolonghi.
— 207 —•

mon stros em delírio por historiadores mesquinhos e ignorantes.


Qu'était-ce que le barbare? Un homme à blonde chevelure, au teint
blanc et rosé, large d'épaules, grard de stature, vigoureux comme
Alcide, téméraire comme Thésée, adroit, souple, no craignant rien
au monde, et la mort moins que le reste (220). Os germanos insu-
flaram nova vida a uma sociedade decadente e moribunda, e al-
guns séculos depois, nos tempos das invasões dos normanos, a Eu-
ropa, outra vez enfraquecida pela miscigenação, recebeu a última
importante injeção de sangue regenerador . Mas a raça superior fi-
ca cada dia mais exposta a um processo de deterioração, por causa
do seu contacto inevitável com outras raças habitantes da Europa.
O desaparecimento do ária castiço é uma lei inexorável e fatal, e
com êle desaparecerá também a verdadeira civilização. Nem a re-
ligião, nem a ciência, nem a técnica poderá premunir-nos contra a
catástrofe iminente: bibliotecas, confôrto material e armas enge-
nhosas são incapazes •de salvar a civilização (221). O fim da his-
tória humana é simplesmente desconsolador: Les nations, non, des
troupeaux, humains, accablés sous une morno somnolence, vivront
dès lors engourdis dans leur nullité, comme des buffles ruminante
dans les flaques stagnantes'cles marais Pontins. Peut-être se tien-
drant pour les plus sages, les plus savants et les plus habiles des êtres
qui furent jamais; nous-mêmer, lorsque nous contemplons ces grands
monuments de l'Egypte et dei l'Inde, que nous serions psi incapables
d'imiter, ne sommes-nous pas convaincus que notre impuissance mê-
me prouve notre supériorité? (222).
Eis o fim estúpido, não só da civilização ocidental, mas de tô-
da e qualquer cultura no nosso planeta: rebanhos satisfeitos, mais
semelhantes a búfalos do que a sêres humanos! Visito que não exis-
tem grandes reservados de árias puros, a profecia de de Gobineau
não admite a menor esperança. A história humana, e sobretudo a
da raça branca, é sumamente trágica: sua missão civilizadora qui
est comme le comble, comme le sommet, comme le but suprême
de l'histoire, arrasta-a para sua própria ruína. La vie de l'humanité
prend ainsi une signification d'ensemble qui rentre absolument dans
l'ordre des manifestations cosmiques (223) . Mas de que maneira
o autor consegue reconciliar sua fé num fim supremo da história
com sua chença no valor da raça branca, predestinada à degenera-
ção, — eis uma questão que deixa de nos esclarecer.

— Ibidem, II pág. 299.


— Ibidem, X págs. 170-171.
— Ibidem, II pág. 561.
— Ibidem, II pág. 559.
— 208 —

§ 114. Judá e Roma contra os germanas.


As teorias de de Gobineau tinham pouca repercussão na épo-
ca otimista e progressista em que vivia o autor; principalmente na
França, as idéias extravagantes e as profecias sombrias do Essai
granjeavam pouca simpatia; Vacher de Lapouge era, aí, um dos seus
poucos adeptos (cf. § 112 IV, nota 193) . Na Alemanha, onde o
autor tinha vários amigos (224), a situação era diferente: aqui
eram aceitas com sentimentos de profunda satisfação as teorias li-
sonjeiras acêrca da privilegiada raça ariana, da qual os 'teutões eram
os representantes mais ilustres, ou pelo menos, numèricamente, os
mais importantes. As idéias de de Gobineau favoreciam muito o
desenvolvimento do movimento pan-germânico que, depois de 1870,
ia ganhando cada vez mais terreno, chegando a revestir-se de' cer-
tas feições pseudo-religiosas. A obra de de Gobineau foi traduzida
para o inglês e para o alemão (225), e foi principalmente na versão
alemã que influiu nos acontecimentos políticos. Em 1890, o racista
alemão, C. L. Schemann fundou o Gobineau-Vereim, isto é, a
"Associação Gobineau" (226). A Alemanha, unida sob a égide da
Prússia, que acabava de derrotar a França "decadente", começava
a interessar-se cada vez mais pelo ária. Quem deu um passo deci-
sivo nesta evolução, foi Houston Stewart Chamberlain (1855-1927),
filho de um almirante inglês, mas radicado na Alemanha idolatrada,
onde se casou com a filha do compositor germânico Ricardo Wag-
ner. Êle nos interessa aqui como autor de uma obra (escrita em
alemão): Die Grundlagen des. Neunzehnten Jahrhunderts (1899),
isto é: "Os Fundamentos do Século Dezenove" (227) . O autor te-
ve a grande satisfação de poder abençoar a figura de Hitler pouco
tempo antes de morrer.
-

I. Um Conceito Dinâmico da Raça.


De Gobineau derivara as três raças brancas de três antepassados
bíblicos: Cão, Sem e Jafet, e criara o mito de "raças puras", as quais
fatalmente degenerariam devido a cruzamentos inevitáveis no seu
-esfôrço de criarem civilizações superiores. Chamberlain, mais eman-
cipado de um livro judaico e menos pessimista, optava por um con-
ceito dinâmico da raça, julgando que as melhores raças humanas,
analogamente às raças superiores do reino animal, são o resultado
(224) . De Gobineau era amigo de Wagner; Nietzsche interessava-se por êle; o autor
dedicava seu Essai ao rei Jorge V de Hanover (1851-1866) .
. (225) . — Em 1856, de Gobineau escrevia a um amigo: Faudra-t-il que j'attende que
mes opinions rentrent en France traduites de l'anÉlais ou de l'allemand? (apud
E. Bréhier, Histoire de la Philosophie, II pág. 942) :
• (226) . — C. L. Schemann (1852-1905) escreveu uma biografia de de Gobineau (1913-
1920); além disso publicou: Die Rasse in den Geisteswissenschaften, 1928-1931
(= "As Raças nas Ciências Morais").
, -(227) . Servimo-nos da 13a. edição, em dois volumes, München, Bruckmann, 1919..
— 209 —

feliz de vários cruzamentos. Destarte chega a formular as cinco leis


que regem a criação de raças nobres:
O material disponível deve ser bom: onde não há nada,
o rei perde os seus direitos. Seria ocioso indagar a causa dessa per-
feição originária, pois, segundo Goethe, não compreendemos o fac-
turo, só o fieri (228).
Deve haver um regime contínuo de "endogamia" ou de
cruzamento consangüíneo (alemão: Inzucht) para poderem ser con-
solidadas as boas qualidades originais.
Deve haver, dentro do grupo original, uma eliminação sis-
temática de elementos fracos e nocivos, como também uma seleção
rigorosa de elementos valiosds. — Até agora, Chamberlain nada
diz o que não poderia ser afirmado por de Gobineau; daqui em dian-
te, envereda por caminhos diferentes.
Deve haver um certo cruzamento com raças diferentes...
...contanto que êsse cruzamento não exceda determina-
do prazo (229) e seja convenientemente praticado (230).
Chamberlain, como o autor francês, abomina a promiscuidade
ilimitada das raças (alemão: das Võlkerchaos), da qual a Roma
imperial, essa cloaca gentium (231), é o exemplo típico, mas, ao
invés do aristocrata francês, julga salutar a mistura de raças dife-
rentes, pelo menos até certo ponto e respeitadas certas condições.
A liberdade humana consiste precisamente em poder respeitar ou
desrespeitar as leis sagradas da raça. Quando uma raça superior
transgride uma ou mais dessas regras invioláveis, termina inevità-
velmente em degeneração física, intelectual e moral.
II. Homens de Raça e Bastardos.
Que é "raça"? O autor pouco se incomoda com uma defini-
ção exata: o homem de raça sente instintivamente o que é raça,
mostrando sua superioridade por certa firmeza de caráter. A raça
faz com que um indivíduo se transcenda a si mesmo, dotando-o de
,qualidades extraordinárias, quase sobrenaturais; a raça é o solo
alimentício de gênios, os quais não são meteoros caprichosamente
(228). Chamberlain, Die Grundlagen, etc., I pág. 327; cf. pág. 317.
<229). — Isto é, após um período muito curto de cruzamentos com raças diferentes, deve-
haver outra vez um período de endogamia e de seleção.
— Aqui o autor não consegue reduzir a uma regra bem definida a "conveniência";
há raças que se corrompem mutuamente, quando cruzadas; há qualidades bio-
lógicas e morais que não se misturam; o cruzamento de bastardos é sempre
calamitoso. — Exemplos de cruzamentos felizes são: os romanos primitivos
com as tribos itálicas; os anglo-saxões com os normandos; os berlinenses com
os huguenotes franceses, etc.
— Cf. Tacitus, Historiae, XV 44: per urbem etiam, quo cuncta undique atrocia
aut pudenda confluunt celebranturque. A história do declínio do Mundo
Antigo, em bases biológicas, foi escrita pelo historiador alemão Otto Seeck:
Geschichte des Untergangs der antiken Welf, I-VI (1895-1920).

'Revista de História n.o 29


— 210 —

lançados pelo céu para a terra e sim árvores impressionantes, se-


guradas por milhares de raízes ao subtrato fecundo e misterioso,
que é a raça. Um cão bastardo é muitas vêzes extremamente in-
teligente, mas nunca merece a nossa confiança: moralmente é sem-
pre um patife (232). Assim também os bastardos entre os homens
podem ser grandes talentos, mas nunca podem elevar-se à altura
da verdadeira moralidade, e jamais podem ser verdadeiros pensa-
dores, profetas ou artistas. Exemplos de bastardos talentosos são
o autor helenista Luciano de Samósata, êsse sírio volúvel, sem amor
ao trabalho, sem honra e dignidade, cuja única preocupação éra
ganhar dinheiro e vir a ser uma "celebridade" (233), e Santo Agos-
tinho, que era um indivíduo caótico: superstições judaicas, mitolo-
gia grega, neoplatonismo alexandrino, hierarquia romana, — tudo
isso se confundia caóticamente na cabeça dêsse africano; sobretudo
era fanático pela castidade, pelo que prova, como tantos outros Pa-
dres da Igreja, sua inferioridade racial; pois o homem sadio de uma
raça superior sabe instintivamente que gerar filhos é uma das suas
obrigações mais sagradas. Santo Agoatinho, porém, invertendo a
ordem natural das coisas, apregoava a ascese, a fuga do mundo.
III. Cultura e Religião.
Os árias ou os indo-europeus são incontestàvelmente a raça
superior da história universal: são êles os únicos criadores de uma
verdadeira cultura (234), de um verdadeiro Estado (a excluir a
anarquia bem como o despotismo), os únicos possuidores de uma
verdadeira moral (a basear-se exclusivamente no valor autônomo da
pessoa humana), e os únicos idealizadores de uma verdadeira re-
ligião. A religião, longe de ser um apêndice insignificante da cul-
tura humana ou de ser uma invenção superada ou nociva, é, se-
gundo Chamberlain, a fonte de tôdas as regiões superiores da cul-
tura. A religião é o contacto imediato do homem com o Univer-
so, pelo qual êle se reconhece a si mesmo e em todo e qualquer fe-
nômeno, e redescobre (todo e qualquer fenômeno em si. A religião
não tem nada a ver com superstição ou com a moral: é uma qua-

(232) . — Chamberlain, Oie Grundlagen, etc., I pág. 312s Ein Bastardhund ist nicht
se!tcn sehr klug, jedoch niornals zuverltissig, sittlich ist er stets ein Lump.
Andauernde Promiskuit.iit unter zwei hervorragenden Tierrassen liihrt
ausnahmslos zur Vernichtung der hervorragenden Merkn(sle von beiden! Warum
solhe die Menschheit eine Ausname bilden? EM KircherwMer mochte das wohl
wiihnen: steht es abar einem hochangesehenen Natarforscher (Chamberlain
pensa aqui em R. L. x. Virchow, 1821-1902) Éut an, das Gewicht seiner
grossen Eintlusses in die Wagschale mittelalterlichen Aberglaubens und Unwissens
zu werfen?
lbidem, I págs. 353-360. — Cf. § 3 V g.
— O autor (ibidem, II pág. 870) divide os fenômenos da vida social em três
grupos: 1) o Saber (Descobrimentos, descobertas, invenções e ciências); 2)
Civilização (Indústrias, Economia,. Política e Igrejas); 3) Cultura ("Mundi-
vidência", inclusive Religião e Moral; as Artes) .
--- 211 .=

lidade permanente da alma (235). O homem religioso, por estar


num contacto direto com o mundo além da razão, é poeta e pen-
sador, e revela-se criador, esforçando-se, tal como Sísifo, para "dar
forma" visível ao invisível e para "dar forma" (alemão: gestalben)
pensável ao que é impensável.
Com tal religiosidade espontânea e criadora, própria do ária,
são irreconciliáveis certas idéias religiosas excogitadas pela mór-
bida imaginação de raças inferiores, tais como: a idéia de uma li-
vre criação do mundo por um Deus-Pessoa, o que, conforme o nos-
so autor, equivale a crer num Deus déspota, a criar e a governar
"arbitràriamente" o mundo, e a esmagar as fôrças da natureza e a
liberdade humana; o dogmatismo religioso, a acarretar o fanatis-
mo e a aniquilar a tentativa humana de criar livremente seus va-
lores religiosos; a doutrina dos sacramentos, que é uma espécie de
magia primitiva e bárbara; a instituição de uma hierarquia sacer-
dotal, a trazer consigo despotismo e intolerância. Essas invenções
são características de uma religião de temor (alemão Furcht), ao
passo que a verdadeira religiosidade é uma atitude de veneração
(alemão: Ehrfurcht), e respeito para consigo mesmo.
Pouco sabemos da linhagem racial de Jesus, mas o pouco
que podemos afirmar com ceilteza absoluta é que êle não foi ju-
deu. Cristo é o absoluto gênio religioso, o fundador de uma cul-
tura moral desconhecida dos gregos, a fazer-nos descobrir em nós
mesmos uma fôrça interna, capaz de nos metamorfosear por com-
pleto. Cristo não era um pacifista humanitarista, tal como o con-
cebem os sequazes tímidos de um Cristianismo adocicado (alemão:
Milch- und Wasserreligion), não ensinava uma passividade pouco
viril; Cristo era herói revolucionário e criador de novos valores, que
se alegrava no combate e cuja vida era uma declaração de guerra:
"Não julgueis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz,
mas a espada . Porque vim separar o filho do seu pai, e a filha da
sua mãe, e a nora da sua sogra" (Mt., X 34-35) . Cristo afirmava a
vida, ao contrário de todos os "lucífugos" orientais; não pregava
uma religião dogmática, nem sequer uma doutrina religiosa; detes-
tava as castas sacerdotais. Não são estas as características de um
herói ariano? Chamberlain não hesita em anexar Cristo à raça ma-
ravilhosa que são os árias.
IV. Gregos, Judeus e Romanos.
Três cidades plasmaram a cultura ocidental: Atenas, Roma e
Jerusalém; as duas primeiras desempenharam um papel positivo na
nossa educação, a terceira um papel negativo: "Do mesmo modo
(235). — Ibidem, I pág. 260.
212 ----

que o dia exige a noite, assim a maravilhosa obra positiva feita pe-
los gregos e pelos romanos exigia um complemerlIto negativo; foi
Israel que o deu. Para que se enxerguem as estrêlas, precisa apa-
gar-se a luz do sol; para atingir a verdadeira grandeza, para adqui-
rir a grandeza trágica, a única capaz de proporcionar um conteúdo
vital à história, o homem devia tornar-se consciente não só da sua
fôrça, como também da sua fraqueza" (236).
A grandeza dos gregos está em terem descoberto o "homem".
O homem nasceu na Hélade, o homem capaz de se tornar cristão;
entre o "saber", a "civilização" e a "cultura" (cf. nota 234) estabele-
ciam os helenos uma harmonia inigualável, a qual, nos tempos mo-
dernos, se encontra apenas entre os germanos. O humanismo é, até
certo ponto, também o ponto fraco dos gregos: não se interessavam
o bastante pelas regiões fora do homem, e muito menos ainda pelas
esferas acima do homem . Pouco dotados do gênio político e do es-
pírito prático, eram essencialmente artistas e poetas. Platão é o
apogeu da filosofia grega: é filósofo-poeta, o Homero entre os pen-
sadores, a "dar forma" (alemão: gestalten) simbólica aos seus pen-
samentos; Aristóteles é principalmente grande como pesquisador da
natureza, contrabalançando assim com seu realismo o idealismo exu-
berante dos seus patrícios. Os gregos não eram bons metafísicos, no
sentido moderno da palavra, sendo que suas faculdades artísticas
e plásticas eram rebeldes ao pensamento puro; tampouco eram bons
teólogos ou moralistas (demonologia!); a escolástica jesuítica, essa
peste negra da filosofia moderno, Item sua origem nas cavilações es-
téreis de Aristóteles. Os gregos eram esplêndidos filósofos, no sen-
tido inglês da palavra: Platão é comparável ao philosopher Goethe,
Aristóteles ao philosopher Newton. Além da faculdade do pensa-
mento puro, faltava aos gregos a honestidade: não tinham firmeza
de caráter, veracidade, patriotismo abnegado ou moralidade eleva-
da . Nas suas obras artísticas embelezavam mentirosamente seus
feitos patrióticos, que na realidade eram muito duvidosos: já o sa-
bia Juvenal que dizia: creditur quidquid Graecia mendax audet
in historia (237). A raça helênica, o resultado feliz de cruzamen-
tos de raças, começou a degenerar com Aristóteles, processo êsse
que ia tomando proporções calamitosas na época do helenismo quan-
do havia miscigenação quase ilimitada: in Syros, Parthos, Aegyptios
degenerarunt (238).
Os talentos dos romanos eram menos brilhantes, limitando-se
quase exclusivamente a organizarem e a administrarem o mundo;
(236) . — Ibidem, I pág. 51.
— Juvenalis, Satirae, X 173-175; Sextus Aurelius Victor, De Caesaribus, III
12; cf. Sallustius, De Catilinae Conjuratione, VIII 1-4.
— Titus Livius, Ab Urbe Condita, XXXVIII 17, 11 (o autor latino fala nos
macedônios).
-- 213 —

por outras palavras, tinham muita "civiliza« ao" e pouca "cultura"


(cf. § 29 IV) . As conquistas dos romanos republicanos não eram
devidas à ganância, à brutalidade, à crueldade, e sim a uma supe-
rioridade espiritual e moral: tinham um amor instintivo e pouco
sentimental à pátria, dispostos a sacrificarem sua vida e seus bens à
respublica; possuíam o senso de honra; respeitavam a mulher e
consideravam como sagrado o lar; mantinham íntegra e dignidade
humana . Mas a promiscuidade das raças mais heterogêneas provo-
cou a decadência de Roma: nenhuma cena mais desconsoladora do
que a do Império Romano.
A herança que nos vem da Palestina é menos valiosa, se faze-
mos abstração da mensagem ariana trazida por Cristo: é o veneno
dos semitas e dos judeus que se insinua no organismo da nossa cul-
tura ocidental. Não pretendemos acompanhar aqui o autor nas
suas distinções — freqüentemente, arbitrárias e pouco fundadas, —
entre "semitas", "hebreus", "israelitas" e "judeus"; basta sabermos
que todos êles constituem uma raça inferior, incapaz de filosofar,
de criar obras artísticas, de se elevar a uma religião interior, ou
de realizar uma grande idéia política. O deus dos semitas é um
déspota, sua religiosidade é magia e superstição, sua moral é hu-
milhação indigna e ascese mecanicista. O conceito semítico do pe-
cado é meramenfte físico, exterior, ritual, não tendo a menor •relação
com a voz interna da consciência. Nos primeiros séculos da nossa
éra, o semitismo conseguiu deturpar também o Cristianismo, pro-
cesso êsse que já foi iniciado por Paulo de Tarso, espírito fanático,
supersticioso e estreito; a desfiguração foi continuada e generaliza-
da por outras figuras decadentes, tais como o apóstolo Tiago, e os
Padres da Igreja Tertuliano e Agostinho. A Igreja Católica, pro-
duto da promiscuidade racial, quer perpetuar a deformação da su-
blime mensagem de Cristo.

V. Os Germanos e seus Inimigos Ndturais.


Os salvadores da cultura antiga e os criadores da cultura mo-
derna são os germanos, uma raça superior que sintetiza em si, por
assim dizer, o dom artístico dos helenos, o gênio político dos roma-
nos e a profundidade moral e religiosa pregada pelo Evangelho.
A grande descoberta científica dos germanos é sua interpretação me-
cânica do mundo dos fenômenos, a possibilitar-lhes o domínio sôbre
a natureza; com ela se coaduna harmônicamente uma religião idea-
lista, não mecânica; as duas esferas que, em outras culturas são
sempre confundidas, ficam rigorosamente separadas uma da outra
entre os germanos. Eis o que conskitui o maior título de glória para
a "mundividência" germânica. Chamberlain é bastante generoso
--- 214 --

na sua germanofilia: atribui êste título honroso não só aos germa-


nos própriamente ditos (os alemães, os escandinavos, os holandeses
os flamengos), mas também aos anglo-saxões, aos celtas e aos es-
lavos. Por via de regra, é germano só quem descende dos germa-
nos, mas, por outro lado, concorda com Paul de Lagarde (239) que
diz: "O teutonismo não está no sangue, e sim na alma" (alemão:
Das Deutschtum liegt nicht im Geblüte, sondem im Gemüte) . Há
caradterísticas biológicas (cabelos louros, forma e tamanho do crâ-
nio, etc.), mas muito mais importantes do que elas são as caracte-
rísticas da alma germânica (a fidelidade, a liberdade, a honestida-
de, a profundidade, a interioridade, etc.) .
Tudo o que a cultura ocidental produziu de belo, de profundo,
de sublime é a obra dos "germanos": Teodorico, o rei dos ostro-
godos, Carlos Magno, Eckhart, Dante, Miguel-Ângelo, Rembrandt,
Shakespeare, Goethe, Wagner e Beethoven — eis algumas sumida-
des da cultura germânica de cuja sobrevivência depende a sobre-
vivência da cultura humana. Infelizmente, está sendo ameaçada
sèriamente a cultura germânica nos tempos modernos . Nos países
meridionais da Europa existe um verdadeiro Vëlkerchaos, que já re-
monta aos tempos do Império Romano e que, depois de detido tem-
poràriamente pela injeção de sangue germânico, está se revelando
cada vez mais. E' esta a razão porque aí não pegou bem a Reforma,
êsse ato libertador do gênio germânico; os franceses, outrora os
representantes dé uma grandiosa cultura germânica, vêem diminuir
constantemente suas fôrças vitais: absolutismo, jesuitismo e a Re-
volução de 1789 concorreram •para se exaurir o nobre sangue dos
francos (240); os eslavos, nas suas origens muito afins aos germa-
nos, mo s tram hoje certos sinais de decadência racial e estão recain-
do na indolência asiática, depois de terem dado algumas provas
promissoras de vitalidade; dos americanos do Sul, uma raça caóti-
ca, incapaz de tôda e qualquer realização cultural, nem se fala
(241) . A única esperança da cultura ocidental está agora nos ger-
manos própriamente ditos, dos quais os alemães, uma raça mista em
proporções muito convenientes, constituem a nação mais importante,
nos anglo-saxões que ainda revelam um poder expansivo muito

. — P. A. de Lagarde (1827-1891), orientalista e filólogo alemão.


. — Chamberlain, Die Grundlaéen, etc., II pág. 1101: A revolução francesa é uma
catástrofe, não a aurora de uma nova época histórica; ela se tornou inevitável
porque, na França, a Reforma havia malogrado; a França (no século XVI)
tinha muito sangue germânico para apodrecer, tal como Espanha, mas não em
quantidade suficiente para se livrar da teocracia universal; ibidem, II pág.
1015: a canonização da Deusa-Razão, durante a Revolução francesa, parece a
Charnberlain uma idéia "bem jesuítica" (sic!); ibidem, II pág. 1018: pela
fato de terem progredido, desde o século XVI, as nações germrânicas podemos
ver que a política de Lutero foi a acertada.
. Ibidem, I págs. 337-339.
- 215—

grande: secundados por escandinavos luteranos e por alemães, con-


seguiram fundar um novo Império germânico e anti-romano: os
Eskados Unidos da América do Norte.
Tudo o que não é germânico (no sentido amplo da palavra) é
anti-germânico, e os inimigos dos germanos organizam-se em dois mo-
vimentos perniciosos: o judaísmo internacional, e a Igreja Católica.
Já vimos as objeções de Chamberlain contra o Catolicismo; já sa-
bemos que Lutero, aos seus olhos, simboliza a revolta dos germanos
contra a confusão romana. Mas Lutero não teve pleno êxito. A
Igreja Católica procurava, — e conseguia, parcialmente, — recon-
quistar o território perdido mediante a Companhia de Jesus, funda-
da por um basco, indivíduo de raça inferior, inimigo declarado dos
germanos e dos árias, homem de vontade férrea. A única grandeza
de Inácio consiste na sua firmeza de caráter; pelo resto, não tem
grandeza alguma; não é pensador, nem artista, nem inventor origi-
nal; "materializa" a religião cristã e a mística; seus Exercícios reve-
lam certas influências muçulmanas e africanas, e estimulam certas
predisposições histéricas "de que ninguém é completamente isento";
em Inácio, uma fantasia puramente sensitiva e uma vontade desu-
mana sufocam a expansão do intelecto e a liberdade espontânea,
fonke da dignidade humana. No jesuítismo, Chamberlain vê a cons-
piração hedionda dos que se congregam num ódio terrível contra tu-
do o que é livre, nobre, sublime e pessoal; o jesuítismo nada colima
senão a extirpação total da personalidade e da honra, tais como
são concebidas pelos germanas (242) .
O outro inimigo declarado dos germanos é o judaísmo interna-
cional, que se compõe de bastardos degenerados, sujeitos imorais,
irreligiosos, materialistas, e gananciosos; os judeus, principalmente os
aschkenazins (243), são uma raça desprezível, sem convicções pes-
soais, sem escrúpulos, sem amor ao próximo; têm uma inteligência
apenas técnica, e são possuídos da vontade demoníaca de dominarem

— Chamberlain não quer identificar os indivíduos com a Igreja a que pertencem;


assim sabe apreciar o Cardeal Manning (por causa do seu "anti-jesuítismo"
e das suas tendências anti-romanas) e o teólogo alemão Hermann Sebe11 (pot
causa do seu progressismo), cf. ibidem, II pág. 772; o autor sonha com o
tempo em que todos os cristãos se agruparão em redor de um Jesus germani-
zado, e considerarão os primeiros 18 séculos do Cristianismo como o período
da doença infantil do Cristianismo, ibidem, I pág. 223.
— O autor tem grande admiração pelos sefardins, isto é, os judeus rebeldes trans-
portados pelos romanos para a península ibérica após a destruição de Jeru-
salém; é o protótipo de uma raça nobre e bem criada; a ela pertencem, sem
dúvida, os profetas de Israel, os criadores do monoteísmo (o qual, porém, liara
um germano, é um conceito "mecanicista" (!) da divindade); atualmente, ês-
ses sefardins, aliás bem escassos, vivem na Inglaterra, na Holanda e nos Es-
tados Unidos. A êles Chamberlain opõe os aschkenazins (alemão: die Ostjuden),
descendentes dos judeus da "diáspora", já emigrados da Palestina antes da época
dos mwabeus, ou então afugentados pelos árabes e pelos cristãos, ibidem,
I págs. 323-326.
— 216 —

o mundo. Judá constitui, juntamente com Roma, o pior perigo pa-


ra a sobrevivência da cultura germânica. Ou melhor, o perigo
que nos está ameçando é interno: nós nos deixamos "judaizar", vis-
to que se entupiram as sagradas fontes da nossa religião. A cultura
germânica conseguirá salvar-se apenas se voltar àquela religião in-
terior, autônomamente humana e "desmecanizada" dos germanos
primitivos. Jesus, êsse grande ária, dizia: "O reino de Deus está
dentro de vós" (Lc., XVII 21) . Kant, êsse grande germano, dizia:
"A religião devemos procurá-la não fora, e sim dentro de nós" (244).
Voltaire, Goethe, Schiller e ouras autoridades germânicas confir-
mam o princípio evangélico e a sentença do sábio de Koenigsberg.
Lutero livrou-nos de Roma; Kant, o primeiro modêlo de um ger-
mano "completamente emancipado", destruiu definitivamente a len-
da da cognoscibilidade de Deus, essa invenção de raças inferiores.
Continuemos corajosamente o caminho indicado por tão grandes
gênios; libertemo-nos resolutamente de Judá e Roma, não por meio
de perseguições, mas por destruirmos entre nós a superstição, o
materialismo, e a cabala; trabalhemos incessantemente pela restau-
ração da religião que é, segundo Kant, "o supremo dever de um
indivíduo para consigo".

§ 115. O misticismo zoológico.

O racismo é uma aberração lastimável que, por razões às quais


o Protestantismo não é estranha, lançou raízes principalmente nos
povos nórdicos. Para sancionar suas aspirações arrogantes, para
legitimar seus instintos egoístas, para dar um prestígio científico
ao seu orgulho agressivo, o homem inventa teorias especiosas, e
busca o aparato de uma erudição impressionante; a eloqüência e
o misticismo servem apenas para disfarçar a pobreza das idéias e
a falta de um pensamento lógico. Chamberlain comprova bem a
verdade destas palavras. Contudo, devemos ser justos para com o
genro de Wagner: não o podemos interpretar à luz das teorias
racistas inventadas posteriormente, que se transformaram num ver-
dadeiro misticismo zoológico, numa moral estabular, num regime
político sufocador de todos os mais altos valores da cultura huma-
na. Chamberlain não semeava o ódio, não desenvolvia um pro-
grama diretamente político, não negava certa autonomia dos fatô-
res espirituais. Mas suas caricaturas de Roma e de Judá, seu mis-
ticismo racial, sua exaltação excessiva do homem germânico muito
contribuiram para a intoxicação da mentalidade alemã.

(244). — Ibidem, II pág. 1117; cf. pág. 1124.


217 —

I. A Intoxicação do Espírito Alemão.


Em nenhum país germânico, as doutrinas racistas eram acei-
tas com espírito tão pouco crítico como na Alemanha (245), e o
ato final foi o nazismo. Seria uma injustiça e, além disso, uma gran-
de ingenuidade, se responsabilizássemos só o nazismo alemão pela
Segunda Guerra Mundial e por todos os crimes políticos cometidos
no período de 1932 a 1945; entretanto, podemos dizer que a atuação
do nazismo na história moderna foi nefasta. Hitler e seus satélites,
além de especularem hàbilmente sôbre certas reivindicações justas
do povo alemão, nada faziam senão explorar sem escrúpulo algumas
tendências duvidosas do mesmo povo; sua tática consistia em bara-
lhar coisas muito distintas com o fim de assegurarem a hegemonia da
Alemanha . E, infelizmente, o nazismo encontrava preparado o ter-
reno para muitos dos seus desmandos e devaneios.
Hegel tinha glorificado o Estado autoritário e sacrossanto, co-
mo também a religião luterana, a arte romântica e a filosofia idea-
lista da Alemanha; o militarismo prussiano, elaborado no século
XVIII por Frederico Guilherme I (246) e revigorado pela resis-
tência alemã ao jugo de Napoleão, tinha sido encomiado por histo-
riadores e publicistas, tais como Von Moltke (247) e H. Leo (248);
Jean Paul e Musonius, no século XVIII, e Chamberlain, no século
XIX, criaram e sustentaram a lenda de ser a Alemanha a Grécia
dos tempos modernos, ou melhor: uma edição enmendada da Gré-
cia; Nietzsche tinha exaltado o Super-Homem, a "bêsta loura", o
homem forte, não incomodado pelas convenções da moral; pensa-
dores (Schelling!), filólogos (Nietzsche!) e artistas (Wagner!) ti-
nham acostumado o povo alemão ao "mito", desviando-o do pensa-
mento lógico e conceptual; Lessing, Fichte, Hegel e tantos outros
tinham habituado os alemães a verem em Roma uma potência ini-
miga dos germanos, a verem na França um país decadente, a con-
siderarem os latinos como racionalistas frios e calculistas, sem ori-
ginalidade e sem artisticidade: a revolta da Germânia, iniciada por

— Sôbre a Alemanha, cf. G. de Reynold, D'oú vient l'Allemagne?, Paris, Plon,


1939. Durante a primeira guerra ri -fundia', Max Scheler escreveu um livrinho
interessante: Die Ursachen des Deutschenhlasses. Eine nationalpiidagogische
Eri:irterung (1917) = "As Causas da Teutofobia".
— Frederico Guilherme I da Prússia, alcunhado de "O Rei Sargento", 1713-1740,
o antecessor do rei Frederico II (Frederico o Grande), amigo de Voltaire.
Cf. § 96 V b, nota 44.
— H. Leo, historiador alemão (1799-1878), autor da "História dos Estados Ita-
lianos", I-IV (1829-1832), foi o primeiro a empregar a célebre expressão: "a
guerra viçosa e alegre que havia de varrer a canalha escrufulosa" (in Geschkht-
fiche Monatsberichte de junho de 1853), frase depois reencetada pelo Prín-
cipe-Herdeiro da Alemanha durante a primeira Guerra Mundial e transformada
em divisa pelos nazistas. Em alemão: Gotf erlõse uns von der europiiischen
Võlkertëulnis und schenke uns einen frischen, frdhlichen Krieg, der Europa
durchtobt, die Bevólkerung sichtet und das skruphutose Gesindel zertritt, das
jetzt den Raum zu eng rnacht.

— 218 —

Lutero no plano religioso, devia ser completada por uma emancipa-


ção total dos germanos nos tempos modernos.
II. O Mito do Século XX.
Alfredo Rosenberg (1893-1946), era, como Baldur Von Schi-
rach (249), o porta-voz oficial do nazismo alemão; membro do par-
tido desde 1920, formulava-lhe a ideologia racista, cumprindo as
ordens do Führer de escrever uma história mundial baseada no
valor das raças (250) . Em 1941, foi encarregado de germanizar
a Ucrânia; prêso em 1945, foi executado em outubro de 1946,
como um dos grandes criminosos da guerra.
Seu livro, que não nos vai reter muito tempo, chama-se "O Mi-
to do Século XX" (alemão: Der Mythus des XX Jahrhunderts),
obra medíocre e compilação de teorias alheias, mas difundida em
milhares de exemplares pela Alemanha nazista (251) . O livro de
Rosenberg não é sério, é agitação política, inspirada pelo ódio, não
isento de um forte complexo de inferioridade; é um golpe ao pres-
tígio da ciência alemã.
No pensamento do autor, o "mito" é •um sonho suscetível de
vida, um ideal empolgante a constituir a vida de uma raça: é ex-
pressão de um profundo anseio racial que, transmitido de geração
a geração, se torna cada vez mais definido e nítido. Os judeus
sonham com o domínio mundial, estabelecido e mantido pelo di-
nheiro; os católicos romanos sonham igualmente com o domínio
mundial, exercido por um papa despótico, o sucessor do grande "arús-
pice" etrúsco; os germanos possuem o senso de liberdade e de hon-
ra, duas qualidades estreitamente ligadas ao seu sangue nobre (252).
Reconhece-se o "nórdico" pela estatura alta, pelos cabelos louros e
pelos olhos azuis. Desta raça superior (253), sem a qual a civili-

. Baldur Von Schirach (1907-1945), líder da juventude nazista (desde 1933) .


. — Cf. A. Bater, Mein Kampf, I Capítulo XI, págs. 317-318 (753a.-757a. edi-
ção): "Tudo que de cultura humana nos oferece hoje o mundo, tudo o que foi
produzido pela arte, pelas ciências e pela técnica, é quase exclusivamente a
obra do ária criador. Êsse fato justifica a conclusão de que êle — e só êle
foi o fundador da humanidade superior: êle encarna o arquétipo daquilo
que costumamos chamar de "homem". Êle é o Prometeu da humanidade, de
cuja fronte luminosa se desprende, em todos os tempos, a centelha divina
do gênio... Que o eliminem, e uma escuridão profunda descerá novamente
sôbre o mundo, — talvt4 já depois de alguns milênios (sic!), — a cultura
perecerá. e a terra se transformará num deserto".
(251) . — A primeira edição date de 1930; nós utilizamos a 129a.-132a. edição (1938) .
A obra foi combatida, com muito talento, pelo bispo de Monastério (Múns-
ter), Cl. Aug. Von Galera, in Studien zum Mythus des XX. Jahrhunderts;
a réplica de Rosenberg veio em 1935: An die Dunkelmiinner unserer Zeit (=
"Aos Obscurantistas dos Nossos Tempos") . Um "diálogo" foi impossível, por-
que Rosenberg tinha idéias da verdade que se diferenciava toto coe/o da do
seu impugnador.
. — Rosenberg, Der Mythus, etc., pág. 2: "Alma significa raça vista de dentro; e
raça, por sua vez, é o lado exterior de alma".
. Os "nórdicos', cujo berço é talvez Atlântida ou o país mítico dos hiperbóreos,
espalharam-se pelo mundo em cinco grandes ondas migratórias (alemão: Wan-
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (VIII)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 29, pp 121-219, jan./mar. 1957. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/029/A009N029op.pdf

— 219 —

zação humana não existiria, os dois adversários irredutíveis são os


judeus e o catolicismo romano.
Os gregos clássicos, raça esplêndida enquanto pura — nór-
dica (Menelau, na epopéia homérica, recebe o epíteto de "louro"),
foram sendo suplantados pelos semitas: sua decadência se anuncia
nas figuras de Antístenes e de Sócrates, dos quais o último, muito
ingênuamente, pensava que a virtude fôsse ensinável. Os roma-
nos, os conquistadores briosos do mundo, foram sendo deturpados
pelos etruscos, uma raça asiática, a mais abominável de tôdas; a
Roma, imperial foi o fôrno de fundição de tôdas as raças. Tôdas
as grandes civilizações, de que nos fala a história, foram criadas
pelos nórdicos e seus parentes: no Egito, na Índia, na Grécia, na
Pérsia, na Itália, na Europa ocidental, etc., mas tôdas elas perece-
ram pela miscigenação irrestrita. Nos tempos modernos a Alema-
nha, tornada consciente dos seus valores raciais, será o baluarte da
cultura, defendendo-a de elementos nocivos e degeneradores, prin-
cipalmente de Judá e Roma.
O Cristianismo, apesar da origem ariana do seu fundador (254),
foi logo desfigurado por elementos semíticos (Paulo de Tarso, etc.)
tais como: o pecado original, a graça divina, o conceito da criação, o
monoteísmo arbitrário, etc., como também por elementos etruscos,
tais como: a magia, os sacramentos, o inferno, a hierarquia, as in-
dulgências etc. A tarefa histórica da geração atual consiste em
elaborar um "Cristianismo positivo", isto é, um Cristianismo des-
pojado dos seus elementos estranhos à alma germânica (alemão:
artfremde Bestandteile). Cristo é o Senhor absolutamente conscien-
te de si (alemão: der selbstbewusste Herr), e sua vida é-nos um
modêlo inspirador, ensinando-nos como podemos criar autônoma-
mente os valores relativos à honra, à liberdade interior e à nobreza
da alma.
E' desnecessário continuarmos o resumo das idéias pouco ori-
ginais de Rosenberg; é melhor despedirmo-nos da doutrina racista
alemã, dirigindo-nos ao pensamento dos russos sôbre a história.
(Continua no próximo número).

JOSE' V AN DEN BESSELAAR


da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

derperioden), ocupando o Egito, a Pérsia e a Índia, a Grécia e o Lácio, os.


germanos e, afinal, a colonização do mundo inteiro, desde a época das Grandes
Descobertas.
(254) . -- Na Asia Menor vivia, segundo nosso autor (ibidem, págs. 74-76), um certo.
"Chrestos", capitão de escravos oprimidos; nele se concentravam as esperanças
do povo explorado pelo fisco romano. O retrato de Jesus, tal como nô-lo apre-
sentam os Evangelhos (principalmente São Mateus), foi desfigurado por mui-
tos elementos não-arianos (messianismo judaico e redenção asiática) .
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (XI)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 31, pp 133-227, jul./set. 1957. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/031/A007N031op.pdf

QUESTÕES PEDAGóGICAS

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS


HISTÓRICOS (IX).

QUARTA PARTE

As Interpretações da História através dos Séculos.

(Continuação)

CAPITULO SÉTIMO

ENTRE A EUROPA E A ÁSIA.

§ 116. A via dolorosa da Mãezinha Rússia.


No dizer de Berdiaïev (1), houve cinco Rússias: a Rússia
quievana (de Quieve ou Kiev), a Rússia tátara, a Rússia moscovita,
a Rússia petrina (de Pedro o Grande), e a Rússia soviética. Antes
de iniciarmos a exposição do nosso tema, convém fazermos alguns
reparos concernentes à história da Rússia, à alma russa e às peculia-
ridades do pensamento russo (§§ 116-118). Sem êstes esclareci-
mentos preliminares, o leitor poderia ter a sensação um tanto de--
sagradável de se achar em terras completamente incógnitas.
I. Os Primórdios.
E' impossível exercer o poder, diz a lenda russa, sem ofender
a dignidade humana: eis porque tribos eslavas teriam voluntária-
mente confiado o govêrno a um dinasta estrangeiro, Rurik, chefe
dos varegues (2) germânicos que, desde o século VIII, se haviam
estabelecido na Rússia. A lenda, não indigna de um Tolstoi, é típi-
ca da mentalidade russa que desconfia da autoridade, julgando-a
. — N. Berdiaeff, Les Sources et Ie Sens du Cominunisme Russe, Paris, Galli-
. mard, 1949°, Chap. I.
. — Os varegues const:tu:am o ramo sueco dos normandos ou viquingues; em Cons-
tantinopla eram conhecidos como barangói; aqui apareceram, pela primeira
vez, em 989, quando Vladimiro socorreu o Imperador Basílio II no seu com-
bate contra o pretendente Focas Bardas; os barangói eram mercenários muito
estimados de Bizâncio até 1453. — Na Rússia, a dinastia de Rurik expirou
só em 1598 (Fedor I, o filho de Ivan IV "o Terrível"); a segunda, a dos
Románovs, subiu ao trono em 1613 (Miguel) e expirou em 1917 (Nico-
lau II) .
--- 136 —

uma coisa "exterior" e incompatível com a dignidade e a liberdade


humanas, e destarte incide na atitude paradoxal de possibilitar e
até de favorecer um regime autocrático e despótico. O historiador,
que tem o direito e até a obrigação de não confundir a prosa com a
poesia, aceita com as devidas reservas a motivação dada pela len-
da, mas não pode deixar de confirmá-la quando ela diz que, por
volta de 860, certas tribos eslavas, incapazes de manter a paz e a
ordem entre si e molestadas por povos estrangeiros, solicitaram o
auxílio do enérgico e hábil Rurik para lhes dar uma estável organi-
zação política (3). O varegue estabeleceu-se em Nóvgorod, pro-
curando fazer valer seu domínio em outros distritos mediante pa-
rentes vassalos (por exemplo, em Pskov, Róstov e Kiev). Sob a
principado do seu sucessor Óleg ou Hélgi, Kiev passou a ser a ca-
pital da jovem nação russa (no ano 882) .

a) O Batismo de Vladimiro.
O Novo Estado nascera fora do âmbito da Cristandade latina
(os varegues ainda eram pagãos), mas entretinha intensas relações
comerciais com o Império cristão de Bizâncio. Segundo a lenda,
Vladimiro o Grande (980-1015), querendo dar ao seu povo uma
religião superior, mas hesitando entre o judaísmo, o Islam e o Cris-
tianismo, teria enviado embaixadores a "todos os países do mundo"
para se informar das qualidades de cada uma dessas crenças. Ao
ouvir a resposta dos maometanos que lhe proibiam o uso de vinho,
Vladimiro teria protestado: "O povo russo gosta de alegrar-se: não
podemos viver sem o vinho!" Tampouco lhe aprazia a resposta dos
judeus a dizerem-lhe que viviam na "diáspora" por causa da ira
divina. Oscilando entre Roma e Bizâncio, o grão-duque teria optado
pela fé "ortodoxa", porque os mensageiros que haviam assistido às
cerimônias pomposas na Aya Sophia, lhe traziam êste comentário:
"Nunca vimos espetáculo tão impressionante: já não sabíamos se
estávamos no céu ou na terra". Por várias razões, esta lenda tão
encantadora na sua simplicidade poderia servir de ponto de partida
para um ensaio sôbre a alma russa; mas os fatos que ela nos comu-
nica não resistem a um exame crítico. Em fins do século X, ainda
não existia uma ruptura oficial e definitiva entre as duas Igrejas, de

(3). — Alguns livros de fácil acesso sôbre a história da Rússia são: P. Pascal, His-
toire de la Russie des Origines à 1917, Paris, 1949 (na coleção: "Que
Sais-Je?"); W. Kirchner, An Outline History of Russia, New York, Barnes
8s Noble, Inc., 1952 2; Bernard Pares, Russia, Its Past and Present, New
York ("A Mentor Book"), 1952 2 ; Helena Isvolski, Alma da Rússia, Rio de
Janeiro, Editôra Ocidente Ltda., 1944 (trad. port. de um livro escrito em
inglês: The Soul of Russia, 1943) .
— 137 —

modo que uma escôlha entre Roma e Constantinopla seria uma al-
ternativa anacrônica. Além disso, sabemos com certeza que Vladi-
miro foi batizado, não em Quérson por monges bizantinos, e sim em
Kiev (no ano 987 ou 988) por sacerdotes indígenas de obediência la-
tina, dois ou três antes de desposar Ana, a irmã do Imperador Ba-
sílio II (4) . O número de cristãos já não era insignificante no seu
ducado (5), de modo que Vladimiro não encontrava muita oposição
ao impor a nova religião ao seu povo (menos em Nóvgorod) . Se-
ja como fôr, devido à proximidade relativa de Bizâncio, aos gran-
des interêsses econômicos e às numerosas aventuras guerreiras que
ligavam o grão-duque ao basileus, foi a êste e não ao Papa em Roma
que se dirigiu Vladimiro para obter missionários. Aos monges gre-
gos que evangelizavam a Rússia, acrescentaram-se logo elementos
do clero búlgaro que aí introduziram o velho eslavo como lingua-
gem litúrgica (6) .
Nada mais errôneo do que pensar que a Rússia quievana, des-
de as suas origens, tenha vivido num clima de hostilidade ao Oci-
dente. During the earlier period — in the eleventh and twelfth
centuries — the Christian peoples of Eastern Europe occupied an
intermediate position between the Latin West end the Byzantine
East; and though they were divided by their religious and cultural
sympathies, the division was not an exclusive one (7). Kiev servia
de intermediária entre Roma e Bizâncio. Fatôres econômicos, po-
líticos e religiosos uniam-na aos dois mundos. Nos séculos XI e
XII, era considerável o intercâmbio de relações amigáveis entre a
côrte dos grão-duques e a Cristandade latina (8): missionários la-
tinos e embaixadores papais eram bem recebidos na cidade à beira
do Dniepre; muitas princesas russas eram casadas com príncipes eu-
ropeus: na Hungria, Polônia, Escandinávia e até na França (9) .
b) O Grande Cisma de Bizâncio (10).

— Cf. L. Bréhier, Vie et Mort de Byzance, Paris, Michel, 1948, págs. 222-223.
— Já Belga ou Olga, a viúva de Igor I e regente durante uns 25 anos (945-
969), era cristã e estava em contacto com Otão I, o Imperador ocidental
(936-973), a quem pediu um bispo e sacerdotes.
— O rei dos búlgaros Bóris (852-888) batizou-se com seu povo esni 864; desde
870, a Igreja búlgara, devido a intrigas do patriarca Fócio, obedecia a Cons-
tantinopla; por volta de 886, discípulos de São Metódio, expulsos da Morávia,
refugiaram-se na Bulgária onde foram bem acolhidos; daí em diante, o velho
eslavo (e não o grego) era a língua oficial da Igreja búlgara; em 1018, a
Bulgária foi aniquilada pelo Imperador Basílio II ("o Bulgaroctónos"); foi
então que muitos búlgaros fugiram para a Rússia onde, a pedido do grão-du-
que Iarosláv, traduziram os livros litúrgicos, até então gregos, para o eslavo.
• — Chr. Dawson, Reliáion and The Rise of Western Culture, London-New York,
Sheed & Ward, 1951 2, pág. 139.
. — Chr. Dawson, opere citato, págs. 119-140; H. Isvolski, opere citato, Capítulo
I; A. Toynbee, A Study of History, VIII págs. 401-402.
. — Ana, filha de Iarosláv de Kiev, casou-se com Henrique I, o rei da França
(1031-1060), e levou consigo um Evangelho eslavo, hoje guardado em Reims.
(10). — Sôbre Bizâncio, cf. Ch. Diehl, Histoire de l'Empire Byzaritin, Paris, 1919; L.
Bréhier (veja nota 4); excelente é o estudo do russo A. Vasiliev, História de
— 138

No fim do govêrno de Iarosláv o Sábio (1015-1054), o suces-


sor de Vladimiro, efetuou-se o Grande Cisma de Miguel Cerulário
(1054), cujas conseqüências lastimáveis persistem até nos tempos
modernos. São múltiplas e variadas as causas desta desunião da
família cristã: em grande parte, já remontam aos dias do Baixo Im-
pério. As divergências dogmáticas pr6priamente ditas entre as duas
Igrejas são de somenos importância (11), e não bastam para expli-
car a separação; muito mais importantes são as diferenças psicoló-
gicas que existem entre a alma contemplativa e conservadora do
Oriente e o espírito analítico e dinâmico do Ocidente; elas não po-
diam manifestar-se abertamente enquanto os dois mundos, mais ou
menos forçadamente, eram unidos pela Pax Romana. Mas desde a
fundação de Constantinopla (11 de maio de 330) e, mais ainda,
desde o desmembramento do Império pelo Imperador Teodósio
(em 395), cada uma das duas metades seguia seu próprio caminho,
ficando alienada da outra . O processo de alienação recíproca acen-
tuava-se cada vez mais no decurso dos séculos: as oposições, aguça-
das pela política mesquinha de duas côrtes rivais, não tardavam em
criar um abismo intransponível entre a pars Orientis e a pars Occi-
dentis, acabando por afetar também as relações eclesiásticas. O Gran-
de Cisma reflete, na história da Igreja, a profunda incompatibilidade
de gênio existente entre o mundo oriental e c mundo ocidental, incom-
patibilidade já percebida pelos gregos clássicos: ela é sumamente pe-
nosa para a consciência cristã, porque maior amor fraternal em Cris-
to teria conseguido reconciliá-la. As duas Igrejas, que deveriam com-
pletar-se para maior lustre da "catolicidade", terminavam em mútua
incompreensão, desentendimentos trágicos e franco antagonismo .
Os tempos modernos começam a sentir nostalgia da unidade ecumê-
nica, que corresponde aos intentos do Mestre Divino; mas ainda es-
tá muito por fazer para liqüidar os preconceitos seculares (12) .

Bizâncio (existe em versões francesa, inglêsa e espanhola); livro de divulga-


ção é Byzance de A. Bailly, Paris, Arthercle Fayard, 1941 3 .
(11) . — As principais divergências dogmáticas eram — e continuam sendo — estas:
a Igreja ortodoxa não acreditava no Purgatório; nega (mas nem sempre ne-
gava) a Imaculada Conceição de Maria (dogma católico desde 1854); opõe-se
à interpolação da palavra Filioque no Símbolo da Fé (Credo in Spiritum
Sancturn, Dominum et vivificantem, qu ex Patre Filioque procedit); e afinal,
combate a primazia, e principalmente a infalibilidade, do papa (dogma ca-
tólico desde 1870) . A questão do Filioque (os "uniatas" têm uma fórmula
que reza per Filium) não é muito importante no plano meramente dogmático;
um obstáculo quase insuperável é, porém, a infalibilidade do papa; do ponto
de vista católico, os cismáticos de 1054 passaram a ser hereges (pelo menos,
materialmente) desde 1870.
i 12) . — Quanto à análise dos fatôres que separaram as duas Igrejas, cf. o estudo no-
tável de Yves Congar, O. P., Neuf Cents Ans Après (in L'Église et les Égrr-
ses), Aux Éditron de Chevetogne (Belgique), 1954; sôbre as Igrejas Orientais
em geral, cf. R. Janin, Églises Orientales et Rifes Orientaux, Paris, Letou,zey
et Ané, 1955'.
139 —

' Desde o Edito de Milão (312) até o Grande Cisma, a Igreja


bizantina viveu uns 240 anos fora da comunhão com Roma (13): a
Separação de 1054 teve os seus precedentes históricos. No Primei-
ro Concílio de Constantinopla (381), o bispo desta cidade passou
a possuir honoris principatum post Romanum episcopum, propterea
quod urbs ipsa sit junior Roma (14) . Em Bizâncio, ganhava terre-
no a idéia de ser naturalmente ligada a primazia do sacerdócio à
sede imperial, principalmente quando a cidade sôbre o Tibre se
achava nas mãos dos bárbaros e a Nova Roma se mantinha firme
contra os ataques dos persas, muçulmanos e búlgaros (15) . Ao pas-
so que, no mundo latino, a Igreja conseguia conservar sua indepen-
dência do poder secular, embora não sem inúmeros atritos e usur-
pações mútuas, a Igreja bizantina ia-se desenvolvendo cada vez
mais no sentido de uma Igreja Imperial, dentro da qual o basileus
exercia uma função sacral, quase sacerdotal (16), o que, muitas vê-
zes, dava ensêjo a um Cesaropapismo calamitoso. A Igreja Bizan-
tina celebra, desde 843, — data da vitória definitiva sôbre os Ico-
noclastas (17), — no Primeiro Domingo da Quaresma, "a Festa da
Ortodoxia", festa,adotada também pela Igreja russa, a ficar, no de-
curso dos séculos, com tendências cada vez mais pronunciadas de
anti-latinismo. Bizâncio, reputando-se o baluarte da "ortodoxia"

— Houve sete cismas: 1) o Arianismo (343-398); 2) A Questão concernente a


São João Crisóstomo (404-415); 3) O Henotikón ou o Cisma de Acácio (484-
519); 4) O Monotelismo (640-681); 5-6) O Iconoclasmo (726-787, e 815-
843); 7) O Cisma de Fócio (868-879).
— Ct. Kirch, Enchiridion Fontium Historiae Ecclesiasticae Antiquae, Friburgi
Brisg., 1941 5, n.o 648. — O cânon 28 do Concílio de Calcedônia (451) che-
gava a dizer: Etenim antiquae Romae throno, quod urbs illa imperaret, jure
Palres privilegia tribuerunt. Et cedem consideratione moti CL Dei amantissimti
episcopi sanctissimo novae Romae throno aequalia privilegia tribuerunt, recta
judicantes, urbem quae et imperio et senatu honorata sit et aequalibus cum
antiquissima regina Roma privilegiis fruatur, etiam in zebus ecclesiasticis, non
secus ac illam, extolli ac magnifieri, secundam post illam exsistentem (Kirch,
n.o 943); O Papa Leão I (440-461) iMpugnava êste cânon, dizendo: Habeat,
sicut optamus, Constantinopolitana civitas gloriam suam, ac proteáente der-
fera Dei diuturno Clementiae Vesfrae (i. e. Marciani Augusti) fruatur im-
perio. Alia tamen ratio est rerum saecularium, alia divinarum, nec praeter
illam petram quam Dominus in fundamento po.stuit stabilis erit ulla com-
tructio (Kirch, n.o 898).
(15) . — Também havia outra teoria, segundo a qual a Igreja de Deus era governada
pelos cinco patriarcas (de Constantinopla, de Antioquia, de Alexandria, de
Jerusaldrn e de Roma), comparados com os cinco sentidos do corpo místico
de Cristo (a chamada "pentarquia"). — Cf. Kirch, n.o 1096 (Concílio Trulano
em Constantinopla, 692).
— O Imperador Justiniano I (527-565) chamava-se archiereus kai basileus (=
"Sumo Pontífice e Imperador"). Cf. L. Duchesne, L'Église au Vlème Siècle,
Paris, E. de Boccard, 1925. — Em 1393, o grão-duque Vassilij I de
Moscou raspava o nome do bastileus bizantino dos dípticos e escrevia ao pa-
triarca de C.pla: "Temos uma Igreja, mas já não necessitamos de um Impe-
rador"; o patriarca respondeu-lhe: "E' impossível que os cristãos tenham a
Igreja sem terem o Imperador".
— A Igreja oriental não permite a veneração de esculturas, mas só de imagens
pintadas (icones) e de mosatcos; nas duas categorias se encontram verdadeiras
obras de arte, em Bizâncio bem como na Rússia (aqui, principalmente, nos
séculos XIV e XV).
— 140

(18), suspeitava a Igreja latina de várias inovações ilegítimas (gre-


go: kainotomíai), esquecendo-se de que viver, neste mundo, eqüiva-
le a crescer e a desenvolver-se, e expondo-se ao perigo de uma cris-
talização. Se os latinos consideravam os gregos (já não helenos
"clássicos", mas bizantinos "orientalizados") como demasiadamente
sutis, astuciosos, volúveis e merecedores de nenhuma confiança, ês-
tes tinham os latinos por "bárbaros" e ignorantes da venerável tra-
dição cristã (o Cristianismo nascera no Oriente!), por usurpadores
da dignidade imperial (desde Carlos Magno), por inovadores des-
respeitosos ou até sacrílegos, e por hereges abomináveis. O patriar-
ca Fócio (19), no ano 867, e depois, Miguel Cerulário elaboraram
uma lista de queixas contra a Igreja Romana, que contém elemen-
tos bem heterogêneos: na sua grande maioria, não justificam um
cisma religioso, aos olhos de homens modernos. Quase tôdas as in-
criminações dirigidas contra os latinos referem-se a questões mera-
mente disciplinares (20), a costumes e ritos eclesiásticos diferentes
(21), diferenças de importância secundária, mas que, fora das de-
vidas proporções (22), são tratadas em pé de igualdade com a ques-
tão dogmática do' Filioque (cf. nota 11). A causa principal era,
porém, — e continua sendo, — a questão da primazia sacerdotal:

. — A grande maioria dos "ortodoxos" orientais é unânime em reconhecer como


autênticos êstes sete Concílios Ecumênicos: 1) I Nicéia, contra os arianos
(325); 2) I Constantinopla, contra os macedonianos (381); 3) Éfeso, con-
tra os nestorianos (431); 4) Calcedônia, contra os monofisitas (451); 5)
II Constantinopla: a questão dos Três Capítulos (553); 6) III Constan-
tinopla, contra os monotelistas (680-681); 7) II Nicéia, contra os icono-
clastas (787) . — Além disso, há Igrejas "heréticas" constituídas por nes-
torianos (por exemplo, no Malabar) e por monofisitas (por exemplo, na
Armênia, na Síria e no Egito).
. — Fócio (820-895) foi um dos filólogos mais eruditos de Bizâncio, e suas
obras supérstites ocupam quatro volumes de Migne (PG 101-104) . As duas
mais importantes são o Léxico (uma espécie de dicionário) e a Biblioteca
(uma antologia de excertos tirados de 280 obras gregas, modernas e clássicas,
lidas pelo com(pilador). — Durdpte a dinastia macedôn'ca (867-1057), houve
uma "Renascença" de estudos clássicos em Bizâncio (época de enciclopédias,
dicionários, etc.; em 863, foi restaurada a Universidade de Constantinopla) •
. — Por exemplo, o celibato dos padres latinos.
. — Por exemPlo, diferenças na lei de jejum, na praxe de se cantar a Aleluia
durante a Quaresma, no costume de fazerem a barba os padres latinos, e
sobretudo, no emprêgo de pão não fermentado (grego: ázimo) para a Santa
Eucaristia no Ocidente; êste último ponto era considerado de tamanha im-
portância pelos bizantinos que a palavra "azimista" passou a ser têrmo de-
preciativo para indicar os latinos. Até a palavra grega ártos (= "pão" ) era
relacionada com o verbo áiro (= "levantar-se, fermentar-se") . — Cf. nota 38.
. — O rito é, para os orientais, a fé vivida, ao passo que, para os latinos, não
passa de uma expressão simbólica (mais ou menos acidental) da fé. No
Oriente, o têrmo "ortodoxia" corre o risco de se confundir com "retidão do
culto tradicioncr; inovações litúrgicas são logo suspeitas de "heterodoxia".
A atitude dos raskólniki russos (cf. § 116 III d) ilustra bem esta mentali-
dade "oriental". — Também a menor divergência na disciplina eclesiástica
é considerada como próxima de heresia; cf. esta prece antiga da Igreja bi-
zantina (apud Chr. Dawson, The Making of Europe, London, Sheed &
Ward, 1936, pág. 181, nota 1): On this day (a saber, no Domingo antes
de Septuagésima) the thrice accursed Armenians keep their fast which
they cal7 "Artziburion". But we eat daily cheese and eggs, in refutation
of their heresy.
— 141 —

a supremacia papal era doutrina inaceitável para o orgulho nacio-


nal dos bizantinos; os patriarcas de Constantinopla encorajados, no
mais das vêzes, pelo basileus, sustentavam a tese de ser governada
a Igreja de Cristo, em tempos normais, pela "pentarquia" (cf. nota
15) e, surgindo questões muito graves, pelos concílios ecumênicos,
— ou então, atribuíam-se, como Fócio, o título de "Patriarca ecumê-
nico" (22a) em razão da transferência da côrte imperial, das margens
do Tibre para o Bósforo. Por outro lado, devemos reconhecer que a
bula de excomunhão, posta no altar-mor da Aya Sophia (aos 16 dias
de julho de 1054) pelo legado papal Humberto, é um documento
que, além de testemunhar falta tremenda de caridade fraternal, não
mostra a menor compreensão pelas particularidades da Igreja gre-
ga. Esse Humberto, homem áspero, autoritário e estreito, muito
contribuía com a sua atitude altaneira para se exacerbarem as anti-
patias dos bizantinos contra a hierarquia romana .
Entramos de propósito nesses desentendimentos, porque são
de suma importância para a compreensão da ortodoxia russa, filha
da ortodoxia bizantina, pelo menos na sua fase moscovita. A Rús-
sia quievana, porém, vivendo numa ignorância quase total das gran-
des discussões teológicas da época e estando em bons têrmos com o
mundo latino, estava pouco a par dos acontecimentos que haviam de
dividir a Cristandade durante muitos séculos. As antipatias con-
tra os latinos começaram a penetrar na Rússia só a partir do sé-
culo XIII, quando os descendentes de Rurik, enfraquecidos por
guerras fratricidas, se viam ameaçados, ao norte e ao oeste, por ger-
manos e eslavos católicos, ao mesmo tempo que os tátaros asiá-
ticos invadiam, a leste, as estepes da Eurásia . Refugiados bizan-
tinos espalhavam na Rússia notícias sensacionais sôbre as atroci-
dades inauditas cometidas pelos Cruzados latinos, quando da to-
mada de Constantinopla (1204), a cidade imperial (Czar' grad),
que possuía para os russos um prestígio quase mágico. O Impé-
rio latino (1204-1261) provocava na Rússia, como em todo o
Oriente Próximo, sentimentos de horror e compaixão. Pour la
première fois, l'Occident latin apparaissait comme un monde étran-
ger et ho.stile, et cette impression devait s'accentuer à mesure que
la Russie s'enfermait dans un isolement farouche, concentrant tou-
tes ses forces pour la lutte désespérée contre l'envahisseur Tatar,
sentant grandir derriè,re elle une force menaçante qui, sous l'aspect
das chevaliers Porte-glaives et des Suédois, était bien l'avant-gar-
de du monde latin tourné contre elle (23) .
(22a) . — O título já tinha sido usurpado (embora em sentido meio diferente) nos fins do
séc. VI por João o Jejuador (588); o Papa Gregório 1 (590-604) assumiu o
título de Servus Servorum Dei.
(23) • J.-N. Danzás, L'Itinéraire Reliáieux de ia- Consciente Russe; Juvisy, . Les
Éditions du .Cerf, 1935, pág.. 11.
— 142 —

II. Os Tátaros (24) .


A Rússia quievana, despedaçada, desde os meados do século
XII, em diversos principados autônomos e rivais, era uma presa
inerme para os tátaros, povo mongolóide habitante das estepes asiá-
ticas. Moscou foi conquistada em 1236 (25), Kiev em 1240 (26);
os russos tornaram-se tributários de um povo oriental e despótico.
Os finlandeses, os suecos, os poloneses e até os alemães aproveita-
vam-se dêsse período de humilhação dos russos para se apoderar de
vastos territórios da Rússia setentrional e ocidental. O centro da
vida nacional foi-se transferindo para as regiões de leste, e a Rús-
sia, isolada da Cristandade latina e até da bizantina, foi-se trans-
formando num país oriental. Desapareciam as instituições nacio-
nais da época anterior (27), acabava a cultura urbana de Kiev e
de outros centros importantes, tornavam-se impossíveis os contac-
tos com Roma e Bizâncio. A jovem nação, que dera provas de pos-
suir capacidades culturais, afundava-se num estado de primitivismo.
A única instituição nacional a sobreviver ao cataclismo geral era a
Igreja, a qual matinha viva a consciência russa na luta desesperada
contra os invasores orientais e pagãos. Êstes, apesar da sua cruel-
dade (o cnute!), praticavam certa tolerância religiosa e não impu-
nham sua religião aos povos tributários (28).
A soberania dos tátaros deixou vestígios duráveis no povo rus-
so: Grattez le russe, et vous trouverez le Tartare (29). A Rússia
sofreu profundas influências orientais: nos costumes (por exemplo,
a posição da mulher, a crueldade para com os inimigos, etc.), nas
instituições políticas (por exemplo, a autocracia, o sistema financei-
ro, a burocracia, etc.), na sua composição biológica, no seu vocabu-
lário, etc. O primeiro principado russo a emancipar-se do jugo
tátaro foi Moscóvia que, desde 1328, era sede do metropolita e,
aos poucos, conseguia expulsar os opressores, também dos outros

. — Em geral são chamados (menos corretamente) de "tártaros", forma origi-


nada pela palavra latina tartarus (= "inferno" ): os latinos, apavorados pelas
hordas asiáticas, tinham os tártaros por "filhos do inferno". — Os tártaros
que subjugavam a Rússia, eram chefiados por Batu ou Bati, neto do terrível
Gengiscão (1162-1227), o conquistador da China setentrional e de Turquestão
(sôbre êle, cf. Genghis Khan, The Emperor of All Men, by Harold Lamb,
Philadelphia, 1927) . A "Horda de Ouro", no tempo de seu apogeu, abran-
gia a China (até 1368), o Turquestão, grandes partes da Sibéria e da Rús-
sia, e tentava penetrar até na Polônia e na Alemanha.
. — Moscou é mencionada, pela primeira vez, nó ano 1147.
. — Kiev foi tomada pelos tártdros em 1240; a cidade já fôra saqueada, em
1169, por prín,:ipes russos que se haviam tornado independentes de Kiev.
. — A Rúss'a quievana possuira uma monarquia moderada, controlada que era
pelo vieche, conselho municipal, em que eram representados todos os , homens
livres. •
. — Cf. o famoso relatório das viagens de Marco Polo (1271-1292) no país do
Grande Cão ou Khan.
- (29) — Frade q:trôneamente atribuída a Nlapoleão, e provàvelattente dita

por Joseph de Maistre que viveu vários anos na Rússia (1803-1817) •


-- 143 —

principados, acabando por estender a hegemonia ao país inteiro.


O grão-duque Ivan III (1462-1505), cognominado o Grande, pôs,
têrmo definitivo ao domínio tátaro em 1502; já em 1480 tinha si-
do liqüidado o tributo.
III. A Terceira Roma.
Ivan III, casado com Zoé ou Sofia (educada em Roma), so-
brinha do último Imperador bizantino Constantino XI Paleólogo-
(1448-1453), começou a adotar os ares de sucessor legítimo do
basileus: assumia a águia bicéfala e o cerimonial da côrte cons--
tantinopolitana, consolidava o regime autocrático, e arvorava-se em
chefe da Igreja nacional (sem possuir, como nenhum dos seus su--
cessores, o título oficial de chefe da Igreja, isso ao invés dos reis
da Inglaterra) . Apoiando-se na classe dos boiares (30), o grão--
duque, a quem só faltava o título de Imperador (31), eliminava
ou sujeitava, aos poucos, os numerosos príncipes de outros distri-
tos: a nova Rússia ia-se confundindo com a Moscóvia. A Rússia_
quievana possuira uma cultura urbana com desenvolvimento apre-
ciável do comércio e das indústrias; a Rússia moscovita era, na
sua quase totalidade, um país agrícola com poucos latifundários.
privilegiados e com uma imensa maioria de servos (32) . A Rús-
sia quievana abrira as janelas também para a Europa ocidental; a
Rússia moscovita vivia num isolamento quase total (33), julgan--
do-se predestinada a conservar acesa a lâmpada da Ortodoxia, so-
bretudo depois da Queda de Constantinopla (1453), catástrofe-
essa que, na Rússia, era explicada como castigo divino por causa
da aliança do basileus com o Papa, no Concílio de Florença (34) .

. Os boiares constituem uma classe de latifundários privilegiados (não here-


ditários), cuja posição dependia dos seus serviços prestados ao Estado (im-
postos, caulpanhas militares, etc.) . A Duma Boiárskaia (= "O Conselho dos
boiares") foi abolida por Pedro o Grande, em 1711.
. — O título de Czar (forma russa da palavra latina CaesarP) foi assumido,
em 1547, por Ivan IV (1533-1584), e a "usurpação" foi reconhecida por •
Constantinopla em 1562.
. — A servidão foi legalizada e oficializada em 1597. As deportações de crimi-
nosos e elementos indesejáveis para a Sibéria foram iniciadas durante o rei- .
nado de Bóris Godunóv (1598-1605) .
. — Contudo não era completo o isolamento: Ivan III e sua espôsa Sofia atraíam
artistas e artesãos ital'anos para Moscou (Kremlim! ); sob os primeiros Ro-
mánovs, negociantes e artesãos estrangeiros estabeleciam-se em Moscou, prin- -
cinalmente de origem alemã; o "bairro alemão" de Moscou era centro de
grande atividade econômica e técnica, e aí Pedro o Grande, quando menino,
ficaria altamente impressionado pela superioridade dos ocidentais.
. — No Concílio de Florença (1431-1445), os gregos eram representados pelo ,
patriarca José, e os russos pelo metropolitraj Isidoro de Moscou. Isidoro,
quando de volta à sua pátria, foi mal recebido pelo grão-duque Vassílij II,
e até encarcerado; conseguiu fugir a Roma, onde muito trabalhou pela união.
— O decreto de união abrangia quatro artigos: Filioque (os orientais po--
diam adotar uma fórmula eqüivalente a per Filha-a), ázlimos, Purgatório e
a primazia do Papa (cf. Denzinger, n.c's 691-694) . Também em Bizâncio foi
de pouca duração a união. — Já em 1274, o Imperador Miguel VIII Pa--
--- 144 —

Monges gregos (35) e eslavos meridionais não cessavam de pregar


o ódio contra os latinos, os quais eram detestados sem serem co-
nhecidos. Nos séculos seguintes, a separação não foi desfeita e
sim consolidada: as lutas renhidas contra os poloneses católicos
(36), as manobras políticas dos magnates poloneses para burlar
os decretos da União Eclesiástica de Brest-Litóvsk (37), a propa-
ganda anti-papista dos manuais protestantes (geralmente de origem
alemã), e afinal, as piadas irreverentes acêrca do clero católico en-
contradiças nos livros franceses do Siècle des Lumières, — eis os
principais fatôres que, durante uns três séculos, atiçavam as antipa-
tias instintivas da alma russa contra o latinismo, o qual ia sendo
identificado com agressividade brutal, materialismo hedonista, e
religiosidade hipócrita. Se a evolução da Rússia moscovita andava
paralela à da Europa, no que diz respeito ao absolutismo, em dois
pontos seguia um caminho bem diferente e até intempestivo: a
Rússia herdava de Bizâncio a idéia teocrática, abandonada no Oci-
dente em fins da Idade Média, e, — pouco fiel aos seus primórdios
promissores em Kiev,.— não fomentava o nascimento do tiers état,
mas elaborava um feudalismo aui gerzeris, condenando quase todos
os seus súditos à servidão.
a) O Messianismo.
O monge Filoteu de Pskov escrevia ao grão-duque Vassílij III
(1505-1553), o sucessor de Ivan III, estas famosas palavras: "A
Igreja de Roma caiu por causa da heresia de Apolináris (38) .

leólogo, que acabava de readquirir C.pla, fizera as pazes com a Igreja latina
(no Concílio de Lião); a união, que se baseava nos mesmos princípios que
depois seriam adotados por Florença (cf. Denzinger, n.os 460-466), foi des-
feita em 1282.
. — Entre êles se destacava a figura do monge grego Máximo de Atos (por
volta de 1550), convidado por Moscou a traduzir e a corrigir os livros sa-
grados. Êste inimigo figadal do "latinismo", que tinha conhecimentos pessoais
do mundo ocidental, exprobrava aos católicos paganismo por causa da filo-
sofia escolástica que se inspirava pelas obras do "pagão" AristOteles . Foi prin-
cipalmente êle que envenenou os russos ingênuos de grande número de pre-
conceitos absurdos sôbre os latinos.
. — Depois da morte do último rurícida (1598), houve uma época de perturba-
ções políticas na Rússia ("os falsos Demétrios"!), das quais se aproveita-
vam os poloneses: êstes conseguiram até conquistar Moscou, onde comete-
ram muitos atos cruéis.
. — Esta união (1595) reconciliava os rutenos (súditos da PcXônia, desde
1569) com Roma e concedia aos "uniatas" o rito eslavo; mos desde o iní-
cio, a união era contrariada pelos magnates da Polônia; a Rutênia oriental
(com Kiev) foi reintegrada na Rússia no ano 1667 (= Ucrânia) .
(38). — Apolináris de Laodicéia (século IV), ao combater o Arianismo que negava
a natureza divina de Cristo, caiu no extremo oposto, chegando a negar a
natureza humana de Cristo, no sentido pleno da palavra: Cristo teria assu-
mido apenas um corpo humano, não o espírito humano. Aos olhos dos bi-
zantinos e de Filoteu, o costume latino de consagrar pão sem fermento (que
remonta aos séculos VIII-IX), simbolizava a heresia apolinária dos latinos:
"o corpo humano sem a alma humana".
— 145 —

Quanto à Nova Roma, as portas desta cidade foram abatidas pelos


machados dos ímpios ismaelitas (39). A Terceira Roma, porém,
a Santa Igreja Apostólica, resplandece agora no Universo inteiro
sob o Vosso govêrno forte com maior brilho do que o sol. Já cai-
ram duas Romas; a Terceira está firme em pé, e jamais haverá uma
quarta Roma. Sabei, portanto, ó rei poderoso, que sois o único mo-
narca no mundo a possuir o direito de. Vos chamar rei santo e orto-
doxo". Nascera o mito de ser Moscou a Terceira Roma, mito que,
com o tempo, se ia revestindo do prestígio de um artigo de fé; apa-
recera o messianismo do povo russo que, nos séculos XIX e XX,
havia de ser proclamado com tanta ênfase. Em 1589, criou-se o
Patriarcado de Moscou (40), símbolo da emancipação eclesiástica
do povo russo, ato êsse que foi reconhecido oficialmente por Cons-
tantinopla em 1592 (41).

b) Clero Branco e Clero Prêto.

Emancipara-se a Igreja russa de Constantinopla sem, porém,


ganhar a liberdade interna: todos os seus atos eram rigorosamente
controlados pelo Czar. A Igreja russa transformava-se num institu-
to nacional e, julgando-se a única Igreja incorrupta, reputava ne-
fasta tôda e qualquer influência estrangeira; encerrava-se num iso-
lamento estéril e chegava ao ponto de suspeitar de heterodoxia Cons-
tantinopla. O clero russo tinha pouquíssima cultura: os popes, re-
crutados entre as camadas muito humildes da população (41a), re-
cebiam muitas vêzes apenas uma instrução oral que se limitava às
fórmulas litúrgicas e à música sacra; deviam garantir, não provar,
que sabiam ler e escrever; seu prestígio social era pràticamente
e até o ano 1796 estavam sujeitos aos mesmos castigos físicos
dos servos, com os quais partilhavam, aliás, a crassa ignorância e a
rudeza de costumes. Não havia na Rússia, na época anterior ao sé-
culo XIX, escolas de teologia; as obras dos Padres gregos, gabadas

(39) . — Os turcos eram identificados com os "ismaelitas", descendentes de Ismael,


o filho de Abrão e de Hagar, cf. Gênesis, XVI.
— O primeiro patriarca foi J6, o décimo e último Adriano (falecido em 1700).
— Nesta ocasião, as palavras de Filoteu foram parafraseadas pelo patriarca
Jereruras III de Constantinopla, cf. A. Toynbee, A Study of History, VII
pág. 36.
(41a). Na Igreja ortodoxa, os popes (= "os sacerdotes seculares" ou "o clero bran-
co") podem casar-se, emi oposição aos monges ("o clero prêto") que obser-
vam o celibato; antes do século XIX, o sacerdócio era, na Rússia, muitas
vêzes uma "profissão" hereditária (a1;és, muito mal paga) que se trki.nsmitia
de pai a filho; os popes ortodoxos, geralmente pessoas sem preparo e quase
sempre obrigados a sustentar sua família com seu trabalho manual, quase
nunca exercem a cura animarum, mas limitam-se ao ministério litúrgico; en-
tre êles e "o clero prêto" existem rnluitas vêzes rivalidades funestas; só os mon-
ges podem ser elevados à dignidade episcopal; entre êles também há voca-
ções duvidosas (carreiras rápidas!).

Revista de História n.° 31


— 146 —

como o reduto da "ortodoxia", eram mal conhecidas (42), e até a


Bíblia era pouco estudada. Os poucos livros que circulavam trata-
vam de mística e ascese (de cunho oriental), ou eram vidas milagro-
sas de santos (geralmente nacionais) . Ao culto divino, ao esplen-
dor da liturgia prestava-se uma atenção que nos parece a nós, os oci-
dentais, excessiva e até supersticiosa: o menor desvio da tradição
passava por sacrilégio e heresia. A instrução metódica dos fiéis nos
mistérios da fé e na moral cristã era negligenciada: os sermões e a
catequese ocupavam lugar bem subalterno e, antes do século XIX,
eram quase inexistentes . Mas a participação no culto divino devia
ministrar os conhecimentos religiosos, e cumpre reconhecermos que
a participação era ativa e o culto riquíssimo. A Igreja russa era
isenta do casuísmo estreito que, em certas épocas, ameaçava sufo-
car a vida religiosa da Igreja latina, mas, por outro lado, influen-
ciava muito pouco os costumes e a vida cotidiana dos seus fiéis.
O ideal da santidade era representado pelos monges "angélicos"
que, muito semelhantes aos antigos anacoretas, viviam longe do mun-
do como reclusos ou eremitas, e praticavam atos heróicos de mortifica-
ção, humildade, pobreza e "exinanição" (43) . Nem sempre livres
de um certo dualismo oriental, que tende a criar uma oposição irre-
dutível entre o mundo e a santidade, em nada se pareciam êsses
monges pouco cultos, pouco ativos e pouco organizados com 'as le-
giões dos beneditinos que com suas orações e com seus trabalhos
intelectuais e manuais moldaram a Europa ocidental. Entre êles se
destacavam, desde, o século XV, os startzi, isto é, aquêles monges
que combinavam a reputação de uma grande santidade pessoal com
uma faculdade extraordinária de dar uma orientação espiritual aos
seus numerosos visitantes. Os startzi, imortalizados pelo livro "Os
Irmãos Karamazov" de Dostoïevski, exerciam uma grande influên-
cia sôbre a vida particular de muitos indivíduos bem como sôbre o
ressurgimento da idéia religiosa no século XIX (44), influência ge-
ralmente salutar e autênticamente cristã, principalmente naquela
época de humilhação em que a Igreja oficial era a escrava do Es-
tado. Mais Pidéal proposé était trop haut, trop surhumain, et il
n'y avait sucuri plan intermédiaire entre cet idéal et le monde in-
térieur voué à Pindignité. Ce fut Pune des causes profondes de cet-
te tolérance pour le péché qui devint un trait caractéristique de ia

— No século XIX, as quatro grandes Academias Eclesiásticas da Rússia publi-


cariam a tradução das obras completas dos Padres gregos, trabalho notável
que era devido principalmente aos monges do célebre mosteiro de Optina
(no distrito de Kaluga) .
— Em latim, exinanítio; em grego, kénosis, cf. Ep. Fil., II 7: "Jesus aniquilou-
se a si mesmo. " (veja também § 75 IV, nota 86) .
(44) . — Os startzi de Optina (cf. nota 42) desempenharam papel importantíssimo
na vida de Gogolj, Ivan Kireïevski, Dostoievski, Solovïev, Khomiakóv, e até
na do racionahsta Tolstoi.
— 147 —

mentalité russa. Si on n'est pas un moine ascète, on est un indigne'


pécheur, et alors la tentation est grande de, céder au péché, quand
on sait que les simples vertas humaines ne peuvent conduire au sa-
lut. . . Pourvu qu'un homme soit astsez bon chrétien pour assis-
ter aux offices, on ne semblait pas s'offusquer de le voir se vautrer
ivre-mort dans la boue des rues,. . ou assassinar quelqu'un dans
une rixe de cabaret. Ce n'était qu'un pauvre pécheur, sttm d'étre
pardonné s'il était humble de coeur (45).
c) A Lenda de São Nicolau e São Cassiano.
A Igreja russa, ao contrário da Igreja latina que moldava e ins-
pirava a estrutura social e política da Europa, limitava-se a trans-
mitir a mensagem do Evangelho às almas individuais, não mediante•
uma instrução metódica, mas pelo culto divino e pelo exemplo
inspirador dos seus monges abnegados. Uma lenda russa (46) ilus-
tra bem a diferença fundamental que, neste ponto, existe entre as
duas Igrejas.
Num belo dia, dois santos são enviados do céu para visitarem
o mundo: São Cassiano, representante da espiritualidade oriental,.
e São Nicolau, representante da espiritualidade ocidental. Atraves-
sando a "Santa Rússia", avistam de longe um camponês esforçan-
do-se muito por arrancar de um lamaçal seu carro repleto de feno.
São Nicolau, ativo como sempre, não hesita em acudir ao homem
e, à fôrça de muita labuta, consegue pôr em movimento o carro do•
camponês, mas São Cassiano, tendo mêdo de sujar sua clâmide bran-
ca que trouxe do céu, senta-se ao lado do caminho à espera do seu
amigo. Os dois santos, quando de volta ao céu, são elogiados por
São Pedro, mas não sem certa discriminação: São Nicolau, o ami-
go do povo laborioso, fica com duas festas cada ano (45a), ao passo.
que São Cassiano, o místico, deve contentar-se com uma festa só em
quatro anos, no dia bissexto. A "moral" da fábula é evidente . A Igre-
ja ortodoxa contempla de longe as pelejas humanas sem se impli-
car em negócios que a poderiam comprometer, mas a Igreja la-
tina, verdadeira amiga da humanidade, põe mãos à obra social,.
compromisso êsse que não é possível sem perder algo da alvura ce-
leste. Por outras palavras, a Igreja latina intromete-se mais nas '

necessidades terrestres do gênero humano, ao passo que a Igreja


ortodoxa, considerando-se neste mundo como transeunte, vive nas.
realidades transcendentes. E Solovïév a acrescentar: Nous aimons

— J.-N. Danzas, op. cit., pág. 8 e pág. 30.


(45a). — No dia 9 de maio, e na dia 6 de dezembro (esta última data concorda com
o cdlendário da Igreja latina).
— VI. Soloviev, La Russie et l'Église Universelle, Paris, Stock, 1889 (obra es-
crita em francês) . — A lenda se encontra logo no início do livro.
— 148 —

bien l'habit pur et splendide de saint Cassien, mais puisque notre


chariot , est encore au beau milieu de la boue, c'est surtout de saint
Nicolas que nous avons besoin, de ce saint intrépide toujours prêt
à se mettre à l'oeuvre pour nous secourir.

d) Os Raskólniki (47) .
Em 1652, Nikon, homem erudito e de largas vistas, mas a
quem faltavam duas virtudes importantes. a paciência e o tacto,
subiu ao trôno patriarcal de Moscou. Já como metropolita de
Nóvgorod empenhara-se em elevar o nível teológico e cultural da
Igreja russa, e uma vez chegado à dignidade de patriarca, espe-
rava poder realizar plenamente seus planos de reforma, tanto mais
quanto podia contar com o apôio do seu amigo, o Czar Alexéj (48).
Aos olhos de Nikon, a Igreja nacional se achava numa situação de-
soladora: suas relações pessoais com os teólogos gregos, conven-
ceram-no de que a ortodoxia russa era obscurantista e atrasadíssi-
ma . Também o contacto com os ucranianos de Kiev, sempre su-
periores aos moscovitas em assuntos, de patrística e teologia (49),
levavam-no a essa opinião; e não era inegável a superioridade dos
poloneses, dos quais os russos tomaram forçadamente conhecimen-
to na época das perturbações?
Em 1654, houve um Sínodo em Moscou, freqüentado também
por vários prelados gregos, no qual foi decretada uma revisão radi-
cal dos livros sagrados em conformidade aos textos gregos: também
alguns costumes eclesiásticos divergentes da Igreja de Bizâncio
haviam de ser postos de acôrdo com os da Igreja-Mãe (50) . Es-
sas medidas provocaram uma tempestade de indignação entre os
fiéis e o baixo clero da Rússia. Nikon, acusado de "bizantinismo"
e até de "latinismo" (por causa das suas simpatias para com os
ucranianos), não recuava de recorrer ao braço secular (embora
tivesse, inicialmente, a intenção de livrar a Igreja do jugo do Es-

. — Cf. P. Pascal, Avvakum et les Débuts do Raskol: La Crise Religieuse au


XVII Siècle en Russia, Paris, Institut Français de Léningrad, 1938.
. — Alexéj (1645-1676) era filho do Czar Miguel (1613-1645), o primieiro dos
Románovs e filho do patriarca de Moscou Filar& (falecido em 1633); Fi-
larét dominava completamente seu filho e arrogava-se o título de "Grande
Senhor"; a partir do Czar Alexéj, o Estado readquiria a supremacia.
<49) . — Os ucranianos (cf. nota 37), chefiados pelos cossacos (uma classe de guer-
reiros que, nas margens do rio Dniepre, se tinha formado para combater os
tátaros), livraram-se, em 1647, do jugo polonês, e pediram a proteção do
Czar em 1654. Em 1667, a Ucrânia foi anexada pela Rússia (Tratado de
Andrusoiro, entre a Polônia e a Rússia); visto que o absolutismo de Moscou
não respeitava os privilégios nacionais da Ucrânia, os cossacos revoltaram-se
várias vêzes contra o Czar durante o século XVIII (Mazeppa e Pugatchev!);
foram derrotados só em 1775.
(5 0). — As diferenças eram, como sempre na Igreja ortodoxa, insignificantes (cf. no-
tas 21 e 22), por exemplo: benzer-se com três dedos em vez de dois; cantar
três vêzes a Aleluia e não duas; a pronúncia do nome de Jesus; etc., etc.
— 149 —

tado) para dar cabo dos seus adversários (51). O patriarca foi
deposto num segundo Sínodo (1666) que incorreu na resolução
contraditória de aprovar as reformas eclesiásticas e de renegar a
pessoa de Nikon, já antes abandonado pelo Czar. O Estado triun-
fara mais uma vez sôbre a Igreja.
Milhões de fiéis recusavam-se a obedecer à resolução do Sí-
ncdo, muito embora o govêrno czarista perseguisse rudemente os
não-conformistas, submetendo-os a taxas especiais, expondo-os a dis-
criminações sociais e políticas, e condenando-os, em alguns casos, à
prisão ou até à fogueira (52) . Nascera o raskol, o cisma interno da
Igreja russa, a manter afastados da vida nacional milhares e milha-
res de pessoas: o número de ratikólniki era, no século XIX, avaliado
em 15 a 20% da população total. O raskol russo é fenômeno bas-
tante complexo, originado e sustentado por causas diversas. Muitos
sectários eram conservadores radicais, tanto mais fanáticos quanto
mais ignorantes, e inclinados a atribuir um valor mágico aos costu-
mes tradicionais; outros eram xenófobos cegos que viam em todo e
qualquer contacto com o estrangeiro um perigo letal para a orto-
doxia russa, a Terceira e a última Roma; para muitos, o cisma era
um protesto contra as ingerências do Estado nos negócios da Igre-
ja; não poucos agiam sob a influência de idéias protestantes, pietis-
tas e racionalistas. Unidos só negativamente por causa da sua luta
comum contra o Czar, no qual muitos viam o Anticristo, começaram
a ramificar-se em inúmeras seitas (53), logo depois de terminado o
calor do primeiro combate. O raskol, ameaça muito séria para a
unidade do povo russo, anuncia outro cisma interno, o que foi cria-
do por Pedro o Grande.

IV. A Rússia Petrina.

O Czar Pedro o Grande (1689-1725) era espírito utilitário, tra-


balhador infatigável e reformador intrépido: com sua energia fér-
rea esforçava-se por despertar a Rússia do seu sono asiático. Já des-
de menino profundamente impressionado pelos avanços técnicos e

. — Entre as suas vítimas se destacava a figura do arcipreste Avvakúm (1620-


1681), duas vêzes exilado e, afinal, queimado como herege; Avvakúm dei-
xou-nos um Diário, relatório comovente dos seus sofrimentos e testemunho
eloqüente do heroísmo da sua mulher que partilhava com êle todos os tor-
mentos.
— Só em 1903 e 1905, os raskólniki ficaram com mais liberdade (juntamente
com os católicos); a Revolução de 1917 aboliu tôdas as discriminações, dan-
do-lhes o direito de serem perseguidos como os outros fiéis.
• — Globalmente falando, os raskólniki dividem-se em dois grandes grupos: os
popovtsi (= "os presbiterianos", os que ainda possuem sacerdotes) e os
bespopovtsi ("os sem- sacerdotes"); êstes últimos vivem sem sacramentos
(menos o batismo) e aguardam o próximo fim do mundo.
— 150 —

econômicos da Europa ocidental (54), tentava tudo para europeizar


o seu país. Centralizava o poder, fomentava a indústria e o comér-
cio, favorecia as artes, melhorava as estradas e as vias fluviais, cons-
truía uma frota marítima, impondo sua vontade inflexível a um po-
vo pouco preparado e pouco disposto a abraçar os benefícios da ci-
vilização. Verdadeiro déspota esclarecido, quebrava impiedosamen-
te a oposição que lhe faziam os nobres, os camponeses, os raskólniki,
nem sequer poupando seu próprio filho (55) . Nada escapava ao
seu zêlo reformador. Reorganizava o sistema financeiro, modifica-
va a arrecadação dos impostos, introduzia o calendário juliano (56),
simplificava o alfabeto russo (57), instituía uma nova classe de no-
bres (58) e para ter "uma janela sôbre a Europa", fundava, nos
pântanos finlandêses, uma nova cidade: Sankt Petersburg (59) jul-
gada "a cidade mais artificial e abstrata da Rússia" por Dostoïevski
e muitos outros eslavófilos do século XIX.
a) O Santo Sínodo.
Também a Igreja nacional foi vítima das suas reformas. Tendo
falecido, em 1700, Adriano, o décimo patriarca de Moscou, o Czar,
em questões religiosas completamente indiferente e até cinicamente
incrédulo (60), impedia por vários anos a eleição de um novo dig-
nitário; afinal, em 1721, em estreita colaboração com Teófanes Pro-
kópovitch, o arcebispo de Nóvgorod que tinha simpatias protestan-
tes, promulgou o célebre "Regimento Eclesiástico". O Patriarcado foi
abolido e substituído pelo Santo Sínodo, supremo órgão da ortodo-
xia russa, composto de onze membros, leigos e clérigos, todos êles
nomeados pelo Czar; seu presidente era o "Procurador Superinten-

. — Pedro, quando moço, já gostava de passar muitas horas no bairro dos es-
trangeiros em Moscou, onde admirava o artesanato e a técnica da Europa.
— Depois fêz duas viagens pela Europa (1697-1698, e 1716-1717); em
Zaandam (Holanda) trabalhava num estaleiro; visitou várias côrtes euro-
péias, • guardando o incógnito; teve encontros com diversas personagens ilus-
tres da sua época (por exemplo, Leibniz, Boerhaave e van Leeuwenhoek) .
. — Em 1718, Pedro torturou bàrbaramente seu filho Alexéj, que se opunha
às reformas do seu pai; o Czarevitch, aliás um libertino sem fibra, logo
depois morreu.
. Até então, a Rússia seguia a Éra Bizantina (cf. § 52 III d) e começava
o Ano Novo no dia 1 de setembro; a Revolução bolchevista introduziu o
Ano Gregoriano (cf. § 56 V, nota 70).
— O alfabeto de Cirilo contava 43 caracteres; Pedro reduziu (em 1708) o
número das letras russas a 36, e a Grande Revolução (em 1918) a 33; cf.
§ 57 IV e.
— Pedro aboliu o Conselho dos boiares (cf. nota 30); a nova classe de nobres
era hereditária mas sujeita a serviços obrigatórios (campanhas militares,
responsabilidade pelos impostos, etc.).
— "Sankt Petersburg" (até o nome é estrangeiro!) foi fundada em 1703; desde
1712 era a capital da Rússia; em 1914, seu nome foi mudado em "Potro-
grad"; em 1918, cedeu seu lugar de capital a Moscou; em 1924, ficou com
o nome de "Leningrad".
(60) . O Imperador fazia representar óperas burlescas, em que a Igreja, os sa-
cramentos e a hierarquia eram ridicularizadas; até organizava "missas de
Baco".
— 151 —

dente", leigo e ministro do Estado, a possuir o direito de veto (61).


Destarte a Igreja ficou completamente escravizada, visto que o San-
to Sínodo não passava de um departamento estatal (62). A grande
maioria do clero conformava-se, embora a contragôsto, com o ato ar-
bitrário de Pedro, o qual foi reconhecido por Constantinopla em
1723. Mas entre o povo humilde havia muitos que abominavam
tôdas as reformas do Czar, vendo nele o Anticristo, e recorriam a
uma revolta desesperada, a qual foi reprimida com bastante cruel-
dade. Recrudesciam as antinomias internas da Rússia: o alto cle-
ro era suspeito de traição da causa do povo, os popes eram muitas
vêzes considerados como agentes da polícia secreta do govêrno;
só os monges mantinham viva a consciência ortodoxa do povo rus-
so. Oficialmente, ser russo era idêntico a ser ortodoxo; mas essa
divisa oficial evidenciava-se, com o tempo, cada vez mais men-
tirosa.
b) Uma Pseudomorfose.
O intento de Pedro de pôr a Rússia em contacto com as rea-
lizações de países mais adiantados era, em si, louvável, mas o Czar
procedia com muita precipitação e arbitrariedade (62a). Com efeito,
o apóstolo do Ocidente tinha todos os instintos grosseiros, — e em-
pregava todos os meios tirânicos, — de um déspota oriental: não
era guiado por ideais humanitários, e sim por interêsses estatais.
Parecia-lhe possível adotar as conquistas técnicas e científicas da
Europa sem lhes fornecer os alicerces espirituais, nos quais o pro-
gresso ocidental havia assentado. Deixava de examinar o que ha-
via de aproveitável na tradição autóctone da Rússia e, querendo
fazer tábua rasa do passado, mostrava um desprêzo total pela dig-
nidade da pessoa humana. Suas medidas eram impostas pela fôr-
ça brutal, e aceitas a contragôsto pela grande maioria da popula-
ção. O sistema criado por êle, aumentava a burocracia (63), mul-
tiplicava os regulamentos e as fiscalizações, encorajava as delações
e a corrupação, e — pior ainda — não remediava os verdadeiros
males do país. Acentuava-se o abismo entre uma pequena minoria
privilegiada, superficialmente europeizada, e uma imensa maioria
. — Célebre entre os Procuradores era, no século XIX, Konst. P. Pobïedónozev
(1880-1907), que exercia uma grande influência sôbre Alexandre III (1881-
1894) e Nicolau II (1894-1917); fazia tudo para impedir a proclamação
de uma Constituição e oprimia as minorias religiosas e nacionais na Rússia.
. — Os membros deviarni prestar juramento de lealdade ao Czar e ao Império;
os padres eram obrigados a comunicar ao govêrno todos os crimes de lesa-
majestade, mesmo quebrando o segrêdo da confissão; a partir de 1764, o
número de conventos e de monges ficou rigorosamente limitado, e as profis-
sões religiosas ficaram sujeitas a uma aprovação anterior do Santo Sínodo.
(62a) . Leia-se a interessante análise e J.-J. Rousseau, no Da Contrai Social, II 8-
. — Pedro instituiu três hierarquias de nobres: militares, serviço civil, e côrte,
cada uma dividida em várias categorias. — Uma sátira grotesca da burocracia
russa encontra-se na comédia de N. Gogolj: "O Revisor" (1836) .
— 152 —

a viver em servidão, ignorância, fatalismo e miséria: entre os dois


grupos existia apenas a relação que existe entre exploradores e ex-
plorados. A Rússia petrina sofria, desde as suas origens, de um
"cisma interno" (na terminologia de Toynbee), ou era (segundo
Spengler) uma "pseudomorfose", à qual faltava tôda e qualquer or-
ganicidade. Êste cisma não se limitava a questões religiosas, mas
afetava também a sociedade, a cultura e os costumes. Eram duas
Rússias, unidas constrangidamente: uma voltada para a Europa
progressista e racionalista, a perder todo ■J contacto com o povo;
a outra perseverando no seu misticismo asiático, sem compreensão
da mentalidade da elite. E' de se admirar que a Rússia petrina te-
nha conseguido subsistir até o ano 1917.
c) O Urso Russo.
Na segunda metade do século XVIII, a aristocracia europeiza-
da da Rússia brincava com as idéias avançadas de Voltaire e dos
Enciclopedistas: a "Santa Rússia" enveredava pelo caminho do
laicismo. Em 1764, sob o reinado de Catarina II, os bens eclesiás-
ticos foram expropriados pelo Estado, e os clérigos passaram à ca
tegoria de funcionários públicos, — conseqüência natural da po-
lítica iniciada por Pedro. Os atentados da Revolução francesa con-
tra o regime autocrático alarmavam os soberanos russos, induzin-
do-os a reforçar a censura e a banir os livros julgados perigosos
(64) . A invasão dos exércitos franceses provocava vagas de pa-
triotismo delirante no país inteiro. Muitos súditos do Czar con-
templavam estupefatos as maravilhas da cultura ocidental duran-
te suas campanhas militares na Europa, e viam numa adaptação
da Rússia ao Ocidente a única salvação para o seu país; para outros,
porém, menos simplistas e mais ponderados, o contacto forçado
com a Europa era ensêjo de uma reflexão aprofundada sôbre o va-
lor do patrimônio nacional nos tempos modernos. Sob o govêrno .

do Czar Alexandre I (65), a Rússia czarista chegava ao cume do

. — Depois do reinado meio liberal de Catarina II (1762-1796), houve uma.


reação sob o Czar Paulo I (1796-1801), assassinado cruelmente pelos no-
bres descontentes (talvez de conivência com seu filho Alexandre) .
. O Czar Alexandre I (1801-1825) é urna das figuras mais misteriosas e dis-
cutidas da história da Rússia. Educado pelo suíço liberal Fr. C. La Harpe (1784-
1794), era homem culto e inteligente, de maneiras agradáveis e de aparência
cativante ("Pango de Ia cour de St. Petersbourg) . Como muitos dos seus con-
temporâneos, tendia para o misticismo e o ocultismo, e era franco-mação hu-
manitário (a franco-maçonaria foi proibida, na Rússia, em 1822) . Alexan-
dre estudava a possibilidade de dar uma Constituição ao seu país, mas de-
pois da invasão francesa revelaval-se como reacionário. Mestre na arte de
simular e dissimular, caprichoso, desigual e preguiçoso, decepcionava as es-
peranças dos progressistas. Segundo boatos persistentes, teria travado nego-.
ciações com o Papa Leão XII sôbre a reunião das Igrejas, e teria falecido-
católico. Sôbre sua morte estende-se uma neblina de misteriosidade: não
teria morrido em 1825, como diz ■ am os comunicados oficiais, mas se teria
feito starétz (monge) e teria vivido, sob o nome de Fedor Kozmitch, até-
1864.
— 153 —

seu poder e prestígio internacional e decidia, temporàriamente, da


sorte da Europa: na batalha de Lípsia, no Congresso de Viena e
na "Santa Aliança" (cf. ,§ 95 IV) . O messianismo do povo russo
que, outrora, não pasava de um sonho fantástico ou de uma ideo-
logia pretensiosa, estribava-se agora em sólidas realidades -políticas
(aliás, mal aproveitadas durante o século XIX) e nutria-se de ex-
pectativas muito mais grandiosas ainda . Mas internamente a Rús-
sia era fraca, dividida que era por oposições irreconciliáveis: o "Ur-
so Russo" era freqüentemente comparado a um colôsso de bronze,
assente num soco de argila . Não obstante conseguia consolidar seu
território asiático (66), compensando assim seu declínio na Euro-
pa, que já se iniciou sob o Czar Nicolau I (1825-1855). Não po-
demos acompanhar aqui, nem sequer nas linhas mestras, a história
externa e interna da Rússia durante o século XIX; basta dizermos
que o regime czarista teimava em opor-se à evolução liberal que se
verificava nos países ocidentais: apesar da emancipação dos servos
em 1861 (67) e não obstante uma nova Duma em 1905 (68), a
Rússia continuava a viver num clima de atraso econômico, social e
político que melhor pode ser caracterizado pelas três palavras: "Or-
todoxia, Autocracia e Nação" (69).
A história interna da Rússia, durante o século passado, pode
ser considerada como o período de uma crise crônica, pouco aliviada
por umas concessões ocasionais que geralmente eram forçadas e vi-
nham atrasadas (70) . Para fazer frente ao número cada vez cres-
. — Já em 1645, os russos atingiram a costa do Oceano Pacífico na Sibéria (1648:
fundação de Okhotsk); descobriram, em 1741, a Alasca, território americano
que entre 1799 e 1861 era explorado por uma companhia russo-americana;
em 1867, a península foi vendida aos Estados Unidos por $ 7.200.000.
. — A servidão foi abolido pelo Czar Alexandre IX em 1861 (23 milhães de ser-
vos foram emancipados); aos lavradores libertos é concedido o usufruto (me-
diante uma indenização aos proprietários, paga em dinheiro ou em serviços)
da sua morada, de uma horta e de um estábulo; os libertos têm o direito
de comprar um certo lote de terras (mediante um adiantamento fornecido
pelo Estado); não os lavradores individuais são responsáveis pelo cumpri-
mento dos deveres para com o Estado e os antigos proprietários, mas o Mir,
"a comuna rural" (instituição russa que remonta aos tempos do domínio
tátaro); o Mir, entidade mais ou •lenos autônoma, distribui os lotes dis-
poníveis entre os camponeses da aldeia, paga as dívidas coletivas, não pode
alienar as terras que lhe são confiadas, e redistribui os lotes caso o exi-
jam as circunstâncias.
. — A chamada Duma Gossudárstvennata (= mais ou menos "House of Lords");
houve quatro Dumas: as duas primeiras (1905-1906) foram logo dissolvi-
das; nas duas outras (1907-1912, e 1912-1917) predominavam os modera-
dos. O sufrágio não era nem universal nem direto, e os votos eram quali-
tativos.
. Esta divisa famosa encontra-se numa instrução publicada pelo Czar Nicolau
I (1825-1855) e seu Ministro de Educação Uvárov (1832); antípoda da di-
visa ímpia da Revolução: Liberté, Égalité, Fraternité, procurava reprimir
as tendências católicas, protestantes e racionalistas (ortodoxia), o movi-
mento revolucionário e liberal (autocracia), e as influências nefastas do es-
trangeiro (nação) .
. — Épocas meio liberais foram a primeira metade do govêmo de Alexandre I
e II; a "Constituição" de 1905, que instituía a Duma, era um paliativo
que em nada remediava os grandes males do país.
— 154 —

tente de descontentes, o govêrno assumia uma atitude brutalmente


reacionária e repressiva. Em face das numerosas conspirações con-
tra o regime, tramadas por estudantes, oficiais, aventureiros, idea-
listas e desiludidos, o govêrno fincava-se em vigiar mesquinhamen-
te tôdas as manifestações da opinião pública, não recuando de me-
didas drásticas: censura rigorosa, regulamentos policiais, deporta-
ções, trabalhos forçados, execuções, expatriações, etc. (71) . Nascia
uma ruptura funesta entre a Rússia oficial, — despótica, carcerá-
ria e intolerante, — e a nação russa que clamava por reformas, jus-
tiça e redenção: a ruptura devia levar inevitàvelmente ao cataclis-
mo. A "intelliguentzia" (72) russa entregava-se com paixão a dis-
cussões calorosas e, geralmente, improfícuas, extasiando-se por so-
luções quiméricas para, logo depois, recair na sua inércia (72a); tor-
nava-se irrespirável o ar para idealistas e pessoas sinceras; também
aos que eram leais, mas francos, era imposto o silêncio; a tirania con-
denava os elementos não heróicos ao conformismo ou à indolência;
entretanto o país era trabalhado por agitadores profissionais, que
espalhavam o terror. Eis a situação da Rússia czarista nos últimos
decênios da sua existência. E o povo humilde, na grande maioria
composta de lavradores analfabetos e supersticiosos, vivia na extre-
ma miséria, aceitando seu destino com uma espécie de resignação
apática; na sua veneração religiosa pelo "Paizinho Czar" não podia
decidir-se a acreditar que êste fôsse responsável pela miséria do
povo, mas, imputando-a à prepotência dos aristocratas, acreditava
num trágico mal-entendido entre o Pai e seus filhos oprimidos. "O',
se o Czar soubesse. . .!" (73).
V. A Rússia Soviética.

(71). — Quase todos os autores de que pretendemos falar neste capítulo foram ví-
timas do regime autoritário; Khomiakóv e Soloviév não podiam publicar mui-
tos dos seus livros na Rússia; Dostoïevski foi condenado a trabalhos for-
çados; Berdiáïev foi relegado para uma cidade ao norte do país (1900-1903);
Tchaadáïev foi oficialmente declarado mentecapto e confiado aos cuidados
de um médico; Tolstoi, autor de fama mundial, não era pessoalmente mo-
lestado pela polícia, mas estava terminantemente proibido de divulgar suas
idéias n'ilistas.
(72) . — A "intelliguentzia" rusea não é idêntica à classe dos intelectuais em outros
países, mas designa o conjunto de tôdas as pessoas "esclarecidas", pertencentes
a quaisquer classes sociais, que se ocupam intensamente com o problema social e
político.
(72a). -- Célebres descrições da vida russa, durante o século XIX, encontram-se nos
grandes romances de Tolstoi bem como no romance maravilhoso de N. Gogolj
"As Almas Mortas" (obra inacabada, 1842) e no de Iván Gontcharóv "Obló-
mov" (1852) . Leia-se também o conto encantador de Nikoloj Lieskow: "O
Clero de Stárgorod" (1872).
(73). — No dia 22 de janeiro de 1905, milhares de homens e mulheres, liderados
pelo pope Gapon, pretendiam manifestar as queixas do povo ao Czar em
St. Petersburg; era mais uma procissão religiosa do que uma passeata po-
lítica: os manifestantes não tinham armas nem perturbavam a ordem pú-
blica, =tas cantavam hinos religiosos e eram precedidos por icones sagradas;
o Czar estava ausente; centenas de manifestantes inermes e inocentes foram
brutalmente mortos pela soldadesca.
— 155 —

Le parti bolchevik triompha dans la révolution, parce que,


dans une période d'anarchie virtuelle, il fut le seul à savoir com-
ment conquérir sur celle-ci la direction asurée et le contrôle f er-
ma dont un gouvernement a besoin pour être vraimente un gou-
vernement (74) . A extraordinária habilidade política de Lênin
sabia ativar e empolgar grande parte da população russa; o peri-
go de uma intervenção estrangeira, a ameaça de uma "reação bur-
guesa" e a imperícia dos seus adversários não pouco contribuíam
para lhe corroborar o poder. As dificuldades de após-guerra eram
enormes, mas o povo russo, não acostumado a alto padrão de vi-
da, aceitava os sacrifícios, se não com boa vontade, ao menos, com
certa resignação que lhe é peculiar. Muitos tinham confiança
nos vastos planos nacionais, cuja execução exigia a mobilização de
tôdas as fôrças disponíveis. On ne fait pas des révolutions à l'eau-
rose: o povo russo, nunca amimalhado por um regime suave, con-
solava-se do novo terror com a idéia de que um mundo novo não
pode nascer sem sangue e lágrimas. E a construção de um mundo
novo era o alvo inspirador dos esforços comuns. Segundo muitos
afirmam, o povo russo vivia, naqueles anos, numa esperança apo-
calíptica, reputando-se a vanguarda da humaniN'cle: sua revolu-
ção parecia-lhe a aurora de uma nova época histórica que seria
modelar para todos os povos do globo. As fôrças caóticas e contra-
ditórias da alma russa que, durante tantos séculos, haviam defi-
nhado em letargia, ou então, se haviam combatido em escaramuças
quixotescas, o regime comunista sabia concentrá-las hàbilmente,
orientando-as para um fim determinado.
a) Ganhos e Perdas.
As realizações técnicas, econômicas e políticas da União So-
viética são impressionantes, — segundo alguns, assustadoras (75),
— e também é inegável certo progresso,no setor social, fato èsse
que é concedido pelos adversários mais irredutíveis do sistema bol-
chevista. O povo russo, outrora tão inativo e indolente, tão fata-
lista e inclinado a especulações quiméricas, está-se transformando
num povo de trabalhadores conscientes, ativos e briosos; seu mis-
ticismo sonhador, a converter-se fàcilmente em devaneação mór-
bida, vem sendo contrabalançado, embora bruscamente e de mo-
do brutal, por um confrônto forçado com as realidades terrestres;
e o realismo pode ser-lhe, até certo ponto, antídoto salutar. Por

. H. Lask;, Réflexions sur la Révolution de Notre Temps, Paris, Éditions


du Senil, 1947, pág. 64; cf. J. Bruhat, Histoire de I'U.R.S.S., Paris,
Pressas Univertaires, 1954 (na coleção: "Que Sais-Je?"); cf. também os
livros de Pares e Kirchner, citados na nota 3.
. — Cf. H. Massis, Découverte de Ia Russia, Lyon, Lardanchet, 1944.
— 156 —

mais paradoxal e incrível que pareça, o regime comunista propor-


cionou certa dignidade ao indivíduo humano: S'ils (= os russos não
comunistas) se soumettent pour le monient à la dictature du Parti,
c'est n'ont pas encore suffisamment pris conscience de leurs
propres forces. Ils sentent obscurément que cette dictature, mal-
gré teus sies défauts et toutes ses tares, leur a conféré une nouvelle
dignité. El ils redoutent le retour de maitres , qui tenteraient de
leur enlever cette dignité et de les replonger dans l'infériorité (76).
As vagas esperanças da autora desta frase (escrita em 1936) numa
revolução interna foram desmentidas pelos acontecimentos poste-
riores; mas o que ela constata a respeito da nouvelle dignité do
homem soviético (76a), é confirmado por muitos outros autores e
hoje talvez mais conforme a verdade do que há 21 anos. Ao brio pela
causa do proletariado internacional acrescenta-se, — ou substitui-
se, — o enlêvo patriótico: o nacionalismo foi oficialmente reabi-
litado em 1935 (77), e a "pátria" — nã..) o proletariado interna.
cional entusiasmou os russos durante a Segunda Guerra Mundial.
A propaganda soviética faz tudo para alimentar o nacionalismo dos
russos, fazendo-lhes crer que são êles os únicos vencedores do
"fascismo", exaltando os méritos de cientistas e artistas russos, in-
culcando o valor das tradições nacionais e enchendo-os de um mê-
do quase histérico às potências ocidentais tradicionalmente hostis
ao povo russo e brutalmente agressivas (apesar da sua podridão
burguesa!) . Por vêzes parece aue o marxismo dos dirigentes atuais
é mais artigo de exportação para os países ocidentais do que uma
doutrina sinceramente professada; e nas países asiáticos e africa-
nos, onde existem tantos rancores contra os (ex-)colonizadores euro-
peus, o comunismo se •reveste de tendências nacionalistas. O gran-
de objetivo é estabelecer a hegemonia russa sôbre o planeta in-

. — H. Iswolsky, L'Homme 1936 en Russie Soviétique, Paris, Desclée De Brou-


wer, 1936, pág. 69; a mesma autora, filha do último embaixador czarista
na França, escreveu no mesmo ano: La Ferrtrne 1936 en Russie Soviétique.
— Cf. também nota 3.
(76a), — Existe "o homem soviético?" O professor alemão W. Starlinger (no livro
"Limites de la puissance soviétique , trad. francesa, publicado em Paris, Spes,
1956) nega-lhe a existência, bem como a do "patriotismo soviético". O que,
segundo êle, existe é uma infinidade de povos, tribos, restos de povos e um
número infinito de nacionclidades ainda em vias de formação, !rés sómente
uma única grande nação perfeitamente consciente de si própria, — a Grande
Rússia. — A União Soviética ccntinua a obra de "russificação" já iniciada pelo
regime czarista, e executa' dràsticamente as idéias dos panslavistas do século
passado.
. — Em 1936, foi proclamada a "Nova Constituição", em muitos pontos um
regresso às antigas tradições do povo russo e encerr'.;mento oficial do primeiro
período "anarquista". Pelo mesmo tempo, Stálin baixou outras leis impor-
tantes: reabilitação da família e do Matrimônio; restauração da disciplina
escolar; reorientação do ensino (disciplinas . "humanistas", história pátria em
sentido patriótico, etc.); estímulo de iniciativas particulares (o "movimento
Stakhánov") e maior diferenciação de vencimentos entre as diversas cate-
gorias de trabalhadores; abrandamento da campanha anti-religiosa, • etc.
—. 157 —

teiro. Pax Russica ou Pax Americana, eis, ao que parece, o trá-


gico dilema em que o mundo atual se acha metido.
Aos grandes progressos realizados em diversos setores cor-
respondem, infelizmente, um Imperialismo agressivo, uma descon-
fiança sistemática contra as democracias ocidentais, e um isolamen-
to sinistro. Há outros inconvenientes mais graves ainda. O povo
russo pagou muito caro sua hegemonia atual. O regime comunista
prossegue o processo de europeização iniciado por Pedro o Gran-
de, sendo inspirado pelo mesmo espírito utilitário e despótico. Os
benefícios da civilização moderna, — sempre interpretados à luz
dos interêsses marxistas e/ou imperialistas, — são violentamente
impostos à população, sem que haja a menor consideração dos di-
reitos da pessoa humana (expropriações, coletivações, deportações,
industrialização, etc.). O terror comunista, ora manifesto, ora la-
tente, mas sempre diligente, leva ao seu extremo a tríplice divisa
czarista: "Ortodoxia, Autocracia e Nação". Os dirigentes do Krem-
lin arvoram-se nos únicos intérpretes legítimos do dogma marxis-
ta; o povo tem de obedecer incondicionalmente ao govêrno auto-
crático do Partido sem ter direito a representações populares; e o
Proletariado Internacional e a Nação russa (esta para uso inter-
no, aquêle para uso externo ou interno, conforme o caso) servem
de alavancas místicas das massas que precisam ser mobilizadas
para a tão almejada realização dos sonhos imperialistas. E afinal,
a religião, "êsse ópio para o povo", é cruelmente perseguida (78),
ou então tolerada e "protegida", isto é, escravizada, de acôrdo com
as conveniências políticas do momento. Em 1917, foi abolido o
Santo Sínodo, e Tykhon, sacerdote digno mas pouco manejável pa-
ra os comunistas, foi eleito Patriarca de Moscou, o primeiro desde
os dias de Pedro o Grande (79); após sua morte (1925), o govêr-
no impedia durante vários anos a eleição de um sucessor; a Igreja
russa, vexada pelos comunistas e infestada por cissões internas, era
precàriamente governada pelo metropolitr4 Sérgio aue procurava

Desde o início do regime, os ortodoxos, os raskólniki e os católicos (há


muito poucos protestantes na Rússia) estavam expostos a uma perseguição
sistemática, cuja tática variava conforma as conveniências do momento; em
1925, foi fundada a "Liga dos Ateus" que ficou com largos subsídios do Es-
tado; a alma da campanha anti-religiosa era Emelian Iaroslavski; em 1929,
foi abolida a "tolerância" religiosa: só era permitida propaganda anti-reli-
giosa; em 1936, foram abrandadas as medidas contra a religião, e a partir
de 1943, o Estado considera a Igreja como sua aliada, apesar de continuar
professando o materialismo histórico e não tolerar o ensino religioso.
— Tykhon foi prêso em 1922 e sôlto em 1923; nestes anos nascia um cisma
novo na Rússia a proliferar-se ràpidamente; constituia-se a chamada "Igreja
viva" de tendências modernistas e disposta a fazer tôdas as concessões ao
regime; também havia movimentos separatistas nas Igrejas da Ucrânia e de
outras repúblicas sov'éticas; Tykhon, apesar do seu ato de submissão ao re-
gime (1923), continuava sendo molestado pelas. autoridades e pela "Igreja
sinodal" que era proteg'da pelos poderes públicos.
— 158 --

uma fórmula de reconciliação com o regime (80); apesar dos seus


inúmeros protestos de lealdade, milhares e milhares de cristãos
("reacionários e traidores") eram perseguidos e, por volta de 1930,
a campanha anti-religiosa atingia o seu climax; em 1943, Stálin,
reconhecendo a religião como fator importante na vida nacional
do povo russo (ainda não ateu, apesar de 25 anos de perseguições),
mandou suspender tôda a campanha anti-religiosa e permitiu que
Sérgio subisse ao trôno patriarcal. A política "dialética" pode per-
mitir-se o luxo de uns rodeios! Em 1945, sucedeu a Sérgio o me-
tropolita de Leningrado, Alexéj, o qual, sob a alta proteção do go-
vêrno comunista, procura estabelecer uma espécie de hegemonia
entre os patriarcas orientais e entre êles mantém viva a tradição
anti-romana (81) . Os comunistas, após muitos anos de luta encar-
niçada contra a religião, acabaram por anexá-la oficialmente, e a
Igreja russa continua sendo humilhada e explorada pela política.
"A Igreja do Silêncio" nos campos de concentração da Sibéria cor-
responde, sem dúvida alguma, muito mais às altas aspirações re-
ligiosas do povo russo do que a Igreja soviética, instrumento po-
lítico em mãos de ateus.
b) Oriente ou Ocidente?
Mais uma vez: o comunismo russo, reencetando a tradição
de Pedro o Grande, é uma tentativa de europeizar o país. Preva-
lece o espírito utilitário, que adora a máquina, aprecia excessiva-
mente a técnica e as tendências positivas, e considera como seu
ideal, já não a Europa ocidental, e sim a América do Norte, —
industrializada e mecanizada, — apesar de tôdas as divergências
políticas e ideológicas. Outrossim, o marxismo é uma ideologia
ocidental, racionalista e materialista, uma arma que está sendo ma-
nejada contra o mesmo mundo ocidental. L'inspiration oc,cidentale
paraït évidente... Mais en même temps, Lénine considérait le
. — Em 1927, Sérgio promulgou uma carta oficial, dirigida aos bispos, clérigos
e fiéis na Rússia e no estrangeiro, na qual declarava ser ilegítinla e contrá-
ria aos princípios do Cristianismo tôda e qualquer tentativa contra os pode-
res estabelecidos, e exigia lealdade absoluta para com o govêrno; êsse ato
provocou uma tempestade de indignação entre os emigrantes russos (que se
foram organizando em hierarquias independentes) como também na própria
pátria; em 1929, chegava Sérgio a negar, numa carta oficial, dirigida contra
o Vaticano e o arcebispo de Cantuária, a existência de uma persecução re-
ligiosa na Rússia. Apesar de tôdas essas tentativas desesperadas de recon-
ciliação com o govêrno, persistiam as medidas anti-religiosas.
. — Num número da Revista Patriarcal de Moscou (1946) encontra-se êste
texto significativo: "Moscou é a Terceira Roma, símbolo de uma idéia uni-
versal e de uma união mundial que deve contrabalançar o papismo com suas
aspirações a um govêrno autocrático religioso, e com seu sonho desvairado
de estabelecer o domínio sôbre o mundo inteiro. Moscou é a Terceira Ro-
mia, e jamais haverá uma quarta, — eis o que disseram os nossos pais
desde os dias de Ivan III" (apud Cht:.istentum und Geschichte, Düsseldorf,
1955, pág. 78; cf. E. Benz, Die Ostkirche, München-Freiburg, 1952, págs.
351-362) .
— 159 —

mouvement soviétique comme un "retour aux sources", une res-


tauration des plus and .nne institutidns russos (82) . A transfe-
rência da capital para Moscou é fato simbólico. A União Sovié-
tica não renega suas raízes asiáticas, e persevera na posição am-
bígua e enigmática da Rússia pré-revolucionária . Só o futuro po-
derá revelar se a Rússia pertencerá ao Oriente de Xerxes ou ao
Oriente cristão, e se a Rússia bolchevista deve ser considerada co-
mo a vanguarda da Europa na Ásia ou então, como a vanguarda
da Ásia na Europa .
§ 117. A alma da Rússia.
Desde os dias de Harder, o inventor da "etnopsicosofia", ne-
nhuma alma nacional, talvez com a exceção da alma espanhola,
tem sido objeto de tanta curiosidade indiscreta, — e, infelizmen-
te, também de tamanha mistificação, — como a alma rusa. Tam-
bém nós queremos consagrar-lhe umas poucas palavras (83).
I. Um Povo de Extremos.
Os russos que convidavam Rurik a assumir o govêrno sôbre
êles, motivaram, segundo a crônica, seu pedido com estas palavras:
"pois o nosso país é vasto e rico, mas desordenado". Eis uma des-
crição fiel da alma rusa: vasta e indefinida como as estepes imen-
sas da planície russa, rica em emoções delicadas, intuições subli-
mes e grandiosas criações artísticas, mas caótica, turbulenta, dese-
quilibrada . A alma russa é algo de misterioso, ao ponto de ser
incompreensível para o homem ocidental: "nós, os russos, nos as-
semelhamos aos europeus como a mão direita à esquerda", e mui-
tos ocidentais que tiveram a oportunidade de travar relações com
os russos, declaram estar diante de um enigma . Assim mesmo, os
próprios russos têm a pretensão de possuir uma "palavra univer-
sal' que será, amanhã, reconhecida por todos os povos: se isto é
verdade, a alma russa, apesar da sua feição bem particular, tem que
ter algo de universalmente humano, e podemos ter a esperança de
levantar um pouco o véu misterioso.

. — R. Grousset, Silan de l'Histoire, Paris, Plon, 1954, pág. 97; cf. H. Massis,
Déiense de 1'Occident, Paris, Plon, págs. 75-79, e O. Spengler, )(abre der
Entscheidung. München, Beck. 1953, págs. 46-49.
. — A "alma russa" — é quase desnecessário lembrar o leitor, não existe, no
sentido próprio da palavra; é urna "tipologia" dentro do quadro das ciências
morais, à qual não se pode atribuir o rigor de um conceito abstrato ou de
uma lei necessária (cf. 13 II; 16 II; § 17 II; 65 I-II) — O livro
clássico sôbre a alma da Rússia foi escrito por 'Th. G. Masaryk em 1913
(o primeiro presidente da Checoslováquia), obra traduzida para o inglês:
The Spirit of Russia, I-II, New York, 1919; cf. também Dr. Simon Frank,
Die russische Weltanschauung, Charlottenburg, 1926.
— 160 —

A Rússia não é a pátria das idéias claras e distintas, nem do


pensamento estritamente lógico ou discursivo; ao espírito russo
parece artificial o caminho que leva do cogito para o sumi e, in-
vertendo a ordem, vai do sum para o cogito. Aprecia, antes de mais
nada, o "pensamento vivo" (russo: chivosnánie): La racine inté-
rieure de la compréhension est là oà toutes les facultéeS séparées
s'unissent en une seule vision vivante de Pesprit (84). A alma
apaixonada (85), mística e emotiva do povo russo é avêssa ao ra-
cionalismo, em que vê uma mutilação da verdade integral e da
realidade profunda. A intuição, a fé, a experiência mística são
exaltadas como instrumentos primários de saber vital. Se tal ati-
tude dá certa frescura e candor ao espírito russo, premunindo-o con-
tra trivialidades, não o premune contra certa indisciplina mental,
contra generalizações vagas (86), contra especulações quiméricas.
Nenhum povo pode viver de abstrações: a história contempo-
rânea nô-lo mostrou bastante; mas, para o russo, o raciocínio abs-
trato é um suplício, ou antes, uma impossibilidade. Dès qu'une
idée est entrée dans la pendée d'un Russe, elle cesse, en effet,
d'être une abstraction; elle devient une vérité concrète; il juge
toutes chores d'après elle; aucune difficulté d'interprétation, aucune
obscurité ne Parrête. Point de considérations sur l'inconnu ou l'im-
possible (87) . A própria palavra russa Právda quer dizer "ver-
dade" e "direito, justiça": a Právda não é a verdade abstrata, a
levar uma existência aérea, e sim uma verdade triunfante que de-
ve transfigurar a vida concreta dos indivíduos e da sociedade. Num
romance de Dostoïevski lemos: "Não és tu que devoraste a idéia,
mas a idéia te devorou a ti", e esta palavra não se aplica apenas
a Kirilov, o herói do romance, mas aos russos em geral. O pensa-
mento abstrato é sômente uma ligação ideal entre o "eu" e o "ser",
mas a vida cria entre êles um vínculo real. No Ocidente há mi-
lhões de pessoas que não acreditam na existência de um Deus pes-
soal: são em geral, ateus indiferentes, na Rússia, o ateu é militan-
te; se Deus não passa de uma ilusão, essa ilusão é das mais pernicio-
sas para a mente humana: Deus deve ser cümbatido ativamente e a
Juta contra Deus, o Grande Adversário do gênero humano, fica com

(84). — Cf. N. O. Losski, Histoire de la Philosophie Russe, Paris, Payot, 1954,


pág. 24.
. — Cf. Joseph de Maistre: Si Pon pouvait enfermer un désir russe sous une
forteresse, fl la ferait sauter.
. — O grande historiador russo M. Rostovzeff, referindo-se à ajuda do seu amigo
inglês, J. C. G. Anderson, na publicação do seu livro monumental: The
Social and Economic History of The Roman Empire (Oxford, 1926, pag.
XV) diz: Last, but not least, he made me eive a definite statement rn
many cases where I was inclined to remam vague: evidently the Engritsh
mind, in this respect unlike the Slavonic, dislikes a lack of precision in
thought or expression.
. — Henri Massis, Défense de l'Occident, pág. 104.
— 161 —

tôdas as características de uma inimizade pessoal. A moral, para um


russo, não é o cumprimento de uma lei impessoal ou o respeito por
normas abstratas, e sim uma verdade empolgante, ao serviço da qual
o homem precisa imolar-se, ou então, um mundo fictício que deve
ser aniquilado.
Tudo ou nada, Deus ou Satanás, — parece que o russo não
admite meio-têrmo, mas gosta de viver na borda do abismo: si-
multâneamente sente-se aliciado pela candura do céu sereno e pe-
las sombras do profundo vertiginoso . Num revezamento singular,
alternam-se orações fervorosas e blasfêmias ímpias, atos de subli-
me ternura e atos de crueldade hedionda, gestos descomedidos de
auto-afirmação e gestos humildes de remorso (88) e de "exinina-
cão", desejos de harmonia universal e desejos de destruição uni-
versal (88a). La Russie partout et tcujours restera le pays des
contrastes extrêmes et des pôles opposés. Bassesse et pauvreté
d'esprit, — et étourdiasante grandeur! La Russie est moins que
tout la contrée des positions moyennes et d'une culture de tjuste
Le niveau moyen y a toujours été bas. Au sens strictement
européen de ce mot, il n'y a pas de culture, pas de tradition cul-
turelle russe . Dans ses bas-fonds, la RusSie récèle encore la sau-
vagerie et la barbarie, elle est encore en proie au chaos (89) . Es-
curidão embrulha a alma russa, e fôrças contraditórias a atormen-
tam; o que ela procura, não é o saber desinteressado, o conheci-
mento teórico, e sim sua libertação de potências antinômicas que
nela se combatem. A soteriologia marxista encontrou fecundo so-
lo alimentício nas aspirações instintivas do povo russo. A alma
russa, longe de estar satisfeita consigo ou de contentar-se com uma
dada situação, deseja ardentemente o Absoluto; aí está a tão fala-
da "religiosidade russa" que, no fundo, não passa de radicalismo apai-
xonado e apresenta faces diferentes: por um lado, a espiritualidade
dos monges, a beleza etérea da música sacra, a majestade celeste
das icones, mas, por outro lado, o fanatismo dos anarquistas e a
cega dedicação a um programa político ou social sem considerações
de ordem humanitária ou moral. Se êsse "radicalismo" preserva o
homem russo de certa mediocridade trivial, de certas posições ego-

— tf. B. Pares, op. cit., pág. 27: A German in drink boasts, a Russian mur-
murs that he is a miserable sinner.
(88a). —Cf. Bakúnin (§ 99 IIa) e as palavras do poeta russo V. L. Briússov (1873-
1924):
Tout périra, peut-être, sares laisser de vestiges,
Tout ce que nous seuls avons connu.
N'importe! enforme un hymne de bienvenue
A vous qui allez m'anéantir
(apud M. Hofmann, Histoire de la Littérature Russe, Paris, Payot, 1934,
pág. 634).
— N. Berdiaev, 'Le Seres de Ia Création, Paris, Desclée De Brouwer, 1955, pág.
413.

Revista de História n.o 31


— 162 —

cêntricas e de certa mesquinhez egoísta, — vícios tão corriqueiros


na civilização ocidental contemporânea, — não o premune contra
certos exageros e excessos, nem contra o extremismo: a alma rus-
sa, sofrendo de tensões insuportáveis, tende a confundir modera-
ção com mediocridade, disciplina mental com cristalização do pen-
samento, liberdade com anarquia, e entusiasmo com delírio . Os
exemplares do radicalismo russo abundam nas obras de Dostoïevski.
Suas personagens são constantemente torturadas pela idéia de Deus;
algumas delas querem provar, não mediante um raciocínio abstra-
to, mas com seus atos friamente calculados, a não existência de
Deus. A tese: "Se Deus não existe, tudo é lícito ao homem, ou o
homem é Deus", esta tese deixa de ser acadêmica na Rússia, mas
é posta em prática e "vivida" usque ad absurdum. Ao russo pa-
rece uma prisão o mundo dos fenômenos exteriores com suas leis
objetivas, e um zero o indivíduo humano a não ser que êste seja
considerado nas suas relações vitais com o Absoluto . Em cada
grande romance de Dostoïevski encontramos esta pergunta: "Acre-
ditas em Deus?". Pergunta importantíssima, pois quando sabemos
o que uma pessoa pensa de Deus, sabemos também o que ela pen-
sa dos homens, da sociedade, do mundo. E um major dostoïevskia-
no exclama com ingenuidade verdadeiramente extremista: "Se Deus
não existisse, como é que eu poderia ser major?!"
A sociedade ocidental com sua mentalidade utilitária e indivi-
dualista, com seus regulamentos jurídicos de direitos e obrigações ni-
tidamente demarcados, com sua afirmação enfática da autoridade,
parece artificial, mecânica e "atomística" aos olhos dos russos; ga-
bam-se êles de possuir um conceito "orgânico" da sociedade, comu-
nhão mística de indivíduos, a manifestar-se espontâneamente em
cooperação mútua, a sustentar-se por atos de amor recíproco, e a
submeter-se livremente às leis do organismo. Esta teoria, profun-
damente influenciada pelo Romantismo alemão, lançou raízes pro-
fundas na Rússia, já que aí lhe era propício o clima . Tendência
ambígua êsse desêjo da alma russa de "organicidade": pode resul-
tar em comunidades altamente personalistas, mas degenerar também
em coletivismo de cunho oriental, ou num culto "telúrico" à Terra-
Mãe, da qual todos nós nascemos e à qual todos nós voltaremos
(90).
(90) . — Na Rússia antiga era muito popular o culto da "Terra-Mãe Úmida" (russo:
Mat' Syra Zemlia), culto que perdurou até os tempos modernos e, segundo
alguns autores (por exemplo, Berdiáïev), teria influenciado profundamente
a veneração de Nossa Senhora. — Cf. as palavras de Maria Lebiadkin (em
"Os Demônios" de Dostoïevski) : "A Mãe de Deus é a Grande Mãe, a es-
perança do gênero humano. A Mãe de Deus é a Terra Úmida, e aí está
uma fonte de grande alegria para os homens. Quando tiveres umedecido a
terra até um pé de profundidade com tuas lágrimsts, alegr .ar-te-ás de tu-
do... Desde que me compenetrei desta verdade, costumo beijar a terra, ao
fazer minhas orações".
— 163 —

E, afinal, o homem russo tem uma faculdade extraordinária


de sofrer. "Creio que a necessidade espiritual mais profundamen-
te arraigada na alma russa é sua necessidade de sofrimento ines-
gotável... O povo russo entrega-se à dor com uma espécie de vo-
luptuosidade", diz Dostoïevski (90a) . A história acabrunhadora
do seu país ensinou-lhe a paciência e a resignação (91), acostu-
mando-se a considerar o sofrimento como seu companheiro insepa-
rável; as infinitas planícies, animadas só pouco tempo pelo sol, bem
como o céu nublado da Rússia, imbuiram-no de profunda melan-
colia . Daí encontrarmos na literatura russa uma verdadeira mís-
tica da dor. No sofrimento revela-se a solidariedade do gênero hu-
mano, no sofrimento o homem descobre as derradeiras possibili-
dades da sua natureza, no sofrimento o homem abre o coração pa-
ra seu semelhante. A melancolia russa, ao contrário da Weltschtnerz
romântica, é uma disposição natural e não produto mais ou menos
artificial de uma época de decadência cultural; ela tem significado
ético-religioso, e não é apenas sentimento estético; ela tem por cor-
respondente, não o desprêzo romântico de outras pessoas menos pren-
dadas (91a), e sim a "compaixão universal" (92), isto é, "saber
sofrer com todos". Dizia Goethe: "A miséria de tôda a humani-
dade se apodera de mim" (93), e Raskólnikov, o herói de "Cri-
me e Castigo", aceita o sofrimento com, veneração religiosa, dizen-
do a Sônia: "Não é diante de ti que me ajoelho, é diante de todo
o sofrimento da humanidade".
II. A Ortodoxia Russa .
Sem a ortodoxia não se compreende a alma russa . Em pági-
nas anteriores já vimos alguns fatos determinantes da história ex-
terna da Igreja Russa; vimos também que a ortodoxia, — contem-
plativa e mística, -- é pouca ativa, pouco moralista e pouco orga-
nizada . Aqui seguem umas observações complementares.

(90a). —Dostdievski, no "Diário de um Escritor".


— B. Pares, op. cit., pág. 15: There is a fine Russian word for a fine Russian
quality: "vynoslivose', "lasting a thing out", and it applies not only to
the man but to the nation, not only to the body but to the mind.
(91a). — Cf. as palavras do poeta inglês Oscar Wilde (1856-1900) in "De Profuniss":
The only people 'I would tare to be with now are artists and people who
lave suffered: those who know what beauty is, and those who what
sorrow is: nobody else interests Me.
--a Cf. as palavras de Isac o Sírio, bispo de Nínive e autor de grande reper-
cussão na Rússia: Il. me fut demande' ce qu'est un coeur qui a pitié? — et
je répondis: un coeur humain qui embrasse toute la crdation, les hommes,
les oiseaux, les aniMaux, les démons, et les créatures de toutes espèces;
quand il pense à elles, ses yeux rUissellent de larmes; une grande et poignan-
te pitié de le possêde et son coeur se serre d'une intense souffrance, et a rte
peut supporter, entendre ou voir quelque mal ou tristesse enduré par une
créature... (apud Vl. Soloviev, La Justification du Bien, Paris, Aubier,
1939, pág. 72).
— Goethe, Faust, 1 4406: Der Menschheit gemer Jammer fasst micte an.
— 164 —

O que os ortodoxos orientais geralmente objetam à Igreja la-


tina, culmina talvez nestes quatro pontos: ênfase excessiva do as-
pecto jurídico e do princípio de autoridade na organização ecle-
siástica; a desunião entre a vida religiosa e a moral (94); a supe-
rabundância de devoções particulares, freqüentemente reputadas
.subjetivas e sentimentais; a demasiada preocupação pela salvação
individual ou pela justificação pessoal (têrmo jurídico!), atitude
-que, aos olhos dos ortodoxos, fàcilmente leva a egoísmo ou a hi-
pocrisia. A êsses "desvios" latinos opõem êles respectivamente: o
laço "carismático" de amor livre e fraternal em Cristo; a integrali-
dade total da vida cristã; o caráter objetivo e cristocêntrico do
culto ortodoxo; o conceito da Igreja como kósmos cristianizado, a
ser transfigurado pela segunda vinda de Nosso Senhor. Este úl-
timo ponto exige uma nota esclarecedora.
No § 74 II vimos que os primeiros cristãos viviam na •expec-
-tativa da parousía de Cristo e acreditavam na criação de um novo
,céu e de uma nova terra: nos fins dos tempos, tôda a carne ressur-
girá, todos os eleitos serão glorificados com o Cristo ressuscítado, e
-todo o Universo será maravilhosamente transfigurado, chegando a
-uma participação imediata do modo de ser intemporal do Criador
(94a) . Esta atitude "escatológica" e "cósmica" se conservou me-
lhor na consciência cristã do mundo oriental do que no Ocidente.
Sem dúvida, o kósmos em que vivemos atualmente, embora remi-
do, não é o Universo transfigurado e glorificado; Cristo ainda não
se manifestou na sua glória celeste, mas na forma de um servo.
Mas a redenção, a instituir a vida da graça, é a inchoatio gloriae,
sendo o prelúdio histórico e real, embora místico, da Grande Trans-
figuração final, a abranger todo o Universo. Ecce facta sunt omnia
nova, pois o cristão, unido com Deus pela graça, é uma "criatura
nova" (II Ep. Cor., V 17). Pela graça redentora temos conheci-
mento do beneplácito divino de "reintegrar em Cristo tôdas as coi-
sas, assim as que há no céu como as que há na terra", pois já en-
tramos "na plenitude dos tempos" (Ep. Ef., I 9-10). Cristo é o
Senhor (o pankrátor), diante de quem "se dobra todo o joelho
no céu, na terra e no inferno" (Ep. Filip., II 9). Et si la rédernp-
tion est cosmique, elle l'est dans toutes ses phases: dans ses dá-

(94) . — Os ortodoxos não negam o "eticismo" dos ocidentais, mas afirmam que estes,
quando honestos, castos ou filantropos, não praticam essas virtudes por mo-
tivos religiosos, e sim por motivos humanos; no Oriente, a moral como tam-
bém a fé são concebidas como partes integrantes do serviço religioso que o
homem deve prestar a Deus.
(94a) . —, Cf. Apocalipse, X 5-6: "E o anjo... levantou a sua mão ao céu, e jurou
por aquêle que vive pelos séculos dos séculos... que não haveria mais
tempo".
-- . 165

buts laborieux ici sur terre, mais aussi dans la consommation glo-
rieuse des cieux (95)
A Ressurreição gloriosa de Cristo é a garantia divina da nossa
futura transfiguração: eis porque a ortodoxia oriental considera .

Páscoa como o ponto culminante do ano eclesiástico, ao passo que,


para a Cristandade ocidental, a magna festa é, pelo menos, na
consciência do povo, Natal, data comemorativa da Encarnação. O.
Oriente antecipa, por assim dizer, a théosis escatológica, o Ociden-
te se enternece contemplando o fato central da história, pelo qual .

Deus se fêz irmão dos homens. E' mediante a fé na transfigura-


ção vindoura que compreendemos também o grande apêgo dos or-
todoxos ao culto divino (96): a liturgia pomposa dos orientais dá
aos fiéis um antegôzo da realidade futura, "trazendo o céu ao mun-
do". Mas, uma vez terminado o serviço divino, a Igreja abandona
o mundo às fôrças obscuras que, neste "éon", ainda são poderosas;
o mundo atual é apenas a forma passageira da criação; um dia,.
há de ser substituído por um kásmos infinitamente mais belo e in-
comparàvelmente melhor.
A atitude escatológica vem, no Oriente, muitas vêzes acom-
panhada de um certo dualismo metafísico (de origem não-cristã),,
que cria uma oposição irredutível entre o espírito e a matéria, a
eternidade e o tempo, o céu e a terra: então pode resultar em fuga
do mundo, em ascetismo, em repúdio totf.- 1 dos valores terrestres:
(97) . Com efeito, a Igreja oriental tende a menoscabar as formas
históricas por causa do fim meta-histórico: já vimos que a orto-
doxia russa deixou subsistir um abismo entre o ideal inacessível
dos startzi e o estado desolador da vida cotidiana e social. Mas:
a Cristandade ocidental sucumbiu amiúde a outra tentação: à de•
uma cultura completamente secularizada, sem relação com o futu-
ro Reino de Deus. A atitude escatológica em si não exclui a res-
ponsabilidade cristã pelas realidades terrestres: o cristão, santifi-
cando-as e reintegrando-as em Cristo, pode e deve contribuir ati-
vamente para preparar a glória vindoura de Cristo, em que tôdas;
elas serão glorificadas. Não podemos desenvolver aqui êste asstm-
to da teologia da história, hoje tão atual: nos parágrafos seguintes;
lhe examinaremos alguns aspectos.

. — G. Thils, Théologie des Réalités Terrestres, Paris, Desclée De Brouwer, 1946 2,.
I pág. 104; cf. também J. Pieper, La Fin des Temps, Paris, Desclée De,
Brouwer, 1953.
. — Cf. N. Arseniev, La Saiote Moscou, Les Éditions du Cerf, 1948, págs. 20-33.
— N. Gogolj escreveu, no fim da sua =ren•al literária, um opúsculo admi-
rável: "Meditações sôbre a Divina Liturgia" (1852) .
. — Mas, ao lado do dualismo oriental, encontramos na. Rússia também um "mis-
ticismo telúrico" (cf. nota 90), talvez influenciado (via Bizâncio) pelos mis-
térios da antiga Grécia. Esta tendência pode originar uma transfiguração num.
plano naturalista, como se verifica em alguns pensadores modernos da Rússia..
— 166 --

§ 118. A historiosofia russa.


Foi no século XIX que os russos começaram a ocupar-se com
a filosofia, e êsse pensamento filosófico girava constantemente em
tôrno de problemas históricos. São muito pouco os russos que ela-
boraram uma "filosofia da história"; quase todos êles são "histo-
riósof os", isto é, nas suas especulações sôbre a história, misturam
dados racionais com verdades sobrenaturais e até com experiên-
cias místicas. A historiosofia russa não é uma teoria puramente
racional, e sim um composto híbrido que, por mais cativante que
seja, sempre deixará perplexa a mentalidade "racionalista" do ho-
mem ocidental.
I. As Fontes.
Entre as fontes principais que inspiraram a historiosofia rus-
sa, figuram, além da Bíblia, os Padres da Igreja Oriental, sobretu-
do Orígenes (98) e Gregório de Nissa (99); entre os filósofos gre-
gos, foi o divino Platão e não o Estagirita, reputado analítico •e "po-
sitivista", que captou os russos. A aristocracia russa do século XVIII
devorara as obras dos filosofistas franceses; a "intelliguentzia" rus-
sa do século XIX, embora continuando a apreciar a literatura fran-
cesa e a falar francês, embevecia-se nas obras dos filósofos român-
ticos da Alemanha . Na primeira metade do século XIX, as classes
cultas da Rússia extasiavam-se com a dialética de Hegel, com a
'bela alma" (die schõne Seele) do poeta Schiller, com a "alma
nacional" de Herder, com o misticismo de Schelling (100) e de
Von Baader (101) . Também os gnósticos (cf. III), certos místi-
(98) . — Orígenes de Alexandria (185-254), um dos autores mais eruditos da Igreja
grega, abusou, como exegeta, do método alegórico, chegando a volatilizar o
sentido literal da Bíblia; adepto do platonismo, ensinou a criação do mundo
na eternidade, a pré-existência da alma humana (esta seria um espírito apos-
tatado , de Deus e encerrado num corpo para seu castigo) e a glorificação final
de todos os sêres racionais, também dos danados (a chamada apokatástasis
pénton) — As obras apud Migne, PG 11-17.
— Gregório de Nissa (335-394), irmão de Basílio (o patriarca dos monges
orientais), é o maior pensador entre os "três capadócios" (Basílio, Gregório
de Nazianzo e Gregório de Nissa); suas obras numerosas tratam principal-
mente da Santíssima Trindade (apud Migne, PG 44-46); foi um dos teó-
logos mais notáveis do I Concílio de C.pla (381); admirador de Orígenes,
nem sempre conseguiu isentar-se dos seus erros.
Cf. § 96, nota 27. — O que atraía os russos no pensamento romântico de
Schelling, era sua predileção pelo simbolismo, pela mitologia, pelo misticis-
mo; Schelling exaltava o valor do sentimento, e suas idéias teosóficas eram
sedutoras para a mentalidade "gnóstica" dos russos. E, afinal, Schelling so-
nhava com a Igreja "joanina" do futuro, a qual seria a síntese da Igreja "pe-
trina" de Roma (autoritária e legalista) e da Igreja "paulina" da Reforma
livre e fideísta) . Nada mais tentador do que identificar a Igreja ortodoxa
da Rússia com o Cristianismo "joanino" do futuro.
(101) . — Franz Xaver Von Baader (1765-1841), filósofo alemão da escola român-
tica, tinha tendências teosóficas, influenciado que era por J. Boehme (cf.
nota 102) . Von Baader interpreta o pensamento humano como uma parti-
cipação no saber divino: sem a "fé" não é possível o conhecimento huma-
no; também acredita na necessidade da criação, e reduz as três divinas Pes-
soas a três momentos sucessivos do nascimento eterno da Divindade.
— 167 —

cos alemães (102) e até a Cabala são de muita importância para


a compreensão da historiosofia russa. Na segunda metade do sé-
culo passado, entraram na Rússia as teorias positivistas, materialis-
tas e comunistas (102a): elas, porém, são menos interessantes para
nós, e nunca conseguiram extirpar o misticismo da alma russa .
O Diálogo entre o Oriente e o Ocidente.

A grande questão era saber: a Mãezinha Rússia deve tomar


o caminho da Europa ocidental, ou deve seguir seu rumo próprio?
Deve racionalizar-se, mecanizar-se, "civilizar-se", renunciando à sua
alma eslava, às suas tendências místicas e religiosas, ao seu horror
pelo pensamento analítico e discursivo, aos seus sentimentos ina-
tos de coletivismo, ou então, deve viver essencialmente do seu pró-
prio patrimônio cultural, político e religioso? A primeira posição
era a dos chamados "ocidentalistas"; a segunda, a dos "eslavófilos".
As duas correntes, caracterizadas aqui de maneira bastante simplis-
ta mas, que, na realidade, eram muito complexas, tinham originà-
riamente cunho ideológico e teórico, mas, desde 1870, redundavam
em movimentos políticos e sociais. Globalmente falando e prete-
rindo uma multidão de distinções impossíveis de expor aqui, po-
demos dizer que os ocidentalistas preparavam o terreno para os
revolucionários, os anarquistas e os marxistas, ao passo que os es-
lavófilos, com o tempo, se iam transformando em conservadores,
imperialistas e "panslavistas". O govêrno czarista acompanhava com
suspeitas as manifestações das duas correntes: tanto temia as ten-
dências liberais e socialistas dos ocidentalistas como as construções
idealistas dos eslavófilos aue tão rudemente contrastavam com a rea-
lidade do regime.
O Gnosticismo (103) .
O Gnosticismo é um produto do sincretismo religioso, filosó-
fico e cultural por volta do início da nossa éra, e traduz bem o ane-
lo ardente da alma helenística por se unir com Deus; nele se fa-
zem sentir influências do pensamento grego (Platão, Orfismo e

. — Entre êles cumpre salientarmos as figuras de "Meister Eckehart" (1260-1327),


Angelus Silesius ou Johann Scheffler (1624-1677) e sobretudo Jakob Boeh-
me (1575-1624); êste último, místico protestante, é autor de várias obras
teosóficas, por exemplo: "Aurora", "Mysterium Magnum", "De Signatura
Herum"; era simples sapateiro numa aldeia da Alemanha e tinha graves
conflitos com as autoridades da Igreja luterana: Boehme, .autodidata influencia-
do pelas obras do alquimista Paracelso (1493-1541), é "panenteísta", doutrina
segundo a qual "tôdas as coisas estão no Uno" e "o Uno está em tôdas as
coisas"; além de Deus, Fonte do ser e do bem, há o "Abismo Divino" (ale-
mão: Ungrund), pura indeterminação; dêste Abismo Deus cria-se a si pró-
prio e o mundo na eternidade.
(102a) . Cf. o célebre romance de Iván Turguéniev: "Pais e Filhos" (1862) .
. — Cf. Hans Leisegang, Die Gnosis, Stuttgart, Alfred Króner, 19554.
— 168 —

mistérios), bem como especulações orientais oriundas de diversos


países (Egito, Pérsia, Babilônia, índia, mas também Palestina co-
mo o Antigo e o Novo Testamento) . O Gnósticismo "cristão", —
a única forma que nos interessa aqui, — é a teosofia da Antigüi-
dade cristã; é um têrmo genérico a designar umas trinta heresias
dos séculos I a III, sistemas bastante divergentes entre si, mas com
umas características comuns.
O Gnosticismo nega a criação como livre ato de Deus, a in-
cluir também a matéria, mas acredita numa "emanação" necessá-
ria da Divindade Suprema em numerosos sêres epirituais, chama-
dos "éones" ( 104 ) . Na medida em que progride a emanação di-
vina, tornam-se mais distantes de Deus os "éones" sucessivos, e por
isso mesmo mais fracos, mais expostos à tentação de apostatar da
sua Origem divina. Foi o que sucedeu. Um dos "éones" inferio-
res, o chamado "demiurgo", apostatou de Deus, e fêz êste mundo
em que vivemos, misturando os elementos da luz (= o espírito)
com os elementos das trevas (-= a matéria): a matéria é o prin-
cípio do mal, eternamente oposta a Deus. O demiurgo tem um pra-
zer diabólico em prender o homem à matéria, encerrando a alma
humana de origem celeste numa prisão da matéria abjecta. O ho-
mem é um "microcosmo", a refletir fielmente a estrutura do "ma-
crocosmo" e a entreter relações misteriosas com o Reino da Luz
e com o Reino das_ Trevas. Deus enviou o "Lógos", um dos "éo-
nes" superiores, o qual não adotou um corpo real, mas se serviu
de um corpo aparente, visto que todo e qualquer contacto com a
matéria seria pecaminoso e indigno de Deus. O "Lógos" ensinou ao
homem os meios de se libertar das fôrças humilhantes da matela;
desde sua aparição, o gênero humano divide-se em três grupos: os
homens "materiais" (grego: hylikói), que se entregam sem reser-
va aos prazeres mundanos; os "fiéis" (grego: pistikói), em que há
um equilíbrio precário entre a matéria e o espírito; e os "espiri-
tuais" (grego: pneurnatikói), em que o espírito, graças a um "sa-
ber aprofundado" (grego: gnósis; daí também gnostikói), triunfa
sôbre a matéria. O gnóstico dispõe de certos conhecimentos secre-
tos e de certas fórmulas mágicas que o capacitam para se elevar
à sua origem divina, mediante fases sucessivas de purificação; a
gnósis, ciência oculta e tradicional que remonta aos primórdios da
história, superou a "fé vulgar" das massas cristãs.

(104). — Segundo alguns gnósticos, há grande número de "éones" (até 365, o número
dos dias do ano); a Divindade Suprema, juntamente com os diversos "éones",
constitui "a plenitude divina" (grego: pléroma) . Muitos gnósticos não fa-
lam em "emanação", mas, caindo nos erros de um pensamento grosseiramen-
te mitológico, falam em "procriação", acreditando em "éones" masculinos e
femininos. — A demonologia gnóstica foi de grande importância para a evo-
lução do Neo-platonismo posterior (Jamblico e Proclo).
--- 169 —'

O Gnosticismo foi uma das heresias mais perigosas que a Igre-


ja teve de enfrentar nos primeiros séculos da sua existência, por
vários motivos: negava o conceito bíblico da criação, aderia a um
dualismo radical, propugnava um anarquismo religioso (por con-
siderar a hierarquia como representante de uma fase imperfeita),
defendia uma moral rigorista (chegando a proibir o matrimônio),
apoucava a necessidade da graça divina para a salvação do homem
(por recorrer ao ocultismo e a práticas teúrgicas) e, afinal, redu-
zia a impórtância da Encarnação como fato histórico, embrulhan-
do tudo em especulações mitológicas e astrológicas. Mas foi enor-
me sua atração para o povo (105): satisfazia a todos os instintos
vagamente religiosos do povo (106) sem conseguir erguê-lo a um
plano verdadeiramente sobrenatural.
O Maniqueísmo (cf. § 76 I a, nota 15) é uma variante do Gnos-
ticismo durante os séculos IV a VI; na Idade Média, esta corrente
sobrevivia na heresia dos albigenses ou cátaros; muitos historiósofos
russos são gnósticos modernos (Soloviév e, principalmente, Ber-
diáïev) .
IV. A Divisão da Matéria.
Nos §§ 119-120, pretendemos falar dos ocidentalistas e dos
Eslavófilos russos; no § 121, consagraremos umas palavras à litera-
tura russa, principalmente a Dostoïevski e Tolstoi; os §§ 122-123
tratarão dos sistemas de Solovïév e Berdiáïev; e o § 124 descreve-
rá a atitude do "epígono" Schubart .
§ 119. A Rússia uma criança nascida morta.
Dos representantes do Ocidentalismo russo, corrente bastante
heterogênea, podemos realçar aqui apenas a figura de Tchaadáïev,
devendo contentar-nos com a simples menção de outras figuras que,
para nossos fins, são de somenos importância.

. — Cf.P. Rousselot e J. Huby (apud J. Huby, Chri*us, Paris, Beauchesne,


1927, , pág. 1084) : Le contenu de la gnose était, lui aussi, éminemment po-
puleire; c'était une espèce d'histoire de l'univers en proportions colossales,
avec multiplicaticm de mondes et muftiplication d'êtres divins; tout pour
l'imagination, rien pour la raison lucide; ce qui manque le plus à la spécula-
tion gnostique, c'est la sobriété. — Uma verdadeira mania dos gnósticos era
a "mística dos riUr4eros e das letras", conseqüência da sua predileção pelo
método alegórico; as arbitrariedades e as desonestidades dessa tentativa de
casar o pensamento mitológico com o pensamento científico são bem expostas
na obra de Leisegang (cf. nota 103), págs. 36-57.
. — Quem não pensa aqui na "religiosidade" dos atenienses, de que nos falam
os Atos dos Apóstolos, XVII 15-34? Sabemos, porém, como foi triste o re-
sultado que São Paulo obteve nesta cidade tão religiosa. O homem "natural"
prefere um diálogo com a natureza (isto é, uml monólogo consigo) a um diá-
logo com o Outro, pois êste exige submissão à Palavra Revelada e profunda
"metanóia", cf. § 107 IV nota 55.
— 170 —

I. As Cartas Filosóficas.
Piotr Iákovlevitch Tchaadáïev (1794-1856) provocou, em 1836,
um grande escândalo pela publicação da sua primeira "Carta Filo-
sófica" (107) . O autor, que tinha conhecimentos pessoais da Eu-
ropa (108) e era profundamente influenciado pelas obras de de
Maistre, de Bonald e de Chateaubriand, sustentava a tese de que
a Rússia pertencia nem ao Ocidente nem ao Oriente, mas vivia
num isolamento infecundo. "Se nosso Império não se estendesse
do Estreito de Beringue até o Oder, ninguém teria notado a nossa
existência . Até certo ponto, não fazemos parte do organismo hu-
mano, e existimos apenas para dar algumas lições negativas à hu-
manidade . Nenhum pensamento fecundo brotou do solo estéril da
nossa pátria, nenhuma verdade universal surgiu em nosso meio. O
silogismo é-nos desconhecido, e a tradição não existe entre nós. O
povo russo vive só no presente, sem passado e sem futuro; sua cul-
tura é um produto bruscamente importado sem que tenha podido
inviscerar-se na mentalidade dos indivíduos e da coletividade . So-
mos filhos ilegítimos, sem laços com os nossos antepassados: o que
se tornou instinto ou hábito entre outros povos, nós somos obriga-
dos a inculcá-lo a marteladas; crescemos, mas não amadurecemos".
Como explicar a estagnação da vida russa? A resposta de Tchaa-
dáïev não deixa nada a desejar em clareza. O objetivo da história
humana, dirigida pela Divina Providência, é o estabelecimento do
Reino de Deus no mundo, e o instrumento de que a Providência
se serve, é o Cristianismo, o herdeiro legítimo do povo eleito: o
Cristianismo transforma todos os interêsses particulares dos ho-
mens nos seus próprios interêsses. Ao examinarmos as formas his-
tóricas do Cristianismo oriental e ocidental, podemos verificar que
só a Igreja de Roma, por ser una, universal e social, corresponde
às condições de uma religião ideal. A Europa ocidental, guiada
pelo Cristianismo católico, apresenta-nos o espetáculo impressionan-
te de um progresso ininterrupto, ainda que ultimamente tenha sido
prejudicada pela Reforma desagregadora; niesmo assim, a Europa
continua a ser uma unidade espiritual, e a progredir em vários se-
tores da cultura. A Igreja Romana, a superintender a vida política
e social da Europa medieva, a organizar as cruzadas, a rezar, nos
— As "Cartas Filosóficas" (havia delas oito) eram originàriamente destinadas
a uma senhora russa (Iekaterína Pánova) e escritas em francês; já tinham
circulado muito tempo entre os amigos do autor, quando êste, em 1836, en-
controu disposto a publicá-las em russo o redator da revista "O Telescó-
pio"; a publicação não foi além da primeira carta, devido à intervenção do
govêmo. Em 1862, o jesuíta russo, o Príncipe Gagárin, publicou as
Oeuvres Choisies de P. Tchaadaev, em Paris.
— Tchaadáïev acompanhara Alexandre I na sua campanha européia (1813-1814);
depois visitou outra vez a Europa (1824-1826), demorando-se algum tempo
na Itália, na Alemanha, na França e na Inglaterra.
— 171 —

mesmos dias, nas mesmas horas, na mesma língua ao mesmo Deus,


criou uma "harmonia divina" entre todos os povos do Ocidente, con-,
seguindo realizar, até certo ponto, o Reino do Deus na História. A
Igreja russa, porém, desde os seus inícios viciada por suas origens
bizantinas e vivendo separada das fontes vivas do verdadeiro pro-
gresso, persevera na estagnação, na confusão, na esterilidade. Pedro
o Grande contentava-se em importar as realizações técnicas e cien-
tíficas do Ocidente sem se incomodar com suas bases espirituàis. A
Rússia não significou nada para a civilização humana e nunca che-
gará a significar alguma coisa, a não ser que se submeta à Igreja-
Mãe, instrumento universal da Divina Providência.
II . A Apologia de um Alienado.
Esta tese, tão desagradável ao regime czarista, custou muitíssi-
mo ao autor (109): algum tempo depois da publicação da "Carta
Filosófica", o autor, querendo reabilitar-se, editou a "Apologia de
um Alienado", uma espécie de palinódia. "O fato de condenarmos
o passado da Rússia não nos deve torvar os olhares para seu futu-
ro". 11 nous est dévolu de résoudre une grande partia des problè-
mes de Pordre social. . . de répondre aux questions les plus im-
portantes qui préoccupent l'humanité... Je suis heureux d'avoir
Poccasion de faire un aveu: oui, il y avait de Pexagération dans !ac-
ta d'accusation que j'ai presente à un grand peuple... (C'était une
exagération de ne pas rendre son dã à l'Eglise, si humble, parfois,
si héroique (110). Assustado pelas ondas revolucionárias que as-
solavam a Europa e a Rússia, Tchaadáïev, apesar de continuar a
protestar contra o obscurantismo sistemátimo, contra a tirania e a
exploração (111), chegava a uma apreciação cada vez mais positi-
va das fôrças próprias do povo russo, aproximando-se da posição dos
eslavófilos: La Providence nous a faits trops grands pour être égois-
tes, elle nous a placés en dehors des intérêts nationaux et elle nous
a confié les intérêts de l'humanité.. . Nous sommes appelés à en-
seigner à l'Europe une quantité de choses qu'autrement elle ne sau-
rait comprendre. Un jour viendra oà nous deviendrons le
intellectuel de l'Europe. Telle sera le résultat logique de notre
longue solitude... Notre mission universelle est déjà comrnencée
( 112 ) . Capitulação de consciência essa palinódia? Sem dúvida, fir-
. — A publicação da revista foi suspensa, e o editor foi relegado de Moscou;
Tchaadáïev foi oficialmente declarado "alienado" e pasto sob a vigilância de
um médico que devia controlar seu paciente cada dia; a esta provação o
autor ficou sujeito durante mais de um ano!
. — B. Zenkovsky, Histoire de la Philosophie Rutsse, Paris, Gallimard, 19532 , I,
pág. 190.
. — Dizia êle: "O socialismo há de triunfar, não porque êle tenha razão, mas
porque nós estamos errados".
. — B. Zenkovsky, op. cit., I pág. 190.
= 172—'

meza de caráter e heroísmo não eram as virtudes mais salientes do


nosso autor, mas cumpre termos compreensão pelas circunstâncias
em que vivia. Em última análise, Tchaadáïev parece-nos muito me-
nos vítima do sistema terrorista que do "cisma interno" que, desde
Pedro o Grande, rachava a alma russa. Em todo o caso, cabe a êle
a honra de ter aberto a discussão sôbre a vocação do seu país: ami-
gos e inimigos consideram-no como o pai da "filosofia da história"
na Rússia.
III. Outros Ocidentalistas.
Os outros ocidentalistas russos apresentam divergências consi-
deráveis entre si, sendo que se ramificam em liberais moderados e
radicais, socialistas, anarquistas, etc. O que lhes é comum, é que
todos êles abandonam a interpretação eclesiástica da história: ali-
mentados por pensadores ocidentais (Hegel, Comte, Spencer, Büch-
ner, etc.), acreditam na Razão e nas fôrças autônomas do homem.
Em geral, vêem no Protestantismo comparado com o Catolicismo,
uma forma superior do Cristianismo, desprezam a Idade Média lati-
na, e exaltam a Renascença e a Éra das Luzes. Apreciam a Orto-
doxia por lhe faltar rigor dogmático e por não se ingerir na vida so-
cial e política. Admiradores da obra de Pedro o Grande, esperam
a solução dos problemas russos mediante uma adaptação total do
seu país à ideologia e aos métodos racionais da Europa. Extasiam-
se pela Europa laicizada, técnica e revolucionária e dão pouquíssi-
mo valor às suas origens cristãs, julgando-as uma fase antiquada.
Mas, por mais ocidentalistas que fôssem êsses russos, não eram oci-
dentais: feita abstração de alguns representantes medíocres que só
repetiam mecânicamente uma lição decorada, os grandes vultos eram
uns radicais que submetiam a uma revisão tipicamente russa as
idéias importadas. A história do Ocidentalismo russo é muito im-
portante para a compreensão do bolchevismo, mas interessa me-
nos ao nosso assunto. Remetendo o leitor interessado ao livro já
mencionado de Berdiáïev (113) e a outras obras (114), assina-
lamos aqui apenas os nomes de Herzen (115), Bielinski (116) e
Bakúnin (117).
(113). — Cf. § 116, nota 1.
. — Cf. os livros já mencionados de H. Iswolski (§ 116 I, nota 3); de N. O..
Losski 117 I, nota 84); de B. Zenkovsky, 119 II, nota 110).
. — Alexandre I. Herzen (1812-1870), socialista russo que, desde 1847, vivia
na Franca, onde editava uma revista Kolokol (= "O Sino); decepcionou-o
o espírito de petit-bourgeois que se revelava na revolução liberal de 1848;
apesar de combater a autocracia e a ortodoxia russas, não perdia a confiança
no seu país, mas o achava mais maduro para a aceitação do socialismo
(forma suprema do progresso humano, segundo o autor) do que a Europa
ocidental. — Cf. A. J. Toynbee, A Study of History, VIII págs. 701-703.
(116). — Vissarion G. Bielinski (1811-1848) era grande crítico literário e precursor
dos ateus bolchevistas; quando N. Gogolj, o célebre romancista russo publi-
— 173 —.

§ 120. Os eslavófilos.
O Eslavofilismo é um movimento romântico, nascido por vol-
ta de 1830, que se opõe à ocidentalização da Rússia e preconiza
o regresso às grandes tradições nacionais; em, muitos pontos, é uma
corrente análoga ao Romantismo europeu, do qual recebeu nume-
rosos e fortes impulsos. La ruine des traditions morales et religieu-
ses sous la poussée des idées européennes était la partie la plus
néfaste de l'oeuvre accomplie par l'Occidentalisme. Les défendre,
les remetttre en honneur, leur rendre une action éclairée et fécon-
de sur la vie et la pensée russe, devait être le but principal, l'âme
de l'école nationaliste (118). O Eslavofilismo russo, inaugurado
por um grupo de autores talentosos e idealistas, desde o comêço,
não era livre de certos exageros nacionalistas e acabou por dou-
trinar um nacionalismo estreito e estúpido.
I. Kireïévskij (119) .
O fundador da escola foi Iván Vassílievitch Kireïévskij (1806-
1856), uma das figuras mais simpáticas e abertas de todos os esla-
vófilos. Depois de atravessar uma fase de indiferença religiosa e
de Ocidentalismo moderado (120), redescobriu o caminho para a
ortodoxia e para as tradições nacionais, sob a influência da sua es-
posa muito piedosa e dos monges de Optina (cf. § 116 III b) . O
autor abomina o Racionalismo, em alue vê só decadência e podri-
dão: muito semelhante a certos existencialistas, impugna o pensa-
mento lógico abstrato e defende "o saber vivo" (cf. § 117 I) . O
conhecimento da verdade é um ato dinâmico e criador que nasce
de uma união de tôdas as nossas fôrças morais e espirituais, tais
como o pensamento, o coração, a consciência, o senso estético e o
amor; o pensamento abstrato e discursivo mutila a realidade, e,
quando não acompanhado e iluminado pelas outras faculdades, atro-
fia o homem, privando-o de uma visão integral e orgânica de Deus,
dos homens e do mundo. E' sobretudo nos Padres da Igreja Orien-
cava, em 1847, uma obra em que defendia um conceito religioso da cultura,
Bielinski atacou-o veementemente como "defensor do cnute, apóstolo da ig-
norância e do obscurantismo, e panegirista de uma moral mongólica". Esta
carta tão odiosa e injusta, que circulava clandestinamente nos meios revo.
lucionários, foi lida num conventículo de anarquistas por Dostoïevski, o que
lhe custou quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria (1849) .
. — Michael Bakúnin (1814-1876), cf. § 99 II.
. — A. Gratieux, A. S. Khomiakov et le Mouvement Slavophile, Paris, Les Édi-
tions du Cerf, 1939, I pág. 58. — Do mesmo autor: Le Mouvement Sla-
vophile à la Veille de la Révolution, ibidem, 1953.
. — Cf. B. Zenkovsky, I págs. 231-254; N. O. Losski, págs. 11-26; N. Arseniev,
págs 65-79.
. — Em 1832, o autor publicou, depois de ter viajado e estudado na Alemanha,
um artigo sensacional sôbre o "Século XIX" (na revista "O Europeu", que
logo depois foi proibida), em que declarava: "A Rússia se acha num beco
sem saída, visto que não participa do patrimônio cultural da antiga Grécia
que, com o desmoronamento do mundo antigo, foi salvo pela Igreja Ro-
mana e transmitido aos povos da Europa".
— 174 —

tal que Kireïévskij encontra os esboços de tal saber vital, patrimô-


nio cultural muito valioso que se integrou na consciência da orto-
doxia russa: o homem oriental cresce na Verdade e submete-se hu-
mildemente a ela; o homem ocidental apodera-se brutalmente das
verdades paciais com o fim de dominar o mundo. L'homme de
l'Occident est presque toujours satisfait de sa condition. ; il est'
prêt à se dire et à dire aux autres, se frappant fièrement la poitrine,
que sa conscience est complètement en repos, qu'il est pur devant
Dieu et les hornmeks, et qu'il demande simplement à Dieu de ren-
dre les autres hommes samblables à lui (121). Tais caricaturas
do homem ocidental se tornarão lugares-comuns na literatura dos
eslavófilos, até nas obras dos seus representantes mais nobres e es-
clarecidos.
II. Khomiakóv (122).
Alexéj Stépanovitch Khomiakóv (1804-1860) era o chefe in-
contestado da primeira geração dos eslavófilos.
a) Contra o Racionalismo Ocidental.
Khomiakóv desenvolve a idéia de Kireïévski sôbre o "saber
vivo", combatendo o pensamento abstrato de Hegel. Influenciado
pela filosofia de Jacobi (123), admite uma faculdade meta-lógica
no homem: a fé. A fé não é uma convicção subjetiva nem é idên-
tica a uma crença religiosa, nem sequer à fé cristã (embora aquela
culmine nesta); a "fé" é a faculdade humana de compreender ime-
diata, sintética e intuitivamente a realidade das coisas; é uma ex-
periência vital, mística e quase religiosa, mediante a qual nos sa-
bemos ancorados no fundo misterioso do Ser. A "fé" entrega os da-
dos da sua percepção imediata à razão imediata e discursiva, e es-
ta justifica a vida pelo lado exterior e defende, mediante a análise,
a síntese, a qual é incapaz de se averiguar a si própria. A razão,
longe de ser a rainha do homem, ocupa, segundo Khomiakóv, lu-
gar bem subalterno: ela pode fazer algumas descobertas, mas seu
campo é muito limitado. Também um sábio cego de nascimento
poderia enriquecer a ótica de umas novas deduções: mais le portier
du savant voit. Le savant n'en a pas mênie idée, et tout ce
sait de ses bois, il ne le sait que par les donnéés reçues de oelui qui

. — N. O. Losski, op. cit., pág. 21.


. — Cf. B. Zenkovsky, op. cit., I págs. 202-230; N. O. Losski, op. cit., págs.
26-39; e as obras de Gratieux (nota 118); e N. Arseniev, págs. 80-90.
. — Fr. H. Jacobi (1743-1819), filósofo alemão, um dos primeiros adversários
de Kant; a "fé" dá-nos certeaa imediata — sem fundamentos racionais — de
certas verdades elementares (a existência de Deus, a liberdade humana, a
imortalidade da alma, etc.) bem como da nossa experiência pessoal.
175 —

voit. . . La foi est, pour ainsi dire, la vision de la raison (124) .


A análise feita pela razão serve, por sua vez, para enriquecer e de-
senvolver a experiência vital da "fé", vindo a constituir, juntamen-
te com ela, a intelectualidade total. A razão abstrata, entronizada
ilegitimamente como soberana e separada das suas fontes vitais,
desune o homem e a sociedade: a história do Ocidente ilustra bem
êsse processo de desagregação.
b) O Bossuet russo.
Khomiakóv elaborou uma interpretação ortodoxa da história:
"Notas concernentes à História Universal", obra clássica do Eslavo-
filismo. No século XVII, Bossuet compusera seu Discours para
refutar as ímpias pretensões dos libertins e para lhes mostrar os,
caminhos maravilhosos de Deus; na obra do bispo de Meaux, a
Igreja é apresentada como uma instituição divina que, bem orga-
nizada e disciplinada, prossegue triunfantemente seu caminho atra-
vés dos séculos, vencendo tôdas as heresias. Khomiakóv, com suas .

"Notas", queria confundir os hereges modernos que esperavam ex-


Occidente lux,— a luz da razão sem a fé, do progresso social e
econômico sem respeito pela tradição. Os dois autores são cris-
tãos fervorosos, mas seus conceitos da Igreja são completamente
diferentes; ambos são providencialistas convictos, mas ka Provi-
dência do autor russo está, por assim dizer, amarrada a certos fa-
,

tôres imanentes, reputados tão decisivos que tornam quase supér-


flua a Providência transcendente.
Khomiakóv acredita na primazia das fôrças morais no proces-
so histórico, e o solo alimentício dessas fôrças morais são as idéias
religiosas da humanidade: une secrète pensée religieuse dirige tou-
te activité humaine (125). Ora, na história da humanidade en-
contramos, globalmente falando, duas atitudes religiosas que são ,
fundamentalmente diferentes: o princípio iraniano (126) e o prin-
cípio "cusita (127) . Aquêle é o princípio da liberdade, êste o da .

. — A. Gratieux, op. cit., II 230. — O argumento já foi empregado por Joseph


de Maistre, na sua obra Les Soirées, etc., LEe. Entretien.
. — A. Gratieux, op. cit., II pág. 65.
. — O Irão seria, segundo Khomiakóv, o berço dos "arianos" ou "indo-europeus",.
dos quais os eslavos modernos seriam os representantes mais ilustres. O autor
admite duas raças fundamentais de que deriva todo o gênero humano: a,
raça branca (os arianos) e a raça negra (os cusitas); tal como outro de
Gobineau, parece ligar o espírito de liberdade à raça branca e o princípio
de escravidão à raça negra; mas a elaboração da tese "racista" é menos explí- .
cita e menos clara do que na obra do conde frandês. Aos dois é comum
grande entusiasmo pela "filologia" (= lingüística) e pela etnologia, duas:
,ciências relativamente recentes naqueles dias.
. — Segundo Génesis, X 6, Cus era filho de Cão; Cush ou Cuch é nome bíclico
da Etiópia. De acôrdo com uma notícia de Diodorus Siculus, Bibliotheca,
III 2-3, a Eetiópia, teria dado sua religião e muitas das suas instituições,.
ao Egito.
— 176 —

necessidade física e lógica (128) . O iraniano adora a Deus como


livre Criador do Universo; o cusita está em êxtase diante das leis
necessárias que regem a matéria (considerada pelos iranianos co-
mo forma inferior e passageira da criação) e perante as leis rigo-
rosas que regem o raciocínio abstrato (o que leva o homem a ma-
terializar-se e a exteriorizar-se) . O Iranianismo acredita num Deus-
Pessoa a quem o homem pode elevar-se mediante orações expres-
sivas de amor espiritual; o Cusismo resulta, cedo ou tarde, em po-
liteísmo e panteísmo, substitui o conceito de criação pelo de pro-
criação (culto fálico!) e procura escravizar a Divindade por meio
de fórmulas mágicas com o fito •de dominar o mundo. A palavra
(129) é uma expressão cultural dos primeiros; os cusitas com o
seu apêgo à terra primam nos monumentos bem materiais da ar-
quitetura . A dialética da história é principalmente determinada
pelo jôgo ininterrupto dêsses dois princípios antagônicos: em últi-
ma análise, é a luta entre o espírito e a matéria, entre a liberdade
e a necessidade. Mediante êsses dois princípios a Divina Provi-
dência atinge o seu fim.
Os cusitas, saindo dos seus territórios originais, foram-se esta-
belecendo na Mesopotâmia e na Bactriana, entrando em contacto
com os iranianos: clêsse contacto resultou ou um exclusivismo fa-
nático (por exemplo, a desconfiança dos iranianos acêrca da ma-
téria transformava-se em franca hostilidade), ou então, um certo
sincretismo (por exemplo, os cusitas ficavam com uma idéia mais
elevada da divindade, atribuindo-lhe caráter moral, mas os irania-
nos degeneravam por adotarem elementos orgíacos e fálicos na
sua religião) . Nasce o antropomorfismo, ao qual seguem o pan-
teísmo e o ceticismo, ambos favorecidos pela expansão do pensa-
mento filosófico, incapaz de manter pura a tradição primitiva da
humanidade que é o monoteísmo. Os cusitas triunfam na Anti-
güidade, sobretudo em Roma; o princípio iraniano sofre violên-
cia no mundo caído; só na Palestina, devido a uma livre predesti-
nação divina, consegue sobreviver; se não interviesse a Divina
Providência, pereceria o Iranianismo.
Foi então que veio ao mundo a mensagem celeste do Evan-
gelho, a coroar o princípio iraniano e a possibilitar-lhe o pleno de-
senvolvimento. Ora, o Cristianismo encontrou no mundo histórico
terrenos diversamente preparados para receberem a mensagem

(128) . — Cf. A. Gratieux, op. cit., 'II pág. 209: La nécessité est l'apanage de la ma-
tière; elle s'incarne dans la civilisation kouschite, et se manifeste, dans le
monelé religieux, par la doctrine des elinanations et le symbolisme de la gá
nération, dans le monde philosophique par un rationalisme exclusif qui cher-
che, dans Perechsiinement dialectique des concepts, la note suprême de la
vérité.
. (129) . — O vocábulo russo, slovo, relacionado com "eslavo", quer dizer: "palavra".
— 177 —

celeste, e êsses substratos continuam a atuar no mundo atual. Pa-


ra os gregos, o Evangelho significava uma vida espiritual do indi-
víduo, a manifestar-se numa união harmônica com os outros in-
divíduos, igualmente nutridos pelas mesmas convicções espirituais;
para os romanos, o Evangelho era uma lei imposta exteriormente
e uma organização política e social, de caráter autoritário e for-
mal. O Oriente é místico e vive do amor: o amor de Cristo leva
todos os fiéis espontâneamente à unidade; o Ocidente é racionalis-
ta e utilitarista: a unidade é-lhe imposta pela autoridade e pela
organização. C'est le principe conventionnel et utilitariste, hérité
de Rome, substitué au principe de liberté et d'amour; c'est la ,ma•
térialisation de la religion. C'est un nouveau triomphe du kouschi-
tisme, si puissant dans la conception politique des Romains (130).
A Igreja Romana transforma-se numa máquina administrativa e
burocrática, com os seus chefes (os ecclesiastici) e "o público" (os
laici); ao mesmo tempo, desenvolve unilateralmente o formalismo
lógico na filosofia escolástica que tende a escravizar a fé à dialé-
tica da razão. Autoritarismo, orgulho racionalista e falta de amor
fraternal, — eis os motivos porque a Igreja Romana se separou
da Igreja ortodoxa (131) . Além do formalismo e legalismo roma-
nos, foi desastroso para a evolução histórica da Igreja ocidental o
elemento germânico: os germanos são belicosos, grosseiros, egoís-
tas, desprezam a dignidade da pessoa humana e são adeptos da
teoria que estabelece uma descriminação entre vencedores e ven-
cidos. Ao passo que Roma possui uma unidade externa sem liber-
dade, o Protestantismo, produto do espírito germânico, possui uma
liberdade negativa sem unidade: só a Ortodoxia combina a uni-
dade interna com a liberdade positiva. A Reforma abriu o cami-
nho para as especulações críticas do pensamento racionalista, a3
qual sucumbem tanto o dogma cristão como também as instituições
sociais. Todos os sistemas filosóficos e tôdas as reformas sociais e
políticas não passam de paliativos, incapazes de curar o mal inte-
rior do espírito ou de preencher o vácuo criado pelo abandôno da

— A. Gratieux, op. cit., II pág. 79.


— Ibidem, II pág. 85: L'orgueil de la raison et d'une autorité illégitime qui
s'attribue, contrairement à la décision de toute l'Église exprimée au concile
d'Ephèse (cf. Denzinger, n.o 125), le droit d'ajouter ses explications parti-
culières et une conjecture tout humaine au Symbole de Nicée-Constantinople,
c'est déjà en soi un attentat à la sainteté et à l'intangibilité de l'Église.
Cet orgueil des Églisees séparées qui ont osé changer le Symbole de toute
I'Église sans le consentement de leurs frères, ne fut pas inspiré par l'amour:
ce fut un crime devant Dieu et ia Seint-Église, Et comment la foi, la vérité
peut-elle subsistes infecte quand a disparu l'amour? — O autor se refere
*à inserção do Filioque no Símbolo da Fé.

Revista de História n.o 31


--- 178 ---

fé. O Ocidente caiu vítima do princípio cusita (132), e a palavra


do futuro será aos eslavos.
c) A Hora dos Eslavos.
L'hietoire appelle ia Russie à devenir le chef de file de la
culture mondiale, l'histoire lui en dorme le droit en vertu de l'uni-
versalité et de la plénitude de ses príncipes (133) . Doravante a
Rússia guiará os destinos da humanidade„ contanto que fique fiel
ao seu passado e às suas tradições gloriosas (134): no passado se
acham as raízes do futuro, e Khomiakóv quer que o futuro do
seu país se case harmônicamente com seu passado. Quais são as
virtudes e as instituições nacionais do povo russo que o predetermi-
nam para a liderança da humanidade?
Cs eslavos (135) são um povo humilde e pacato, hospitalei-
ro e profundo, com amor imenso à terra; democratas por tempe-
ramento, apreciam, antes de mais nada, a plena expansão da sua
personalidade nas sociedades orgânicas e naturais: a família e a
comuna rural, o mir (136), fazendo menos caso da liberdade po-
lítica que, para a grande maioria, não passaria de um direito abs-
trato. La véritable loi de Phomme, c'est la loi intérieure, la loi
"d'amour pour Dieu et le prochain". Mais pour ceux qui ne la
comprennent pas et Ia violent "il faut la loi extérieure, la puissan-
ce de l'État, Pautorité de ce monde" (137) . Para poder gozar
tranqüilamente da sua vida interior, o nove descarrega-se do ônus
modesto de organizar a vida exterior, cedendo-o ao monarca, o qual
carrega a carga pesada do povo inteiro. O espírito legalista dos
ocidentais limita e regulamenta os poderes do monarca por uma
Constituição: tal mesquinhez é contrária aos eslavos. Pois êstes,
(132) . O país mais latino da Europa é, aos olhos de Khomiakóv, a Espanha, onde
foi acrescentado o Filioque ao Símbolo da Fé (no ConciTo de Toledo, em
589); a França parece-lhe "muito satisfeita", e a Alemanha "pedante"; mas
autor gostava muito da Inglaterra que "consegue reconciliar o amor à
natureza com o amor à história, que respeita a vida dos antigos carvalhos
a vida dos antigos costumes". Como tantos outros eslavófilos (Dostdievskil),
Khorrk)k6v detestava a Europa moderna, mas venerava a Europa ant . ga co-
mo "o país das santas maravilhas".
(133). — B. Zenkovsky, op. cit., I pág. 228.
(134) . — Entretanto, Khomiakóv n =o queria ser "profeta do passado", cf. A. Gratieux,
op. cit., II pág. 26: Le retour au passei n'e jamais été notre rêve. . . Ature
chose est consciller de ne pas couper les recines, autre chose, ne laisser que
les racines.
(135). — Segundo Khomiakóv, os eslavos ter-se-iam espalhado pela Bactriana e pela
Índia; teriam sido os fundadores de Tróia e, portanto, de Allse Longa, a
mãe de Roma; existiriam fortes influências eslávicas entre os escandinavos
os anglo-saxões. As vêzes, o têrmo "eslavo", na obra de Khomiakóv,
tão elástico tomo o termo "germano" na obra de Chamberlain.
(136). — Cf. § 116 IV c, nota 67. — No mir Khomiakóv via o desenvolvimento
ideal do princípio social em detrimento dos direitos do indivíduo; êste é
próprio dos ocidentais decadentes, aquêle dos eslavos idealistas. Quanto ás
origens históricas do mir, que são muito prosaicas e se relacionam com os
interêsses do fisco, Khomiakóv enganava-se como os outros es!avófilos.
(137) . — A. Gratieux, op. cit., II pág. 185.
— 179 —

em primeiro lugar, não divinizam o Poder como os ocidentais; e.


segundo, o poder do autocrata eslavo não é absolutista, mas se re-
fere apenas aos aspectos exteriores da vida. A Autocracia não ex-
clui um diálogo entre o monarca e seus súditos: êstes têm o di-
reito de manifestar livremente sua opinião, e aquêle convoca livre-
mente vários representantes do povo num Conselho Nacional (rus-
so: Zemski Sabor) para saber o que vive entre seus filhos (138).
Muito mais importante do que a organização do Estado, ---
instituto necessàriamente exterior e autoritário, — é a vida inte-
rior da Igreja. A Igreja é o organismo do amor e da verdade, cuja
alma é o Espírito Santo; a Igreja é um organismo místico, e não
uma organização exterior. O Cristianismo não é nada senão liber-
dade em Cristo. Dieu est la liberté pour tous les êtres purs. II est
une loi pour Phomme non régénéré. II n'esi une nécessi té que pour
les démons (139). O princípio da unidade da Igreja não é a au-
toridade exterior (Roma) nem a liberdade negativa do individua-
lismo e racionalismo (Protestantes), mas a sobornost', palavra rus-
sa difícil de traduzir e que significa mais ou menos "a livre subor-
dinação dos indivíduos ao todo" (140). A sobornost' é a livre
unidade dos membros da Igreja, em virtude da sua compreensão
comum da Verdade revelada e em razão do seu amor unânime a.
Cristo e ao próximo. Quem possui incondicionalmente a verdade,
não é o Papa, nem o Patriarca, nem o clero (141), nem sequer o ,
Concílio Ecumênico (141a): possuia-a a comunidade mística de
todos os fiéis. No domínio da fé, a autoridade é a morte.
d) Anotações Críticas.
Por mais discutível que seja o Eslavofilismo de Khomiakóv,
devemos reconhecer a envergadura do seu espírito que abrangia vá-
rios ramos do saber humano (teologia, filosofia, história, filologia,
sociologia, etc.) e conseguia apresentá-los numa nova síntese: o re-
sumo dado acima dá só uma idéia muito pobre da extensão e da
profundidade dos seus conhecimentos. Também seria muito injus-
. — Estas e muitas outras frases de Khomiakóv provam que não foi adulador
dos poderes públicos; por isso não era persona grata ao govêrno.
. — N. O. Losski, op. cit., pág. 32.
. — A palavra russa sobornost' relaciona-se com sobor (= "conselho, concílio"):
o sobor é o órgão pelo qual se manifesta a opinião do povo, da comunidade.
. — A identificação da Igreja com o "clero", — conceito funesto que muito me-
nos existe no Oriente do que no Ocidente — tem suas raízes históricas no
fim da Idade Média para se ir acentuando cada vez mais nos Tempos Mo-
dernos. Não podemos traçar aqui a história dessa evolução lastimável; só
queremos dizer que no século XX surgiu uma reação sadia contra êsse mal-
entendido.
(141a) . — Houve falsos Concílios que, exteriormente, em nada se distinguiam dos au-
tênticos; como identificá-los? Não foram reconhecidos pela consciência cristã
da comunidade. — O Concílio, portanto, não define o dogma cristão, mas
formula em têrmos claros o que vive entre os membros da Igreja de Cristo.
180

to confundir a posição do nosso pioneiro intrépido com a dos es-


lavófilos decadentes da segunda e da terceira geração (142) .
Khomiakóv combatia corajosamente os abusos da autocracia
russa, impugnava a servidão (143), açoitava os pecados da Rússia
czarista, inculcando-lhe a consciência da sua responsabilidade pe-
rante Deus (144), e defendia a liberdade da palavra oral e escri-
ta. Por isso mesmo teve vários conflitos com a censura, e muitas
das suas obras podiam sair apenas no estrangeiro, e na Rússia
só depois da sua morte. Acusavam-no os ocidentalistas de misti-
cismo e obscurantismo, os círculos governamentais de idéias sub-
versivas, e os dignitários da Igreja oficial de tendências heréticas.
Khomiakóv era homem generoso e idealista, mas não isento
de certo partidarismo que o levava a exageros e preconceitos qua-
se incompreensíveis numa ,pesosa de tamanha probidade intelec-
tual e moral. Apesar de se considerar como propagandista ativo
da união da Igreja, contribuía mais para dilatar do que para di-
minuir o abismo que separa a Rússia de Roma: seu temperamen-
to de polemista impossibilitava-lhe um diálogo sereno com seus
adversários (145). Mais discutível nos parece ainda seu "messia-
nismo", conceito incompatível com o Cristianismo: Jesus já con-
fundiu os que queriam saber quem é o maior no Reino de Deus
(Mt., XVIII 1-6); todos pecaram, e todos foram redimidos, gra-
ças a uma livre disposição de Deus; a idéia de um povo eleito é
uma recaída no judaísmo. Não obstante a fé sincera de Khomia-
kóv, autor profundamente convencido do caráter transcendente da
religião cristã, seu messianismo aproxima-se, em algumas passa-

(142) . — Mikhail N. Katkov (1818-1887) é o representante mais conhecido dos es-


lavófilos obscuranistas e reacionários, qualificados de "nacionalistas zoológi-
cos" por Soloviév.
. — Dizia: "A servidão corrompe mais os senhores do que os escravos"; não era
apenas abolicionista sentimental, mas estudava também os meios para impe-
dir que os ex-servos se transformassem em proletários; o e mir parecia-lhe o meio
mais indicado para garantir a dignidade humana dos libertos.
. — Em março de 1854 (início da guerra da Criméia) o autor escrevia um poe-
ma, no qual se dirige à Rússia com estas palavras:
Sache: il est difficile pour les cr4ltures terrestres
d ' être les instruments de Dieu.
juge sévèrement Ses serviteurs
et combien de lourds péchés pèsent, pélas, sur toi!
Tes tribunaux sont noirs d'in justice,
tu es tari par /e joug de l'esclavage,
piemo de f latteries impies, de mensonges dépravants,
d' indolence opiniâtre et ignominieuse,
et de toute abonlYnation
Oh, indigne d' être élu le choix de Dieu est tombé sur roi!
— Numa carta a W. Palmer ' escrevia: Le romanisme n'est rien d' autre que
la séparation . Ne fermez pas les yeux: le séparatisme de l'Occident est
évident; il est le seul redoutable fléau de l'humaráté (apud Mgr. d'Herb'gny,
Un Newman Russe: Vladimir Soloviev, Paris, Beauchesne, 19342, pág. 161).
— 181

gens, de um racismo ou nacionalismo naturalista (146) . E afinal,


o conceito da Igreja, tal como foi formulado por Khomiakóv, deve
levar à anarquia: ao descrever a unidade mística dos fiéis, o nosso
autor tem mais em vista, ao que parece, a Igreja triunfante no fim
dos tempos do que a Igreja militante que, neste mundo, não pode vi-
ver sem organização externa e autoridade. Aliás, a autoridade exerci-
da pela Igreja não é autoridade simplesmente externa nem imposição
exterior, visto que é exercida em função do amor; submeter-se a ela
pode ser um ato sumamente livre, ditado pela mesma lei de amor-
A Igreja de Cristo, enquanto vive neste mundo, deve ser, de acôr-
do com os intentos do seu Fundador, também uma organização,
visível, munida de autoridade. Seu caráter "corpóreo" é uma dá-
diva de Deus que não despreza os meios humanos ao realizar a
obra redentora; as trágicas deficiências humanas dos que gover-
nam e dos que obedecem, delustram muitas vêzes a dádiva divi-
na, transformando-a numa pedra de escândalo, — não só para os
ortodoxos orientais, mas também para os católicos.
III. Tiútchev.
Fedor I . Tiútchev (1803-1873), um dos maiores poetas rus•
sos do século passado, era embaixador da Rússia e passava gran-
de parte da sua vida no estrangeiro; eslavófilo conservador, via na
Revolução européia a atuação de um princípio satânico prestes a
liqüidar, no Ocidente, os últimos vestígios do Cristianismo, já en-
fraquecido pela Separação das Igrejas; o único poder cristão a sub-
sistir nos tempos modernos é a Rússia (147), a terra abençoada por
Cristo (148) . Tiútchev deseja ardentemente a união das Igrejas, e

. — Cf. A. Gratieux, op. cit., II pág. 95: L'âme des Slaves est naturellement
religieuse et chrétienne; et quand ia foi leur apparat, ils offrirent le rare
exemple "d'un peuple qui n'attend pas le christianisme mais qui va au-
devant".
. — Num art'go intitulado "A Rússia e a Revolução" (1848) Tiútchev escre-
via: La Russie est avant tout PEnfpire chrétien. Le peuple russe est
chrétien nan seulement par Porthodoxie des croyances, mais par quelque
chose de plus intime encore que la croyance: ii l'est fiar cette faculté de
renoncement et de sacrifiee qui est comine le fond de sa nature morale
(apud A. Gratieux, op. cit., II pág. 128, nota 1).
(148). — Numa poesia escreve (apud M. Hofniann, Histoire de la Littérature Russa,
Paris, Payot, 1934, págs. 595-596):
O, ces misérables villages,
O, cette indigente nature,
Terre de longue patience,
Terre de notre peuple russa! ...
Le fiar regard de l'étranger
Ne peut comprendre et déceler
Ce qui perca et luit en secret
Parmi ton humbie nudité.
Accablé du poids de la croix,
Le 'Roi du Ciel, en hurnble esclave,
T'a parcourrue, terra natale,
Totite entière, en 'te bénissant.
— 182 —

sonha com a aliança do Czar e do Papa, a única aliança capaz de


salvar o mundo do cataclismo universal; pois, ao contrário de Kho-
'miakóv, reconhece na Igreja de Roma a persistência do princípio
cristão (149) .
IV. Danilevski (150).
Nikolaj L. Danilevski (1822-1885), naturalista russo, elabora-
va no seu livro "A Rússia e a Europa" (1869) algumas idéias que
dêle fazem um precursor de Spengler..
Danilevski nega a unidade do gênero humano; para êle, a "hu-
manidade" não passN' de uma noção incolor e abstrata, ao passo que
o têrmo "povo" indica uma realidade viva e concreta . Um povo
é um organismo de um tipo histórico-cultural determinado; o prin-
,

cípio que anima e unifica interiormente tal organismo é incomuni-


-cável para qualquer outro organismo; só pode haver certos emprés-
timos recíprocos de ordem técnica e material entre os diversos or-
ganismos. Cada grande povo exprime, à sua maneira, a idéia do
homem mediante um conjunto de realizações religiosas, artísticas,
científicas, políticas e econômicas de acôrdo com o princípio íntimo
do seu organismo: eis a explicação do fato de não haver só uma ci-
vilização humana, e sim muitas civilizações. Uma civilização é a
fase de plena florescência de determinado organismo, e geralmente
é de pouca duração (4 a 6 séculos); terminado êsse período, o or-
ganismo recai no seu sono secular.
Nos Tempos Modernos podemos verificar o predomínio da ci-
v;lização européia, que o autor denomina "romano-germânica"; ela já
teve as suas. J)redecessoras e terá as suas sucessoras. A civilização
hebraica era religiosa; a grega era essencialmente artística; a roma-
na era preponderantemente política; a romano-germânica é polí-
tica, e ao mesmo tempo também industrial e científica. Mas,
desde o século XVII, esta última está em declínio; já soou a ho-
ra dos eslavos que estão destinados a criar outro tipo de civilização,
fundada solidamente em bases religiosas, artísticas, políticas, cientí-
ficas, industriais e comunitárias. A civilização eslava, a organizar-
se politicamente numa Grande Federação, será a civilização de
amanhã, a síntese esplêndida (embora não eterna) de tôdas as an-
teriores: os eslavos guiarão os destinos da humanidade, e a Cruz

(149) . — Em 1849, Tiútchev escrevia: L'Église orthodoxe. . . n'a cessé de connaitre


que lie princlpe chrétien n'a jamais péri dans l'Église de RarnW,
toujours été plus fort, en elle, que l'erreur et la passion des hommes. Elle
sait que les destinées chrétiennes de l'Occident sont toujours entre les mains
de l'Église de Roma (apud A. Gratieux, op. cit., II pág. 129) .
(150). — Sôbre DanileViiki, cf. N. O. Losski, op. aie., págs. 69-71; J. G. de Beus,
O Futuro do Ocidente, Rio de Janeiro, Livraria Clássica Brasileira, s. d.
(trad. port. de um livro inglês The Future of The West, págs. 17-23.
— 183 —

de Cristo virá a suplantar o Crescente na cúpula da Aya Sophia


de Constantinopla.

§ 121. Interlúdio literário .


As previsões pessimistas de Tchaadáïev sôbre a esterilidade
fatal da Rússia foram, até certo ponto, desmentidas pelo surto ad-
mirável da literatura russa durante o século XIX; essa literatura
primitiva e, ao mesmo tempo, requintada revelava aos burgueses
estupefatos do Ocidente um mundo diferente, um mundo que, no
princípio, os fascinava por causa do seu exotismo, mas não tardava
em convidá-los a um profundo exame de consciência (151) . Seria
incompatível com o escôpo dêste livro dar uma história das letras
russa: só queremos focalizar aqui duas figuras centrais, cujas obras
tiveram repercussão mundial: Dostoïevski e Tolstoi. Em ambos
os autores se encontram numerosos elementos que se relacionam
com o nosso assunto.
I. Dostoïevski (152).
Fedor Mikháilovitch Dostoievski (1821-1881) é o grande vi-
sionário da literatura russa. Suspeito de cumplicidade numa cons-
piração contra o regime (1849), foi condenado à morte, mas per-
doado poucos minutos antes da execução (153), passou alguns anos
na Sibéria, vivendo no meio de criminosos, e aí se converteu à "trí-
plice verdade russa", isto é, aí descobriu a grandeza do povo hu-
milde, o significado do sofrimento, e a sublime majestade do Evan-
gelho (154). De volta à sua pátria, reencetou sua carreira literá-
rária (155), publicando uma série de grandes romances (156).
a) O Mundo dostoïevskiano.
Os romances de Dostoïevski, longe de serem composições de
um perfeito equilíbrio clássico, são histórias confusas e tumultuo-
sas, com enrêdo complicadíssimo, com situações inverossímeis e
quase melodramáticas, com diálogos intermináveis; suas persona-

— Quem apresentou (no século XIX), a literatura russa ao público culto da


Europa, foi principalmente o visconde francês E.-M. de Vogüé, Le Romeu
Russe (1887).
— Sôbre Dostoïevski, cf. Romano Guardini, L'Univers Rebele= de Dostoïevski,
Paris, Editions du Seuil, 1947; K. Pfleger, Dostoievski, o Homem do Sub-
solo, Rio de Janeiro, Editôra Ocidente Ltda., 1942. — Uma biografia interes-
sante consagrada ao grande romancista russo é o livro de Henry Troyat,
Dostoievski I-II, Rio de Janeiro, Americ-Edit., s. d.
— Este episódio tão significativo na vida do autor é narrado no livro "O Idio-
ta" (Parte I). Cf. também § 119 III, nota 116.
— Cf. "Memórias de urra Casa de Mortos" (1861-1862).
— Já em 1846 tinha publicado um primeiro romance "Gente Pobre".
— "Crime e Castigo" (1866); "O Idiota" (1868); "Os Demónios" (1872); "O
Adolescente" (1878); "Os Irmãos Karamazov" (1880).
-- 184.--

gens são figuras excêntricas, atormentadas, doentias (157): não


comem, não dormem, não exercem profissão, não têm as preocupa-
ções do comum dos mortais; discutem com verdadeira paixão, —
preferivelmente, durante a noite, — problemas cruciantes: a exis-
tência de Deus, a imortalidade da alma, a liberdade humana, a vo-
cação da Rússia; ou melhor, não só discutem êsses problemas, mas
incorporam-nos, "vivendo-os" até o extremo; para tais figuras não
existem as pequenas banalidades da vida cotidiana: vivem em pa-
ragens superiores, geralmente num clima de tensões insuportáveis,
atormentando seus companheiros e a si mesmas, confessando-se uma
a outra os crimes mais hediondos, passando de uma crise para ou-
tra, e imolando-se loucamente a uma idéia que as devora . Apesar
de tudo isso, os romances de .Dostoïevski têm algo de profundamen-
te humano que nos empolga e arrebata: seu mundo sumamente
trágico deixa em nós impressões inolvidáveis. E' que o autor nos
transporta do mundo das convenções, das aparências, da "razão"
niveladora e utilitária para os abismos insondáveis da alma humana,
onde tudo é caótico e contraditório, mas nem por isso deixa de ser
autêntico. As aventuras alucinantes dos seus heróis, embora se-
jam "casos-limites", poderiam ser as aventuras de cada um de nós,
se nós — como êles — tirássemos as derradeiras conseqüências de
nossas tendências subterrâneas. Muitas das suas descrições são
modelos inigualados de psicanálise avant la lettre. Mas Dos-
toIevski era mais do que psicológo: antes de mais nada queria tra-
zer aos seus leitores uma mensagem religiosa, mensagem que, em-
bora eivada de certos elementos fantasistas e de alguns desvios
eslavófilos, é genuinamente cristã no seu núcleo.
b) Liberdade, Pecado, Sofrimento e Transfiguração.
O homem é livre: eis o dogma central da mundividência dos-
toïevskiana: segundo nosso autor, a grande tarefa do homem con-
siste em provar a si mesmo e a outros que é homem e não peça
de uma máquina. Mas a situação do homem livre neste mundo
caído é trágico: o pecado original destruiu a harmonia universal
do Paraíso Terrestre. Para a grande maioria, a liberdade é um
pêso molesto, ao qual quereriam subtrair-se. Pois ser livre quer
dizer: ter sêde insaciável do Infinito, ter o louco desêjo de expe-
rimentar a fundo suas possibilidades, ter a vontade absurda de se
evadir da cadeia em que nos encarceram a ordem científica e a
ordem moral. Em cada um de nós há "o homem do subsolo" que

s
(157) . O próprio autor era epiléptico e diz . a que aos ace sos de epilepsia costuma-
vem preceder uns momentos de lucidez extraordinária o Michlthie,
o herói do romance "O .1dióta''r é' 'ó tàl ópiléticó
---- 185 —

quer quebrar as necessidades de tôdas as espécies que nos circun-


dam para construir um mundo completamente livre (158): o que-
nos impede de realizarmos êstes sonhos loucos de nossa subcons-
ciência é a "razão" fiscalizadora, as convenções e as imposições.
sociais.
Para Nietzsche, o homem era uma cerda estendida entre D.
macaco e o Super-homem; para Dostoïevski, o homem é o ponto
culminante do kósmos, onde Deus e Satanás se disputam o ter-
reno. O homem não é simples produto do seu meio biológico e so-
cial, êle se acha no poder de fôrças metafísicos entre as quais está fa
dado a escolher. O homem tem de optar por Deus ou pelo demô-
nio. A liberdade abre o caminho para Deus, — caminho traçado ,
por Cristo, o Deus-Homem, — ou então para o inferno. Diante
do mal o homem experimenta a vertigem da sua liberdade, desa-
fiando o céu e a terra, chegando a ponto de arriscar sua fortuna,
sua posição social, sua saúde, até sua própria felicidade. Pois o
pecado é infinito, já que constitui um passo no sentido da realiza-
ção das possibilidades mais profundas do homem (159): no pe-
cado o homem, relativo procura endeusar-se a si próprio, aspiran-
do ao estado de homem-deus que é a caricatura do homem e o leva_
infalivelmente ao niilismo intelectual e moral (160) . Mas, ao la-
do dos que pecam friamente "por malícia" encontramos nas obras.
do autor russo também os pecadores "por fraqueza", os que eter-
namente vacilam entre a virtude e o vício, que se detestam a si
mesmos, e se arrependem dos seus atos vergonhosos quase no mo--
mento de cometê-los. São os bêbedos, os sensuais, as meretrizes, os
vaidosos (161), e muitos dêles estão próximos a Deus, apesar da
sua miséria moral, Qu melhor, graças à sua miséria tornam-se cons-
cientes da sua insuficiência. Salva-os a humildade, purifica-os o-
sofrimento.
O pecado destrói a harmonia universal, tal como ela se nos,
manifestará no outro mundo e como alguns místicos a contemplam
já neste mundo (162) . O pecado separa os homens de Deus, de-
sune os homens entre si, dilacera o indivíduo e arranca-o da natu-
. — Cf. "Memórias escritas num Subsolo" (1863) .
. — Cf. Ch. Péguy: Le pécheur est ate coeur n1me de chrétienté. Nul n'est
aussi compeitent én metière de chrétienté. Nul, si ce n'est Ie saint .

. — Exemplos de figuras nas obras do outor que pecam friamente contra a luz .
são Raskólnikov (em "Crime e Castigo"); Rogojine (em "O Idiota"); Sta-
vroguine (em "Os Demônios"); Ivan Karamazov e Smerdiakov (em "Os .
IrMãos Karamazov") .
. — Exemplos são Marmeladov (em "Crime e Castigo"), a prostituta Sôniit,
(ibidem), o mentiroso Stepan Trofimovitch (em "Os Demónios"), Lebedev
(em "O Idiota"), Fèddr e , DMitri Karamazov (em "Os Irmãos Karamazov")'.
(162). Exemplos são o Staretz Sóssimsi e seu aluno Aliocha Karamazov (em "Os. .
Irmgos Káramazov") .; .0" Príncipe' Michk,,ri (em "O Idiota") é Mais inexpe-
riente do ,tnal 'do què místico; aléM diSsO, finito "ingênuo", e , tem traços
doentios; é epilético como Dostoievski::',..
--- 186 —

reza. Há uma solidariedade misteriosa no pecado: "todos são res-


ponsáveis por tudo perante todos". Também perante as coisas do
universo: "Passarinhos do céu, passarinhos alegres,' perdoai-me,
pois pequei também contra vós, mas se pequei contra todos, todos
também me perdoarão. Eis o Paraíso!" (163). Cristo redimiu o
homem pecador mediante o sofrimento, tornando-se solidário da
miséria humana: é sofrendo que o homem se torna semelhante ao
Mestre, contanto que aceite e até abrace o sofrimento. Mediante
o sofrimento podemos salvar-nos a nós próprios e o próximo, nos-
so irmão em Cristo: a salvação individual é relegada ao segundo
plano; o que pesa é a salvação universal. Assim como todos nós
somos solidários no pecado, assim devemos ser solidários no sofri-
mento universal, nobilitado pelo Deus-Homem, a fim de podermos
obter o perdão universal. No sofrimento o homem se livra do seu
orgulho e egoísmo, e descobre a infinita misericórdia de Deus
(164) . No sofrimento, o homem miserável se lembra de Deus.
O mundo atual é trágico e enigmático, mas Dostoïevski vive
numa expectativa apocalíptica (165): virá o dia em que "tôdas
as coisas serão postaS no seu lugar". O mal será vencido, e o bem
triunfará. Diz Sóssima, o staretz místico: "Molhai a terra com
lágrimas de alegria, e amai essas lágrimas! E não vos envergo-
nheis do vosso enlêvo, pois é uma dádiva de Deus, uma dádiva
grandiosa que é proporcionada apenas aos eleitos!" Por mais trá-
g i co que seja êste mundo, as lágrimas dos infelizes serão enxutas,
e o pranto dos miseráveis se transformará num côro final de Ale-
luia.

c) A Lenda do Grão-Inquisidor.
O sofrimento omnipresente neste mundo, se para alguns é
meio de purificação, para outros é motivo de revolta contra Deus.
O tipo de tal revoltado é Ivan Karamazov, o frio racionalista, o
. — Palavras de Sóssima (em "Oos Irmãos Karamazov") .
. — Cf. as palavras de Marmeladov (em "Crime e Castigo") : "Ele fará justiça a
todos nós, e nos perdoará aos bons e aos maus, aos sáb ∎ os e aos simples...
depois dirá: "Vinde também; vós, os bêbedos, fracos e impudentes!" E nós
chegaremos sem mêdo e nos colocaremos diante dêle. Então dirá: "Vós,
porcos, vós que vos assemelhais aos brutos, vinde a Mim!" E dirão os sá-
bios e os prudentes: "Senhor, por que deixais vir a Vós também êstes?"
Ele responderá: "Deixo-os vir, porque nenhum dêles se julgava digno de
se aproximar de Mim". E estenderá as mãos sôbre nós, e nós nos ajoelha-
remos com muitas lágrimas, e compreenderemos tudo! Sim, então tudo
compreenderemos, e todos tudo compreenderão! ... O' Senhor, venha o Vos-
so Reino!" — E, em outro lugar: "Não há pecado humano tão vil que seja
capaz de esgotar a misericórdia divina".
(165) . — Mas, visto que à parousia há de preceder a vinda do Anticristo, Dostoïevski
acredita também nas fôrças obscuras que se amontoam "no fim dos tempos":
seu romance "Os Demônios" retrata as tentativas dos ateus e niilistas para
se apoderarem dêste mundo; êste romance profético descreve uns aspectos
diabólicos da Revolução russa.
— 187 ---

homem "de inteligência euclidiana". Ivan é torturado por dúvidas


acêrca de Deus, dúvidas que lhe são propostas por seu intelecto
como soluções possíveis do problema. Afinal de contas, vê-se obri-
gado a admitir a existência de Deus, mas se recusa a admitir o
mundo como obra das mãos divinas . Ou melhor, Ivan não pode
deixar de reconhecer a Deus como o Criador do Universo, mas se
insurge contra a crueldade da criação, renunciando a Deus por
amor à humanidade . Pois êste mundo, cheio de lágrimas de crian-
ças e cheio de prantos de inocentes (165a), é injusto e cruel. Pode ser
que tôda a história humana termine num jubiloso acorde final de
Aleluias, pode ser que tôdas as dissonâncias terrestres se resolvam
numa harmonia celeste, pode ser que algozes e vítimas acabem
por abraçar-se no Juízo Final, — Ivan não "reconhece" essa ordem
absurda, e está disposto a "devolver a Deus seu bilhete de entra-
da": não quer assistir a cena tão humilhante para a humanidade.
Ivan levanta uma queixa tremenda contra Deus: a de ser tirano
déspota; insurge-se contra a ordem divina e quer substituí-la por
uma ordem humana, mais justa e imediata.
No tempo da Inquisição espanhola, Cristo digna-se aparecei
mais uma vez na terra . Todos O reconhecem, quando Êle anda
silencioso pelas multidões, revelando com seu sorriso sublime uma
compaixão infinita por todos. A população de Sevilha suplica-lhe
fazer milagres, e Ele ressuscita uma menina falecida. Percebe-O
Grão-Inquisidor, um ancião de quase noventa anos, e manda
prendê-lo. De noite, visita seu prisioneiro, dizendo-lhe: "Por que
vieste incomodar-nos? Pois, de fato, estás-nos incomodando. Sabes
que te farei? Amanhã te condenarei e te queimarei na fogueira
como o pior dos hereges, e o povo que hoje te beijou os pés, atiça-
rá amanhã o fogo, obedecendo a um aceno da minha mão". O
Grão-Inquisidor não crê em Deus, nem no Deus-Homem, e por
isso mesmo não acredita na dignidade humana. Cristo ensinou ao
homem a liberdade; mas a liberdade implica responsabilidade pes-
soal, decisões dolorosas, torturas e sofrimento; o ideal de liber-
dade pessoal é por demais elevado para as "massas". Ora, o Grão-
Inquisidor é o amigo das massas: em troca da liberdade que elas
lhe cedem sem escrúpulo e sem remorso, êles lhes proporciona uma or-
ganização "euclidiana" do mundo, apropriada à condição de cria-
turas fracas. Propõe-lhes, não um Deus de amor, não um Deus a
ser imitado pessoal e livremente, mas um Deus administrativo e
burocrático. Garante-lhes a prosperidade, o bem-estar, o mecanis-

(165a). Cf. as palavras de Rieux (em La Peste de A. Camus, Paris, Gallirnard, 1947,
pág. 179): Et je refuserei jusqu'à la mort d'aimer cette création ou des en-
!tants sont torturés.
— 188 —

mo de indulgências e perdão, a segurança, e — sendo necessário


— faz, de vez em quando, um milagre. Êle "corrige" a obra de
Cristo, querendo baseá-la na autoridade, no mecanismo e na segu-
rança terrestre: êle sucumbe às três tentações que Jesus repudiou
(166) .
A Lenda do Grão-Inquisidor tem, entre muitos outros signi-
ficados (167), a finalidade de desmascarar a Igreja Católica, au-
toritária e mecanizada. Mas até os adversários mais figadais do
"latinismo" deverão reconhecer que o retratc , da Igreja Católica, tai
como é delineado por Dostoïevski, é uma caricatura, como é cari-
catura também o retrato de Cristo que, no fim do episódio, beija
os lábios exsangues do Grão-Inquisidor: é um Cristo sentimental,
muito diferente do Cristo dos Evangelhos que, sem dúvida, rezava
por seus algozes, mas fulminava seus veredictos contra os que de-
turpavam conscientemente a mensagem divina. E o Grão-Inquisi-
dor deforma-a em plena consciência, dizendo: "Nós seguimos o
"outro" (isto é, o diábolo), dando aos homens do que necessitam:
nós condescemos à sua fraqueza". A Lenda, por mais impressio-
nante e comovente que seja, é uma deformação da Igreja e de Cris-
to: é duvidoso até que ponto o próprio autor a tenha endossado.
Em todo o caso, devemos reconhecer que Dostoïevski, muito em-
bora fôsse o apóstolo da "simpatia universal", tinha umas aversões
secretas ao Ocidente, das quais nunca conseguiu libertar-se por
completo: os poloneses e os alemães, mas sobretudo a Igreja Ca-
tólica e os jesuítas são o alvo constante de reparos depreciativos.
d) O "Omni-Homem".
Nietzsche preconizava o "Super-Homem" do futuro; Dostoïevs-
ki coroava sua carreira literária com a imagem do "Omni-Homem"
russo (168) . Ainda que venerasse o passado religioso da Europa,
abominava a Europa contemporânea, em que via apenas um cemi-

. — Cf. Mt., IV 1-11; Mc., I 12-13; Lc., IV 1-13. — A primeira tentação (na
ordem relatada por São Meteu) é: "Dize que estas pedras se convertam em
pães" (prosperidade material); a segunda é: "Lança-te daqui abaixo!" (mi-
lagres feitos com o intento de impressionar os homens e de lhes mostrar a
necessidade de adorar a Deus); a terceira é: "Tudo isto te darei, se, pros.
trado. me adorares" (a autoridade humana em vez do amor divino) .
. Cf. R. Guardini, op. cit., págs. 125-171.
-(168) . Dostoïevski desenvolveu a idéia do "omni-homem" russo principalmente por
ocasião das festas do poeta russo Púchkin (1880); seu discurso, que era
uma réplica indireta a um discurso anterior proferido pelo romancista "oci-
dentalista Turguénïev, foi recebido com aplausos de um entusiasmo deliran-
te; "as festas de Púchkin" constituem e apoteose do romancista nacional
Dostoïevski; suas palavras foram, porém, severamente criticadas pelo publi-
cista Constantino Leontiev (1831-1891) . Outra glorificação da Rússia en-
contra-se no "Diário de um Escritor" (1876) . Al. Túchkin (1799-1837),
autor do poema "Eugênio Onegin", do romance "A Filha do Capitão" è de
• raluitas outras obras de grande valor
, elevcat a' literatura russa ao nível da li-
teratura européia.
--- 189 —

tério, podridão e decadência, e por vêzes, o Reino do Anticristo,


Romântico incurável e Eslavófilo de tendências místicas, idealiza-
va o povo russo (169) . O povo russo é humilde e sabe sofrer:
grande é a Rússia no seu sofrimento; o povo russo é um povo
"deífero", isto é, traz Deus em si. Sem dúvida, o povo russo não
conhece a doutrina cristã, e poderia levar bomba num exame de
religião; mas, no fundo do seu coração, sabe tudo quanto precisa
saber, tendo recebido uma instrução religiosa na igreja, onde du-
rante muitos séculos ouviu preces místicas e cantou hinos grandiosos,
instrução mais valiosa do que uns sermões dominicais. Ao povo or-
todoxo da Rússia — rude e ignorante, mas simples e incorrupto —
cabe a tarefa histórica de transformar a sociedade e o Estado ria
Igreja: sim, a Igreja suplantará futuramente o Estado.
"Ser russo, no sentido verdadeiro da palavra, quer dizer ser
homem universal, ser irmão de todos os homens, ser "omni-ho-
mern" (170) . Essa divisão do povo russo em ocidentalistas e em es-
lavófilos não passa de um tremendo equívoco ou, se quiserdes, de
uma necessidade histórica. A um russo autêntico é tão caro o des-
tino da Europa e da grande raça ariana como o é o destino da
Rússia, pois nosso vocação é universal, não mediante conquistas à
espada, mas pela fôrça do amor fraternal... Será que nosso povo
pobre e ignorante é predestinado a desempenhar papel tão rele-
vante? Será que nossa missão consiste em proferir uma palavra
nova e de significado universal? Não falo de grandeza econômica,
de lauréis bélicos ou de descobertas científicas; falo sèmente da
confraternização de todos os homens a ser realizada pela Rússia
O coração do nosso povo presta-se mais do que qualquer outro po-
vo a uma confraternização universal, a abranger tôdas as nações.
Nosso país é pobre, mas Cristo o abençoou, atravessando-o na for-
ma de um mendigo humilhado" (171) . E, em "Os Irmãos Kara-
mazov" lemos: "Deus salvará a Rússia, pois, embora o povo não
consiga livrar-se do pecado, sabe que Deus abomina o pecado e que
é mau pecar. no povo surgirá a salvação por causa da sua fé e

(169) . — Mas em "Crime e Castigo" lemos: "O homem russo é um homem vasto, vasto
como seu país, horrivelmente inclinado a tudo quanto é quimérico e desorde-
nado; é uma grande infelicidade ser vasto sem possuir gên'o particular". —
Em "Os Irmãos Karamazov" Dostoïevski quis retratar três Rússias diferentes:
Dmitri é o símbolo da Rússia caótica (ignorante, pecaminoso, mas humilde
e sofredor); Ivan reflete a Rússia "ocidentalista" (inteligente, friamente ra-
cionalista, sem fé); Aliocha é a imagem da Rússia futura (bondoso, com-
preensivo, cheio de fé otimista e místico).
— Cf. as palavras de Dostoïevski ao autor francês de Vogüé (op. cit., pág.
270) : Nous avons le génie de toues les peuples et en plus génie russa;
dono nous pouvons nous comprendre et vous ne pouves nous comprendre,
e esta frase do mesmo autor (1878): "Todos os homens devem-se tornar rus-
sos, russos antes de mais nada. Se a idéia nacional da Rússia é ser "omni-
homem", todos os homens devem-se tornar russos". — E' .o reverso da medalha!
— Cf. o poema de Tiútchev, § 120 III, nota 148.
— 190 —

da sua profunda humildade. Deus salvará seus filhos, pois gran-


de é a Rússia na sua humildade".
Não precisamos demorar-nos em apontar as tendências peri-
gosas destas palavras e de expressões congêneres. O Deus de Dos-
toïevski é muitas vêzes um Deus nacional, um Deus russo; seu pa-
triotismo reveste-se, às vêzes, de feições pseudo-religiosas ou, pe-
lo Menos, incompatíveis com o Cristianismo; e afinal, nada mais
difícil do que ser humildemente humilde; Dostoïevski ufana-se de-
mais da humildade do povo russo, e essa humildade pode fàcilmen-
te converter-se em jactância imodesta e agressiva.
II . Tolstoi (172) .
O Conde Lev Nikolaïevitch Tolstoi (1828-1910) é autor de
alguns romances monumentais maravilhosamente bem arquitetados
(embora nem sempre conforme as normas da estética "latina")
que pertencem às melhores criações artísticas dêste gênero (173);
mais tarde, adquiriu reputação mundial também como reformador
social (174).
a) O Significado da Vida.
Desde menino, Tolstoi era atormentado pela enigma da mor-
te, e poucos autores trataram dêste tema de maneira tão variada e
tão impressionante (175) . O problema da morte confina com o
mistério da vida, e o autor racionalista e agnóstico julga os dois
problemas insusceptíveis de uma solução. A morte é um dragão
pavoroso, no fundo de um abismo, a espreitar-nos e prestes e de-
vorar-nos; o que dêle nos separa, é um tênue esgalho a que nos agar-
ramos; mas o esgalho é continuamente roído por dois ratos; dentro
. — Sôbre Tolstoi cf. B. Zenkovsky, op. cit., I págs. 428-442; M. Hoffmann,
op. cit• , págs. 524-549; V. Maklakov, Sur Léon Tolstoi, Paris, 1929.
. — Mencionamos aqui "Guerra e Paz" (1864-1868) e "Ana Karenina" (1873-
1877); a primeira obra é um romance histórico, a epopéia da Rússia du-
rante a época napoleônica (1805-1815); neste livro (II 4, 1) encontramos
também uma digressão sôbre a história, em que autor desenvolve suas idéias
fatalistas sôbre o processo histórico, chegando a negar o livre arbítrio hu-
mano (aliás, confundido com pura arbitrariedade); segundo êle, "os chama-
dos heróis históricos nada são senão os rótulos dos diversos capítulos da
história; dão seus nomes aos acontecimentos sem estarem 'em relação com os
próprios fatos". — "Ana Karenina" retrata a sociedade contemporânea da
Rúss'a. — Nos dois romances, Tolstoi revela-se grande artista, profundo co-
nhecedor do coração humano, e autor realista com grande dom de observação.
. — Dois livros acessíveis que contêm as idéias religiosas e filosóficas do autor
russo são: Pensée de Tolstoi, e Nouvelles Pensées de Tolstoi, Paris, Alcan,
1898 e 1903 (da lavra de Ossip-Lourié) •
. — Cf. "A Morte de Mamãe" (em "Infância", 1852); "Três Mortes" (1859);
"A Morte de Ivan lliitch" (1886); "Kholstomiev, História de um Cavalo"
(1861); "A Morte na Batalha" (em "Visões de Sebastópolis", 1956); "A
Morte de Nikolaj Levine" (em "Ana Karenina"); e afinal, "O Senhor e o
Criado" (1895) . — Falando da morte de seu irmão que tinha falecido nos
braços do autor, Tolstoi diz: "Nikolaj sofreu mais de um ano, e morreu nas
dôres mais terríveis, sem compreender porque vivera, e muito menos ainda
porque morria".
— 191 —

de poucos instantes, sucumbirá o esgalho, e nós nos afundaremos


na bôca escancarada do monstro. Eis nossa situação em tôda a sua
objetividade; mas como é diferente a atitt de subjetiva dos diver-
sos homens perante o Nada! Alguns ignoram, — ou querem obsti-
nadamente ignorar, — o abismo e o dragão: é o grupo dos inexpe-
rientes a que pertencem quase todos os jovens e muitas mulheres;
outros fazem o possível para esquecer sua verdadeira situação, de-
liciando-se com as escassas gôtas de mel que estão dispersas sôbre
as fôlhas do esgalho: são os hedonistas; outros ainda, mais corajo-
sos, abreviam resolutamente seus sofrimentos e lançam-se no pre-
cipício; outros, finalmente, têm plena consciência da sua situação
trágica e absurda, e aceitam sua vida precária com resignação e
calma, sem dela esperarem muita coisa: é a atitude de Salomão
e de Schopenhauer..
Assim Tolstoi descreve... e condena a existência humana,
sentença mais digna de um budista do que conforme a mundivi-
dência cristã (cf. § 68 II a) . O autor perdera a fé tradicional já
como adolescente; muitos anos procurava com sofreguidão o sen-
tido da vida nos prazeres mundanos, na glória militar, em viagens,
nas ciências, na cultura, na arte; mas nac:a conseguiu satisfazer-
lhe. Em 1879, já estando no apogeu da sua glória literária, teve
a grande experiência da sua vida: sua "conversão" (175a). Até então,
vivera como "niilista" (para usarmos o têrmo empregado pelo au.
tor), isto é, sem fé; daí em diante, começou a persegui-lo a Esfin-
ge, propondo-lhe a terrível alternativa: "Adivinha-me, ou te devo-
ro!" Farto das mentiras e das ilusões da cultura, o autor foi-se apro-
ximando da fé simples dos homens do povo: o povo vive em união
íntima com a natureza, trabalha com o suor do seu rosto, come
sem requinte os frutos do seu trabalho, procria filhos sem ilusões,
integra-se singelamente na série ininterrupta da vida cósmica, e
aceita a morte como parte integrante da sua existência. Como tan-
tos outros autores russos, Tolstoi acaba por venerar "a verdade
do povo" (176); mas, ao estudar a religião popular, ficou decepciona-
do: tanta superstição, tanta ignorância, tantas formalidades externas
não podiam satisfazer ao racionalista esclarecido que considerava
a razão como o único instrumento de saber à disposição do homem
e como a única luz capaz de conduzir o homem ao Bem.

(175a) . — A figura de Constantino Levine- em "Ana Karenina" já anuncia a "conversão"


do autor.
(176) . — A fé no povo (russo: narodnichesivo) era um fenômeno bastante comum na
Rússia do século XIX e originava diversos movimentos "popularistas". O
"povo" não era a "nação", mas "o povo simples" (os lavradores), sep.irado da
elite russa nas instituições artificiais julgadas criminosas não poucos popularistas
russos iam ao ponto de condenar a cultura, artigo import:ido, e de considerar o
lavrador como o possuidor místico da verdade religiosa e social.
— 192 —

b) O Misticismo Naturalista.
Tolstoi se pôs a estudar a Bíblia para conhecer as raízes da
fé do povo: estudo pessoal e feito sem intermediários que pode-
riam deturpar ou embrulhar a mensagem evangélica. "Comecei a
crer na doutrina de Jesus, e mudou-se completamente minha vida",
diz o autor . Tolstoi acreditava na doutrina moral do Evangelho
sem acreditar na Pessoa Divina de Jesus: a "religião" tolstoiana
era Cristianismo sem Cristo, eticismo sem implicações dogmáti-
cas de ordem sobrenatural. A essência da doutrina de Jesus es-
tá, segundo o autor, no Sermão da Montanha ("As Oito Bem-
Aventuranças") e principalmente neste versículo: "Eu, porém, vos
digo que não resistais ao mal, mas, se alguém te ferir na tua face,
apresenta-lhe a outra" (177) .
A verdadeira religião, ensinada por Deus, não é revelação de
um Deus exterior às coisas, e sim a plena compreensão da nossa
vida interior, a qual faz parte da Vida Universal. "O Reino de
Deus está dentro de vós" (Lc., XVII 21); todos os homens, também
os mais simples, os mais incultos e os mais pobres, podem realizar
o Reino de Deus por serem bons. Deus é a Vida Universal, —
algo de não temporal e não espacial, — cuja manifestação efêmera
no tempo e no espaço é o homem. A existência individual é um
mal, uma fonte de sofrimentos e, no fundo, não passa de uma ilu-
são (178): o fim de todo o processo histórico é a unificação com-
pleta de tôdas as coisas na sua origem, onde encontrarão a paz
perfeita (Nirvana) . Achamo-nos em pleno panteísmo, panteísmo
de cunho oriental, nutrido pelo pensamento de Schopenhauer e
misturado com uns paradoxos do Evangelho.
O homem, em dado momento da sua evolução histórica, tor-
na-se consciente da miséria e do absurdo da sua existência indivi-
dual, e chega à conclusão de que o significado da vida humana po-
de residir apenas no cumprimento da Vontade infinitamente boa

. — Mt., V 39; cf. Ep. Rom., XII 21: "Não te deixes vencer do mal, mas vence
o mal com o bem!" — Em 1881, Tolstoi dirigia-se ao novo Czar Alexandre
III, pedindo-lhe perdoasse os assassinos do Czar Alexandre II; coisa seme-
lhante foi feita também por Soloviév (cf. § 122, nota 195); os dois russos
procediam i por motivos diferentes e um independentemente do outro.
. — Cf. Ossip-Lourié, Nouvelles Pensées de Tolstoi, n.os 18-19: L'idée suivant
laquelle ia vie humaine n'est pas ]'existente individuelle, cette vérité, acqui-
se au prix du travail moral de Phumanité tout entière pendant des milliers
d'années, est devenue pour l'homme (non animal), dans le domaine moral,
une vérité beaucoup plus indubitable et plus stable que la rotation de la
Cerre et les lois de la gravitation... L'humanité en a fini avec Pidée de la
vie considérée comme existence individuelle; elle ne peut y revenir, ni cublier
que ]'existente individuelle de l'homme n'a pas de seus... Quand Phomme sait
qu'il est une individualité tendant au xxVème but que toutes les individualités
qui Pentourent, ii ne peut plus aspirer á ce bien que sa conscience réfléchie
considère comme un mal, et sa vie ne peut plus consister dans la recherche
du bien individual.
— 193 ---

que abarca o Universo: para tal homem, o escôpo da vida huma-


na será renegar a vontade individual em favor da Vontade Divi-
na. A abnegação total do indivíduo a si próprio implica um amor
ilimitado aos outros indivíduos, a abranger tudo: "o cão, a erva
e a mãe". E' o amor universal de todos para com todos e tudo .
O aumento do amor substituirá nosso mundo mentiroso e dividido
por uma ordem de paz, verdade e concórdia . Tolstoi é "progressis-
ta", e acredita no aumento constante do amor: a lei fundamental
do Evangelho não cessa de desenvolver-se, embora outras conquis-
tas de caráter mais espetacular ameacem ofuscá-la . Mas um dia
há de vencer o Bem; cada homem traz o germe dêste ideal no seu co-
ração; êle precisa só desenvolvê-lo, renunciando aos seus maus ins-
tintos e cultivando a solidariedade universal.
c) Anarquismo Radical.
A civilização moderna baseia-se no egoísmo, na violência, na
exploração brutal, na mentira, na lei do mais forte: Tolstoi abo-
mina-a, vendo nela um desvio do grande princípio ético que julga
ter descoberto no Evangelho. Racionalista sentimental, como Rous-
seau (179), mas muito mais radical, preconizava a volta à Natureza,
condenando peremptèriamente tôda e qualquer cultura. Em nome da
sua ética maximalista, impugnava a Igreja oficial, o Estado, o patrio-
tismo, a guerra, as cidades, o colonialismo, a propriedade privada, o
luxo, o confôrto, as ciências, as artes, etc . O grande proprietário e
autor da fama mundial aprendia o ofício de sapateiro, vestia-se co-
mo simples lavrador, renunciava aos seus direitos autorais, absti-
nha-se de carne, levava uma vida muito sóbria, e renegava seu pas-
sado de literato; Iasnaia-Poliana tornava-se um centro de peregri-
nação, onde inúmeras pessoas, provindas não só da Rússia corno
também da Europa e da América, iam buscar conselho e inspira-
ção num contacto pessoal COM o sábio ermitão. Por quase todos
os países supercivilizados do mundo ocidental espalhava-se o "tols-
toiísmo", uma espécie de comunismo utópico e ético, um movimen-
to internacional de pacifismo e de solidariedade universal.
Racionalista incurável apesar das suas tendências místicas,
Tolstoi repudia os mistérios da fé cristã. Além de não acreditar
na existência de um Deus transcendente, rejeita a queda do pri-
meiro homem como uma fábula inadmissível nos tempos moder-

(179) . Ibidem, n.0 1: Lecteur, qui que tu sois, je t'aime. Bien ioin de vouloir te
chagriner, t'offenser et introduire le mal dans la vie, je ne souhaite qu'une
chore, — t'être utile. Mais j'aurai beau écrire avec le plus de talent pos-
sible, j'aurai beau avoir raison, au point de vue logique, je ne pourrai par
te convaincre, si ton esprit reste froid. Ne raispnnons dono par. Je ne te
demande qu'une chave: consulte ton coeur.

Revista de História n.o 31


— 194 —

nos, a Encarnação como uma blasfêmia (:80), a Ressurreição co-


mo uma inépcia (181), os sacramentos como sacrilégios, os ritos
do culto divino como magia (182), e a casta sacerdotal como im-
postura. A Igreja prega um pseudo-cristianismo, sancionando a vio-
lência (guerras, tribunais, prisões, etc.), defendendo a proprieda-
de privada (183) e prescrevendo submissão aos poderes públicos:
tôdas essas coisas são contrárias à doutrina de Jesus em que Tols-
toi vê um anarquista e niilista.
O Cristianismo, na verdadeira acepção da palavra, destrói o.
Estado, pois governar é dominar, e dominar quer dizer exercer vio-
lência: ora, todo e qualquer ato de violência é mau e condenado
pelo Evangelho; logo, o poder é imoral. O patriotismo é cegueira
e estupidez; o nacionalismo é um veneno hàbilmente ministrado
pelos poderes públicos para escravizar os súditos aos seus intentos
egoístas. O povo não se incomoda com a questão de saber se Cons-
tantinopla deve pertencer aos turcos ou aos russos; o povo, absorto
por sua luta pela existência, tem interêsses muito diferentes e di-
reitos insofismáveis: quer trabalhar, gozar da paz no seio da fa
mília e levar uma vida decentemente humana. Todos os indiví-
duos têm a obrigação de conspirar, num combate pacífico, para es-
tabelecer a paz mundial, para abolir a propriedade privada e para
exterminar os Estados existentes (184); a solução dos grandes pro-
blemas nacionais e internacionais é principalmente de ordem mo-
ral: se todos os russos fôssem bons e vivessem pensando apenas
no bem dos outros, não existiria para a Rússia "o perigo turco"'
ou "a ameaça alemã". Cada um de nós deve começar a trabalhar
neste sentido sem demora, e o mundo se renovará de repente.

(180). — Cf. ibidem, n.o 94.


(181) . — O autor, nos seus vários comentários do Evangelho, suprimia deliberada-
mente a Ressurreição.
(182). — Cf. Ossip-Lourié, op. cit., n.o 99: Je me suis convaincu que Penseigne- .
ment de l'Église est, théoriquement, un mensonge astucieux et nuisible, pra-.
tiquement un cornPosé de superstitiorzs grossières et de sorcellerie, sous lequel
disparait absolument le sens de la doctr,ne chrétienne • C'est alors que j'ai
renié réellement l'Église • — Em 1901, a Igreja ortodoxa excomungou o
autor herético, ato que provocou uma tempestade de indignação entre os ,
tolstoianos do mundo inteiro.
. — O bolchevismo russo, pelo menos nos primeiros anos da sua existência, não
queria nada saber de Dostoïevski, autor religioso e cristão, mas via em Tols-
toi um precursor do comunismo. — Dostoïevski foi oficialmente reabilitado.
só no dia 9 de fevereiro de 1956 (65. 0 aniversário da morte do autor) .
A apreciação do publicista brasileiro Mesquita Pimentel (in "Problemas do .
Catolicismo Contemporâneo", Editôra Vozes, 1948, págs. 121-122) parece--
nos fundamentalmente errônea: "Tolstoi se aproxima muito mais do que
Dostoïevski do espírito do catolicismo, ao qual, aliás, nunca combateu dire-- •
tamente come aquêle o fêzl... Sem contar que as idéias de Dostoïevski se•
ajustem ao comunismo hodierno muito mais do que as de Tolstoi".
. — Tolstoi acredita no triunfo final do seu comunismo anarquista, visto que a .
idéia moral do amor fraternal, apesar de todos os obstáculos históricos, há.
de vencer, cf. Ossip-Lourié, Pensées de Tolstoi, n.o 191: Le temps vient °à
toutes les institutions basées sur la violence disparaitront par surte de leur
inutilité, de leur stupidité, et même de leur inconvenance évidente.
— 195 —

On ne peut que dire: cela est beau, cela est fou, et conclure par
un sympathique sourire (185).
Tolstoi critica também a arte, não só a arte contemporânea,
mas tôda e qualquer obra de arte que não tenha tendências mo-
ralistas. A arte não tem nada a ver com o belo (186), mas deve
servir a moral pública: sua função é eminentemente ética e social .
No fim da sua vida, o romancista russo nega enèrgicamente os produ-
tos literários da primeira metade da sua carreira, e escrevia apenas
ensaios (pseudo-)científicos (187), contos populares (188) ou ro-
mances moralistas (189); apesar da sua grande sensibilidade à
poesia, ao drama e à música, condenava a arte de Sófocles, Dante,
Miguel-Ângelo, Shakespeare, Beethoven, e admirava Uncle Tom's
Cabin como obra-prima (190) .
Em parágrafo anterior (191) já vimos como êle se opunha ao
Progresso técnico e científico; êsses instrumentos de cultura estão
na iminência de sufocar o próprio homem por causa da orienta-
ção imoral que lhes foi dada; mas o autor não duvida de que, um
dia, serão utilizados com grande proveito para o gênero humano;
em geral, tem um conceito utilitarista da cultura, embora em sen-
tido diferente da escola inglêsa (192) .
Afinal, Tolstoi submete a moral sexual — dentro e fora do
matrimônio — a um exame rigoroso, e chega à conclusão de que
o casamento no mundo atual é a mentira mais odiosa de tôdas as
mentiras, e a forma suprema de egoísmo (193) . O ideal do Cris-
tianismo é a castidade absoluta, de acôrdo com Mt. XIX 13: "Há
eunucos que a si mesmos se fizeram eunucos por amor do Reino
dos céus" (cf. I Ep. Cor., VII 33-38) . No casamento, é legítima

(185). — A.-D. Sertillanges, Le Problème da Mal, Paris, Aubier, 1948, I pág. 364.
. — Cf. Ossip-Lourié, Pensées, etc., n.o 285: L'art est une activité humaine qui
consiste en ce qu'un homme exprime consciemment aux autres, au moyen de
certains signes extérieurs, les sentimento qu'il a ressentis, et en ce que ses
semblables se pénètrent de ses sentirrtents et les revivent.
. — Por exemplo: "Crítica de Teologia Dogmática" (1881); "Os Evangelhos"
1881-1882); "Cristianismo e Patriotismo" (1894); "Que é a Arte?" (1897-
1898) .
. — Por exemplo, o conto "De que vivem os Homens", e outros (1881-1886) .
. — Por exemplo, o romance "Ressurreição" (1899-1900) contra a prostituição,
crime social pelo qual o autor responsabiliaa tôda a sociedade (fraco do
ponto de vista estético) •
. — Romance escrito pela autora americana Harriet Beecher-Stowe (1811-1896)
cora o fim de combater a escravatura.
. — Cf. § 69 III e, nota 34.
. — Cf. Ossip-Lourié, Nouvelles Pensées, etc., n.o 214: L'homme simple,
sent sans éducation, occup6 toute se vie à un travail physique, ne déprave
pas sa raison et la conserve dans toute se force et son intégrité. Au con-
traire, l'horrune qui passe toute sa vie à méditer non seulement sur des
sujets insignifiants et futiles, mais sur des sujets auxquels ii n'est pas na-
tarei à l'horrune de penser (o autor pensa aqui também em "especulações
metafísicas", cf. n.o 215 e outros), cet homme pervertit sa raison,
n'est plus libre.
. — Cf. a novela "A Sonata a Kreutzer" e o Posfácio (1889); a brochura "Sôbre
a Questão Sexual" (1901) .
— 196 —

-apenas aquela união dos esposos que tenha em vista a procriação


de filhos: tôda outra relação entre cônjuges é prostituição. Tols-
toi censura severamente a sensualidade desenfreada dos tempos
modernos, dizendo com Mt. V 28: "Eu, porém, digo-vos que todo
o que olhar para uma mulher, cobiçando-a, já cometeu adultério
com ela no seu coração". Se a humanidade observar, um dia, a
.abstinência radical, findar-se-á o gênero humano, e o autor, pre-
vendo esta objeção, dá-lhe as seguintes respostas: o ideal nunca
será plenamente atingido, pois se fôsse atingido, deixaria de ser
ideal, e a Vida deixaria de ser vida, isto é, movimento ininterrupto
rumo a um ideal infinitamente remoto; em seguida, mesmo que o
ideal fôsse atingido, por que nos incomodaríamos com o fim do
mundo, anunciado pelos Evangelhos, em que declaramos ter fé?
O próprio autor sofria da impraticabilidade de muitas das
suas teorias: seu "Diário" transmite-nos seus tormentos de cons-
ciência, suas lutas internas, sua auto-crítica impiedosa, seus confli-
tos com os que lhe eram caros. Foram dolorosos os últimos anos
da sua vida, foi trágico seu fim. Ao "Gandhi do século XIX" não
faltava grandeza: sua vida ascética depõe de um coração genuina-
mente idealista, mas desnorteado por teorias extravagantes.
§ 122. O apóstolo da ecumenicidade.
Vladimiro Sérgeïevitch Soloviév (1853-1900) foi o primeiro
russo a elaborar um sistema filosófico. Filho de uma ilustre fami-
lia moscovita que aliava alto grau de cultura intelectual a uma
fé tradicional (194), o menino Vladimiro, de uma precocidade ex-
traordinária, respirava, desde os primeiros anos da sua vida, o ar
puro de espiritualidade e tradicionalismo. Depois de atravessar
uma crise religiosa (1866-1872), em que se extasiava com as teo-
rias avançadas de positivistas e materialistas, redescobriu o cami-
nho para a ortodoxia, afiliando-se nas fileiras dos eslavófilos. Le-
cionou algum tempo nas Universidades de Moscou e de St. Pe-
tersburg, mas, a partir de 1881 (195), levou uma vida errante,
peregrinando através da Rússia e pela Europa e não podendo de-
<194) . — Seu pai Sérgio, eslavófilo moderado, era professor na Universidade de Mos-
cou e autor de uma célebre "História da Rússia" (em 29 volumes, até o
ano 1774). Pela mãe, Soloviév descendia de uma família ucraniana que
tinha dado o primeiro filósofo à Rússia: Gregório Skovoroda (1722-1794),
cognominado "o Sócrates russo" (cf. B. Zenkosky, op. cit., I, págs. 64-82) .
(195) . — Neste ano, Soloviév, no final de uma conferência, fazia um apêlo ao Czar
Alexandre UI no sentido de poupar os assassinos de Alexandre II (cf. § 121,
II b, nota 177), dizendo: "O Czar, personificação do povo russo, cristão
por excelência, deve imitar o exemplo de Cristo e. perdoar, os assassinos a
fim de satisfazer a uma justiça superior. Não uma execução, e sim um cas-
tigo que possa contribuir para o melhoramento moral dos culpados e para
sua conversão total". — Soloviév viu-se obrigado a pedir demissão do seu
cargo • universitário, e desde então era rigorosamente vigiado pela censura
governamental.
— 197 —

cidir-se por uma residência fixa ou por uma profissão determina-


da. Surpreendeu-o a morte na quinta dos seus amigos, os príncipes ,
de Trubetzkoi, pondo têrmo a uma vida repleta de discussões, pu-
blicações, esperanças e desilusões (196) .
I. O Peregrino Insatisfeito.
Soloviév era homem muito erudito e culto, dotado de uma
grande curiosidade intelectual. Já desde menino, estudava as obras
de filósofos antigos e modernos, sem excluir as especulações de mís-
ticos (197) . Tendo vagueado em quase tôdas as pátrias espirituais
do mundo, procurava uma fusão original de tôdas as grandes dou--
trinas filosóficas e místicas do passado. Espírito sintético e concilia-
dor, julgava ser sua missão harmonizar as numerosas antinomias que-
vexavam sua pátria, tentando congraçar os ocidentalistas com os esla-
vófilos, a Igreja russa com a latina, a Razão com a Fé. Coração
aberto a todos os aspectos da realidade humana, admirava sincera-
mente o progresso e o humanismo do mundo ocidental, mas não que
ria sacrificar ao progresso as tradições veneráveis do seu povo nem
ao humanismo as fontes da inspiração religiosa. Sobressaindo-se en-
tre partidários fanáticos e estreitos, via-se muitas vêzes obrigado
a dizer verdades desagradáveis para seus correligionários, e acabava
sendo mal-entendido e difamado pelos "simplistas".
A grande tarefa de Soloviév parecia-lhe ser a de reconciliar
a cultura moderna com a fé cristã: tal como outro Comte, achava ur•
gente encerrar-se a época destrutiva da filosofia, mas, ao invés do po-
sitivista francês, não considerava a teologia como o pensamento de
uma fase superada nem admitia uma cultura destituída das suas for,-
tes religiosas; antes se empenhava em restituir à civilização moderna
51.19S bases cristãs. O programa é vasto e digno de um humanista cris-
tão: infelizmente, umas máculas viciam-lhe a elaboração, não só ,
aos olhos dos católicos, como também aos dos ortodoxos. Soloviév
procurava introduire le contenu éternel du christianisme dans une
forme nouvelle et appropriée, c'est-à-dire rationnelle et absolue.

. Sôbre Soloviév, cf. N. O. Losski, op. cit., págs. 82-134; B. Zenkovsky,.


op. cit., II págs. 12-73; Monseigneur d'Herbigny, Un Newmap Russe:
Soloviev, Paris, Beauchesne, 1934 2 ; Fr. Muckermann, Soloviev, Mes-
sager de la Russie à I'Occident, Paris, Julliard, 1951; Jean Gauvain, Cons-
ciente de ia Russie (= Textos choisies de Soloviev), Paris, Desclée De-
Brouwer, 1950; Maxime Herman, na Introduction à versão francesa da obra .
solovievana: Crise de ia Philosophie Occidentale, Paris, Aubier, 1947, págs.
5-157.
. — Contribuíam para sua formação intelectual as obras de Platão, Plotino, Orí-
genes, Spinoza, Hegel, Schelling, Boehme, Von Baader, etc., mas também as:
doutrinas secretas da cabala e do ocultismo. Em 1875, o autor fêz uma
viagem ao Egito, obedecendo a "uma voz interior", para estudar, na pátria
da cabala (cf. "Hermes Trismegistos" e "hermetismo") os profundos mistérios,
do gnosticismo.
-198 —

(198): devido a essa posição racionalista, propendia para justi-


ficar a fé mediante a razão, para confundir os dados da revelação
e as verdades naturais, e para "racionalizar" certos mistérios da fé,
por exemplo, a Santíssima Trindade e a Encarnação. Tampouco
conseguia elevar-se ao conceito cristão da criação do mundo, ou
livrar-se de certas tendências gnósticas e até ocultistas (pelo me-
nos, durante muitos anos da sua carreira filosófica) .
Soloviév era extremamente sensível a fatôres não-racionais:
influências exteriores e experiências pessoais, que não hesitava em
interpretar como revelações místicas, induziam-no constantemen-
te a rever posições anteriormente ocupadas. Por mais robusto que
fôsse seu pensamento, não seguia o caminho de uma evolução ra-
tilínea, mas, estreitamente enrelaçado nas contingências variadas
da sua vida peregrinante, enveredava freqüentemente por sendas
tortuosas, difíceis de acompanhar. Assim como se enamorava inú-
meras vêzes de belas mulheres sem jamais se ligar a nenhuma delas,
assim o enlevavam, no terreno do espírito, diversas teorias que qua-
se tôdas acabavam por decepcioná-lo. Do mesmo modo que, nas
representantes do belo sexo, logo supunha haver uma manifestação
misteriosa do "Eterno Feminino", do mesmo modo seduziam-no, na
filosofia, o misterioso, o oculto, a cabala, a gnose. Soloviév era ho-
mem muito complexo que a uma grande faculdade dialética aliava
certas extravagâncias fantasistas e, por vêzes, tentava reconciliar
coisas irreconciliáveis; homem abnegado e ascético, caridoso a ponto
de se esquecer completamente a si mesmo, era, ao mesmo tempo,
muito sensual e erótico, pairando, — como tantos outros russos, —
entre o céu e a terra. Nem é de estranhar que tantas correntes di-
vergentes se reportem a êle: católicos, ortodoxos, "neo-cristãos" e
'"neo-pagãos" veneram o autor como seu pai intelectual.
Não obstante, Soloviév é figura simpática e impressionante: a
envergadura do seu pensamento sintético, sua grande probidade
intelectual, seu idealismo autêntico, sua sêde insaciável de harmo-
nia absoluta fazem dêle um dos maiores vultos de todos os intelec-
tuais russos; sua mensagem ecumênica continua a cativar o inte-
rêsse de milhares e milhares de cristãos ortodoxos e católicos; o diá-
logo que êle travou entre o Oriente e o Ocidente, é ainda hoje em
dia de suma importância para uma pacífica solução do problema;
seu espírito reconciliador, que sabia evitar a aspereza do polemista
bem como a frouxidão do "irenista", pode ser um guia excelente
para os que procuram restaurar a unidade perdida (198a). Solo-
(198) . — Apud B. Zenkovsky, op. cit., II pág. 21.
(198a) . —Beu sepulcro em Moscou foi ornado por pessoa desconhecida com u m a icone
grega da Ressurreição que traz o texto: "Cristo ressurgiu dos mortos", e
com uma icone católica (polonesa) de Nossa Senhora de Ostrabrama que
traz o texto: In memoria aeterna erit justos.
199

viév anima candida, pia ac vere sancta, dizia seu amigo, o bispo
Strossmayer (199); e todos os que conheceram pessoalmente Solo-
viév, são unânimes em admirar a figura extraordinária do filósofo
errante, o Peregrino insatisfeito do Absoluto (200).
II. Soloviév o Filósofo.
Não escrevemos uma história da filosofia; nosso objetivo é fo-
calizar alguns momentos culminantes da filosofia da história. Mas
para compreender bem esta, são imprescindíveis umas noções con-
cernentes àquela . Para compreendermos bem a interpretação sole-
viana da história, precisamos ter uma idéia geral da sua filosofia.
Pretendemos dá-la aqui, sempre em função do nosso assunto e com
preterição de muitos aspectos que não nos interessam diretamente.
a) Deus e o Mundo.
A existência real de Deus não pode ser demonstrado por um
raciocínio discursivo, mas é objeto de um conhecimento imediato,
de uma intuição mística. Deus é a Unidade de tudo quanto é: o
Absoluto "uni-total". Mas êste Absoluto não poderia existir sem o
"Outro", — igualmente absoluto, — que é o Mundo: o Mundo é o
complemento necessário de Deus, e a "criação" do Mundo é, em úl-
tima análise, determinada por uma antinomia interna dentro do
próprio Deus. Deus tem de manifestar-se no "Outro" que é sua
Imagem. Deus é o Absoluto uno e total que existe; o Mundo é o
Absoluto uno e total que vem a ser (tese panteísta, ou melhor, pa-
nenteísta).
O Mundo possui certa dualidade. Encarado sob seu aspecto
de potencialidade negativa, — isto é, de isolamento possível de
Deus, — é a "matéria prima" caótica; encarado sob seu aspecto de
substrato da manifestação divina, é uma totalidade orgânica e vi-
va . Soloviév acredita, com Platão e Plotino, na "Alma do Mundo",
a qual ocupa um lugar intermediário entre a multiplicidade dos sê-

. — O bispo J. G. Strossmayer (1815-1905), bispo de Diakovár (desde 1850),


era o apóstolo do movimento ecumênico entre católicos e ortodoxos na se-
gunda metade do século XIX; grande amigo dos eslavos, era durante muito
tempo o intermediário entre o Vaticano e a Cristandade oriental; por mo-
tivos de oportunidade era contrário à proclamação da infalibilidade papal;
mais tarde, porém, sujeitou-se à decisão da Igreja; foi êle que induziu o ora-
toriano A. Theiner a editar os Monumento Vetera Siavorum Meridionalium-
. — O Visconde de Vogüé, que encontrara Soloviév no Cairo, dizia dêle: Une
de ces figures qu'on n'oublie plus quand on les a vues une fois: de beaux
traits réguliers dans une face maigre et pâle, enfouie sous les longs cheveux
bouclés, toute dévorée par de grands yeux admirables, péneltrants et mysti-
ques; une pensée à peine vêtue d'un peu de chair, le modèle dont s'inspi-
raient les moines imagiers quand ils peignaient le Christ slave, qui aime,
méclite et souffre, sur les vieilles icônes. Dialecticien songeur, candide com-
ine un enfant, complexo comine une femme, trouble, attachant, indicible.
(Apud d'Herbigny, op. cit., pág. 6) . Cf. também nota 212.
— 200 --

res concretos e a unidade absoluta de Deus. A "Alma do Mundo" une


o mundo, mantendo-o na sua unidade, mas, sendo de natureza com-
posta (divina e criada), enfrenta o Absoluto divino e opõe-lhe o
mundo; ela quer possuir tudo por meio de si mesma, isto é, quer
ser Deus. Não se contentando com a união passiva com Deus, quer
realizar por suas próprias fôrças a divindade em si, chegando a se-
parar-se de Deus e a afirmar-se autônomamente fora de Deus. E'
a caída cósmica (tese gnóstica)
A Teandria (201) .
O processo histórico é, por assim dizer, o prolongamento do
processo cósmico: a "Alma do Mundo", agora muitas vêzes iden-
tifrada com a Sophia = Sabedoria (cf. c), prcoura divinizar-se no
homem, ou melhor, na humanidade ideal. O homem (o microcos-
mo) separa-se de Deus como o fêz o macrocosmo, querendo adqui-
rir a divindade por si mesmo: é o pecado original. Assim como o
Kósmos, separando-se de Deus, caiu no caos, assim o homem, apos-
tatando de Deus, caiu. no pecado; mas ambos, continuando a ser
guiados pelo princípio divino, procuram a théosis (:"o endeusa-
mento"); a história é um lento e penoso processo teogônico. A
civilização dos hindus, dos gregos, dos romanos e dos judeus pre-
parou a humanidade a receber o Logos incriado; o Logos se en-
carnou realmente na Pessoa de Cristo, o Deus-Homem. A Encar-
nação de Deus no homem é a garantia do endeusamento do ho-
mem: o Centro da Eternidade transformou-se no Centro da His-
tória; a essa união perfeita de Deus com o homem corresponde um
processo lento de divinização do homem. A théosis final consis-
tirá não só na salvação das almas humanas, mas também na trans-
figuração do nosso corpo (202) glorificado e do kósmos novamen-
te criado.
A Sophia.
No Livro d'os Provérbios (VIII 22-31) lemos: "O Senhor
me (= a Sophia ou a Sabedoria) possuiu no princípio de seus ca-
minhos, desde o princípio antes que criasse coisa alguma. Desde

. — "Teandria", palavra derivada dos vocábulos gregos theós: ("deus") e anér:.


("homem") •
. — Durante certo tempo, Soloviév era influenciado pelas idéias de N. Fedorov-
(1828-1903), obscuro bibliotecário em Moscou e pai de uma idéia fanta-
sista relativa à "ressurreição dos antepassados". Segundo Fedorov, Adão de-
via, conforme as intenções de Deus, completar e aperfeiçoar a criação; de-
pois da sua caída, o homem perdeu o domínio sôbre a natureza; Cristo re-
cuperou-o mediante a ressurreição; o homem deve imitar Cristo por fazer
triunfar a vida sôbre a morte; mediante um processo mágico-científico, o ho-
mem deve reunir os átomos dispersos dos antepassados para, junto com êles,
estabelecer o Reino de Deus na terra. Eis o cúmulo de progressismo! —
Sôbre Fedorov, cf. B Zenkovsky, op. cit., II págs. 136-153.
--- 201 —

a eternidade fui constituída, e desde o princípio, antes que a ter-


ra fôsse criada... Ainda êle não tinha criado a terra nem os rios,
nem os eixos do mundo... Quando assentava os fundamentos da
terra, eu estava com êle, regulando tôdas as coisas; e cada dia me
deleitava, brincando continuamente diante dêle, brincando sôbre
o globo da terra, e achando as minhas delícias em estar com os
filhos dos homens". Neste texto poético, uma longa tradição que
já remonta aos Padres da Igreja, vê uma alusão ao Verbo Incriado
que estava em Deus e que era Deus, e pelo qual tôdas as coisas
foram feitas (203). Soloviév inspirou-se desta passagem para de-
senvolver sua "sophialogia", doutrina que, depois, havia de ser
reencetada por outros pensadores russos, tais como Bulgakóv e Flo-
rénski (204). A Sabedoria Divina é o plano eterno de Deus se-
gundo o qual cria e governa o mundo.
Soloviév adota esta teoria, misturando-a, infelizmente, pelo
menos em algumas das suas obras, com especulações fantasistas
e até com elementos naturalistas e eróticos (205) . Nada mais di-
fícil do que definir a Sophia solovievana, porque o autor a conce-
be de maneiras diferentes e até contraditórias. Ora a Sophia é um
ser perfeito, sempre submisso a Deus, o anjo da guarda do Uni-
verso, a lutar contra o caos para lhe tirar a "Alma do Mundo" e a
constituir com o Logos incriado a Pessoa de Cristo, o Deus-Ho-
mem; ora é identificada com a Alma do Mundo, a separar-se de
Deus para, depois, se reunir novamente com Êle; ora é a Substân-
cia divina comum às Três Pessoas da Santíssima Trindade: ao Pai
(= Poder), ao Filho (= Idéia ou Logos), ao Espírito Santo (=
Graça); ora é o princípio do "Eterno Feminino", no qual o pró-
prio Deus se apraz (o princípio da "receptividade"). A Sophia
é a "Alma do Mundo", a Noiva do Lógos, a Igreja, a Virgem-Mãe.
Em certa época da sua vida, Soloviév exaltava o amor sexual, che-

— Cf. Ev. João, I 1-3, e § 74 I e, nota 70.


— O padre Paulo Florénski (1882-1941?), duas vêzes deportado pelos comu-
nistds, escreveu um "Ensaio de Teodicéia Ortodoxa" (1914); o Padre Sérgio
Bulgakóv (1871-1944) foi exilado pelos comunistas (1923), estabeleceu-se
em Paris, onde publicou vários estudos teológicos, calorosamente discutidos
também entre os ortodoxos (por exemplo, "A Sabedoria de Deus e a Tean-
tropia") .
— N. Arseniev, op. cit., págs. 95-96: Soloviev s'incline, avec la dévotion d'un
Grec de l'antiquité et d'un gnostique mi-paien, devant le mystére du sere,
les flanes qui portent la vie, l'•ternel Féminin. (II) enseigne une sorte
de transliguration naturalistique du monde, dans laquelle le sexuel s'allie
au Divin. C'est ici, du point de vue chrétien, que réside le danger de sa
doctrine sur la Sagesse Divine (Sophia), qui est en même temps l'âme du
Monde, le principe féminin de l'univers. Ce n'est pas une doctrine chré-
tienne, mais plutôt une doctrine gnostique, même paienne d'inspiration na-
tutraliste, d'origine sensuelle, quoique purifiée et idéalisée; en même temps
elle n'est, certes, pas dénuée d'éléments morbides et occultes.
— 202 —

gando a atribuí-lo também à Divindade e a ver nele uma espécie


de transfiguração naturalista do mundo (206).
III. Os Três Períodos da Vida de Scloviév.
Pode causar surprêsa o fato de encontrarmos, ao lado de tan-
tas especulações excêntricas e no meio d3 tantas tendências "he-
réticas", uma porção de idéias sadias e bem ortodoxas. Soloviév
era pensador inquieto •e avêsso a simplificações: como Bergson,
exigia uma constante vigilância da parte do filósofo. C'est Dieu
Lui même qui a ainsi ordonné les choses que l'homme n'a pas cet
anntii extérieur, qu'il 1e lui est pas donnê un coussin oà reposer
sa raison et sa cortscience, mais doit demeurer salas cesse en évf,11
et aebout sur ses propres pieds (207) . Tal atitude o levava a cor-
rigir constantemente seu sistema e a harmonizá-lo cada vez mais
com a Verdade que descobrira na Igreja de Cristo. Podemos di-
zer sem mêdo de exagêro que Soloviév começou sua carreira filo-
sófica impregnado de teosofia e gnosticismo, mas que, no fim da
sua vida, conseguiu elevar-se à categoria de filósofo cristão. Sua
grande obra "A Justificação do Bem" (primeira edição me 1897)
c:mstitui o apogeu da sua atividade filosófica, obra que testemunha
grande maturidade de espírito, equilíbrio e fé cristã (208).

. — Principalmente no seu opúsculo Le Sens de l'Amour (1892-1894), versão


francesa por T. D. M., Paris, Aubier, 1946. — Neste livro, Soloviév de-
fende, ao lado de um ascetismo extremo, um erotismo não menos excessivo,
combinado com especulações fantasistas. Depois do pecado original a Di-
vina Virgem, a Sophia, ter-se-ia separado do homem; o ideal erótico é res-
taurar a integralidade do homem no "andrógino" (que é o homem original
anterior ao pecado; cf. também Plato, Symposium, 189D-193D) e recon-
ciliar a humanidade com o mundo e com Deus. — Tal como o poeta de
La Vita Nuova, Soloviév teria tido, já como menino de nove anos, uma vi-
são do "Eterno Feminino", a qual se repetiu duas vêzes na sua vida; no
seu poema "Os Três Encontros" (1898) o autor se refere a essas visões,
- dizendo:
Tout ce qui fut, et ce qui est,
Et tout ce qui sera,
Mon regard immobile Pembrassait.
Mers et fleuves Meus à mes pieds
Et je vis tout. Tout n'était qu'Un,
Image coligue de la Féminine Beauté.
(Apud N. O. Losski, op. cit., pág. 84).
. — VI. Soloviév, La Justification du Bien, trad. franc. por T. D. M., Paris,
Aubier, 1939, págs. XVI-XVII.
. Este livro se divide em três partes: I O Bem na Natureza Humana; II O
Bem vem de Deus; III O Bem através da História da Humanidade. — Na
primeira parte, Soloviév trata das três fontes do Bem na natureza humana,
a saber, o Pudor (a culminar na Consciência), pelo qual o homem (neste
ponto, essencialmente diferente do animal mais evoluído) se separa do mun-
do material, demonstrando que nele há um certo dualismo; a Compaixão,
pela qual o homem é capaz de sentir, dolorosamente o sofrimento de outros
e de manifestar êsse sentimento, provando sua solidariedade com seus seme-
lhantes; a Veneração, pela qual o homem se sente obrigado a respeitar e a
adorar um ou mais sêres superiores ao homem; eis as fontes imanentes do
domínio humano sôbre a natureza e os instintos, do amor ao próximo, e da
religião.
-203 —

Alguns autores costumam dividir a carreira filosófica de So-


loviév em três períodos: o período teosófico (até 1883), o período
teocrático (até 1891), e o período teúrgico (até 1900); outros ado-
tam outros princípios de divisão. Uma vez que nós pretendemos
expor suas idéias relatvias à história, pretendemos dividir suas
atividades nestes três períodos: o do Eslavofilismo (IV), o do Uni-
versalismo (V), o das Expectativas Apocalípticas (VI).
IV. O Eslavófilo (209).
Neste período que vai até o ano 1883, Soloviév imagina a or-
todoxia e a cultura russas como a síntese da história humana. As-
sinalamos aqui as seguintes tentativas.
O Divino e o Humano.
Na Introdução à sua obra "Os Princípios Filosóficos do Co-
nhecimento Integral", Soloviév divide a história em três fases: o
paganismo antigo (tese), uma fase relativamente homogênea e
pouco diferenciada, em que o sagrado e o profano são confundidos;
o Cristianismo ocidental (antítese), uma fase de diferenciação pro-
gressiva, em que o profano se vai separando cada vez mais do sa-
grado: o Estado se separa da Igreja, a política da religião, a filo-
sofia da teologia, a economia da moral, e o indivíduo da sociedade;
êste processo redunda necessàriamente em "atomismo" completo;
e, afinal, o Cristianismo russo (síntese), a fase final em que será
restabelecida a unidade religiosa e cultura num plano superior; o
divino e o humano, agora concebidos como dois princípios distin-
tos mas complementares, vão-se encontrando um ao outro, numa
união cada vez mais íntima e fecunda (210).
As Três Tentações de Cristo (211).
A Igreja, o Corpo Místico de Cristo, não é Seu Corpo glorio-
so, mas vive neste mundo como uma serva humilhada. A Igreja
oriental guardou fielmente a verdade divina que lhe foi confia-
(209) . — Obras importantes dêste período são: A Crise da Filosofia Ocidental (1874);
Lições sôbre a Teandria (1877-1881); Os Princípios Filosóficos do Conhe-
cimento Integral (1877); Três Discursos sôbre Dostoievski (1881-1883) .
(210). — Semelhantes idéias encontram-se também na conferência "As Três Fôrças"
1877), onde a tese é representada pelo mundo islamítico: "Deus é comple-
tamente separado do mundo"); a antítese pelo Cristianismo ocidental: ("O
homem é completamente separado de Deus"); e a síntese pela Rússia: ("À
cultura humana será dada vida interior pela religião") . — Cf. J. Gauvain,
op. cit., pág. 18: Si l'Orient mitsulman anénantit Phomme et pose un Dieu
inbumain, la civilisation occidentale s'efforce avant tout de posar Phornme
sans Dieu. . . L'intérêt individual séparé, le fait contingent, le détail infime,
— atomisme dans la vie, la science et l'art, — voilà le dernier mot de la
cultura occidentale. . . Toute cette richesse n'est qu'un capital mort.
(211) . — Cf. § 121 I c, nota 166. — Esta idéia é desenvolvida nas Lições sôbre a
Teandria.
— 204 —

da, mas não conseguiu transportá-la para o terreno das realidades


terrestres. O Ocidente sucumbiu às três tentações de Jesus no de-
serto, com a única diferença de se inverter a ordem em que elas se su-
cederam . A Idade Média católica (já desde os dias de Anselmo
de Cantuária, mas principalmente desde a fundação da Compa-
nhia de Jesus), impôs aos fiéis a autoridade externa; reagiu con-
tra ela a Reforma protestante, mas não sem ceder à tentação de
orgulho espiritual; destarte o Ocidente foi uma presa fácil do ra-
cionalismo e, depois, do materalismo, o qual se contenta com pra-
zeres carnais e com confôrto. A síntese será efetuada pela Igreja
russa e abrangerá uma submissão voluntária (não imposta) ao prin-
cípio divino (ascese e contemplação) como também o pleno de-
senvolvimento do elemento humano (ação e cultura); assim a hu-
manidade poderá aguardar a théosis vindoura .
c) A Palavra da Rússia (212) .
Lemos no Apocalipse (XII 1): "Uma mulher vestida de sol,
e a lua debaixo de seus pés; e uma corôa de doze estrêlas sôbre
a sua cabeça, e, estando grávida, clamava com dôres de parto, e
sofria tormentos para dar à luz". Segundo Soloviév, Dostoïevski,
numa conversa particular, teria identificado a mulher apocalíptica
ccm a Rússia e seu filho com a Palavra Nova que a Rússia pro-
nunciará ao mundo inteiro . Que cette interprétation stoit ou non
fordée, Dostoïevski a bien deviné la Parole de la Russie. C'est
une parole de réconciliation entre l'Orient et l'Ocident par l'union
de la vérité éternelle de Dieu avec la liberté de l'homme (213) .
V. Ceterum Censeo Instaurandam Esse Ecfclesiae Unitatem
(214) .
Soloviév ficou cruelmente desiludido pela reação do govêrno
czarista ao seu pedido de demência em favor dos assassinos do

. — Esta idé'a se encontra no Terceiro Discurso em Memória de Dositoievski


(1883) . Os dois autores se conheciam desde 1873; segundo muitos afirmam,
a figura do simpático Aliocha (em "Os Irmãos Karamazov") foi inspirada
ao romancista pela figura do seu amigo Soloviév. — Nos Três Discursos,
Soloviév atribui muitas das suas próprias idéias ao seu amigo falecido, o qual,
apesar de seu "universalismo", continuava sempre nutrindo certas antipatias
fortes contra o Ocidente; Soloviév, porém, ia-se aos poucos afastando da es-
treiteza dos eslavófilos e de Dostoievski, cf. J. Gauvain, op. cit., pág. 50:
Dostoïevski aurait du renoncer à una quantité de préjugés enracinés, d'idées
préconçues et d'instincts nationaux élémentaires, qu'il portait en lui et qu'il
exposait dans ses oeuvres, sans remarquei leur opposition à l'idéltd oecumé-
nique proclamé par lui.
. — J. Gauvain, op. cit., pág. 47.
. — As obras princ'pais dêste período são: La Grande Controverse et Ia Politique
Chrétienne (1883; obra; traduzida para o francês por T. D. M., e edi-
tada em Paris, Aubier, 1953). Os Fundamentos Espirituais da Vida
(1884); História e Futuro da Teocracia (1885-1887); A Questão Nacional
na Rússia (1888); La Russie et l'Église Universelle (obra escrita em fran-
cês e publicada em Paris, 1889) .
— 205 —

Czar Alexandre II em 1881 (cf. nota 195); já não lhe era possí-
vel ver no Czar o representante místico do "povo de Cristo". Além
disso, inquietava-o o problema do Raskol russo (cf. § 116 III d);
êste problema religioso podia ser resolvido apenas por uma auto-
ridade religiosa. Mas onde estava a autoridade religiosa da Igreja
russa? No Santo Sínodo? Risum teneatis, amici! (215). Num Con-
cilio ecumênico da Igreja Oriental? Mas o Oriente cristão, divid;-
do em Igrejas autocéfalas zelosas da sua autonomia, nunca conse-
guiu contrapor um "Concílio ortodoxo" ao Concílio de Trent°. Co-
mo explicar essa desvantagem do Oriente sôbre o Ocidente? E'
que àquele falta a universalidade, critério inconfundível da Igreja
de Cristo. Falta-lhe também a autoridade independente dos po-
deres publicos; falta-lhe, afinal, o princípio dinâmico próprio da
Europa. Em virtude dessas considerações, Soloviév já não pode
reconhecer a Igreja oficial da Rússia como "a única verdadeira
Igreja de Cristo" (216); seus dignitários e teólogos são cismáticos
que rasgaram a túnica inconsútil de Cristo; seus representantes
pregam um nacionalismo estreito, incompatível com o caráter uni-
versal do Cristianismo (217). O povo russo recebeu um Cristia-
nismo viciado de Bizâncio, e a herança bizantina foi-se acentuando
cada vez mais com os tempos; ou melhor: os russos, profundamen-
te religiosos mas ignorantes, pediram o Cristianismo e receberam
o bizantinismo, pediram pão e receberam pedras; sem querer e
s,-na saber, o povo de Vladimiro foi sendo separado da unidade cri!;-
iã; entre a Rússia e a Igreja de Cristo não há heresias, mas só mal-
entendidos que devem ser liqüidados por atos de amor recíproco e de
compreensão mútua (218); o povo ortodoxo da Rússia, ao invés da
1,9,3eja oficial da Rússia, faz parte da Igrei(., universal; cabe ao povo
rtiso expiar os pecados históricos de Bizâncio.

. — Cf. Horatius, Ars Poética, 5. — Soloviév escreve: II n'y a aucune dif f é-


rence quant à la forme et au style entre les comptes rendus do Procureur
Supérieur du Synode et cetra des autres mirristèrs, par exemple le Ministère
des Transporte. On y retrouve les mêmes divisions et subdivisions; seulement,
au lieu des titres: "Chaussées", "Chemins de Fer", "Fleuves Navigables",
les comptes rendus de M. le Procureur Supérieur portent les rubriques: "Al-
firmation et Propagation de la Foi", "Activité Pastorale", "Menifestations
du Sentiment Religieux, de Dévouement à la Personne Sacrée de Se Majesté",
etc. — Cf. Fr. Muckermann, op. cit., págs. 155-161.
. — Soloviév faz urna distinção muito importante entre a Igreja oficial da Rús-
sia, considerada como cismática, e a ortodoxia do povo russo, julgada uma
parte viva da Igreja universal de Cristo.
. — Em 1888, quando a Igreja russa se preparava para comemorar o nono cen-
tenário do Batismo de Vladimiro, Soloviév escrevia que a Rússia precisava
de um segundo batismo para se livrar de uma idolatria muito mais perni-
ciosa do que tinham os antigos pagãos: a mania epidêmica de nacionalismo.
. — Era esta também a posição de Juri Kriianitch (1610-1683), sacerdote croata,
que já no século XVII tentava chegar a uma união das duas Igrejas nestas
bases; Soloviév, aliás, apela muitas vêzes explicitamente paro "o pai dos
eslavófilos".
— 206 —

a) Os Pecados de Bizâncio.
Bizâncio deu à Rússia um Cristianismo viciado por separa-
Cesaropapismo e estagnação anti-histórica. Os tempos inau-
gurados pelo Evangelho já não admitem o "messianismo" ou a idéia
de um "povo eleito"; a Cristandade é o Corpo de Cristo; o domí-
nio de Cristo-Rei é universal. A vocação de um povo é seu ser-
viço de Deus na história mediante uma contribuição específica
para o bem da humanidade. L'idée d'une nation n'est pas ce qu'el-
le pense d'elle-même dans le temps, mais oe que Dieu pense d'elle
dans l'éternité (219); longe de criar direitos, impõe graves obriga-
ções; manifesta-se, não em proclamações estrepitosas de superio-
ridade, mas em atos de abnegação heróica e num esfôrço contínuo
de se superar-se a si mesmo no plano moral. Cada povo possui
sua missão histórica (220), e cada povo, a certa altura da sua evo-
lução, está exposto ao perigo de um exclusivismo orgulhoso. Foi
o que sucedeu a Bizâncio: não quis submeter-se ao Papa de Roma,
apesar de serem unânimes os Padres e os Concílios em reconhecer
a primazia papal.
Os Imperadores bizantinos escolhiam sempre o partido dos
heresiarcas separatistas, principalmente no que diz respeito àquele
dogma que é a pedra angular do Cristianismo: a Encarnação (220a).
Os Imperadores Constâncio (337-361) e Válens (364-378) opta-
ram pelo arianismo, que nega a consubstancialidade do Lógos com
Deus e, portanto, a realidade da Encarnação de Deus; o nestorianis-
mo, que admite em Cristo duas pessoas (a divina e a humana), foi
apoiado pelo Imperador Teodósio II (408-450); mas o mesmo Im-
perador não hesitou em apoiar também a heresia oposta ao nesto-
rianismo, a saber, a doutrina dos monofisitas que admite em Cristo
só a natureza divina; assim foi sendo preparado o caminho para a
heresia dcs iconoclastas dos séculos VIII e IX, que se opunha a
tôda e qualquer representação plástica ou pictórica de Cristo, ten-
dendo a tornar cada vez mais invisível a Igreja de Deus, a ponto
de se poder manifestar apenas o Estado.

(219). — J. Gauvain, op. cit., pág. 23; cf. pág. 110: L'adoration de notre peuple
comine porteur privilégié de la vérité universelle, puis l'adoration de ce
peuple =urre force élérnentaire, en dehors de toute vérité; enfin l' adora-
tion des caracteres exclusifs et des anomalies historiques qui distinguent ce
peuple de l'humanité civilisée, c'est-à-dire la négation de l'idée même de
vérité universelle, voilà les pheses successives de notre nationalisvne, fidèle-
ment représenté par les slavophiles.
(220) . — Soloviév esforça-se por descobrir a "missão histórica" dos espanhóis (in La
Justification du Bien, págs. 291-294), a dos judeus (apud J. Gauvain, op.
cit., págs. 64-76), a dos poloneses (ibidem), etc. — Sôbre a vocação da
Rússia, cf. ibidem, págs. 79-82.
(220a) — definição clássica das duas naturezas de Cristo foi formulada no Concílio
de Calcedônia (451), cf. Denzinger, n.o 148.
— 207 —

As discussões cristológicas dos primeiros séculos do Cristianis-


mo, longe de constituirem cavilações estéreis, como as interpreta o,
Racionalismo moderno, são, aos olhos de Soloviév, a base vital de
todo e qualquer progresso histórico; pois a Encarnação é a garantia
divina da théosis da humanidade. Assim se explica que o mundo
cristão é mais dinâmico do que o mundo pagão (221), e assim se
explica que o princípio cristão é mais vivo no Ocidente do que no-
Oriente . Aqui les deux pouvoirs se comprirent et se donnèrent la
main: ils étaient lies ensemble par une idée commune: la négation
du christianisme comme force sociale, comme principe moteur du'
progrès historique. Les empereurs em brassèrent à tout jamais l'or-
.

thodoxie comme d'ogme abstrait, et les hiérarques orthodoxes béni-


rent in saecula saeculorum le paganisme de la vie publique (222) .
b) A União das Igrejas (223).
Comme membre de la vraie et vénérable Eglise orthodoxe orien-
tale ou gréco-russe qui ne parle pas par un synode anticanonique,
ni par des employés du pouvoir séculier, mais par la voix de ses,
grands Pères et Docteurs, je reconnais pour juge suprême en ma-
tière de religion... l'apôtre Pierre, qui vit dans ses successeurs.
et qui n'a pas entendu en vain les paroles du Seigneur: "Tu es Pier-
re et sur cette pierre j'édifierai mon Eglise. — Confirme tes frères,
— Pais mes brebis, pais mes agneaux!" (224) . Com essas palavras,
solenes Soloviév professava, em 1889, a primazia do papa; tinha
a esperança de que seu exemplo seria seguido por milhares e mi-
lhares dos seus compatriotas; no dia 18 de fevereiro de 1896, o,
apóstolo da ecumenicidade pronunciou, na capela dos Uniatas em_
Moscou, uma declaração de fé pela qual se integrava na Igreja,
Universal e se submetia ao Papa de Roma (225). Poucos anos
— Na cultura chinesa com seu culto dos antepassados, Soloviév vê incorporado..
o princípio de ordem, de estabilidade social, de tradicionalismo (próprio
do Oriente); no Ocidente, o Cristianismo implantou a inquietação, o dina-
mismo, o progressismo (apud J. Gauvain, op. cit., págs. 129-132); falando
do Cristianismo bizantino e do Cristianisiqo ocidental, o autor dia (ibidem,„
pág. 134): Le Monde occidental dono plus chrétien que celui de
I'Orient? Non certainement si on le réfère à l'idéal, et oui sans aucun douta
si l'on considère I'effort vivant et le mouvement réel vers le rneilleur.
— Apud Fr. Muckermann, op. cit., págs. 135-136.
— A obra solovievana La Russie et l'Église Universelle compõe-se, além de-
um Prefácio bastante extenso (com a lenda de São Nicolau e São Cassiano,
- e com a profissão de fé), de três partes: I L'État Religieux de Ia Russie et -
de l'Orient chrétien (divisão e nacionalismo); II La Monarchie ecclésias-
tique fondée par Jésus-Christ (papado); III Le Principe trinitaire et son apl
plication sociale (sofiologia).
— Soloviév, La Russie et l'Église Universelle (entre o Prefácio e a Primeira_
Parte).
— Os autores ortodoxos tendem, em geral, a apoucar a importância dêsse ato ,
de Soloviév; utria discussão dos fatos encontra-se apud d'Herbigny, op. cit.,
págs. 307-320, e Fr. Muckermann, op. cit., págs. 213-217. — De Vog-üé
comunica que, um dia, quando se perguntou a Soloviév já simpatizante com._
o Catolicismo porque não passava para a Igreja Católica, o autor respondeu,_
— 208 ---

depois morreu, tendo recebido a Extrema Unção das mãos de um


sacerdote ortodoxo.
Aos olhos de Soloviév, não se tratava de uma conversão pró-
priamente dita; ao regressar à unidade eclesiástica, não precisava
abjurar heresia nenhuma; como membro da Igreja ortodoxa orien-
tal, — bem distinta da Igreja oficial! — precisava apenas reco-
nhecer a primazia do papa, do qual se achava separado devido a
um mal-entendido histórico. Muito menos ainda se tratava de
uma conversão ao "latinismo" (226): ao submeter-se ao sucessor
de Pedro, não se submetia ao Patriarca do Ocidente, e sim ao
Chefe da Igreja Universal, reconhecido como tal pelos sete Con-
cílios Ecumênicos que também os ortodoxos consideram como bá-
sicos (cf. § 116 I b, nota 18). A união das duas Igrejas não devia
ser um processo mecânico, e sim uma combinação Química. "Uma
voz interna me dizia: Estuda química! Estuda química!" Ao inte-
grar-se na unidade eclesiástica, a Rússia ortodoxa não precisava
renegar seu passado religioso, seus ritos, seus costumes, seus di-
reitos, sua predileção pela vida contemplativa (227): só devia
romper com seu exclusivismo e com suas antipatias tradicionais
_:entra Roma, que é a Mater et Magistra oirnium Ecclesiarum.
As duas Igrejas devem completar-se: Saint Cassien n'a pas
besoin de devenir un autre homme, et de négliger la pureté de ses
habits immaculés. Il lui faut seulement ieconnaltre que son con-
frère a certaines qualités qui lui manquent à lui-même, et au lieu
de bouder ce travailleur énergique, il doit l'accepter franchement
pour compagnon et pour guide dans le voyage terrestre qui leur
reste à faire (2.28). A diversidade das duas Igrejas deverá ilus-
trar o caráter verdadeiramente "católico" (= universal) da insti-
tuição divina confiada aos cuidados dos homens: o Ocidente de-
verá continuar frisando o aspecto humano, recorrendo aos Evan-

com um gesto evasivo. Cependant, votre salut individuel?... E Soloviév:


Eh! qu'importe mon salut individuel? C'est au salut collectif de ses frères
qu'il faut penser. — Cf. a palavra de São Paulo (Rom., IX 3): Optabam
enfim ego ipse anathema esse a Christo profratrlbus meis.
— Não poucos russos, principalmente entre a aristocracia, converteram,-se ao ca-
tolicismo durante o século XIX; a influência de de Maistre e outros auto-
res contribuía muito para essas conversões; infelizmente, essas conversões
eram conversões "ao latinismo" e eram consideradds, pela grande maioria
dos russos, como casos de apostasia da causa nacional, cf. H. Isvolski, A Alma
de Rússia, Cap. X .
— Desde o Pontificado do Papa Pio IX e principalmente o do Papa Leão XIII,
Roma tem dado muitas garantias de conservar os privilégios e os ritos das
Igrejas orientais aos "uniatas"; lemos na Encíclica Praeclara GrattAationis
(do ano 1894): Negue- est CM' dubitetis quidquam propterea vel Nos vel
successores Nastros de jure vestro, de patriarchalibus privilegiis, de rituali
cujusque Ecclesiae consuetudine detracturos. Quippe hoc etiam fuit, idemque
est perpetuo futurum in consilio disciplinaque Apostolicae Sedis positum,
propriis cujusque populi originibus moribusque ex aequo et bono non parco
tribuere.
— Apud Fr. Muckermann, op. et., pág. 144.
-209—

gelhos sinópticos e louvando com os pastores o Menino de Belém


em cantos sentimentais; o Oriente deverá continuar frisando o as-
pecto divino, nutrindo-se preferivelmente de São João e rejubi-
lando-se, com o kósmos inteiro, pela Ressurreição de Nosso Senhor
em hinos majestosos.
c) A Teocracia Livre.
Nesta época, Soloviév sonha com a teocracia livre (229), na
qual a humanidade redimida atingirá "o estado de homem perfei-
to, segundo a medida da idade completa de Cristo" (Ep. Ef., IV
13) . À organização interna da Divindade em Três Pessoas deve,
no mundo, corresponder uma organização social da humanidade
numa tríplice divisão de funções diferentes. O Supremo Pontífice
em Roma encarna o princípio de autoridade (= o Pai); o Im-
perador cristão em Moscou (ou, em Constantinopla, retirada pelos
cristãos aos turcos) encarna o princípio do Poder exercido com
justiça (= o Filho); o Profeta carismático, a aparecer por tôda a
parte, mas principalmente na Santa Rússia, deverá encarnar a Gra-
ça Divina (= o Espírito Santo) . O Papa e o Imperador estão na-
turalmente expostos a certas usurpações, razão porque devem ser
controlados e contrabalançados por uma fôrça puramente moral e
inteiramente livre, a do Profeta. As três funções refletem não ape-
nas os atributos das Três Pessoas Divinas, mas correspondem tam-
bém às três fontes do Bem na natureza humana (cf. nota 208): o
Papa simboliza a Veneração (pela qual o homem se sente obriga-
do a venerar e a adorar um Ser superior a si mesmo); o Impera-
dor simboliza a Compaixão (justiça social, solidariedade humana,
amor ao próximo); o Profeta deverá simbolizar o Pudor e a Cons-
ciência, princípios da liberdade •e da dignidade humanas (230).
Soloviév é muito engenhoso em descobrir outras analogias para
demonstrar a conveniência do seu ideal teocrático; mas não pode-
mos acompanhá-lo aqui nos seus caminhos de simbolismo oriental.
VI. A Lenda do Anti-cristo (231).
. — A palavra theokratía: ("govêrno de Deus") ocorre, pela primeira) vez, no
autor judeu Flávio Josefo (Contra Apionem, II 16), que diz que o legis-
lador do seu povo (Moisés) instituiu um regime teocrático e logo se apressa
em acrescentar uma desculpa pelo emprêgo dêsse neologismo um tanto duro.
. — VI. Soloviév, La Justification du Bien, pág. 464: Tout comine le Pontife
de l'Église est la plus paute expression de la piété et le prince chrétien
celle de la clémence et de la justice, ainsi, le vrai prophète est l'expression
la plus élévée de la pudeur et de la conscience. Le vrai prophère est un
travailleur social, absolument indépendant, n'ayant peur de rien et ne se
soumettant à rien d'extérieur. A côté des réprdsentants de l'autorité et du
pouvoir absolus, il doit y avoir dans la société humaine des représentants
de la liberté absolve.
. — Apud J. Gauvain, op. cit., págs. 145-184. — A lenda faz parte de um opús-
culo chamado "Três Diálogos" (1899-1900) e dirigido contra Marx, Nietzsche
e Tolstoi.

Revista de História n.o 31


— 210 —

Nos últimos anos da sua vida, Soloviév ia abandonando seu


sonho utópico de uma teocracia livre e chegava a uma interpreta-
ção cada vez mais pessimista da história contemporânea. Pressen-
tia grandes catástrofes a desabarem, num futuro não distante, sôbre
o mundo descristianizado; previa a insurreição da Ásia contra a
Europa ("o pan-mongolismo"), a ameaçar a sobrevivência da cul-
tura cristã. O Reino de Cristo não será realizado na história, mas
no fim dos tempos, e à parousia precederá o domínio do Anticris-
to. Cristo triunfará, não numa sociedade teocrática, e sim, quando
da consumação dos séculos. Antes de poder entrar na glória de
Deus, a Cristandade atravessará um período de humilhações e per-
seguições.
Os japoneses, no século XX, aproveitando-se das guerras que
dividem a raça branca, arvoram-se em líderes do movimento "pan-
mongólico" que, aos poucos, se vai apoderando da Ásia inteira.
Depois de se aliarem aos chineses, expulsam os europeus das suas
antigas colônias e, unidos num ódio tremendo contra os ociden-
tais, invadem os asiáticos a Europa, onde conseguem manter seu
domínio durante uns 50 anos: é uma época de sincretismo reli-
gioso e filosófico, comparável ao de Alexandria helenística . Mas a
raça branca vai-se recuperando das enormes perdas que sofreu, e
acaba por restaurar a independência . A Europa do século XXI se-
rá mais ou menos democrática, e presenciará um surto insólito de
civilização: as técnicas e as ciências, retardadas temporàriamente
pela invasão mongólica, progredirão constantemente num ritmo ace-
lerado. Então surgirá um homem verdadeiramente genial, conside-
rado por muitos como o Super-Homem, imagem esplêndida do co-
ming man: grande pensador, autor notável e realizador exrtaordiná-
rio, êste ídolo das massas e das elites acreditará em Deus e no Bem,
mas terá amor apenas para consigo . Éste homem genial, autor de
um livro afamado com o título significativo de "A Conquista da Paz
Mundial e da Felicidade Universal", será unânimemente eleito Pre-
sidente dos Estados Unidos da Europa . Deslumbrado por seus ta-
lentos magníficos e embriagado pelo admirável bom êxito da sua
atuação, o Super-Homem chegará a considerar-se como o verdadeiro
Messias, como o aperfeiçoador da obra de Cristo. Cristo veio tra-
zer a espada à terra; êle lhe trará a paz; Cristo prometeu consôlo
e alívio aos que tinham fome e frio; êle lhes proporcionará pão e
abrigo. Dentro de alguns anos, todos os problemas internacionais,
sociais e econômicos estarão resolvidos (232) . Même les animaux

(232) . — Ibidem, pág. 161: Le nouveau dominateur de ia terre était avant tout un
grand philanthrope; il n'était pas seulement philanthrope, mais aussi zoophi-
le. II était lui-même végétarien; il interdit ia vivisection et institua un con-
trôle sévère sur les abattoirs; les sociétés protrectrices des animaux reçurent
--- 211 —

rassasiés cherchent habituellement non seulement à dormir, mais


aussi à jouer. ∎Combien plus .encore I'hurnanité qui toujours après
le pain a réclamé les jeux! (233) .
Foi isso que o grande filantropo compreendeu perfeitamente•
bem: arranjou um feiticeiro, chamado Apolônio, para divertir e es-
4- ut,efazer as massas. Agora restava só solucionar o problema re-

ligioso. O número de cristãos era insignificante, mas, o que o Cris-


tianismo perdera em quantidade, ganhara-o em fôrça interna. Pa-
ra resolver "a questão cristã", o Presidente da Europa, — ou me-
lhor, o Imperador do Mundo Unido, desde algum tempo, — convo-
cou um Concílio Ecumênico a Jerusalém: os católicos eram re-
presentados pelo Papa Pedro II, os ortodoxos pelo staretz João, e
os protestantes pelo professor alemão Ernst Pauli (234), três ho-
mens de grande piedade e fé. O local das sessões solenes era um
templo imenso, consagrado à unidade de todos os cultos. Depois
de expirados os sons da "Marcha da Humanidade Unida" e do
"Hino Imperial", o Imperador dirige-se aos seus caríssimos irmãos,
os cristãos, perguntando-lhes o que pode fazer para êles viverem
em concórdia; aos católicos oferece Roma como residência papal,
aos ortodoxos um museu de arqueologia cristã em Constantinopla,
e aos protestantes um Instituto mundial de Estudos bíblicos na Ale-
manha. A maior parte dos cristãos presentes acede ao convite do
Imperador e passa para o estrado imperial em sinal de submissão.
Nas bancadas do grande templo ficam apenas três grupos peque-
nos, em roda de Pedro, João e Pauli. O Imperador, fazendo uma
última tentativa de granjear-lhes a simpatia, diz: Que puis-je encore
feire pour vous? Race étrange! qu'attendez-vous de moi? Je me Je
demande! Dites-le vous-mêmes, chrétiens abandonnés par la majo-
ité de vos frères et de vos chefs et condemnés par le sentiment
populaire. Qu'est-ce, qui est pour vous le plus précieux dans le
tianisme? Então se levanta da sua cadeira o bispo João e diz: Noble
souverain! Ce qu'il ya pour nous de plus précieux dans le christia-
nisme, c'est le Christ. . . Mais nous sommes prêts à accepter tout
le bien que tu veux nous off rir, souverain, si nous, pouvonsreconnai-
tre dans ta main, miséricordieuse la main sacrée de Christ. . . Con-
fesse-le et nous te recevrons avec amour comme le véritable précur-
seur de son secunde avènement glorieux" (235).
O Grande Feiticeiro do Imperador, Apolônio, fulmina com um
raio mágico o staretz João, e o Imperador, confirmado no seu pres-
de lui de nombreux encouragements. Mais au dela de tous ces détails, ce
qui apparut abra fut l'établisskiment de l'égalité absolve entre tous les hom-
fies, — l'égalité de la satiété gdínérale (zombaria do socialismo) .
233) . Ibidem, pág. 162.
— Os três nomes recordam os três tipos de Cristianismo, cf. § 118 I, nota 100.
. — Apud J. Gauvain, op. cit., pág. 173.
212

tígio por "êsse juízo de Deus", ordena ao Concílio proclamá-lo como


Filho de Deus e Soberano do Mundo. Pedro II é o único a recla-
mar, gritando: "Contradicitur! Anathema!" Mas também êle é
ferido pelo raio milagroso. O Imperador, acompanhado de seus sa-
télites, sai do templo, onde ficam apenas os cristãos não-conformis-
tas, completamente consternados, e o professor Ernst Pauli. Este
consegue reanimar os fiéis abatidos, e convida-os a romper a comu-
nhão com o Anticristo e seus sequazes, e a aguardarem a gloriosa
parousía do Senhor no deserto. No dia seguinte, Apolônio é nomea-
do Papa pelo Imperador, e um dos primeiros atos do novo Papa é
decretar a união das Igrejas separadas.
Mas o pequeno grupo de fiéis, chefiado por Ernst Pauli, conse-
gue apoderar-se dos dois cadáveres, e graças a um milagre, Pedro
II e João são ressuscitados dos mortos. No deserto tem lugar o gran-
de acontecimento da reconciliação das três Igrejas (236) . Enquan-
to êles se preparam para receber Cristo, o Imperador e seu Papa
raivam contra os cristãos rebeldes; até os judeus que, inicialmen-
te, tinham tôda a confiança no regime mundial, insurgem-se con-
tra o Anticristo. No momento de se aproximarem os dois exérci-
tos, rebenta um terremoto que devora as legiões do Anticristo; pou-
co tempo depois, os cristãos do deserto, reforçados por inúmeros
judeus e cristãos massacrados pelo Anticristo, reunem-se em Jeru-
salém e vêem como Cristo desce das nuvens: "e êles viveram e
reinaram mil anos com o Senhor" (237).
Eis a última mensagem de Soloviév.
§ 123. Um gnóstico cristão.
Junto com o teólogo ortodoxo Sérgio N. Bulgakóv (1871-
1944), é Nikolaj Alexándrevitch Berdiáïev (1874-1948) o pensa-
dor mais representativo dos emigrantes russos no Ocidente. Ber-
diffiev simpatizava, na sua juventude, com o marxismo que queria
harmonizar com o idealismo; suspeito de atividades revolucioná-
rias, foi relegado pelo regime czarista para a cidade de Vólogda
(1900-1903); de volta à capital, aderiu a uma espécie de "neo-
cristianismo" (238); depois atravessou várias fases de evolução in-

— Ibidem, pág. 180; o staretz João refere-se às palavras de Cristo (Ev. João,
XVII 11): ut omnes onum sint; o professor Emst Pauli diA ao Papa: Tu es
Petrus (Mt., 18); "jetzt ist es ja gründlich erwiesen und ausser jedem
Zweite! gesetzt" (= "agora está terminantemente provado e pôsto fora de
qualquer dúvida"); o mesmo professor diz ao staretz: "So, (liso, V ãterchen,
nun sind wir ja eins in Christo" (= "Pois bem, paizinho, agora estamos
unidos em Cristo").
— Soloviév revela-se aqui adepto do milenarismo, cf. § 79 III, nota 58a e Lactan-
tius, Div. Inst. VII 24.
— Cf. o "neo-cristianismo" do romancista russo Dimitri Merejkovski (1865-
1941), autor da célebre trilogia Cristo e o Anticristo (I Juliano o Após-
tata; II Leonardo da Vinci; III Pedro o Grande) e de inúmeros ensaios.
— 213 —

telectual (misticismo, intuicionismo, etc.) para terminar numa es-


peculação gnóstico-cristã, combinada com teses existencialistas e
personalistas. Em 1922, o autor foi exilado da Rússia (com vá-
rios outros intelectuais idealistas, entre os quais se achava também
Bulgakóv); estabeleceu-se primeiro em Berlim, e depois (1925)
em Paris. Seus numerosos livros e ensaios (239), tornaram o au-
tor mundialmente conhecido, principalmente nos países anglo-saxô-
nicos (240).
1. Terna con Variazioni.

Berdiáïev tem a vontade séria de ser "filósofo cristão" (241)


e sua filosofia tem a pretensão de ser uma síntese concreta e viva,
em vez de um sistema abstrato e racional, da realidade, síntese em
que se misturam a metafísica, a teologia e a mística; achando arti-
ficiais as balizas que o Ocidente estabelece entre o conteúdo meta-
físico, teológico e místico, Berdiáïev as derruba, e quer abranger
tudo mediante uma nova gnose cristã; sua fé não é autoritária, e
sim "uma fé adquirida de dentro para fora, através de uma dura
experiência da vida, através da liberdade"; como seu modêlo ad-
mirado, Vl. Soloviév, mostra também nosso autor influências do
neoplatonismo, da gnose cristã (Orígenes), dos místicos alemães
(Boehme e Silesius), dos filósofos românticos da Alemanha (Schel-
ling e Von Baader); a essas influências vieram acrescentar-se al-
gumas idéias de Bergson e de existencialistas modernos.
Berdiáïev era autor brilhante, mestre na arte de expor assun-
tos acadêmicos e abstrusos em elegância, dando-lhes uma nota de
atualidade; seu talento literário não pouco contribuía para sua fa-
ma. Seus livros, escritos num estilo paradoxal e cheios de digres-

Merejkovski (cf. Joaquim de Fiore, § 79) acreditava em três Testamentos:


o do Pai, o do Filho, e o do Espírito Santo; esta teoria teve certa repercussão
na obra Le Sens de la Création de Berdiáïev (cf. nota 265) .
. — Mencionamos aqui (em tradução francesa) : Le Sens de la Création (1916),
Paris, Desclée De Brouwer, 1955; Un Nouveau Moyen Âge (1923), Paris,
Plon, 1933'; Le Sens de l'Histoire (1924), Paris, Aubier, 1948; Esprit et
Liberte' (1927), Paris, Je Sers, 1933; De la Destination de l'Horrne (1931),
Paris, Je Sers, 1935; Les Sources et le Sens du Comrnunisme Russo (1937),
Paris, Gallimard, 1949'; Essai de Métaphysique Eschatologique (1941), Pa-
ris, Aubier, 1946; Royaume de l'Esprit et Royaume de Cé:sar (obra pós-
tuma), Neuchâtel-Paris, 1951.
. — Sôbre Berdiáïev, cf. N. O. Losski, op. cit., págs. 240-258; B. Zenkovsky,
op. cit., II págs. 315-337; E. Porret, La Philosophie chrétienne en Russie:
Nicolas Berdiaeff, Neuchâtel-Paris, 1948; do mesmo autor: Berdiaeff, Pro-
phète des Temps Nouveaux, Neuchâtel-PariS, 1951; K. Pfleger, Solovief e
Berdiaef, Rio de Janeiro, Editôra Ocidente Ltda., 1943.
. Seriaj muito `errôneo pensar que Berdiáïev e Bulgakóv representem a "or-
todoxia tradicional" do povo russo; às vêzes, parece que os emigrantes russos
nada deixarem na sua pátria senão a censura. Quanto a Berdiáïev, êste
Confessa francamente interpretar' o Evangelho como "gnóstico aristocrático"
e no espíríto'' de liberdade individual, interpretação pouco ortodoxa que lhe
foi inspirada 'Pela - "Lenda do ''Grão-Inqiiisidor".
-214—

sões (geralmente, mais interessantes do que o tema condutor) tra-


tam invariàvelmente dos mesmos assuntos. Ab uno disce omnes:
quem leu "A Filosofia do Espírito Livre", pode verificar que o au-
tor, nas outras obras, sempre bate nas mesmas teclas e que essas
teclas são relativamente poucas.
Como tantos outros autores modernos, Berdiáïev abomina o
sistema racional como a morte do pensamento vivo. Na sua "Auto-
biografia" encontramos esta confissão: Ma pensée est intuitiva et
aphoristique; elle ne comporte pas un enchainement discursif. Je
ne puis rien développer ou détrrontrer d'une manière approfondie
(242); em outras obras nos declara que seu pensamento, embora
não cético, é problemático e que sistemas filosóficos não são pos-
síveis e nem sequer desejáveis. O autor acredita apaixonadamen-
te no "sujeito criador", na pessoa humana — livre e espiritual —
que constrói livremente uma filosofia do espírito e cria livremente
novos valores, também religiosos (243).
II. A História Celeste.

A doutrina exotérica da Igreja admite em Deus uma imobili-


dade absoluta (Actus Purus e Primas Motor Immobilis, duas ex-
pressões completamente mal-entendidas pelo autor), concepção es-
sa que, segundo Berdiáïev, resulta numa idéia estática e abstrata
de Deus; a doutrina esotérica, porém, professada pelos místicos de
todos os tempos, sabe que no seio da Divindade se desenrola uma
verdadeira tragédia. Só um "mitologema" concreto, e não um "fi-
losofema" abstrato pode capacitar-nos para compreendermos o des-
tino trágico da vida divina. Guiado pelo pensamento místico de
Boehme, Berdiáïev acredita no Ungrund, isto é, no "Abismo Fun-
damental", anterior a Deus e à criação: êste "Abismo Fundamen-
tal" ou "Nada Divino" é Potência Infinita ou Indeterminação Eter-
na. Dêle provém Deus e, mediante Deus, a criação. Dans l'essence
divine se trouve un abitne obscur originei dans leguei prend nais-
sance le processos théogonique qui apparait déjà comme une marti-
festation secondaire en face de cet abime irrationnel sloustrait à tou-
tes nos catégorie• (244).

. Apud B. Zenkovsky, op. cit., II pág. 317, nota 20.


. — Berdiáiev que exalta a dignidade da pessoa humana chega a esta afirmação
paradoxal ('cf. Taine, § 102 I, nota 220): La bassesse de l'horrtme empirique
ne saurait ébranler ma conviction à ce sujei. J'ai le "pathos" de l'hurnanité,
bien que je sois de plus en plus persuadé du peu d'humanité dans l'horn-
me (in Le Sens de la Création, Préface de Stanislas Fumet, pág. 27) .
(244). — Le Sens de l'Histoire, pág. 48. — Nos últimos anos da sua carreira, Pter-
diáiev, cada vez mais existencialista, dirá (in Royaume de l'Esprit, etc., pág.
30): // n'est pas possible d'élaborer une ontologie de Dieu. Dieu n'est pas
l'être, Fêtre ressortissant toujours à une pensée abstraite. Dieu n'est pas
être, mais esprit. Dieu n'est pas essence, mais existence• — O fideísta russo
-215—

Berdiáïev considera como uma concepção cruel a idéia de um


mundo livremente (= arbitràriamente, segundo êle) criado por
Deus: "o amante não pode viver momento nenhum sem o amado;
perece o amante, quando perece o amado". O mundo é o complemen-
to necessário de Deus (cf. Soloviév) . A fonte do processo teogôni-
co como também do processo sosmogônico é o Ungrund obscuro, o
qual deve ser internamente iluminado pelo nascimento da Luz . A
distinção entre Criador e criatura não atinge a derradeira profundi-
dade do nosso conhecimento: essa distinção está superada no "Na-
da Divino" que já não (ou, ainda não) é Deus. Há mais: todo o
nosso mundo não passa de um "éon" da vida eterna: o mundo his-
tórico vive no "tempo mau", isto é, cada uma das suas três partes
(o presente, passado e futuro), é devorada pelo futuro, manifestan-
do-se nele o princípio do mal que é a aniquilação (245) . Nosso
"tempo mau" é resultado do pecado original, aue é uma caída cós-
mica . L'antique tradition du péché original, de la chute d'Adam et
Eve, qui, sous la forme d'un court récit, nous iretrace ce qui s'est
passe dans l'histoire de l'Être avant les origines du processus cos-
migue, n'est pas autre chore que la relation des premiers événements
qui se trouvent relegues au delà des limites qui séparent notre temps
de l'éternité, car c'est dans cette dernière que l'acte originei, rap-
porte par le vieux mythe, a eu son point de départ. 11 a engendre
la corruption de notre temps, la dissolution de son unité, sa division
en passe, présent et futur (246) . A apostasia no reino dos "éones"
produziu também o mundo da necessidade, o mundo "objetivado",
sujeito às relações causais; a existência da natureza, o domínio in-
ferior do Ser, a opor-se ao "sujeito livre e criador", é conseqüência
do "pecado original".
III. Cristo e a História.
A história é o drama concreto do amor divino e da liberdade hu-
mana. A bem dizer, há duas liberdades que devem ser rigorosamen-
te distintas.

Lev Chestov (1866-1939) dizia de Berdiáïev: plus l'homme grandit, plus


Dieu s'abaisse et s'appnuvrit (apud Zekovsky, op. cit., II pág. 331, nota 90) .
(245). — Le Sens de I' Histoire, pág. 58: Le futur est destructeur de tout instant du
passé, et le temps du mal est ainsi coupé en deuz parties, le passé et le lu-
tur, entre lesquelles se trouve une sorte de point imperceptible. Le hitur
dévore le passé, pour ensuite se transformar lui-même en passé, qui sere
dévoré à son tour par le futur qui suivra.
(246) . — Ibidem, pág. 64. — Berdiáïev considera também a diferenciação dos dois
sexos como conseqüência do pecado original (cf. nota 206); segundo êle, o
homem e a mulher se teriam separado no microcosmo = o homem como
também no macrocosmo = o mundo; o princípio feminino, enquanto perse-
verava em Deus e estava unido com o princípio masculino no "andrógino",
unia o homem e o universo com Deus; depois da caída, escraviza o homem
(a "natureza objetiva e exterior" e a "mulher") . — Cf. Le Sens de la
Création, págs. 234-289.
— 216 —

A liberdade irracional ou "meôntica" (247) é a liberdade


humana, não criada por Deus, mas oriunda do "Abismo"; anterior
ao bem e ao mal, constitui ela, por assim dizer, o ponto de partida
e o caminho da livre escôlha humana . Ora, se Deus é Senhor ab-
soluto do Ser, não o é do não-ser, e neste, — não naquele, — está
fundada a liberdade "meôntica" do homem, o proto-mistério da
nossa existência (248) .

A liberdade divina que se funda na Verdade e no Bem;


ela deve ser o têrmo final, o objetivo da livre escôlha humana.
Cada uma das duas liberdade, de per si, degenera facilmente
no seu oposto: eis a situação antinômica do "homem natural". A
liberdade humana, deixada às suas próprias fôrças, não reconhece
nem a Verdade nem o Bem, procurando apenas o bem-estar mate-
rial e a conservação do indivíduo: assim se transforma em anar-
quia, a sujeitar o homem à "natureza objetiva" e às leis necessárias
que a regem. A liberdade divina imposta exteriormente, — isto
é, só em vista de um bem desejado e sem consideração do livre
sujeito, — resulta em tirania (por exemplo, a teocracia medieval e
o regime comunista) . Mas o Lógos, a Segunda Pessoa da Santís-
sima Trindade, desce para o "Nada" da liberdade meôntica; Cris-
to, o novo Adão, o Deus-Homem, reune em si a liberdade divina e
a liberdade humana; sua Encarnação possibilita a vinda do Reino
do Espírito (Santo), da Graça Divina. A Graça de Cristo ilumina
interiormente a liberdade humana, conduzindo-a à liberdade divi-
na. Cristo não recorre a atos de violência, mas quer que todos acei-
tem livremente o Bem e a Verdade. O mistério celeste da San-
tíssima Trindade reflete-se no mistério terrestre das três liberda-
des: assim como o Pai e o Filho se encontram um ao outro no
Espírito Santo, que é o amor, assim se encontram a liberdade di-
vina e a liberdade humana unidas no Reino do Espírito, onde já
não há coação nem "exterioridade", mas onde tudo é livre, e amo-
rosa criação pessoal.
Esta teoria que, segundo Berdiáïev, está além do monismo ra-
cionalista (panteísmo) bem como além do dualismo (= catolicis-
mo intelectualista e protestantismo agnóstico), é completada por
várias outras considerações que não podemos expor aqui. Aos
olhos do autor, sua teoria "panenteísta" possibilita um processo de
interpenetração recíproca do mundo divino e do mundo humano.
Há dois movimentos correspondentes, um de cima para baixo, e
(247).., —.Das palavras gregas: rnè: ("não") e ôn, gen. ontós: ("sendo, ente") .
(248). — Assim se possibilita, aos olhos de Berdiáïev, uma teodicéia: Deus não é autor
do mal, — conseqüência da mlá escolha, — visto que não é autor da liber-
dade "meôntica"; fica removida a pedra de escândalo para os ateus de todos
os tempos. — Cf. § 68 III (nota 18) .
-217—

outro de baixo para cima. Devido a um processo de emanação e


à Encarnação, o divino penetra no kósmos; graças ao elemento di-
vino da sua natureza e à sua liberdade criadora, o homem sobe à
Divindade. A "teodicéia" (a justificação de Deus) vem a ser uma
"antropodicéia" (uma justificação do homem) .
La situation de l'homme au sein du monde naturel est tragi-
que. L'homme n'est pas seulement un des objets de ce monde: il
est avant tout un sujei, qui ne peut être déduit de I'objet. En mê-
me temps, I'attitude de rhomme à I'égard du cosmos est comman-
dé par le fait qu'il constitue lui-même un microcosme, qu'il con-
tient en lui-même le cosmos comme il contient en lui
L'homme ne peut pas être simplement une partie de quelque cho-
se, il est un tout (249) . O homem é um microcosmo, um resumo,
do Universo. Assim se explica o "simbolismo realista" do autor:
o mundo corpóreo, para êle, não é uma ilusão subjetiva nem um.
fenômeno destituído de realidade, mas é, antes de mais nada, a
roupa visível do mundo espiritual. O "mito" é suma expressão de
simbolismo: não é ficção subjetiva, no sentido pejorativo da pala-
vra, e sim a narrativa concreta de acontecimentos e fenômenos que
se verificaram na vida espiritual e se refletem no mundo "natural"..
Dando êsse significado ao têrmo "mito", Berdiáïev não hesita em
chamar de "mitos" os dados da revelação cristã; sua atitude anti-
intelectualista leva-o a menoscabar as fórmulas racionalistas, que-
são os dogmas: segundo o autor, traduzem êles um materialismo.
religioso.
IV. O Significado da História.
O significado da história está na luta trágica entre o Reino.
de César (= o mundo "objetivado", apostatado, sujeito à necessida-
de) e o Reino de Deus (= o mundo do Espírito, o mundo recon--
ciliado com Deus pela graça do Deus-Homem, o reino da liberda-
de criadora). A história humana passa pela dualidade antes de-
poder integrar-se completa e definitivamente na unidade divina.
Poderíamos dividir a história em três períodos.
a) Período Pré-cristão.
Neste período, o espírito humano estava vinculado à nature-
za, não conseguindo quebrar o círculo mágico da necessidade natu-
ral; achando-se imerso nas fôrças elementares da natureza, o es-
pírito perdia até a noção da sua liberdade. Êste período abrange.
tôda a história humana até a vinda do Cristianismo, desde os tem-
pos mais remotos de selvajaria animalesca até a época das grandesz
(249) . — Royaume de l'Esprit, etc., pág. 39.
-- 218

culturas antigas. Destas últimas, duas nos interessam aqui: a grega


e a judia .
A cultura grega é a revelação de Deus na natureza . Os gre-
gos tinham a idéia de um Deus imanente; tôda a natureza era, pa-
ra êles, animada: não havia campos sem faunos, nem fontes sem
ninfas, nem árvores sem dríadas. Mas apesar de serem, neste pon-
to, bastante semelhantes a outros pagãos, diferenciavam-se dêles
por sua concepção conseqüentemente antropomorfa das divinda-
des: os deuses, concebidos à imagem e à semelhança dos homens,
produziam na Grécia um processo antropogônico. Num ritmo dia-
lético, o homem grego nasceu da sua mitologia antropomorfa: o
"super-homem" mitológico deu origem ao humanismo grego. Mas
a imanência divina não convida o homem à atividade, antes o leva
à contemplação, ao aprofundamento interior. Destarte os gregos
chegavam à "psique" e à imortalidade da alma humana, às Idéias
a históricas e imóveis. O Bem, descoberto pelos filósofos da Héla-
de, era racional, a impor-se com necessidade ao homem: ils y vo-
yaient le résultat d'une victoire de Ia raison. . . mais ils le con-
cevaient sans rapport aucun avec Ia liberté (250) .
A história dos judeus é a revelação de Deus no destino hu-
mano. Conheciam um Deus transcendente e pessoal, o que lhes
possibilitava a idéia de entrar em contacto pessoal com seu Cria-
dor. Os judeus são ativos, pouco inclinados à contemplação da
Verdade e do Belo; atribuem pouca importância à sobrevivência da
alma, mas são possuídos do desêjo ardente de estabelecer, no mundo,
um reino de justiça e de verdade; apegados às realidades terrestres,
pregam um messianismo terrestre. Para êles, a realização do reino
messiânico é o significado da história, — atitude original entre to-
dos os povos da Antigüidade. Karl Marx é, nos tempos modernos,
o tipo acabado do Messianismo judeu. Mas os judeus eram filhos
da obediência legalista e não conheciam a verdadeira liberdade:
queriam impor a justiça e a verdade pela fôrça. Todo e qualquer
messianismo terrestre é violento.
b) A Idade Média e a Renascença.
A Encarnação é o eixo da história, a encerrar a época natura-
lista da humanidade. O Cristianismo trouxe ao mundo um dinamis-
mo incomparável: morreu o grande Pan (251), Cristo abaixou
a natureza e deu ao homem a dignidade de um ser espiritual e li-
vre. Iniciou-se uma luta trágica entre a liberdade divina e a libar-
— Le Sens de l'Histoire, pág. 94.
— Ibidem, pág. 100: Ce n'est pas en ellet en craignant les dérnons de la
fature qu'on peut construíra des chemins de ler, irtstaller des télégraphes et
des téléphones; cf. § 73 11 f.
— 219 —

dade humana, luta essa que não foi coroada imediatamente de uma
vitória definitiva ou completa.
Na Idade Média, o homem afasta-se da natureza, outrora ve-
nerada como divina; começa a travar uma luta renhida contra a na-
tureza, dentro e fora de si (ascetismo, fuga do mundo, cavalaria,
etc.) . Sem dúvida, origina-se um dualismo sem fundamento onto-
lógico: o entre a alma e a natureza, mas devemos reconhecer que
êsse dualismo foi (provis6riamente) salutar e (históricamente) ne-
cessário. A pessoa humana, a caminho de realizar-se, vai-se livran-
do dos elementos inferiores da natureza e concentrando em si as fôr-
ças espirituais. Na Idade Média, perdeu-se a unidade precária que
o helenismo estabelecera entre o Ocidente e o Oriente: l'Orient
ckvient de plus en plus statique puisqu'il reste non-chrétien et tout
le dynamisme historique se trouve désormais concentré en Occident
(252). Mas a Idade Média, com seu ideal teocrático, tinha que pe-
recer, porque o "Reino de Deus" não pode ser imposto ao gênero
humano por nenhuma autoridade exterior .
A Renascença é uma tentativa de emancipar o homem do an-
tigo quadro teocrático, em nome do homem; o homem renascentista
dirige-se outra vez para a natureza, considerando-a, não como um
ser animado ou divino, e sim como um mundo mecânico que quer
dominar: tenta combinar a liberdade cristã com o naturalismo pa-
gão Também o homem vai-se reputando um ser natural. La Re-
naissance est la lune de miei de Phomme de Phistoire moderne: il
se sent libre dans l'emploi de ses forces, et il se reconnait en même
temps étroitement rattaché à la vie de la nature et à l'antiquité qui
en était inséparable (253) . A Renascença foi uma época indispen-
sável na evolução da humanidade, porquanto deu ao homem a opor-
tunidade de experimentar até o fim sua liberdade criadora, o que
fôra impossível durante o regime teocrático da Idade Média. Mas,
ao mesmo tempo, arrancou o homem das suas origens divinas, o que
teve por conseqüência a ruína do homem enquanto é imagem de
Deus (254). Êste humanismo autônomo devia resultar numa ter-
rível ilusão: a liberdade criadora do homem renascentista deu ori-
gem ao "homem técnico". Introduziu-se no mundo ocidental a má-
quina: un troisième élément qui n'est ni humain ni naturel acquiert
un pouvoir terrible et sur l'homme et sur la nature; il desarticule
I'être hurnain, le divise et fait en sorte qu'il cesse d'avoir le carac-
. — Le Sens de l'Histoire, pág. 106.
. — Ibidem, pág. 113; a Reforma é, segundo Berdiáïev, um fenômeno bastante
paradoxal: sob o seu aspecto positivo, é uma afirmação enérgica da liber-
dade religiosa do homem; sob o seu aspecto negativo, é a negação cio valor
humano perante Deus; o Protestantismo "protesta", portanto, contra o auto-
ritarismo católico bem como contra o humanismo católico.
. — Ibidem, pág. 113: On ne peut pas libérer l'homme au nom de la liberté
de Phomme, l'homrne ne pouvant être la fin de l'homme.
-220 —

tère naturel qu'il possédait jusque là. C'est cette force qui a le plus
contribue à la fin de la Renaissance (255). Eis a tragédia do ho-
mem renascentista: acabou sendo devorado por seus próprios pro-
dutos. Nietzsche e Marx marcam o fim da época humanista no rei-
no da ideologia: aquêle por considerar o homem histórico como um
instrumento para construir o Super-Homem; êste por sacrificar o in-
divíduo à coletividade.
c) A Nova Idade Média (255a) .
A consciência cristã não pode resignar-se com esta situação do-
lorosa, e vive na expectativa de uma evolução ulterior: o homem vin-
douro tornará a ver no Kósmos um reflexo da vida divina, mas
combinará esta crença com um domínio espiritual sôbre a natu-
reza. Anuncia-se a vinda de uma Nova Idade Média .
O homem do século XX vê o desmoronamento do mundo
burguês, e vai descobrindo a Deus, ou então cai no poder de Sa-
tanás. Terminou a época de neutralidade religiosa; a nova alter-
nativa será: Deus e o homem, ou então, Satanás sem o homem.
Toute la vie et tousi les aspects vont se placar sous le signo de la
lutte religieuse, de la lutte des extrêmes príncipes religieux: l'épo-
que de la lutte aigüe entre la religion de Dieu et la religion du dia-
ble. . . C'est pourquoi le communisme russe, avec le déroulement
du drame religieux, qu'il comporte, appartient déjà au nouveau
=yen âge, et non plus à la vieille histoire moderne (256).
Na Nova Idade Média haverá menos igualdade do que agora,
mas nada de fome e de miséria; a cultura espiritual será mais re-
quintada e complexa, e a cultura material será mais simples e
elementar; o princípio de propriedade privada será conservada, mas
não sem restrições: antes de mais nada, será espiritualizado; findar-
se-á o racionalismo para ceder seu lugar a um super-racionalismo de
tipo medieval; a Igreja, "o Kósmos cristianizado", irá desempenhar
um papel de destaque, um papel cósmico: ela, em vez de ficar ti-
midamente estranha às realidades terrestres (Oriente) ou de impor
sua autoridade aos fiéis sem respeito pela dignidade humana (Oci-
dente), se porá à tarefa de santificar o mundo interiormente; o re-
conhecimento espontâneo de valores transcendentes animará também
a cultura profana; ou melhor, não haverá mais uma cultura profana,

— Ibidem, pág. 132. Cf. também § 95 V, nota 14.


(255a) . — Estão terminando os Tempos Modernos: esta tese é defendida também pelo
teólogo alemão R. Guardini no seu livrü: Das Ende der Neaseit (tradu-
zidó para o francês sob o título de La Firt des Temps Modernes, Paris, Édi-
tibris du Séuil, 1952; o livro de Guardini deu origem a um diálogo entre vá-
rios especialistas, publicado depõis: Unsere geSehichtliche Zukunft, Würzburg,

— Un NouVeãir Moyen Âge, pág. 108


— 221 —

mas tôda a vida intelectual, social e artística respirará um Cristia-


nismo livre e criador; a Igreja transfigurará o Universo. Esta passa-
gem dos tempos modernos para uma Nova Idade Média não é uma
"necessidade" histórica, mas sua realização depende da livre escôlha
humana, a qual se acha metida no dilema de optar por Deus ou
por Satanás.
Berdiáïev combate a animosidade dos emigrantes russos (257)
e dos capitalistas ocidentais (258) contra a revolução bolchevista:
em última análise, a onda de anti-comunismo não passa de mêdo.
L'adoration de Mammon à la place de Dieu est propre au capita-
lisme et au socialisme égalment. Le socialisme n'est pas une utopia
ou un rêve, c'est une réelle menace et un avertissement aux peu-
pies, pour leur rappeler avec rigueur qu'ils n'ont pas exécuté le tes-
tament du Christ, mais ont apostasié (259). O autor não hesita
em declarar que as realizações do comunismo estão mais confor-
mes o espírito do Evangelho do que as do capitalismo: o que fi-
zeram os cristãos para fazer triunfar na vida social a verdade cris-
tã? (260) . O bolchevismo é abominável por causa do seu ateísmo
e do seu desprêzo pela dignidade humana; poderá ser vencido ape-
nas por armas espirituais e não pela política. À Rússia, que nun-
ca conheceu a Renascença e o Humanismo, e já no século XIX
desmascarou a cultura humanista do Ocidente, cabe um papel su-
mamente original: agora, no século XX, está liqüidando o mundo
burguês e capitalista.
V. Progressismo e Escatologia.
Berdiáïev impugna repetidas vêzes o Mito do Progresso. Co-
mo personalista, não pode conformar-se com a idéia de ver nas
sucessivas gerações um andaime para a construção de um futuro
privilegiado: Le banquet messianique seta célébré par les heu-
reux inconnus des temps futurs sur la tombe de leurs ancêtres; ce
rôle de vampire que les théoriciens du progrès font jouer à la der-
nière génération ne peut guère nous inspirer un grand enthousias-
me, ou sinon il serait de mauvais aloi (261) . O "tempo mau" da
. — Berdiáïev, com muita razão, acha impossível uma restauração da vida pré-
revolucionária na Rússia; receia a "reação", dizendo com Joseph de Maistre
(in Considdrations sur la France, Ch. IX, no fim): Une contre-révolution ne
doit pas être une révolution contraire, mais le contraire d'une révolution;
o autor frisa também "a responsabili912ide de todos os russos pela revolução
russa".
. — Cf. G. Corção, A Descoberta do Outro, Rio de Janeiro, Agir, 1952 4, pág.
166: "O comunismo em si já representava um mal bastante grave para o
mundo; direi entretanto que sua pior conseqüência foi o anticomunismo".
(259). — Un Netrveau Moyen Âge, pág. 271; cf. Les Sources et le Sens du Comina-
nime Russa, Chap. VIII.
(260) . O autor cita a palavra de Soloviév: "Para podermos triunfar do socialismo
precisamos discernir-lhe a verdade".
(261). — Le Sens de l'Histoire, pág. 172.
— 222 —

história, cujas partes se devoram mütuamente, não é capaz de dar


significado absoluto e universal aos acontecimentos históricos (262).
Além disso, a experiência nos mostra que tôdas as tentativas fei-
tas durante a história para estabelecer o Reino messiânico, não
passam de fracassos. A história humana é uma série ininterrupta
de fracassos . Falharam a teocracia medieval, a Renascença, a Re-
forma, a Revolução francesa: falhará também o comunismo; até o
Cristianismo foi, histõricamente falando, um malôgro. Ora, o fra-
casso da história postula a vinda do Reino de Deus, fora dos limi-
tes dêste "tempo mau". A história é um naufrágio sagrado, e as
realizações históricas nada são senão símbolos a revelarem a nos-
talgia humana pela vida eterna que se iniciará quando da segunda
vinda de Cristo .
A atitude escatológica, longe de paralisar a atividade humana,
deve intensivá-la, compenetrando-nos da nossa responsabilidade pe-
los destinos humanos. La fin du monde est une oeuvre divino-humai-
ne: I'activité et la puissance créatrice de I'homme y prennerrt part;
non seulement l'homme subit la fin, mais il Ia pré pare (263) . As-
sim como, ao aproximar-se o fim do mundo, se acumulam os elemen-
tos negativos para preparar a vinda do Anticristo, assim se devem
acumular também, os elementos positivos para preparar e acelerar
a segunda vinda de Cristo. O homem deve lutar incessantemente
contra o Anticristo para preparar a parousía. "O Reino dos céus sofre
violência, e só os violentos o adquirirão" (Mt., XI 12) .
Nosso "tempo mau" será destruído no fim da história para fi-
car absorvido no pléroma divino da eternidade. O Inferno, perten- .

cente ao não-ser, ao caos original, não terá duração eterna, como o


imagina uma moral cristã degenerada. A alma humana, filha da
eternidade e não do tempo (Berdiáïev acredita na preexistência da
alma), atravessará, depois de libertada do seu corpo material, várias
fases sucessivas de existência em planos diferentes. La métem-
pychose sur plusieurs plans ne signifie pas nécessairement le passa-
ge dans un autre corps. La matière du corps est changée, mais non
sa forme qui est spirituelle. II est erroné de penser que "ce monde"
signifie monde corporel et que I'autre monde veut dire: monde in-
corporei. Matérialité et corporalité ne sont pas une seule et même
chose. L'autre monde est lui aussi corpore/ dans le serra de forme4
— Royaume de I'Esprit, etc., pág. 10: Le développement historique, qui en-
gendre le relativisrne, est impossible, s'il n'y a pas de Logos, de Sens du
processus hístorique. Ce sens ne peut pas résider dans le processos même
de développement.
— Essai de Métaphysique Eschatologique, pág. 218; cf. Le Sens de I'Histoire,
pág. 216: En effet, le règne de I'Antéchrist, la destruction catastrophique
du monde, le Demier Jugement ne se produiront que si l'hurnanité chrétienne
n'arrive pas s'unir en vue de l'oeuvre corrunune de la restauration de lu
vie et de l'organisation fraternelle de /'existente de l'univers entier.
— 223 —

éternelle, de figure éternelle, d'éternelle expression de visages. La


qtiaIité du corps dépend de l'état de l'esprit et•clO l'âme. L'esprit-
âme crée son corps. C'est pourquoi la doctrine Ia plus vraie et la
plus profonde est ceife de Ia résurrection, de la résurrection de l'être
entier, non de la comervation de parties morcelées de l'être (264) .
E não só o homem entrará no Reino de Deus, mas com êle
entrarão também suas realizações terrestres: o Dia do Juízo Uni-
versal não destruirá os quadros de Rembrandt ou as esculturas de
Miguel-Ângelo, não queimará a trilogia de Dante ou as tragédias
de Shakespeare. Quando da segunda vinda de Cristo, manifestar-
se-á também a perfeição humana na sua plenitude. O fim será
transfiguração, e não destruição: transfiguração da humanidade e
do kósmos, transfiguração total, transfiguração incompreensível pa-
ra as categorias que vigoram no "éon" atual.
Se bem o entendeMos (pois o autor é vago e muitas vêzes
contraditório neste ponto, apesar de tôdas as suas exposições), Ber-
diáïev acredita em duas transformações: a transformação parcial,
no processo histórico ("a Nova Idade Média"), e a transfigura-
ção total, no Reino de Deus ("o novo céu e a nova terra") . Mas
em algumas obras do autor, o plano "meta-histórico" vem sendo
obcurecido pelo plano histórico.
O personalista Berdikiev, na sua luta pela dignidade humana,
chega a sacrificar Deus ao homem; o gnóstico russo tende a apou-
car a importância da Redenção, substituindo-a pela livre criação
humana (265); a moral do Evangelho é deficiente e precisa ser
completada pela moral criadora (266); o Cristianismo histórico,
— ortodoxia, catolicismo e protestantismo, — não passa de um
preâmbulo defeituoso para a chegada de um novo Cristianismo
que será livre, aristocrático, místico e profético: o futuro descobri-
rá, graças à inspiração do profeta não incomodado pela autorida-

. — Essai de Métaphysique Eschatologique, págs. 270-271.


. — Le Sens de Ia Création, págs. 126-127: Il n'est qu'une issue pour Ia cons-
cience religieuse de l'homme moderne: Ia reconnaissance de cette vérité que
le christianísme du Nouveau Testament ne contient pas, dans sa plénitude
et sa perfection, Ia vérité religieuse. O mundo passa por três fases sucessivas
de revelação divina: a revelaço da Lei (o Pai), a da Redenção (o Filho),
e a da criação livre (o Espírito Santo), cf. nota 238.
. — No livro La Destination de I'Homme, Berdiáiev distingue estas três morais:
a moral da lei que estabelece normas aplicáveis a todos os casos, regu-
lando a sociedade sem se incomodar da pessoa humana (Roma; farisaísmo);
a moral evangélica que realça o valor da pessoa concreta e não o bem
abstrato; a idéia do Bem já não ocupa o primeiro lugar, sendo substituída
pelo estado de filhos de Deus; esta moral dá ao homem tôda a dignidade,
Mas leva fàcilmente à ascese e à fuga do mundo; também frisa demais a im-
portância da salvação individual; 3) a moral criadora, em que o gênio vem
a completar a atividade do santo: o homem oferece suas fôrças criadoras a
Deus, levado por amor desinteressado e sem mêdo de castigos; esta moral
está além do Bem e do Mal, e tem por fim criar o Belo. Pois "o Be:in
salvará o mundo" (Dostoievski) .
— 224 —

de, novos valores religiosos (267). Por causa da sua interpreta-


ção muito livre do Cristianismo, da moral cristã e da escatologia
tradicional Berdiáïev é criticado não só pelos católicos, mas tam-
bém pelos ortodoxos (268).
§ 124. Um eslavófilo tardio.
Em 1938, Walter Schubart (nasceu em 1897), professor em
Riga e casado com uma mulher russa, escreveu, em alemão, um li-
vro intitulado Europa und die Seele des Ostens (:"A Europa e a
Alma do Oriente"), publicado depois na Suíça (269) . Esta obra te-
ve grande repercussão durante a Segunda Guerra Mundial, princi-
palmente nos países ocupados pelos alemães, onde era leitura rigo-
rosamente proibida . Schubart é intérprete das idéias exaltadas de
Dostoïevski quanto à missão messiânica do povo russo: é epígono
dos grandes eslavófilos do século passado, a elaborar sistematica-
mente a oposição entre o mundo ocidental prestes a morrer e o
mundo russo prestes a assumir a hegemonia cultural e política.
Já que muitas dessas idéias já são conhecidas ao leitor, não pre-
tendemos demorar-nos muito tempo em expor as teorias dêste esla-
ví)filo tardio.
I. Os dois Fatôres do Processo Histórico.
O processo histórico é determinado por dois fatôres: um ma-
terial, o outro espiritual, ou melhor: um material e estável, o ou-
tro irracional e variável. Êste é de ordem temporal ("éones"),
aquêle é de ordem espacial (genius loci).
a) Os "Éones".
De acôrdo com a profecia de Daniel (270) que Schubart tem
por uma intuição muito acertada, existem quatro grandes épocas
ou "éones" que se sucedem alternadamente (o autor não lhes pre-
cisa a sucessão): êstes "éones", cada uma de uma duração de mais
ou menos 500 anos, distinguem-se pela atitude fundamental que
o homem toma perante o universo .
cc) O homem heróico quer dominar o mundo, julgando-o in-
completo ou caótico sem a 'sua intervenção. E' a época dos roma-
. — Cf. Esprit et Liberté (passim); o autor julga a Igreja Ecumênica uma rea-
lidade sómente escatológica e não alimenta muitas espearnças quanto ao bom
êxito do movimento ecumênico; a passagem de Soloviév para a unidade ecle-
siástica parece-lhe um ato superado.
. — Cf. B. Zenkovsky, op. cit., II págs. 315-337.
. Servimo-nos da 2. und 3. Auflage, Luzem, Vita Nova Verlag, 1943.
Outros livros do mesmo autor são: Erotismo e Religião; Revolução do
Espírito; Dostoïevski e Nietzsche.
. — Daniel, II 36-45 e VII 2-27; cf. § 26 VI nota 46.
-225—,

nos (200 a. C.-300 d. C.) e a da civilização moderna ou "prome-


téica" (1500-2000 d. C.) .

)3) O homem harmônico não possui êsse dinamismo, sendo


de estrutura estática: êle vê no mundo uma harmonia perfeita,
procurando compreendê-la e amá-la. E' a época dos gregos clás-
sicos (800-300 a. C.) e a da Idade Média ocidental (1000-1500
d. C.)

y) O homem ascético abandona o mundo, já que não tem


muita esperança de poder melhorá-lo mas nele vê sobretudo uma
coisa exterior capaz de seduzí-lo e de afastá-lo do seu fim trans-
cendente. E' a época dos hindus (1100-600 a. C.) e a dos gregos
neoplatônicos (300-800 d. C.) .
8) O homem messiânico ou "joanino" é dinâmico como o
heróico: êle quer santificar o mundo, estabelecendo nele uma or-
dem superior e divina, não pela fôrça, e sim pelo amor universal.
A êste grupo pertencem os primeiros cristãos como também os
russos.
A história não tem fim universal: cada um dos quatro "éones"
traz em si a sua significação e a sua justificação; só assim é que
Deus se pode revelar à humanidade. As épocas intermediárias en-
tre dois "éones" possuem caráter apocalíptico, por exemplo "O Ou-
tono da Idade Média" (século XV) e o século atual em que po-
demos verificar a agonia do homem prometéico, representado prin-
cipalmente pela França e pela Alemanha, e o nascimento do ho-
mem joanino que é o homem novo da Rússia.
b) O Genius Loci (270a) .
Não o sangue é o elemento constitutivo de um povo, como que-
rem os racistas: para a constituição de uma alma nacional é incom-
paràvelmente mais importante o genius loci, a influência do solo e
do clima . As vastas planícies produzem o homem religioso, as mon-
tanhas dão origem às fortes personalidades, as regiões infecundas
tornam duro, preocupado e desconfiado o habitante, as regiões fér-
teis favorecem o nascimento do homem contemplativo. O genius
loci origina as diferenças no espaço, o genius temporis as diferen-
ças entre os diversos "éones". A combinação e a oposição dêsses
dois fatôres constituem o conteúdo do destino das culturas. Quando
um conjunto de qualidades nacionais coincide, na sua essência, com
o espírito do "éon" predestinado a prevalecer em certa época, aí

(270a) • — Já Hipócrates (séc. V a. C.) estudou a influência de fatôres externos sôbre o


comportamento humano, no tratado De Aëre, Aquis et Locis.

Revista de História n.o 31


- 226—

êsse povo alcança inevitàvelmente seu apogeu cultural e político;


havendo oposição entre os dois, há épocas de conflitos e de cismas
internos.

II . A Tese Eslavófila.
Ora, o "éon" do homem prometéico está para terminar; o ho-
mem russo, uma vez libertado do julgo bolchevista, iniciará nova
época, o "éon" de santificação, de harmonia. de amor universal. A
Rússia bolchevista semeia divisão no corpo moribundo da velha
Europa, e até o fascismo está prestando serviços para o triunfo da
idéia russa, pois o fascismo há de terminar em guerras fratricidas,
das quais só a Rússia poderá aproveitar-se.
Schubart apresenta-nos imagem simpaticíssima e arrebatadora
do homem joanino, contrapondo-o ao homem prometéico que faz fi-
gura muito triste neste confrônto. O homem joanino transforma-
se num revolucionário apocalíptico e fanático, chegando a odiar ter-
rivelmente o mundo, quando desespera poder salvar e harmonizar o
mundo; agora está atravessando esta fase dolorosa da sua existência
(no comunismo russo); mas, livrado dos maus demônios que o mo-
lestam atualmente, há de regenerar o mundo, estabelecendo nele o
Reino de Deus e realizando a imagem divina do homem.
O homem russo é religioso: não abusa da religião para fins po-
líticos, mas torna religiosa a política; é humilde, cheio de remorso e
livre; não avalia o homem pelo dinheiro. O dinheiro, no mundo
ocidental, é quase sempre título de orgulho, na Rússia provoca a
reação de uma consciência má. O homem europeu é, no fundo, pes-
simista, desconfiado e mesquinho (seguros, contratos e regulamen-
tos); o homem russo é otimista, cheio de confiança e generoso. Os
russos têm intuição e procuram a profundidade; os ocidentais são
homens da superfície e obedecem à ditadura da razão, que esmaga
as fôrças elementares da vida . O ideal moral do europeu é o do-
mínio sôbre si mesmo, o russo quer entregar-se sem reserva ao mun-
do e ao próximo. O russo é homem universal, o europeu é técnico
e especialista. O povo russo sabe sofrer, tem piedade dos crimino-
sos e julga-se responsável pelos pecados de outros; os povos ociden-
tais adoram os prazeres mundanos e expulsam o pecador impiedosa-
mente do seu meio. O homem europeu exalta-se como o fariseu, o
homem russa humilha-se como o publicano. O russo é essencialm94-
te religioso, até no seu ateísmo: êle crê no . seu ateísmo; o europeu
é ateu por indiferentismo ou por amor-próprio. O homem russo
procura estabelecer a Igreja Universal, o homem do Ocidente é sec-
tarista. A alma russa é feminina, receptiva e extasia-se no dom to-
tal de si mesma; o europeu é masculino, brutal, possuído da vontade
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (XI)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 31, pp 133-227, jul./set. 1957. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/031/A007N031op.pdf

— 227 —

de dominar. Em suma, o Cristianismo é uma qualidade constante


do povo russo; os russos eram cristãos antes de adotarem o Evan-
gelho (271) .
Não queremos prosseguir a comparação entre os dois tipos de
cultura. Apesar de nos convidar a análise de Schubart a um exame
de consciência, não podemos aceitar seu homem novo (272): sua
mensagem não é religiosa e muito menos ainda cristã, mas, quando
muito, uma lição de antropologia nacionalista . Sem comunismo ou
com comunismo, o "deus russo" é uma caricatura do Pai celeste de
quem nos falam os Evangelhos.

(Continua no próximo número) .

JOSE' VAN DEN BESSELAAR


da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
da Sociedade Brasileira de Numismática

. — Europa und die Seele des Ostens, págs. 174-175: Im Gegensatz zum pro-
metheischen Menschen hat der Russe christliche Tugenden als konstante Na-
tionaleigenschaften. Die Russen waren Christen, bevor sie sich zum Chris-
tentum bekannten. Christen ohne Christus. Gerade dem Geiste des Neuen,
nicht dem Geiste des Alten Testaments stand der Russe in idealer Weise
offen. Vom alten Testament sagten nur die Erbsündelehre dem russischen
Schuldgefühl, die messianischen Verheissungen dem russischen Erldsungsvertangen
zu. Als Mensch der Endkultur ist er religiiis und für die Umevelt empfãnglich...
. — Cf. Joseph Folliet, L'Avènement de Prométhée, Lyon, Chronique Sociale
de France, 1951, pág. 213: (Les révolutions) n'arrivent pas à remplacer
les religions anciennes. L'homme nouveau qu'elles créent ressemble singu-
lièrement au vieil bom= de l'Écriture, à I' éternel Adem assoif fé de plaisir
et de dominetion, esclave de la triple concupiscence. Elles suprriment les
crises de régiments anciens, mais elles provoquent de nouvelles crises. ..
Elles ne sont que des formules de transition qui se prennent pour des réus-
sites étemelles, des auberges prétentieuses, mal éiquipées et mal famées oit
l'humanité s'arrête un instant avant de reprendre sa marche.' Também
o homem joanino será o "velho Adão".
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (X)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 35, pp 149-237, jul./set. 1958. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/035/A009N035op.pdf

QUESTÕES PEDAGÓGICAS
INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS
HISTÓRICOS (X) .

QUARTA PARTE

As Interpretações da História através dos Séculos.


(Conclusão).

CAPÍTULO OITAVO

AMEAÇAS E PROMESSAS.

§ 125. Explorando o Terreno.

A época do Iluminismo timbrara em ser o século da filosofia,


mas a disciplina que havia de imprimir seu cunho ao século XIX, se-
ria a história. Nascia o novo "senso histórico", tão característico dos
tempos modernos; desenvolvia-se uma atividade inaudita em todos os
setores da historiografia, inclusive no que diz respeito à edição "cien-
tífica" dos documentos; alargavam-se os horizontes históricos pelo
cultivo metódico de novas disciplinas auxiliares e pelo descobri-
mento de civilizações exóticas; e afinal, elaboravam-se grandes sis-
temas progressistas que prometiam ao homem ocidental a salvação
pela história . Também o homem do século XX não se desinteressa
dos estudos históricos, mas continua dirigindo-se a Clio, talvez
mais insistentemente do que seus avós . São, porém, consideráveis
as diferenças entre a mentalidade histórica do século passado e a
da época atual. O século XIX, globalmente falando, julgava-se ca-
paz, cumpridas certas condições, de reconstruir com precisão e ob-
jetividade "científicas" o passado humano, acreditava aferradamen-
te em "leis históricas", e não raro propendia para uma interpretação
dedutiva do processo histórico: às vêzes parecia que Clio era in-
terrogada apenas pro forma, para confirmar simplesmente uma idéia
preconcebida do inquiridor. O homem moderno perdeu a confiança
na onipotência da razão e no valor absoluto das reconstruções his-
tóricas: prudentemente cético, esforça-se por indagar a natureza do
conhecimento histórico e por circunscrever-lhe os limites; farto
dos simplismos de sistemas apriorísticos, fala com certa reserva
na "filosofia" da história e tenta preferivelmente construir, median-
— 150 —

te métodos empíricos, uma "sociologia das civilizações" (1), a cul-


minar eventualmente numa "filosofia da cultura"; já não podendo
partilhar o otimismo sistemático das gerações anteriores, nem tam-
pouco querendo render-se ao pessimismo deprimente de alguns pro-
fetas hodiernos, procura ansiosamente saber, num diálogo sempre
aberto com o passado, quais são as possibilidades para sua existên-
cia concreta e qual é a tarefa humana, — portanto, livre, — que
a situação histórica da conjuntura atual lhe indica. Para êle, a his-
tória é le devenir humain dans toute son étendue, passé, présent et
futur liés d'un seul tenant comme l'étoffe de l'aventure humaine,
parfois de l'aventure cosmique toute entière...: c'est un mouve-
ment d'adhésion à la vie, et davantage une question posée au destin
Continua vivo o interêsse do homem contemporâneo pela his-
tória, é imensa a literatura moderna que versa sôbre os problemas
do conhecimento histórico e sôbre o destino da humanidade atual
Em vez de apresentarmos aos nossos leitores um catálogo sêco
e pouco instrutivo, preferimos chamar-lhes a atenção para três
figuras de destaque: Spengler, Toynbee e Jaspers. Neste parágra-
fo introdutório pretendemos dar umas rápidas indicações enciclo-
pédicas que talvez possam ajudar o estudioso a encontrar o seu ca-
minho individual no labirinto emaranhado da bibliografia extensís-
sima, consagrada no decurso dos últimos decênios, a questões rela-
cionadas com o nosso assunto.
I. "A Crítica da Razão Histórica" (4).
(1). — A expressão é de Alfred Weber, autor do conhecido livro: Kulturgeschfchte als
Kultursoziologie (Leida, 1935), traduzido para o espanhol sob o título de:
Historia de la Cultura, México-Buenos Aires, 1956, Fundo de Cultura Eco-
nômica; do mesmo autor assinalamos ainda: Der dritte oder der vierte
Mensch: Vom Sinn des geschichtlichen Daseins, München, Piper, 1953 (= "O
terceiro ou o quarto Homem: Sôbre o Significado da Existência Histórica"). —
O autor americano Lewis Mumford escreveu uma interpretação "psicológica" da
cultura ocidental: The Condition of Man; esta obra existe em versão portu-
guêsa: "A Condição de Homem", Editôra Globo, 1952.
(2) P.-H. Simon, L'Esprft et l'Histoire, Paris, Armand Colin, 1954, pág. 15.
Neste livro interessante, o autor trata do problemki da história na literatura
francesa durante os últimos cinqüenta anos.
— O problema da história foi o tema da oitava reunião de Estudos Filosóficos
Cristãos, em Gallarate (Itália), no ano 1952; cf. 11 Problema della Storia,
Brescia, Morcelliana, 1953, e o resumo dêste livro na Revista Portuguêsa
de Filosofia, X 3, 1953, págs. 251-277. — No mesmo ano, o problema foi
discutido no sexto Congresso de filósofos de língua francesa, cf. L'Homme
et l'Histoire, Paris, Presses Universitaires de France, 1952. — Os intelec-
tuais católicos da França trataram do mesmo assunto em 1956, cf. Philo.
sophies de l'Histoire, Paris, Arthème Fayard, 1956; cf. do mesmo centro
de estudos: L'Eglise, l'Occident, le Monde, Paris, Arthème Fayard, 1956.
— Na Alemanha houve também discussões e congressos, cf. Christentum und
Geschichte, Düsseldorf, Pãdagogischer Verlag, Schwann, 1955, e Unsere ge-
schichtliche Zukunft, Würzburg, Werkbund-Verlag, 1953. — Finalmente as-
sinalamos aqui o relatório de um congresso realizado na Holanda: De Zin der
Geschiedenis voor Geloof en Rede (= "O Significado da História perante a
Fé e a Razão"), Heerlen, Winants, 1951.
— O leitor poderá encontrar uma orientação geral nos livros de Heinrich Ritter
Von Srbik, Geist und Geschichte vom deutschen Humanismus bis zur Ge-
genwart, München-Salzburg, 1950-1951, e de R. G. Collingwood, The
Ides of History, Oxford, at the Clarendon Press, 1951'. Cf. tambéim H.-I.
— 151 —

A história, emancipada pelos racionalistas da teologia, da moral


e da literatura, levava, como disciplina autônoma, uma existência
muito precária, visto que as "ciências exatas" constantemente amea-
çavam absorvê-la (cf. § 18 I) . Mas, por volta de 1870, anunciava-
se, primeiramente na Alemanha e, depois, também em outros paí-
ses, uma forte reação contra essa subjugação do espírito à matéria.
Seria interessante se pudéssemos acompanhar as dicussões que, num
período de quase cem anos, foram travadas em tôrno do problema
cativante das "ciências morais", mas tal exposição, mesmo que se
restringisse às linhas mestras, ocuparia dezenas de páginas. Deve-
mos contentar-nos em indicar aqui os pontos estritamente essenciais.
a) O Nascimento das Ciências do Espírito.
Segundo W. Dilthey (5), as "ciências do espírito" (alemão:
Geisteswissenschaften) são radicalmente distintas das ciências na-
turais. Estas, partindo de experiências externas e mediatas (atra-
vés dos sentidos), têm por objeto os fenômenos da natureza ina-
nimada e tentam "explicá-los" mediante nexos causais que sempre
possuem caráter genérico e necessário; aquelas, porém, entram di-
retamente em contacto com as manifestações espontâneas da vida
humana, procurando "entendê-las" (alemão: verstehen) como tota-
lidades: ora, tais totalidades possuem uma estrutura própria e ori-
ginal, e não podem ser reduzidas a um caso particular de uma lei
geral nem podem ser desmontadas em elementos mecânicos. O
conhecimento conceitual não nos dá a verdadeira revelação da vida,
mas é apenas uma reflexão posterior e um tanto artificial sôbre ela;
"entendemos" a vida e as suas manifestações, não por intermédio
de conceitos abstratos e explicações causais, e sim através de uma
íntima "vivência" (alemão: Beleben). A primeira obrigação de um
historiador será, portanto, "identificar-se" (alemão: sich einleben,
sich einfühlen) com as manifestações concretas da vida do espírito
humano no passado. O próprio Dilthey era verdadeiro mestre nesta
arte que já havia sido praticada pelos neo-humanistas alemães (Win-
ckelmann, Herder, Goethe, etc.) . O que lhe importava, era "enten-
der" a "ordem teleológica" das estruturas individuais da vida, isto é,
seu significado interno e seu valor intrínseco: pouco se incomoda-
va a sobrepor-lhes um sentido universal ou um valor absoluto . De

Marrou, De la Connaissance Historique, Paris, Aux Éditions du Seuil, 1954,


P. Ricoeur, Histoire et Vérité, Paris, Aux Éditions du Senil, 1955 e, Alois
Dempf, Kritik der historischen Vernunft (= "A Crítica da Razão Histórica"),
München, Oldenbourg, 1957.
(5) . — Wilhelm Dilthey (1833-1911), professor na Universidade de Berlim, escreveu
entre muitas outras obras: Das Erlebnis und die Dichtung (1906), Das We-
sen der Philosophie (1907) e Der Aufbeu der geschichtNchen Welt in den
Geisteswissenschaften (1910) . Muitas das obras de Dilthey existem agora
em tradur,ão castelhana.
— 152 —

tal maneira era fascinado pela singularidade das diversas "tipolo-


gias históricas" que chegou a ver em tôdas elas expressões comple-
tamente eqüivalentes do espírito humano através dos séculos: tudo
é relativo, nada é absoluto (5a); a filosofia transforma-se em "mun-
dividência", expressão de uma alma individual, coletiva ou histórica.
Dilthey é, se não o único, ao menos o mais importante fundador teó-
rico do relativismo histórico ou do "historicismo" (cf. § 33 III), cor-
rente essa que havia de ser objeto de intensas controvérsias entre
filósofos e historiadores durante muitos decênios (6) .
b) O Espírito Criador.
O pensamento do filósofo francês H. Bergson (7) anda em
muitos pontos paralelo ao cie Dilthey, mas é-lhe superior por não
sucumbir ao ceticismo, pela envergadura da sua capacidade sin-
tética e pelo poder da sua penetração metafísica. Para Bergson, é
fundamental a distinção entre o tempo físico e la durée (§ 13), a
que corresponde, no plano epistemológico, a distinção entre a in-
teligência e a intuição. O tempo físico é longueur, composta de
fragmentos homogêneos, uma representação espacial, uma justa-
posição descontínua de momentos quantitativos, um conceito abs-
trato que se refere ao reino estático da extensão ou da natureza
inanimada, onde existe um determinismo mecânico; "a duração" é
essencialmente heterogeneidade, um contínuo vital, uma engrena-
gem íntima de situações qualitativas, não simultâneas mas sucessi-
vas que se compenetram mütuamente; ela se refere ao reino dinâ-
mico da vida, que é perpétua mudança e constante renovação em
liberdade: a evolução criadora (7a). O espaço é o objeto próprio da
(5a) . — O próprio autor, quando completava setenta anos, viu-se obrigado a fazer
esta confissão (in Werke, V, pág. 9): "Tudo flui, nada permanece. Mas de
que modo conseguiremos vencer a anarquia das convicções que ameaça sobre-
vir-nos?" (em alemão: Alies fliesst, nichts bleibt. Wo sind die Mittel, die
Anarchie der überzeugungen, die hereinzubrechen droht, zu überwinden?).
(6) . — Entre os continuadores e os impugnadores do pensamento de W. Dilthey men-
cionamos aqui: Georg Simmel (1858-1918), Rudolf Eucken (1846-1926),
e Ernst Troeltsch (1865-1923) . — Assinalamos ainda três livros de fácil
acesso para leitores brasileiros: George Simmel, Problemas de Filosofia de la
Historia, Buenos Aires, Editorial Nova, 1950 (original alemão), Erich Ro-
thacker, Filosofia de la Historia, Madri, Pegaso, 1951 (original alemão), e
Enrico de Michelis, El Problema de las Ciencias Históricas, Buenos Aires,
Editorial Nova, 1948 (original italiano) .
(7). — Henri Bergson (1859-1941), professor no Collège de France, escreveu entre
outras obras: Matière et Mémoire (1896); Le Rire (1900); L'Évolution
Créatrice (1907); Les deux Sources de la Morde et de la Religion (1922) .
(7a) — Diz Henri Gouhier (in L'Histoire et se Philosophie, Paris, Vrin, 19524 págs.
75-76): La création, lisons-nous dans "L'Évolution Créatrice", n'est pas un
mystère: nous l'expérimentons en nous dès que nous agissons librement. —
De la première à la dernière ligne, le bergsonisme est le commentaire de ce
voeu: dépouiller de tout mystère l'idée de création en la faisant s' óv.-.notür
comme Fidée pour ne laisser subsister que l'évidence d'une expérience. Par
suíte, l'invention, comme l'intuition, est irréductible aux concepts et déborde
toute formule. II ne s'agit dons pas de l'expliquer: elle marque le point
d'oà part l'explication précisément parte qu'elle est le point oà s'arrête l'ex-
plication. Elle est dons mystérieuse pour l'intelligence qui explique: elle
l'est peut-être moine si nous la rapportons à Pexpérience que chacun de nous
peut avoir de ses modestas création.
— 153 —

inteligência, fornecendo-lhe as categorias das ciências que não podem_


deixar de deformar a realidade sempre fluída por se servirem de
conceitos abstratos e de relações constantes, mas essa deformação,
além de ser inevitável, pode prestar-nos serviços muito úteis na or-
ganização prática da nossa vida . Pela intuição penetramos no âma-
go da realidade sempre em movimento, "vivemos" o perpétuo fieri,
ou melhor, a contínua criação da realidade, e contemplamos o re-
vezamento espontâneo e imprevisível das sucessivas situações da
vida. Não interpretemos mal essas palavras: Bergson não menos-•
caba nem o intelecto nem a inteligência; não equipara a intuição
ao sentimento e muito menos ainda ao instinto; não acredita numa
oposição intransponível entre a inteligência e a intuição. A intui-
ção precisa ser estimulada pela inteligência; sem esta, não poderia
funcionar bem aquela: la collaboration épistémologique des deux-
facultes est fondée sur leur union réelle ou ontologique En effet,
entre l'intelligence et l'intuition il n'y a pas de distinction d'esserice
ou de nature, mais seulement de fonction. L'intuition est l'esprit-
même; l'intelligence s'y est découpée par un processus imitateur de
celui qui a engendre la matière (8) . Pois o Espírito é a fonte e a
origem de todo o Ser, da vida bem como da matéria: o núcleo mais.
íntimo também da matéria inerte é a Vida, embora não diretamente-
acessível à nossa intuição vital. A vida da matéria nós a compre-
endemos, de modo analógico, como resistência à nossa esfera vital,,
resistência que deve ser sobrepujada para ser subordinada à expansão
da nossa vida. Todos os sêres, inclusive a matéria "inanimada", pos-
suem l'élan vital, percebido conscientemente no homem, mas en-
fraquecido e, por assim dizer, paralisado na matéria inerte. Não -
faltou quem interpretasse a filosofia de Bergson em sentido •
panteísta; êle mesmo descobriu, durante sua longa carreira filosó-
fica, o caminho ao Deus pessoal, livre Criador do Universo. No fim.
da sua vida, sentia-se cada vez mais atraído pelo Catolicismo e te-
ria entrado na. Igreja, se não tivesse considerado sua conversão pú-
blica como traição à causa judia (Bergson era judeu): em meio às..
ondas de anti-semitismo que inundavam a Europa, o pensador que-
ria ficar solidário com os seus compatriotas perseguidos (9) .
. — L. van Acker, Structure épistémologique et Méthodologie de la Métaphysique
Bergsonienne, in Revista da Universidade Católica de São Paulo, X 18-19,
pág. 126.
. — Na França, a influência do positivismo sôbre a historiografia foi muito mais
duradoura do que na Alemanha e na Itália; o manual preponderante foi, du-
rante muitos anos, o livro de Ch.-V. Langlois et Ch. Seignobos, Introduction
aux Etudes Historiques (1898), traduzido para o português por Laerte de.
Almeida Morais, São Paulo, 1946; cf. também o livro de Henri Sée com o
título significativo: Science et Philosophie de l'Histoire, Paris, Alcan, 1933.._
— A influência da filosofia bergsoniana (como também da escola alemã)
é manifesta nas obras de Raymond Aron, expoente máximo da moderna "filo-
sofia da história" na França: La Philosophie Critique de l'Histoire, Paris,
Vrin, 1950 2; Introduction à Ia Philosophie de l'Histoire, Paris, Gallimard,
1948".
— 154 —

c) O Pan-historismo.
O filósofo italiano B. Croce (10) é autor brilhante, a casar
um espírito ágil e vivo a uma cultura extraordinária; menos pro-
fundo do que Bergson, exerceu grande influência, também fora da
sua pátria, sobretudo com as suas teorias estéticas. Renovador bem
latino da filosofia hegeliana (o "neo-idealismo"), mostra-se, em as-
suntos históricos, também adepto de Vico ("o homem possui co-
nhecimento perfeito só daquilo que faz", cf. § 83 I). Para Croce,
— pelo menos, em certa fase da sua carreira filosófica, — tôda a
realidade é histórica, e o único verdadeiro saber humano é o co-
nhecimento histórico; a filosofia é só um dos elementos constituti-
vos do conhecimento histórico, sendo o elemento universal de um
pensamento cuja concreta existência é individual. Tôda a realida-
de é histórica, também a natureza: os fatos físicos, enquanto são
acontecimentos singulares e concretos, fazem parte da história, e
neste sentido poderíamos dizer que a natureza é uma realidade.
Mas a natureza, enquanto concebida como um sistema de leis abs-
tratas e gerais, — construções arbitrárias, mas de grande valor prá-
tico, — não possui realidade, pois as leis físicas lidam com "pseudo-
conceitos", por fazerem abstração da existência concreta e da indi-
vidualidade dos fatos particulares, os únicos que, na realidade, ocor-
rem. Os conceitos elaborados pela filosofia são, porém, universais
e necessários ("conceitos puros"), mas, como tais, não passam de
simples funções do pensamento que se certifica de si mesmo: atua-
lizam-se num contacto imediato com os fatos concretos da reali-
dade, levando o pensamento a adequar-se perfeitamente ao real.
As representações da história, ao contrário das do mundo das artes,
não são puras intuições, visto que ocasionam juízos que implicam a
existência objetiva do seu conteúdo: os elementos intuitivos (o su-
jeito) de tais juízos estão fundamente impregnados de "conceitos
puros" (o predicado). O conhecimento histórico possui, portanto, o
caráter concreto da intuição artística e a universalidade do conhe-
cimento filosófico; o fato histórico possui a verdade universal, ou
melhor, identifica-se com ela, sendo a encarnação particular do uni-
versal. Eis as linhas essenciais do storicismo assoluto de Croce.
Para êle, não há pensamento que se eleve acima do fluir do tempo:
coincidem o fato e a verdade, o ato e o valor, o pensamento hu-
mano e o pensamento divino; as experiências concretas do espírito
humano constituem a única realidade, sem que haja, como Hegel
admitia, uma síntese absoluta. Também Croce frisa a necessidade
de "reviver" o passado humano, ou melhor: as experiências concre-

(10). — Benedetto Croce (1866-1952) escreveu entre outras obras: La Storia rldotta
sotto concetto generale dell'Arte (1893); Logica (1905); Teoria e Storia
dela Storiografia (1917) •
— 155 —

tas do espírito humano no passado. A história, não vivificada e ani-


mada pela viva intuição de quem a relata, não merece, aos seus
olhos, o nome de "história", mas é apenas "crônica". E o "cronis-
ta" trata seu assunto como se fôsse um objeto "científico", aviltan-
do-o à condição da natureza abstrata e irreal. Daí as invectivas
de Croce contra a "historiografia filológica" (11) .

II. O Mistério da História.

Ao passo que os racionalistas do século XIX tentavam deci-


frar o enigma da história, considerando-lhe a solução integral co-
mo virtualmente possível, os pensadores do século XX são, em ge-
ral, mais modestos e falam preferivelmente no "mistério" da histó-
ria. Tal atitude não os impede de procurar o significado humano
do processo histórico ou de tentar sínteses superiores, mas man-
tém neles vivo o mêdo salutar a generalizações precipitadas e a
profecias apodícticas. Fora do grupo cada vez mais reduzido dos
positivistas, fora do partido dos comunistas ortodoxos, são poucos
os que, hoje em dia, se atrevem a vaticinar o futuro: quase todos
se limitam a analisar as tendências da atualidade, vendo nelas me-
ras possibilidades para a evolução ulterior e apreciando-as como
ambivalentes. A filosofia da história, tal como era praticada no sé-
culo passado, — doutrinária e clarividente, — perdeu o seu cré-
dito, mas nem por isso é menos intensa a reflexão sôbre a história.
Muitas circunstâncias estão contribuindo para o homem moderno,
— principalmente, o ocidental, — tomar consciência da sua situa-
ção histórica . Talvez possam elas ser resumidas nestes itens: a
necessidade de se travar um diálogo com os marxistas; a revolução
radical efetuada pelo surto da técnica moderna; a reabilitação da
"teologia bíblica" (12) entre os cristãos; o fato da unificação do
mundo e, conseguintemente, o confrônto da cultura ocidental com

— Fora da Itália, onde Croce exerceu grande influência (principalmente com a


sua estética), devemos mencionar, na Inglaterra, R. G. Collingwood (cf. nota
4), mie adotou várias opiniões do filósofo italiano. Também o pensamento
do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), apesar de ser mais
sútilmente matizado, aproxima-se, em questão de historiografia, da doutrina
de Croce (pelo menos, em certa fase da sua carreira filosófica).
— A "Teologia Bíblica" é têrmo de origem protestante, pois a Reforma re-
jeita a tradição como fonte de revelação e apóia-se únicamente na Bíblia.
Nos últimos decênios, a palavra tem sido aplicada também pelos teólogos
católicos para indicar uma disciplina auxiliar da teologia dogmática, que tem
por objeto expor sistemàticathente a Revelação do Antigo e do Novo Testa-
mento, e indagar a origem das idéias religiosas da Bíblia; é evidente que,
também para católicos, a Bíblia deve ser "a alma da teologia", cL Leo Papa
XIII, in Encyclica Providentissimus (1893): Illud aviem maxime optabile
est et necesaarium, ut ejusdem Divinae Scripturae usus in universam theolo-
giae influat disciplinam ejusque prope sit anima: ita nimirum omni aetate
Patres atque praeclarissimi quique theologi professi sunt et re praestite-
runt. — Cf. Sanctus Thomas, Summer Theologica, I q. 1, a. 5, ad 2-um: Non
enim (teologia) accipit sua principia ab alfis scientüs, sed immediate a Deo
per revelaticmem.
-- 156 —

as outras civilizações que existem no globo. Alguns dêstes pontos


precisam ser examinados de mais perto .
a) A Bíblia e a História (12a) .
2) Entre os protestantes podemos verificar uma sadia rea-
ção ao procedimento racionalista das gerações anteriores que con-
sistia em privar sistemàticamente a Revelação cristã do seu cará-
ter histórico: uma teologia "científica" e uma historiografia libe-
ral (13) conspiravam antigamente para "desmitologizar" (alemão:
entmythologisieren) a Bíblia, tentativa essa de que também mui-
tos católicos não conseguiam ficar completamente isentos. E' um
escândalo para a razão fundar a religião absoluta nos fatos con-
tingentes da história; por isso os racionalistas paliavam os fatos
da história sagrada, transformando-os em símbolos de uma verda-
de "a-histórica". Ora, muitos protestantes modernos têm a cora-
gem de proclamar novamente o "escândalo da fé", tornando a fa-
lar na história da salvação. "Eternidade e Tempo" são temas fre-
qüentemente abordados pelos teólogos protestantes contemporâneos.
O escopo do presente livro não nos permite entrarmos neste assunto;
aliás, já existe um livro em português consagrado ao estudo destas
questões (14). Mencionamos aqui apenas alguns livros fundamentais:
Faith and History de Reinhold Niebuhr (1949); Christus and die
Zeit (trad. franc. Christ et le Temps) de Otto Cullmann (1948);
Christianity and History de Herbert Butterfield (1949); Kirchliche
Dcgmatik (= "Dogmática Eclesiástica") de Karl Barth (desde 1932;
cf. § 110 V, nota 128) . Artigos instrutivos e facilmente acessíveis
são entre muitos outros: La Conception chrétienne du Temps (15)
de Emil Brunner, e L'Histoire Universelle et l'Événement du Salut
(16) de Karl L6with. O teólogo alemão Rudolf Bultmann, influen-
ciado pela filosofia existencialista de Martin Heidegger e autor de
vários estudos teológicos (por exemplo, Jesus), propugna, nos dias
de hoje, a "d&rnitologização" da Bíblia, embora em sentido bem di-
ferente da escola liberal.

(12a) — Sôbre a influência da Bíblia nas filosofas da história do mundo ocidental,


cf. Karl Liiwith, Meaning in History, The Theological Implications of The
Philosophy of History, The University of Chicago Press, 1949.
. — O exemplo rna:s conhecido é o célebre historiador alemão Adolf Von Har-
nack (1851-1930), professor na Universidade de Berlim (desde 1888) e fa-
vorito do Imperador Guilherme II. Hamack escreveu, entre muitas outras
obras: Dogmengeschichte (= "A História do Dogma"), em que condena o
conceito e a estrutura do dogma na Igreja primitiva como um produto do
gênio helênico, e Wesen des Christentums "A Essência do Cristianismo",
1900), em que reduz 'o Evangelho de Jesus à pregação da paternidade de
Deus e ao valor infinito da alma.
. -- Otto A. Piper, A Intarpretcção Cristã dá História, in "Coleção da Revista
de História", n.o IX, Sa ,) Paulo, 1957.
— In Dieu Vivant, XIV, pág.- . 15-30.
— Ibidem, XVIII, págs. 57-77.
— 157 —

(3) Se fazemos abstração de numerosos matizes individuais


existentes entre as diversas teorias desenvolvidas pelos teólogos ca-
tólicos, podemos dizer que aqui existem duas correntes: a corrente
"escatológica" e a corrente "encarnacionista". Segundo aquela, a his-
tória profana possui pouco ou nenhum valor autônomo perante Deus,
visto que êste mundo, desde a plenitude c19 Revelação em Cristo,
representa uma "situação perimida", da qual o Cristianismo se serve
como de uma coisa completamente exterior (16a); segundo o "en-
carnacionismo", êste mundo histórico, sendo um dos elementos cons-
titutivos da definitiva ordem cristã ("o novo céu e a nova terra"),
é um prelúdio, ou então, uma prefiguração da vindoura glória. Se a
atitude escatológica, levada ao extremo, subestima a importância
da Encarnação para a história, tendendo a uma concepção "angéli-
ca" do homem incompatível com a doutrina bíblica (criação da ma-
téria por Deus, a Encarnação do Verbo Divino, a ressurreição dos
mortos), o perigo do Encarnacionismo extremo reside em diluir um
mistério da fé (a transfiguração do mundo) numa especulação gnós-
tica e num falso misticismo terrestre. Entre êsses dois polos se mo-
ve o pensamento católico, tentando evitar posições extremistas, mas
não podendo deixar de propender para um dos dois polos, cuja per-
feita reconciliação não é dada ao homem enquanto vive no tempo
anterior à plena manifestação da glória de Deus. Também aqui de-
vemos contentar-nos em assinalar alguns estudos fundamentais:
Theologie der Geschichte (trad. franc. La Théologie de l'Histoire)
de H. Urs von Balthasar (1950); Le Mystère de l'Histoire de Jean
Daniélou, S. J. (1953); Théologie des Réalités Terrestres, MI de
G. Thils (1949); Uber das Ende der Zeit (trad. franc. La Fin des
Temps) de Joseph Pieper (1950); Der Christ und die Geschichte
(trad. esp. El Cristiano y el Tiempo) de Theodor Haecker (1935);
Gott und die Geschichte (= "Deus e a História") de Karl Thieme
(1948), etc. Registramos ainda um ensaio de H. Rahner, S. J.: La
Théologie Catholique de l'Histoire (in Dieu Vivant, X págs. 91-116)
e outro de E. Mounier: Le Cristianisme et la Notion de Progrès (17).
b) "A Segunda Natureza" (18) .
(16a) . — Cf. Sanctus Augustinus, Sermo 362, 7: Architectus aedificat per machinas
transituras domum mansuram. Nam in isto tom magno et amplo, quod vide-
mus, aedificio, cum instrueretur, machinae fuerunt, quae hia modo non sunt,
guia quod per eas aedificabatur, jam perfectum stat. Sic ergo, freires, aedi-
licabatur aliquid in fide christiana, et perfecta sunt quaedam machinamenta
temporalia.
(17). — In La Petite Peur du XXe Siècle, Paris, Editions du Seuil, 1948, págs.
95-152.
(18) . — A expressão é de Cícero (De Nat. Deor. II 60, 152: nostris denique manibus
in rerum natura quasi alteram naturam efficere conarnur) e foi adotada por
F. Dessauer, Philosophie der Technik, cf. § 95 V, nota 141, onde o leitor en-
contrará alguns livros modernos consagrados ao problema da técnica. Acres-
centamos ainda êstes dois estudos: Alfred Frisch, Une Réponse au Défi de
l'Histoire, Paris, Desclée De Brouwer, 1954, e E. Mounier, La Machine en
Accusation, in La Petite Peur (cf. nota 17)1, págs. 41-93.
— 158 —

O trabalho manual era pouco estimado na Antigüidade clás-


sica (19), e também a Idade Média, apesar de lhe conferir valor as-
cético e ético, considerava o trabalho preponderantemente como um
castigo de Deus (20): "comerás o pão com o suor do teu rosto"
(Gên., III 19) . Os tempos modernos são muito mais positivos na
apreciação do trabalho, chegando a elaborar uma verdadeira mística
do trabalho. Neste ponto concordam o "americanismo" e o marxis-
mo, que ambos esperam do trabalho inteligente uma espécie de sal-
vação do homem terrestre pelo homem. Sem dúvida, essa crença
tipicamente moderna foi fomentada pelo grande surto da técnica mo-
derna, mas esta, por sua vez, tem inegàvelmente suas raízes histó-
ricas na religião bíblica que, durante muitos séculos, nutriu o mundo
ocidental. A tese é ilustrada pelo simples fato de só o Ocidente ter
desenvolvido uma tecnologia no sentido próprio da palavra. Já na
primeira página do livro Gênesis (I 28) lemos as palavras signi-
ficativas: "Enchei a terra e sujeitai-a!", o que exclui a idéia de um
certame prometeico entre a Divindade e o homem (21); além disso,
o Cristianismo, frisando a transcendência de Deus, "naturalizou" a na-
tureza, tirando-lhe o falso prestígio de um ente divino (22) . Muitos
autores responsabilizam o Protestantismo pela avaliação positiva do
trabalho nos tempos modernos; embora haja certo exagêro em tal
afirmação exclusivista (cf. § 80 IV), o certo é que o "ethos" pro-
. — O desprêzo dos antigos pelo trabalho manual traduzia-se na palavra grega
bánausos (= "artesão", daí: "homem sem cultura e sem compreensão dos
valores culturais"); mais significativo ainda é o fato de ser, entre os an-
tigos, o trabalho uma palavra negativa, e o lazer (o ideal de um homem li-
vre) uma palavra positiva, cf. em grego scholé (daí a palavra moderna "es-
cola") e em latim otium (= "ócio, lazer"), e ascholía e neg-otium (=
"ocupação, trabalho, etc."); piger (= "preguiçoso, ocioso") e impiger (=
"aplicado, trabalhador") . — Cf. § 95, V, nota 13. — Naturalmente houve
na Antigüidade também louvadores do trabalho, por exemplo Hesíodo na
Grécia, e Epicteto, filósofo estóico (século ri d. C.) .
. — O trabalho era apreciado como meio de ascese (entre os monges; Santo
Agostinho escreveu um opúsculo De Opere Monachorum) e por motivos éti-
cos (cf. Sanctus Thomas, Summa Theologica, IIa IIae, q. 187, a. 2 et 3
in corpore); a partir do século XIII, com o advento da burguesia, uma
apreciação mais positiva começa a ganhar terreno.
. — Cf. § 73 irb. O poeta romano Horácio (Carmina, I 3, 21-28 e 37-40) in-
terpretou, de maneira clássica, essa superstição prometeica:
Neguiguam deus abscidit
Prudens Oceano dissociabili
Terras, si tamen impiae
Non tangenda rates transiliunt veda.
Audaz omnia perpeti
Gens humana ruit per vetiturn nelas:
Audaz Iapeti genus
Ignem fraude mala gentibus intulit...
IV il mortalibus ardui est:
Caelum ipsum petimus stultitia negue
Per nostrurn patimur scelus
Iracunda Jovem ponere fulmina.
Cf., porém, a Ode ao Homem do poeta Sófocles, in Antigona, 332-383.
. — Cf. § 73 III, e § 123 IVb, nota 251.
— 159 —

testante não pouco contribuiu para a mística do trabalho no mundo


hodierno (23) .
c) O Ecumenicismo moderno.
O espírito dinâmico e progressista do Ocidente descobriu e
patenteou o mundo: a Europa, devido à superioridade da sua téc-
nica e' da sua economia, dominou durante alguns séculos o globo
inteiro (cf. § 95 III), domínio êsse que parecia às gerações ante-
riores uma coisa natural e duradoura. Dizia Hegel no início do
século passado: "O mundo foi circunavegado pelos europeus, e cons-
titui hoje um círculo fechado para êles. O que ainda não chegaram
a dominar, ou não vale a pena, ou então está destinado a ser domi-
nado por êles" (24) . No leitor contemporâneo essas palavras pro-
vocam um sorriso irônico ou compassivo: terminou a época da Eu-
ropa, insurgiram-se os povos coloniais da Ásia e da África contra
seus antigos senhores, e muitos falam, desde a Primeira Guerra Mun-
dial, com Spengler, "no declínio do Ocidente" ou, com Massis, "na
defesa do Ocidente" (25) . Não faltam à época contemporânea as
cassandras que prevêem desastres catastróficos para a nossa tão
elogiada cultura ocidental, inclusive para os continentes america-
nos; outros, mais sensatos, frisam a conveniência de uma aproxima-
ção espiritual dos dois mundos, a conter em si a possibilidade de
um enorme enriquecimento do patrimônio cultural de todos os po-
vos do globo. Um novo "ecumenicismo" (cf. § 22) que, desta vez,
não se limita a certos continentes, mas abarca a humanidade in-
teira, está-se apoderando dos nossos contemporâneos: a unificação
do mundo não lhes parece um processo fatal, e muito menos ain-
da, uma evolução calamitosa, e sim uma tarefa sumamente histó-
rica, confiada aos cuidados e à responsabilidade do homem do sé-

. — Cf. J. Milton, Paradise Lost, XII 581-82, e 584-86:


. only add
Deeds to thy knowledge answerable' .
• then wilt thou not be loath
To leave th is Paradise, but shalt possess
A Paradise within thee, happier far. .
. — Hegel, Werke, Bd. XI, pág. 417: Dia Welt ist umschifft und für die Eu-
roprier eM Rundes. Was noch nicht von ihnen beherrscht wird, ist entweder
nicht der Mühe wert oder noch bestimmt, beherrscht zu werden. Mas o his-
toriador francês Alexis de Toqueville escrevia em 1835 estas palavras pro-
féticas: ll y a aujourd'hui sur la terre deux grandes peuples qui, partis de
points différents, semblent s'avancer vers le même but: ce sont les Russes et
les Anglo-Arreéricains. Tandis que les regards des hommes étaient occupés
ailleurs, ils se sont placés tout à coup au premier rang des nations, et le
monde a appris presque en même tenlps ieur nsissance et leur grandeur. . .
Leur point de départ est différent, leurs voies sont diversas; néanmoins, cha-
cun d'eux semble appelé par un desseM secret de la Providente à tenir un
jour dans ses mains les destinées de la moitié du monde (in De la Dérno-
crede en Amérique, nova edição publicada em Paris, 1951, Librairie de Mé-
dicis, I págs. 623-624) .
. — Cf. Henri Massis, Défense de l'Occident, Paris, Plon, 1927; o livro, acom-
panhado de outros ensaios do mesmo autor, foi reeditado (1956) sob o tí-
tulo de: L'Occident et son Destin, Paris, Grasset.
— 160 —

'culo XX, de cuja orientação espiritual dependerá se esta evolução


histórica ficará com um significado plenamente humano ou não.
Mencionamos aqui, fora dos trabalhos de Toynbee e Jaspers que
serão estudados nos parágrafos seguintes, o livro de René Grous-
set: Bilan de l'Histoire (1946), o de J. Laloup e J. Nélis: Culture
et Civilisation (1955), e last but not least, o livro simpático e com-
preensivo de Denis de Rougemont: L'Aventure Occidentale de
l'Homme (1957) . Os intelectuais católicos da França consagra-
ram (em 1955) uma semana de estudos a êste assunto, cujo rela-
tório interessante se lê no livro: L'Église et les Civilisations (1956).
§ 126. O Declínio do Ocidente.
Escrevia Paul Valéry, no segundo decênio dêste século: Nous
nutres, civilisations, nous savons maintenant que nous sommes mor-
telles. Nous avions entendu parler de mondes disparus tout en-
tiers, d'empires coulés à pic aves tous leurs.1 hommes et tous leurs
engins. . . Nous savions bien que toute la terre apparente est falte
de cendres, que le cendre signifie quelque chose. Nous apercevions
à travers l'épaisseur de l'histoire les fantômes d'immenses navires
qui furent chargés de richesse et d'esprit. Nous ne pouvions pas
les compter. Mais ces naufrages, après tout, n'était pas notre afiai-
.re Elam, Ninive, Babylone étaient de beaux noms vagues, et la
ruine totale de ces mondes avait aussi peu de signification que leur
existence même. Mais France, Angleterre, Russie ce Seraierzt
aussi de beaux noms. Lusitania aussi est un beau nom... Nous
sentons qu'une civilisation a la même fragilité qu'une vie (26) . O
homem ocidental teve a mesma experiência "existencial" de Ivan
Illitch, numa das novelas de Tolstoi (cf. § 121 Ha, nota 175): êste
Ivan vivera muitos anos, sabendo que "Caio", — o homem abstrato,
— é mortal, sem achar nada de espantoso nesta regra geral; só quan-
do se achava gravemente doente, ficou compenetrado da verdade
de que esta regra se aplicava também a êle pessoalmente. As gera-
ções anteriores à primeira guerra mundial viviam, — como nos apa-
rece, atualmente, — num mundo ilusório e pouco ligavam para os
gritos de alarme que soltavam uns poucos solitárioS (27); a primei-
ra guerra mundial, que derrotou também os vencedores (pelo me-
nos, na Europa), fêz com que o homem moderno escutasse as admoes-
tações dos seus profetas. Entre êles se destacava a figura de Os-
wald Spengler (1880-1936), autor do célebre livro: Der Untergang

(26) . — Paul Valéry, La Crise de I'Esprit, in Variété 1, Paris, Gallimard, 1924, págs.
11-12.
,(27) . — Por exemplo, Nietzsche, Kierkegaard e Dostoïévski. — H. J. Schoeps,
Vorlãufer Spendlers, Leiden-K.51n, 1953, chama também a atenção para dois
outros "precursores" de Spengler: Karl Vollgraff (1792-1863) e Peter Emst
Von Lasaulx (1815-1861), mas o têrmo "precursor" nos parece pouco con-
vincente.
— 161 —

des Abendlandes, MI (28), obra que pretendemos analisar, pelo


menos, nas linhas mestras, neste parágrafo.
I. Uma Revolução Copernicana.
Spengler vê no seu livro uma tentativa absolutamente nova
de predeterminar a marcha da história. Segundo o nosso autor, há
duas necessidades que regem o total da realidade, uma radicalmen-
te oposta à outra: a necessidade mecânica que se refere à nature-
za, enquanto estática, ou ao factum, e a necessidade orgânica que
se refere à vida e à história sempre dinâmica, ou ao fieri. Aquela
é a lógica do espaço, da extensão, e se traduzirá numa "morfologia
sistemática", a servir-se de conceitos abstratos e de números, do
raciocínio discursivo e do princípio da causalidade; esta é a lógica
do tempo, da direção ou da "irreversibilidade", e se refletirá numa
morfologia "fisiognômica", a servir-se de símbolos e de imagens.
O livro da natureza inerte está escrito, de acôrdo com a célebre ex-
pressão de Galileu, em linguagem matemática, mas o livro da his-
tória está por escrever ainda: a morfologia fisiognômica de Spen-
gler nos possibilitará a decifração do mundo histórico.
A história não é governada por leis mecânicas, como queriam
os "materialistas", nem por causas finalistas, como queriam os pro-
videncialistas e seus sucessores, os progressistas (28a), mas obede-
ce à necessidade orgânica do Destino (alemão: Schicksal), o qual
é inacessível a um conhecimento racional. Não o compreendemos,
só podemos "entendê-lo" (alemão: verstehen) mediante uma co-
experiência íntima e vital do movimento interno do mundo histó-
rico. O Destino não é suscetível de uma definição, nem sequer de
uma descrição minuciosa; não o podemos "explicar" ou "compre-
ender", -- tal tentativa seria igual a paralisar aquilo que é essen-

(28). — A obra foi concebida em 1912, e o primeiro volume de "O Declínio do Oci-
dente" saiu em 1918, tendo sido red'gido numa época em que o autor ainda
tinha muita esperança na vitória das armas alemãs; a tese do livro não
foi, portanto, inspirada ao autor pela derrota da Alemanha, mas a reper-
cussão enorme da obra, não só na Alemanha como também nos outros países
ocidentais, explica-se pelo estado geral de mal-estar que se seguia à primeira
guerra mundial. — Nós nos servimos da 76a.-81a. edição alemã (München,
Becker, 1950). — Além disso, publicou Spengler a brochura: Preussentum
und Sozialismus (1919), e o livro: Jaime der Entscheidung (= "Anos Decisi-
vos", 1933). Os ensaios do autor como também sua tese acadêmica (consa-
grada a Herácrito) foram editados em 1937 sob o título de Reden und
Aufsütze (= "Discursos e Ensaios").
(28a). — Segundo Spengler (Untergang, I pág. 27), a humanidade não possui ne-
nhuma finalidade e nenhum significado: Die Menschheit ist ein zoologischer
Begriff oder eM leeres Wort (m "a humanidade é um conceito zoológico ou
uma palavra ôca"); o pseudo-conceito de teleologia dentro das ciências é a
inversão mecanicista do princípio da causalidade, sendo uma caricatura da
idéia do Schicksal (ibidem, I pág. 156). — Quanto à negação do significado
da palavra "humanidade", cf. a opinião do filósofo russo Danilevski (§ 120
IV); quanto à negação da "teleologia" histórica, Spengler não consegue ne-
gá-la aos organismos culturais, dizendo que cada um dêles "cumpre o seu
destino" e "realiza uma idéia intrínseca" Há, portanto, segundo êle, um
finalismo parcial, mas não existe um finalismo universal.

Revista de História n. 0 35
— 162 —

cialmente movimento, — só podemos sentí-lo com uma certeza


profundamente interior, deixando-nos arrastar pelo caudal impe-
tuoso dos acontecimentos; só podemos atingi-10 mediante uma cer-
ta intuição instintiva; só podemos vivê-lo, descendo ao fundo mis-
terioso da nossa existência. "O fieri pode ser apenas vivido e sen-
tido num profundo entendimento mudo" (29). A morfologia fisio-
gnômica, que não se difunde pela "extensão" e sim penetra na pro-
fundidade das coisas, que não é cálculo racional e sim visão vital
do mundo vindouro, será a última filosofia capaz de brotar do solo
exausto da nossa cultura ocidental.
O autor apresenta sua visão como uma filosofia genuinamente
alemã: com orgulho, declara-se tributário de Goethe (30) e de
Nietzsche; a êste deve a maneira de pôr os problemas, àquele o mé-
todo. Spengler não esconde seu entusiasmo por seus próprios in-
ventos: às vêzes se extasia ante êles de modo a perder todo o sen-
RO crítico. Também tende a atribuir demasiada importância à sua
originalidade: entre seus pais intelectuais esquece mencionar Her-
der (cf. § 92), Dilthey (cf. § 125 Ia, "a estrutura individual das
totalidades culturais" e "a singularidade das diversas tipologias
históricas"), Bergson (31) e outros (32).
II. Que é uma Cultura?
Em certo momento nasce, em certa paisagem — não pode-
mos dizer por que, nem podemos prever quando, — uma "cultura",
isto é: destaca-se da Psique primitiva que lhe constitui eternamen-
te um substrato misterioso e informe, uma "alma coletiva" (33),
destinada a dar forma determinada a um organismo vivo que é uma
"cultura". Culturas são plantas efêmeras: desabrocham, crescem
e frutificam para, depois, perder fatalmente seu viço e sua frescura:
aí murcham e morrem. Nenhuma providência individual ou coleti-

— Ibidem, I pág. 75: Ein Werden kann nur erlebt, mit tiefen wortlosen Ver-
stehen gefühlt werden; cf. I pág. 152.
Ibidem, I pág. IX e pág. 65, nota 1, onde Spengler cita as palavras de
Goethe (cf. Gespriáche mit Eckermann, 13-2-1829): "A Divindade atua só
em coisas vivas, não em coisas mortas; só no fieri, não no facturo", etc. Em
alemão: Die Gottheit eber ist wirksam im Lebendigen, aber nicht im Toten;
sie ist im Werdenden und sich Verwandelnden, aber nicht in Gewordenen und
Erstarrten. Deshalb hat auch die Vernunft in ihrer Tendenz zum Giáttlichen
es nur mit dem Werdenden, Lebendigen zu tun, der Verstand mit dem
Gewordenen, Erstarrten, dass er es nutze. — Cf. § 114 Ia.
— Spengler bergsoniano?! Risum teneatis, amici! A antítese spengleriana (tem-
po-natureza; vida-extensão) é urna caricatura inapta e inepta da doutrina
do filósofo francês; Spengler nunca faz menção nem de Bergson, nem de
Dilthey; menciona, sim, Leibniz (monadologia!), em que venera um pre-
cursor de Goethe.
— Cf. A. Messer, Oswald Spengler ais Philosoph, Stuttgart, Strecker 13s Schra-
der, 1922; A. Fauconnet, Oswald Spengler, Paris, Alcan, 1925; J. G. de
Seus, O Futuro do Ocidente, Livraria Clássica Bra sileira, Rio de Janeiro,
s. d., págs. 25-52.
— Quanto às contradições internas e à falta de clareza no que diz respeito
ao nascimento de uma "alma coletiva", cf. A. Messer, op. cit., págs. 44-49.
— 163 —

va poderia suster ou retardar êsse processo vital. Morre uma cul-


tura quando sua alma realizou a soma total das suas possibilida-
des religiosas, políticas, científicas e artísticas: chegada a êsse pon-
to, regressa ao sono da Psique primitiva da qual se originou. A
vida de uma cultura é uma luta renhida da sua alma contra as
fôrças caóticas de fora e de dentro: contra o mundo exterior que
lhe é sempre rebelde, e contra o mundo interior por êste se obsti-
nar no seu estado de inconsciência. Só as "culturas" pertencem à
história própriamente dita: sem história são os povos que vivem
fora do organismo cultural, bem como os que já esgotaram suas
possibilidades culturais, transformando-se em "felás" (alemão: Fel-
lachentum) .
A tal organismo se aplicam perfeitamente bem as categorias
de "infância, juventude, maturidade e velhice", ou as de "primave-
ra, verão, outono e inverno" e, cada cultura percorre, fatalmente,
sucessivamente essas quatro fases. A "velhice" ou ao "inverno" já
não compete a palavra "cultura", e sim o têrmo "civilização" (34).
Terminada a "civilização", o organismo morre, e os indivíduos que
o constituiam passam para o Fellachentum. A vida de um orga-
nismo cultural tem a duração ideal de mais ou menos mil anos.
Tôdas as realizações artísticas e políticas, tôdas as crenças re-
ligiosas, tôdas as descobertas científicas de uma dada cultura não
passam de expressões ou símbolos da sua alma coletiva (35), per-
ceptíveis apenas para quem possui o "tato fisiognômico", essa in-
tuição (ou instinto?) spengleriana que consiste em descobrir a fa-
talidade misteriosa (36) que rege inexoràvelmente os destinos das
diversas culturas. Uma das tarefas mais importantes da morfolo-
gia histórica será apontar e interpretar os símbolos próprios de ca-
da uma das grandes culturas.
III. A Individualidade das diversas culturas.
Spengler conhece oito culturas desenvolvidas: a egípcia (2600-
1600 a. C.), a babilônica (3000 a. C.-2000 a. C.), a índia (1500-500
. — Spengler emprega o têrmo "cultura" em dois sentidos bem diferentes: no
de "organismo cultural" (por exemplo, a cultura egípcia, etc.), e no de
"época vital de um organismo cultural" (em oposição à "civilização") .
. Spengler, Untergang, 1 pág. 136, e II pág. 354. O autor cita as palavras
finais de Faust II (de Goethe): "Tudo o que passa é apenas um símbolo",
em alemão:
Alies Vergiingliches ist nur ein Gleichnis,
Das Unzulãngliche, hier wird's Ereignis;
Das Unbeschreibliche, hier ist's getan,
Das Ewig-Weibliche zieht uns hinan.
. — Segundo Spengler (ibidem, I pág. 314), ninguém entendeu melhor do que
Goethe a fatalidade de uma "forma estruturada que viva se desenvolve",
cf. Orphische Urworte:
So musst du seiny dir kannst du nicht entfliehen.
So sagten schon Sibyllen, so Propheten;
Und keine Zeit und keine Macht zerstückelt
Gepriigte Form, die lebend sich entwickelt.
— 164 —

a. C.), a chinesa (1300-300 a. C.), a americana no México (500-


1500 d. C.), a clássica ou a greco-romana (1000 a. C.-0), a arábica
(0-1000 d. C.), e a ocidental (1000-2000 d. C.) .
Cada uma dessas culturas constitui um organismo hermetica-
mente fechado para tôda e qualquer outra cultura. Os emprésti-
mos entre os diversos organismos culturais são apenas exteriores,
ou melhor, aparências enganadoras. A Renascença européia é fe-
nômeno essencialmente autóctone que, feita abstração de algumas
formas vãs e imitações estéreis, se teria produzido com as mesmas
características, se os homens dos séculos XV e XVI não tivessem
tido conhecimento algum da Antigüidade clássica; o tomismo me-
dieval teria nascido também sem Aristóteles, e Plotino teria es-
crito as suas obras, mesmo que nada soubesse de Platão. Os dra-
mas de Sófocles, os sistemas de Platão e de Aristóteles, o cesarismo
antigo nos são, no fundo, tão estranhos como os deuses da mitolo-
gia mexicana ou a arquitetura da Índia. Uma cultura é irrepetível
e única; renascimentos são ilusões, e revivificações são impossíveis.
Não podemos expor aqui as características de cada uma das
oito culturas; devemos limitar-nos às três mais conhecidas( aliás, o
próprio Spengler consagra-lhes quase a sua obra inteira): a clás-
sica, a arábica e a ocidental. Depois resumiremos a opinião do au-
tor relativa à Rússia, uma cultura in statu nascendi (37) .
a) A Cultura Antiga .
A cultura antiga é a manifestação da "alma apolínea", que vê
nos corpos ou objetos individuais (grego: sómata), — bem delimi-
tados e concretos, — o tipo ideal da extensão; o homem antigo
concebe o espaço como a justaposição de muitos sómata, e vive
no instante eternizado; a alma apolínea ignora o "espaço indefi-
nido", e a língua grega nem sequer possui palavra para indicar êste
conceito tão familiar à cultura ocidental, mas o indica como "aqui-
lo que não é" (grego: to mé on); sua imagem do mundo não pode-
ria ser outra senão a do kósmos, uma justaposição harmônica de
belas partes.
Símbolos desta cultura são:
2) A geometria euclidiana: o número antigo é "medida", a
lidar com unidades visíveis para os olhos corpóreos; os antigos não

(37). — Também o próprio Spengler presta relativamente pouca atenção (muito me-
nos do que Toynbee) às outras culturas. O símbolo fundamental da culí-
tura egípcia parece-lhe a "pedra" ou o "caminho" (cf. Der Untergang, I págs.
241-245; o autor não consegue exprimir seu pensamento com clareza, cf.
pág. 15), o da cultura chinesa uma "senda através de uma paisagem ame-
na" (cf. ibidem, I pág. 244, e II pág. 350; também aqui a mesma obscuri-
dade). Entendam isso a quem foi dada a decifração dos enigmas spengle-
rianos!
— 165 —

conheciam "números negativos e irracionais" (38), e desconheciam


o zero; a matemática antiga é a doutrina de corpos plásticos e con-
cretos (39); nenhum grego jamais pensou em criar uma geome-
tria "pluridimensional".
(3) A pdlis grega é o ideal do Estado como estátua; o que,
para os antigos, ficava fora do horizonte da sua acrópole, já não
existia, ou melhor, apresentava-se-lhes como algo de alheio ou de
hostil (39a); a idéia de "pátria" era-lhes desconhecida.
y) O nu artístico: a plástica grega é uma arte que renuncia
deliberadamente a representar o espaço, mas visa a representação
do corpo plástico sem invólucro algum (40); a pedra era, para os
gregos, um "caos" ou "uma matéria cósmica", desejosa de revestir-
se de formas, ao passo que Miguel Ângelo tratava o mármore co-
rno um cárcere do qual procurava tirar as suas idéias.
8) A tragédia ática: o destino antigo era "somático" ou ex-
terno, em oposição ao destino moderno (tipo: Shakespeare) que
é "psíquico" ou interno; não há relação interna entre a personali-
dade de Antígona e sua ruína, e sim no drama King Lear; o des-
tino antigo é comum a todos so homens, o moderno é próprio de
um indivíduo; o destino antigo não admite desenvolvimento, não
é "biográfico", mas "anedótico"; o drama clássico é "o belo gesto",
e não movimento intrínseco; aliás, as figuras da mitologia clássica
são mais "tipos" do que "indivíduos".
e) A coluna dórica: é símbolo do "presente puro ou eterni-
zado", sendo totalmente unidade e repouso; há um equilíbrio per-
feito entre as linhas verticais da coluna e as horizontais do ar-
quitravo
4) O caráter estático: o homem antigo era "a-histórico"
não tendo preocupações arqueológicas nem sentindo a necessida
r3e de uma éra; o passado afundava-se, para êle, num fundo mítico
e intemporal; desconheciam os "clássicos" o conceito de evolução, e
consideravam o kósmos como uma ordem estática; viviam no pre-
sente, e. cremavam os seus mortos (41).

— O autor cita o escoliasta de Euclides (ed. Heilberg, V pág. 417), segundo c.


qual o primeiro matemático a ocupar-se com números irracionais pereceu co-
mo náufrago, porque os gregos pensavam que "o inefável e o inimaginável
deviam ficar subtraídas à especulação" (cf. Der Untergang, I pág. 87).
— Segundo Spengler, Diofanto de Alexandria (século III d. C.), o maior (ou,
talvez, o único grande algebrista dos gregos), não pertence à cultura helê-
nica, mas à arábica.
(39a). —As palavras latinas hospes (= "estrangeiro, hóspede") e hostis (= "inimigo da
cidade") têm a mesma raiz.
— Der Untergang, I pág. 332: Jede Hülle hütte noch einen leisen Widerspruch'
gegen die apolliniwhe Erscheinung, eine wenn attch noch so zaghaf te Andeu-
tung des umgebenden Raumes enthalten.
— A cremação dos mortos é regra geral na epopéia homérica, e também aqui
a representação poética não concorda com a realidade histórica, que nos é
— 166 —

n A moeda antiga é corpórea: ser capitalista queria dizer,


)

na Antigüidade: possuir terras, ouro, prata, gado e escravos; a moe-


da antiga é cálculo aritmético, e obedece ao esquema: matéria e
forma; mas, para os modernos, o dinheiro tem essencialmente a "fun-
ção" de criar novas riquezas, e obedece ao esquema: fôrça e mas-
sa; os antigos desconheciam o conceito moderno de "crédito".
b) A Cultura Arábica (42).
A cultura arábica é a expressão da "alma mágica", que é dua-
lista, ascética e fatalista: quer-se livrar do mundo; seu símbolo fun-
damental é o da "caverna mundial" (alemão: Welthõhle), uma ima-
gem difícil de esclarecer em conceitos ocidentais. Basta dizer que
a alma mágica vê o mundo como o terreno onde se combatem dois
princípios eternamente opostos: o Bem e o Mal, a Luz e as Tre-
vas, Deus e Satanás. O homem desta cultura sente-se dilacerado
por fôrças antinômicas, e considera o "somatismo" dos gregos como
pecado. Esta cultura incorporou-se, por volta do início da éra cris-
tã, na Síria e no Egito para, depois, se desenvolver em Bizâncio e
no Maometanismo.
Seus símbolos são a álgebra (invenção do número indetermi-
nado); o dualismo entre a psique e o pneuma (aquela é princípio
do mal, êste é princípio do bem); o gnosticismo (cf. § 118 III);
'a comunidade "pneumática" (o homem mágico sente-se uma par-
cela de um "nós" místico, a traduzir-se na fundação de Igrejas teo-
cráticas, por exemplo em Bizâncio e nos países muçulmanos); a
cúpula (representa a "caverna mundial", com interior extrema-
mente rico, mas sem "exterior"; ela tem uma aspecto fantástico ou
fabuloso (43); os ornamentos são arabescos e mosaicos (43a); con-
conhecida por meio de escavações (cf. E. Drerup, Homerische Poetik, Würv-
burg, Becker, 1921, I págs. 159-162); na "Idade Média" (do povo grego) e, na
época clássica, para não falarmos na época helenístico-romana, o enterramento era
muito mais comum do que a cremação que, sendo mais dispendiosa, era reservada
para os ricos. — Outrossim, a concepção "orgânica" da Antigüidade clássica
como uma unidade homogênea é difícil de aceitar.
(42). Spengler reclama para si a honra de ter descoberto a cultura arábica, enqua-
drando nela Jesus, São Paulo, Diofanto, os arquitetos do Panteão em Roma,
Plotino, Santo Agostinho, Bizâncio, o Islam, etc. As vêzes, considera-a
também como uma "pseudo-morfose histórica", cf. Der Untergang, II págs.
227-398. Em Actium (31 a. C.), quem devia ter vencido foi Marco An-
tônio, e não Otaviano. Para Spengler o Destino não tem segredos!
. (43) . — O Panteão de Roma, que na sua forma original remonta a Agripa, o genro
de Augusto, foi restaurado (depois de dois incêndios, em 80 e 110 d. C.)
pelo Imperador Adriano e embelezado pelo Imperador Septímio Severo. Sua
cúpula tem diâmetro de 43.50 metros (talvez executada pelo arquiteto Apo-
lodoro de Damasco). O nome dêste templo não está devidamente explicado,
visto que era consagrado aos progenitores divinos de Roma: Vênus e Marte
(cf. Dio Cassius, Historiae, LIII 27, 2-5); no santuário havia também uma
imagem de Júlio César, e no pronau as de Augusto e de Agripa. Não foi no
Panteão que Alexandre Severo (222-235) venerou a imagem de Cristo, e sim
na capela particular do seu palácio (cf. Historia Augusta, Vita Alex. Sev.,
22,4). — Outro exemplo bem conhecido de um templo com cúpula "arábica"
é a Aya Sofia em Constantinopla, erguida pelo Imperador Justiniano.
(43a) . Sôbre os mosaicos e os outros ornamentos de uma cúpula "arábica", cf. Der
Untergang, I pág. 320: die magische (Kultur) errq:dand alies Geschehende
— 167 —

tos de fadas; apocalipse e escatologia (uma forma intensificada dos


contos de fadas, pois para a alma mágica "tudo tem início e fim");
soteriologia (circuncisão e sacramentos); a alquimia (a alma má-
gica, em oposição ,à apolínea, possui uma desconfiança profunda
acêrca de realidades plásticas e quer dissolvê-las para lhes desco-
brir o mistério da essência); etc., etc.
c) A Cultura Ocidental.
A cultura ocidental é a manifestação da "alma faustiana" (44):
dinâmica, histórica e técnica, quer subjugar o mundo, em que vê,
não um kósmos delimitado, e sim espaço indefinido: neste espaço in-
definido, o homem faustiano sente-se perdido. Para êle, Deus é o
Todo
Símbolos desta cultura são:
a) A psicologia voluntarista: assim como à antiga matemá-
tica faltava o conceito do espaço e à física antiga o da fôrça (para
êles, os corpos eram compostos de "matéria" e "forma"), assim fal-
tava à psicologia antiga 'a idéia da "vontade"; para a alma faustia-
na, porém, a unidade imaginária da psique é um "espaço", (não
um "corpo", como no sistema de Platão, com "partes" inferiores e
superiores), em que se verificam processos; a ordenação psicoló-
gica, no Ocidente, é funcional; a vontade liga o futuro ao presente;
daí o dinamismo da alma faustiana e os conflitos entre o intelecto
e a vontade; as tôrres góticas, gli uomini universali do Renascimen-
to, e a técnica moderna ilustram bem o dinamismo da cultura oci-
dental.
/3) As artes típicas da alma faustiana são a pintura a óleo
e a música contrapontística; na pintura a óleo percebe-se como o
homem ocidental vê as coisas na sua dependência da estrutura do
espaço (o "claro-escuro" de Rembrandt); o contraponto é a arte
do espaço indefinido, a forma artística do "tempo", ao passo que a
música grega era "tectônica".

als Ausdruck riitselhaf ter, die Welthiihle mit ihrer geistigen Substanz durch-
dringender Mãchte, — und sie schloss die Szene durch einen Goldgrund ab.
— Cf. nota 40.
(44) . — Dr. Jorge Faust (1480-1540) foi humanista, médico e alquimista na Ale-
manha: considerado pelo povo como feiticeiro, Faust tornou-se figura lendária
que teria vendido sua alma ao diabo para dominar o mundo e para gozar
da vida. O dramaturgo inglês Christopher Marlowe (1564-1593) compôs um
drama Doctor Faustus. O tema de Fausto entrou na literatura mundial pelo
célebre drama de Goethe em duas partes (I: 1808; II: 1831) : o Faust
de Goethe é a personificação da humanidade que sempre aspira a coisas
inacessíveis, nunca encontra plena satisfação em nenhuma obra realizada,
amiúde erra, mas jamais se esquece completamente do seu eterno destino.
Cf. Faust, I Prolog: Ein guter Mensch m seinem durilden Drange ist sich
des rechten Weges wohi bewusst (328-329) .
— 168 —

y) O número faustiano não tem nada a ver com a forma


corpórea das coisas plásticas, mas é função e relação; a cultura oci-
dental conhece várias "geometrias", números irracionais, e o cál-
culo infinitesimal, etc.
8) A física ocidental não fala em "forma" e "matéria", mas
em "massa" e "fôrça"; de acôrdo com o dinamismo da alma faus-
tiana, não indaga "corpos" ou "substâncias", e sim fôrças dinâmi-
cas, tais como gases cinéticos, íones movediços, magnetismo, etc.; a
hipótese, na física ocidental, não é repouso para o intelecto mas
ponto de partida para novas investigações; aliás, a física não é es-
tudo teórico, feito só para satisfazer à curiosidade de um espírito
contemplativo, mas constitui a base de uma aplicação prática: a
técnica.
e) A alma faustiana é eminentemente "histórica": por isso
inventou o relógio, uma éra e a arqueologia (na Grécia, ninguém
se incomodava com as ruínas de Tróia ou de Micenas); palavra in-
dispensável do seu vocabulário é "evolução".
A economia ocidental vê no dinheiro uma "função", o que
favoreceu o nascimento do "crédito" moderno e do capitalismo; no-
tas monetárias seriam inconcebíveis na antiga Grécia; ademais, a
economia ocidental baseia-se no trabalho, outro conceito dinâmico.
d) A Rússia .
Segundo Spengler, a Rússia é uma "pseudo-morfose", isto é,
devido à imposição de formas de uma cultura estrangeira, não pô-
de desenvolver suas próprias formas (44a); daí o ódio tremendo da
nova alma in statu reascendi contra o organismo ocidental. O sím-
bolo fundamental desta cultura nascente é a planície infinita: o
russo quer perder-se na planície interminável = o gênero humano
(sic!). Tolstoi é o tipo de um russo ocidentalizado que combate a
Europa com meios europeus; tanto mais odeia o Ocidente, quanto
mais incapaz se sente de se livrar das categorias ocidentais. Dos-
toïévski, porém, é o profeta da Rússia vindoura: nele encontrou
sua suprema expressão o mito religioso da Rússia (a fraternidade
universal, a absorção do "eu" num coletivismo místico e. anônimo);
para Dostoïévski, tudo é religião: não entende nada dos proble-
mas ocidentais, mas os transforma todos êles em doutrina religiosa .

(44a) . — A "pseudo-morfose russa" remonta aos dias de Pedro o Grande; também o


marxismo é artigo importado da Europa e, como tal, profundamente alheio
à alma russa. Mas o "bolchevismo russo" (= "asiático") triunfará sôbre o
sistema marxista, a Rússia despertará do seu longo letargo, e levantará a
revolta da Asia contra o mundo ocidental.. — Cf. § 116 IVb e V. — Se-
gundo Spengler (in Jahre der Entscheidun, págs. 46-49), a Rússia atual
já está se transformando numa potência asiática.
— 169 —

Ora, o nascimento de uma nova religião anuncia o nascimento de


uma nova cultura (45).
IV. Acompanhando a Vida de uma Cultura.
Spengler distingue cinco períodos sucessivos: os Tempos Pri-
mitivos (que são anteriores ao nascimento de uma nova alma co-
letiva), três períodos de viço cultural ou de "cultura" no sentido
estreito da palavra (primavera, verão e outono), e a "civilização"
(o inverno de um organismo cultural, a dividir-se em duas fases
bem distintas) .
Os Tempos Primitivos.
Os Tempos Primitivos (alemão: Vorzeit) caracterizam-se, no
plano político, pela ausência de um Estado centralizado e de uma
política bem definida; no setor cultural, podemos verificar um va-
go simbolismo místico, e uma mistura caótica de formas primiti-
vas e de elementos estrangeiros, imitados com pouca habilidade.
A época micênica, na Antigüidade clássica, e a época dos merovín-
gios e dos carolíngios, na Idade Média ocidental, são dois exemplos
de tal Vorzeit.
A Primavera.
Concomitantemente com o nascimento de uma alma coletiva,
nasce também um mito grandioso, expressivo de um novo senti-
mento do homem recém-acordado em relação à divindade. O mi-
to é a primeira expressão de uma cultura, e possui o poder de inspi-
rá-la durante muitos séculos (46) . A sociedade primitiva, na Vorzeit,
tinha uma estrutura muito simples; agora, na Primavera, vão-se des-
tacando do fundo da classe agrícola ("a classe a-histórica, destituída
de cultura, mas possuidora de uma alma telúrica") duas novas clas-
ses sociais: os nobres e os sacerdotes, duas classes "antitéticas", entre
as quais se inicia um combate inevitável, mas salutar para o cresci-
mento de jovem cultura (47) . No fim dêste período, chega-se a fa-

. — Der Untergang, I pág. 394: Die russische, willenlose Seele, deren Ursymbol
die unendliche Ebene ist, sucht in der Brüderwelt, der horizontalen, dienend,
:lamentos, sich verlierend aufzugeben. Von sich aus an den Nüchsten denken,
sich durch Nüchstenliebe nttlich zu beber:, für sich büssen wollen, ist ihr
ein Zeichen westlicher Eitelkeit und frevelhaft wie das In-den-Hinirnel-dringen-
Wollen unsrer Dome MI Gegensatz zur kuppelbesetzten Dachebene russischer
Kirchen. — Cf. ibidem, I pág. 258, nota 3.
. — Exemplos de ta 's mitos são: o mito olímpico (na Grécia); os Evangelhos
(na cultura arábica ); as epopéias germânicas e as lendas medievais (na,
cultura faustiana) .
. — Segundo Spengler, a nobreza é símbolo do tempo, afirma heróicamente o
Destino, e sua atitude perante a vida é a de um perpétuo "sim"; a classe
sacerdotal diz "não", e simboliza o espaço, procurando a "sagrada causalida-
de". — A burguesia não constitui uma classe social no sentido próprio da
palavra, mas é só "partido", partido de contradição e desprovido de todo e
qualquer simbolismo. — O camponês não pertence à história, mas .à natureza.
-170 —

zer uma primeira tentativa de desenvolver um sistema filosófico,


e a filosofia primaveril é uma especulação mística e metafísica
(exemplos são Hesíodo, Orígenes e Tomás de Aquino) . Os artis-
tas criam formas originais (por exemplo, a coluna clórica, na Gré-
cia; a cúpula, na cultura arábica; as catedrais góticas, na cultura
ocidental), que brotam inconscientemente da alma da cultura e ex-
primem as tendências e as aspirações da coletividade. Predomina
o sistema feudal, a única fonte de renda é o solo, prevalece o "es-
pírito rústico": a cidade é meramente considerada como "mercado"
ou como "burgo". Politicamente, domina a nobreza, classe repre-
sentativa de ideais cavalheirescos e religiosos; há lutas constantes
dos nobres entre si e dos nobres contra o rei.
c) O Verão.
A cultura atravessa uma crise política muito séria (o chama-
do Interregnum), em que a nobreza parece triunfar definitivamente
sôbre a realeza; mas a crise é passageira e o triunfo da nobreza é
efêmero. O Verão acaba por vencer o domínio dos nobres e con-
segue impor o poder central: é a vitória do Estado sôbre as clas-
ses privilegiadas, muito embora os nobres continuem a desempe-
nhar um papel de destaque na nova conjuntura. O sentimento po-
lítico sofre uma radical modificação: impõe-se uma concepção di-
ferente, segundo a qual existe uma Idéia superior a que todos os
membros da sociedade se devem submeter. Êstes novos princí-
pios não chegam, em geral, a ser formulados explicitamente, mas
começam a ser vividos com uma intensidade crescente. O Estado
torna-se cada vez mais poderoso, e a cidade, — a residência dos
reis, dos nobres e dos ricos burgueses (48), — transforma-se em
centro cultural. Já se percebe uma certa antinomia, latente, no mais
das vêzes, entre a cidade e o campo.
Também as artes atravessam uma crise ("Renascimento"),
mas, depois de superada essa, surgem novas escolas de mestres
"clássicos" que, geralmente, vivendo nas cidades e criando suas obras
a pedido de indivíduos ricos e poderosos, atingem o maior grau de
perfeição e de maturidade. E' a época do "Barroco" (por exemplo,
a Idade de Péricles, na Grécia; os séculos XVI e XVII, na Eu-
ropa ) .
No setor religioso, podemos igualmente verificar uma crise
(por exemplo, o Orfismo, na antiga Grécia; Santo Agostinho, na

(48). — A burguesia, no fundo, a negação das clesses sociais (alemão: Nichtstand),


desempenha papel bem modesto durante o verão e o outono de um organismo
cultural, e seus membros mais representativos limitar-se-ão, nestes dois perío-
dos, a imitar as duas classes orgânicas. Mas, chegada a época da Civili-
zação, o burguês eliminará o clero e a nobreza, e substituirá o Estado (dos
nobres) pelo domínio financeiro e a religião (do clero) pela ciência.
— 171 —

cultura arábica; a Reforma, na Europa); no fim dêste período, a


religiosidade vai empobrecendo, visto que se anunciam certo eti-
cismo e certa racionalização, em detrimento dos elementos místi-
cos da religião (exemplos são a "Confederação dos pitagóricos",
na Grécia; a nova religião de Maomé, na cultura arábica; o purita-
nismo inglês e o jansenismo francês, na cultura ocidental) .
No Verão, nasce uma nova matemática, expressão típica da
alma coletiva; também se iniciam interpretações meramente filo-
sóficas do Universo (por exemplo, os pré-socráticos, na Grécia; Ba-
con e Descartes, na Europa), as quais resultam em certo racio-
nalismo .
O Outono.
Neste período, irrompe o racionalismo, já prenunciado pela
evolução da filosofia e da religião no fim da época anterior. O ho-
mem do Outono acredita na onipotência da Razão: a religião per-
de os seus elementos místicos, e a filosofia elabora os grandes sis-
temas finais (Platão e Aristóteles, na Grécia; Goethe, Kant, He-
gel, Fichte, na Europa). Nas artes atinge-se a maior perfeição pos-
sível, mas o requinte extremo das formas leva inevitàvelmente à
perda do grande estilo adquirido durante o Verão (por exemplo,
a ordem "coríntia", na Grécia; Beethoven, na música ocidental).
Na política, o "absolutismo" chega ao seu apogeu, e o Estado,
apresenta uma forma plenamente orgânica ("les trois états"); mas,
no fim dêste período, são quebrados os antigos quadros sociais pe-
la vitória da cidade sôbre o campo, do "povo" (= plebe) sôbre os
privilegiados, dos intelectuais sôbre a tradição, e do dinheiro sô-
bre a política (por exemplo, a Revolução francesa; os exemplos
dados por Spengler relativos à história antiga são pouco convin-
centes)

A Civilização.
Destarte se inicia a Civilização, a fase final de tôda e qual-
quer cultura: ela anuncia inexoràvelmente a morte da alma cole-
tiva que deu origem ao organismo cultural. A Civilização é estag-
nação da vida: já não cria, mas só consome; já não conhece a exu-
berância viçosa das épocas anteriores, mas leva uma existência pu-
ramente vegetativa. Na Civilização, "ex-anima-se" (alemão: entseelt
sich) uma cultura, isto é, perde aos poucos sua fôrça vital. Cultura
é expressão orgânica, Civilização é entorpecimento mecanicista;
aquela vive de mistérios, esta se interessa só por problemas. Reina a
Razão, atrofiam-se os instintos. O homem de uma Civilização
adiantada torna-se "super-consciente", o que constitui uma grave
doença para a vida: só um doente "sente" os seus membros. A
— 172 —

própria existência torna-se problemática: não se aceita mais a vi-


da como um dado natural, como um destino a ser vivido, mas a
vida é organizada, ou melhor "encenada". Tudo vem a ser preme-
ditado, calculado, sofisticado, e em lugar de uma mundividência
orgânica, estabelece-se a ditadura da publicidade e a moda dos
slogans, sob os quais se esconde um utilitarismo grosseiro. A tra-
dição torna-se um pêso insuportável: em todos os terrenos da cul-
tura, procuram-se novas formas, friamente excogitadas pela inte-
ligência . Revezam-se, num ritmo acelerado, novas doutrinas, no-
vos estilos, novas teorias, isto é: a cultura torna-se um artigo de
moda. A Civilização é profundamente irreligiosa, e constrói um
mundo dessagrado. Na filosofia predomina o ceticismo (49), e in-
ventam-se teorias de "felicidade universal" (por exemplo, a Estoa,
no mundo antigo; o socialismo, na cultura ocidental); a filosofia
já não está integrada na vida, mas se transforma numa especiali-
zação estéril, praticada por profissionais como ganha-pão. A arte
torna-se problemática, vindo a ser completamente incompreensível
para o povo; ou então, é ostentação pomposa de luxo e de monu-
mentalidade, e excitação de nervos fatigados. A Civilização é a
época das grandes metrópoles que vivem à custa do campo (Ale-
xandria a Antioquia, no mundo helenístico; Paris, Londres, Nova
Iorque, nos tempos modernos): as grandes metrópoles sugam o
campo, consumindo produtos agrícolas que vêm de longe e atrain-
do para si a população rural, deslumbrada pelo luxo e pelos prazeres
da cidade. A metrópole é estéril: não produz, mas consome. O
homem "civilizado" quer ter filhos só quando para tal vê uma ra-
zão suficiente, e a mulher "civilizada", em vez de cumprir instin-
tivamente o seu destino feminino, considera o seu filho único co-
mo "passa-tempo". A Civilização liqüida as classes orgânicas, ca-
características da Cultura: a nobreza e a classe sacerdotal, e é domi-
nada pelo "burguês", o novo aristocrata que se impõe aos outros
ou com sua inteligência, ou então com seu dinheiro . Mas o domí-
nio do burguês cria inevitàvelmente outra classe social: a da ple-
be, da massa, da população que, de qualquer maneira, deve ser ba-
julada para ser dominada. Desaparece o patriotismo dos tempos
idos, e proclama-se o ideal vago e abstrato de cosmopolitismo .
Eis a descrição rápida da Civilização, o climatério (50) do or-
ganismo cultural. A cultura antiga entrou nessa fase depois da

(49) . — Spengler apresenta sua filosofia da história corno um ceticismo histórico:


ceticismo, por pertencer à Civilização; historicismo, por pertencer à cultura
faustina, que é dinâmica.
50) . — O "climatério" é, na terminologia moderna, adotada aqui por Spengler, a
idade crítica da mulher, em que cessa definitivamente sua fecundidade. —
Na Antigüidade, os "anos climatéricos" eram os anos da vida humana, múl-
tiplos de sete ou nove, que em razão de motivos astrológicos eram conside-
rados como "críticos" cf. Censorinus, De Die Natak XIV.
— 173 —

morte de Alexandre Magno (a época helenística), a cultura oci-


dental depois de Napoleão. O que reina, atualmente, é a inteli-
gência anorgânica, o dinheiro, o capitalismo. Esta época se pro-
longará mais ou menos até o ano 2000; depois se inaugurará uma
nova fase, a da morte do organismo cultural ou do regresso ao es-
ú::clo "a-histórico", ao Fellachentum.
Pois assim como, na Antigüidade, o Cesarismo romano conse-
guiu derrotar as fôrças anônimas do dinheiro, assim, por volta de
2000, — ou antes, — o capitalismo moderno será derrotado por
um govêrno forte. O novo César construirá um "Império mundial",
a abranger vários povos e a assumir, com os tempos, traços cada
vez mais primitivos. O mundo se transformará numa prêsa para
déspotas prepotentes e pouco escrupulosos. E o mecanismo arti-
ficial do Império se tornará, aos poucos, cada vez menos eficaz para
resistir às ondas invasoras de "bárbaros". Ao Cesarismo, no plano
político e social, corresponde, no setor espiritual, "a segunda reli-
giosidade" (alemão: die zweite Religiositãt). Não há criações ori-
ginais, não se desenvolve uma Idéia nova, mas parece que se eleva
do solo uma névoa, a patentear, pouco a pouco, as formas antigas.
O racionalismo da época anterior perde o seu encanto, e o homem
torna a ser religioso. A ciência chega aos limites das suas possibi-
lidades, o homem descobre as coisas mais sutis e acaba por desco-
brir "a forma da forma", descobre-se a si mesmo, — isto é, nada.
E' então que volta a sêde metafísica e religiosa, provinda das mas-
sas e contendo elementos heterogêneos (o chamado "sincretismo").
Ao novo "mito" segue-se um novo "culto", geralmente sob a forma
de homens endeusados (por exemplo, Buda, Confúcio, os Impera-
dores romanos, etc.) . Mas esta segunda religiosidade não consegui-
rá desenvolver uma vida histórica; sua existência é petrificação.
V. Analogias e Sincronismos.
Tôdas as culturas percorrem, com necessidade intrínseca, su-
cessivamente as diversas fases acima descritas. Cada qual delas
tem o seu Goethe, os seus Enciclopedistas, etc. Spengler empenha-
se em mostrar aos seus leitores uma multidão de "analogias", às
vêzes, com muito talento, mas não raro com muita arbitrariedade.
Para êle, "analogias" não são paralelos ilustrativos, mais ou menos
fortuitos e exteriores à vida da história, mas identidades funcionais
dentro das diversas culturas. O lugar, ocupado por Napoleão na
cultura faustiana, é idêntico ao de Alexandre Magno na cultura
apolínea; os "Enciclopedistas" franceses do século XVIII desempe-
nham papel idêntico ao dos sofistas gregos no século V a. C. E a
identidade funcional é necessária, obedecendo ao ritmo vital dos
organismos culturais.
— 174 —

VI. Spengler e a Política Contemporânea.


Spengler, apesar de aderir a um vitalismo biológico, não era
"racista" (51), tal como o nazismo oficial interpretava êsse têrmo;
apesar de anunciar a vinda de um novo César, não aplaudia a su-
bida de Hitler (52) . Sua doutrina política encontra-se principal-
mente na brochura Preussentum únd Sozialismus, e no livro inaca-
bado Jahre der Entscheidung (cf. nota 28) .
O Ocidente acha-se atualmente no seu Inverno, em que o di-
nheiro prevalece sôbre a política; o Cesarismo há de suplantar
o liberalismo e o marxismo, dois produtos derivados do espírito
mercantil que está prestes a expirar. Ora, na Europa atual (53)
persistem duas nações firmes ainda: a Inglaterra e a Prússia, duas
nações germânicas; aquela desenvolveu, através da sua história, a
idéia da independência individual, esta a da sociedade superindi-
vidual . A Inglaterra considera a iniciativa particular, a responsa-
bilidade pessoal e a autonomia individual como as supremas virtu-
des; a Prússia, porém, a fidelidade, a disciplina, a abnegação total
do indivíduo. Dois ideais esplêndidos! O inglês é magnífico ani-
mal de rapina. o prussiano é modêlo imponente de dominador e or-
ganizador do mundo. Por motivos evidentes, coube à Inglaterra a
supremacia na fase do capitalismo, mas a mentalidade socialista
do povo prussiano predestina-o a fornecer à cultura ocidental um
novo César. Que a Alemanha compreenda esta lição da história!
Terminou a época dos Goethes, dos Kants, dos Bachs; iniciou-se
um período de férreo realismo, em que só a atividade consciente,
a organização disciplinada e disciplinadora, a energia indomável e a
luta pelo poder possuem valor (54). Bateu a hora da Prússia, "so-

(51) • — O "racismo" de Spengler não é sistema "científico" (cf. § 114 II): "raça"
é algo que se sente e vive, mas não se mede e pesa; não os ossos nem o
esqueleto são fatôres decisivos, e sim a carne, o olhar, a mímica, a ar-
ticulação, o riso, a expressão do rosto, etc. Falar muito em "raça" é prova
de iá não tê-la; a coisa importante não é a "raça pura", mas a "raça forte",
cf. Der Untergang, II págs. 132-188, e Jahre der Enmiheidung, págs. 170-179.
— Cf. Jahre der Entscheidtmg págs. XII-XVI. — O autor mostra certo senso
crítico em relação à "vitória muito fácil" dos nazistas em 1933; o Partido
proibiu a menção de Spengler em revistas e jornais.
O autor não tem muita confiança no futuro da América do Norte; sem dúvi-
da, os Yankees são, na maioria, germanos e possuem o grandioso ímpeto
faustiano; mas já não são nutridos pelo solo materno da cultura ocidental;
além dêsse derarraigam.nto. sofrem do espir . to mercantil, próprio da Civi-
lização, não da cultura; a América simboliza a vontade do poder, mias sem
organicidade, só num plano mecanicista; os americanos não têm "Estado"
prèpriamente dito( cf. a Inglaterra), posuiem um proletariado imenso nos
inúmeros pretos, e pensam só em categorias de economia; falta-lhes o senso
trágico, peculiar a uma verdadeira cultura. — Quanto a êste último ponto,
cf. L. Dermigny, U.S.A., Essai de Mythologe Américaine, Paris, Pressas
(Jniversitaires de France, 1956, págs. 59 e 104.
— Spengler (in Der Untergang I pág. 54) aconselha aos jovens que se dedi-
quem à técnica e não ao lirismo, à marinha e não é pintura, à política
e não à epistemologia. Findou a época de um Rembrandt e de um Goethe,
mas é possível, — e até necessário, — produzir um César.
— 175 —

cialista" e organizadora por natureza, como bateu a de Roma nos


dias de Júlio César. The apparatus of historical analogy is a pelr-
suasive strategy (55) .
O autor prevê, para os próximos decênios, uma revolução in-
terna (a ser superada pelo "socialismo" prussiano) e uma revolu-
ção externa das raças asiáticas e africanas (a ser detida pelo novo
"Império", construção dos Césares prussianos). O mundo dos bran-
cos está perigando. Já não existem, na Europa, nações; existem só
partidos, governados pela alta finança e manobrados por demago-
gos impudentes; ao passo que o lavrador é brutalmente explorado, o
proletário urbano, canonizado por Marx, é adulado pelos "políti-
cos" e idolatrado pelo público burguês; as massas operárias, desti-
tuídas de todo e qualquer senso político, pensam só em categorias
de ordem econômica, contagiadas que são pelo espírito mercantil
da nossa época liberal. O proletariado branco, amimalhado por
uma democracia plutocrática, minou a economia da Europa, e es-
tá disposto a sacrificar a pátria e o Estado ao seu confôrto material:
não hesitará em conspirar com o proletariado de continentes estran-
geiros (ainda não mercantilizados) contra o Velho Mundo. Eis o
perigo "sujo" a que está exposto o mundo europeu. Somos "con-
temporâneos" dos romanos entre os Gracos e os Césares. O Trata-
do de Versalhes é o primeiro triunfo das raças inferiores sôbre o
Ocidente, triunfo possibilitado por um regime democrático ana-
crônico, por pacifismo sentimental e egoísta, pelo predomínio das
massas. "Mas as legiões de César tornam a despertar. Talvez já
neste século se efetuem as derradeiras decisões. Ante elas sucum-
birão os objetivos insignificantes e os conceitos mesquinhos da po-
lítica atual. Cuja espada alcançar a vitória, a êsse caberá o Uni-
verso. Aí estão os dados do jôgo decisivo. Quem terá a coragem.
de lançá-los?" (56) .
VII. Considerações finais.
O grande êxito da obra spengleriana explica-se pela onda de ,
pessimismo que invadia o mundo ocidental, principalmente a Eu-
ropa, depois da Primeira Guerra Mundial: "O Declínio do Ociden-
te" encontrou milhares e milhares de leitores, e foi traduzido para
vários idiomas. Inegàvelmente, a síntese de Spengler tem algo
de imponente: o autor possui conhecimentos vastíssimos e varia-

(55). — Eric Bentley, A Century of Hero-Worship, Boston, Beacon Press, 19572,


pág. 195.
(56) . — Spengler, Jahre der Entscheidung, pág. 179: Die Legionen Ciisars wachen
wieder auf. Hier, vielleicht schon in diesem Jahrhundert, warten die letzten
Entscheidungen auf ihren Mann. Vor ihnen sinken die kleinen Ziele and'
Begriffe heutiger Politik in nichts zusarrunen. Wessen Schwert hier den Sieg,
erficht, der wird der Herr der Welt seM. Da liegen die Würfel des unge-
heuren Spiels. Wer wagt es. sie mi werfen?
— 176 —

díssimos da história, mostra-se mestre verdadeiro em descobrir


"analogias" históricas e em desvendar o Zeitgeist das diversas épo-
cas; algumas passagens da sua obra revelam uma eloqüência ar-
rebatadora e própria de um "profeta". Mas nossa admiração vai-
se sumindo quando percebemos que os exemplos, dados com tama-
nho desembaraço pelo autor, nem sempre resistem a um exame
minucioso; que sua filosofia, — se é que êste nome compete à mun-
dividência vaga e confusa de Spengler, — não passa de uma mito-
logia nebulosa; que as palavras sonoras e impressionantes escon-
dem um pensamento pobre e pouco original. O tom dogmático e
apodíctico do autor acaba por irritar um leitor crítico; o aparato
erudito é excessivo, mesmo para um livro alemão, e transforma a
leitura de "O Declínio" numa tarefa extremamente pesada e, final-
mente, enfadonha. Quem pode afirmar ter lido os dois grossos vo-
lumes na sua totalidade?
Examinemos agora alguns aspectos gerais da obra spengle-
riana:
a) O Vitalismo.
A Vida é a realização de uma potência psíquica (alemão: die
Verwirklichung von seelisch Müglichem). Há uma profunda dife-
rença entre a vida das plantas e a dos animais. As plantas possuem
a vida "cósmica": radicadas na paisagem, não são livres; os ani-
mais, além da vida "cósmica", possuem também a vida "microcós-
mica" em relação ao macrocosmo em que vivem: são "livres" por
poderem mover-se. A vida "cósmica" possui "tato", isto é, direção,
irreversibilidade, ritmo, periodicidade, destino, e por isso se rela-
ciona intimamente com o tempo, com o fieri. O microscosmo pos-
sui polaridade ou tensão: por ser livre nos seus movimentos, pro-
cura constante e necessàriamente "tatear" as delimitações que do
seu ambiente o separam e, ao mesmo tempo, a êle o prendem. As
plantas "sentem" (alemão: fühlen), num sentimento profundo e
completamente interior, o "tato cósmico"; os animais, além disso,
"percebem" (alemão: empfinden) a tensão da vida. No reino ani-
mal própriamente dito, existe apenas a percepção sensitiva; no ho-
mem existe também a percepção intelectual. Devido ao seu apa-
relho lingüístico, o homem passa, imperceptivelmente, a tratar suas
palavras, — de início, apenas nomes de coisas só sensivelmente
percebidas, — como características de coisas pensadas. A palavra
transforma-se em conceito, e a percepção em pensamento abstra-
to. Nasce o espírito, por apartar-se da percepção sensitiva, do
mesmo modo que, numa fase anterior, nasceu o "microcosmo", por
destacar-se da vida "cósmica". Tôda a percepção, inclusive o pen-
samento, é idêntica ao tatear dos infusórios, sendo uma orientação
— 177 —

permanente sôbre a relação entre o macrocosmo e o microcosmo;


todo o pensamento deveria estar ao serviço da vida que é expansão
de um substrato psíquico. Mas com o nascimento do espírito, ori-
gina-se no homem uma antinomia interna: o espírito, não se resig-
nando com o pasmo perante a vida (57), tende cada vez mais a
perscrutar os segredos da vida, acabando por sufocá-la (cf. § 107
III). Pois o espírito entende apenas a "extensão", a natureza ex-
tensa, o espaço, o factum, isto é, a morte (58). Aí descobre leis
invariáveis e causas, aí constrói sistemas, o que resulta em matar
a vida, a história, a fatalidade inacessível ao pensamento. Mas
a vida é a coisa principal e não o pensmento, pois a vida pode ca-
recer do pensamento, mas o pensamento não poderia existir sem
a vida (sic). "A Vida é o Alfa e o Omega: não obedecendo a ne-
nhum sistema ou programa, zomba da razão. A Vida tem um fim
intrínseco, e existe por si mesma. Só um sentimento visionário
consegue penetrar a fundo nas realizações de ordem vital, e tal-
vez seja possível descrevê-las. Mas não se pode analisar e dilace-
rar a vida em categorias de bem e mal, de verdadeiro e falso, de
útil e desejável" (59).
Depois dessa exaltação nietzscheana da Vida, não causa es-
pécie .lermos esta definição do homem: "O homem é um animal de
rapina: não me cansarei de repetí-lo. Todos os santarrões e so-
ciólogos moralistas que têm a pretensão de ter superado essa fase,
não passam de animais de rapina com os dentes arrancados: odeiam
os outros por mêdo dos ataques que êles próprios prudentemente
evitam. Não sei para quem dos dois o título de "animal de rapi-
na" é um insulto, — para o homem ou para o animal. Pois os
grandes animais de rapina são nobres criaturas e perfeitas, e não
mostram a mentirosidade da moral humana que provém de fraque-
za... A Luta é o fato fundamental da Vida, ou melhor: identifi-
ca-se com ela" (60) .

— O autor (in Der Untergang, II pág. 15) cita uma palavra de Goethe:
Das Schaudern ist der Menschheit bestes Teu].
— Cf. ibidem, I pág. 215: Es besteht ein tiefer und früh gefühlter Zusarn-
menhang zwischen Raum und Tod.
— Spengler, Preussentom und Sozialismus, pág. 81: Das Leben ist das erste
und letzte, und das Leben hat kein System, kein Prograrrn, keine Vernunft;
es ist für sich selbst, und durch, sich selbst da, und die tiefste Ordnung, in
der es sich verwirklicht, lãsst sich nur schauen und fühlen, — und dann
vielleicht beschreiben, aber nicht nach gut und büse, richtig und falsch,
nützlicht und wünschenswert zerlegen.
— Spengler, Jahre der Entscheidung, pág. 15: Der Mensch ist ein Raubtier•
Ich werde es immer wieder sagen. All die Tugendbolde und Sozialethiker,
die darüber hinaus sem oder gelangen wollen, sind nur Raubtiere tnit aus-
gebrochenen Zãhnen, die andere wegen der Angriffe hassen, die sie selbst
weislich vermeiden... Wenn ich den Menschen ein Raubtier nenne. wen
habe ich damit beleidigt, den Menschen oder das Tier? Denn die grossen
Raubtiere sind edle Geschüpfe, in volkommenster Art und ohne die Veria-
genheit menschlicher Moral aos Schwãche... Der Kampf ist die Urtatsache
des Lebens, ist das Leben selbst...

Revista de História n.o 35


— 178 —

Não precisamos deter-nos muito tempo no vitalismo de Spen-


gler: suas frases declamatórias e extravagantes ecoam de longe o
lirismo exuberante de Nietzsche; sua antítese "vida-natureza" é
uma paródia de umas idéias fundamentais de Bergson, arrancadas
do seu contexto original e exageradas em extremo até se torna-
rem irreconhecíveis e ridículas; seus conceitos de "espírito" e de
"causalidade" são-lhe sugeridos pelo materialismo e pelo positivis-
mo, escapando-lhe a noção de que estas palavras possuem na filo-
sofia perene; seu culto da Vida é uma forma moderna de panteís-
mo de cunho dinâmico; sua "explicação" da gênese do "micro-
cosmo" e do "espírito", além de' ser materialista (no sentido de
"explicar" o superior pelo inferior), não explica nada, mas coloca
o leitor diante de novos mistérios; sua "antropologia", se é que se
pode aplicar êste têrmo a Spengler, é simplesmente deprimente e
repugnante, por negar redondamente o valor e a dignidade da pes-
soa humana .
b) Os Organismos.
Não podemos entrar aqui nos pormenores da doutrina de
Spengler relativa à gênese das "almas coletivas", que é um dos
pontos mais obscuros e incoerentes da sua morfologia histórica.
Às vêzes, parecem nascer do seio maternal da paisagem; às vêzes,
parecem manifestações transitórias do "Todo Psíquico", e o autor
deixa de nos esclarecer qual é a relação entre a "Psique Primitiva",
as "almas coletivas" e as almas dos sêres concretos. Para nós são
mais importantes, porém, algumas observações de ordem prática.
Culturas são plantas que nascem, florescem, murcham e mor-
rem, segundo a lei misteriosa do Destino; cada organismo cultu-
ral constitui um mundo hermèticamente fechado para todo e qual-
quer outro organismo dêste tipo (cf. II).
Spengler combate repetidamente o Idealismo como um siste-
ma racionalista. Mas que é seu sistema senão um Idealismo in-
vertido? Impede-nos de ver a natureza concreta e contingente dos
fatos históricos, inculcando-nos a existência de uma Realidade su-
perior (a "alma coletiva"), de um Símbolo fundamental, do qual
deduz, mediante um procedimento bastante abstrato, os fenômenos
particulares de uma cultura, explicando-os como expressão dessa
Realidade superior . Nem é de estranhar que o autor, para conse-
guir o seu fim, se veja obrigado a violentar os fatos históricos, es-
ticando-os ou encurtando-os no leito procustiano dos seus concei-
tos "idealistas" (n'en déplaise à Spengler!) de organismos. Tudo
quanto não se lhes amolda, é amesquinhado como "empréstimo ex-
terior", ou declarado uma "pseudo-morfose". Destarte passam-lhe
despercebidos certos fenômenos históricos no seu caráter de uni-
— 179 —

cidade, por exemplo, o judaísmo, o Cristianismo, a latinidade, o


descobrimento do mundo pelos europeus, a novidade absoluta da
técnica moderna, etc.; destarte chega também a mutilar certos fa-
tos históricos, por exemplo, quando defende a tese insustentável
de ser universal o costume de cremar os mortos entre os povos da
cultura apolínea (cf. nota 41), ou quando fala na repugnância ina-
ta dos antigos helenos pela pedra. O que Spengler nos apresenta,
é uma especulação mitológica, em vez de uma análise clara e ra-
cional.
Assim como o indivíduo humano se realiza a si mesmo num
contacto constante com outros, assim também as "culturas" se ex-
pandem e se desenvolvem num contacto com outras culturas; até
poderíamos dizer: quanto mais abertura houver, tanto maior se-
rá sua vitalidade (pensemos no poder assimilador da antiga Gré-
cia e da cultura ocidental!) . A doutrina spengleriana das "culturas
hermèticamente fechadas" is irreconcilable with the whole course
of human history, which is nothing but a vast system of intercul-
furai relations (61) . A influência, exercida por pensadores como
Platão e Aristóteles, e por fundadores de religiões como Buda, Je-
sus e Maomé, transcende as fronteiras de uma "cultura", a que ori-
ginàriamente pertencem; e quem poderá negar a influência da téc-
nica ocidental sôbre um país oriental, como por exemplo o Ja-
pão? A tese de Spengler leva a absurdos evidentes, e o próprio
autor, por nos dar análises tão penetrantes do caráter de culturas
alheias, prova que elas não são completamente inacessíveis para
pessoas de origem diferente.
c) O Relativismo.
O homem, filho do tempo, adquire a Verdade, em si eterna
e intemporal, no tempo, como ser histórico, isto é, como ser limi-
tado e evolutivo, vivendo numa realidade humana, que é sua "si-
tuação" concreta: a civilização a que pertence, as condições econô-
micas e sociais em que vive, o momento histórico em que se en-
contra, — eis alguns elementos constitutivos da sua situação, que
lhe condicionam a apropriação sempre parcial da Verdade abso-
luta. "Temos o tesouro da Verdade em vasos de barro", podería-
mos dizer, modificando ligeiramente uma palavra de São Paulo (II
Cor., IV 7).
Para Spengler, porém, não existe a Verdade, nem sequer ver-
dades universais. As "verdades" pertencem exclusivamente a certa
cultura, sendo expressões necessárias da sua alma coletiva, e só
de uma única alma coletiva; para outros organismos culturais, po-

(61) . — Christopher Dawson, Progress and Religion, London, Sheed & Ward, 1938,
pág. 46.
o

— 180 —

dem ser "errôneas, absurdas e impossíveis". Não existe "a" mate-


mática, "a" física absoluta é uma ilusão, "a" moral refere-se ex-
clusivamente a normas instintivamente sentidas (e depois, estabe-
lecidas) por certos grupos culturais, e "a" filosofia é apenas expres-
são de uma época histórica (cf. § 33 III). Tal historicismo ani-
quila-se a si próprio: se tudo é relativo e nada absoluto, também
a doutrina spengleriana não passa de uma teoria de valor muito
restrito e relativo; também suas especulações sôbre a Vida, a Psi-
que, o Espírito, etc., que o autor nos quer inculcar como dogmas
inabaláveis de uma nova fé, pertencem a certa conjuntura históri-
ca, e serão aniquiladas pelo fluir constante do tempo. Mas como
explicar o tom apodíctico das afirmações gratuitas do autor?
d) O Fatalismo.
Spengler, seguindo o exemplo de Nietzsche (cf. § 111 V),
preconiza o amor fati, uma concepção heróica da vida: o homem
forte afirma corajosamente as fôrças vitais. Assim como despreza
soberanamente a teoria otimista do Progresso como uma inven-
ção dos fracos e nega todo e qualquer finalismo histórico a abran-
ger o total da humanidade (cf. nota 28a), assim se defende tam-
bém das acusações de pessimismo (62). O homem moderno, des-
tituído do senso trágico da vida, quer em todo o caso o happy
end, como se a vida fôsse um romance recreativo, e inventa uto-
pias; mas o homem forte, cuja presença já anuncia a vinda dos
Césares, afasta deliberadamente essas ilusões, e aceita o seu Des-
tino histórico com amor apaixonado. A história é o terreno do
triunfo da Vontade do Poder, não a vitória de verdades abstratas
ou de princípios morais. Die Weltgeschichte ist das Weltgericid
(63). O autor tem a esperança de prestar um serviço útil aos seus
contemporâneos por lhes mostrar as possibilidades e as necessida-
des da época: o Destino é inexorável, e decidirá do futuro, tal co-
mo o autor o predisse, pouco ligando para as nossas preferências
individuais. Obedeçamos, portanto, à sua orientação! Ducunt fa-
ta volentem, nolentem trahunt (64). Com esta frase de Sêneca
termina o segundo volume da obra de Spengler.
§ 127. Um Estudo britânicamente empírico da História.
No mesmo ano em que Spengler se pôs a elaborar sua tese
fatalista da história, um turista inglês achava-se em Creta, onde
. — No ensaio Pessimismus?, editado in Reden und Aufstitze, págs. 63-79.
. — Cf. § 96 Vb, nota 39. — Ch. Péguy escreve (in Clio) estas palavras sôbre
o tribunal da história: Pauvre tribunal, pauvre jugement. Ils me prennent
pour un magistral, et je ne suis qu'une (petite) fonctionnaire. lis me pren-
nent pour le Juge, et je ne suis que la demoiselle de l'enregistrement (in
Oeuvres en Prose, 1909-1914, Paris, La Pléiade, 1957, pág. 208) .
(64). — Seneca, Epistola, 107, 11, verso final da tradução latina de um hino grego
composto pelo filósofo Cleantes (século III a. C.). — Spengler modificou
ligeiramente a ordem das palavras.
— 181 —

via as ruínas de uma morada veneziana, construída no século XVII:


uma casa, construída no estilo ocidental, ainda familiar a um in-
glês do século XX, não passava, lá em Creta, de vestígio de uma
civilização morta, tão morta como a civilização minóica cujos des-
troços o mesmo turista havia contemplado poucos dias antes. Foi
então que o inglês, — Toynbee era seu nome, — teve sua primei-
ra experiência "existencial" da história e ficou persuadido, tal co-
mo um Gibbon moderno (cf. § 7 II), de que a palavra Memento
mori se aplica não só a indivíduos, mas também a civilizações. Em
1920, depois de servir sua pátria no Foreign Office durante a Pri-
meira Guerra Mundial, tomou conhecimento da obra de Spengler,
em que descobria muitas das suas próprias idéias (a mortalidade
das civilizações, a "contemporâneidade" de diversas épocas histó-
ricas, etc.): profundamente impressionado por essa convergência,
mas logo depois decepcionado pelo determinismo e pelo método
apriorístico do autor alemão, Toynbee decidiu-se a reescrever a
obra de Spengler, mas, — de maneira bem britânica, — num es-
tudo empírico das civilizações. Assim nasceu o Magnum Opus de
Arnold J. Toynbee: A Study of History, em dez volume% de tama-
nho respeitável (65), obra ampliada e completada por algumas
monografias (66). Não é fácil, no espaço limitado de que dispo-
mos, dar uma idéia adeqüada da riqueza da obra de Toynbee, que
contém mais de 6200 páginas. Podemos traçar apenas as idéias
centrais, despojando-as daqueles elementos que lhes dão vida e co-
lorido: os exemplos interessantes, a argumentação ponderada e pru-
dente, as sutis distinções e a grande bagagem cultural. Infelizmen-
te, nosso resumo poderá ocupar-se só com o esqueleto da teoria do
historiador inglês.
I. Características Gerais do Autor e da Obra.
Quando, depois da leitura das obras de Spengler, abrimos um
livro de Toynbee, respiramos um ar diferente, um ar mais puro e
saudável. O autor de A Study of History não abaixa a dignidade
(65) . — Os Volumes I-III sairam em 1934; IV-VI em 1939; VII-X em 1954. E' esta
a distribuição da matéria entre os dez volumes: I Introdução; a Gênese das
Civilizações; II2A Gênese das Civilizações (cont.); III O Crescimento das
Civilizações; IV O Rompimento das Civilizações; V-VII A Decomposição
das Civilizações; VII Estados Universais, Igrejas Universais; VIII Épocas He-
róicas, Contactos entre Civilizações no Espaço; IX Contactos entre Civiliza-
ções no Tempo; Lei e Liberdade na História; As Perspectivas da Civilização
Ocidental; X As Inspirações de Historiadores, Notas Cronológicas, etc. —
O autor promete publicar mais três volumes que, quanto nós saibamos, ain-
da não sairam: XI Mapas e Plantas; XII-XIII Retractationes (respostas a
críticas, suplementos, correções, etc.). — O inglês D. C. Somervell compôs
um compêndio da obra de Toynbee em dois volumes (I = I-VI; II = VII-
X), livro êsse que foi traduzido para quase tôdas as línguas modernas (tam-
bém para o português).
(66). — Mencionamos aqui: Civilization on Trial (1948), em português: "A Civili-
zação posta à prova"; The World and The West (1952), em português: "O
• Mundo .e o Ocidente"; An Historian's Approach to Religion (1956).
— 182 --

do homem, aviltando-o à condição de um animal de rapina, mas


é humanista no sentido mais nobre do têrmo: acredita no valor da
pessoa humana, professa a superioridade dos valores espirituais, e
mostra notável cultura humanística (67). Em lugar de ficarmos
atônitos com afirmações gratuitas e sentenças ditatoriais, ouvimos
aqui argumentos, desenvolvidos com extraordinária abertura men-
tal (68). Em vez de uma visão estreitamente germânica da histó-
ria, encontramos aqui uma visão universalista: a cada passo pode-
mos perceber que a cultura de Toynbee não é meramente livresca,
como a do autor prussiano, mas que se baseia em conhecimentos
práticos da vida política e das realidades modernas (69); levado
pela mesma curiosidade de Heródoto, Toynbee fêz viagens exten-
sas com os olhos desimpedidos (70). Sua pátria espiritual é a Bí-
blia (citada inúmeras vêzes por êle), a literatura clássica, e o pa-
trimônio literário da cultura ocidental (o autor conhece bem a li-
teratura francesa e a alemã). Entre os filósofos modernos, sente-
se atraído por Bergson, o defensor da liberdade humana e do es-
pírito criador; também foi profundamente influenciado pelas teo-
rias do psiquiatra suíço C. G. Jung, sobretudo no que diz respeito
à interpretação dos mitos e à tipologia psicológica dos caracteres
humanos (71). Ao lado dessas boas qualidades, encontramos na
obra de Toynbee, — não poderia ser de outra forma, — algumas
deficiências e pontos fracos: sua mania de citar parece-nos exces-
siva, sua maneira de desenvolver um tema ou um argumento é, por
vêzes, prolixa e verbosa, e as inúmeras digressões tolhem-nos amiú-
de a visão do conjunto. Além disso, o autor é muito pródigo em
dar notícias autobiográficas aos seus leitor0s, julgando-os viva-
. — Toynbee conhece muito bem a literatura clássica da Grécia e de Roma; du-
rante alguns anos foi Fellow anel Tutor of Litterae Hurnaniores no Bailio]
College, em Oxford . O autor afirma dever his binocular view of history à sua
educação helênica; nas suas obras encontram-se inúmeras citações de autores
latinos e gregos (muitas vêzes, sem tradução), o que toma muito difícil
a leitura para pessoas sem sólida formação humanística. Há mais: no Vol.
I encontramos uma elegia grega (um Bios de Toynbee), e no Vol. VII uma
elegia latina (Vita Nova), ambas da lavra do historiador.
. — O autor dá a várias pessoas a oportunidade de formular objeções contra os
seus pontos de vista, muitas das quais foram publicadas nos Vols. VII a X;
entre êsses críticos queremqs destacar a figura de Martin Wight (Vol. VII)
que, muitas vêzes, revela um espírito penetrante.
. — Durante as duas Guerras Mundiais, Toynbee serviu sua pátria no Foreign
Office; na Conferência de Versalhes (1919), fêz parte da delegação bri-
tânica como perito em questões relativas ao Oriente Próximo; em 1921, foi
correspondente de guerra na Turquia, etc.
. Toynbee conhece, além dos países europeus, o Oriente Médio, China, Japão,
os Estados Unidos, México, Rússia, etc.
. — C. G. Jung (nasceu em 1875), psiquiatra suíço, originàriamente adepto
das teorias de S. Freud, com quem rompeu em 1912. Sua "psicologia ana-
lítica", bem distinta da psicanálise, dá uma interpretação muito larga e
pessoal da libido, no sentido de "inconsciente fôrça vital" (individual e co-
letiva) . Afastando-se da doutrina de Freud no que diz respeito à apreciação
do fenômeno da religiosidade, Jung dá valor positivo à religião, e interessa-
se pela análise psicológica dos mitos (muito importante para a obra de
Toynbee) . Também sua teoria de "tipos psicológicos" (introversão, extra-
versão, etc.) repercute-se no autor de A Study of Hisstory (cf. infra, VIII) •
— 183 —

mente interessados nos pormenores da vida de Mr. A. J. Toynbee,


indiscrição essa que não sabemos se devemos qualificá-la de ingê-
nua ou de vaidosa. Mais importante é, porém, sabermos até que
ponto Toynbee cumpriu sua palavra de escrever um estudo em-
pírico da história. Acreditamos nós que o autor, principalmente no
período posterior à Segunda Guerra Mundial, se desviou do cami-
nho anunciado e se cobriu com o manto de um teólogo leigo que
não lhe fica bem. Examinaremos esta questão na medida em que
formos expondo as idéias fundamentais do autor.
II. O Objeto dos Estudos Históricos.
O objeto próprio das pesquisas históricas são as sociedades
humanas. Delas existe uma grande diversidade, e os historiadores
divergem em definí-las e em classificá-las. Portanto convém saber-
mos qual é a opinião do autor a êsse respeito.
As Sociedades Humanas.
Toynbee combate a teoria spengleriana, segundo a qual as so-
ciedades humanas seriam organismos, no sentido próprio do têrmo.
The truth seems to be that a hurnan society is, in itself, a relation:
a particular kind of relation between human beings who are not
only individuais but are also social animais in the sense that .they
could not exist at ali, — or at any rate not humanly, — without
being in this social relation with one another (72) . Em última
análise, não são as sociedades que agem, pensam e criam, e sim
os indivíduos humanos; mas êstes, como animais sociais, não po-
dem deixar de viver em sociedades: o autor faz uma nítida dis-
tinção entre sources of action (os indivíduos) e fields of actions
(as sociedades humanas) (73) . Ora, há dois tipos de sociedades
humanas: as sociedades primitivas e as "civilizações".
Do Sub-homem à Sociedade Humana.
O autor crê na existência de um Deus absolutamente distinto
do mundo, Criador do Universo e do gênero humano. Mas Deus
não quis ficar solitário na sua atividade criadora: the Creator's
purpose and method was, at ali stages and leveis of creation, to
take His creatures into partnership with Himself and to give them
the utmost opportunity of sharing in His work. This seemed ma-
nifest in Human Nature (74). Esta frase está perfeitamente de
acôrdo com a doutrina tradicional da Igreja <cf. § 68 Ha) e com
a sã filosofia, mas vem infelizmente acompanhada de algumas afir-

— Toynbee, A Study ot History, III pág. 223.


—Ibidem , III pág. 230.
— lbidem, VII pág. 420, nota 6.
— 184 —

mações que revelam um certo diletantismo filosófico, falha essa


que não se dirime pela evasiva pouco hábil do autor: In the writer's
day the resources of language were still utterly inadequate (75).
Toynbee acredita na existência de um ser pré-humano (Sub-Man)
que teria realizado a incrível façanha de passar a ser homem, em
resposta a um desafio por parte de Deus (76) . A aparição do ho-
mem seria, portanto, o resultado de uma certa colaboração dialé-
tica entre o Criador e a criatura, uma realização divino-humana.
Mas corno é que podemos conceber o ato espiritual de uma res-
posta livre a um desafio divino, por parte do Sub-Man, destituído
de espiritualidade? Ao que nos parece, adere a um pensamento
francamente racionalista (segundo o qual não pode haver nada na
conclusão que não esteja nas premissas) e chega, talvez sem sa-
ber, a destruir o próprio conceito da criação, quando diz: Primi-
tive societies are coeval wtih Mankind itself, — or rather, they
are anterior to Mankind, since social lufe is a condition which the
evolution of Man out of Sub-Man presupposes and without which
that evolution could not conceivably have taken placa (77). Como
se vê, o autor mistura confusamente especulações mitológicas com
teses racionalistas.

c) Da Sociedade Primitiva à Civilização.


São numerosas as sociedades primitivas (mais ou menos 650
espécimes dêste tipo de sociedade humana foram registrados), e
elas existem desde que temos conhecimento do homem. Várias so-
ciedades primitivas subsistem ainda no mundo contemporâneo, em-
bora fiquem cada vez mais expostas ao perigo de ficarem absorvi-
das pelas civilizações. Com o nascimento das civilizações, começa a
época histórica própriamente dita, um passo decisivo para o des-
tino humano, mas muito menos importante do que a transforma-
ção do Sub-Man num ser humano (78) . Toynbee adota a opinião
do astrofísico Jeanes (79), conforme a qual o homem já viveu ±
300.000 anos neste planeta; ora, a primeira civilização de que pos-
suímos notícias (a egípcia), não é anterior ao ano 4000 a. C.; a
época "histórica" abrange, portanto, só 2 por cento do total da vi-
da da humanidade. Uma consideração bem apropriada a originar
. — Ibidem, VII pág. 420, nota 6. — O leitor repare no emprêgo do tempo
passado, muito comum nos quatro últimos volumes de A Study of History,
com o qual o autor pretende dar (talvez) um tom profético às suas afirma-
ções: Toynbee escreve, depois do seu êxito mundial, "para a posteridade"!
. — Ibidcm, VII pág. 420, nota 6.
. Ibidem, 1 pág. 173; cf. VII pág. 420.
. — Ibidem, I pág. 192: This mutation of Sub-Man into Man, which was accom-
plished, in circumstances of which we have no record, under the segis ot
primitive societies, was a more profound change, a greater step in growth,
than any progress which Man has yet achieved under the aegis of civi.'izations.
. — Sir James Hopwood Jeanes (nasceu em 1877), autor dos livros The Universe
Around Us (1929) e The Mysterious Universe (1930) .
--- 185 —

sentimentos de profunda modéstia num historiador com pretensões


"universalistas"!
Sociedades primitivas, por mais estacionárias que nos pare-
çam, já conseguiram guindar-se à condição de sociedades humanas;
sua "estagnação" é um estado de repouso depois de um esfôrço imen-
so para atingir êsse nível. Primitive societies may be likened to
people lying torpid upon a ledge on a mountain-side, with a precipice
below and a precipice above; civilizations may be likened to compa-
nions of these "Sleepers of Ephesus" (80) who have just risen to their
feet and have started to climb on up to face of the cliff (81). As
diferenças entre os dois tipos de sociedades humanas são, pois,
graduais, não essenciais . Uma civilização é mais dinâmica por pos-
suir um eqüilíbrio precário, uma scciedade primitiva é mais está-
tica por perseverar em certo eqüilíbrio alcançado; numa socieda-
de primitiva é mais importante a "rotina" (Cake-of-Custom), numa
civilização a atividade criadora; uma civilização apresenta grau
mais elevado de diferenciação social, de organização política e re-
ligiosa, de distribuição do trabalho, e de individualismo; e afinal,
ao passo que as sociedades primitivas são numerosas, se limitam a
uma área reduzida e, geralmente, não têm duração muito longa, o
número de civilizações é pequeno, elas abrangem um território re-
lativamente extenso e têm uma vida mais duradoura.
d) As Civilizações.
Ao estudar, por exemplo, o passado da Grã Bretanha, o pesqui-
sador tem de chegar à conclusão inevitável de que a história dêsse'
país não é auto-suficiente: tão numerosos são os laços que a prendem
aos destinos de outras sociedades humanas, no espaço e no tempo..
Não se compreende bem a história de Inglaterra sem a do continen-
te europeu, sem se levar em conta a importação do Cristianismo, ou
a influência multi-secular da cultura clássica. O estudo de uma unida-
de política remete-nos a um conjunto maior, o qual, sem coincidir com
a humanidade inteira, constitui um indivisble whole, um intelligible
field of historical study.. Tal indivisible whole pode ser ou uma
sociedade primitiva, ou então uma civilização, — duas entidades:
sociais distinguíveis conforme os critérios acima expostos. Aqui
nos interessam as civilizações .
Quase todos os representantes de uma civilização adiantada.
têm a ilusão egocêntrica de constituir o seu caminho o único ca-
. — "Os Sete Adormecidos" de Éfeso eram sete irmãos que, segundo a lenda,
durante a perseguição do Cristianismo sob o Imperador Décio (251 d. C.),
se teriam refugiado numa gruta, onde foram enclausurados pelos pagãos;
aí dormiram quase 200 anos, até que, sob o Imperador Teodósio (408-
450), por uma coincidência feliz, foram libertados pelos cristãos e deram
testemunho acêrca da ressurreição da carne. A lenda tornou-se conhecida, no..
Ocidente, mediante a obra de Gregório de Tours.
. — Toynbee, A Study aí History, 1 págs. 192-193.
— 186 —

paz de conduzir o homem do estado pré-humano para a meta sobre-


humana . Tal atitude é insustentável num estudo empírico das ci-
vilizações, e por isso o autor toma por ponto de partida, fôsse só
por motivos de metodologia científica, a "eqüivalência" das diver-
sas civilizações. Ora, Toynbee conhece 21 civilizações "adultas"
(82), a saber: a egípcia, a andina (cuja fase postrema foi o Im-
pério dos incas), a sínica (a fase anterior à da cultura oriental con-
temporânea), a minóica, a sumérica, a maiana (destruída no sé-
culo VII d. C., a precursora da civilização dos aztecas e dos iuca-
tanos), a iucutana (criada por maias refugiados), a mexicana (cria-
da pelos toltecas, desenvolvida pelos aztecas, e destruída pelos es-
panhóis), a síria, a "indica" (a precursora da "índia" atual), a índia
(a dos hindus contemporâneos), a hitita, a helênica (a abranger Gré-
cia e Roma), a ocidental, a ortodoxa (com dois ramos: o bizanti-
no e o russo), a oriental (com dois ramos: o da Coréia e Japão,
e o da China), a iraniana, a arábica, a babilônica (a dos assírios
e dos caldeus) .
Não podemos expor aqui os graus de parentesco que existem
entre as diversas civilizações, nem tampouco muitos outros proble-
mas relacionados com êste assunto; para nossos fins, devem bastar al-
gumas rápidas anotações. As civilizações de Toynbee não são orga-
nismos hermèticamente fechados, como as culturas de Spengler, mas
se influenciam mutuamente, tanto no espaço como no tempo (83);
também não possuem "alma coletiva", apesar de se caracterizarem
por certo "ethos" individual (84); tôdas as raças, menos a negra,
conseguiram fazer o salto da sociedade primitiva para a socieda-
de civilizada; as únicas culturas sobreviventes nos tempos moder-
nos são: a dos hindus, a dos islamitas (uma fusão da cultura ará-
bica e da cultura iraniana), a oriental (com os seus dois ramos),
a ortodoxa (com os seus dois ramos), e a ocidental. Mas destas
sete civilizações a ocidental é a única a não mostrar ainda sinais
indubitáveis de decomposição, embora também ela já tenha atra-
vessado crises bastante graves (cf. A Study of History, IX pág.
411) .

. — Além das civilizações adultas, Toynbee conhece civilizações abortivas (não


suscetíveis de vida, por exemplo a dos celtas cristãos na Irlanda), civili-
zações estagnadas (as que ficaram imobilizadas em virtude de terem tenta-
do, e realizado, um tour de force, por exemplo a dos esquimós e a dos es-
partanos), e civilizações fósseis (por exemplo a dos nestorianos na Síria) .
. — Cf. os Vols. VIII e IX: Contacts between Civilizations in Space, e Contacta
between Civilizations in Time. — Por exemplo, a civilização minóica in-
fluenciou a síria e a helênica; a civilização helênica influenciou a ocidental
e a ortodoxa (Bizâncio e Rússia); só a civilização egípcia e a andina não
possuem parentes (nem no passado, nem no futuro).
. --, Por exemplo, a civilização helênica tem "ethos" estético; a ocidental carac-
teriza-se por seu dinamismo e pelo espírito técnico; a dos hindus tem o
gênio religioso; cf. A Study of History, IX pág. 700.
— 187 —

e) Unidades Históricas?
As civilizações, tais como foram identificadas por Toynbee,
não constituem "unidades naturais", no sentido de não serem dados
objetivos e imediatos que se apresentam forçosamente com a mes-
ma evidência interna a todos os pesquisadores; antes são segmen-
tos cortados do imenso caudal da história, cortados, é verdade, não
com arbitrariedade total e sim conforme certos critérios objetivos,
mas sempre originados por um ponto de vista muito relativo (85).
Prova-o o fato de que outros historiadores, ao estudarem a histó-
ria universal, chegaram a unidades históricas bem diferentes (por
exemplo, Spengler, Weber, etc.) . Quem demonstrará terminante-
mente a unidade fundamental da história greco-romana? Não será
possível representar a' Grécia e Roma como duas entidades, origi-
nàriamente muito diferentes, mas que, por uma contingência his-
tórica, acabaram por fundir-se numa unidade mais ou menos inci-
dental? Não poderemos escrever a história da cultura ocidental,
concebendo-a como a continuação direta da helênica, enriquecida
(ou deturpada) com elementos latinos e judaicos?
As civilizações assinaladas por Toynbee fornecem ao histo-
riador abundante material precioso para fazer um estudo compara-
tivo das culturas, mas seu critério de selecionáJlas não exclui a pos-
sibilidade de haver outros cortes, cujo estudo não é menos fecundo
para a historiografia.
Outro inconveniente do método adotado por Toynbee é o fato
de que sua concepção cíclica da história nos ofusca a vista daque-
les elementos históricos que apresentam uma evolução mais ou
menos continua através dos séculos, — a ciência e a técnica. A
teoria dos ciclos históricos, sustentada conseqüentemente, deve le-
var com uma lógica interna à negação de todo e qualquer pro-
gresso histórico. Sem dúvida, Toynbee não nega o progresso (86);
ao contrário, admite-o, apregoa-o e quer preparar a humanidade
contemporânea para uma tarefa grandiosa, mas é problemático até
que ponto tal confiança otimista nas possibilidades humanas se coa-
duna com suas unidades cíclicas selecionadas em razão de métodos
pretensamente empíricos.
III. "Desafio e Resposta".
Antes de acompanharmos a vida das civilizações precisamos
deter-nos alguns momentos diante da pedra angular da teoria de
Toynbee: a "lei" de Challenge-and-Response, idéia fundamental da
(85) . Ao que parece, o protótipo de uma civilização foi, para Toynbee, a greco-
romana, sôbre cujo padrão modela a estrutura e a história de outras civili-
zações, o que, muitas vêzes, não consegue fazer sem forçar os fatos.
(86). — Cf. infra, VII.
— 188 --

obra inteira que, sob formas variadas, reaparece em tôdas as fases


da vida histórica.
As sociedades pré-humanas deram, há 300.000 anos, o pulo
decisivo que, arrancando seus membros do estado de Sub-Men, os
transformava em indivíduos da espécie Homo Sapiens, para, de-
pois, perseverarem, durante centenas de séculos, no repouso, de-
vido à vis inertiae. Como explicar que, há 6.000 anos, algumas des-
sas sociedades primitivas se puseram outra vez em movimento e
iniciaram the Differentiation of Civilization? O autor examina dois
fatôres que, na historiografia moderna, sob a influência das "ciên-
cias positivas", são apontados para explicar êsse fenômeno, a sa-
ber: a raça e o ambiente (geográfico e social), e chega à conclusão
de que as duas explicações são insuficientes.
Em oposição à crença corrente de que o nascimento e o cres-
cimento de uma civilização seriam devidos à presença de circuns-
tâncias excepcionalmente favoráveis, Toynbee sustenta a tese de
que os dois se efetuam sob a influência de uma circunstância des-
favorável; é devido a ela que uma dada sociedade tem de enfren-
tar certo problema, o que lhe ministra um estímulo para uma ati-
vidade em conjunto. Uma circunstância desfavorável é um "estí-
mulo", a que a atividade humana pode dar uma resposta, mas tam-
bém pode deixar de dá-la. Uma civilização, na sua gênese e no seu
crescimento, é uma resposta apropriada e oportunamente dada a um
desafio; quando uma civilização já não consegue dar esta resposta,
podemos falar numa civilização paralisada, decadente ou, — confor-
me o caso, — moribunda. A vida de uma cultura é o ininterrupto
jôgo dialético entre Challenge-and-Response, um jôgo do qual nin-
guém pode prever o resultado.
Assim Toynbee reivindica prudentemente o mistério da his-
tória humana, e frisa o caráter imprevisível dos acontecimentos
:listóricos. There is one thing which must remain an unknown
quantity to the best-informed onlooker, because it rs beyond the
knowledge of the combatants, or the players, themselves; and their
ígnorance of this quantity makes calculation impossible, because
it is the most important term in the equation which the Iwould-be
calculator has to solve. This unknown quantity is the reaction of
the actors to the crdeal when it actually comes (87) . O processo
dialético, admitido por Toynbee, deixa intata a liberdade da pes-
soa humana, e não tem nada de uma lei física . O autor acredita,
— concepção bem anglo-saxônica, — num nobre certame entre
Deus e suas criaturas: Deus criou o mundo, — um mundo perfei-
to no seu gênero, — mas quer que êste mundo se torne cada vez
mais perfeito mediante atos criadores por parte das suas criatu-
(87) . — Toynbee, A Study of History, I págs. 300-301.
— 189 —

ras. Poderíamos dizer também: o estado original em que o homem


foi colocado por Deus, é um estado de perfeição indigente, a cons-
tituir para êle um "desafio divino", ao qual pode responder livre-
mente "sim" ou "não", aperfeiçoando, ou não, a obra iniciada por
seu Criador. Esta inter-ação tão misteriosa e fecunda escapa a uma
análise puramente racional, já que a razão fica ofendida por en-
contrar em Deus certas incoerências, mas a linguagem mitológica de
muitas culturas não sente tais embaraços e exprime o enc'ôntro entre
Deus e os homens em imagens concretas de profundo significado.
Não podemos acompanhar aqui o autor na sua interpretação dos
diversos mitos; basta dizermos que, segundo Toynbee, a Bíblia (o
Paraíso Terrestre, a Queda do primeiro homem, a Redenção, etc.),
a literatura clássica (88), a literatura moderna (89), a sabedoria
do povo chinês (90) fazem alusões discretas à grande lei histó-
rica de Challenge-and-Response (91) .
Vejamos agora a aplicação prática desta lei fundamental.
A civilização chinesa não nasceu nas margens do gracioso Rio
Azul, e sim nas do "demoníaco" Rio Amarelo; a civilização egípcia
não foi "uma dádiva do Nilo" (92), mas uma conquista laboriosa
de tribos imigrantes que, expulsas das suas residências originárias
por causa de uma profunda mudança do clima, transformaram as
regiões paludosas do Vale do Nilo no primeiro país agrícola do
mundo (93). Os recém-chegados achavam-se diante desta alter-
nativa: ou perecerem juntos, visto que o novo país não lhes per-
mitia continuar sua vida anterior de caçadores, ou então, fazerem
um esfôrço consciente e deliberado para vencer as dificuldades.
Não podemos dizer porque os antigos habitantes do Egito não

— Por exemplo, Hesiodus, Opera et Dies, 289; Vergilius, Georgica, I 121-124;


Lucretius, De Rerum Natura, I 62-79. — Toynbee não se refere a uma
das passagens mais expressivas desta idéia na literatura clássica, a saber
Claudianus, De Raptu Proserpinae, III 19-32.
— Por exemplo, o drama Faust de Goethe, em que Deus entra em aposta com
o diabo sôbre a salvação do homem. Cf. o livro de Jó.
— A sabedoria chinesa fala de Yin e Yang, dois conceitos antinômicos e com-
plementares que exprimem o revezamento periódico dos fenômenos cósmicos:
contração e expansão, repouso e movimento (e depois também: trevas e luz,
água e fogo) . Cf. A Study of History, I pág. 202: The Absoluta (T'ai-chi)
moves and engenders Yang. The movement having reached its climax, rest
ensues. From rest springs Yin; and when rest fias reached its dtmost limit,
again movement follows. So we have alternately now movement, now reei.
They together form the balis from which by separation grow Yin and Yang,
so that these are the two enodes. — Cf. também, na filosofia grega, a dou-
trina de Empédocles, segundo a qual a vida do Kósmos obedece a um ritmo
dúplice: Neikos (= ódio) e Philia (= amizade).
— O autor cita ainda Origines, Contra Celsum, IV 76, que diz que Deus criou
o homem em estado de indigência para que êste exercitasse o seu intelecto.
Cf. Herodotus, Historiae, II 5, 1 (a expressão remonta ao logógrafo Hecateu
de Mileto, fragmentum 273).
— Nas margens do Nilo Superior moram ainda tribos primitivas que, segundo
Toynbee, representam o nível de cultura alcançado pelos habitantes origi-
nários do Egito, antes do nascimento da civilização egípcia. — Fenômeno
semelhante ao que se deu no Egito, podemos verificar também na Meso-
potâmia.
— 190 —

chegaram a dar uma resposta apropriada ao desafio do seu am-


biente geográfico, nem tampouco porque os novos imigrantes a de-
ram: aquêles podiam ter respondido, e êstes não; só a posteriori
a história pode verificar o resultado da misteriosa inter-ação.
O que se aplica ao nascimento das civilizações, aplica-se tam-
bém ao seu crescimento, que nada é senão a continuação ininter-
rupta dêste jôgo dialético. The evocation of the greatest immedia-
te response is not the ultimate test of whether any given challenge
is the optimum from the standpoint of evoking the greatest res-
ponse on the whole and in the end. The real optimum challenge
is rather one which not only stimulates the challenged party to
achieve a single successful response but also stimulates him, to ac-
quire a momentum that carries him on a step farther: from achie-
vement to a fresh struggle, from the solution of one problem to
the presentation of another, from momentary rest to reiterated mo-
vement, from Yin to Yang again (94). Eis o élan vital das civili-
zações.
As considerações de Toynbee sôbre o Desafio e a Resposta,
aqui reduzidas a um esquematismo quase desfigurador da sua teo-
ria, são interessantes e, por vêzes, até muito profundas. Mas de-
vemos fazer bom uso dessa lei, o que podemos fazer sàmente por
não tratá-la como uma "lei", no sentido naturalista da palavra.
E o próprio autor parece, de vez em quando, resvalar dos seus
princípios, escorregando a uma interpretação mais ou menos natu-
ralista da sua "lei": desafios fracos, diz êle, não constituem estímu-
lo suficiente, desafios excessivos quebram o homem, desafios-limi-
tes leva a civilizações abortivas (cf. nota 82); por procurar the
golden mean, aproxima-se, amiúde, de uma forma requintada de
determinismo, de uma fórmula moderna do adágio darwiniano:
struggle for life. Será que podemos medir e calcular o reto meio?
Será que podemos determinar de que modo um homem ou uma
coletividade enfrenta a sua situação, seja ela favorável, seja des-
favorável? Até podemos dizer que o homem constrói sua "situa-
ção", na medida em que êle a encara pessoalmente e livremente, e
essa reação humana não é totalmente determinada pelos elemen-
tos "objetivos" da sua situação. Também Toynbee acredita nesta
livre reação, mas, na elaboração da sua teoria, deixa-se, às vêzes,
seduzir por um certo cientismo. Feita abstração dêsses desvios
incidentais, devemos reconhecer que o historiador inglês, com sua
teoria de Challenge-and-Response, abriu perspectivas promissoras
para a historiografia: se não descobriu "leis históricas", no senti-
do próprio da palavra, frisou, ao menos, a importância de certas
regularidades psicológicas para a história da humanidade, regula-
(94) . — Toyabee, A Study of History, III pág. 119.
— 191 —

ridades no comportamento das unidades históricas (indivíduos e


coletividades) que devem ser consideradas como reações razoá-
veis e significativas a uma dada situação histórica (cf. § 65 Ha) .
IV. Vida e Morte das Civilizações.
Depois destas observações preliminares, estamos melhor pre-
parados para compreender a teoria de Toynbee sôbre a vida e a
morte das civilizações. O autor distingue entre três fases: o cres-
cimento, o rompimento e a decomposição de uma civilização.
a) O Crescimento.
Nem a expansão geográfica nem o progresso técnico (95) são
garantias de uma crescimento orgânico de uma civilização: o cri-
tério de crescimento é um processo de "simplificação". Um auto-
móvel é mais simples do que uma locomotiva, o alfabeto latino é
mais simples do que a escrita egípcia ou chinesa, a estrutura da
língua inglêsa é mais simples do que a estrutura do sânscrito, o sis-
tema copernicano é mais simples do que o de Ptolomeu, e o Uni-
verso de Einstein é (para os que o compreendem!) mais simples
do que o mundo de Newton. Há, portanto, um processo de sim-
plificação progressiva na história. Mas: simplification is a nega-
tive word. It connotes omission and elimination; whereas, in the
concrete exemples of the phenomenon from which we have infer-
red the validity of our law, the ultimate effect which the law pro-
duces by its operation is not a diminution, but an enhancement of
practical efficiency or of aesthetic satisfaction or of intellectual
understanding or of godlike love. In fact, the result is not a loss,
but a gain, and this gain is the outcome of a process simplifi-
cation because this process liberates forces that have been impri-
soned in a more material medium and thereby sets them free 'to
work in a more etherial medium with a greater potency H is
a consequent transfer of energy, or shift of emphasis, from one lo-
wer sphere of being or sphere of action to a higher sphere (96). O
critério de crescimento é, portanto, um processo de "espiritualiza-
ção" (etheriafization). Uma civilização cresce, quando os desafios
externos (geográficos e físicos) vêm sendo suplantados por desa-
fios internos: a batalha que agora precisa ser travada, não se diri-
ge contra adversários infra-humanos, e sim se dá no fôro interior
da esfera humana. A civilização entra em desafio consigo mesma.
Por outras palavras, crescimento quer dizer progresso rumo à auto-
. —Ibidem, III pág. 211: In some (gifts) there is a potential tragedy as well
as present burden. Man was ethically tmprepared for so great a bounty.
In the slow evolution of morais he is still unfit for the trernendous tesponsi-
bility it entails. The command of Nature has been put foto his hands before
he knows how to command himself
. — lbidem, III pág. 183.
— 192 —

determinação (self-determination) de uma dada sociedade huma-


na, and progress towards self-cletermination is a prosaic formula
for describing the miracle by which Life enters finto its Kingdom
(97) .
Êste progresso não é realizado pelas "massas" que, devido à
vis inertiae, tendem a perseverar no estado de repouso; realizam-
no indivíduos geniais e minorias criadoras. Ora, uma civilização
crescente caracteriza-se por haver um certo grau de espontaneida-
de nas interrelações entre êsses dois grupos. Numa civilização cres-
cente, as massas são tampouco capazes de criar novos valores co-
mo em qualquer outra sociedade, mas, fascinadas pelo poder má-
gico das figuras criadoras, aceitam e adotam, sem coação exter-
na, as inovações dos seus líderes. Destarte as criações acabam por
estender-se à sociedade inteira: a mimesis espontânea possibilita
um fecundo jôgo dialético entre as minorias e as massas. Claro
que a mimesis é praticada conforme as aptidões de cada um dos
membros de uma sociedade: para alguns, ela é apenas social drill;
para outros, pode ser um entusiasmo autêntico e compreensivo origi-
nado pelo exemplo inspirador dos seus líderes. E as respostas que os
indivíduos geniais e as minorias criadoras conseguem dar aos desa-
fios sucessivos de uma civilização crescente, não vêm improvisa-
das. Pele contrário, podemos verificar que elas são preparadas pe-
lo dúplice movimento de Withdrawal-and-Return. Indivíduos e
grupos criadores isolam-se temporariamente da sua comunidade, e
na solidão preparam-se para sua futura atividade: não há ativida-
de fecunda sem prévia meditação, e o êxtase dos místicos redunda
em ação num plano superior. "Se o grão de trigo que cai na terra
não morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto"
(Ev. João, XII 24-25) . O isolamento poderia parecer uma morte,
mas, na realidade, é princípio de nova vida. Assim devemos en-
tender o recolhimento de Moisés no monte Sinai, o de Jesus no de-
serto, o de São Paulo na Arábia; e o withdrawal não se limita a in-
divíduos, mas se aplica também a minorias, e até a cidades e paí-
ses. Na medida em que uma civilização consegue atravessar su-
cessivamente número maior de fases alternativas de Withdrawal-
and-Return, torna-se mais rica, mais diferenciada, mais espiritual.
b) O Rompimento .
Em tese, uma civilização poderia continuar sem interrupção
dando respostas apropriadas aos desafios que se lhe vêm apresen-
tando no decurso da sua história; mas a experiência nos mostra
que tôdas elas, inclusive a ocidental, tiveram um breakdown, uma

(97). — Ibidem, III pág. 216.


— 193 —

perda das faculdades criadoras nos indivíduos e nas minorias, e


uma perda da mimesis espontânea por parte das massas. O rom-
pimento de uma civilização não é causado por uma saeva ne-
cessitas nem pela diminuição do domínio humano sôbre o ambiente
físico nem pela invasão de hordas bárbaras; antes é the failure of
self-determination, a revelar-se na mecanização da mimesis social,
no fato de se tornarem pouco manejáveis as instituições, e na "nê-
mesis" das faculdades criadoras. O mecanismo do social drill, já
presente na fase anterior, vai assumindo proporções assustadoras;
as massas já não são inspiradas pelo élan vital das minorias cria-
doras, mas imitam-nas automàticamente, sem apropriação original,
e geralmente só num plano utilitário, ou então, passam a ser do-.
minadas por elas; it is not the triumph of Life over Matter, but
the mastery over Life (98) . Numa civilização crescente, uma cer-
ta harmonia social é mantida por um constante reajuste das ins-
tituições sociais às novas idéias; agora, na época de rompimento,
a civilização vai perdendo esta flexibilidade, e procura "deitar vi-
nho novo em odres velhos" (Mt. IX 17) . Mas essas medidas in-
suficientes levam a social enormities, instituições anacrônicas que,
com o tempo, se tornam cada vez mais insuportáveis e acabam
sendo dinamitadas por revoluções. E as minorias criadoras, que
conseguiram dar uma resposta satisfatória a um determinado desafio,
geralmente não conseguem dar uma segunda resposta satisfatória;
numa civilização crescente, elas são substituídas por outras minorias,
mas, chegado o breakdown, elas se deixam embriagar por suas pró-
prias realizações, chegando a idolatrá-las e a impô-las com fôrça às
massas. E' a antiga história herodotiana (cf § 73 Ib) de hybris e ce-
gueira concomitante que provoca a ruína de indivíduos e de socie-
dades. E' a peripéteia, "a inversão dos papéis", tão catastrófica pa-
ra a vida de uma civilização: os criadores espontâneos de ontem
transformam-se nos reacionários tirânicos de hoje. Assim Atenas
no século IV a. C. queria ser uma repetição da Idade de Péricles;
assim os judeus, chamados a propagar o Reino Universal de Deus,
rejeitaram Cristo; assim os papas, intoxicados pelo sua vitória sô-
bre a simonia, as desordens sexuais do clero medieval e as fôrças
centrífugas que lavraram na Cristandade, começaram a cair nos
mesmos erros dos seus antigos adversários.
c) A Decomposição.
Esta fase é a continuação do breakdown, mas os sintomas de
crise se tornam mais visíveis, mais graves, e — com o tempo —
quase insuportáveis. Os desafios não cessam de aparecer, mas a
sociedade não é capaz de dar-lhes uma resposta satisfatória; after
(98). — Ibidem, IV pág. 125.

Revista de História n.o 35


— 194 —

each successive failure to respond to it, the old unanswered chal-


,

lengë nts itself eVer mie in4steritfy ahd in aA'evér' More' for-
'shaPe,"until at it quite dominate and: bbsesses and
pverwhelms the iinh — a.P.Py sóills that are being . Progressively defea-
'tád'Sk it -09)."Tárnbém rzuí
aqui não reiná a 'implacável Necessidade,
porque nunca podemos predizer bom certeza - que um indiyíduo ou
. •
uma sociecade grayernente doente nao possa recuperar-se. Toyn-
bee diz, com o ateniense Sólon; Rèspice finem (100) e julga que
"os sofrimentos podein ser ensinamentos" (101).
A- epoca de decompósiçao . (desintegration) caráctérizd-se pe-
ia preSeWça de Várias''''cisõe'S". Comhate m-se as diversas' organiza-
ç oes polít icas que 'cohftittiem o conjunto de "iima "civilização, em
ções
›gliérrá'S i'm'Piedósa's e fratricidas. Internamente, o
corpo social é ilexado'peti- revoluções e atos brutais de ()Pressão so-
cial é econômica. A essas cisões sociais corresponde um Schism
• c . -
in 'the Sel..;1:- •- t-•"-
'A minoria dominaddra, 'agora completamente estéril e petri-
ficada, provoca, sem' querer, o nascimento de novas minorias cria-
doras: uma dela's, comfids'tá de militaristas e de piofiteurs, cria
the Universal State (101aS pondo ferino à "Época das Perturba-
ções" (102); outra 'minoria, proYinda do "proletariado interno" e
'irispirácid -'Por" escolS. filóSófida, Cria - the 'UniVersal'Cliurch. Fora
do território da civiliiação, formamsé bandós de guerreiros (o
"proletariado' externo"), prestes a' invadir o organismo moribundo.
Mas riem o' Império Univers'al nem as hordas de bárbaros invaso-
res têm futuro: só 'à Igreja - Universal cabe ligar o futuro com o
'passado, sendo i'crisálida de 'uma futura civilização (103).
Uma civilização crescente irradia as suas luzes ao longe, che-
gando a deslumbiár com o' seu prestígio os bárbaros vizinhos que,
hão raras vêzes, acabam por ser integrados na civilização admirada;
mas uma civilização decadente é só capaz de transmitir-lhes certas
organizações sociais e políticas e, sobretudo, certos inventos téc-
nicos e armas militares que, com o tempo, serão dirigidas contra a
(99). — Ibidem, V pág. 13.
,(100) . — Palavra .atribuída por um poeta anônimo (in Anthologia Palatina, IX 366; cf.
Herodotus, Historiae, I 32, 5) a Sólon; geralmente, cita-se dêste sábio e es-
tadista ateniense a palavra: "nada demasiadamente" (grego: medèn ágen) .
— Palavra de Aeschylus, Agarnemnon, 146: páthei máthos (cf. § 73 Ic, nota 16) .
(101a) . — A fundação de "Estados Universais" é geralmente saudada pelos contem-
porâneos com sentimentos de entusiasmo caloroso ou, pelo menos, aceita com
certa resignação (cf. nota 117); uma vez consolidados, apresentam-se à ima-
ginação dos contemporâneos como construções eternas (cf. Roma eeterna,
§ 73 lie) e, mesmo muitos séculos depois do seu desmoronamento, continuam
fascinando a imaginação da posteridade. Na realidade, não passam de Indian
Summers, cf. Toynbee, A Study of History, IV pág. 59.
— O têrmo "Época das Perturbações" foi sugerido a Toynbee por um episódio
da história tussa, que já encontramos no § 116 III, nota 36 (em russo:
Vrémia Strrutnáie) •
— Nos volumes escritos depois da Segtinda Guerra Mund , d, Toynbee passa
a ter outra idéia do , papel histórico das "Igrejas Universais", cf. infra VIII.
-- 195 —

vida da própria civilização. Os "bárbaros" dóceis de outrora trans-


formam-se em ,"proletários externos" que se ,insurgem contra o Im-
pério Universal e, geralmente, acabam por destruí-lo . Do ponto de
vista dos "proletários externos", esta época de, desintegração do Im-
,

pério Universal é the heroic Age.


Mas as cisões sociais patenteiam uma cisão mais profunda
ainda: the Schism in the Soul cios indivíduos humanos que vivem
nesta época . In the desintegration-phase each of the single fi-
nes of action is apt to split into a pair of mutually antithetical and
antipathetic variations or substitutes, ,--- one passive and the other
active, but neither ,of them creative. A choice between the active
and the passive option is, the only freedom f t to a soul
which has lost its opportunity (not capacity) for free preati-
ve action thorugh being cast for a .part in the tragedy of social
desintegration as either one of the villains or one of .thevictims of
the piece. The spiritual experience of schisrn in the soul is a dy-
namic, movernent, not a static situation (104). Algumas dessas
alternativas são, no plano do comportamento individual: abandô-
,

no e auto-contrôle (as duas atitudes substituem o exercício das fa-


culdades críadoras), bem como deserção e martírio (as duas atitu-
des substituem a mimesis); no plano dos sentimentos sociais: pro-
miscuidade e uma tendência niveladora; no plano da vida, apre-
,

sentam-se dois pares de tendências antitéticas: arcaismo e futuris-


mo (êste, geralmente, entre os "proletários internos", aquêle en-
tre os membros da Minoria dominadora), e desapêgo e transfi-
guração. Toynbee consagra quase dois volumes (V e VI) à aná-
lise dessas antinomias, das quais só a transfiguração significa uma ver-
dadeira atitude criadora, visto que se compõe de dois momentos com-
pletamentares: Withdrawal-and-Return. Poderá transformar o mun-
do só quem tiver a coragem de abandoná-lo, não levado por sen-
timentos de ódio ou desprêzo, e sim com o intuito de regressar
a êle, mas agora integrando-o no Reino intemporal de Deus: a
história humana transforma-se numa província da Cidade de Deus.
Numa civilização decadente surgem, por tôda a parte, "sal-
vadores" que prometem a salvação à humanidade sofredora. Al-
guns deles querem salvar o mundo pela espada, outros pelo poder;
uns querem restaurar um passado irrevogàvelmente perdido (os
arcaistas), outros sonham com um estado paradisíaco no futuro
(os futuristas); uns ensinam resignação e virtude (os fundadores
de escolas filosóficas), outros procuram consôlo em novos deuses
(os fundadores de religiões. ) Mas todos êles são would-be sa-
viours, incapazes de salvar os indivíduos ou as civilizações. Dos
salvadores-homens poucos têm a coragem de aceitar voluntària-
(104). Toyabee, A Study of History, V pág. 376.
— 196 —

mente o sofrimento em prol da humanidade; nenhum dêles é com-


pletamente livre de egoísmo, de hipocrisia, de orgulho, ou então
de utopismo revolucionário; todos êles acabam praticando atos de
violência ou abandonando covardemente o mundo pelo que de-
monstram que o homem é incapaz de salvar o homem. Os deuses-
salvadores das mitologias (Dioniso, Orfeu, Osrris, Mirras, etc.)
morrem, mas sua morte é um decreto inelutável do Destino a que
também os deuses estão sujeitos (105) . Houve um único Salva-
dor divino que selou sua obra de salvação com a morte voluntária,
levado que foi por um amor inefável ao gênero humano: Jesus
Cristo: "Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu seu Filho
Unigênito, para que todo o que crê nele, não pereça, mas tenha a
vida eterna" (Ev. João, III 16).
Eis o fim do Volume VI de A Study of History: o autor tinha-
nos prometido um estudo empírico da história, mas terminou-o teo-
logizando, com uma longa digressão sôbre Christus Patiens. Mui-
tos críticos levantaram a voz contra essas divagações edificantes
de Toynbee e, ao que nos parece, com razão. Devemos reconhecer
que esta conclusão constitui um elemento postiço no seu estudo cien-
tífico das civilizações. Ne sutor ultra crepidam! (106). Acredita-
mos com Toynbee na necessidade de uma transfiguração da nossa
vida individual e da nossa vida cultural, cremos com êle em Jesus
Cristo, Deus-Homem, o único Salvador do gênero humano, mas não
julgamos convincentes os seus argumentos nem lógicas as suas
deduções nem científico o seu método. Porque não poderia haver
uma repetição da morte voluntária de um Deus-Salvador? Porque
Jesus é o único Salvador, o verdadeiro Deus e o verdadeiro homem?
-

Seu método de confundir história e„nri teologia é irritante para os


historiadores e desconcertante para os teólogos. Mais adiante ve-
remos que sua mania de teologizar tem piorado.
V. Um Exemplo Concreto.
Achamos conveniente ilustrar as teorias abstratas, tais como
foram expostas nas páginas anteriores, com um exemplo concreto;
para tal fim escolhemos a civilização helênica, escolha essa que se
justifica metõdicamente pelo fato de que a história da Grécia e de
Roma sugeriu ao autor sua concepção básica da vida das civi-
lizações.
A civilização helênica nasceu como uma resposta das tribos
aquéias ao desafio da civilização minóica, da qual eram os "prole-
. — Cf. § 73 lIf . ' •• .
. -- Cf. Plinius, Naturalis Historia, XXXV 85: feruntque (Apellem) reprehensum
a sutore, quod in - crepidis una pauciores intus fecisset ,ansas, eodem postem
die superbo. emendatione pristinae admonitionis cavillante cirça crus, indig-
natum prospexisse denuntiantem ne supra crepidam autor judicaret, quod et
,, ,.
ipsum in proverbium abiit.
- ,
— 197 —

tários externos" (107) . Esta época é the heroic Age do povo gre-
go, e seu. "ethos" guerreiro revela-se-nos ainda na Ilíada de Home-
ro. Com o tempo, os aqueus conseguiram destruir a "talassocracia"
cretense, acontecimento histórico comparável à invasão dos bár-
baros no Império Romano. Quando, por volta de 1200 a. C., os
dórios começaram a penetrar na Grécia, os aqueus achavam-se dian-
te de outro desafio: deviam assumir a herança da "talassocracia"
cretense, restabelecendo a ordem no Mar Egeu: the first question
waa whether a new order would assert itself in this void and form-
less world . Would the sediment of an olor civilization be buried un-
der the shingle which the new torrent of barbarism had brought
down in spate?. . This first challenge to the life of the infant
Hellenic Civilization was victoriously met. . .; and (the) victory
decided that Hellas should be a world of cities and not of villages>
of agriculture and not of pasturage, of order and not of anarchy
. Depois de ter alcançado esta primeira vitória, a Grécia
aumentou em prosperidade e em população, mas êsse crescimento'
não tardou em criar outro desafio: o problema da superpopulação,
tão freqüente no mundo antigo. Os gregos deram-lhe uma resposta
apropriada por estabelecerem colônias em volta do Mar Mediter-
râneo; a colonização estimulava-os a melhorar sua técnica de guer-
ra e sua arte de navegação; o comércio começava a prosperar.
Passados alguns séculos, duas cidades gregas, Atenas e Esparta,
enveredaram por dois caminhos diferentes para solucionar os pro-
blemas provenientes da superpopulação: Esparta procurava satis-
fazer às suas necessidades pela subjugação dos messênios, o que
resultava na militarização da cidade (109), Atenas descobria uma
solução original que consistia em fabricar artigos especializados pa-
ra fim de exportação (agrícolas e industriais) e em desenvolver
suas instituições políticas em sentido liberal e progressista (Sólon!);
não houve aqui revoluções violentas, e sim reformas sociais e eco-
nômicas; não houve expansão para fora, e sim intensificação para

(107) . — Em oposição à civilização ocidental que é uma affiliated society da civili-


zação helênica (mediante uma Igreja Universal), a civilização helênica 4.
uma infra-affiliated society da civilização minóica, the relation in this r-qae,
consisting simply in the fact that the later society has been precipitated by
a Volkerwanderung (= Migração de Povos) which has accompanied the fali'
of the earlier society's universal state (Toynbee, A Study of History, I pág.
130) . Mas o autor acha possível que o "Orfismo" grego seja reminiscên-
cia de uma "Igreja Universal" (cf. ibidem, I pág. 131, nota 4) e nesta hi-
pótese a civilização helênica seria uma affiliated society da civilização minóica_
(108). — Ibidem, III pág. 120.
. — Em conseqüência dêste fato, Esparta se transformou numa "civilização es-
tagnada" (arrested civilization). Ao passo que esta cidade prometia muito
no século VII, os espartanos a partir da Primeira Guerra Messênica, tendo
de fazer extremos esforços para conservar o território conquistado, torna-
, ram-se os escravos das suas conquistas. As duas características de uma
"civilização estagnada" (cf. supra, nota 82) são o desenvolvimento de cas-
tas sociais e "super-especialização", cf. Toynbee, A Study of History, III
págs. 50-79.
— 198 —

dentro. E' o período fecundo de Withdrawa/-'and-Return de Ate-


nas: Athdns more or less deliberately segregated herself from the
main body of the Hellenic World for upwards of two centuries.
Yet these two centuries were not 'centuries of Athenian inactivity.
Athens proclaimed her return by the sensational gesture of thro-
wing down the gauntlet to the Persians (110) .
O breakdbwn da civilização helênica deu-Se em 431 a. C, quan-
do estourou a Guerra dó Peloponeso. Nem. Atenas nem outra ci-
dade grega conseguia descobrir uma solução satisfatória do proble-
ma da 'unificação pacífica da Grécia: a economia da época já•pos-
suia um caráter "nacional" e até internacional, mas a pólítica ido-
latrava a forma anacrônica da pólis. Os restauradores da demo-
cracia ateniense sonhavam com a Idade de Péricles, tendo a ilusão
de poder repeti-la num mundo profundamente alterado. Durante
a Guerra do Peloponeso podemos verificar também o nascimento
de um "proletariado interno" (111), que tanto havia de desenvol-
ver-se nos séculos seguintes: Nos livros desta época encontramos
poucas idéias políticas construtivas, mas muitas utopias irrealizá-
veis (112). As guerras travadas entre as diversas cidades ficam
com um aspecto cruel: são guerras de extermíniô (113). As con-
quistas grandiosas de Alexandre Magno não modificaram substan-
cialmente esta situação: seus sucessores liqüidaram ou enfraque- -
ceram as antigas páleis, mas só para substituí-las por parochial mo-
narchie,s, ao passo que a única verdadeira solução dos problemas
políticos da Grécia seria 'um Sistema de federalismo. Apesar de se
desenvolverem certas técnicas, principalmente a arte militar (fa-
lange!); a Grécia entrou numa fase dè estagnação. ' Os filósofos,
desobedecendo à- ordem de Platão, já não se interessavam pelos
negócios do Estado ou consideravam uma 'vida' dedicada à ativi-
dade política como uma dura obrigação, cumprida com pouco amor
e com pouca esperança (114); the great refusal of Philosophy abria
o caminho para os aventureiros e os profiteurs, que se serviam de

(110) . — Ibidem, III pág. 337.


(1.11) . — Cf. Thucydides , Historias, III 81-82.
. — Toynbee, A Study of. History, III págs. 89-90.
. Por exemplo, o tratamento bárbaro dos melenses pelos atenienses (cf. Thu-
. „ cydides, V 89-116), o dos habitantes de Olinto por Felipe II, o dos teba-
nos por Alexandre Magno, o dos cartagineses e dos coríntios pelos roma-
nos, etc.
. Toynbee, criticando as palavras de Plotino ("Ação é urna forma enfraque-
cida de contemplação", in Enneades, In 8, 4) e citando, em confirmação
da sua tese, uma página de H. Bergson (Les Deus Sources - de , la Mareie et
de la Religion), diz (in A Study of History, III pág. 255): The reason
why "the great refusal" was made by the Hellenic philosophers is celso dera.
Their moral limitation was the consequente of an error hl belief. . Believing
that the ecstasy and not the return was the be-all and end-all of the
spiritual Odyssey on which they had ernbarked, they saw nothing but a
sacrifice on the altar of duty in the painful return which wo.< really the pur-
pose and meaning and culmination of the mavement in which they were en-
ásáed •
— 199 —

cada vez maior número de déracinés para atingir os seus fins interes-
seiros. /t is not the conquered barbarian nor even the hellenized
ental but the desinherited Hellene hirnself who'is •the most sordid re-
presentation of the Hellenié internai proletariat (115): estas massas
sem verdadeira pátria, sem vínculo; com o passado, sem confiança
nos seus antigos líderes e sem respeito pela minoria dominadora,
estão prestes a vender-se como mercenários ou como rebanhos elei-
çoeiros, sempre rancorosos e aguardando ima, oportunidade para ti-
rar vingánça. E as minorias dominadoras praticam uma economia
depredatória, consideram o mundo como uma piêsa ,privada, e esta-
belecem ,uin ,regime de opressão e terror. (116)
Às guerras civis que assolavam o .,mundo r,antigo (Time of
Troubles) pôs têrmo o braço foi:te de Augusto, o fundador (não
isento de certo "arcaísmo") do Império Romano (the Universal
State). Comparado como período de desordens políticas e sociais
que o precediá, o Império RománoSignifiéàva, Sem dúvida, uma
relativá rectipéra0o (rally) e seu" nascimento foi saudado por poe-
tas e oraddres cómr palras dé en'tusiá-sin..5 sincero . (117). Mas o
Império, Romano, como todos os EstaeloS.Úniversais,. sofria 'de al-•
grimas doenças interrias :;qué, `cOM o témpb; se iam ááéntuando: a
Flaxr Romana era brutalmente imposta • (118); a manutenção da
únidade e dá ordem exigia' eXército's'disperidiásoe
buroCrática exorbitante; á unificação' do Murido 'criava inevitáVel-
mente um certo , nivelamento incolor e provocaVa, p"or outro lado,
sentimentos de rancor e de virigança; . è afinal,' em vez dé se cozi,
siderar o Império Romano' Como mil instrumento,' era Cáda Vez màis
idolatrado como se fôsse um firP em si. Aumentava, no dectirSo dos
séculos, o abismo entre as' minorias dominadoras e o proletariado
interno, fundador — através de uma minoria 'pr'ovirida da classe
dos proletários — de uma nova religião, ó • Cristianismo (the Uni-'
versal'Church) ritmo de àesiritegraeão do Império Rbmano .

verifichVá-se em 3 e'meib -c6Mpa;Sos (119): de 31:á.' C.' a 68 d. C.

. — /bidem, V pág. 67.


. — Cf. a opinião de Spengler, § 126 IVe.
. — Por , exemplo, por Vergílio Horácio e tantos outros. Nos tempos dos Anto-
ninos, escreveu o sofista ' P. Elio Aristides um panegírico In Romem. Na
época da extrema decadência romana, o retor gaulês Rutílio Namaciano '
(De Reditu) ainda acreditava na imortalidade do Império Romano.
(118). Cf. Tacitus, Agricola, 30: (Romani) raptores orbis, postquam caneta voa-
tantibus defuere terrae, et mate scrutantur: si locuples hostis est, evadi si
pauper, ambitiosi: quos non oriens, non occidens satiaverit. omnitun
opes atque inopiam pari affeetu concupiscim t Auferre, trucidara, tapete
falais nominibus "imperium"; atque, ubi solitudinem feciunt, "parem" eppellant.
Quem fala, é Cálgaco, um dos príncipes britânicos.
(119) . O breakdown de uma civilização é a primeira derrota (rout) da mesma, e
a fundação de um Estado Universal é a grande recuperação (rally) de urna
civilização "rompida": ao rout de 431 a. C. seguiu-se o rally de 31 a. C. Mas
essas duas , datas marcam' apenas as ondulações amplas do ritmo em que se
verifica o Processo . de rompimento; dentro delas há ondulações menores. Ora,
o ritmo de decomposição de uma civilização verifica-se em three and a hal!
— 200 —

temos o período de rally, imediato ao rout das guerras civis; em


69, deu-se o segundo rout ("o ano dos quatro Imperadores"), se-
guido de outro rally, que vai até 180 d. C. (a morte do Imperador
Marco Aurélio); o terceiro rout é constituído pelo período de lutas
políticas entre 180 e 284 d. C. (a subida de Diocleciano ao trono
imperial); mas a recuperação do ano 284 foi a última resposta
construtiva que o mundo antigo conseguiu dar, e a resposta (como,
aliás, a de todos os rallies) teve resultados pouco duradouros; em
375, atravessaram os godos o Danúbio e iniciou-se a Época das Mi-
grações, e a êste rout não se seguiu nenhum rally. Podemos con-
siderar a época de 375 a 675 como um Interregnum que, do ponto
de vista dos bárbaros, é the heroic Age dos povos germânicos, des-
tinados a criar uma nova civilização.
VI. Ciclos Históricos e Progtesso.
Pergunta-se com muita razão se a concepção cíclica da his-
tória é compatível com qualquer conceito de Progresso. O próprio
autor, adivinhando esta dificuldade, tentou repetidas vêzes esclare-
Cer seu pensamento a êsse respeito.
Depois daquilo que ficou exposto acima (I e III), não preci..
samos repetir que Toynbee não quer nada saber de determinismo
histórico e que seus ciclos históricos são toto caelo diferentes dos
de Nietzsche ou de Spengler. Mas como reconciliar a idéia de
civilizações obedientes a um esquema uniforme de vida e morte
com a idéia de Progresso, digna de um arauto da liberdade huma-
na? Cómo harmonizar as repetições dos movimentos circulares com
a unicidade dos acontecimentos históricos? Toynbee, para ilustrar
seu pensamento, recorre a esta metáfora: o movimento repetido
das rodas de um carro possibilita um movimento maior, não reite-
rativo, rumo a um fim. We have to distinguish between the move-
ments of the part, and of the 'whole and between the natures of
the means and of the e nd... The movement of the wheel is ad-
rnittedly repetitive in relation to .the wheel's own axle; buli the, wheel
has oniy been manufactured and fitted to its axle in order to
become a part af , a vehicle; and .the fact that the vehicle can oly
move -in virtue -of the •wheel's circular movement round the axle
does not compel. the vehicle itself to travel like a merry-go-round
in a circular track. It is true that, without the repetitive circular
movement of the, wheel, the vehicle could not move on any track
at all; but while the wheel is indispensable to the vehicle as a
means of locomotion, it is incapable of dictating the course on

beats o! the movement o! Rout-and-Rally, cf. Toynbee, A Study o! History,


VI pág. 286. Ao que nos parece, há uma sutileza quase pedante nesta afir-
mação.
-- 201 —

which the vehicle is to move when orce the wheel is working and
the vehicle's powers of locomotion are thereby assured (120) .
Embora 20 das 21 civilizações nos hajam precedido na mor-
te, não há motivo imperioso para crermos que a nossa ruína seja
fatal, nem tampouco que a nossa civilização ocidental seja apenas
uma repetição vã daquilo que os romanos e os gregos já fizeram
.

antes de nós, e com muita habilidade. Mas em que reside a ori-


ginalidade da nossa civilização (e de tôdas as civilizações "secun-
dárias" e "terciárias") ou qual é a meta final para que corre o
carro da história, o autor não nos diz rios primeiros seis volumes.
Nas suas publicações posteriores , à Segunda Guerra Mundial,
Toynbee, cada vez mais abandonando o método empírico e cada
vez mais preocupado com o destino do mundo contemporâneo, re-
vela seu pensamento sôbre o que, segundo êle, constitui o signi-
ficado da história humana. No livro Civilization on Trial, consi-
dera o mundo histórico como "uma província do Reino de Deus",
um fragmento autêntico de um todo mais vasto, do qual o traço
central e dominante é — no panorama espiritual da alma — sua
relação com Deus. O único processo autêntico é o progresso espi-
ritual, e todo o progresso técnico e científico não passa de um meio
para atingir êsse fim (121). "Um tipo de progresso espiritual...
que daria sentido à história e justificaria, por assim dizer, o amor ,

de Deus por êste mundo e sua encarnação nele, — seria um au-


mento cada vez maior dos meios de graça, postos à disposição de
cada alma, neste mundo. Naturalmente há elementos — e muito
importantes — na situação espiritual do homem, neste mundo, que
não seriam afetados pelo aumento nos meios de graça disponíveis.
Essa situação não afetaria tampouco nem a tendência inata do ho-
mem
. para o pecado, nem sua capacidade para conseguir sua sal-
vaçao neste mundo... O efeito real — e transcendental — de um
aumento crescente nos meios de graça que estão à disposição do
homem, neste mundo, seria tornar possível às almas humanas, en-
quanto nele se acham, de chegarem a conhecer a Deus, e O amarem
em uma forma mais.próxima da Sua" (122). O significado da téc-
nica européia reside talvez em ministrar ao Cristianismo a pos-
sibilidade de uma repetição, desta vez inteiramente universal
do Império Romano. O Cristianismo poderia tornar-se o herdeiro
. — /bide" IV págs. 34-35. — Cf. Karl L6with, Meaning in History, The Uni-
versity of Chicago Press, 1950, págs. 16-17.
. — Cf. Toynbee, A Study of History, VII pág. 562: Servants of God will be
aware that spiritual progress, in this sense, will incidentally bring mundana
progress in its trair (cf. Mt., VI 33 e Lc., XII 31) ... They will also be
aware that, on the principie of Solomon's choice, the mundana progress that
will be mede in this incidental way will be lar greater than the utmost that
could be attained by aiming direct at a mundana goal (cl. 'as palavras de
Montesquieu, § 87 III) .
(122). — Toynbee, A Civilização posta à prova, trad. port., São Paulo, Editôra Na-
cional, 1953, págs. 249-250.
— 202

espiritual de tôdas a's outras religiões superiores (budismo, hin-


duísmo, Islam, ètc.) e dè tôdas as filosofias desde a de Echnaton
até''a de Hegel, enquahtó
- a Igreja Cristã, como instituição, conti-
nãària como herdeira social de tôdas as outras igrejas e de tôdas
as `outras civilizações (123): E o veículo dessa integração mun-
dial poderia ser, talvez, a mais rija entre tôdas as instituições se-
culares dêste mundo: a Igreja Católica with the spear of the Mass,
the shield . of the Hierarchy and the helmet of the Papacy (Civili-
.zation on Trial, pág. 242).
Nos últimos volumes • de A Study of History, ouvimos um tom
meio diferente. Desenvolvendo uma tese; já abordada em Civili-
zation on-Trial, segundó a qual' as religiões não são as fâmulas das
civilizações, irias estas daquelas, 'o autor diz francamente: Religion
is the troe End of Mankind (124): as civilizações estão para as
'sociedades primitivas -como as religiões superiores para as civili-
zações. Mais adiatite (VIII) . pretendeinoS' esclarecer o que Toyn-
bee entenderpor "religiõeS superiores" 'e qual é sua idéia sôbre as
-suas interrelaçõe's; Aqui basta dizermos que, segundo o autor, exis-
te, 'de fato, utri progresso. histórica, que' êssè progresso poásui sig-
nifiCádo,essenCialinente religioso, e i que 'a evolução religiosa da hu-
manidái:lé''obedé-ce, nas linhas geçais, ã êste esktiema. Das socie-
dades prirriitWas nascem algumas "civililaçõés primárias" (por exem-
pla, a"egípeia e:á sumérica); no período 'de' desintegração dessas ci-
vilizaçõás, originám-se; graças à aparição de "salVadores divinos",
certas' "reliàiõès superiores rudirhentares", criadas ou adotadas pe-
lo "proléiárlada interno" (por' exemplo, o''-c'ultd de Isis e Osíris, e,
o dé Tamús e •Astarte). Em seguida, podemos verificar o nasci-
mêntd de "civililaçõ'és sécundárias"; derivadas, por caminhos dife-
rentes, das "priniáriáS" (por exemplo, a babilônica, a síria, a helé-
niCa, a sifiica e indica); entradas essas na fase de decomposição,
seu "proletariado interno" cria ou adota as chamadas "religiões su-
periores' prirnáriáá", cujas' .representantes mais importantes são o'
judaísirió é o Cristianismo;' o hinduísmo, o budismo, e o Islam).
Agora chegou a vez 'das "civilizações' terciárias", derivadas das "se-
cundáèias" através de "Igrejas Univeráais": delas sobrevivem, nos
temphs atuais, embora alquebradas por crises sérias, a dos hindus,
a oriental (2 ramos), a "islamítica" (uma fusão da civilização ará-
rica e da iraniana), e a cristã (a ocidental, e as duas ortodoxas).
Mas o "proletariado interno" dessas civilizações cria ou adota, por
sua vez, "religiões superiores secundárias" (por exemplo, o raskol
na ,Rússia, cf. § 116 Md).


<123) . — lbidern,' págs. 227-228."' •
<124). — Toyabee, A Study et Hitsory, VII pág. 448.

— 203 —

Se Toynbee fôsse coerente consigo mesmo, as "religiões superio-


res secundária" deveriam ser superiores às "religiões superiores pri-
márias", e deveria haver uma repetição usque ãd infinitum de civili-
zações, a originarem formas cada vez mais espirituais de religiões.
Mas, chegado a •êsse ponto, o autor faz de repente uma reviravolta
inesperada e diz: there was no warrant for expecting to see History
repeat itself by casting this new batch of religions (foi this old role
if the truth lay, not in the chrysalis theory, but in its converse.
If the-truth"Was 'that Religion is the 'true end of Man, and that
civilizations have their "raison d'être" in ministering to spiritual
progres& then, once again, a civilization might break dawn, but
the replacement of one higher religion by another need not be a
necessary consequence... As for the rudimonts of secondary hi-
gher religions..., these might be drawn back into the main stream
of Mankind's religious life, 'to make creative contributions to its
How in this reach of the river, or they znight drain away into the
desert and láse themse/ves in - its sands (125). Do mesmo modo
que Toynbee, fàlando dos deuses-salvadores, fazia uma exceção em
favor de Jesus Cristo, assim, falando das religiões superiores, acha
que a humanidade, com a i hegada do Cristianismo, do Islam, do
Budismo e do 'Hinduísmo, the fully-fledged Higher Religions,
— não precisa esperar a vinda - de formas superiores de religião.
O mundo 'teria entrado, pelo menos virtualmente, num estádio de-
finitiiío de religiosidade, para o qual tôdas' as fases anteriores não
pasariain . de um enorme preâmbulo. Quem não pensa aqui no
"Progressismo" de Hegel? (cf. § 96 VI).
,VII. As Perspectivas da Cultura Ocidental.
A' civilização ocidental, muitas vêzes identificada pelo autor
com 'Western Christianity (126), já teve o seu breakdown. O pri-
meiro rout do Ocidente deu-se nos meados do século XVI (127),
com gbeí'ras religiàsas 'que •se prolongaram até o ano 1648. O

Ibidem, vrI pág. 448.


R. Niebuhr (in Faith and History, New York, Charles Scribner's Sons, 1951,
pág. 217) observa com muita razão que o adjetivo "cristão" aplicado ao subs-
tantivo "civilização" possui significado muito diferente de outros adjetivos,
tais como "grego, ocidental", etc:. To speak of our Western civilization as
"Christian" is to analyze it on a different levei than when we speak of it as
democratic. It may die as a Christian civilizador and yé't live as a demo-
cratic one, and vice versa. Is moderre secularism in the West the executor
ol judgment upon, or the inheritor of, a "Christian civilization"? And is the
current communisrn of what Toynbee identilies as "Eastern Christendom" the
fulfilment or the annulment of the ethos of that civilization?
— Os períodos de crescimento das diversas civilizações têm duração muito de-
sigual, segundo Toynbee, não obedecendo a um esquema fixo como no sis-
tema de Spengler. O crescimento da civilização helênica abrange 700 anos
(de 1125 a 431 a. C.); o da civilização ocidental, 875 anos (de 675 a 1550);
o de Bizáncio, 300 anos (de 675 a 977); o da Rússia, s6 100 anos (de
989 a 1075). The standard time-span de uma Época de Perturbações é ava-
liado, pelo autor, em 400 anos.
— 204 —

segundo rout verificou-se nos séculos XIX e XX: as guerras fra-


tricidas entre os diversos Estados "paroquiais" da Europa, segui-
das de guerras totalitárias. Já houve três tentativas malogradas
de estabelecer um Estado Universal: Napoleão, Guilherme II e
Hitler. Ainda não são visíveis os sinais de uma Igreja Universal,
apesar de haver uma proletariado interno bem desenvolvido. O
proletariado externo da civilização ocidental é constituído, prin-
cipalmente pela Rússia, mas também por outros países asiáticos. O
enorme surto da• técnica e das ciências, por mais importante que
seja para a unificação do mundo, não precisa ser interpretado como
sintoma de vitalidade (cf. supra, nota 95) nem será capaz de pre-
servar, por si, o Ocidente da morte: a confiança do Ocidente na
sua supremacia técnica pode fàcilmente degenerar numa idolatria,
fenômeno bem característico de uma civilização "rompida" (128),
e as máquinas engenhosas, inventadas pelos ocidentais, podem ser-
vir de meios de destruição, sobretudo quando transferidas às mãos
dos "proletários externos" (129). Toynbee, como tantos outros
pensadores modernos, não acredita na salvação do homem pela
máquina, mas insiste em que se lhe dê um significado humano, uma
tarefa imensa que ainda está por fazer quase na sua totalidade.
Nada poderá impedir a civilização ocidental, se assim prefe-
re, de cometer um suicídio social, mas nada a condena a repetir a
história de tantas outras civilizações desaparecidas. Os três gran-
des desafios diante dos quais se acha colocada, são: encontrar um
mcclus vivendi entre a livre emprêsa e o socialismo (a questão
econômico-social), procurar um sistema federativo de govêrno mun-
dial, e liqüidar os parochial states tornados anacrônicos nos tempos
modernos (a questão política), e descobrir as bases religiosas sôbre
as quais se pode fundar a cultura humana (a questão religiosa);
destas três questões, a religiosa é a mais importante, mas a política
e a social são mais urgentes (130). E' relativamente fácil recupe-
rar-se de uma "Época de Perturbações", mas uma recuperação, de-
pois de se ter firmemente estabelecido um Estado Universal, é
quase impossível, pois um Estado Universal é uma "omeleta" que
só pode existir quando os ovos estão batidos (131). The objective
on the political plane was to firzd a middle way between two mu-
tually antithetical deadly extremes: a devastating strif e between
irreconcilable parochial states and a desolating oecumenical peace

(128). — Cf. Toynbee, A Study of History, IV págs. 423-465.


. — Ibidem, IX págs. 473-479; VIII págs. 16-19 .
. — Toynbee, A Civilização posta à prova, págs. 42-44. — Mas é legítima a
pegunta e perfeitamente de acôrdo com o modo de pensar de Toynbee: co-
mo será possível chegarmos a uma solução das questões políticas e sociais
sem têrmos em comum uma base espiritual? Cf. infra, nota 142.
(131). — Cf. Toynbee, A Study of History, IX pág. 343.
-- 205 —

imposed through the delivery of a knock-out blow (132) . O ideal


político dos tempos modernos deve ser a Homémoia (=--- "Concór-
dia"), professada por Alexandre Magno (133), a concretizar-se
numa cooperação leal entre todos os povos através de órgãos in-
ternacionais. Mas um mundo sem pobreza, sem tensões sociais, sem
conflitos internacionais, não estaria exposto ao perigo de se trans-
formar num Commonwealth of Swine (134), cujos traços foram
delineados por Aldous Huxley no romance Brave New World? Um
mundo com trabalho mecanizado, um mundo estandardizado e su-
per-organizado, um mundo "cientificamente" dirigido não perde-
ria o seu élan vital e a liberdade espiritual, condição imprescindí-
vel para a expansão das faculdades criadoras do homem? Toyn-
bee não apouca o perigo, mas acha que em tais circunstâncias hão
de aparecer homens e mulheres "indomesticáveis", dispostos a de-
fender os direitos do espírito mesmo com a morte (135) . Outro
desafio que, possivelmente ou até provàvelmente, se dirigirá às
futuras gerações humanas, é o problema da super-população do
nosso planeta, situação já prevista por Malthus (cf. § 103 III,
nota 279): êste problema se apresentará à consciência não só dos
indivíduos como também à das coletividades dentro de um prazo
relativamente curto; poderá perigar outra vez a liberdade humana
por imiscuir-se o Estado num dos assuntos mais delicados e ínti-
mos, até agora reservados ao domínio particular das consciências
individuais, mas também aqui as derradeiras decisões serão toma-
das num plano religioso (136) .

( 133 ) . — Cf. Plutarchus, Vita Alexandri Magni, 27, 5: Alexandre teria dito que Deus
é o pai de todos os homens e adota por filhos os melhores entre os homens.
— Cf. § 112 I, notas 175 e 176.
( 134 ) . — Cf. Toynbee, A Study of History, IX págs. 604-614. A expressão foi-lhe
sugerida por Plato, Respublica, 372D ( talvez uma reminiscência do episódio
de Circe, in Odyssea, X 233-240) .
( 135 ) . — Cf. Toynbee, A Study of History, IX págs. 612-613: Even if a majority in
each successive generation could, be dragooned, drugged, hypnotized, or ca-
joled finto living and dying like "the beasts that perish", the stewards of a
"Commonwealth of Swine" would still have to reckon with a creative mino-
rity that had been the salt of the Earth in a pre-Porcine Age of human
history. The stewards would have to be past-masters in the technique of
eugenics, if they were to succeed in breeding out of Human Nature this
angelically or demonically dynamic spiritual strain; and such mastery would
probably prove to be beyond their capacity, for it could hardly be ach;eved
without enlisting the aid o! a creative intellectual activity which would be
.enathema in official circies in Hyampolis (mas o espírito não se pode di-
rigir contra o próprio espírito?!) . . . The fatal 11~ in the mechanism o! a
"Breve New World" was its failure to provide a safety-valve for a spirit
that would endure torture to the death rather than obey "Breve New World's"
first cornmandment: "Et surtout, pas trop de zele]".
( 136) . — Os ocidentais, principalmente os anglo-saxões, já falam muito tempo sôbre
a "super-população" do mundo e publicam relatórios volumosos sôbre êsse
"perigo" ( talvez por verem que a população branca do nosso globo diminui,
num ritmo assustador, em relação ao número ràpidamente crescente das "ra-
ças fecundas"? ) ; os americanos latinos e os eslavos são, entre os brancos,
os únicos povos a contrabalançarem êsse movimento de auto-destruição da
cultura ocidental; os soviéticos , professam uma teoria muito mais otimista,
cf. também o célebre livro de Josué de • Castro, A Geografia da Fome. —
— 206 —

Mais importante ainda do que a solução dos problemas sociais


e políticos é a da questão religiosa. Nos três volumes de A Study
of History, publicados em 1939, o autor diz repetidas vêzes que a
nossa civilização poderá salvar-se apenas se conseguir redescobrir
suas bases cristãs. A Cidade Terrestre deverá orientar-se delibe-
radamente pela Cidade de Deus (136a) O Cristianismo é a alma
da civilização ocidental. • The Christian virus or elixir is in our
Western blood,: .. and it is therefore difficult to suppose that the
vpiritual constitution of our Western Society can ever' . be refined
to a paganism of Hellenic purity. Besides, the Christian element
in our system is not only ubiquitous: it is also Protean (137), e
Toynbee considera a democracia, o marxismo e tantos outros fe-
nômenos sociais da nossa civilização -como "páginas arrancadas"
do Grande Livro do Cristianismo. Acredita na possibilidade de
uma "transfiguração cristã" do mundo ocidental, uma espécie de
"palingenesia espiritual" (cf. Ev. João, III 1-8); até tem esperança
• no renascimento da Respublica -Christiana (138), apesar de re-
conhecer que o Homo Oeconomicus dos tempos modernos está per-
dendo o senso de pecado (139) . Mas, nos volumes publicados de-
pois da Segunda Guerra Mundial (140), o autor toma uma posi-
ção diferente diante do problema religioso e mostra-se menos oti-
mista em relação à possibilidade de uma renascença cristã, citan-
do as palavras de um teólogo muçulmano: There is no hope in re-

Leia-se a brochura interessante de J. P. Dubois-Dumée, V a-t-on contrôler


les Naissances?, Paris, Bibliothèque de l'Homme d'Action, 1956. — Toyn-
bee trata dêste problema in A Study of History, IX págs. 602-604 (onde
insinua que o Catolicisnro combate o birth control por ainda estar sob a in-
fluência de "cultos. de procriação") e in An Historian's Approach to Reli-
gion, págs. 240-244.
(136a). — Cf. Toynbee, A Study of History, VI pág. 10: The only society that is cepa-
, ele of embracing the , whole of Mankind is a superhuman Civitas Dei; and
the conception of a society that embraces all Mankind and yet nothing
but Mankind is an academie chimaera — Cf. ibidem, VI pág. 157: But
how can the Kingdom o! God be attthentically in This World and yet also
be essentially not of it?... This prob/em may be intractable to ettempts to
solve it in terms o! logic; but if we are willing to acknowledge that the »a-
ture of Transfiguration is a mystery that passes our understanding. we
may perhaps be rewarded for a sober recognition of the limita of o,a in-
tellectual power by finding ourselves able to neer into the Mystery through
the imagery that conveys the intuition of the poets. Perhaps the simp/est
image of the relation of the Kingdom of God to This World is e geometrical
simile. W e may liken their relation to that between a cube and one of the
squares that are presented by the solid figure's faces. 11 the cube were not
there, the square would not be there either; yet tília does net mean that the
relation of squaré to cube is that• of part to whole; for part and whole must
be things of the same kind, whereas square and cube are figures of different
dimensions
(137). — Ibidem, V pág. 190.
.(138). — Ibidem, V pág. 194: An apostate Western Christendom may be given gra-
ce to be born again as the "Respublica Christiana" which is its own earlier
and better ideal of what it should strive to be. Is such spiritual re-birth pos-
sible? If we put Nicuderruts's question; we may talco bis instruotor's answer..
— Ibident, V pág. 438. — Cf. Monde Moderno et Sens du Péché, relatório da
Semaine das Intellectuels Catholiques, 1956, publicado em Paris, Horay,
1957.
— Mas cumpre fazermos abstração do seu livro Civilization on Trial, cf. supra.
— 207 —

turning to a traditional faith af ter it has once been abandoned, sin-


ce the essential condition in the holder of a traditional faith is
it'hat he should ,not know that he is a traditionalist (141) . Mesmo
assim, Toynbee continua convencido da necessidade de uma "trans-
figuração religiosa", sem a qual a unificação . do mundo não pode-
rá ser realizada num sentido plenamente humano da palavra (142).
VIII. "Pammixia".
"Pammixia" é, segundo Toynbee, uma das formas de cisão inter--
na, da qual sofre a alma numa época de desintegração social: ao
passo que uma civilização crescente se 'caracteriza por "um senso
de estilo", o homem de uma fase decadente revela uma "pammi-
tia", isto é, promiscuidade, sincretismo, confusionismo (143). Quer-
nos parecer que o próprio autor, sobretudo na última fase da sua
atividade literária, não conseguiu defender-se dêste vício da épo-
ca. Com efeito, abandonando cada vez mais os métodos empíri-
cos, chega a dar um sistema indigerível de sincretismo religioso.
Já antes da guerra paliava as diferenças entre as diversas con-
fissões cristãs e procurava reconciliar teses racionalistas com cer--
tos dogmas cristãos (144), mas nos volumes recentemente publi-
cados considera o exclusivismo eclesiástico simplesmente como um
ato de hybris. As quatro, ou, eventualmente, as sete "religiões su-
periores" (145), são apenas caminhos diferentes, que levam, indis-
tintamente, ao mistério impenetrável da Divindade: uno itinere-
non potest perveniri ad tem' grande mysterium (146) . Ciada urna
(141) . — Toynbee, A Study ot History, IX pág. 631.
(142). — Ibidem, VII pág. 510: The unity of Mankind can be achieved only as an
incidental residi of acting on a beijei in the unity of God and by seeing
this unitary terrestrial society "sub specie aeternitatis" as a province o( a •
Commonwealth of God which must be singular, not plural, "ex hypothesi".
(143) . — Ibidem, V págs. 439-481.
(144). — Toynbee (ibidem, VI págs. 273-275) procura reconciliar os "concepcionis-
tas" (os que acreditam no nascimento de Jesus pela concepção do Espírito
Santo) e os "adopcianistas" (os que acreditam que Jesus foi adotado por
Filho de Deus depois do seu batizado no Jordão), e diz: (The two schoo/s)
are divided en the question whether the physical procreation o! Jesus was
normal or miraculam; and it may be neither uncharitable nor unreasonable
to suggest that this point of discord — sharp though it be — is minute by
comparison with the expanse of the encompassing field of harmony.
. — Em A Study of History, o autor fala, geralmente, só de quatro "religiões .
superiores" (cf. supra, VI); em An Historian's Approach to Religion (pág.
272) admite delas sete: 3 budísticas, a saber: Hinayana (= "O Navio Pe-
queno") em Ceilão e na Ásia do Sudeste, Mahayana (= "O Navio Gran-
de") na Ásia , Oriental e na Mongólia, e Hinduísmo pós-budístico na Índia;
3 juda:cas, a saber: o judaísmo, o Cristianismo e o 'siam; 1 iraniana (de
Zaratustre), a religião dos "parses" ná Pérsia do Sudeste e na Índia (refu-
giadas depois da invasão dos árabes na Pérsia) •
. — Palavras do pagão Símaco na sua polêmica contra Ambrósio (Symrnachi
Relatio, X) . — Cf. Toynbee, A Study of History, VII págs. 442-443: Uni-
formity is not possible in Man's approach to the One True God because Hu-
man Nature is stamped with the fruitful diversity that is a hall-rnark of
God's creative work, and psychologically diverse human souls need different
lenses for seeing, through a glass, a Beatific Vision in which, if we could
see God face to face, we should fincl that there "is no variableness, neither
shadow of turning" (cf. Ep. Tiago, 1 17). .; if the revelation of the One -
True God is to be accessible to all men, it has to be dil fracted...
— 208 —

das religiões superiores representa uma faceta da Verdade ina-


cessível ao homem; a verdadeira pedra de toque do valor de uma
religião consiste na sua capacidade de ajudar os homens a respon-
derem ao desafio eterno de pecado e de sofrimento; a convergência
delas, nos pontos essenciais, é muito grande; a intolerância, pró-
pria do Cristianismo e do Islam, é um pecado contra as leis divi-
nas, etc., etc. Toynbee, para dar fôrça às suas afirmações, apela
para a autoridade de deístas do século XVII (147), e julgamos
ouvir Rousseau (cf. § 89 IV), quando diz: We believe that our
own religion is the way and the truth, and this belief may be jus-
tified, as far as it goes. But it does not go very far; for we do not
know either the whole truth or nothing but the truth. "We know
in part" and "we see through a glass, dully". When the light has
shone out in the darkness, the Universe still remains a rnystery
(148). O autor não acredita que uma forma "histórica" de religião
possa ser a religião absoluta, e acaba por aderir a um relativismo
confusionista e por apregoar uma tolerância absoluta. A grande
diferença entre os deístas agnósticos dos séculos passados e Toyn-
bee é que êste, na sua luta pela tolerância e pelo relativismo, não
se serve de sarcasmos e piadas contra a religião, mas enfeita sua
teoria com reflexões piedosas e com inúmeras citações bíblicas.
Anima candida...
Tampouco quer substituir as religiões históricas por uma re-
ligião universal e racional. Pelo contrário, devem continuar exis-
tindo, visto que correspondem aos quatro tipos psicológicos que fo-
ram verificados por Jung (cf. supra, nota 71): o hinduísmo admi-
te como faculdade dominante o pensamento e como atitude domi-
nante a introversão; o Cristianismo admite como faculdade domi-
nante o sentimento e como atitude dominante a extraversão; o Is-
lam admite como faculdade dominante a sensação e como atitude
dominante a extraversão; e o budismo admite como faculdade do-
minante a intuição e como atitude dominante a introversão (149).
Com o tempo, a religião poderia tornar-se uma questão de livre
escolha, conforme as aptidões e as inclinações de um homem indi-
vidual; ser budista ou ser cristão já não seria determinado por con-
tingências históricas ou por circunstâncias acidentais de ordem geo-
gráfica, mas seria uma opção totalmente pessoal. In the language
of Natural History, this change in the social environment had given
Religions the opportunity to achieve a spiritual mutation which
had lifted it, so to speak, out of the Vegetable into the Animal King-
dom. . . The higher religions could live in every human heart that

— Cf. Toynbee, lin Historian's Approach to Religion, págs. 143-193; uma Can-
cordantia (et Discordantia) Religionum encontra-se ibidem, págs. 272-283.
I6idetn, pág. 295.
— Tdynbee, A Study+ of History, VII págs. 716-736.
— 209 —

cpened itself to their revelation; and, conversely, for the Soul, Re-
ligion could cease to be an accident af birth and become a matter
or choice — the most momentous choice that life in This World
could present (150) . Ao lermos estas frases, pensamos na palavra
de Platão: "A culpa é de quem escolhe, não de Deus" (151) .
A predileção atual de Toynbee por êsses assuntos, obrigou-nos a
demorar-nos algum tempo na exposição das suas idéias religiosas, e
quase fêz-nos perder de vista o historiador empírico dos primeiros
volumes, historiador simpático, competente, culto e aberto, cuja
teoria de Challenge-and-Response já se' tornou clássica por ela mes-
ma constituir uma "desafio" aos investigadores da história. Só po-
demos lastimar que sua obra vultosa, iniciada tão auspiciosamen-
te, cheia de tantas idéias sadias e equilibradas, termine inespera-
damente em uma lição confusa de teologia medíocre. O, rabies
theologica, quid non mortalia pectora cogis!
§ 128. O Combate amoroso de todos os Homens.
O existencialista alemão Karl Jaspers (nasceu em 1883) foi
originàriamente psiquiatra e, pelo estudo de problemas psicológi-
cos (152), chegou a interessar-se cada vez mais intensamente pela
filosofia . Professor universitário, desde 1916, em Heidelberg, foi
demitido, em 1937, pelos nazistas; depois de 1945, pôde retomar
suas atividades e, em 1948, foi nomeado professor na Universida-
de de Basiléia na Suíça. Jaspers escreveu muitas obras e ensaios
(153), dos quais nos interessa aqui especialmente "Sôbre a Origem
e o Sentido da História" (154) ou, em alemão: Vom Ursprung und
Ziel der Geschichte, publicado em 1949. Antes de entrarmos na
exposição das idéias contidas neste livro, devemos tomar conheci-
mento de algumas idéias fundamentais do autor (155) .

— Ibidem, VII pág. 436.


— Plato, Respublica, 617E.
— Já na sua obra Allgemeine Psychopathologie (= "Psicopatologia Geral", do
ano 1913) Jaspers observa que não se pode separar a psicopatologia da
psicologia, pois não se trata de curar doenças e sim homens doentes.
— Mencionamos aqui: Philosophie. ( 1932); a substância desta obra se
encontra no livro francês de J. Hersch e H. Naef (Philosophie de Karl Jaspers),
Paris, Plon, 1955; Vernunft und Existenz (= "Razão e Existência", 1935);
Der philosophische Glaube (1948; trad. franc. La Foi Philosophique, Paris,
Plon, 1958); Einlührung in die Philosophie (1949; trad. franc. Introduction
à la Philosophie, Paris, Plon, 1951); Rechenschaft und Ausblick (1951; trad,
franc. Bilan et Perspectives, Paris, Desclée De Brouwer, 1956); Vernunft
und Widervernunft in unserer Zeit (1950; trad. franc. Raison et Déraison de
Notre Temps, Paris, Desclée De Brouwer, 1953); Nietzsche und das Christentum
(trad. franc. Nietzsche et le Christianisme, Paris, Éditions de Minuit, 1949).
— A obra existe em versão francesa: Origine et Sens de l'Histoire, Paris, Plon,
1954.
— Boa leitura iniciadora é o opúsculo (já mencionado na nota 153): Infra-
duction à la Philosophie.

Revista de História n.0 35


— 210 —

I. Uma Filosofia Existencialista .


Jaspers é um dos poucos, — talvez o único — entre os existen-
cialistas modernos cuja obra reflete a profunda influência de Kant;
sua posição assemelha-se à de Gabriel Marcel por os dois recusa-
rem uma ontologia existencial (156), ao contrário de Sartre e de
Heidegger; Jaspres aproxima-se, em muitos pontos, da filosofia de
Kierkegaard (cf. § 110), mas, para êle, o problema central não é
o da "existência cristã" e sim o da "existência humana".
Que é filosofar?
Jaspers reputa-se con!tinuador da philosophia perfennis, não
no sentido de aderir a um determinado sistema filosófico, transmi-
tido de uma geração à outra e virtualmente acabado, apesar de po-
der ser aperfeiçoado e completado nos seus pormenores; para êle,
a filosofia perene é a grandiosa tradição filosófica que, em vários
lugares do mundo, se iniciou no primeiro milênio a. C. e que, ape-
sar de tôdas as suas contradições e pretensões a exprimir a verda-
de absoluta, é una e eterna por traduzir o constante esfôrço do es-
pírito humano para tomar consciência do Ser, dilucidar o amor e
.

encontrara perfeição da paz, por mais momentânea que seja; pois


filosofar não quer dizer possúir a verdade, e sim não cessar de
procurá-la (cf. § 71 I) . Faire de la philosophie, c'est être en :otite
(157) . E' filóSofo quem se mostra infinitamente disponível a es-
cutar as parcelas da verdade emitidas pelos mais diversos filóso-
fos, não se esquecendo de que a verdade total não foi dada ao ho-
meM; filosofar é possuir uma "abertura" (alemão: Offenheit) per-
manente para se compenetrar do Infinito; em última análise, filo-
sofar é "con-filosofár", isto é, filosofar com outrem. Se eu possuis-
se a verdade total, não me poderia alegrar uma comunicação au-
têntica com outras pessoas, nem me entristeceria uma comunicação
imperfeita.
Que é o homem?
O homem é Dasein (= "estar no mundo"), e como tal se asse-
melha às outras coisas que estão no mundo, sendo um produto da
natureza e do processo histórico. O Dasein empírico do homem po-
de tornar-se um objeto de investigação científica: com efeito, inú-
meras ciências particulares estudam o homem no seu Dasein em-

. — Paul Ricoeur (in Gabriel Marcel et Karl Jaspers, Paris, Éditions du Temps
Présent, 1947) e R. Jolivet (in As Doutrinas Existencialistas, cf. § 105 VIc,
nota 14) fazem um estudo paralelo dos dois filósofos, mas cumpre frisarmos
que Marcel é o filósofo do "mistério" e Jaspers o filósofo do "paradoxo".
. — Jaspers, Introduction, pág. 8. — Dêste opúsculo bem como de Bilan et
Perspective e de Raison et De'raison de Notre Temps conseguimos consultar
apenas a tradução francesa.
— 211 —

pírico, tais como a fisiologia, a biologia, a psicologia, a sociologia,


etc .
homem é 4consciência em geral" (alemão: Bewuisstsein
überhaupt) pelo intelecto, no qual todos os homens são idênticos.
Tudo o que entra na "consciência em geral", impõe-se a todos os ho-
mens com necessidade, mas se refere sempre a objetos determina-
dos e particulares.
Mas o homem é sempre mais do que êle pode saber de si. O
homem, como "existência" (alemão: Existem), pode, em virtude
da sua liberdade, tomar consciência de si mesmo, voltando à fonte
original dá qual provém. A "existência" está sempre por realizar,
não sendo um ser, mas um "ser possível" (alemão: Sein künnen),
nunca se transformando numa posse segura do homem, mas sem-
pre lhe constituindo uma tarefa, uma missão, uma obrigação. O
homem é um ser inacabado e inacabável: como "existência", não
admite nenhuma definição mediante uma essência universal, ou
poderíamos dizer também: a essência da "existência" humana está
em ser constantemente um ultrapassamento de si. A "existência"
não se realiza num processo contínuo de evolução lenta e necessá-
ria, e sim em atos momentâneos de livres decisões pessoais: aí está
a fonte da verdadeira dignidade do homem, e a origem do seu va-
lor único e insubstituível. Nem a liberdade nem a "existência" po-
dem ser objetos de uma pesquisa científica nem sequer de um
conhecimento conceitual: a "existência" é aquilo que só se pode
ser, mas não admite um saber de validade universal.
c) A Transcendência.
Não só o mundo empírico como também "a existência" apon-
tam para um arealidade transcendente.
mundo é o reino intermediário entre a existência e a trans-
cendência (158). O que quer dizer isso? Como indivíduo (sujeito
vital ou Dasein empírico), não posso viver sem o mundo, mas as
inumeráveis dependências que a êle me prendem, não me afetam na
minha "existência", mas me proporcionam apenas o material com
que construo a minha liberdade; contudo, a minha liberdade e a
minha "existência" não se arraigam no Nada (cf. Sartre), pois
não há existência senão na transcendência, nem há transcendência
senão para a existência.
mundo, enquanto é objeto de conhecimento (alemão: Ob-
jektsein) não é o ser-em-si (alemão: An-ssich-sein), nem o ser na
sua totalidade. O que conhecemos, — o objeto pensado, — é sem-
pre um ser particular, a opor-se ao sujeito e aos outros objetos, si-

(158) . — Jaspers, Der philosophische Glaube, pág. 34: Die Realitiit der Welt hat ein
verschwindendes Dasein zwischen Gott und Ezistenz.
— 212 —

multâneamente. Os objetos do nosso conhecimento não passam de


fenômenos (cf. Kant!): Jaspers nega a possibilidade de uma onto-
logia (159) . O mundo é, para mim, apesar de ser determinável
nos seus pormenores (isto é, nos seus aspectos particulares), um
ser indeterminado e fundamentalmente indeterminável, e existe,
como totalidade, só sob a forma de idéia. O resultado da minha
"exploração filosófica do mundo" (alemão: philosophische Welto-
rientierung) é êste: o mundo na sua totalidade não pode ser ob-
jeto de um conhecimento racional, já que a razão sempre nos revela
apenas aspectos particulares de fenômenos; o mundo não se explica
a si mesmo, mas nele explicamos sempre uma coisa por outra, e
assim por diante, usque ad infinitum; o mundo, esta "realidade eva-
nescente", aponta para outra realidade que existe em si: o Trans-
cendente.
Também a "existência" aponta para a mesma realidade trans-
so viver sem o mundo, assim também, como "existência", não pos-
so existir sem a transcendência. O homem deve realizar-se a si
mesmo, isto é, realizar as suas possibilidades mediante livres deci-
sões, as quais são sempre tomadas em certa "situação" concreta.
A "existência" é uma brecha no ser-do-mundo, uma brecha no Da-
sein do homem empírico bem como no Dasein do mundo. Mas, ao
tentar realizar-se, o homem chega inevitàvelmente às chamadas "si-
tuações-limites" (embora possa fazer tudo para se lhes furtar), que
não poderá modificar, senão quanto ao modo como lhe aparecem. Es-
tas situações-limites são principalmente a experiência vital da neces-
sidade da luta, do sofrimento, da culpa e da morte. Instintiva-
mente, o homem procura a segurança, mas nem o domínio sôbre a
natureza nem a organização social e política são capazes de lha
proporcionar totalmente: o mundo é decepcionante para o homem,
colocando-o constantemente diante de um fracasso inevitável. No
mundo, o homem sente-se perdido, chegando a experimentá-lo co-
mo uma coisa alheia, estranha, até hostil: quem teve essa expe-
riência vital, não pode deixar de almejar sua salvação eterna, pro-
curando um fundamento seguro: a profundeza do Ser, a Eternida-
de. Experimentar essas "situações-limites" e "existir" é uma e a
mesma coisa. Mas a "existência", na medida em que se realiza a
si mesma, torna-se cada vez mais consciente de ser ligada radical-
mente à transcendência: a liberdade não a tenho por mim mesmo,
ela foi-me dada, sendo uma dádiva da transcendência (160).
— Cf. Jaspers, Introduction, chap. III: L'Englobant. O autor diz que as
ciências esbarram com fenômenos fundamentalmente inexplicáveis; conhecer
é "interpretar" e explicar uma coisa do mundo fenomênico por outra coisa;
as ciências não me desvendam o mundo na sua totalidade, mas apenas as-
pectos particulares da realidade; e afinal, nosso pensamento não se pode
livrar da "cisão sujeito-objeto" (alemão: Subjekt-Objekt-Spaltung).
. Ibidem, págs. 85-86: Sur les sommets de. Ia liberté, quand notre action
nous parait nécessaire, non sous la contrainte extérieure d'un déterminis-
— 213 —

Ora, o Transcendente não pode ser pensado, mas nos é com-


pletamente inacessível: é o absolutamente Outro, estando acima
de tôda e qualquer determinação, estando até acima de qualquer
negação. E' pedantismo inepto encerrar a Deus numa fórmula;
é superstição concebê-lo com os elementos antropomorfos de que
o reveste a Bíblia. Deus não é pessoa a revelar-se diretamente ao
homem; Deus é o Eterno Abscôndito. Deus se manifesta apenas à
"existência": o homem, enquanto liberdade = "existência", pode
ter certeza da existência de Deus (não prová-la!), e essa certeza
faz de Deus uma presença imediata para a "existência" (161). Jas-
, pers rejeita o "Deus do Livro", para aderir a um "deus livresco".
Até o têrmo "Transcendente" parece-lhe provido de conotações in-
desejáveis, razão porque o vem substituindo pela palavra "o En-
volvente" (alemão: das Umgreifende).
Rejeitando, portanto, a ontologia, Jaspers acredita numa cer-
ta "periecontologia" (162): o Transcendente ou o Envolvente é
uma presença para minha "existência", e só para ela . Ela se lhe
manifesta, não diretamente, e sim mediante a linguagem das "ci-
fras" (163) . "De fato, tudo pode ser cifra da Transcendência. O
Dasein torna-se cifra para a existência. Qualquer Dasein, natu-
reza e mundo, o homem e os astros, os animais e as árvores, as
culturas e os acontecimentos da história: tudo isto parece expri-
mir alguma coisa, mas de forma misteriosa e obscura, porque o
que é inteligível nunca é cifra. Em tudo isto, a Transcendência fa-
la, mas o que se torna necessário é ler a cifra, — o que nunca po-
derá consistir em esgotar, por qualquer meio dialético, abstrato e
conceituai, o mistério contido na objetividade que apresenta a ci-
fra, mas consistirá cinicamente numa c.;ntemplação existencial, que
é um ato da consciência absoluta, — não uma oração, mas sim
uma atividade interior pela qual eu passo a ter consciência de en-
trar na intimidade do ser" (164).
d) Fé Filosófica e Fé Religiosa.
"Existir" implica ter consciência da condição humana, que é
liberdade e relação ao Transcendente: eis o ponto de partida da
filosofia existencialista de Jaspers.

me naturel inflexible, mais par Paccord intérieur de notre être qui ne saurait
avoir d'autre volonté que celle-ci, nous avons conscience d'être à nous-mames,
dans notre liberté, un don de la transcendartce. Plus Phomme est vraiment
libre, plus il est sur de Dieu. Quand je suis vraiment libre, je suis sur de
ne pas l'être par moi-mame.
— Cf. Kierkegaard, § 110 V; Spencer, § 104 I.
— O verbo grego peri-échein quer dizer: "envolver".
— A expressão foi-lhe talvez sugerida pela leitura de Pascal que dica nas Pensées
(ed. Brunschvicg, pág. 636): Chiffre a double sens e Le chiffre a deux sens;
cf. pág. 643: Le Vieux Testament est un chiffre.
— R. Jolivet, op. cit., págs. 335-336; leia-se também a nota 105 na pág. 335,
• onde o autor diz que "cifra" não pode ser confundida com "símbolo".
— 214 —

O nosso autor quer manter-se eqüidistante do racionalismo


e do irracionalismo. O verdadeiro filósofo não despreza a razão
nem as ciências, mas as interroga com uma verdadeira paixão e
quer conhecer tudo; submetendo seus conhecimentos a um exame
rigoroso e severo, procura estabelecer os limites do saber legítimo;
há mais: o homem que "existe", tende a dilucidar sua "existência"
(alemão: Existenzerhellung) (165) . Essa dilucidação não dá um
conhecimento universalmente válido da "existência", pois esta dei-
xa de ser "existência", logo que é concebida em têrmos gerais; a
dilucidação é apenas inteligível para a "existência possível". E o
pensamento existencial é, antes de mais nada, uma tentativa de au-
to-realização através de uma dilucidação da "existência": a tarefa
permanente da filosofia é ajudar-nos a sermos homens.
Mas eu não sou apenas "existente", sou também "co-existente":
daí ser necessário que eu entre em "comunicação existencial" com
outras "existências". A comunicação existencial não tem nada a ver
com o "coletivismo dos Daseins", o grande perigo dos tempos atuais,
mas é um ato de mútua criação de dois ou mais "eus pessoais".
Nela pressupõem-se, simultâneamente, a soledade e a união; sem
esta haveria isolamento individualista, sem aquela haveria absor-
ção de um por outro. A comunicação existencial é uma luta frater-
nal, um combate amoroso, travado não por motivos interesseiros e
sim com sentimentos de profundo amor a outrem.
A verdade existencial, transmitida neste combate amoroso, não
poderá ser uma verdade universal, sempre impessoal, esquemática e
"a-histórica", mas será um apêlo dirigido a outra existência possí-
vel; não é suscetível de ser objetivada, mas é um ato de fé.
Ato de fé filosófica, e a fé é algo de imediato em oposição
àquilo que nos é fornecido pela razão. O ser-em-si não se revela
ao homem; êste tem sõmente a possibilidade de se aproximar dela,
interpretando-lhe as "cifras". Aí está também o pecado dos gran-
des sistemas metafísicos do passado: muitos filósofos lhes deram
o caráter de um saber "objetivo", ao passo que, na realidade, os
sistemas só eram indícios do ser mediante uma linguagem escrita
em "cifras". As grandes teses da fé filosófica (166) não podem ser

— Jaspers, Vernunft und Existenz, pág. 41: Vernunft darf sich nicht an Exis-
tenz verlieren, zugunsten eines sich absperrenden Trotzes, der sich gegen
Offenbarheit verzwelfelt strãubt. Existenz darf sich nicht an Vernunft verlieren
zttgunsten einer Durchsichtigkeit, welche sich els solche mit der substantiellen
Wirklichkeit verwechselt. Existenz wird nur durch Vernunft sich hell; Vernunft
hat nur durch Existenz Gehalt. — Cf. Raison et Déraison, pág. 53: La li-
mite de la raison est, d'une part, la réalité empirique qui lui est étremgère et,
d'autre part, cette réalité qu'en tent qu'existence, elle peut éclairer á l'infini,
e pág. 57: Aujourd'hui, je préférerais le terme de philosophie de la raison, car
il parait urgent de mettre l'accent sur ce point essentiel, qui est de tous les
temps. Si la raison se perd, la philosophie est perdoe dgaiernent.
— As grandes teses são estas: Deus é; há uma "exigência absoluta" (cf. infra,
nota 197); o homem é finito e imperfeito; o homem pode viver sob a orien-
— 215 —

demonstradas; mas o não-saber não dispensa o filósofo da obriga-


ção de fazer investigações: só um saber perfeito pode produzir
em nós um não-saber autêntico. A razão pode, e deve, criticar,
purificar e desenvolver as teses da fé filosófica, mas elas ficam com
sentido existencial só quando não se basearem exclusivamente na
razão. O verdadeiro filósofo poderá dizer, tratando-se dos prin-
cípios da sua fé filosófica: Je ne le sais pas; je ne sais mêrne pas
si je crois; mais une telle foi, formulée en de tels principes, me
parait pleine de sons et je voudrais oser y croire et avoir la force
d'y conformer ma vie (167): pois nenhum dêsses princípios im-
plica um objeto absoluto, mas todos êles não passam de cifras de
um infinito que se torna concreto. Este não-saber, que se nos apre-
senta não só na nossa vida intelectual, mas também na nossa vida
moral, onde nos coloca diante do mistério da "escolha pessoal", é-
nos motivo de angústia, ou melhor, de uma perpétua inquietação.
Quanto à fé religiosa, esta se funda numa revelação divina e
pressupõe, portanto, a possibilidade de um Deus pessoal a mani-
festar-se a todos os homens numa presença objetiva, ao passo que
a fé filosófica se eleva incessantemente da "existência" pessoal pa-
ra subir a um Deus totalmente oculto e eternamente ausente. As
religiões, em vez de se contentarem em possuir "cifras", têm a
absurda pretensão de possuir verdades absolutas, tese insustentá-
vel para a razão que não admite nenhuma objetivação do Envol-
vente; devido ao seu exclusivismo, as religiões, principalmente as
"bíblicas", levam o homem ao dogmatismo (a fixação temporal
de verdades eternas) (168), ao fanatismo, à intolerância.
A filosofia bem como a religião estão em certa relação com a
verdade, sendo ambas a roupa histórica da Verdade Eterna que é
incognoscível. Mas a religião, com a sua tendência à' corporeidade
(ao passo que a filosofia tende a certezas intelectuais) é, por assim
dizer, uma fase anterior à filosofia. Numa pessoa que chegou à
fé filosófica, não pode subsistir, ao mesmo tempo, a fé religiosa,
porque esta, como expressão provisória do Transcendente, desa-
parece necessariamente ante sua forma definitiva (cf. Hegel, § 96

tação divina; a realidade do mundo tem um caráter evanescente entre Deus e


a existência.
(167). — Jaspers, Introduction, pág. 130.
(168) . Sôbre o dogma, cf. as observações esclarecedoras de Dondeyne, in Foi Chrétienne
et Pensée Contemporaine, Paris-LouvaM, 1952, págs. 185-188, em que o autor
dia que le corrélat noétique (du dogme) n'est pas le rlogmatisme mala ia foi;
ora, actus credentis non termirattur ad enuntiabile, ed ad rem (Romme Theol.,
IIa IIae, q. 2, a. 1-2); ademais, devemos distinguir no nosso conhecimento
dos mistérios da fé dois elementos: un noyau essentiel et stable, e un ensemble
d'éléments représentatifs et affectifs secondaires, non essentielles, susceptibles
de varier selon le degré de culture ou le milieu culturel des croyants indivi-
duels. O dogma exprime, portanto, um dado da revelação em conceitos e fór-
mulas que são peculiares a certa fase cultural da evolução cultural, fórmulas
que admitem precisões ulteriores mas que, sem esgotarem a realidade sobrena-
tural, nos permitem um conhecimento genuíno, embora analógico, da mesma.
— 216 —

Vd) . A filosofia não combate a religião, e a religião necessita da


filosofia: a filosofia deve controlar e purificar as teses da fé, e o
filósofo poderia dificilmente sobreviver num mundo completamente
irreligioso, porque a religião alimenta a fé filosófica, fornecendo-lhe
valores; além disso, a fé filosófica por si não possui nenhuma efi-
cácia sociológica, êsse privilégio das religiões que conseguem atuar
sôbre as massas.
O filósofo deve manter-se independente em relação ao mundo,
inclusive em relação às Igrejas; transcendendo a religião bíblica,
não por meio de um ecleticismo abstrato e trivial, mas mediante
uma apropriação pessoal de uma dada confissão religiosa, em que
foi educado, conservará um espírito crítico e independente, sem
perder seu respeito pela tradição; terá consciência de viver de
uma origem própria espiritual, e terá a coragem de viver por sua
conta e risco (169).
Depois desta introdução um tanto longa, comprenderemos me-
lhor a visão da história que Jaspers nos deu no livro "Sôbre a Ori-
gem e o Sentido da História".
II. A Origem e o Fim da História.
O homem não possui nenhum saber positivo acêrca da origem
e do fim da história; êstes se lhe apresentam apenas no vislumbre
de símbolos ambíguos ou cifras. Para que a história universal, en-
quanto nos é conhecida empiricamente, revista um significado ver-
dadeiro, faz-se mister que nela descubramos a idéia de uma unida-
de fundamental, — ou então, que lha atribuamos.
Ao expor sua visão da história _ universal, Jaspers estriba-se
numa tese que deriva da sua fé filosófica: o gênero humano tem
uma única origem e tende a um único fim . Para ilustrar essas con-
vicções situadas além de uma demonstração científica, o filósofo
recorre aos "mitos bíblicos" (170). Em Adão todos os homens são
aparentados, tendo sido criados por Deus à imagem divina. Na
origem, o Ser manifestava-se ao homem numa presença incons-
ciente. O pecado original induziu o homem a chegar paulatina-
mente à clareza da manifestação consciente do Ser, mediante o
saber e mediante atos praticados com fins temporais. Com o fim
da história, atingiremos a concórdia perfeita das almas, unidas por

. — Jaspers diz (apud P. Foulquié, L'Existencialisme, Paris, 1955, pág. 114): La


seule condition pour celui qui fait de la philosophie, c'est Pauthenticité, la sin-
cérité et c'est précisément pour ceife raison qu'au cours d'un voyage, visitant
des églises, pendant un culto religieux, l'émotion du evite commençant à me
gagner, je suis sorti, parce que je ne voulais pas le mélange d'impressions d'or-
dre esthétique étrangères à l'expérience religieuse pure.
. — Cf. também, Jaspers, Der philosophische Glaube, págs. 92-93, onde o autor
dá uma interpretação simbólica da figura de Jesus.
— 2:17

uma mútua compreensão e por um amor recíproco, chegando a


pertencer a um único Reino de espíritos eternos (171) .
Tudo isso não passa de linguagem simbólica, não indica rea-
lidades: seu valor reside no fato de nos possibilitar uma interpre-
tação "significativa" do processo histórico.
A Origem da História.
O problema da origem da humanidade (monogenismo ou po-
ligenismo) parece insolúvel ao autor: a unidade do gênero huma-
no é uma idéia, não uma realidade verificável. Aliás, a demons-
tração científica da unidade original é de somenos importância. O
ponto decisivo é o fato de se ter desenvolvido, no decurso do pro-
cesso histórico, uma fé na solidariedade de todos os homens: todos
êles possuem consciência e pensamento, todos êles têm a faculda-
de de se compreenderem mutuamente. E a essa fé na solidarieda-
de humana, que pressupõe a existênêcia de um abismo entre o reino
animal e a espécie humana, — acresce uma certa disposição da
vontade humana que consiste em ver no homem não um simples.
produto da natureza nem um meio arbitràriamente utilizável, e sim
um fim em si.
O Fim da História.
Tampouco possuímos uma idéia adequada do fim , da histó-
ria: a história é essencialmente movimento entre a origem e o.
fim. O fim é o limite da história, e se fôsse plenamente atingido,
terminaria a história (172). A história é a marcha do gênero hu-
mano rumo à unidade, mas seria um engano fatal concebermos
tal unidade de outra maneira que não fôsse simbólica. A unidade
histórica é uma tarefa infinita e interminável, e todos os conceitos.
formulados a êsse respeito são falhos por serem particulares. O'
Uno é um ideal, nunca completamente atingido, sendo o ponto de
referência infinitamente distante do movimento da história, mas,,
ao mesmo tempo, o ponto de referência a dar significado a todos
os elementos constitutivos do processo histórico (173).

. Jaspers, Vom Ursprung und Ziel, págs. 17-18: Im Ursprung war die Offenbar-
keit des Seins in bewusstloser Gegenwdrtigkeit. Der Sündentall brachte uns auf
den Weg, durch Erkennen und durch endliche Praxis mit Zwecken in der
Zeit zur Helle des bewusst Offenbaren zu kommen. Mit der Volleixdung
des Endes erreichen wir den Einklang der Seelen, schauen einander in liebender
Gegenwarf, in grenzenlosem Verstehen, einem einzigen Reiche der ewigen Geisfer
angehõrend. — No seu resumo dos "mitos bíblicos", Jaspers esquece-se de
mencionar o dogma importantíssimo da ressurreição da carne.
. — Jaspers nega o fim transcendente da histórial, e até a imortalidade da alma ,
humana.
. — Jaspers, Vom Ursprung und Ziel, pág. 304: Irgendwann ist das Ende der
Geschichte, der Menschheit, wie einst ihr Antang war. Das letzte — sewohl An.
lung wie Ende — ist uns prakfisch so tem, dass es nicht fühlbar für uns ist, _
aber von daher kommt ein alies überschattender Massstab.
— 218 —

grande fracasso, não passando de um interlúdio entre dois esta-


dos "a-históricos" (174). Mas é possível também que a evolução
histórica leve o homem, através de cruéis sofrimentos e terríveis
provações (175), ao verdadeiro homem. O futuro é imprevisível,
pois o homem, ao contrário dos outros animais, não é um ser li-
mitado e perfeito na sua concretização particular, mas sim um ser
ilimitadamente aberto a um sem-número de possibilidades que se
lhe apresentam. O homem é um ser inacabado e inacabável.
III. As Quatro Fases da História Humana.
A primeira dificuldade em que topamos, ao ocuparmo-nos com
o total da história humana, enquanto ela nos é conhecida, é a de
acharmos o acontecimento central da mesma, o Eixo sôbre o qual
giram os destinos da humanidade. Durante muitos séculos, o ho-
mem ocidental viu na Encarnação o Eixo da história universal, e
até Hegel fêz-se intérprete desta communis opinio (176) . Mas o
Cristianismo não passa de uma das numerosas crenças religiosas,
de modo que a Encarnação não pode possuir valor universal. Tra-
ta-se de procurar um Eixo que seja empiricamente verificável e
aceitável para todos os homens (177), inclusive para os cristãos:
aliás, também êstes costumam fazer uma nítida distinção entre
a história sagrada e a história profana, e nenhum dogma religioso
os impede de fazer indagações empíricas acêrca do significado da
história profana. Ora, tal Época Axial (alemão: Achsenzeit) apre-
senta-se a Jaspers no período de 800 a 200 a. C.: é desta época
que o homem, ainda no século XX, vive espiritualmente em todos
os continentes do globo. Precedem-na dois períodos de duração
desigual: o imenso período da pré-história e o período relativa-
mente curto dos Grandes Estados Orientais (por volta de 4000
a. C.) . Depois do fim da Época Axial deu-se apenas um fato his-
tórico absolutamente novo: o descobrimento das ciências moder-

. Ibidem, pág. 72; cf. a comparação da vida humana com um pássaro qui cum
per unum osthnn ingrediens, mox per aliud exierit. Ipso quidem ternpore quo
intus est, hiemis tempestate non tangitur, sed tamen parvissimo spatio sere-
nitatis ed momentum excurso, mor de hieme in hiemem regrediens, Luis oculis
elabitur. Ita haec vita hominum ad modicum apparet; quid acatem sequatur,
quidve pz.ecesserit, prorsow ignoramos (Beda Venerabilis, História Eclesiás-
tica, II 13) .
. — Cf. Toynbee, § 127 VII. — Também Jaspers é, no fundo, otimista, julgando
que o homem nunca se perderá por completo, visto que foi criado "à imagem
e à semelhança de Deus", cf. Vom Ursprung und Ziel, pág. 189.
. — Hegel, Werke, Bd. XI pág. 247: Alle Geschichte geht zu Christus hin smd
korrant von ihm her; die Erscheinung des Gottessohns ist die Achse der
Weifgeschichte.
(177). — Êste Eixo da história Jaspers não o concebe como o centro único e eterno
da história, tal como Cristo na teologia cristã, mas o centro empírico de
um prazo histórico bastante curto; não tem a pretensão a uma unicidade
absoluta, mas poderia ser seguido de outros Eixos; cf. Jaspers, Vom Ursprung
und Ziel, pág. 319.
— 219 —

nas e o nascimento da tecnologia. Destarte se divide a história


humana em quatro fases.
a) A Pré-história.
A pré-história abrange aquêle espaço imenso de tempo que
é anterior à documentação escrita, a iniciar-se por volta de 3000
a. C.; a história pràpriamente dita não tem duração superior a
5000 anos. Nos milhares de séculos, que constituem a pré-história,
foram lançadas as bases da evolução ulterior da humanidade, mas
a evolução pré-histórica é inconsciente. Sem dúvida, a pré-história
é um caudal movediço de metamorfoses contínuas, mas, aos olhos
do espírito, ela não faz parte da história por ainda não possuir
o homem pré-histórico a consciência nítida da sua origem da tra-
dição e da sua orientação (178).
O homem moderno radica-se, não só na história (à qual deve
sua tradição consciente, sua educação, sua moral, suas formas de
fé, etc.), mas também na pré-história (à qual deve o fundo da sua
natureza, seus instintos "primitivos", sua vida inconsciente, etc.) .
A história não é nada senão a crosta superficial em cima do fogo
do vulcão que é o homem. Até poderíamos perder a nossa. "histo-
ricidade", tornando a ser homens primitivos, sem passado, sem tra-
dição, sem orientação, mesmo que voássemos em aviões ao redor
do nosso planeta.
E' um mistério impenetrável para a inteligência humana a
gênese do homem.; nunca conseguiremos saber de que modo o
homem chegou a ser homem. Tampouco somos capazes de dar
uma resposta satisfatória e decisiva a esta pergunta: "Que é o
homem"? A palavra evolução explica pouca coisa: a passagem len-
ta do estado pré-humano ao estado humano só serve para enco-
brir o mistério. A idéia do homem já está presente ao nosso es-
pírito quando cremos pensar sua gênese.
À época pré-histórica remontam o desenvolvimento biológico
do homem e certas aquisições culturais. O aspecto biológico do
homem por mais importante que seja, deixa de ser puramente bio-
lógico, por ser inseparável das suas faculdades mentais: desde que
temos conhecimento do homem, não se nos apresenta como ani-
mal extremamente desenvolvido, ao qual, com o tempo, se teriam
acrescentado certas faculdades menitais, mas como animal bem
distinto de tôdas as outras manifestações da vida orgânica, tam-
bém no plano biológico. A diferenciação das raças deve ser o re-
sultado de uma longa evolução pré-histórica, e "raças puras" não
passam de construções ideais.

(178) . — Ibidem, pág. 49: Vorgeschichte ist die zwar laktisch begründende, abar
nicht ,gewusste Vergangenheit .
— 220 —

Quanto às aquisições culturais feitas pelo homem pré-históri-


co, podemos assinalar corno os elementos mais essenciais: a utili-
zação do fogo e de utensílios, a formação da linguagem, a inven-
ção de diversos tabus, a formação de grupos e comunidades (es-
sencialmente diferentes dos que existem no reino animal), e a in-
venção de mitos, imagens inspiradoras que se prestam a inúmeras
interpretações: os mitos deram ao homem primitivo uma certa
consciência do ser, uma certa noção do seu próprio valor e uma
espécie de certeza .
b) As Grandes Culturas Orientais.
Por volta de 4000 a. C., surgem as duas civilizações mais an-
tigas do mundo: a egípcia e a sumérica; no III milênio a. C., nas-
ce a civilização pré-ariana na índia; no II milênio a. C., uma civi-
lização arcaica na China (é, na terminologia de Toynbee, a "síni-
ca") (179) . O homem passa da fase pré-histórica à histórica: in-
venta um sistema racional de irrigação, constrói uma firme orga-
nização política e social, e chega a exprimir seus pensamentos me-
diante sinais escritos; os povos ficam com as suas características in-
dividuais, e começa a aparecer a idéia de "Impérios mundiais".
Quais foram as modificações internas que levaram o homem,
antes estreitamente ligado às leis da natureza, a aventurar êsse
salto brusco que havia de transportar para a vida histórica? Também
aqui nos achamos diante de um mistério obscuro; não podemos
explicá-lo, mas sõmente podemos indicar em que consiste a natu-
reza desta metamorfose . O autor indica três características. Em
primeiro lugar, o homem livra-se do presente imediato, passando
a transmitir metàdicamente os conhecimentos adquiridos: o ho-
mem fica com a faculdade recordativa. Em segundo lugar, o ho-
mem emancipa-se da escravidão que lhe foi imposta por seu am-
biente natural, vindo a organizar racionalmente o seu trabalho e
as suas atividades: o homem torna-se "técnico" e organizador. Em
terceiro lugar, o homem livra-se do seu torpor multi-secular e do
seu temor enervante aos demônios, começando a seguir o exemplo
inspirador de alguns grandes homens ("heróis"), que conseguem
impor-se corno chefes ou sábios: o homem vem percebendo o va-
lor dos grandes indivíduos.
Mas, uma vez entrado na fase histórica, o homem começa a
sentir vertigens diante da eclosão das suas possibilidades que, an-
tigamente, germinavam ignoradas na sua • alma. Destarte se lhe
afigura esta passagem ou como uma espécie de pecado original
(saudades do Paraíso Terrestre, da Época Satúrnia, etc.), ou en-

(179) . — As civilizações americanas (no Perú e no México) nasceram só no primeiro


milênio d. C., e nunca Chegaram a fazer o salto para a Época Axial.
— 221 —

tão como um caminho que o levará a superar-se constantemente a


si mesmo .
c) A Época Axial.
Na Época Axial verifica-se a grande brecha na consciência
humana . O homem torna-se consciente do Ser na sua totalidade,
de si mesmo e dos seus limites; por experimentar o horror do mundo,
chega a experimentar a sua própria impotência e começa a fazer per-
guntas fundamentais; diante do abismo aberto da sua existência
e do Transcendente, procura apaixonadamente sua libertação e sua
salvação; em tomando consciência dos seus limites, propõe-se, ao
mesmo tempo, os fins mais elevados; descobre o Absoluto na pro-
fundeza da "existência" e na clareza da transcendência. Iniciam-
se a filosofia e o pensamento especulativo, bem como o desêjo im-
petuoso de reformas políticas e sociais: a pessoa humana sente, pela
primeira vez, a necessidade de entrar em comunicação com outrem.
E' nesta época que se inaugura a história humana, no sentido próprio
da palavra, sendo que a fase anterior lhe constitui apenas como que o
preâmbulo material..,_
Ora, êste processo de "espiritualização" do homem limita-se a
uma época bem determinável (800-200 a. C.), mas não Se restrin-
ge a um único local . Pelo contrário, podemos verificar' 'Sua pre-
sença, — mais ou menos simultâneamente, —na China com Lao-
Tseu (180) e com Confúcio (181); na índia com os Upanichades
(182) e com Buda (183); na Pérsia com Zaratustra (184); na
. — Lao-Tseu (= "o Sábio") viveu no século VI a. C. Pouco se sabe a respeito
da sua vida que, desde cêdo, ficou enfeitada com muitos elementos lendá-
rios: teria sido arquivista na côrte imperial. Deixou um livrinho, — uma
das obras mais profundas da literatura oriental, — chamado: Tao-te-King
(= "Livro da Lei Cósmica e seus Efeitos") . Tao é a Lei Cósmica (uma
lei impessoal sem que haja um Legislador), e o homem deve agir de acôrdo
com esta Lei universal (espécie de estoicismo) . O ideal do sábio é Wu-wei
(= "não-agir"), no sentido de se acomodar voluntàriamente à Lei da Na-
tureza, sem revolta, sem orgulho, sem jactância.
. — Confúcio é forma latinizada (pelos jesuítas) do nome chinês Kong-fu-tse•
Confúcio viveu de 551 a 479 a. C., e foi ministro e organizador do Princi-
pado Lu (hoje, = Xantum), que, devido à sua justiça e sabedoria, se teria
transformado num Estado modelar; desde 57 d. C., foi venerado como pa-
droeiro e símbolo do Império chinês; desde o século II d. C., foram erguidos
templos em honra do ex-ministro. A autenticidade das obras que lhe são
atribuídas, continua problemática .— O confucianismo é uma renovação eclé-
tica de antigas normas éticas que circulavam na China; origináriamente,
não era religião. Sua ética abrange não só o indivíduo e a família, mas
também a política e a sociedade, e pode ser reduzida a êstes cinco pontos
fundamentais: o homem deve ser "piedoso" (cf. a palavra latina pietas) para
com os pais (vivos e defuntos), para com as autoridades, para com os irmãos
de maior idade, para com os amigos e para com a espôsa. Os deveres
são mútuos: "Governa os teus súditos como tu quererias ser governado, se
fôsses súdito". — Como Lao-Tseu, Confúcio aspira a uma perfeita concor-
dância humana com o Tao.
• — Os Upanichades (= "estar sentado" ao pé do mestre, daí: "iniciação nas
doutrinas ocultas") são comentários filosóficos e religiosos (de caráter teo-
sófico), feitos na índia durante o I milênio a. C., que constituem a parte
mais importante do Veda (= "o Saber"), a Bíblia da Índia. Os Upanichades
chegaram, juntamente com o Avesta (o livro sagrado dos persas), à Europa
— 222 —

Palestina com os profetas; na Grécia com Homero, Hesíodo, os pré-


socráticos, os dramaturgos, os filósofos "clássicos", etc . A Época
Axial movimentava grandes partes da Ásia e da Europa sem que os
seus contemporâneos tivessem conhecimento do paralelismo dêsse
movimento; só os tempos modernos, que presenciam a coalescência
dos diversos continentes do mundo, descobriram a coincidência.
Coincidência? Jaspers acha pouco provável que o paralelismo
do novo movimento em três continentes (China, Índia e mundo medi-
terrâneo) seja devido ao jôgo enganador de um "acaso histórico"; an-
tes parece-lhe revelar a existência de um núcleo comum a todos
os homens: a liberdade humana que não se conforma com as "si-
tuações-limites". Mas qual é a causa apontável desta mudança tão
radical e quase simultânea em continentes tão distantes entre si?
O autor, depois de discutir• a tese de Alfred Weber- (185), segundo
a qual a domesticação do cavalo e a invenção de carros de guerra
teriam produzido efeitos análogos em três continentes diferentes,
confessa não saber explicar o fenômeno central da história; quan-
do muito, julga poder apontar algumas condições de ordem socioló-
gica, mais ilustrativas do que explicativas. Não quer recorrer a uma
intervenção da Divindade, pois tal hipótese seria um salto mortal
do conhecimento ao pseudo-conhecimento e, ao mesmo tempo, uma
impertinência por parte do homem com a Divindade. O espanto
ante o mistério é fecundo, e talvez o supremo objetivo de todos os
nossos esforços intelectuais: mediante um máximo de saber, topa-
mos no não-saber autêntico (186)

no século XVIII por intermédio do francês Anquetil Duperron (1761) que


viveu sete anos entre os "Parses" na Índia e doou suas conquistas à Biblio-
thèque Nationale de Paris. Os livros tornaram-se os devocionários do filó-
solo alemão A. Schopenhauer (cf. § 111 Ia, nota 131) .
. — Buda (= "O Acordado") viveu nos séculos VI-V a. C.; houve tentativas de
reduzi-lo a um herói solar, depois humanizado, mas, ao que parece, não se
pode duvidar da sua historicidade, embora sua biografia, como a de Lao-
Tseu, desde cêdo, foi desfigurada pela imaginação do povo. Buda, depois
de ter levado uma juventude mundana, fêz-se asceta aos 29 anos; sete anos
depois, deu-se o grande acontecimento da sua vida: a "iluminação"; em se-
guida, peregrinou ainda uns 45 anos por diversos países. — O Budismo visa
à salvação humana do sofrimento universal mediante o conhecimento verda-
deiro. As quatro grandes verdades são: 1) a existência individual é sofri-
mento; 2) a causa do sofrimento é a sêde vital, ou o desêjo insaciável de
viver; 3) suprime-se o sofrimento mediante a aniquilação das paixões; 4)
o homem, por seguir um caminho óctuplo, pode chegar ao Nirvana, um es-
tado de bem-aventurança inefável em que já não existe a personalidade, com
seu desêjo de viver e com sua consciência individual. O ideal é, portanto,
a rendição total à alma mundial, a libertação do mal, da morte, da reen-
carnação.
. — Cf. § 73 II, nota 35c, e supra, nota 145.
. — Alfred Weber autor de várias obras que tiveram repercussão nas idéias de
Jaspers, por exemplo: Kulturgeschichte els Kultursoziologie (cf. § 125, nota
1), Das Tragische und die Geschichte e Abschied von der bisherigen Ge-
schichte. — Éste Alfred Weber não deve ser confundido com seu irmão
Max Weber (cf. § 80 IV, nota 15) que, igualmente, influenciou o pensa-
mento de Jaspers. O filósofo consagrou um ensaio à figura de Max Weber
(1932) .
. — Jaspers, Vom Ursprung und Ziel, pág. 40: Das Staunen vor dem Geheimnis
ist selber ein fruchtbarer Erkenntnisakt als Ausgang weiteren Forschens, dann
— 223 —

Chineses, hindus, persas, judeus e gregos realizaram a grande


brecha histórica (alemão: Durchbruch); os egípcios e os babilônios
não participaram dêsse grandioso movimento. Por isso mesmo fo-
ram perdendo sua resistência externa e interna, acabando por ficar
absorvidos pelo Império Romano, pelo Islam, etc. (187). Outros
povos, tais como os macedônios e os romanos, foram influenciados
pela Época Axial, mas não no âmago do seu ser: entendiam bem da
arte de administrar e de organizar o mundo, mereciam bem da
tradição cultural que salvavam, mas não conseguiam continuá-la
pessoalmente ou aprofundá-la com elementos originais. Os povos
nórdicos, porém, com seu Gemüt (cf. § 96 Vb), já estavam interior-
mente preparados para assimilar o patrimônio espiritual da Épo-
ca Axial (188).
O espírito da Época Axial, dentro dos territórios onde nasceu,
não conseguiu apoderar-se de todos os indivíduos: a distância que
separa os corifeus do gênero humano e as massas incapazes
de segui-los, reveste, com o tempo, proporções extraordinárias. Mas,
indiretamente, todos os indivíduos humanos começaram a ser in-
fluenciados pelo espírito novo: a condição humana deu um salto
decisivo.
O progresso desta Época não foi ascendente nem contínuo. Ia-
se perdendo, aos poucos, o espírito criador; o que fôra liberdade de
espírito, transformava-se em anarquia ou então, em fixação de dou-
trinas e em nivelamento. O fim da Época Axial caracterizava-se
pela fundação de grandes Impérios que, embora incapazes de criar
novos valores espirituais, faziam questão de conservar os laços es-
pirituais com o passado: Augusto restaurava a "paidéia" greco-ro-
mana; a dinastia de Han, na China, inaugurava o confucionismo
(189); à dinastia de Maurya, na Índia, oficializava o budismo (190).
Mas essa consolidação não foi permanente ou definitiva: aos Im-
périos Universais sucederam-se épocas de migrações, guerras exter-

aber vielleicht gerada das Ziel ali unseres Erkenntens, nãmlich durch rha-
ximales Wissen zuni eigentlichen Nichtwissen vorzudringen, statt das Sein
verschwinden zu lassen in der Verabsolutierung zum in sich geschlossenen
Erkenntnisgegenstand .
. — A argumentação não é muito convincente: também os judeus, os gregos e os
persas, apesar de terem conhecido a sua Época Axial, foram absorvidos por
grandes Impérios, e alguns "povos axiais" chegaram ao ponto de perder sua in-
dividualidade.
. — Os indo-europeus descobriram, segundo Jaspers, "o trágico", e foram os
criadores da epopéia (mas Gilgamesh não é uma epopéia babilônica?); os
povos nórdicos levaram a experiência da Época Axial ao extremo, chegando
a ter certeza existencial da Transcendência.
. — A dinastia dos Han reinou de 206 d. C.; segundo Toynbee, é o Universal
State da civilização sínica.
. — O representante mais importante da dinastia de Maurya foi Asoka (273-
231 a. C.), que dominava quase tôda a Índia; a dinastia de Maurya consti-
tui, segundo Toynbee, o Universal State da civilização indica (323-185 a. C.).
— 224 —

nas e lutas civis, — sempre, porém, seguidas de "renascimentos"


regressos às fontes originais da Época Axial.
Quando a Europa, nos séculos XVI a XVIII, tomou conheci-
mento da Índia e da China, êsses países estavam em plena deca-
dência (a afamada "estagnação oriental"), mas uma decadência
comparável à que a Europa conhecera nos séculos VI a VIII, e
que admite a possibilidade de uma renascença. O encôntro dos
diversos focos da Época Axial verificou-se só nos tempos moder-
nos, e foi possibilitado pelo espírito técnico-científico dos ociden-
tais. Um entendimento entre os três mundos diferentes é possí-
vel em virtude de ser comum a cada um dos três a experiência
vital da Época Axial. Nesta comunicação espiritual entre cultu-
,

ras que, durante muito tempo, viveram isoladas, não se trata de


procurar uma verdade comum que seja "objetivável" (como as
"verdades" das ciências particulares), e sim de fazer entrever a
Verdade absoluta que cada uma delas "vive" de maneira diferen-
te conforme a sua própria -origem histórica.
d) O Descobrimento das Ciências e a Tecnologia.
'Êste quarto salto feito pela humanidade, ou melhor, pelo ho-
mem ocidental, é o único aconteciniento 'histórico abs'Olutamente
novo depois da Época Axial. Pretendemos falar dêle mais adiante
(V); precisamos ver primeiro, com Jaspers, por que razão o Oci-
dente, e não os outros continentes, — apesar de terem tido a sua
Época Axial, — chegou a essa inovação revolucionária .
IV. Dois Corolários.
O mundo ocidental destaca-se das culturas orientais, não obs-
tante estas também estarem impregnadas do espírito da sua Épo-
ca Axial; o Ocidente é um mundo diferente por causa das suas
raízes históricas peculiares.
a) Oriente e Ocidente.
Ao passo que o Oriente sempre viveu (até nos tempos moder-
nos) continuando únicamente seu próprio passado, o Ocidente é
o resultado de tradições variadas e complementares. A Grécia
Roma e a Bíblia formaram o mundo ocidental, originària-
mente na forma sincretista do Baixo Império (alemão: Spãtantike),

. — Tais regressos às fontes foram, durante a história européa: o descobrimen-


to de Aristóteles no século XIII, algum tempo depois seguido do descobri-
mento de Platão; o descobrimento da religião profética pela Reforma, no
século XVI; o descobrimento da Hélade pelo neo-humanismo alemão, no só-
culo XVIII.
. — Aliás já a Grécia vivia em contacto contínuo com as diversas culturas
orientais.
'
— 225 —

forma essa que diversas renascenças (cf. nota 191) haviam de re-
conduzir à sua pureza original.
À Grécia o mundo ocidental deve o conceito de liberdade po-
lítica (pólis!) e sua propensão para a racionalidade (matemática
lógica, duas realizações do espírito helênico) . Os estadistas ro-
manos incutiram-lhe o senso realista e o desêjo de dominar o mun-
do. Mais profunda, porém, foi a atuação dos filósofos gregos e so-
bretudo a dos profetas judeus que frisaram a liberdade interior
da pessoa humana; além disso, a Bíblia, por livrar o Ocidente da
magia e da "transcendência corpórea" (alemão: die dinghaf te Trans-
zendenz), entregou-lhe o mundo como um campo de investigações
de experiências, como "criatura" não divina, mas muito real: daí
homem ocidental sente a vontade de conhecer a obra de Deus,
de "re-pensar" o Pensamento divino, e de transformar o mundo
num habitat cada vez mais apropriado à sua natureza (193) . O
Oriente caracteriza-se por seu amor ao valor da pessoa humana
(194) e produziu uma série de indivíduos notáveis, ou melhor, de
personalidades originais dos matizes mais variados. No Ocidente,
universal não possui a rigidez dogmática do Oriente, isto é, o
Ocidente não fica estacionário: dotado de um temperamento dinâmi-
co, concede lugar também às exceções e às diferenciações, visto que
não quer resignar-se com regras ou normas gerais. Por outro lado, o
Ocidente, para obviar as veleidades do individualismo, tentou contra-
balançar essas fôrças centrífugas mediante um certo totalitarismo
religioso, oriundo da sua fonte bíblica; mas o exclusivismo religio-
so teve de manter-se dentro de certos limites, uma vez que a Cris-
tandade, desde cêdo, se dividiu em várias seitas e devia contar tam-
bém com a presença do Estado, o qual reclamava para si igual-
mente uma autoridade absoluta. O Ocidente é, portanto, o feliz re-
sultado de várias tensões internas, cada uma das quais tem a sua
própria origem histórica dentro da tradição ocidental, e essa pola-
ridade (195) nos poderia fazer crer na sua superioridade. Mas
(193) . — Cf. D. de Rougemont, L'Aventure Occidentale de l'Hornene, Paris, Albin
Michel, 1957, pág. 28: Le danger que court l'Oriental, c'est l'ex-carnation
trop incite. (On perd en chemin te monde créé, sa raison d'être, la connais-
sance et la maitrise de ses structures). Le clangor, pour l'Occidental, c'est
l'incarnation trop complète. (On se perd soi-même dares Ia matière et ses
structures, on perd de vue les exigentes et Ia maitrise des réalités spiri-
fuelles) .
(194). — Ibidem, pág. 61: L'acte de création des grands Concites consiste donc à opé-
rer la transmutation périlleuse d'un mot latin et de contenus helléniques en
un dogme exprimant Ia nature triplo et une de la Divinité relvélée en Jésus.
Ainsi naquit l'idée de Personne, termo purement théologique aux yeux des
Pères de Nioée, mais qui devait apparaitre, après coup, corntrne le fait spé.
dfique et capital de I'anthropologie occidentale. — Cf. § 17 III b, nota
3; cf. também a opinião de Soloviév, § 122 Va.
(195) . "Polaridade" quer dizer: a combinação de duas fôrças ou de dois elementos
que mutuamente se atraem e se repelem, ao mesmo tempo; poderíamos dizer
também: dois elementos antinômicos que se completam (por exemplo, ho-
mem-mulher, Estado-povo, transcendência-imanência, etc.) . — O têrmo foi
introduzido pelos românticos alemães (Herder, Goethe, etc.).

Revista de História n.o 35


— 226 —

a satisfação com a nossa riqueza poderia impedir-nos de ver a ri-


queza da Ásia, uma riqueza nova e inesperada que concerne dire-
tamente à nossa vida íntima. Não podemos erguer a antinomia en-
tre a Europa e a Ásia à categoria de um dualismo metafísico;
em vez de incidirmos em tal pensamento mitológico, devemos pro-
curar no Oriente aquilo que nos falta a nós, num diálogo fecundo
de comunicação existencial.
b) A Religião Bíblica.
On se demandera, ce que l'Europe pourrait bien être sana Bi-
ble, si elle sortait directement d'une origine pré-biblique et pré-
grecque. La même réponse s'impose toujours: ce que nous sommes,
nous le somme,s grâce à la religion biblique et aux éléments qui, issus
de cette religion, ont été sécularisés par la suite, depuis les fonde-
ments de la notion d'humanité jusqu'aux ressorts de la science mo-
derno et aux impulsiona de nos grandes philosophies. À la lettre:
sana la Bible nous glissons dans le néant (196) . Essas palavras so-
lenes não contêm uma profissão de fé cristã: Jaspers fala como fi-
lósofo, não como crente de um credo religioso; sua fé filosófica su-
perou a fé religiosa; para êle, a Bíblia não é a Palavra de Deus, e
sim uma "cifra" da Transcendência; sua apreciação da Bíblia man-
tém-se entre dois polos opostos.
O autor opõe-se às pretensões exclusivistas das religiões bíbli-
cas, inclusive o Islam, fazendo uma distinção entre aquilo que é uni-
versalmente válido e aquilo que é exigência absoluta (197) . O
que é "existencial", é histórico e incondicional = absoluto, mas não
pode transformar-se numa verdade universalmente válida, nem na
sua forma fenomênica nem numa formulação abstrata . Igualmen-
te seria um êrro fatal querermos transformar o universalmente vá-
lido das ciências num absoluto existencial. O exclusivismo das re-
ligiões bíblicas explica a intolerância e o fanatismo que acompa-
nha a história do mundo ocidental (Cruzadas, guerras religiosas,
Inquisição, etc.), tendências essas que se percebem até na cultura
secularizada do Ocidente atual (o totalitarismo estatal, a tirania
das ciências, etc.) ,
O autor nota a "polaridade" das diversas posições e afirma-
ções bíblicas; a Bíblia ensina uma religião ritual e uma religião

. — Jaspers, Bilap et Perspectives, págs. 55-56.


. — Universalmente válidos são os resultados das indagações científicas, mas
êles são indiferentes para a "existência" e relativos, já que foram obtidos
por um método determinado e nós dão perspectivas parciais, e não o total
da realidade. — "Exigência 'absoluta" pertence à esfera "existencial": o
absoluto não pode ser universal, mas é único, concreto e histórico; em última
análise, é incognoscível e inexprimível numa fórmula; quando uma "exigên-
cia absoluta" se realiza, pode-se tomar um exemplo estimulador para outra
"existência possível", ajudando-a a descobrir em si o núcleo mais íntimo da
sua personalidade.
— 227 —

ética; uma religião legalista e uma religião de amor; formalismo


escrupuloso e abertura mental; um deus •nacional e o Deus uni-
versal; a lei da retaliação e uma atitude humilde perante o mis-
tério insondável, etc. Assim se explica a possibilidade de tantos he-
reges recorrerem à Bíblia; assim se explica também a fecundidade
extraordinária da Bíblia que nos constrange a viver nos extremos
limites. Sem dúvida, à Bíblia falta a reflexão filosófica, mas a Bíblia
acostumou o homem ocidental a tomar consciência do Transcenden-
te e, assim fazendo, convidou-o a certificar-se de si mesmo.
Jaspers julga necessária uma reforma da religião bíblica. As
Igrejas cristãs devem despir-se das suas fixações dogmáticas que,
em parte, já se encontram na Bíblia e, talvez, tenham possuído um
certo valor histórico, mas são insustentáveis para a reflexão filosó-
fica; devem recuperar as tensões polares que são características da
Bíblia, mantendo-se abertas para as contradições internas da reli-
gião bíblica; devem, afinal, purificar e intensificar as verdades eter-
nas, tais como, a existência de um único Deus, o amor como rea-
lidade fundamental do Eterno no homem, o mundo como reali-
dade evanescente entre a "existência" e o Transcendente; o sentido
e a dignidade do sofrimento humano, etc.
As Igrejas cristãs do Ocidente demonstram bem como a nos-
sa civilização está arraigada em três cidades antigas: Jerusalém,
Atenas e Roma. Aos judeus devem elas os impulsos religiosos e profé-
ticos, aos gregos a largueza de espírito e a dilucidação filosófica, aos
romanos a fôrça organizadora e o senso prático. O Cristianismo,
— principalmente na sua forma católica (198), — é um conjunto
orgânicamente desenvolvido, sem ter sido planejado ou previsto
por ninguém.
V. As Ciências e a Tecnologia.
No fim da Idade Média nasceu, no mundo ocidental, o "espí-
rito científico", que, a partir do século XVIII, havia de ser rema-
tado pela tecnologia moderna. Jaspers não hesita em declarar o
espírito técnico-científico o acontecimento histórico mais impor ►
tante depois da Época Axial: produziu uma revolução interna e
externa, unificou o mundo e, quanto aos seus resultados imedia-
tos e visíveis, pode ser comparado talvez apenas com o descobri-
mento do fogo e dos primeiros utensílios pelo homem primitivo.
Contudo, a época moderna não atinge a altura da Época Axial: fal-

(198) . — Jaspers, Bilan et Perspectives, pág. 76: Le plus grand exemple d'une diabo-
ration en profondeur par laquelle l'esprit est parvenu à unifier une sura-
bondance sublime jusqu à lui donner une forme simple, c'est le catholicisme.
Celui-ci a réalisé au cours des nielénaires une synthèse des forces vives à
Poeuvre dans l'histoire depois les temps les plus reculés; il réussit à unir
même ce qui est contradictoire.
— 228, —

tam-lhe a pureza e a frescura daquele período, faltam-lhe as cria-


ções eternas do espírito (o homem do século XX continua a vi-
ver, no plano espiritual, da Época Axial), falta-lhe, afinal, a uni-
versalidade da Época Axial (199).. Jaspers acha mais provável
que os tempos modernos sejam comparáveis àquela fase histórica
que presenciou o nascimento das grandes civilizações orientais, e
nutre a esperança de que preparem uma Segunda Época Axial, a
inaugurar a vinda do verdadeiro homem.
a) Sapere aude! (200) .
A ciência tem estas três características: é conhecimento metò-
dicamente adquirido, leva a certezas indubitáveis e possui valida-
de universal. Como tal, já era conhecida dos antigos gregos. Mas
a ciência moderna que, nos seus primórdios, remonta aos homens
da Renascença (201), distingue-se bastante da "clássica" ou da
"helênica". Esta fazia questão de chegar a uma certeza sistemáti-
ca, ou talvez melhor, de repousar na contemplação de uma síntese
coerente e harmônica: para alcançar êsse fim, não hesitava em emi-
tir hipóteses das mais ousadas. A ciência moderna é pesquisa infini-
ta e essencialmente inacabada, revelando uma sêde insaciável de
saber que se estende a todos os fenômenos, por mais insignifican-
tes que pareçam; ela procura menos investigar o Kósmos do Ser
do que elaborar o Kósmos do saber, isto é, ela se interessa predo-
minantemente pela conexão lógica dos conhecimentos, e sabe que
suas sistematizações são precárias e eternamente revisíveis. O to-
tal dos conhecimentos científicos não abarca a realidade inteira;
não é possível hierarquizá-los conforme normas ontológicas; não
existe uma ciência universal nem o saber total; a elaboração de
grandes sínteses (alemão: Weltbilder), destinadas a abranger o to-
tal dos nossos conhecimentos, é uma tentativa absurda e um falso
substituto da filosofia que, doravante, se pode revelar em tôda a
sua pureza, tornando-se "existencial": eis umas convicções funda-
mentais do espírito científico moderno, mais negativas do que po-
sitivas (202) .
O prestígio da ciência é enorme nos tempos modernos, mas
são poucos os que possuem o "espírito científico" na verdadeira acep-
ção da palavra. Muitos têm por ela uma veneração supersticiosa,
. Jaspers, Vom Ursprung und Ziel, págs. 178-179: —Demais die Fülle, heute
lieLeere... E5 ist jetzt nocI das Zeitalter real« technischer und politischer
Umgestaltung, nicht ein Zeiltalter ewiger geistiger Schiipfungen.
. — Horatius, Epistolas, I 2, 40.
. As ciências modernas têm, em última análise, sua origem na religião bíblica,
cf. supra, IVa.
. — Quanto à conexão positiva entre as ciências, pode-se dizer: a tôdas elas é
comum a mesma forma de conhecimento (particular e metódica); uma ciên-
cia torna-se auxiliar para outra; tôdas se originam do desêjo universal de
perscrutar o mundo;- cada ciência exige uma disponibilidade constante pe-
rante o real e os objetos do pensamento.
— 229 —

como se fôsse capaz de dar uma resposta total ao mistério do Ser


ou de livrar o homem dos seus males: tal confiança excessiva deve
lègicamente converter-se em desprêzo brutal da razão (203) .
b) Natura parendo vincitur.
O animal vive num ambiente "natural" que lhe é dado e em
que passa inconscientemente a vida; o homem pode, até certo pon-
to, modificar seu ambiente natural, chegando a criar "uma segun-
da natureza" (cf. § 125 IIb), em que se reflete a inteligência hu-
mana e em que o homem se redescobre a si mesmo . Os rudimen-
tos da tecnologia remontam aos primórdios da humanidade. Mas
a tecnologia moderna, possibilitada, em última análise, pela reli-
gião bíblica, diferencia-se das técnicas anteriores: ela pressupõe um
desenvolvimento extraordinário das "ciências exatas", ao passo que,
antigamente, o homem se utilizava das qualidades diretamente per-
ceptíveis de coisas naturais; ela torna sistemáticas e metódicas as
invenções mediante pesquisas feitas em equipes; ela pressupõe
formas altamente desenvolvidas de organização do trabalho bem
como do crédito financeiro. O trabalho e a técnica são sumamen-
te apreciados, no mundo moderno; mas, ao lado da "mística do tra-
balho" (204), vemos hoje em dia também a triste imagem do ho-
mem completamente alienado do trabalho por causa da mecaniza-
ção alastrante, e já emudeceram, pelo menos na Europa, os coros
de júbilo que os nossos antepassados entoaram pelos primeiros triun-
fos da época técnica (205) . Evidencia-se cada vez mais que a téc-
nica, como tôdas as outras invenções da inteligência humana, é am-
bivalente: o domínio das fôrças da natureza não constitui progres-
so integral, mas impõe ao homem uma séria tarefa, de cuja boa ou
má execução dependerá o seu valor ou desvalor. A técnica é ambiva-
lente, porque convida os inventores a penetrarem cada vez mais a
fundo nos segredos da natureza, mas afasta cada vez mais da natureza
os que se limitam a utilizar-se dos seus produtos; porque exige um
enorme esfôrço mental da parte dos tecnólogos, mas favorece a pre-
guiça mental dos que se aproveitam dos seus inventos (206); por-

— No opúsculo Raison et Déraison, Jaspers trata dos abusos do pensamento cien-


tífico nos tempos modernos (por exemplo, Marx e Freud!) e diz (pág. 32):
II faut bien dite que toute connaissance tateie, métaphysique ou gnostique,
des événements n'est qu'un rêve, mauvais ou beau.
— Ela tem, segundo o autor, suas raízes no Protestantismo, mas cf. § 80 IV,.
e § 125 II b.
— Cf. A. D. Sertillanges, Le Problème du Mal, Paris, Aubier, 1948, I pág.
247: Qui se préoccupe aujourd'hui de l'avantage des chemins de ler de
Pélectricité, dont la d écouverte a suscité tant d'espérances? Le retard 'd'un
train nous fait piétiner de fureur; mais sa présence nous parait due .autant
que la lumière et Pair, ~agueis nul ne pense.
— Cf. Theodor Haecker julga a téicnica "o milagre profano dos tempos mo-
dernos", cf. seu ensaio Dialog über Christentum und Kultur, Hellerau, Hegner,
págs. 61-62: Sie ist das unheilige Wunder dieser Zeit, achai fend eine Zeitlang
(jede Maschine lauft eine Zeitlang), eine Einheit des Mittels, wo die des
— 230 —

que é um meio a serviço de um fim humano, mas tende a transfor-


mar-se num fim em si; porque se limita à natureza inanimada, — o
reino da mecânica, — mas invade facilmente o terreno da vida hu-
mana, chegando a automatizárla e mecanizá-la; porque facilita o tra-
balho e aumenta a produção, mas, por outro lado, cria cada vez novas
necessidades, que obrigam o homem a trabalhar cada vez mais. O
ponto importante é que o homem chegue a dominar a técnica, dan-
do-lhe um significado humano: o futuro da humanidade está ligado
à solução dêste problema.
VI. A Crise Atual.
A época contemporânea caracteriza-se ,pClor uma revolução
universal, que não poupa nenhum. indivíduo, nenhuma classe social
e nenhum povo. Todos êles estão sendo arrancados dos seus mol-
des tradicionais, tudo se desliga das convicções e das normas que.,
durante muitos séculos, constituiram a consciência humana. As
massas estão-se transformando no fator decisivo para o futuro: o
"eu" torna-se cada vez mais impotente, e o "nós" cada vez mais
poderoso. Ao passo que a história dos séculos passados se nos apre-
senta como uma espécie de biografias seriadas, o mundo atual re-
vela uma tendência desalentadora de "massificação". Outrora, as
Igrejas mantinham vivos os valores tradicionais, concretizando-os
em firmes organizações sociais; hoje em dia, o ceticismo e o niilis-
mo (cujo grande profeta é Nietzsche) estão em voga. As massas
vivem de `ideologias" (207) e de slogans simplistas (cf. § 109 II);
com a perda da fé, — uma fôrça positiva, — instalou-se na nossa
sociedade o niilismo, e o niilista vive de negações. Mas também
aqui o autor acredita na ambivalência da evolução contemporânea:
as massas atuais podem levar o homem a um estado de animalismo,
ou então podem inaugurar uma nova época gloriosa, sem classes
privilegiadas, em que todos os indivíduos receberão uma boa edu-
cação, se acostumarão a pensar pessoalmente e a dar uma orienta-
ção original à sua vida. Pois também as massas são compostas de
pessoas humanas, em que a centelha divina do espírito nunca se ex-

Zweckes verloren ging; Geist und Leben verstehen einander nicht mehr, be-
schimpfen einander, aber ihr Mittel, die Maschine, ein eiserner Giitze (latzfend
eine Zeitlang) beherrscht sie beide und diktiert ihnen, statt derem Befehle zu
erhalten; sie allein verliert nicht (eine Zeitlang) durch den Massenbetrieb
und gewinnt (eine Zeitlang) alies durch die Exaktheit, die ihr einziger "Geist"
ist, wohltiitig ruir, wo der Meister der Geist selber ist, dem die Knechte ge-
horchen; aber ein sich selbst verstümmelndes Geschlecht von ungehorsansen
Lehrlingen wird die Ungeister nicht los, es wird ihre Beute.
(207) . Segundo Jaspers (in Vom Ursprung und Ziel, pág. 169), uma ideologia é
um complexo de idéias ou de representações que goza, aos olhos do sujeito,
do prestígio de uma interpretação do mundo e da sua situação no mesmo,
chegando a impor-se-lhe como uma verdade absoluta, mas sempre sob a for-
ma de uma qualquer ilusão, a permitir-lhe que êle se justifique, se difarce ou
se esquive para obter uma vantagem imediata.
— 231 —

tinguirá por completo (208) . Como se verificará êsse milagre, Jas-


pers não se aventura a descrever.
Tampouco nos sabe informar das causas que originaram a si-
tuação atual. Tôdas as explicações totalitárias são falsas (209) .
Muitos fatôres têm sido responsabilizados pela crise do mundo mo-
derno: a técnica, o Iluminismo, a Revolução francesa, o Idealismo
filosófico da escola alemã, mas todos êsses fenômenos são mais con-
seqüências do que as verdadeiras causas da crise atual. E' preferí-
vel contrapor às tentativas "mono-causais" e totalitárias uma simples
representação simbólica que deixe intacto o mistério: no homem
existe um mal indestrutível que, devido ao surto enorme da técnica
moderna, tem hoje mais possibilidades de revelar-se .
VII. Tendências Fundamentais.
O futuro é imprevisível. Quem pretende conhecer o plano to-
tal da história, expõe-se fàcilmente ao risco de se transformar num
fanático, fato provado pela atitude dos marxistas. Mas a circunstân-
cia de ser imprevisível a história não nos proibe de fazer "prognósti-
cos": êstes podem dar uma orientação valiosa às nossas atividades
e aumentar a nossa liberdade por nos tornarem mais conscientes
das possibilidades que existem na situação em que nos achamos.
As duas tendências fundamentais que se apresentam ao historia-
dor, ao analisar as circunstâncias atuais, são o socialismo e a uni-
dade mundial. As duas convergem para a realização histórica da
liberdade _da pessoa humana, mas ambas são, por si, insuficientes
para atingir êsse ideal e incapazes de dar um significado humano à
história . A história é o caminhar do gênero humano rumo à liber-
dade pela disciplina da fé (210) . Eis a maior necessidade do momen-
to: a fé. Num mundo técnico e científico, que pode por-se ao serviço
tanto do bem como do mal, o homem deve redescobrir suas origens
espirituais, deve disciplinar-se pela fé. A fé não é artigo de um progra-
ma social ou político, não é credo definido, não tem conteúdo dogmá-
tico, nem sequer é formulável em conceitos abstratos: a fé é aquilo
que está radicado no fundo do nosso ser e pelo qual, erguendo-nos
acima de nós mesmos, nos sentimos ligados à origem do Ser (211).
O oposto da fé é o niilismo, mas o homem não pode ser niilista sem
ter má consciência. Embora seja impossível exprimir-se o Eterno,
o Transcendente, o Envolvente, — objeto da nossa fé, — Jaspers
(208). — Cf. § 20 IV, onde o leitor encontrará uma passagem de Romano Guardini
de tendência semelhante.
. — Jaspers, Vom Ursprung und Ziei, pág. 172: Je mehr wir erkennen, desto
grdsser wird für unser Bewusstsein das Geheimnis des Ganzen.
. — Ibidem, pág. 275: Die Geschichte ist der Gane des Menschen zur Freiheit
durch die Zucht des Glaubens.
(211). — Ibidem, pág. 268: Glauben ist das Erfüllende und Bewegende im Grunde
des Menschen, in dem der Mensch iiher sich selbst hlnaus mit dem Urspruná
des Seins verbunden ist.
— 232 —

também tenta formular os artigos da sua fé filosófica, bem saben-


do que suas fórmulas não passam de vagas alusões a uma reali-
dade inefável: a fé em Deus (o homem não pode perder a Trans-
cendência sem perder sua humanidade), a fé no homem (crer na
liberdade humana, sem endeusar o homem), e a fé no mundo (não
crer na auto-suficiência do mundo, e sim agarrar-se ao enigma fun-
damental da existência humana que lhe prescreve considerar êste
mundo como o campo onde deve realizar as suas possibilidades
e deve cumprir as suas obrigações).
O Socialismo.
O Socialismo é hoje uma tendência universal da humanidade
contemporânea que exige uma organização racional do trabalho e
uma participação justa e adeqüada nos resultados do mesmo, com
exclusão de privilégios, com o fim de garantir a liberdade de todos.
Neste sentido, quase todo o mundo é, hoje em dia, socialista: a
dificuldade reside, não em jvstificar o socialismo, e sim em rea-
lizá-lo. Se o socialismo acode um sentimento profundo de justiça
social, a tornar-se cada vez mas consciente na humanidade con-
temporânea, não se lhe pode negar uma tendência nefasta por cau-
sa da "planificação" que lhe é inerente. Planificação é só possí-
vel quando se tem o poder (212), e planificação total é irrealizá-
vel sem o poder total. Ora, tal planificação leva inevitàvelmente
ao despotismo, cujo instrumento principal é a burocracia. A pla-
nificação total constitui uma grave aberração, já que nunca conhe-
cemos as coisas na sua totalidade; outrossim, a planificação não
pode ultrapassar os limites do mundo mecânico e racional; o "di-
rigismo" no terreno da cultura e da vida espiritual destrói, em
vez de construir. A planificação não cria obras de arte, nem gran-
des filosofias, e muito menos ainda personalidades: ela deve pru-
dentemente limitar-se a criar condições favoráveis à expansão da
pessoa humana e da cultura.
A Unidade Mundial.
O mundo atual tende inegàvelmente a unificar-se: outra ten-
dência ambivalente. Pois aqui surgem duas possibilidades: a de
um Império Universal e a de uma Ordem Mundial. A história dá-
nos exemplos pouco confortadores de Impérios Universais: não só

(212) . — Jaspers escreveu um capítulo interessante sôbre a liberdade, a democracia


e o poder,- ibidem, págs. 193-216, que não podemos expor aqui. Basta di-
zermos que o autor não acredita incondicionalmente na "democracia formal"
(sufrágio universal, escrutínio secreto, etc.), cf. pág. 210: Nur ureter den
charakterisierten Voraussetzungen — ein Ethos gemeinsa:men Lebens, eine
Selbsterziehung im Miteinanderreden zur Bewaltigung konkreter Aufgaben,
unbedingte Verteidigung der Grund-und Menschenrechte, Gründung im Emst
des Glaubens — ist sie verliisslich.

c.;
— 233 —

o Império Romano como também os Impérios na Índia e na China,


que encerraram a Época Axial, mostram um, nivelamento medonho,
uma diminuição da liberdade, um estado sonolento da humanida-
de, uma mumificação do espírito humano. O outro têrmo da alter-
nativa é construir uma Ordem. Mundial mediante uma organização
compreensiva de federalismo (cf. Toynbee). E' verdade, o homem
do século XX almeja a Pax Aeterna, mas o júbilo pela paz eterna
não será eterno. No homem dos tempos vindouros, mesmo que con-
siga criar uma organização democrática e socialista, mesmo que con-
siga estabelecer uma Ordem Mundial, surgirão novas formas de pai-
xões destruidoras. O homem não pode nutrir ilusões acêrca dos be-
nefícios da sua organização social e política . Só o indivíduo pode
tornar-se "existência", capaz de encontrar seu significado "eterno"
(213) através da sua manifestação no tempo. Os quadros sociais
em que vive o homem, por mais perfeitos que sejam, não o salvarão.
VIII. O Significado da História.
Mais uma vez: não há significado universal sem unidade. Mas
a unidade da história não existe como fato, nem como conceito ex-
primível numa fórmula abstrata: o homem é incapaz de formular
o fim da história, mesmo o mais elevado, que não seja particular.
Sem dúvida, existe um indício da verdade em todos os esforços
do espírito humano para atingir intelectualmente a unidade da his-
tória; mas todos êles se tornam falazes e ilusórios, quando de afir-
mações particulares se transformam em verdades totalitárias. A
unidade da história não é fato nem fórmula abstrata, mas um fim,
uma tarefa, confiada a cargo de cada um: de nós. A unidade de to-
dos os homens, entrevista como uma cifra do Transcendente por
quem faz um estudo interpretativo da história, torna-se um objetivo
para a vontade humana. Paz mundial, ordem legal, justiça social,
libertação da miséria e felicidade — se fôr possível — para todos:
tôda essa "unidade" concerne apenas ao nosso Dasein empírico; pa-
ra a "existência", êsses fins históricos, por mais importantes que
sejam, não passam de meios. A unidade da história é misteriosa e
inatingível, tal como o Uno da Transcendência.
(213) . — A "eternidade", s°gundo Jaspers, não tem nada a ver com a célebre defi-
nição de Boécio: interminabilis vitae tota simul et perfecta possessio (De
Consolatione Philosophiae, V, Prosa VI 2; cf. § 68 lia, nota 11), mas é
uma forma de "existência": é o aprofundamento do instante, um preenchi-
mento temporal do presente que, contendo em si o passado e o futuro, não
pode ser reduzido nem ao futuro, como se o presente só estivesse ao serviço
do que há de vir, nem ao passado, como se a conservação e a repetição do
que foi constituissem o verdadeiro sentido da minha vida. A eternidade é a
indivisível unidade da reminiscência, da presença e da expectativa. No ins-
tante solene da decisão, que reune- o passado da fidelidade e o futuro da
possibilidade, — a repetição e a previsão, — que me faz lembrar daquilo que
prevejo e prever aquilo de que me lembro, eu alcanço uma presença eterna.
Pela brecha que abro, através da imanência da consciência, atinjo o ins-
tante da eternidade. — Devemos esta nota a R. Jolivet, op. cit., págs. 302
e 340.
— 234 —

E o Uno da Transcendência não se pode manifestar ao homem


histórico a não ser na diversidade das cifras. No mundo unifica-
do manifestar-se-á a riqueza histórica pela diversidade de credos
(cf. Toynbee!), a possibilitar uma comunicação existencial entre
pessoas de origens diferentes, pois a unidade histórica é uma uni-
dade que esconde o Uno transcendente numa multiplicidade de for-
mas. Quando, um dia, os diversos povos da terra se encontrarem,
deverão apontar um a outro, num combate amoroso, aquilo que
constitui o núcleo das suas experiências históricas e que, por mais
estranho que possa parecer, interessa a todos os homens (214).
Revelar-se-á o Uno na disponibilidade infinita de todos os homens
para entrar em livre comunicação com todos. A derradeira uni-
dade dos homens e da história situa-se, portanto, numa região ina-
cessível a tôda e qualquer verificação empírica: no Reino dos Es-
píritos que se encontram num combate fraternal, no Reino invisí-
vel e abscôndito, onde o Ser se revela na harmonia das almas. Mas
o processo histórico sempre será um movimento entre a origem e
o fim, e.nunca atingirá plenamente o seu alvo, ou talvez seja, em
cada um dos seus momentos, aquilo que significa (215).
Abstivemo-nos, até agora, de dar um comentário sôbre a visão
jasperiana da história, e também aqui seremos muito breves. Seu
livro nos parece uma contribuição muito importante e original pa-
ra a "filosofia da história". Não dogmatiza, não generaliza, não re-
duz a esquemas simplistas a multiplicidade e a ambigüidade —
como são elas irritantes para a inteligência humana! — dos fenô-
menos históricos. O autor é ponderado na análise dos fatos, mostra
grande habilidade dialética e não nos apresenta um "sistema fecha-
do", e sim uma interpretação sumamente aberta da história (cf.
A. Weber!) . E' notável sua luta pela dignidade da pessoa huma-
na, e muito acertada sua idéia sôbre a ambivalência do processo
histórico. Mas seu agnosticismo "sistemático" em questões de or-
dem metafísica e teológica é decepcionante. Enquanto tudo pare-
ce levá-lo a admitir um fim transcendente da história, obstina-se
em não dar o passo decisivo, agarrando-se à imanência. Seu ideal
de unidade é abstrato e livresco; seu conceito de "comunicação exis-
tencial", além de ser incapaz de inspirar a grande maioria da hu-

Jaspers, Bilan et Perspectives, pág. 32: n est possible de concevoir un hm


manisme futur ayant approprié à l'esprit occidental les élérnents qui fondè-
rent chez les Chinois et les Hindous le sens de l'hurnain. 11 pourrait devenir
alors l'humaniszne commun à teus les hebitants de la ferre, á travers la di-
versité de ses aspects historiques. Et cheque humanismo serait mieux lui-
même par la connaissance qu'il aurait des autres.
— Jaspers, Vom Ursprung und Ziel, pág. 327: So erhebt sich die tiefste Einheit
in eine unsichtbare Region, in das Reich der Geister, die sich begegnen und
zueinander gehiSren, das verborgene Reich der Offenba rkeit des Seins in der
Eintracht der Seelen. Geschichtlich aber bleibt die Bewegtmg, die, immer
zwischen Anfang und Ende, nie erreicht oder auch imnler ist, was sie eigentlich
bedeutet.
— 235 —

manidade, enclausura o homem fatalmente no tempo, cortando-lhe


a esperança de poder entrar na communio sanctorum, que é a ple-
nitude meta-histórica da "comunicação existencial". Seu Eixo da
história, apesar de abrir perspectivas interessantes, é uma constru-
ção meio precária, e tanto poderá dividir como reunir os po-
vos do Oriente e do Ocidente: não é a irrupção única do Absoluto
no mundo relativo, tal como o é a Encarnação na visão cristã da
história, e sim uma tentativa nobre, mas deficiente, do homem re-
lativo para se elevar ao Absoluto.
EPILOGO

§ 129. Por um Novo Humanismo.

Quem passou revista às diversas interpretações da história,


dadas por homens de vasta cultura e de extraordinárias capacida-
des intelectuais, não pode deixar de ficar profundamente impres-
sionado pela grande divergência de opiniões que lavra neste ter-
reno. A despeito dos imensos esforços que o espírito humano, prin-
cipalmente nos dois últimos séculos, tem dedicado à filosofia da
história, o enigma da história não está decifrado: cada vez mais
se evidencia que o homem se acha aqui diante de um problema
insolúvel, ou melhor, diante de um mistério insondável. Ao tor-
nar-se consciente dêste fato, o homem sente-se inclinado a excla-
mar com Jó: "Tenho de confessar que falei nèsciamente, e sôbre
coisas que ultrapassam sobremaneira a minha ciência". Profissão
de fé de um agnóstico? Antes nos parece confissão de uma igno-
rância salutar, a compenetrar-nos intimamente de que o homem
é um ser relativo, mas um ser relativo inabalavelmente radicado
no Absoluto, sem o qual não poderia subsistir nem conseguiria dar
um significado aos atos da sua vida. Aceitar o mistério da histó-
ria não quer dizer condenar-se a uma atitude passiva ou inerte, e
sim participar ativamente da vida histórica, mas sempre reconhe-
cendo que dentro da história atua uma fôrça que nos remete para
além da história. Aceitar o mistério da história não significa renun-
ciar à reflexão sôbre o processo histórico, e sim esforçar-se por ficar
com um conhecimento cada vez mais profundo da história, mas
sempre reconhecendo que nosso saber é fragmentário e parcial. Fe-
liz aquêle que, em busca do Absoluto no mundo da relatividade his-
tórica, encontra o Deus vivo, o Deus de Abraão, de Isac e de Jacó!
Feliz aquêle que na Encarnação de Jesus Cristo encontra a Carta
Magna do humanismo!
Pois a derradeira e decisiva questão levantada pela filosofia
da história é esta: "Que é o homem? De onde vem e para onde
vai?" Será que é uma formiga operosa, tendo sua razão de ser no
bem-estar da coletividade, ou um animal de rapina, ou um maca-
co fracassado, ou um pobre passarinho que, fugindo da tempes-
tade, se abriga uns poucos momentos numa sala bem aquecida pa-
ra, logo depois, desaparecer nas trevas da noite? Ou será que o
BESSELAAR, José van den. "Introdução aos estudos históricos (X)", In:
Revista de História, São Paulo, nº 35, pp 149-237, jul./set. 1958. Disponível
em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/035/A009N035op.pdf

— 237 —

homem foi feito à imagem e à semelhança de Deus, com a facul-


dade de responder à chamada divina e com um destino pessoal:
um peregrino rumo a uma meta situada além do tempo? Nos tem-
pos modernos não existe nenhum problema cuja solução seja mais
urgente ou mais importante.
Pode parecer um anacronismo ingênuo falar sôbre a importân-
cia e a urgência de um novo humanismo, numa época que se ufa-
na de ter inventado a bomba atômica, que já lançou satélites arti-
ficiais no espaço, que se está preparando para fazer sua primeira
viagem à lua . Num mundo embriagado com seus triúnfos técnicos
e com suas conquistas científicas o humanismo é talvez um as-
sunto mais necessário do que qualquer outro. Pois, por mais gran-
diaso que seja o progresso técnico e científico, os verdadeiros pro-
blemas humanos ainda não estão resolvidos. Na segunda metade
do século XX, ainda existem, em nosso planeta, a fome, a miséria,
o sofrimento, o ciúme, o ódio e o pecado: e o homem moderno ain-
da não conseguiu, tampouco como o homem primitivo, escapar-se
à morte que tudo nivela e não poupa a ninguém.
Grande é o homem na sua pequenez, e pequeno na sua gran-
deza; maior do que o Universo, e menor do que suas aspirações
que são infinitas; vive num mundo de fenômenos relativos, mas
tem a possibilidade de avistar os horizontes da Realidade Abso-
luta . Grande é o homem quando vive das fontes espirituais do seu
ser, pequeno é o homem quando deixado entregue às suas próprias
fôrças. O mistério da história, longe de ser um tema de interêsse
meramente acadêmico, aponta para outro mistério que interessa a
cada um de nós pessoalmente: o mistério da condição humana.

JOSE' VAN DEN BESSELAAR


da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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