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Poesia Toda 1953-1989 PDF
Poesia Toda 1953-1989 PDF
ISBN: 972-37-0252-5
CDU: 821.134.3-1"19/20"
ÍNDICE
POEMACTO (1961)
I - Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.
II - Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
III - O actor acende a boca. Depois, os cabelos.
IV - As vacas dormem, as estrelas são truculentas,
V - As barcas gritam sobre as águas.
LUGAR (1961-1962)
Aos amigos
Para o leitor ler de/vagar
Lugar
I - Uma noite encontrei uma pedra
II - Há sempre uma noite terrível para quem se despede
III - As mulheres têm uma assombrada roseira
IV - Há cidades cor de pérola onde as mulheres
V - Explico uma cidade quando as luzes evoluem.
VI - Às vezes penso: o lugar é tremendo.
VII - Pequenas estrelas que mudam de cor, frias
Lugar último
Teoria sentada
I - Um lento prazer esgota a minha voz. Quem
II - Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
III - A minha idade é assim — verde, sentada.
IV - Quando já não sei pensar no alto de irrespiráveis irrespiráveis
V - Muitas canções começam no fim, em cidades
VI - É a colina na colina, colina
Retratíssimo ou narração de um homem depois de maio
HÚMUS (1966)
ANTROPOFAGIAS (1971)
Texto 1: Todo o discurso é apenas o símbolo de uma inflexão
Texto 2: Não se vai entregar aos vários «motores» a fabricação do estio
Texto 3: Afinal a ideia é sempre a mesma o bailarino a pôr o pé
Texto 4: Eu podia abrir um mapa: «o corpo» com relevos crepitantes
Texto 5: «Uma devassidão aracnídea» se se quiser
Texto 6: Não se esqueçam de uma energia bruta e de uma certa
Texto 7: Tenho uma pequena coisa africana para dizer aos senhores
Texto 8: Nenhuma atenção se esqueceu de me cravar os dedos
Texto 9: Porque também «isso» acontece dizer-se que se lavra
Texto 10: Encontro-me na posição de estar freneticamente suspenso
Texto 11: «Estudara» muito pouco o comportamento das paisagens
Texto 12: Sei de um poeta que passou os anos mais próximos do seu
ETC. (1974)
COBRA (1975-76)
E então vinha a baforada do estio como se abrissem uma porta
A força do medo verga a constelação do sexo.
Os lençóis brilham como se eu tivesse tomado veneno.
A parede contempla a minha brancura no fundo:
As folhas ressumam da luz, os cometas escoam-se
O espelho é uma chama cortada, um astro.
O rosto espera no seu abismo animal.
Ele queria coar na cabeça da mulher aprofundada
A doçura, a febre e o medo sombriamente agravam
Tomo o poder nas mãos dos animais — quer dizer:
Amo este verão negro com as furnas de onde se arrancam
EXEMPLOS (1977)
1. A teoria era esta: arrasar tudo — mas alguém pegou
2. Eis como uma coisa como que nos interessa: destruir os textos.
3. Esta Ciência selvagem de investigar a força
4. Esta é mãe central com os dedos luzindo,
5. Não se pode tocar na dança. Toda essa fogueira.
AS MAGIAS (1986-87)
— Um poema (Iniji) que não é como os outros — (J.M.G. Le Clézio)
— Iniji — (Henri Michaux)
(lugures, Ásia Central)
(Pigmeus, África Equatorial)
(Dincas, Sudão)
— Dança e encantação — (Gabão)
— Noutra margem do inferno — (Robert Duncan)
— Canto das cerimónias canibais — (Huitotos, Colômbia Britânica)
— o coração — (Stephen Crane)
— À Serpente Celeste, contra as mordeduras — (Pigmeus, África Equatorial)
— Mulher cobra negra — (Gondos, índia Central)
— Serpente e lenço — (José Lezama Lima)
(índios Comanches, EUA)
— Na cerimónia da puberdade feminina — (índios Cunas, Panamá)
(Austrália)
— Os grandes feitiços — (Biaise Cendrars)
— Figos — (D.H. Lawrence)
— A Príapo — (Tivoli, Roma)
— Juventude virgem — (D.H. Lawrence)
— A Grande Rena Louca — (Colômbia)
As trompas de Ártemis — (Robert Duncan)
— Encantação — (México)
— Canto em honra dos ferreiros — (Mongólia)
— Os ferreiros — (Marie L de Weich)
— As coisas feitas em ferro — (D.H. Lawrence)
— A identidade dos contrários — (Edouard Roditi)
(Conde de Saint-Germain)
OS SELOS (1989)
Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?
Astralidade, zonas saturadas, a noite suspende um ramo.
Ela disse: porque os vestidos transbordam de vento.
A oferenda pode ser um chifre ou um crânio claro ou
Entre temperatura e visão a frase africana com as colunas de ar
São estes — leopardo e leão: carne turva e
Os lugares uns nos outros — e se alguém está lá dentro com grandes
Entre porta e porta — a porta que abre à água e a porta aberta
A poesia também pode ser isso:
Uma razão e as suas palavras, não sou leve não tenho
Podem mexer dentro da cabeça com a música porque um acerbo clamor
Doces criaturas de mãos levantadas, ferozes cabeleiras, centrífugas pelos olhos para
HERBERTO HELDER
POESIA TODA
[1953-1989]
A COLHER NA BOCA
PREFÁCIO
que te procuram.
III
Sabia-se agora
como havia razão no oculto
movimento da fantasia, como essa força
chegava de nada e era força no próprio e puro enigma
da minha vida. Porque a obra era então —
mais que o mundo e as fontes e os leitos
dos poderes —
eu, um homem disposto sobre si
como a luz se dispõe sobre a luz
e as palavras são em si mesmas dispostas
no renovo das palavras.
1953-60
POEMACTO
Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metia as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.
1961.
LUGAR
AOS AMIGOS
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.
PARA O LEITOR LER DE/VAGAR
Sou fechado
como uma pedra pedríssima. Perdidíssima
da boca transacta. Fechado
como uma. Pedra sem orelhas. Pedra una
reduzida a. Pedra.
Pedra sem válvulas. Com a cor reduzida
a. Um dia de louvor. Proferida lenta.
Escutada lenta.
E que espera.
E para quem volto. Muitas coisas sobre
uma coisa. Volto
uma exaltante morte de Deus. Auxiliado
auxiliar. O espírito, a pedra.
Do poema.
Leitor à minha frente. Vindo
do mais difícil lado
das noites. Ainda tocado e molhado
de suas flores aniquiladas.
Rodo. Para esse rosto difuso e vagaroso
meu sono.
A fantasia minuciosa. A oblíqua inovação.
A solidão. Trémula devagar.
Leitor: volto
para ti. Um livro que vai morrer depressa.
Depressa antes. Que a onda venha, a onda
alague: A noite caída em cima de teus dedos.
De encontro à cor de encontro à. Paragem
da cor. Este livro apertado nas estrelas
da boca, estrelas.
Aderentes fechadas. Por fora
leves às vezes, presas.
Para eu batê-las durante o tempo.
Eterno, o tempo. De uma onda maior que o nosso
tempo. O tempo leitor de um. Autor.
Ou um livro e um Deus com ondas de um mar
mais pacientes. —
Ondas do que um leitor devagar.
LUGAR
Encontrei
um animai adormecido, uma flor hipnotizada,
uma viola ferozmente taciturna.
Era amarela só se eu levantasse a cabeça, ou era
tão escura na infância grande.
Encontrei uma verde pedra cravada no mundo
das pessoas, à entrada da candura,
tão admirável pelo azul da terra dentro.
Uma coisa incompreendida no instante
de morrer para a frente.
Retratoblíquo sentado.
Retratimensamente de/lado, no/acto
conceptual de/ver quantos vivos quantos
dando folhas sobre os mortos de topázio.
Mãos agora, veloz rosto, visão pura.
Esquerdo ao/lado, fogo
junto à cabeça. E mais fogo à/direita por/detrás
da mão estreita pegando no ar
como num livro. Julgo ser eu.
Eu às/portas do sono, e não
se sabe se venho do sono, oh nem se
me empolgo numa ilusão
sombria. Eu oh nem se
me entro para um sonho extenuante.
Sono empurrado de inspiração
terrena.
1961-62.
O BEBEDOR NOCTURNO
poemas mudados para português
ODE DO DESESPERADO
EXORCISMO
FRAGMENTO DO CAIRO
*
Desço o rio numa barca,
ao ritmo dos remadores.
Com um feixe de canas ao ombro,
vou para Mênfis,
e direi a Ptah, senhor da verdade:
«Dá-me esta noite a minha amada.»
Este deus é como um rio de vinho,
com seus maciços de canas.
E a deusa Sekhmet é como se fosse a sua moita de flores.
E a deusa Earit, seu lótus em botão.
E o seu lótus aberto, o deus Nefertum.
SALTÉRIO
SALMOS
137, 88, 22, 42, 57, 69 e 139
(Segundo montagem de Jean Grosjean)
A gazela brame correndo para a água, e corre a minha alma para ti.
Quando verei Aquele de que tenho tanta sede?
Cresce-me o pranto se me perguntam onde está o Deus vivo.
Triste, lembro-me de haver caminhado para ti,
entre os gritos delirantes de um povo na sua festa.
Que tens, ó minha alma, que estremeces de melancolia?
Porquê gemer e não cantar Aquele
onde se apoia a tua face?
Sulamite
PRIMEIRO POEMA
Sulamite
Sulamite
Salomão
Sulamite
Salomão
Sulamite
Salomão
Sulamite
SEGUNDO POEMA
Sulamite
Os irmãos de Sulamite
Sulamite
TERCEIRO POEMA
Sulamite
Salomão
Sulamite
Salomão
Sulamite
Sulamite
Sulamite
QUINTO POEMA
Salomão
Salomão
Salomão
Sulamite
Salomão
CONCLUSÃO
Salomão
— Filho, viste acaso duas pedras verdes com uma cruz ao meio?
— Os olhos do homem.
— Filho, vai buscar uma mulher de Jalisco que tenha os cabelos em desordem e seja muito
bela e virgem. Que lhe dispo o vestido e o saiote, e ficarei feliz de vê-la assim. O seu
perfume será de terra, e um turbilhão será a sua bela cabeça.
— É a tenra espiga de milho verde cozida debaixo da terra.
Ele ganha e, contente, leva consigo a pedra vermelha com que sonhou. O orvalho do céu
com que sonhou.
ENIGMAS ASTECAS
— Uma coisa que caminha, levando à frente plumas vermelhas, seguida por um bando de
corvos?
— O incêndio das savanas.
— Uma coisa que vai pelos vales fora, batendo as palmas das mãos como uma mulher que
faz tortilhas?
— A borboleta voando.
POESIA MEXICANA DO CICLO NAUATLE
ELOGIOS
II
III
CANTO DE ITZPAPALOTL
DIÁLOGO DE MARINHEIROS
O DESEJO
*
Quando o peixe se move, turvam-se as águas;
quando o pássaro voa, uma pena.
DIVISA
(Al-Moutanabbi)
ORNATOS
(Ibn Al-Mou’tazz)
DECEPÇÃO
(Djamil)
(Al-Houtay’a)
POEMAS ARÁBICO-ANDALUZES
A LEITURA
Meus olhos resgatam o que está preso na página: o branco do branco e o preto do preto.
(Ben Ammar)
A NOZ
É uma envoltura formada por duas peças maravilhosamente unidas: pálpebras que o sono
fecha.
Quando as separa uma faca, surge uma pupila que o esforço de olhar torna convexa.
A BERINGELA
É um fruto de forma esférica, gosto vivo, alimentado nos jardins peia abundância das
águas.
(Ben Sara)
O DEDAL
Dedal dourado como o sol: todo se ilumina, se lhe bate a luz de uma estrela.
Modelou-o o ourives com esmero, até torná-lo vivo como o próprio ouro.
É um pequeno capacete picado pelas lanças, a que um golpe de espada tivesse arrancado
o elmo.
A LUA
E a noite veste-se com o seu brilho como a negra tinta se veste com o papel branco.
O RIO
Belo deslizava o rio no seu leito, e melhor seria nele mergulhar a boca do que mergulhá-la
numa boca de mulher.
curvado como uma pulseira, rodeado pelas flores como uma Via-Láctea.
O vento batia nos ramos, ondulava o ouro do crepúsculo sobre a prata da água.
Enquanto na margem eu distribuía vinho dourado cujo reflexo mordia as mãos dos
convivas.
(Ben Jafacha)
O NADADOR NEGRO
Nadava um negro num lago, através de cujas límpidas águas se viam as pedras do fundo.
Tinha o lago a forma de uma íris azul de que o negro era a pupila.
(Ben Jafacha)
CAVALO ALAZAO
Era um cavalo alazão, e à sua volta a batalha acendia-se como um tição de coragem.
As crinas eram cor da flor da romãzeira e as orelhas tinham a forma das folhas de mirto.
No peito, ao meio da cor vermelha, abria-se uma estrela branca, como as bolhas claras
que nascem numa taça de vinho rubro.
(Ben Jafacha)
OS JARROS
tornaram-se leves, e quase levantaram voo com sua carga preciosa, do mesmo modo que
os corpos se aligeiram com os espíritos.
CAVALO BRANCO
Alvo como luz quando o sol se levanta — orgulhoso avançava, ajaezado com a sela de
ouro.
«Quem pôs bridas à aurora com as Pléiades e selou o relâmpago com o crescente lunar?»
BOLHAS
Granizo sobre vivas chamas, granizo que nascia do próprio coração das brasas.
(Abu Zakariyya)
A BARCA
Lá vem a barca como um nadador de pernas rígidas, rápida como um falcão que se abate
sobre um peixe-voador.
Parece também uma pupila que contempla o ar, as pálpebras cercadas pelas pestanas dos
remos.
(Abu-L-Hachchach Al-Munsafi)
ROSAS
como se o rio fosse a couraça de um guerreiro rasgada pelas lanças, por onde corresse o
sangue das feridas.
(Ben Al-Zaqqaq)
RIO AZUL
Grandes árvores o cobrem de sombra ao meio-dia, e a flor das águas é cor de ferrugem.
Guerreiro com loriga, envolto em sua túnica de brocado, estendido à sombra da bandeira.
CENA DE AMOR
Enquanto a noite arrastava a cauda negra, dei a beber à minha amada vinho sombrio
como pó de almíscar.
Afastei-a do meu peito, para que não adormecesse sobre uma almofada palpitante.
(Ben Baqi)
A CEGONHA
que desdobra as asas de ébano, e despe o corpo de marfim, e ri claro com bico de
sândalo.
BOLHAS
Troca-me a prata pelo oiro do vinho — digo eu ao copeiro. — Dá-me vinho novo.
Vinho para a minha dor. E logo ao cimo sobrenadam, como espuma, as bolhas:
Vieste um pouco antes de soarem os sinos cristãos, quando o crescente lunar se abria no
céu,
(Ben Hazm)
CANÇÕES DE CAMPONESES DO JAPÃO
ARROZAL DE MADRUGADA
LÍRIO
AS TRÊS CLARIDADES
A Lua a leste,
a oeste as Pléiades,
o meu amado
ao meio.
AMOR MUDO
Ervas do estio:
lugar onde os guerreiros
sonham.
Um cuco
foge ao longe — e ao longe,
uma ilha.
Primeira neve:
bastante para vergar as folhas
dos junquilhos.
(Bashó)
*
Libélula vermelha.
Tira-lhe as asas:
um pimentão.
(Kikaku)
Pimentão vermelho.
Põe-lhe umas asas:
Libélula.
(Correcção de Bashô)
Pirilampos
sobre o espelho da ribeira.
Dupla barragem de luz
*
(Kikaku)
(Kyorai)
Crescente lunar.
O tubarão esconde a cabeça
debaixo das vagas.
(Shikô)
Monte de Higashi.
Como o corpo
sob um lençol.
(Ransetsu)
Caracol,
lento, lento, lento — sobe
o Fuji.
Um cuco
cuja voz se arrasta
sobre as águas.
(Issa)
Ah, o passado.
O tempo onde se acumularam
os dias lentos.
(Busson)
POEMAS INDOCHINESES
CANTOS ALTERNADOS
Uma Rapariga
Um Rapaz
E no coração da dança
todo um sorriso a enflora.
Se é para ti,
sou o ovo de cotovia à beira do caminho.
Se é para outro qualquer,
sou o pequeno pássaro que dorme numa ilha longínqua.
*
I
Levanto-me:
é no meio dos espíritos que eu me levanto.
Os invocadores me protegem,
conduzem-me por entre os espíritos.
II
CANÇÃO DE AMOR
A PUBERDADE
A OBSCURIDADE
Esperamos na obscuridade.
Vinde, vós que escutais, vinde
saudar-nos na viagem nocturna:
nenhum sol agora brilha,
nem luz agora nenhuma estrela.
Vinde, ó vós, mostrar-nos o caminho:
que a noite secreta é inimiga,
a noite que fecha as próprias pálpebras.
E eis como a noite inteiramente nos esqueceu.
E esperamos, esperamos, na obscuridade.
RITUAL DA CHUVA
Entre as andorinhas,
andorinhas azuis
que gritam, que gritam,
vem a chuva,
vem a chuva comigo.
Atravessando o pólen,
o pólen sagrado,
vestida de pólen,
vem a chuva,
vem a chuva comigo.
PINTURA NA AREIA
AS ESTRELAS
CANÇÃO DE AMOR
A IÚCA
DONS DO AMANTE
(1961-66)
COMUNICAÇÃO ACADÉMICA
herberto herder:
em janeiro
1963.
A MÁQUINA LÍRICA
O alfabeto, a lua.
Era novembro.
porta porta.
1963.
A MÁQUINA DE EMARANHAR PAISAGENS
E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, fez-se a manhã,
dia primeiro.
... e fez a separação entre as águas que estavam debaixo do firmamento e as águas
que estavam por cima do firmamento. (Génesis).
... e eis que havia um grande terramoto; e o sol tornou-se negro como um saco de
silício; e a lua tornou-se como sangue.
E as estrelas do céu caíram na terra, como quando a figueira lança os seus figos verdes,
abalada de um grande vento:
E o céu retirou-se como um livro que se enrola: e todos os montes e ilhas se moveram
dos seus lugares.
E vi os mortos, pequenos e grandes,... e foram abertos os livros. (Apocalipse).
Irmãos Humanos que depois de nós vivereis, não nos guardeis ódio em vossos
corações. (François Villon)
Ah, como custa falar desta selvagem floresta tão áspera e inextricável, cuja simples
lembrança basta para despertar o terror.
Denso granizo, águas negras e neves caíam do espaço tenebroso. (Dante)
Maravilha fatal da nossa idade.
Rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, luz terrível que os homens e as mulheres
beijavam cegamente e a que ficavam presos pela boca, arrastados, violentamente brancos
— mortos. E essa colina subia e girava, puxando pelos lábios os seres deslumbrados e
aniquilados. E dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam. Em baixo, vermelhas,
estalavam as cúpulas. (Autor)
E as estrelas do céu caíram na terra, como quando a figueira lança os seus figos verdes,
abalada de um grande vento. E eis que havia um grande terramoto, e o sol tornou-se negro
como um saco de silício e a lua tornou-se como sangue. E fez-se a separação entre as águas
que estavam debaixo do firmamento e as águas que estavam por cima do firmamento. E o
céu retirou-se como um livro que se enrola e todos os montes e ilhas se moveram dos seus
lugares. Denso granizo, águas negras e neves caíam do espaço tenebroso. Rasgou os limbos
a antiga luz das fábulas, luz terrível que os homens e as mulheres beijavam cegamente e a
que ficavam presos pela boca, arrastados, violentamente brancos — mortos. E essa colina
subia e girava, puxando pelos lábios os seres deslumbrados e aniquilados. E dentro desta
luz e desta morte, os sons amadureciam. Em baixo, vermelhas, estalavam as cúpulas. E vi
os mortos, pequenos e grandes, e foram abertos os livros. Ah, como custa falar desta
selvagem floresta tão áspera e inextricável — maravilha fatal da nossa idade —, cuja simples
lembrança basta para despertar o terror. Irmãos Humanos que depois de nós vivereis, não
nos guardeis ódio em vossos corações.
...E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a
manhã, dia primeiro...
Ah, como custa falar desta selvagem floresta tão áspera e inextricável, cuja simples
lembrança basta para despertar o terror.
E vi os mortos, como quando a figueira lança os seus figos verdes, entre as águas que
estavam debaixo do firmamento, águas negras, e a lua como sangue, denso granizo e neves
do espaço tenebroso. E as estrelas do céu e as águas que estavam por cima do firmamento
caíram na terra, e eis que havia um grande terramoto, e rasgou os limbos a antiga luz das
fábulas, e foram abertos os livros. E dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam.
Os homens e as mulheres caíam cegamente pela boca, e o sol tornou-se negro como um
livro que se enrola, e todos os pequenos e grandes montes e ilhas se moveram dos seus
lugares. Abalada de um grande vento, a luz terrível subia e girava, puxando violentamente
os mortos brancos que ficavam presos pelos deslumbrados e arrastados lábios ao céu que
se tornou como um saco de silício. E os seres aniquilados beijavam essa colina, e em baixo
o céu retirou-se, e fez-se a separação, e estalavam as cúpulas vermelhas.
Maravilha fatal da nossa idade.
...E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde,
e fez-se a manhã, dia primeiro...
Irmãos Humanos que depois de nós vivereis, não nos guardeis ódio em vossos
corações.
Na maravilha desta luz inextricável, vi os homens e as mulheres que estalavam como
estrelas, como figos deslumbrados. E o sol negro e a lua de sangue caíram no vento, nas
águas, na terra, caíam da selvagem figueira por cima do firmamento que subia e girava
como um livro terrível, uma colina que se enrola. E eis que se rasgou um grande terramoto
de águas verdes no céu de silício violentamente baixo. E os seres moveram-se dos seus
lugares pelo granizo tenebroso, puxando as cúpulas, os sons, os mortos abertos. E havia
águas negras na luz abalada, na áspera floresta dos limbos, e as ilhas vermelhas e os montes
arrastados amadureciam no terror da nossa idade. No espaço das fábulas os mortos,
cegamente presos, estavam aniquilados pelos lábios e beijavam a grande luz, a grande
morte. E fez-se a separação entre a boca e os livros. E quando as aguas e as neves estavam
dentro do céu, de cuja antiga lembrança custa falar, eu vi os mortos brancos despertar
debaixo do céu fatal, e ficavam pequenos e grandes. E estavam todos mortos. Denso
granizo, águas negras e neves caíam do espaço tenebroso.
...E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a
manhã, dia primeiro...
... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã,
dia primeiro...
1963
HÚMUS
Sob o fluido
eléctrico, todo o ano as árvores se desentranham
em flor. Pegou-lhes sonho também, é um
desbarato, uma
profusão que as devora. A alma
é exterior, envolve
e impregna o corpo. Na pedra recalcada
e concentrada, os grandes fluidos
desgrenhados. Na árvore, a alma da árvore.
Na pedra, a alma da pedra.
Como se as palavras
gesticulassem para dentro, como uma primavera
escorre morte.
Agora meto-me medo.
Dois castiçais de prata foram a minha vida.
As aranhas envelhecem,
as sombras caminham,
dessa pata monstruosa escorre sempre ternura.
1966.
CINCO CANÇÕES LACUNARES
BICICLETA
Então veste-se
um pulôver, anda-se pela cegueira com as mãos
a ferver, diz-se: o vento, o sono e as
violas. Há um crime sagrado onde
o mês aparece com. Digo: clareira.
Velocidade do tempo, oh
inteligência. Aparece com a altura
de uma noite mortal. Quem se alimenta de fruta, quem
se despe entre noites encostadas, pergunto,
quem ama até perder o nome?
1965-68.
OS BRANCOS AROUIPÉLAGOS
*
beleza de manhãs arrefecidas sobre o aniquilamento,
paz vertente
passada por manhãs em sopro
de brancura, sob a pressão esplendente do vazio,
sem uma pausa, continuadas, propensas,
num plano difundido, embriaguez estática, êxtase
horizontal, levitante paragem, quase
apaixonamento, quase desgaste para trás,
quase um pouco de tempo na sumptuária ausência
do espaço dessas manhãs, e como de repente
se perfuram de velocidades internas,
como se apressam de uma miriápode troca
de atenção, escarpas no ar bruto,
centro de buracos deslumbrantes,
a convulsa clareira dessas manhãs que se extenuam dentro,
energia,
relampejante textura, uma espécie
de fruta rachada fria, para uma treva sua se retiram
as manhãs respondidas,
toda a beleza assintáctica, uma cara arrasada
por lunações abruptas,
a madeira fulminada pelo tacto doloroso,
pistas de esporões e tramas vivas,
os jactos do néon filtrado a prumo,
e as manhãs ressuscitam, primitivas, surpreendidas
1970.
ANTROPOFAGIAS
TEXTO 1
1971.
ETC.
e
cumpre também falar do desafio do espectáculo — o teatro
dentro do teatro —
o travesti shakespeareano na dupla zona da forma e da inclinação
para o sentido enigmático —
a rapariga vestida de rapaz interpretando a função oblíqua de rapariga
perante o rapaz vestido de rapariga interpretando
a misteriosa verdade corporal de rapaz —
o que se pede à cena é apenas o delírio de uma coisa exacta
através das armadilhas —
porque a vertigem é um acesso às últimas possibilidades
de equilíbrio
entre a verdade que é outra e a outra verdade que é
uma verdade de uma nova verdade continuamente —
outra regra do espectáculo é inventar
a forma seguinte do enigma de modo a que a frase visível
fique junto ao rapto —
empurrar o rosto para as trevas — ou retirar da dança
os pés e ficar à luz uma espécie de imobilidade —
o brilho do rosto já sem o rosto mas com toda a energia
e todo o impulso de um rosto ser o rosto teatral —
porque também a máscara era a abolição de uma falsa liberdade
do rosto —
e então não era o rosto que estava mas
a eternidade de um teorema —
a abdicação das formas que morrem de si mesmas —
um salto para o centro —
e as presenças muitas brancas enchem a cena
apenas de brancura
central implantada cega na paragem do tempo —
perder o nexo que liga as coisas porque há só uma coisa
dada por indícios —
uma centelha um sopro um vestígio um apelo uma voz —
que a metáfora seja atendida como alusão à metáfora
da metáfora
como cada coisa é a metáfora de cada coisa —
e o sistema dos símbolos se represente como o símbolo
possível de um sistema
de símbolos do símbolo que é o mundo —
o mundo apenas como a nossa paixão posta diante de si —
a paixão da paixão —
nenhuma frase é dona de si mesma —
e então o teatro que apresenta a frase não é dono de nada
mas só do recurso
de ganhar uma regra e recusar a regra ganha —
assim como a voz abdica no silêncio e o silêncio
abdica na voz para dizer apenas que é uma forma de silêncio
um génio animal inexplicável como uma queda no escuro —
enquanto as vozes são cada vez mais astrológicas e loucas —
e desaparecemos no silêncio levando com uma grande
leveza a queimadura inteira na cabeça
1974.
COBRA
Para a Olga.
1975-76.
EXEMPLOS
1.
Eis como uma coisa como que nos interessa: destruir os textos.
Passa-se que:
o caçador vai à procura de cabeças. Que é como quem diz.
Trás cabeças faz um monte.
Um monte de cabeças intempestivas, vociferantes, cabeças rebarbativas.
Arruma tudo, limpa o ar só para elas, um monte grande
luzindo sibilando assim, o vídeo
turbilhona.
Um monte de desenfreadas cabeças cheias de nós de cá para lá
no vídeo
com uma pressa faiscante.
Atulhadas de pequenas ideias assassinas assim: sibilando
a canção estereofónica.
Eis que é como que isso que é como que
é preciso desmanchar: fazer
uma paisagem centrífuga, porque a violência
alimenta-se de música,
música fervente. Electrochoque para os textos apoiados assim
como que em música como que
ali. Isso. Como que: o dínamo nas cabeças lírico-psicóticas:
truculentas — estragando.
Suadas. Soldadas a isto: a ideias frenéticas, como que
soldadas como que
às mãos, aos dedos todos: frenéticos; às garras.
É como que se faz aos textos: toda a destruição.
Pensamos que interessa varrer tudo muito bem:
não é nada com a atmosfera, não é nada que não seja
com destruir por conta
da paisagem escrita que começa sempre à volta de um orifício.
As estações como que trabalham naquilo de
trazer
para muito perto do orifício
a fruta toda os buracos os ovos as víboras os astros as pedras tudo
faiscando.
E o orifício.
E então e o orifício traga tudo. Como as cabeças ficam
faiscando nas mãos.
Queremos dizer que como que abanamos depressa as mãos.
Não se pode acreditar na beleza concentrada
da gramática
como que cheia de como que
força pura,
cintilação,
violência.
Destrói: esta paisagem eternamente em órbita em torno
deste eixo.
Este show treinado como um movimento da terra
com o seu furo incandescente no meio, destrói.
Empurrar as cabeças cheias de relâmpagos para todos os lados
como frases
com fósforo. Cortar aos pedaços.
Quando o vídeo brilha como uma janela como um lirismo
arrebatador. Deitar fora. Ver e marcar onde está o sangue, só.
3.
1977.
O CORPO O LUXO A OBRA
Eram
rápidas,
fortes,
espaçosas
as noites do poder. O alimento vinha
com o apuro do mel. O dom
desenvolvia em mim esses mesmos rostos
abertos a meio, com a lua
e o sol dentro e fora.
Lanho a lanho
cerrara-se a carne em seu tecido
redondo.
As caras irrompem
dos nós de sangue, dos rins, de uma
coluna
enraizada, uma
constelação calcária.
Às vezes
o mármore reflui numa onda muscular,
e sobre a torção
interna
as mãos cruas ardem.
E o golpe que me abre desde a uretra
à garganta
brilha
como o abismo venoso da terra.
A pupila deste animal grande como uma pálpebra
ao espelho, nua, a dormir,
sob as radiações
brancas.
As aberturas
que os braços fazem na água, aquilo
que eu fecho quando
o sono me corrompe ou quando
incito ou afugento as paisagens,
o que alimenta
as musas
abismadas
é tudo quanto me cega.
Alimentava-me
dos rostos minados pela rede dos nervos
negros e das veias
até à raiz cravada
da voz
— o terrífico
aparelho da fome. Toda a obra.
Dói.
A memória maneja a sua luz, os dedos,
a matéria.
É mais forte assim
queimada no écran onde brilha
o buraco da carne,
os espelhos
fechados
de repente vivos como oceanos sob
os antebraços, as mãos.
A noite
é uma árvore crua,
voraz,
entranhada.
Se a estrela transborda da boca,
a água
vivente
torce-se entre os braços ferozes. E das crateras
arranca-se
o rosto com os poros brancos
a toda a volta.
Quando
as veias dos mortos fazem um nó furioso
com as minhas veias,
a voz
costura-se com as linhas de sangue
da sua fala. E os dedos gravitacionais
sobre a queimadura
manobram os pequenos sóis
enxameados e baixos.
Eu movo-me no mundo
como púrpura, a vara
das maçãs fechadas.
E escoa-se em mim o caudal
nuclear dos astros. Remoinhos de mel
obscuro. Os filões do álcool.
Esta golfada de luz pela ferida de um espelho.
É o rosto fendido e a claridade
arrancada
ao interior mais forte
da imagem.
Constelação de sangue,
o halo
de um orifício nocturno.
Vi
dorsos torcerem-se à volta da sua dor.
No meio
o sorvedouro fazia um laço
de carne. Rodava em torno das válvulas negras
a estreia atómica.
A fronte
ao alto da beleza áspera,
labaredas
vazadas de lado a lado do corpo
como uma corola cesariana.
E nessa
carne focal
curva,
o toque de um ferro vivo, um dedo, um osso
fechado,
no centro das aberturas onde a energia
se desencadeia.
E é cruel surpreender
a inocência
frenética, a taciturna doçura
com que devora:
às vezes
a força dos rostos que tem contra Deus.
Assim:
o nervo que entrelaça a carne toda,
de estrela a estreia da obra.
22-23.XI.77.
DE «PHOTOMATON & VOX»
(é uma dedicatória)
— Esta
espécie de crime que é escrever uma frase que seja
uma pessoa magnificada.
Uma frase cosida ao fôlego, ou um relâmpago
estancado
nos espelhos. E às vezes é uma raiz engolfada, e quando toca
a fundura das paisagens, as constelações mudam
no chão. A truculência
que se traça como uma frase na pessoa, uma queimadura
branca. Porque ela mostra as devastações
magnéticas
da matéria. Na frase vejo os fulcros da pessoa.
Por furos acerbos as estações que se escoam e a inquebrantável
paisagem que as persegue por dentro. A frase
que é uma pálpebra
viva
como roupa fechada sobre a radiação das veias.
Que é uma cara, uma cratera.
Ou um hausto animal das unhas à testa
onde
fulguram os cornos em coroa.
E esta massa ofegante é queimada por um
suspiro, um alimento brutal.
O teu rosto cerca-me, a minha
morte cerca o teu rosto como uma clareira
pulsando
na luz cortada. A pessoa
que é uma frase: astro
rude cruamente encordoado entre as omoplatas.
Como se um nervo cosesse todas as partes pungentes e selvagens
da carne. Como
se a tua frase fosse um buraco brilhando até aos pulmões,
com o sangue e a língua
na minha garganta. A beleza que te trabalha
deixa-te
árdua e intacta
no mundo, entre o sangue estrangulado na minha memória.
(a carta da paixão)
1978.
FLASH
Completamente vivo.
Boca.
Brûlure, blessure. Onde
desembocam, como se diz em nome, os canais muitos.
Pura consumpção em voz alta, ou num murmúrio,
entre sangue venoso, ou
traça de lume. Gangrena,
música,
uma bolha.
Arte medonha da paixão.
Um poro monstruoso que respira o mundo.
Nele se coroam
o escuro, o fôlego, o ar ardido.
O ouro, o ouro.
Tubo sonoro por onde se coa o corpo.
Se escoa todo.
Nunca durmo.
Uma ferida.
Queria tocar na cabeça de um leopardo louco, no luxo
mandibular. Sentir os dedos tornarem-se
de granito. Sentir a deslumbrante
ressaca de pêlo
baixo arrebatar-me furiosamente os cinco dedos.
Como cinco balas de granito.
Uma estrela voltaica.
E tragá-la. E de súbito toda aquela púrpura nocturna
entrar por mim dentro, da mão à cara.
Ou uma ferida que me apanhasse de perna a perna.
Entrar em mim
a fábula da demência e da animal
elegância. Sei que o sangue me pontua, e estremeço
de poro em poro
com tanto ouro suado que me envenena.
Abril, 1980.
A CABEÇA ENTRE AS MÃOS
DE ANTEMÃO
O coração em cheio
no corpo, Um sopro
no coração,
E a carne reflui toda.
Uma braçada alta,
Reflui
ao sorvedouro a água áspera,
Árdua meada de sangue
de mão a mão no escuro. Sob
a roupa que a lua
exalta,
Escafandrista
que defendesse o remoinho de ar
nos pulmões
do remoinho do abismo,
Ou defendesse
a insónia da surda invasão do medo,
Abraçado a essa bolha,
Toque
leveza baptismal
centro,
Oh sombria natação com um relâmpago,
Camisa molhada
até às entranhas: secando à lua entre
água e pesadelo,
Visto
essa camisa brilhando sobre
um buraco um
escurecimento,
A transfusão das imagens.
Fendido
ao meio dos olhos, Por onde penetra a agudeza
do mundo:
e me
transforma, Quem
enterra um diamante e não sabe
que o enterra
em si, E fosse: pela costura
elementar: uma pálpebra
por cima de um
aparelho da alucinação um
organismo do sonho,
Alguém que se deitasse
com um grito
dentro: e acordasse com esse grito
pela boca fora,
Que fosse
uma cana encontrada
no vento: quando é de alguém
que o vento se levanta,
E os dedos atassem
e desatassem o som
nos orifícios — música
ferramenta
a paixão,
Que fosse
de fôlego a fôlego, Qualidade
da coisa que se nomeia,
E tudo me abala
— O nome a encher uma pessoa
como a luz enche o vento,
Ou a ferida enche a lembrança,
Mantenho
os objectos
as chamas:
à força
de respiração: de carne amarga,
Pensa-se que a cabeça é toda
brusca:
a beleza rudemente
pela brancura,
Com uma vara de sal
é que tocaram fundo
e me floriram,
E eu estremeço
desse dardo: dessa pancada na cabeça
cheia de sangue e sopro:
e desse
florescimento,
É uma arte em pé ardendo à vista,
Que se infunda na matéria
acerba
o lume. Um ofício:
a sua maravilha:
apavoram-me,
E na madeira
se lavrem a pulso os genitais: os membros:
o umbigo
e a garganta,
Da carnagem das gramáticas
arranco a música
o nome
o número,
Trabalho à raiz do ouro
frio. Tão agudo tão agudo.,
Se toda a peça de carne é varada
por uma veia inocente:
vara-me
a iluminação vocabular
da memória.
Mexida por lunações como na fêmea
a massa lêveda.
Ou no poema
a parte fêmea instrumentada pela
magnificência,
O que nele se talha
em som escrito: órgão.
Mão que revolves a substância primordial,
Barro
Fundamento, Que o hausto atenda à força
respirada
pela carne em poder,
O nó
coronário de uma estrela,
Peso e melancolia
da riqueza
e do medo, E que me assome Deus às partes
graves: com sua luva súbita
no abismo,
É ao meu nome que regresso: à ameaça,
A limpidez
atravessa-me pelos furos naturais
ardidos.
Entra um astro
por mim dentro:
faz-me potência e dança,
Que toda a noite do mundo te torne humana:
obra
TODOS OS DEDOS DA MÃO
Retorna à escuridão
o rosto: entre centelhas, Ficasse tão maduro quando
de te tragar
estremecesses, Que o animassem
os elementos: um interior: um limite do mundo,
E se afinasse como
um galho de marfim
cheio de lume, Que fosse um instrumento
de crescer na terra: um golpe
nela, A braço,
Com a mão coroada,
Até à bolsa com a lua dentro,
No ovo está o astro, Se pelos dedos
nesse rosto
te plantasses todo na riqueza do sono,
Soldado a nervos: osso:
feixes de fibras:
tímpanos, E as faíscas saltando pelas unhas
as deixassem ígneas,
E uma veia arpoasse igneamente a massa
muscular, Ou
a aorta sorvesse a matéria
tremenda
ao seu abismo, E te encharcasse até ás pálpebras,
Essa púrpura por válvulas
contra os dentes, Nos fundamentos há
vezes
em que és ligeiro ao movimento da água,
Ou nas paredes onde os canos se cruzam
como um corpo onde se cruzam
órgãos
tubos, Um alento das coisas: dos tecidos
do mundo, E por exemplo se a louça e o inox
brilhados de dentro: à mesa,
E a madeira respira mais rápida,
E uma grande massa orgânica magnífica
cercada de membros
como um homem,
Essas pinças na cabeça entre as meninges
extraindo
uma estrela, Os canais luminosos da cabeça
iluminam-te todo, Iluminas-te
quando se arranca a língua e há um soluço da fala,
Levantas-te soberbamente
ao rosto, Como a vara
do vedor fica acesa
pelas ramas de água, Como que salga
o aparelho
do corpo: e o torna substância
alta: giratória, Ou se fulgura a trama
cristalográfica
terrífica da música, Se levanta
entre dedos e cordas
fundidos, De sangue e ar no escuro:
música,
O medo do poder: esta ferida
tão de um nó de músculos estrangulando
uma leveza,
O barro violento, A manobra
das vozes, Fechas os olhos: e as
coisas não te vêem,
As mãos brilham-te abertas,
A morte aumenta a cara
1981.
AS MAGIAS
— Magia —
E quem dirá
— seja qual for o desencanto futuro —
que esquecemos a magia,
ou que pudemos atraiçoar
na terra amarga
a macieira, a canção
e o ouro?
Thomas Wolfe
e da sua chama
e das margens da página todos se incendeiam.
Só existe a página única.
o resto fica
em cinzas. Só existem
o continente único, o mar único —
Robert Duncan
— Um poema (Iniji) que não é como os outros —
(J.M.G. Le Clézio)
Interrogamo-nos acerca da poesia? Desejaríamos saber o que pretende ela aquilo que
pretende de nós. É que muitas vezes não nos diz nada. Palavras, fragmentos de frases,
balanceadas, hesitantes, versáteis, palavras que não conseguimos reter.
Refrões de cançonetas, talvez? Mas então onde está a música? Talvez músicas silenciosas,
tocadas no fundo da água, a cem braças de profundidade.
Os outros poemas, todos os poemas célebres, organizados, compostos, exércitos em
armas que marcham a passo certo. Não estamos lá quando passam. Viramos a cara,
vamos procurar noutro lado. Em geral, quando passavam, esses grandes poemas, havia
um extremo vazio, um imenso vazio (o medo, o cansaço), e era a ele que preferíamos.
Ou ainda outros poemas, que falavam de coisas graves, insultavam, blasfemavam. Faziam
um grande barulho de trovão, e nós, pequenos homens fracos que não gostávamos de
tempestades, metíamos a cabeça entre os ombros, à espera de que aquilo passasse. Os
gritos e os insultos, não, isso não era para nós.
Cada vez mais poemas, sempre, nos livros. Fileiras de linhas, frases cortadas, em
suspenso, nas páginas brancas... Mas olhávamos esse branco das páginas e, de longe, as
cristas dos maciços verticais; árduas colinas de que não queríamos aproximar-nos,
estavam bem onde estavam, de longe, ao longe.
Diziam coisas, esses poemas, e ao mesmo tempo não diziam nada. Palavras voltejantes,
não iam a parte nenhuma, sem força, sem duração, sem memória, lidas vagamente,
abandonadas depois. Criavam o seu próprio rumor, dispensando ouvidos, zumbir de
abelhas invisíveis. Líamos aqui uma palavra, ali outra, e tínhamos dificuldade em ligá-las,
pois eram palavras sem raízes, não viviam, pareciam conchas vazias; podia fazer-se com
elas um colar.
Agora, depois de Iniji, já nos não interrogamos. Há uma certeza. Viu-se qualquer coisa,
seguiu-se essa coisa, como se a gente estivesse a fazê-la, como se tivesse encontrado
ouvidos para escutar a música do fundo da água.
Não é como os outros, este poema, não distrai, não se esquiva. Na verdade não está
escrito, encontra-se ali na página por acidente, e deve estar também algures, gravado
numa árvore, por exemplo, ou inscrito na terra seca, ou tatuado então na pele humana.
Claro que não está que apenas escrito. Passou pelo tremor da escrita, foi assim que
apareceu primeiro. Mas não existe somente nesse tremor, não existe somente para os
olhos. Existe algures, em volta, no ar, nas nuvens, na folhagem das árvores vistas à
distância, no mar, na erva calcada de uma pista. E nas ruas de uma grande cidade, entre as
paredes dos prédios, acompanhando o movimento dos automóveis, os cláxons, as luzes, a
multidão.
Deve lá estar há muito tempo pois, quando o lemos, reconhecemo-lo imediatamente. Não
o procurávamos, nem procurávamos sequer o nome de um autor. Íamos ao seu encontro
sem saber, e ele vinha ao nosso encontro seguindo o seu curso de cometa que se
aproxima, roça e desaparece.
Há tanto malfadado saber que turba, perturba. Estas palavras, todas as palavras
inquinadas e falsas, inflamando, obstruindo as mucosas, impedem que o ar chegue até
nós. Tantas palavras: tantas paredes.
Mas existem outras palavras libertadoras, e não entendemos porquê. Não são as
mesmas? Não são, elas também, linguagem dos homens? Chegam facilmente, sem as
procurarmos, são leves, não pedem nada, não oprimem. Palavras aéreas, suspensas no
céu branco em esquadrilhas imóveis. São elas que vemos, agora, só elas. Como se pôde
inventar uma linguagem assim? Gostaríamos de acreditar que se trata de miragem, de
acaso, e sabemos contudo (precisamente por causa das palavras da linguagem pesada)
que não é simples coincidência. A música fere a música, e as palavras de Iniji reencontram
no fundo de nós a sua própria imagem, como sobrevoando um grande lago quieto.
O poema veio de longe, assim, tranquilo, com os seus gestos, a sua vida, para nos
reencontrar.
Insensato, móvel, penetra em nós e escruta-nos. Ou éramos nós que não tínhamos corpo,
e temos agora o corpo de Iniji. Não sabíamos falar. Não possuíamos ideias, nem imagens,
perdêramos o norte. Longe deste poema, a vida era surda, sussurrada, pois todas as
palavras da linguagem normativa (a linguagem das teses e antíteses, a linguagem das
análises, dos juízos e proclamações solenes) eram unicamente um lento nevoeiro roçando
a face da matéria. Era possível que nos confundissem com os torrões e calhaus. Não havia
nenhuma ciência, nenhuma lembrança.
Como é possível? Onde nos encontrávamos então, antes, antes de Iniji?
Claro, considerávamos importantes essas palavras da linguagem, essas palavras comuns.
Excitadas como matilhas, boas para caçar, farejar, ladrar, matar. Mas há outra língua, que
falávamos antes de nascer. Uma língua muito antiga, não servia para nada, não era a
língua do comércio com os homens. Não era decerto uma língua de sedução, para
subornar, ou para dominar. Dela provinham as palavras, estas palavras: fluidos. vento,
bilha, órfã, carris, dormir, coração, constelada, cisne, lasciate, vapor, contorno, opala,
vem... Existiam ao mesmo tempo que a vida, não desligadas dela. Eram uma dança, uma
natação, um voo, eram movimento.
Tínhamo-las perdido de vista.
Depois, hoje, reencontradas, são elas que me reencontraram, e me obrigam a lembrar.
Língua insensata que avança, magnificamente autónoma como um corpo de delfim, a
correr sem esforço ao lado do meu corpo, ultrapassando-o, iludindo-o, rápido através da
massa de água que não consegue sustê-lo.
Nada dizer, nada mais dizer depois de Iniji. Mas não é isso que pretende esta língua.
Porque nos tornaria mudos? A música entra pelos ouvidos e deve sair pela boca, ou então
pelas ancas.
Iniji não existe. Cada vez que dela nos apercebemos, a língua estala e a palavra morre.
Interrompida antes de entrar no mundo. Reflexos, talvez, porquanto as suas palavras não
são palavras. Se retemos um nome, felizes por saber aquilo que surgirá, ele rebenta. Não
há nomes, só bolhas. Balbuceios de bebé, Iniji, Ananiá Iniji, Djã dã dã, Irritilili.
A língua que me não quer falar enlouquece, faz turbilhonar a agulha, acelera, liberta os
seus enxames de faíscas. A fascinação hipnótica agarra-nos por dentro do corpo, bem
gostaríamos de afastar os olhos e regressar às vozes que falam, em baixo, que nos
chamam. Mas o medo de perder uma única destas palavras voadoras, de perder a dança,
a natação, a vida! Porventura pela primeira vez fixamo-nos a alguma coisa.
A língua de Iniji não é um logro. As linguagens pesadas tropeçam nas suas consoantes, nas
sílabas, como um cego tropeça nos móveis de um quarto desconhecido. Já não
pretendemos falar todas as línguas. As palavras encontram-se além, sempre além, e é
preciso apanhá-las depressa. As vogais que soam, ressoam.
Talvez seja necessário abandonar tudo. Abandonar tudo isso, os adornos medíocres, as
máscaras, os anéis, os cintos coleccionados, tudo isso com que nos ataviaram.
Desejaríamos acreditar que eram só palavras, as mais inconsistentes. Se quiséssemos,
apagar-se-iam, as palavras que diziam que, que acreditavam que... Se julgavam, elas, não
as julgaríamos nós, um dia? Mas as palavras não são apenas palavras. Têm longas raízes
tenazes mergulhadas na carne, mergulhadas no sangue, e é doloroso arrancá-las. Palavras
aprendidas, reconhecidas, hábitos, parasitas, eram elas que destilavam veneno.
Mas Iniji não pede que se escolha. Não se trata de mudar de vida, mudar de rosto ou
nome. Iniji só deseja que nos lembremos. A língua fora do tempo, fora do espaço, a língua
que se fala eternamente e sabe esperar por nós: aparece quando já se não esperava, no
céu branco, traça as suas pequenas vias negras que não conduzem a sítio nenhum. Não
haverá partida. Durante um instante, fala-nos com a sua vida, e falamos-lhe com os
nossos olhos. Quando deixa de lá estar, já não está, é como se nada houvesse acontecido.
Será forçoso então viver sem Iniji? Voltar a elas, lá em baixo, às palavras que surdamente
resmoneiam, rosnam? Não se pode saber: estamos cercados pelo vento.
— Iniji —
(Henri Michaux)
Movem-se margens
Fundações afundam-se
Menina
pá pequena
Iniji não pode fazer força
Fluidos, fluidos
tudo o que passa
passa sem parar
passa
Vento
sopra vento em Arraô
vento
Ananiá Iniji
Anâã Animá Iniji
Orrenaniâã Iniji
e Iniji inanimada
Ananejá Iniji
Anajetá Iniji
Anamajetá Iniji
A chave,
onde está a chave?
Os insectos passam-na uns aos outros
As vassouras varrem-na
Djã
Djã Djã
Djã dã dã
que tornam Iniji inânime
Se tu vais Njeu
Njã vá dá
Se tu não njá
njarrá rá vais
Reboques
que a rebocam
que ela reboca
Aonde regressar?
Foi-se o coração do quarto
E sempre
o corpo sem vida como a rotação da mó
Tão pesados
tão pesados
tão taciturnos seus monumentos
tão impérios, tão quadriláteros
tão esmagadores bárbaros, tão vociferantes,
e nós tão nenúfar
tão espiga ao vento
tão longe do cortejo
tão mal na cerimónia
tão pouco da nossa idade e tanto a passear
tão farinha
tão peneirada
e sempre na peneira
asas de morcego
batendo sempre contra a cara
Bifurcações
e desuniu-se o uno
Porque os gelos
porque a fuga dos espíritos
aconteceu
Silêncio
silêncio
Deixai-me nadar pelas paredes fora
Espelhos recolhem-nos
Espelhos trocam-nos
a perdida deste mundo, a morte do outro mundo
Deixai-nos
Outrora,
outrora
o rio de júbilo não tinha o leito ressequido
Vapor
apenas vapor
pode acaso o vapor voltar a ser migração?
o fio passa
repassa
Ah! O Juízo
sofrida sentença semelhante à síncope
vagas fustigantes
dedos aduncos
tudo são tormentos para a órfã
II
(Gabão)
Solo:
Peias cinzas da vítima votiva,
oferecida,
errantes espíritos da noite
que percorrem a floresta sombria
sem descanso...
Nunca mais!
Coro:
i-ô, i-ô, nunca mais.
Solo:
Espíritos dos mortos que não viram os sacrifícios funerários.
Coro:
i-ô, i-ô, nunca mais.
Solo:
Mortos que ainda não passaram
passaram o rio das lágrimas.
Coro:
I-ô, i-ô, nunca mais.
Solo:
O rio dos suspiros e das lágrimas.
Coro:
O rio dos suspiros e das lágrimas.
Solo:
O rio do repouso grande.
Coro:
O rio do repouso grande.
Solo:
Espíritos da noite, sombrios
espíritos guardadores.
Coro:
Guardadores.
Solo:
Filho meu, guardado sejas,
guardado,
sempre, para sempre sejas guardado.
Coro:
lô-iô, para sempre sejas guardado.
— Noutra margem do inferno —
(Robert Duncan)
(Stephen Crane)
No deserto,
vi uma criatura nua, brutal,
que de cócoras na terra
tinha o seu próprio coração
nas mãos, e comia...
Disse-lhe: «É bom, amigo?»
«É amargo — respondeu —,
amargo, mas gosto
porque é amargo
e porque é o meu coração.»
— À Serpente Celeste, contra as mordeduras —
A serpente
pegou num lenço
e assentou um quadrado
tenso como os seus anéis de serpente.
Os anéis distendiam-se como o metal
e o lenço cobria a mesa de cabeceira.
Era uma serpente ou um jorro de luz?
Era um lenço ou uma superfície
simplesmente lisa,
pintada de branco?
Pus-me a golpear o lenço
com a serpente.
E saltavam olhos,
escamas, anéis que tremiam
como carne de tartaruga.
Comecei a compreender
o parentesco entre a serpente
e o lenço com as pontas dobradas.
Escondia um segredo,
e contra ele a serpente silvava e mordia.
A serpente adormeceu no lenço.
O lenço ocultava a serpente,
mas tudo respirava
debaixo da terra.
Era agora o limite que não ondula,
e o lenço e a serpente
escoavam-se.
(índios Comanches, EUA)
(Biaise Cendrars)
II
Quem ameaças
Tu que andas
Punhos fechados nas ancas
Vacilante
Mal liberta da prenhez?
III
Nó de madeira
Cabeça em forma de bolota
Duro e refractário
Rosto glabro
Jovem deus assexuado e cinicamente hílare
IV
VI
O pão do sexo que ela coze três vezes ao dia
E o odre cheio do ventre
Vergam-lhe
O pescoço e as espáduas
VII
Sou feio!
Na solidão à força de aspirar o odor das raparigas
Incha-me a cabeça e há-de cair-me o nariz
VIII
IX
Ele
Calvo
Nada mais que uma boca
Um pénis longo até aos joelhos
Os pés cortados
(D.H. Lawrence)
_____________
* Requeijão.
— A Príapo —
(Tivoli, Roma)
(D.H. Lawrence)
Às vezes
A vida que olha através dos meus olhos
E freme em palavras através da minha boca,
E me impele como ao resto dos homens,
Esquiva-se, e fico atónito.
E então
Meu peito insondável começa
A despertar, e ao longo de ténues
Ondas sob a carne, desencadeia-se
Um ritmo brusco, e o mudo ventre sonolento
Acorda de súbito.
(Colômbia)
(Robert Duncan)
Eis a Dama,
suas voluptuosas chicotadas, seus grandes
olhos fixos brilhando nos jogos da noite.
Confundem-se num só
o urso que sangra e a matilha.
Os caçadores nas armaduras cavalgam até à morte.
Foi-se o amor.
Os amantes tremem.
Resta a Verdade, a eterna
fria luz que sobre o mundo se expande.
— Encantação —
(México)
(Mongólia)
(Marie L de Weich)
(D.H. Lawrence)
(Edouard Roditi)
1986-87.
ÚLTIMA CIÊNCIA
Não sendo citações necessariamente fiéis extraídas de quadras populares, nelas contudo se inspiram, ou as
tomam como seus modelos directos ou indirectos, as seguintes expressões utilizadas neste poema: «Abaixa-
te, vara alta, (...) põe-te os dedos, deita um braço de fora, serve de estrela», «onde a laranja recebe
soberania», «o canteiro (pedreiro) cheira à pedra», «a lua vira o peixe no frio», «o nome escrito na lenha, o
tronco reverdeceu.» O verso «os trabalhos e os dias submarinos» contém um título de Hesíodo: «Os Trabalhos
e os Dias».
1
Engoli
água. Profundamente: — a água estancada no ar.
Uma estrela materna.
E estou aqui devorado pelo meu soluço,
leve da minha cara.
O copo feito de estrela. A água com tanta força
no copo. Tenho as unhas negras.
Agarro nesse copo, bebo por essa estrela.
Sou inocente, vago, fremente, potente,
tumefacto.
A iluminação que a água parada faz em mim
das mãos à boca.
Entro nos sítios amplos.
— O poder de reluzir em mim um alimento
ignoto; a cara
se a roça a mão sombria, acima
da camisa inchada pelo sangue,
abaixo do cabelo enxuto à lua. Engoli
água. A mãe e a criança demoníaca
estavam sentadas na pedra vermelha.
Engoli
água profunda.
*
Laranjas instantâneas, defronte — e as íris ficam amarelas.
A visão da terra é uma obra cega. Mas as laranjas
atrás das costas, as mais
pesadas, as mais
lentamente maduras, as laranjas que mais tempo demoram
a unir o dia à noite, que têm uma força maior em cima
das mesas, essas.
Operatórias. São laranjas ininterruptas trabalhando em imagens
as regiões ofuscantes da cabeça.
Enriquecem o ofício sentado com um incêndio
quarto a quarto da alma. Enriquecem, devastam.
— Constelação ao vento avassalando a casa.
*
Dias esquecidos um a um, inventa-os a memória.
Profundamente se levanta uma bilha vazia.
Nem o peso nem a leveza nos embriaga.
O perfume a vinho, sim, uma
concavidade do sono. Os dias maciços que se
modelaram. Ou as luzes à volta do barro
onde ficam os ciclos curvamente
ligeiros.
As bilhas ao alto, entre os ombros, contra
a cara amarga, estremecendo com o sangue dos braços
e da cara. Plenas como dias enormes,
acabados. Que são agora imagens fabulosas, mútuas
translações — o escuro em torno dos espelhos vazando de uns
para os outros a sua vida
clara.
*
Quem bebe água exposta à lua sazona depressa:
olha as coisas completas.
O barro enlaça a água que suspira lunarmente,
que impregna o barro com a sua palpitação
aluada.
São uma coisa única
e plena: uma bilha. Quem bebe e olha
fica
misterioso, maduro.
Tudo se ilumina da altura de uma pessoa imóvel.
Quem se dessedenta delira,
vê a obra:
O que se bebe das bilhas que a lua
enaltece — água e nome
na boca.
*
O dia ordena os cântaros um a um em filas vivas.
A noite cerra-lhes os corações que sorviam
o caos
pelas aortas
de argila. Flancos contra flancos.
O tempo só existe por estes corpos selados.
E o azeite repousa. O vinho ensombra-se.
O mel amadurece com a voltagem de uma jóia
onde mergulha a lua.
Se alguém se fecha com a noite por cima.
Estou cheio desta noite, deste sono, desta riqueza
côncava,
arrefecida.
Ordena a luz o que o escuro tranca, o sonho
atado ao sono numa imagem concêntrica
radiando
dentro. A imagem diurna ordena
em filas que respiram as palavras
profundas, as crateras,
os cântaros
— profundamente.
As palavras encostadas ao papel. E o barro
suspira. O peso dessa
vida insondável: vinho,
azeite, mel — o caos que se transforma em número.
A imagem multiplica a consciência.
A jóia sazonada contra a morte.
Uma a uma, as coisas do mundo, as noites desarrumadas,
as mãos que as arrumam
entre chama e sono, as bilhas uma a uma do tesouro,
uma a uma
as palavras contra o papel profundo que suspira
— bilhas profundas na casa mais profunda
ainda.
Gárgula.
Por dentro a chuva que a incha, por fora a pedra misteriosa
que a mantém suspensa.
E a boca demoníaca do prodígio despeja-se
no caos.
Esse animal erguido ao trono de uma estrela,
que se debruça para onde
escureço. Pelos flancos construo
a criatura. Onde corre o arrepio, das espáduas
para o fundo, com força atenta. Construo
aquela massa de tetas
e unhas, pela espinha, rosas abertas das guelras,
umbigo,
mandíbulas. Até ao centro da sua
árdua talha de estrela.
Seu buraco de água na minha boca.
E construindo falo.
Sou lírico, medonho.
Consagro-a no banho baptismal de um poema.
Inauguro.
Fora e dentro inauguro o nome de que morro.
1989.