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UM PASSEIO PELOS JARDINS DO DIREITO –

HIPERTEXTOS, TRANSCIÊNCIA E TRANSJURIDICIDADE

MARCÍLIO TOSCANO FRANCA FILHO

ALESSANDRA MACEDO FRANCA

Escrevemos O Anti-Édipo a dois.


Como cada um de nós era vários, já era muita gente.
Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o mais
distante.
(Gilles Deleuze e Félix Guattari)

1 Introdução: de árvores a enciclopédias


Mapas, dicionários, enciclopédias, jardins e labirintos são temas recorrentes no
pluriverso literário de Jorge Luís Borges. A partir deste referencial metafórico-lite­
rário, procura-se elaborar neste ensaio uma cartografia preliminar dos caminhos da
complexidade jurídica, percorrendo os ambívios da juridicidade.
Segundo Umberto Eco, ele também um grande leitor de Borges, há dois modelos
paradigmáticos para traduzir concepções de mundo e representações do saber. Os
arquétipos dos modos de saber/compreender/entender, presentes na semiótica, na
linguística, na filosofia da linguagem, nas ciências cognitivas e até na ciência da
computação, podem ser traduzidos sob a forma de duas imagens metafóricas distintas e
antagônicas: um padrão concebido à maneira de um dicionário e outro padrão concebido
à maneira de uma enciclopédia.1
Nos dicionários, um termo, um conceito ou uma definição contém apenas o que
lhe é mais próprio, individual e singular – exatamente aquilo que é capaz de apartar certo

1
ECO, Umberto. Da árvore ao labirinto: estudos históricos sobre o signo e a interpretação. Rio de Janeiro: Record,
2013. p. 13.
ANA CLÁUDIA NASCIMENTO GOMES, BRUNO ALBERGARIA, MARIANA RODRIGUES CANOTILHO (COORD.)
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objeto do conhecimento de todo o resto, diferenciando-o de tudo o mais. Contemplam


os dicionários, portanto, tão somente aquelas características mais essenciais de certo
ente, ou seja, aquilo que Kant chamaria de “propriedades analíticas”.2 Um dicionário,
enfim, diz o que a coisa é – a sua substância essencial. Nas entrelinhas do arquétipo
dicionarizado de perceber, conceber e explicar a realidade está, na verdade, numa
estrutura de pensamento em forma de uma árvore rústica, cujas raízes teóricas remontam
aos gregos Aristóteles (Categorias) e Porfírio (Isagoge).3
Árvores, pelas suas expressivas qualidades de organização, ilustração e raciona­
lização, estão entre as mais antigas e utilizadas formas de representação de sistemas
de pensamento da humanidade. Há milhares de anos, em muitas teologias, em várias
áreas científicas e em diversos campos do saber filosófico, gráficos em forma de árvore
e ramos são vistos como recursos metódico-epistemológicos para esquematizar e
classificar conteúdos hierarquizados.4 No direito, não é diferente. De sumérios, acádios,
babi­lônios, assírios e egípcios até as grandes religiões monoteístas (cristãos, judeus e
muçul­manos), todos se valeram da metáfora das árvores (a “árvore da vida”, a “árvore
do conhe­cimento”, a “árvore de consanguinidade”, a “árvore das virtudes”, a “árvore
dos vícios” etc.) para explicar conceitos e traduzir suas teogonias, mitologias, folclores
e textos fun­damentais.5 Em resumo, “o uno que se devém dois”.6

Em um dicionário qualquer de língua portuguesa, por exemplo, uma simples


mesa pode ser definida como um móvel composto de um tampo horizontal, de formatos
diversos, repousando sobre um ou mais pés, e que geralmente se destina a fins utilitários.
Tais predicados, embora breves, são suficientes para distinguir uma mesa das cadeiras
(que não têm tampo), das colheres (que não têm pés) ou das esculturas (que não são
utilitárias) etc. Para fins meramente didáticos, uma árvore conceitual dessas poderia, a
grosso modo, ser assim concebida:

2
ECO, Umberto. Da árvore ao labirinto: estudos históricos sobre o signo e a interpretação. Rio de Janeiro: Record,
2013. p. 13.
3
ECO, Umberto. Da árvore ao labirinto: estudos históricos sobre o signo e a interpretação. Rio de Janeiro: Record,
2013. p. 15-16; LIMA, Manuel. Visual complexity: mapping patterns of information. New York: Princeton
Architectural Press, 2011. p. 27; LIMA, Manuel. The book of trees: visualizing branches of knowledge. New York:
Princeton Architectural Press, 2014. p. 27.
4
LIMA, Manuel. Visual complexity: mapping patterns of information. New York: Princeton Architectural Press,
2011. p. 21-22.
5
LIMA, Manuel. The book of trees: visualizing branches of knowledge. New York: Princeton Architectural Press,
2014. p. 16.
6
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. São Paulo: Editora 34, 2011. v. 1.p. 19.
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Há de se reconhecer nessa heterodoxa taxonomia, obviamente, a arbitrariedade


dessas e de tantas outras classificações. Esse aspecto constitui, com efeito, um dos
muitos problemas dos modelos dicionarizados de saber. No conto El idioma analítico
de John Wilkins, de 1952, incluído no livro Otras inquisiciones, Jorge Luís Borges chama
atenção para o fato de que “notoriamente no hay clasificación del universo que no sea
arbitraria y conjetural”.7 E o argentino aponta o exemplo de certa enciclopédia chinesa
intitulada Emporio celestial de conocimientos benévolos, em que os animais são divididos
em 14 categorias:

(a) pertenecientes al Emperador, (b) embalsamados, (e) amaestrados, (d) lechones,


(e) sirenas, (f) fabulosos, (g) perros sueltos, (h) incluidos en esta clasificación, (i) que
se agitan como locos, (j) innumerables, (k) dibujados con un pincel finísimo de pelo de
camello, (l) etcétera, (m) que acaban de romper el jarrón, (n) que de lejos parecen moscas.8

Numa curiosa e profunda conferência sobre Coleções de obras raras de direito,


pronunciada na Faculdade de Direito do Recife, em 3.3.2017, Michael Widener,
bibliotecário-chefe de obras raras da biblioteca jurídica da Faculdade de Direito de Yale,
Estados Unidos, registrou que uma das imagens mais comuns e mais antigas encontradas
em livros jurídicos, desde o começo da Idade Média, era justamente o desenho de
diagramas em forma de árvore. Esses modelos arboriformes de organização do saber
jurídico teriam fins didáticos e pedagógicos, pois serviam “para auxiliar tanto o ensino
como a memória”.9 Apesar de um tanto vetustos, ainda se recorre com certa frequência a
tais modelos nos cursos jurídicos atuais, em que o sistema jurídico costuma ser repartido
em “ramos” e sub-ramos como o direito público, privado, administrativo, civil, penal,
comercial, constitucional, empresarial etc. Com a expansão do direito, as imagens das
árvores, como poderosas ferramentas de cognição, também se foram complexificando ao
longo da história, com crescentes graus de ramificações, entrelaçamentos e hibridismos.

7
BORGES, Jorge Luis. El idioma analítico de John Wilkins. In: BORGES, Jorge Luis. Otras inquisiciones. Buenos
Aires: Emece, 1952. p. 84.
8
BORGES, Jorge Luis. El idioma analítico de John Wilkins. In: BORGES, Jorge Luis. Otras inquisiciones. Buenos
Aires: Emece, 1952. p. 84.
9
O próprio Michael Widener reuniu várias imagens desses diagramas jurídicos em forma de árvore nesse link:
https://goo.gl/iFk9SV. No mesmo sentido: LIMA, Manuel. The book of trees: visualizing branches of knowledge.
New York: Princeton Architectural Press, 2014. p. 32.
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Em face das limitações do modelo arboriforme de saber dicionarizado, compar­


timentado e especializado, Umberto Eco propõe, como referido acima, o padrão concebido
à maneira enredada das enciclopédias, um termo cuja etimologia incorpora o desejo grego
de uma enkyklios paideia, ou uma “educação completa”, a suma de todo o conhecimento
humano, tão antigo quanto o próprio desejo de sistematizá-lo.10 Ao compilar de maneira
global e orgânica saberes precedentes, a enciclopédia – ao contrário do dicionário ou de
uma mera miscelânea – não busca aquilo que é mais próprio, individual e singular de
certo objeto, mas, justamente, atribuir-lhe todas as informações conhecidas possíveis,
de maneira que aquele termo que é definido na enciclopédia aproxime-se de outros
termos, conceitos e objetos a partir do estabelecimento de conexões, pontes, ramificações
e contatos.
Retomando o exemplo acima referido, enquanto que o dicionário nos apresenta
aquilo que só uma mesa pode conter, a enciclopédia procura avançar, evidenciando
tudo aquilo que se conhece sobre mesas – história, funções, materiais, construtores, usos
e, indo mais além, procura explorar as possíveis conexões com as cadeiras e os estilos
decorativos e arquitetônicos etc., estabelecendo assim hiperlinks entre a noção de “mesa”
e as noções de “cultura”, “madeira”, “casa”, “arte”, “design”, “madeira”, “parafuso”,
“Ikea” etc. Quanto mais completa ou complexa é a enciclopédia, mais ligações ela
elabora, de modo que os modelos de singulares árvores delgadas acima mencionadas
são substituídos por modelos de ramificações mais densas de conteúdos interligados,
relacionados, associados. Ei-los:

10
ECO, Umberto. Da árvore ao labirinto: estudos históricos sobre o signo e a interpretação. Rio de Janeiro:
Record, 2013. p. 31; LIMA, Manuel. Visual complexity: mapping patterns of information. New York: Princeton
Architectural Press, 2011. p. 33.
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Não demora para que essas árvores de ramos emaranhados toquem outras árvores
conceituais, dando origem assim a densas florestas ou, quando pela intervenção humana,
a verdadeiros jardins labirínticos, como metáforas de complexidade sempre crescente.
Entre os séculos XIII e XIV, o filósofo catalão e frade franciscano Ramon Llull –
um dos personagens mais interessantes da Europa medieval – concebeu representações
gráficas precursoras desses complexos diagramas arboriformes, desenhando várias
árvores cujos galhos representavam conceitos que se entrelaçam, como a arbor scientiae,
a arbor moralis, a arbor philosophica etc.11 Interessante é perceber que, a partir do século
XV, com o aprimoramento da topiária, a arte de podar plantas em formas geométrico-
ornamentais,12 a imagem de jardins labirínticos deixou de ser apenas conceitual ou
metafórica para virar, de fato, algo concreto. E os labirintos-jardins, com árvores, arbustos
e canteiros geométricos, tornaram-se cada vez mais comuns e valorizados por toda a
Europa. Paolo Santarcangeli chega mesmo a falar em uma “explosão” dessa arte da
jardinagem, a partir de finais do século XVI.13
Esse caminho de complexidade crescente – desde árvores isoladas, passando
por árvores justapostas até chegar aos ajardinados labirintos em que as árvores são
interdependentes e interconectadas em ecossistemas – segue o percurso prenunciado
pelo matemático americano Warren Weaver em um texto clássico. Nele, Weaver afirma
que, nos últimos 500 anos, o pensamento científico enfrentou problemas que variaram
da mera simplicidade (a interação de uma variável sobre as outras), passando pela
complexidade desorganizada (em que as variáveis não pareciam manter qualquer
relação entre si), até chegar aos atuais problemas de complexidade organizada (em que
múltiplas variáveis estão interdependentes e interconectadas).14
Caminho semelhante tem trilhado o direito, em que os ramos se bifurcaram
e repartem, do público ao administrativo, ao constitucional, tributário, financeiro,
econômico, do comercial ao empresarial, trabalhista, consumerista; novos ramos nascem,
alguns na base de tudo, como os direitos humanos, o ambiental, o sanitário. Eles surgem
a princípio sem relação uns com os outros numa complexidade desorganizada, mas
logo se interconectam através de veias mais largas como o direito constitucional, que
constitui um carrefour de onde partem diversos caminhos, ou na interseção entre dois
ramos mais estritos, como no caso do econômico e do ambiental que caminham juntos
a partir do paradigma do desenvolvimento sustentável.

11
STOLLEIS, Michael. O olho da lei – História de uma metáfora. Belo Horizonte: Doyen, 2014. p. 38-39. ECO,
Umberto. Da árvore ao labirinto: estudos históricos sobre o signo e a interpretação. Rio de Janeiro: Record, 2013.
p. 42; LIMA, Manuel. The book of trees: visualizing branches of knowledge. New York: Princeton Architectural
Press, 2014. p. 36. Uma daquelas complexas árvores de Llull, nos primórdios do que depois viria a ser a
infografia ou a data visualisation, pode ser vista em https://goo.gl/fhyM3H.
12
HARRISON, Lorraine. Cómo leer jardines – Una guía para aprender a disfrutarlos. Madrid: H. Blume, 2012.
p. 134.
13
SANTARCANGELI, Paolo. Il libro dei labirinti. Milano: Frassinelli 1984. p. 199.
14
WEAVER, Warren. Science and complexity. American Scientist, n. 36, p. 536-544, 1948.
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2 Dos jardins-labirintos aos labirintos em rede


Um jardim é, em primeiro lugar, o resultado de um prazer pessoal.15 Ao contrário
de uma horta, de um pomar ou de um herbário, cujas finalidades são pragmáticas, óbvias
e concretas – alimentar o corpo! –, o principal moto de um jardim é o prazer estético,
sensorial, místico ou intelectual de seu autor – alimentar a alma! Não por acaso, a sua
etimologia remonta ao latim gardinus, cujo radical deu vazão a Garten (em alemão), garden
(em inglês), giardino (no italiano), jardin (no francês) até chegar ao nosso jardim em bom
português.16 Mas o mesmo radical também resultou em regarder (olhar, em francês) e
guardare (olhar, em italiano), de modo que não é injusto pensar que o jardim é sobretudo
algo para ser visto, olhado, explorado e sentido (visto, ouvido, provado, cheirado e
apalpado). É algo que causa prazer a quem o cultiva e seduz quem o olha ou explora.
Além do prazer individual, o trabalho do jardineiro é movido, em segundo lugar,
pelo prazer do outro, aquele que passa pelo jardim ou o visita. O jardineiro busca, com
suas linguagens, planos e ferramentas, seduzir, convencer, arrebatar, enfeitiçar o outro
que, de passagem, atravessa o seu caminho.
Ao contrário de um bosque, uma mata ou uma floresta, o jardim nunca é dado,
mas sempre construído, trabalhado, elaborado, cultivado. Um jardim surge dos sonhos,
planos, projetos e esforços de um ou mais jardineiros. Resultado de uma intervenção
cultural humana, um jardim tem sempre uma autoria, que se revela ao longo e por meio
dos seus muitos canteiros. Assim como os sons não são música, conjuntos de plantas
não constituem jardins antes de trabalhados pelo jardineiro.17 Aliás, nesse particular,
o jardim exige um trabalho cuidadoso, meticuloso, intenso e contínuo cujas etapas
incluem definir um projeto, preparar adequadamente a terra, eleger e adquirir as mudas
e sementes mais propícias aos seus propósitos, definir um tema e um estilo para o seu
jardim, podá-lo em seus excessos, regá-lo na medida adequada. Não há jardim sem esse
duplo esmero: do detalhe atento, da ourivesaria constante, da microdimensão da eleição
da melhor flor ou abelha, mas também do esforço físico hercúleo, do lavradio extenso,
da macrodimensão da harmonia e suas múltiplas relações.
O jardim é marcado pela delimitação: de espaços, de espécies, de águas, de
canteiros. Principalmente, pela delimitação e identificação de suas margens. Um jardim
é sempre algo fechado, definido ou delimitável, ainda que não tenha cercas ou muros.18
No jardim, o conceito francês de clôture é essencial. Não se dá o mesmo com a floresta ou
o bosque, que vão esmaecendo pouco a pouco, sem um fim único e explícito. Mesmo nos
jardins públicos, ainda que não haja muros, grades ou portões, essa delimitação é clara e
pode se dar por meio de ruas, calçadas e caminhos. Isso se deve não a qualquer instinto
de propriedade, mas à necessidade prática de indicar os limites do cuidado empregado

15
FRANCA FILHO, Marcílio Toscano. De jardins e direitos. Revista Prim@ Facie, v. 13, n. 25, p. 1-5, 2014.
16
PRUVOST, Jean. Le Jardin. Paris: Champion, 2013. p. 15.
17
MOORE, Charles W.; MITCHELL, William J.; TURNBULL JR., William. A poética dos jardins. Campinas: Editora
da Unicamp, 2011. p. 25. John Cage diria o contrário, é verdade.
18
RUBIÓ Y TUDURÍ, Nicolas Maria. Del paraíso al jardín latino. Barcelona: Tusquets, 2000. p. 46 e ss. Para Nelson
Saldanha, “Em princípio o jardim se diz fechado, a praça, aberta. No caso, o jardim seria convexo; a praça
côncava” (SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça: ensaio sobre o lado “privado” e o lado “público” da vida
social e histórica. Ciência & Trópico, v. 11, n. 1, p. 105-121, 1983. p. 110).
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sobre aquela parcela específica de terreno. Mas a delimitação não significa isolamento:
um jardim dialoga com o terroir, o clima, o relevo, os pássaros, os insetos, implicando
sempre permeabilidade e alguma forma, ainda que sutil, de interação com o seu tempo
e o seu espaço. “Assim como Robinson Crusoé, o jardineiro cria um ambiente a partir
daquilo que a natureza lhe oferece em um dado lugar”.19 Essa delimitação, portanto, é
sempre construída.
Esse diálogo com o tempo e com o espaço permitiu (e continua a autorizar), desde
o Éden ou os jardins suspensos da Babilônia, passando pelos jardins de Academus e
Epicuro, até o paisagismo multicolorido de Burle Marx ou o paisagismo submerso de
Takashi Amano, a existência de uma infinidade de jardins memoráveis – apesar de as
obras de jardinagem serem efêmeras por definição.20
Todos esses jardins costumam agrupar-se em duas grandes escolas de paisagismo:
Há o jardim racional e geométrico, verdadeiro “paraíso ordenado”, como aquele de
canteiros retilíneos do Palácio Versailles, obra do grande André Le Nôtre, e o Jardim
Botânico do Rio de Janeiro – ambos muito bonitos, mas muito, muito longe da natureza
selvagem. Neles vislumbra-se claramente o gesto imperial de quem doma a natureza e
expropria dela algum espaço. Por outro lado, há o jardim naturalista, oriental ou inglês,
fiel à organicidade irregular da natureza, mas obviamente uma elaboração intelectual
refinada, algo que se pode ver no Hyde Park londrino ou no Parque Lage carioca. Neles,
quase não se percebe a “intervenção misteriosa (sem ervas daninhas, sem folhas caídas,
sem pedras manchadas ou fora do lugar)”21 do jardineiro, preocupado em disfarçar
limites.
Fusão e enfrentamento definem as estratégias daquelas duas principais escolas
paisagísticas. Em ambas, emerge a preocupação constituinte de dar forma aos espaços,
dizendo algo, transmitindo uma mensagem, metaforizando uma ideia. Ora, “jardins são
paisagens retóricas. Eles são feitos com os mesmos materiais que o resto da paisagem,
assim como as palavras dos retóricos são as da linguagem comum, mas são compostos
para instruir, comover e deleitar...”.22 Portanto, do mesmo modo como há retóricas
artísticas, científicas e filosóficas, há retóricas paisagísticas e jurídicas, todas com enorme
capacidade expressiva, afinal, como já bem revelou Martin Heidegger, “a Linguagem
encontra-se por toda parte”.23 Como tantas outras coisas, os jardins falam por si(lêncio),
com seus canteiros, cores, pedras, espécimes e composições.24
Na fronteira entre as escolas “rácio-geométricas” e “patos-naturalísticas” de jar­
dinagem, há os jardins labirínticos, que unem o racionalismo da forma com a irracio­
nalidade do conteúdo, afinal “todas as construções do homem têm um fim bastante

19
MOORE, Charles W.; MITCHELL, William J.; TURNBULL JR., William. A poética dos jardins. Campinas: Editora
da Unicamp, 2011. p. 20.
20
HARRISON, Robert Pogue. Gardens – An essay on the human condition. Chicago: The University of Chicago
Press, 2008. p. 39; RUBIÓ Y TUDURÍ, Nicolas Maria. Del paraíso al jardín latino. Barcelona: Tusquets, 2000. p 18.
21
MOORE, Charles W.; MITCHELL, William J.; TURNBULL JR., William. A poética dos jardins. Campinas: Editora
da Unicamp, 2011. p. 33-34; 62.
22
MOORE, Charles W.; MITCHELL, William J.; TURNBULL JR., William. A poética dos jardins. Campinas: Editora
da Unicamp, 2011. p. 65.
23
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 7.
24
FRANCA FILHO, Marcílio Toscano; CARNEIRO, Maria Lúcia. I Sapori del Diritto: Una Libera Congettura sul
Gusto della Giuridicità (“Menu Degustazione in Quattro Portate”). ISLL Papers, v. 8, 2015. p. 13.
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claro. Por exemplo, a sala de jantar para comer, o quarto para dormir, a sala de espera
para esperar. Mas a ideia de construir um labirinto, um edifício para que quem entrar
nele se perca, é uma ideia estranhíssima”.25 Visto em jardins ingleses, chineses, franceses,
italianos, barrocos ou medievais, o labirinto é, segundo Moore, Mitchell e Turnbull, “um
ema­ra­nhado de caminhos estreitos que faz com que longas distâncias sejam comprimidas
dentro de uma pequena área”.26
Fala-se em “jardins labirínticos”, mas é preciso reconhecer que a própria figura do
labirinto não é unívoca. Há também muitas, muitas classificações disponíveis sobre eles,
com diferentes graus de complexidade. Fala-se, por exemplo, em labirintos (a) naturais,
artificiais e mistos, (b) casuais, acessórios e intencionais, (c) univiários e pluriviários,
(d) geométricos e irregulares, (e) retangulares, curvos e mistos, (f) compactos, difusos e
mistos, (g) simétricos, assimétricos e mistos, (h) acêntricos, monocêntricos e policêntricos,
(i) bidimensionais e tridimensionais, (j) simples e complexos, (k) com um ou múltiplos
ingressos.27
Parece-nos infrutífero explorar cada uma dessas propostas taxonômicas neste
instante. Para o bem da lógica do presente ensaio, toma-se, porém, a distinção proposta
por Umberto Eco28 entre três tipos de labirintos: (i) os labirintos simples de um só
curso, também chamados de clássicos ou lineares, aqueles que, como um novelo ou um
espiral, uma vez “desenrolados”, dariam origem a uma única linha (também chamados
de pseudolabirintos); (ii) os labirintos maneiristas ou Irrweg, aqueles que, uma vez
desemaranhados, dariam origem a uma árvore bidimensional, ou seja, aqueles que
propõem escolhas alternativas e binárias, ao longo do caminho, mas só uma delas leva
a um final; e, por fim, (iii) os labirintos em forma de rede, policêntricos, que não podem
ser “desenrolados”, já que cada ponto se conecta a outros pontos.
Os jardins-labirintos estão mais relacionados às formas (i) e (ii) em função da ideia
de fechamento e limites dos jardins. Sob uma outra perspectiva, é possível destacar que a
forma labiríntica descrita em (ii) possuiria algum tipo de proximidade com as concepções
dicionarizadas de saber, enquanto que as formas mais próximas de (iii) encontram maior
familiaridade com as concepções enciclopédicas e reticuladas de saber.
Os modelos epistemológicos em forma de árvore, apesar de suas muitas
qualidades, têm ao longo do tempo sofrido críticas quanto à sua centralização, rigidez,
hierarquia, linearidade, finalismo e essencialismo. Mesmo quando reunidas em jardins-
labirintos, as árvores não costumam perder a sua vocação “despótica e totalitária”,
claramente dependentes de uma “autoridade central”. Em resposta a esses impasses,
os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari desenvolveram o conceito labiríntico de
“rizoma”, um complexo modelo em rede – muito próximo da ideia de hiperlink – que
permite interconectar todo e qualquer ponto de sua estrutura flexível, acêntrica e não
hierárquica.29

25
Jorge Luís Borges apud BRAVO, Pilar; PAOLETTI, Mario. Borges verbal. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. p. 117.

26
MOORE, Charles W.; MITCHELL, William J.; TURNBULL JR., William. A poética dos jardins. Campinas: Editora

da Unicamp, 2011. p. 62.
27
SANTARCANGELI, Paolo. Il libro dei labirinti. Milano: Frassinelli 1984. p. 24-28.
28
ECO, Umberto. Da árvore ao labirinto: estudos históricos sobre o signo e a interpretação. Rio de Janeiro: Record,
2013. p. 60.
29
LIMA, Manuel. Visual complexity: mapping patterns of information. New York: Princeton Architectural Press,
2011. p. 44.
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Já que “networks are everywhere” –30 da sociologia à arte,31 da economia ao direito,


da computação à epidemiologia, da geografia aos transportes –, não custa lembrar que,
segundo Mark E. J. Newman, “a network is, in its simplest form, a collection of points
joined together in pairs by lines. In the jargon of the field the points are referred to as
vertices or nodes and the lines are referred to as edges”.32
Assim, diferentemente dos jardins labirínticos, os labirintos em rede são ainda
mais complexos. Embora todos os labirintos tenham nascido provavelmente da metáfora
mística de uma jornada espiritual e reflexiva,33 os labirintos em rede pedem deambulações
mais amplas, errâncias e peregrinações ainda mais radicais. Labirintos em rede, portanto,
exigem ser caminhados, requerem mobilidade e abertura. Errare humanum est.
A errância de Ulisses e sua Odisseia nos ensinam que os longos deslocamentos
são uma das razões mais antigas da tradição literária. Viajando, escrevemos. Escrevendo,
viajamos. O antropólogo britânico Tim Imgold estabeleceu uma criativa associação entre
o escrever e o deslocar-se. Para ele, é no movimento de se deslocar de um lugar para
o outro, ou de um assunto para o outro, que o conhecimento se produz e se integra,
e, assim, a narração de uma história se aproxima de uma caminhada. Locomover-se e
escrever seriam, pois, expressões de atividades que se complementam.
A partir deste olhar dinâmico, conclui-se que os passeios de Kant em Königsberg,
de Rousseau em Genebra ou de Heidegger na Floresta Negra não seriam um acaso
banal, como certamente não o são as caminhadas do Professor Gomes Canotilho na
sua aldeia de Pinhel.34 “El jardín de los filósofos es el lugar donde se nutre y se cría la
sabiduría”.35 Mas nenhum daqueles pensadores se furtou de sair dos limites de seus
jardins, estabelecendo outras redes de conexão. Interessante é perceber, ademais, que
o mesmo nomos que, em grego, deu origem à palavra “norma”, também resultou em
“nômade” e “nomadismo”.36 Dito isso, acredita-se que é esta perspectiva nômade que
deve orientar o caminhar contemporâneo sobre as labirínticas redes da complexidade
jurídica.
Estudos pioneiros sobre a noção de complexidade são costumeiramente atri­
buídos à cientista belga Ilya Prigogine, vencedora do Nobel de química de 1977, com
uma pesquisa sobre sistemas instáveis (de não equilíbrio).37 A partir dali a noção de

30
LIMA, Manuel. Visual complexity: mapping patterns of information. New York: Princeton Architectural Press,
2011. p. 73.
31
A obra do artista visual argentino Tomás Saraceno (http://tomassaraceno.com/) constitui um bom exemplo do
que se tem chamado de networkism (http://www.networkism.org/), tendência artística que explora graficamente
algumas propriedades rizomáticas. A obra de Saraceno foi estudada sob uma perspectiva jurídica em FRANCA,
Alessandra Correia Lima Macedo. Les Principes du Droit International des Eaux: Le cas de l’Aquifère Guarani.
Saarbrücken: Presses Academique Francophone, 2014.
32
NEWMAN, Mark. Networks. Oxford: OUP, 2018. p. 1.
33
MOORE, Charles W.; MITCHELL, William J.; TURNBULL JR., William. A poética dos jardins. Campinas: Editora
da Unicamp, 2011. p. 62; HARRISON, Lorraine. Cómo leer jardines – Una guía para aprender a disfrutarlos.
Madrid: H. Blume, 2012. p. 140.
34
FRANCA FILHO, Marcílio Toscano. Prefácio: Um autor peregrino. In: CUNHA, Paulo Ferreira da. Direito
internacional: raízes e asas. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 19-21.
35
LEONARDI, Emanuele. Borges: libro-mundo y espacio-tempo. Buenos Aires: Biblos, 2011. p. 63.
36
CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: G. Gilli, 2013. p. 39.
37
MURRAY, Jamie; WEBB, Thomas E.; WHEATLEY, Steven. Encountering law’s complexity. In: MURRAY, Jamie;
WEBB, Thomas E.; WHEATLEY, Steven (Ed.). Complexity theory and law: mapping an emergent jurisprudence.
London: Routledge, 2019. p. 8.
ANA CLÁUDIA NASCIMENTO GOMES, BRUNO ALBERGARIA, MARIANA RODRIGUES CANOTILHO (COORD.)
878 DIREITO CONSTITUCIONAL – DIÁLOGOS EM HOMENAGEM AO 80º ANIVERSÁRIO DE J. J. GOMES CANOTILHO

complexidade encontrou campo fértil de aplicação em disciplinas como a física, a


mate­mática, a biologia e a ciência da computação. Pensadores das ciências sociais
como Gilles Deleuze, Felix Guattari, Edgar Morin e Francisco Corrêa Guedes não
tardaram em incorporar a categoria da complexidade às suas formulações teóricas in­
terdiscipli­na­res, multi­dis­ciplinares e transdisciplinares.
No ano acadêmico 1978-1979, Roland Barthes conduziu no Collège de France o
seminário “La métaphore du Labyrinthe: recherches interdisciplinaires”. A proposta do
seminário era eleger uma palavra rica em significados e alimentar a reflexão tanto sobre
a noção de metáfora quanto sobre o próprio labirinto. Entre os convidados a palestrar
sobre temas matemáticos, arquitetônicos, fisiológicos etc., estavam o filósofo G. Deleuze
e o jurista H. Cassan, professor nas Faculdades de Direito de Lille e Fez.38
O labirinto em rede afigura-se como a metáfora apropriada para essa espécie
de complexidade auto-organizada dos sistemas abertos que se expandem a partir do
acirramento das inter-relações, conexões e comportamentos transcendentes e que bem
definem a arquitetura dos sistemas complexos, entre os quais está o sistema jurídico
contemporâneo.

3 O universo complexo: transciência e hiperlinks


Muitos teóricos do direito, entre eles Niklas Luhmann, Mario Losano e Gunther
Teubner, por exemplo, já associaram a juridicidade à teoria dos sistemas. O sistema
jurídico seria um sistema de direitos e deveres, um sistema de sujeitos e relações jurídicas,
um sistema complexo de múltiplos níveis de interação normativa (local, nacional,
internacional, supranacional, transnacional) etc. Por conta de certas características como
a heterogeneidade dos seus sujeitos, a resiliência, a diversidade de relacionamentos não
lineares, a adaptabilidade, a assimetria temporal e a ampla conectividade entre as partes,
o sistema jurídico é marcado pela complexidade.39
Com efeito, não há uma definição consensual do que seja exatamente um sistema
complexo. Há, porém, alguns indicadores que auxiliam na identificação de um sistema
complexo, como referido. Tais indicadores são a auto-organização, a inexistência de um
poder central ou um controle externo, a criatividade e peculiaridade dos seus níveis
intermediários e inferiores, o fato de o todo ser maior do que a soma de suas partes,
a contínua mutação, a interação com outros agentes, elementos e sistemas complexos,
e alterações com entropia crescente e tendente ao caos.40 Muitas dessas características
são identificadas nos sistemas jurídicos. O jurista francês Jean Carbonier resumiu essa
complexidade formulando dois teoremas: “Premier théorème: Le droit est plus grand
que les sources formelles du droit. [...] Second théorème: Le droit est plus petit que
l’ensemble des relations entre les hommes”.41

38
Disponível em: https://www.college-de-france.fr/site/roland-barthes/1978-1979.htm.
39
RUHL, J. B. Law’s complexity: a primer. Georgia State University Law Review, v. 24, n. 4, p. 886-911, 2012. p. 898.
40
MURRAY, Jamie; WEBB, Thomas E.; WHEATLEY, Steven. Encountering law’s complexity. In: MURRAY, Jamie;
WEBB, Thomas E.; WHEATLEY, Steven (Ed.). Complexity theory and law: mapping an emergent jurisprudence.
London: Routledge, 2019. p. 8-9.
41
CARBONNIER, Jean. Flexible droit. Paris: LGDJ, 2001. p. 21-24.
MARCÍLIO TOSCANO FRANCA FILHO, ALESSANDRA MACEDO FRANCA
UM PASSEIO PELOS JARDINS DO DIREITO – HIPERTEXTOS, TRANSCIÊNCIA E TRANSJURIDICIDADE
879

É justamente esse perfil complexo e sistemático do direito o que permite que o


ordenamento jurídico seja muitas vezes capturado sob a forma de uma rede. François
Ost e Michel Van de Kerchove foram pioneiros em identificar o caráter reticular do
direito contemporâneo em substituição ao paradigma moderno linear, arboriforme,
hierárquico, piramidal.42
As redes traduzem um padrão de interações entre as partes de um sistema:
“a network is a simplified representation that reduces a system to an abstract structure
capturing only the basics of connection patterns and little else”.43 Ao tratar do sistema
jurídico como uma rede complexa, Ost e Van de Kerchove referem-se a termos como
“pluralité”, “incertitude”, “récursivité”, “hybridation”, “construction baroque”,
“labyrinthes”, “brousses épaisses”, “imbroglios”, “Dédale sans fil d’Ariane”, “univers
kafkaïen”.44
Criado em 1984, o Santa Fe Institute, localizado na cidade homônima do Novo
México, Estados Unidos, é, na atualidade, o principal think tank internacional dedicado
ao tema dos sistemas complexos, em campos de saber tão diversos quanto os físicos,
biológicos, sociais, culturais, tecnológicos ou astrobiológicos. Em um artigo publicado
em 2011, o Prof. David Krakauer, então diretor do instituto, recupera a noção de
“transciência” como método-epistemologia adequada para uma melhor compreensão
da complexidade:

[W]e have reached a stage where the pace of discovery and the nature of shared knowledge
bring the whole venerable exercise disciplinary fads into question. I believe we are
entering a period of transcience, where it is becoming necessary that training in areas with
fundamental mathematical, computational and logical principles should be emancipated
from a single class of historically contingent case studies.45

Depois de citar, por exemplo, como a física estatística pode ser tão útil na
compreensão dos fenômenos sociais quanto no estudo das propriedades da matéria
condensada, ou como a teoria computacional pode dialogar com a dinâmica evolutiva,
Krakauer sugere:

One of the significant contributions of SFI in this new landscape has been to show how
ideas have a far greater compass than their original purpose suggests. [...] Transcience is
an expression that seeks to recognize the pursuit of plenary or synthetic knowledge as an
institutional priority.46

42
OST, François; KERCHOVE, Michel Van de. De la pyramide au réseau? Pour une théorie dialectique du droit.
Bruxelles: Presses de l’Université Saint-Louis, 2010, passim.
43
NEWMAN, Mark. Networks. Oxford: OUP, 2018. p. 2-7.
44
OST, François; KERCHOVE, Michel Van de. De la pyramide au réseau? Pour une théorie dialectique du droit.
Bruxelles: Presses de l’Université Saint-Louis, 2010, passim.
45
KRAKAUER, David C. Transcience: disciplines and the advance of plenary knowledge. SFI Bulletin, n. 25, 2011.
p. 4.
46
KRAKAUER, David C. Transcience: disciplines and the advance of plenary knowledge. SFI Bulletin, n. 25, 2011.
p. 4.
ANA CLÁUDIA NASCIMENTO GOMES, BRUNO ALBERGARIA, MARIANA RODRIGUES CANOTILHO (COORD.)
880 DIREITO CONSTITUCIONAL – DIÁLOGOS EM HOMENAGEM AO 80º ANIVERSÁRIO DE J. J. GOMES CANOTILHO

É justo registrar que o conceito de transciência não foi uma criação de Krakauer
ou tampouco do Santa Fe Institute. Um dos registros mais antigos do termo aparece
já no título de um poema de amor de Joseph Stanley Pennell, publicado em 1933.47 Em
1977, o termo foi retrabalhado pelo físico Alvin M. Weinberg48 para tratar de questões
que, embora formuladas pela ciência, necessitavam de pontes de conhecimento com
saberes não científicos para serem respondidas.
Por trás da noção de transciência está a ideia de que os sistemas complexos
possuem certos padrões. Entende-se, por exemplo, que um organismo responde a certas
informações de maneira muito semelhante a uma rede de computadores ou a uma rede
de insumos econômicos. Assim, a compreensão de determinadas características de um
sistema pode ser a chave para decifrar outros sistemas. Assim, o estudo das células pode
oferecer, por exemplo, insights a economistas ou cientistas da computação (e vice-versa).
Esses hiperlinks heterodoxos entre disciplinas, saberes, especulações, conhecimentos,
cientistas e artistas constituem o elemento central da transciência.
No direito, a abertura, a permeabilidade, a multidimensionalidade permitidas
pelo estabelecimento desses hiperlinks epistemo-metodológicos transcientíficos são não
apenas possíveis e permitidas quanto desejáveis e mesmo necessárias.49 O fenô­meno já
foi experimentado por juristas do porte de Pontes de Miranda50 e Goffredo Telles Junior,51
que se valeram da física, da química e da biologia para desenvolver uma com­­preen­são
mais profunda da juridicidade. O patologista e histologista austríaco Salomon Stricker
publicou, em 1884, um eficaz manual de propedêutica jurídica chamado Physiologie
des Rechts.52 Noutro caso, a biologia serviu às explicações de filosofia do direito de
René Sève.53

47
O poema Transciency, de Joseph Stanley Pennell, foi publicado na revista Poetry (v. 43, n. 1, out. 1933, p. 13), e

dizia o seguinte:
“TRANSCIENCY
Now you may go, and never see me more,
For I am set upon by little things;
And you are that I knew you were before
You smiled-another wall for beating wings
To beat against, and never span the space
Between the false and true. Now you shall go!
My time, dimension and your lovely face
Remain irrelevant as fire to snow.
As blood forgets its content in the dust,
As atoms dissipate, as chance sorts life
To waste and seed, and moves it all with lust,
I shall forget our little while in strife.
For you I cannot lift a broken voice,
Because there is no love nor any choice”.
48
WEINBERG, Alvin M. The limits of science and trans-science. Interdisciplinary Science Reviews, v. 2, n. 4,
p. 337-342, 1977.
49
RAISCH, Marylin J. Codes and hypertext: the intertextuality of international and comparative law. Syracuse
Journal of International Law & Commerce, v. 35, n. 1, p. 101-131, 2008, passim; BOEHME-NESSLER, Volker.
Hypertext und Recht: Rechtstheoretische Anmerkungen zum Verhältnis von Sprache und Recht im
Internetzeitalter. Zeitschrift für Rechtssoziologie, v. 26, n. 2, 2005, passim.
50
SALDANHA, Nelson. Espaço e tempo na concepção do direito de Pontes de Miranda. Revista de Informação
Legislativa, v. 25, n. 97, p. 271-282, 1988.
51
“A complexidade corporifica a matéria” (TELLES JUNIOR, Goffredo. Direito quântico – Ensaio sobre o
fundamento da ordem jurídica. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 154. A primeira edição é de 1970).
52
STRICKER, S. Physiologia do direito. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1910.
53
SÈVE, René. Philosophie et Théorie du Droit. Paris: Dalloz, 2007. p. 5 e ss.
MARCÍLIO TOSCANO FRANCA FILHO, ALESSANDRA MACEDO FRANCA
UM PASSEIO PELOS JARDINS DO DIREITO – HIPERTEXTOS, TRANSCIÊNCIA E TRANSJURIDICIDADE
881

Há cerca de trinta anos, o Prof. Laurence H. Tribe, catedrático de Direito Consti­


tucional da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, publicou um instigante
artigo cujo título era The curvature of constitutional space: what lawyers can learn from
modern physics. Ali, em meio a categorias propostas por A. Einstein e S. Hawking, Tribe
estabeleceria algumas bases epistêmicas que desenvolveria, uma década mais tarde, no
seu manual de direito constitucional americano:

[T]he metaphors and intuitions that guide physicists can enrich our comprehension of
social and legal issues. I borrow metaphors from physics tentatively; my purpose is to
explore the heuristic ramifications for the law; my criterion of appraisal is whether the
concepts we might draw from physics promote illuminating questions and directions. I
press forward in this endeavor because I believe that reflection upon certain developments
in physics can help us hold on to and refine some of our deeper insights into the pervasive
and profound role law plays in shaping our society and our lives.54

Ao sistematizar esses e outros saberes não jurídicos no seu manual, Laurence H.


Tribe afirmou taxativamente que “the Constitution is (or has become) a hypertext – a
text and a gloss – not unlike a medieval manuscript”.55 Bem antes de se falar em física
quântica ou internet, quando um glosador medieval acrescentava uma informação
marginal ou interlinear a um texto jurídico clássico ou, a seguir, um doutrinador moderno
abria uma nota de rodapé no corpo de suas considerações, ambos estavam, na verdade,
dando margem, analogicamente, à cultura do hipertexto. Em ambas as circunstâncias,
a mesma ideia de conectividade, abertura, permeabilidade e multidimensionalidade
visível em um hiperlink está presente. É verdade que, com a revolução digital, tudo isso
ficou apenas mais simples, intuitivo, intenso e veloz.
A importância dos hiperlinks analógicos no texto jurídico, sob a forma de notas de
rodapé, foi louvada, no mundo pré-digital, por Peter Häberle e Alexander Blankenagel:
“Der Alltag der rechtswissenschaftlichen Arbeit ist jedoch ohne Fußnoten nicht
denkbar”,56 escreveram os juristas em 1988. O comparatista alemão Jürgen Basedow,57
seguindo uma tradição iniciada por Peter Riess,58 chegou mesmo a propor uma
classificação detalhada para os muitos tipos de notas de rodapé, dada a sua relevância
para o pensamento jurídico.

4 Juridicidade complexa e radicalização das interações: a


transjuridicidade
“Tudo flui”, ensina Heráclito de Éfeso, a partir do seu fragmento 91. A juridicidade,
como manifestação humana que é, não foge a esta realidade: está em movimento perene

54
TRIBE, Laurence H. The curvature of constitutional space: what lawyers can learn from modern physics.
Harvard Law Review, v. 103, n. 1, 1989. p. 2.
55
TRIBE, Laurence H. American constitutional law. New York: Foundation Press, 2000. p. 40.
56
HÄBERLE, Peter; BLANKENAGEL, A. Fußnoten als Instrument der Rechtswissenschaft. Rechtstheorie, v. 19,
n. 1, p. 116-136, 1988. p. 116.
57
BASEDOW, Jürgen. Prolegomena zu einer funktionalistischen Theorie der Fußnote. Zeitschrift für Europäisches
Privatrecht, p. 671-672, 2008.
58
RIESS, Peter. Vorstudien zu einer Theorie der Fußnote. Berlin: de Gruyter, 1983.
ANA CLÁUDIA NASCIMENTO GOMES, BRUNO ALBERGARIA, MARIANA RODRIGUES CANOTILHO (COORD.)
882 DIREITO CONSTITUCIONAL – DIÁLOGOS EM HOMENAGEM AO 80º ANIVERSÁRIO DE J. J. GOMES CANOTILHO

de transformação. Existem, é verdade, períodos em que o movimento sofre acelerações,


noutros, porém, a sua velocidade é constante ou mesmo desacelerada. De todo modo, é
fato que estamos em movimento ininterrupto de mudança. Nos momentos de acelerada
transformação, os paradigmas que sustentam as convenções sociais, os saberes, as artes e
as ciências costumam perder sentido para que outros paradigmas se construam a partir
de novos conceitos e representações. E assim segue a ciência pela contínua superação dos
seus paradigmas, essa “estrutura mental, consciente ou não, que serve para classificar
o mundo e poder abordá-lo”.59
O paradigma da transjuridicidade pretende definir o modelo da juridicidade
contemporânea através das características comuns aos sistemas complexos e à ciência
que busca compreendê-los. A ideia de unir o prefixo “trans” (derivado da preposição
latina com significado de “além de”, “para lá de”, “depois de”) ao termo “juridicidade”
remete a novas características do fenômeno jurídico contemporâneo. Tais características
são a transcendência, a transição, a transitoriedade, a transfusão, a transferência, a
transgressão e a transversalidade das novas relações jurídicas.
Nesse quadro, é verdade, já se pode enxergar alguma afinidade entre a transju­
ridicidade e a “multiplicidade” trabalhada por Gilles Deleuze e Felix Guattari, para
quem “as multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não
entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As subjetivações, as
totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem
nas multiplicidades”.60
Afastando-se simultaneamente da segmentaridade, da compartimentalização,
da fragmentação, da totalidade unificadora e do fechamento, a transjuridicidade con­
tém impulsos daquela mesma multiplicidade rizomática metaforizada pelos labirintos
em rede nos modelos de sistemas complexos referidos anteriormente.
Um conceito preliminar de transjuridicidade pode ser formulado a partir de um
modelo do direito contemporâneo que se caracteriza pelo estado de transformação
acelerado, pelo aumento de permeabilidade das fronteiras que delimitam as categorias
causando uma constante relação de transição e troca. Esse traspassamento se opera tanto
internamente, no contexto do fenômeno jurídico e entre suas próprias categorias, ramos
e saberes, quanto externamente, entre os saberes e categorias jurídicas e não jurídicas.
É possível afirmar a existência de pelo menos duas formas de manifestação de
transjuridicidade, uma interna e outra externa. A transjuridicidade interna é aquela em
que partes do próprio sistema jurídico transcendem seus espaços tradicionais, escorrendo
a outros espaços do direito, ao que podemos também nomear de interjuridicidade,
significando o fenômeno das relações entre direitos. Pode se dar entre níveis, entre
ramos, entre modelos, entre tempos. São manifestações dessa transjuridicidade interna
as relações entre direito internacional, regional e nacional (compreendendo igualmente
os direitos locais), relações entre direitos nacionais diversos, relações entre conceitos e
ramos do direito, relações entre direito anterior e posterior.
Por outro lado, a transjuridicidade externa é aquela em que o jurídico transcende
suas próprias fronteiras, relacionando-se com outros campos do saber científico ou não

59
FOUREZ, Gérard. A construção das ciências. São Paulo: Editora Unesp, 1995. p. 103.
60
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. São Paulo: Editora 34, 2011. v. 1. p. 10.
MARCÍLIO TOSCANO FRANCA FILHO, ALESSANDRA MACEDO FRANCA
UM PASSEIO PELOS JARDINS DO DIREITO – HIPERTEXTOS, TRANSCIÊNCIA E TRANSJURIDICIDADE
883

científico, ao que podemos chamar de ultrajuridicidade. Essa transjuridicidade externa


ou ultrajuridicidade aproxima o direito da música, da filosofia, das artes plásticas, das
literaturas, da biologia, da física quântica, da ciência da computação etc.
Definir não significa apenas elaborar um conceito, mas também distinguir tais
conceitos de outros fenômenos. É útil lembrar, nesse quadro, que, tanto no âmbito interno
quanto no contexto externo da juridicidade, a ideia dessas múltiplas relações pode não
parecer novidade, uma vez que o direito sempre se relacionou internamente (entre as
suas muitas partes) e também externamente (com outros ramos do saber). Há exemplos
de há muito conhecidos, como o estudo da filosofia do direito, sociologia ou psicologia
jurídicas, a medicina legal etc. Além do mais, tem sido comum há tempos encontrar nos
livros jurídicos, por exemplo, capítulos inteiros dedicados às relações de um ramo do
direito com outros ramos, ou mesmo estudos a respeito de pontes de transição entre
sistemas jurídicos específicos, nacionais ou de níveis diferentes; ou ainda observar
um grande número de correferências entre instrumentos de um mesmo ordenamento
jurídico, bem como, nas decisões judiciais, é frequente o recurso a fundamentações
amparadas em distintas fontes que se complementam na construção do convencimento.
Estes entrelaçamentos já se manifestaram quando as árvores do direito começaram a
exibir conexões na forma de jardins labirínticos.
Entretanto, existem elementos capazes de distinguir o ambiente ajardinado das
manifestações anteriores daquilo que encontramos na manifestação da transjuridicidade
como um novo paradigma do direito. Uma dessas diferenças toca o fato de que, antes,
as referidas características marcavam a juridicidade de forma periférica ou excepcional.
Ou seja, naquele primeiro momento, se constatava nessas relações traços de prevalência,
escolha do jardineiro, comparação entre canteiros, hierarquia dos ramos e uma
preservação das individualidades (aquilo que chamamos de fechamento ou clôture dos
jardins e o contato apenas sutil com o ambiente circundante). No momento atual, as
características de transcendência, transição, transitoriedade, transfusão, transferência,
transgressão e transversalidade passaram a alcançar renovada importância, com
uma intensidade jamais vista e em um cenário de acentralidade e interdependência.
Apresenta-se assim um declínio das individualidades autônomas e uma preponderância
das coexistências, interdependências e multiplicidades que ocupam agora o centro do
debate jurídico.

5 Conclusão
O direito transjurídico é um direito labiríntico, de entrecruzamentos, multipli­
cidades, complexidades, perplexidades e paradoxos. Jorge Luís Borges, cultor de
labirintos e de paradoxos, cuida desses temas em um conto chamado Os dois reis e os
dois labirintos”.61 Ali, narra que, certa feita, um rei babilônio fez construir um labirinto
escandaloso e, ao receber a visita de um rei árabe, humilhou-o aprisionando-o no
seu intrincado labirinto. O rei árabe teve enorme dificuldade em descobrir a saída,

61
BORGES, Jorge Luis. Os dois reis e os dois labirintos. In: BORGES, Jorge Luis. O Aleph. Porto Alegre: Globo,
1972. p. 107.
ANA CLÁUDIA NASCIMENTO GOMES, BRUNO ALBERGARIA, MARIANA RODRIGUES CANOTILHO (COORD.)
884 DIREITO CONSTITUCIONAL – DIÁLOGOS EM HOMENAGEM AO 80º ANIVERSÁRIO DE J. J. GOMES CANOTILHO

só a encontrando depois de implorar pelo socorro divino. O rei árabe acabou um dia
aprisionando o rei da Babilônia e o levou para o deserto onde o largou dizendo:

Ó rei do tempo e substância e símbolo do século, na Babilônia me quiseste perder num


labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou por bem
que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas
galerias a percorrer, nem muros para que te impeçam os passos.62

Logo depois, desamarrou-o e o abandonou no meio da imensidão do deserto,


onde o rei da Babilônia morreu de fome e de sede.
Tendo vivido três anos no Saara, a descrição do escritor e aviador francês Antoine
de Saint-Exupéry é reveladora para distinguir certa visão míope ou superficial do deserto
de uma compreensão com maior acuidade:

Decerto, o Saara oferece, a perder de vista, somente uma areia uniforme, ou melhor, um
cascalho pedregoso, pois as dunas são raras. Ali se fica imerso permanentemente nas
condições propícias ao tédio. Contudo, divindades invisíveis constroem uma rede de
direções, de declives e sinais, uma musculatura secreta e viva. Não há mais uniformidade.
Tudo se orienta. Um silêncio não se parece com outro silêncio.63

Na referência de Exupéry, como se vê, o deserto-labirinto não consiste numa


uniformidade monótona que pode levar à vertigem. As paredes não são exatamente
necessárias para delimitar os caminhos, mas ao contrário, os declives, sinais e mus­
culaturas oferecem direção e orientação. É preciso tanto um conhecimento profundo
quanto uma sensibilidade aguçada para escolher as veredas até mesmo distinguindo
um silêncio do outro. Não seria esse um exercício válido para o jurista de um direito
transjurídico?
O direito-labirinto não é mais um jardim, mas uma rede orgânica que se manifesta
contemporaneamente nas mais diversas externalizações da juridicidade, quer como
estrutura ou ordenamento, quer como norma, decisão ou interpretação. Como na
mitologia, um labirinto pode assustar. É preciso destemor para enfrentá-lo e percorrê-
lo. Mas o labirinto liberta. Conta a mitologia grega que, depois de matar o Minotauro e
sair do labirinto, valendo-se do fio de Ariane, o ateniense Teseu também libertou a sua
cidade-estado para a plena fruição da liberdade e da democracia.
Num ponto, porém, os labirintos transjurídicos contemporâneos divergem do
mito grego: ao contrário do que pretendia Teseu ao matar o híbrido monstrualizado,
a transjuridicidade não monstrualiza a simbiose, a diversidade e a polimorfia. Não se
propõe o fim, a derrota ou o aniquilamento do diferente, do complexo, do diverso, do
distinto, do misto, do múltiplo – tão híbrido como as manifestações jurídicas de hoje.
Ao contrário, deseja-se a superação de sua bestificação; e se busca a harmonização da
transcendência a partir de diálogos e quiçá de polílogos complementares.

62
BORGES, Jorge Luis. Os dois reis e os dois labirintos. In: BORGES, Jorge Luis. O Aleph. Porto Alegre: Globo,
1972. p. 108.
63
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. Carta a um refém. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2018. p. 18.
MARCÍLIO TOSCANO FRANCA FILHO, ALESSANDRA MACEDO FRANCA
UM PASSEIO PELOS JARDINS DO DIREITO – HIPERTEXTOS, TRANSCIÊNCIA E TRANSJURIDICIDADE
885

Sejamos “todo ouvidos”. O labirinto constitui uma das três partes do ouvido,
também conhecida como o ouvido interno. Nesse campo, o labirinto é uma estrutura que
também alia o conceito de hibridismo, já que possui elementos ósseos, membranáceos e
líquidos, e de complexidade que está na origem da escolha do nome pelos anatomistas.
O fato de este labirinto anatômico congregar duas das funções mais importantes da
juridicidade, quais sejam a função de audição e de equilíbrio, mostra-se revelador do
alcance dessa metáfora. E se na anatomia humana as funções de audição e equilíbrio se
dão no labirinto, então é possível acreditar que o ouvir e o equilibrar da justiça ainda são
possíveis nesse cenário de hibridismo e complexidade, ou só são possíveis através disso.
Para os céticos, aqueles a quem a ideia de que o labirinto auditivo como metáfora
para o jurídico pareceu um excesso retórico, uma excentricidade teórica, há de se recordar
muitos juristas do passado a quem a biologia já ofereceu ao direito e pode continuar a
oferecer modelos imbuídos de grande criatividade, imaginação e, claro, utilidade.
Sobre criatividade e imaginação, cabe lembrar a lição de outro eminente consti­
tucionalista. Em maio de 1954, Paul Claussen Jr., um garoto de 12 anos, de Alexandria,
no estado da Virgínia, nos Estados Unidos, enviou uma carta a Felix Frankfurter, juiz
da Suprema Corte entre 1939 e 1962. O jovem dizia-se interessado em ingressar na
carreira jurídica e pedia um conselho ao grande jurista norte-americano sobre algumas
maneiras de começar a se preparar enquanto ainda estava na escola. A resposta de Felix
Frankfurter a Paul Claussen Jr. revela seu potencial visionário sobre o paradigma da
transjuridicidade:

My Dear Paul:
No one can be a truly competent lawyer unless he is a cultivated man. If I were you, I would
forget all about any technical preparation for the law. The best way to prepare for the law
is to come to the study of the law as a well-read person. Thus, alone can one acquire the
capacity to use the English language on paper and in speech and with the habits of clear
thinking which only a truly liberal education can give. No less important for a lawyer is
the cultivation of the imaginative faculties by reading poetry, seeing great paintings, in
the original or in easily available reproductions, and listening to great music. Stock your
mind with the deposit of much good reading, and widen and deepen your feelings by
experiencing vicariously as much as possible the wonderful mysteries of the universe, and
forget about your future career.
With good wishes,
Sincerely yours,
Felix Frankfurter64

Referências
BASEDOW, Jürgen. Prolegomena zu einer funktionalistischen Theorie der Fußnote. Zeitschrift für Europäisches
Privatrecht, p. 671-672, 2008.
BOEHME-NESSLER, Volker. Hypertext und Recht: Rechtstheoretische Anmerkungen zum Verhältnis von
Sprache und Recht im Internetzeitalter. Zeitschrift für Rechtssoziologie, v. 26, n. 2, 2005. DOI: https://doi.
org/10.1515/zfrs-2005-0202.

64
FRANKFURTER, Felix. Advice to a young man interested in going into law. Jaipur Law Journal, v. II, 1962. p. 318.
ANA CLÁUDIA NASCIMENTO GOMES, BRUNO ALBERGARIA, MARIANA RODRIGUES CANOTILHO (COORD.)
886 DIREITO CONSTITUCIONAL – DIÁLOGOS EM HOMENAGEM AO 80º ANIVERSÁRIO DE J. J. GOMES CANOTILHO

BORGES, Jorge Luis. El idioma analítico de John Wilkins. In: BORGES, Jorge Luis. Otras inquisiciones. Buenos
Aires: Emece, 1952.
BORGES, Jorge Luis. Os dois reis e os dois labirintos. In: BORGES, Jorge Luis. O Aleph. Porto Alegre: Globo, 1972.
BRAVO, Pilar; PAOLETTI, Mario. Borges verbal. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

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