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Diretoria: Carolina Martinez, Márcio Cardial, Rita Martinez, Rubem Barros
Diretor Editorial: Rubem Barros
Editora: Beatriz Rey
Organizadores: Julio Groppa Aquino e Teresa Cristina Rego
Autores dos artigos: Alfredo Veiga-Neto, Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Jorge Ramos do Ó; Inês
Lacerda Araújo, Rosa Maria Bueno Fischer, Silvio Gallo, Sylvio Gadelha; Vera Portocarrero
Capa: Renato Yakabe
Diagramação para e-book: Schäffer Editorial (www.studioschaffer.com)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Foucault pensa a educação [livro eletrônico] : o diagnóstico do presente / Julio Groppa Aquino,
Teresa Cristina Rego (organizadores) . -- São Paulo : Editora Segmento, 2014. -- (Coleção biblioteca
do professor)
2 Mb ; ePUB

Bibliografia.
ISBN 978-85-89636-21-6

1. Educação - Filosofia 2. Foucault, Michel, 1926-1984 I. Aquino, Julio Groppa. II. Rego, Teresa
Cristina. III. Série.

14-09173 CDD-370.1

Índices para catálogo sistemático:


1. Educação : Filosofia 370.1

Edição revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico

Publicado no Brasil com todos os direitos reservados por:


Editora Segmento
Rua Cunha Gago, 412, 1º andar, São Paulo, SP, Brasil, CEP 05421-001
Telefone: (11) 3039-5600
www.editorasegmento.com.br
Sumário
Editorial
O gênio libertário de Foucault

Biografia intelectual
O pensador de todas as solidões

Foucault pensa a educação


Ensaio para uma filosofia da educação

Sujeito e cultura
Vigiar e punir ou educar?

Conhecimento e saber
Conhecimento e saber: O governo do aluno na
modernidade

Ética e valores
O mundo como sala de aula

Em ato
Foucault e os meninos infames de Cidade de Deus

A educação por Foucault


Excertos foucaultianos
Diálogos
Foucault como intercessor

Bibliografia comentada

Referências bibliográficas
EDITORIAL
O gênio libertário de
Foucault
© Reprodução Execrado por uns, aclamado por outros e,
sobretudo, desconhecido por muitos, Michel
Foucault é um dos expoentes do pensamento pós-
estruturalista francês, cuja obra, segundo Paul
Veyne, constitui o acontecimento mais importante
do século XX. Suas ideias, de lenta digestão, exigem
daquele que a elas se dedica uma espécie de cuidado
intensivo, seja com relação à integridade e força
delas próprias, seja consigo mesmo – o que é
lembrado por um dos autores dos textos como o
Foucault busca, em sua inevitável “descaminho daquele que conhece”. É o
obra e em suas que se espera propiciar com este terceiro número da
reflexões, reconciliar-se
consigo mesmo, coleção Biblioteca do Professor.
reformular a imagem Com o intuito de oferecer acesso às principais
que tem de si ideias foucaultianas, foram convidados estudiosos
nacionais (e outro internacional) reconhecidos por
seu trato com a complexa obra do autor. O
resultado é um compêndio de ensaios introdutórios
com uma solidez notável. Isso porque, em seu
conjunto, tais ensaios contemplam com afinco e
precisão os três domínios do percurso conceitual de
Foucault e suas implicações, ou extensões possíveis,
ao campo educacional.

Uma marca que atravessa todos os textos é a da


Uma marca que atravessa todos os textos é a da
disposição, à moda do que propõe Foucault, de
inquirir a atualidade, avaliando criticamente aquilo
que temos nos tornado (e feito tornar) seja nas
escolas, seja fora delas. Segundo um dos autores, a
tarefa seria propriamente a de pensar “contra o
tempo, no tempo, a favor de um tempo por vir”.
Arriscar-se a fazê-lo significaria um indício de
liberdade, especialmente no meio pedagógico, este
tantas vezes capturado por dogmatismos
contingenciais e arbitrários, mas alçados
perigosamente à condição de “verdade”.
Eis o desdobramento último da aproximação à
obra foucaultiana que aqui se tentou promover: uma
lufada de ar no pensamento e, oxalá, nas práticas
que conformam os modos de vida na
contemporaneidade educacional. Assim, talvez,
poder-se-ia começar a conhecer a “existência como
obra de arte” imaginada por Foucault, esse libertário
incorrigível.

Teresa Cristina Rego e Julio Groppa Aquino


(Professores da Faculdade de Educação da USP)
BIOGRAFIA INTELECTUAL

Por Durval Muniz de Albuquerque Júnior


O pensador de todas as
solidões
O saber que busca só a aquisição de conhecimentos não
tem valor; é preciso descaminhar aquele que conhece
© Reprodução
Michel Foucault: denúncia contra o caráter normativo e normalizador da escrita
biográfica

Escrever uma biografia de Michel Foucault é como fazer-lhe uma


Escrever uma biografia de Michel Foucault é como fazer-lhe uma
traição, afinal, foi ele um dos primeiros pensadores a denunciar o caráter
normativo e normalizador da escrita biográfica. Invenção da modernidade,
capítulo da invenção do indivíduo, a escrita biográfica é um gênero de
discurso que visa dar uma coerência, construir uma homogeneidade,
estabelecer uma continuidade para experiências que são por definição
dispersas, fragmentárias, descontínuas. A vida de qualquer indivíduo está
sempre em excesso em relação às palavras que falam sobre ela. Nenhum
enredo é capaz de fazer aparecer em toda a sua multiplicidade a vida de
qualquer pessoa. A biografia, como dirá Bourdieu, não passa de uma ilusão,
pois busca construir retrospectivamente um enredo que atravesse uma dada
vida, dando a ela uma teleologia, um objetivo que nunca esteve inscrito nela
desde o começo.
Nos escritos deixados por Foucault, nas inúmeras entrevistas que deu
tratando de aspectos de sua vida, nas falas e declarações dadas pelos seus
amigos, pelos seus familiares, pelos seus colegas e alunos, por aqueles que o
conheceram, nos textos escritos sobre sua obra e sua vida, na correspondência
mantida com vários contemporâneos, podemos encontrar inúmeras imagens
de quem foi Michel Foucault. Uns falarão do menino reservado, solitário,
tímido que conheceram; outros lembrarão do adolescente briguento,
agressivo, irônico, insuportável; outros de seu frágil equilíbrio mental, de sua
angústia, de sua vergonha em relação a seus desejos homoeróticos; muitos
recordarão o seu sorriso cintilante, a sua gargalhada metálica, a sua
generosidade, a sua reação física a qualquer situação de opressão; outros
mencionarão sua arrogância, sua crueldade, sua fala brilhante e arrebatadora,
seu rigor intelectual, seu sarcasmo demolidor. Há tantas imagens de Foucault
quantas foram suas relações pessoais; há tantas figuras de autor, de professor,
de amigo, de amante, de concorrente, quantos possam ter sido os seus
encontros na vida. Por isso, o que se vai escrever aqui também será fruto de
uma escolha, escolha que levará à produção de um dado enredo para a vida
desse autor, enredo que tomará como temática nuclear – dado o caráter desta
publicação – a relação de Michel Foucault com a instituição escolar.
Michel Foucault foi um pensador que se dedicou ao estudo da história
das instituições disciplinares que surgiram no ocidente com a modernidade,
entre elas a instituição escolar. Ele passou também grande parte de sua vida
nessas instituições, já que ingressou na vida escolar quando tinha menos de 4
anos e nunca mais deixou de frequentá-las, seja como aluno ou professor.
Aluno considerado brilhante, tanto por seus colegas, como por seus
professores, mais tarde foi aclamado como um grande professor, um mestre
capaz de hipnotizar verdadeiras multidões reunidas em uma sala, em um
auditório, para escutá-lo. Ele foi alguém capaz de cumprir rigorosamente as
tarefas escolares, de administrar a burocracia de um departamento
universitário, de organizar planos de ensino, de se rebelar contra as normas e a
vida escolar, de se aliar às revoltas estudantis, de ser flagrado atirando pedras
na polícia em um campus universitário ou levando para casa os estudantes
perseguidos pela repressão política. Por isso optei por fazer este recorte em
sua vida, como poderia ter feito muitos outros.

■ A vontade de saber
Paul-Michel Foucault nasceu em Poitiers, França, em 15 de outubro de
1926. Foi batizado com o mesmo nome do avô e do pai, que foram famosos
cirurgiões. Sua mãe, Anne Malapert, também era filha de um importante
cirurgião da cidade. Foucault nasce, assim, cercado pelo saber e pelo poder
médico do qual será, depois, um acerbo crítico. Muitos irão dizer que
escreveu O Nascimento da Clínica (1963), em que estuda o surgimento da
medicina moderna, como um acerto de contas com o passado de sua família,
sobretudo, com seu pai, a quem odiava na adolescência, e que reagiu
violentamente a sua decisão de não cursar medicina. Foucault nunca usará o
nome Paul – com o qual era conhecido na documentação escolar, mas que
retirará de seu nome de autor. Ele é muito mais próximo da mãe, com quem
terá um bom convívio até a morte. Ela é proprietária de terras em Vendeuvre-
du-Poitou, onde tem uma casa conhecida como “o castelo”. Aí Foucault
escreveu partes de alguns de seus livros. Aí esteve dois meses antes de ser
internado e vir a falecer. Sua mãe desempenhou um papel decisivo em sua
educação. Seguindo uma máxima do dr. Malapert, seu pai, para ela o
importante era o filho “aprender a governar a si mesmo”. Será a primeira a
apoiar a decisão de seu filho de não se dedicar à medicina e, ao contratar um
professor particular de filosofia, Louis Girard, pode ter influenciado em sua
escolha futura. Michel Foucault é filho de uma família burguesa, de uma
cidade provinciana e conservadora. Para não se separar de sua irmã mais
velha, Francine, ingressa no liceu Henri-IV, em 1930, quando não havia
completado 4 anos. Fica solitário, no fundo da sala, brincando com lápis de
cores, mas logo aprende a ler. Até 1932 cursa classes infantis e depois o
primário. Em 1936, dá início ao secundário e só deixa o Henri-IV, escola
pública para onde se dirigiam os filhos da pequena burguesia da cidade, em
1940, quando a chegada dos alunos dos liceus parisienses fugidos da guerra
desorganiza a vida escolar no liceu. Foucault passa a tirar notas baixas. Nesse
mesmo ano a mãe o matricula em um colégio particular e religioso, o Saint-
Stanislas, onde estudavam os filhos dos grandes comerciantes e pequenos
industriais da cidade.
As lembranças marcantes dessa época, para Foucault, sempre se passarão
na escola. Como era muito jovem para ser mobilizado pelos alemães, para
realizar trabalhos forçados, ele continuava a estudar, mas tinha de conviver
com a penúria e a falta de lenha para o aquecimento no inverno. Ouve os
ruídos dos bombardeios perto da cidade. Fica sabendo do desaparecimento de
dois de seus professores de filosofia, membros da Resistência capturados pela
Gestapo. Como dirá, mais tarde, a sua geração teve uma infância marcada
pelos acontecimentos históricos: suas lembranças de infância não remetem à
vida familiar ou doméstica, mas à vida pública, à política. Lembra que seu
primeiro grande medo foi quando, em 1934, nazistas assassinaram o
chanceler Dollfus. Recorda a chegada dos refugiados da Guerra Civil
Espanhola e a guerra como horizonte de sua infância, ao que ele atribui o seu
gosto pela história. Mesmo assim, suas notas eram mais do que satisfatórias,
recebendo o segundo prêmio na maioria das matérias, já que era
sistematicamente superado por um colega de nome Pierre Rivière. Foucault
irá se divertir muito e terá realizado talvez uma saborosa desforra quando anos
mais tarde encontrar nos arquivos o relato de um parricida do século XIX e
publicá-lo com o título Eu, Pierre Rivière, que Matei minha Mãe, meu Irmão e
minha Irmã (1973).
Para seus professores, ele foi um aluno com muita sede de conhecimento
e de leituras. Volta e meia ia à casa de um abade da cidade, monsenhor
Aigrain, para ler em sua notável biblioteca. Lia Platão, Descartes, Pascal,
Berg​son. Em junho de 1943 termina o secundário e resolve se preparar para o
concurso de ingresso à École Normale Supérieure da rue d’Ulm, em Paris.
Por causa da guerra, resolve não ir para a capital, frequentar seus grandes
liceus, como seria natural. Reingressa então no Henri-IV, de Poitiers, onde se
prepara para o concurso de ingresso à École Normale. Feito o exame,
Foucault é o centésimo-primeiro classificado, mas a École só admitirá cem
candidatos. Sofre seu primeiro revés escolar, que inaugurará um período
extremamente crítico em sua vida, período decisivo para futuras escolhas
temáticas que irá fazer em sua obra.

■ Um ambiente intolerável
Em 1945, Michel Foucault se instala em Paris, vai cursar no liceu Henri-
IV da cidade o curso de preparação para o ingresso na École Normale. Sendo
de outra cidade, deveria se instalar na categoria de interno, mas, por ter
recursos, alugará um pequeno quarto, pois já se revela um adolescente frágil e
instável emocionalmente, detestando a vida em comum. Forja-se a imagem
de um rapaz arisco, enigmático, fechado em si mesmo. Com 19 anos, ele
começa a viver a solidão de quem é diferente, de quem não segue as normas,
de quem sente desejos que não são como os da maioria. Nesse meio tempo,
conhece Jean Hyppolite, professor de filosofia, especialista em Hegel, que terá
participação decisiva em vários momentos de sua vida e a quem Michel
Foucault vai substituir no Collège de France em 1971. Em julho de 1946 se
submete aos exames e é aprovado em quarto lugar. Na sua banca se encontra
Georges Canguilhem, que Foucault convidará mais tarde para ser o seu
orientador de tese e a quem deve muito de sua forma de pensar a ciência.

© Reprodução
Foucault teve a infância marcada por acontecimentos históricos,
como a chegada dos refugiados da Guerra Civil Espanhola

Inicia na École Normale um período decisivo em sua vida. Conhece aí


Inicia na École Normale um período decisivo em sua vida. Conhece aí
muitos dos pensadores e das pessoas que o influenciarão, faz amizades que
durarão para toda a vida, vive experiências que definirão o rumo de sua obra.
Foucault vivencia na rue d’Ulm todos os tormentos reservados àqueles que são
considerados anormais, diferentes, estranhos, esquisitos, pelo ambiente
escolar. Não bastasse o cotidiano marcado pela convivência obrigatória, pela
promiscuidade, pela competição exacerbada entre adolescentes, conscientes de
fazerem parte de uma elite do país, ainda havia a necessidade de se destacar e
de brilhar. Aí se misturam disputas acadêmicas e políticas, com simpatias e
antipatias de todos os tipos, tornando a vida insuportável, como se lembrará
mais tarde. Quando, em opúsculo de 1971, arrolar a escola entre o que
considera intolerável, talvez estivesse se referindo a essa experiência
traumática.
Foucault vivenciava com muita culpa e vergonha sua condição de
homossexual. A França, nos anos 1950, era um país profundamente repressor
em relação ao homoerotismo, reservando a ele a clandestinidade. Michel
Foucault, ao retornar de excursões noturnas pelos bares de frequência
homossexual, de relações sexuais fortuitas, quedava-se prostrado de vergonha,
entrava em estado depressivo, adoecia, precisando ser socorrido muitas vezes
pelo médico e pelo psiquiatra da École. Foucault se fechava na solidão e
começava a trilhar um caminho que o levaria a sucessivas tentativas de
suicídio. Sua principal arma: a ironia, o sarcasmo. Logo é visto como
insuportável, pois zomba de todos, a todos provoca, agride. Dá apelidos
ofensivos aos colegas com quem antipatiza, com os quais se atraca em público,
notadamente no refeitório. Todos o têm por maluco. Quando em 1948 tenta
o suicídio, o pai o leva ao hospital Sainte-Anne, onde o doutor Delay, um
importante psiquiatra o examina. É seu primeiro contato com a instituição
psiquiátrica, encontro que será decisivo em sua vida. Voltará muitas vezes ao
Sainte-Anne como estudante de psiquiatria e depois como professor dessa
disciplina. É inegável a relação que há entre a escolha dos temas de suas duas
primeiras obras, Doença Mental e Psicologia (1954) e História da Loucura
(1961), e esta vivência da linha cinza que separa a loucura da racionalidade.
Após esse episódio, passa a viver isolado, solitário, no quarto da enfermaria da
École, onde será muitas vezes acompanhado pelo dr. Étienne, para evitar que
cometa o irremediável. Tem verdadeiro fascínio pela morte e pelo suicídio,
encarando de frente a dimensão trágica da existência, o que de certa forma
prepara o seu encontro com o pensamento de Nietzsche.

■ Subjetividade e verdade
Sentindo-se um pária, Foucault busca, em sua obra e em suas reflexões,
reconciliar-se consigo mesmo, reformular a imagem que tem de si. Quando
em suas últimas obras começa a falar do cuidado de si, da escrita de si, a
reivindicar que a vida deva ser esculpida como uma obra de arte, Foucault
estará se remetendo a um outro tipo de pedagogia, a um outro tipo de
educação: àquela exercida por si sobre si mesmo, que chamará de subjetivação,
contrapondo-a à sujeição, princípio que rege a escola em nossa sociedade.
Dessa experiência dolorosa nascerá o pensador da recusa, da rebelião
cotidiana contra o poder, que tenta se apossar e moldar corpos e almas.
Nascerá sua crítica profunda à instituição psiquiátrica, médica, jurídica,
escolar, que chamará de intolerável. Ele será então um homem feliz por ter
feito um trabalho de recuperação de si mesmo por meio da pesquisa, do
trabalho teórico e de suas relações pessoais e políticas.

© Reprodução
Foucault busca, em sua obra e em suas reflexões, reconciliar-se consigo mesmo,
reformular a imagem que tem de si

Licencia-se em filosofia pela Sorbonne, em 1948. Resolve também se


licenciar em psicologia, o que ocorre em 1949, mesmo ano em que obtém um
diploma em psicopatologia pelo Institut de Psychologie de Paris, sempre com
Daniel Lagache. Está próximo da análise existencial proposta por Merleau-
Ponty, de quem foi aluno na École Normale, e do psicólogo suíço Ludwig
Binswanger, do qual traduz o livro O Sonho e a Existência, para o qual escreve
um longo prefácio, em 1954. Mais tarde dirá que Binswanger foi fundamental
para que pensasse em fazer uma história das formas de experiência. Estuda a
língua alemã para ler Heidegger, Kant, Hegel, Marx. Como é comum no
pós-guerra, diante da vergonha da adesão francesa ao nazismo, grande parte
da juventude intelectual adere ao marxismo. Foucault filia-se ao Partido
Comunista Francês, o PCF, em 1950, levado por seu professor de filosofia na
École Normale, Louis Althusser, que, como Foucault, trilha o caminho de
sombras que separa a razão da loucura. Nesse mesmo ano, sofre seu segundo
revés escolar, ao tentar ser aprovado na agrégation (concurso que na França
habilita os aprovados a assumirem os mais altos postos no ensino dos liceus
ou lecionarem em determinadas faculdades), tendo de ser vigiado para não
cometer “alguma bobagem”, nas palavras de Althusser. Em 1951, é aprovado
em terceiro lugar, tendo mais uma vez na banca a presença de Georges
Canguilhem, que introduziu a sexualidade como tema de dissertação. Suma
ironia, Foucault reclama de tal tema ser proposto. Não querendo lecionar nos
liceus, Foucault solicita ingresso na Fundação Thiers, que concede bolsas para
que candidatos bem classificados na agrégation possam desenvolver em boas
condições as suas teses. Novo período de internamento escolar, novo período
de conflitos e agressões aos colegas de instituição, novamente todos o
detestam e ele detesta a todos, com exceção talvez de um dos colegas, por
quem se apaixona. Uma vez rejeitado, a agressividade se redobra. Mas em
1952 torna-se professor-assistente da cadeira de psicologia na Universidade
de Lille, por indicação de Louis Althusser, e leciona psicologia na École
Normale Supérieure. Assistem às suas aulas: Jean-Claude Passeron, Paul
Veyne, que se tornam seus amigos por toda a vida, além de Jacques Derrida.
Em 1953 abandona o PCF, entre outras coisas por se sentir constrangido
por fazer parte de um partido que condenava o homossexualismo como um
vício burguês. A homossexualidade sempre o colocava à margem das
instituições e aí ele vai alojar seu olhar e seu pensamento. Conhece o jovem
músico Jean Barraqué com quem passa a viver uma relação amorosa, e a
música torna-se um elemento importante nas suas reflexões filosóficas. Em
1955, Michel Foucault resolve deixar a França, pois se sentia mal com o clima
repressivo do país. Por indicação de Georges Dumézil, que se tornará seu
grande amigo e conselheiro, vai ocupar o cargo de leitor de francês na Maison
de France, em Upsala, na Suécia, onde redige sua tese de doutorado, ajudado
pela impressionante biblioteca da cidade, a Carolina Rediviva. Em 1958,
deixa a Suécia e vai coordenar o centro cultural francês recém-aberto em
Varsóvia, onde se envolve com um agente da polícia secreta e tem de deixar o
país às pressas. No mesmo ano, vai dirigir o Instituto Cultural em Hamburgo,
na Alemanha. Terminada sua tese principal, História da Loucura, redige a tese
complementar, que versa sobre a antropologia de Kant. Em 1960, volta a
Paris e procura Jean Hyppolite para ser seu orientador de tese; seu patrono, na
verdade. Este aceita apenas apresentar a tese complementar e o remete a
Georges Canguilhem, que fora fundamental para o desenvolvimento do
estruturalismo na França e para a contestação das filosofias do sujeito e da
consciência encarnadas pela tradição hegeliano-marxista, pela fenomenologia
e pelo existencialismo sartriano. Em 1961, Foucault defende sua tese. Ao sair
em livro, ela é saudada por Michel Serres como “o livro de todas as solidões”.
A solidão dos que a sociedade exclui, daqueles sobre os quais os discursos só
se debruçam para escarnecer e vituperar, para imprecar, para conjurar, para
buscar corrigir e curar.

■ As barricadas e o Collège de France


Em 1962, é nomeado professor titular do departamento de filosofia da
Universidade de Clermont-Ferrand, ainda como professor de psicologia, aí
permanecendo até 1966. Publica O Nascimento da Clínica, em 1963, e As
Palavras e as Coisas, em 1966, livro que o consagra. Nele estuda as condições
históricas que possibilitaram a emergência do Homem como objeto de
conhecimento, na modernidade, e o que possibilitou o surgimento das
ciências humanas. Nessa década, dedica vários textos à literatura,
notadamente àquela marcada pela transgressão. A referência a Nietzsche
torna-se central em todos os seus textos. Participa da comissão que elabora a
reforma universitária proposta pelo Ministro da Educação do governo
gaullista.
Em setembro de 1966 deixará novamente a França e irá para a Tunísia
ensinar filosofia na Universidade de Túnis. Mora em uma pequena aldeia à
beira-mar, Sidi Bou Said. Adora o sol, o mar, faz longas caminhadas, lê e
escreve perto das ruínas de Cartago, como costumava dizer. Torna-se um
homem feliz. Desde 1961 conhecera um estudante de filosofia, Daniel
Defert, com quem passa a viver uma história de amor que duraria 25 anos, até
sua morte. Este o vem visitar na África, onde viverá sua primeira experiência
política decisiva. Os episódios da revolta estudantil francesa de 1968, que não
vivenciou, são antecedidos por duas ondas de revolta dos estudantes tunisinos
provocados pela dura repressão do regime do país e a derrota dos árabes na
Guerra dos Seis Dias, para Israel. Os tumultos antissemitas se espalham pela
capital tunisina. Foucault fica chocado com os episódios, mas não deixa de
protestar contra as prisões e as torturas de estudantes e não se nega a esconder
em sua casa alguns líderes do movimento e o pequeno mimeógrafo onde são
impressos seus panfletos. Ele falará mais tarde que a paixão que movia os
estudantes o impressionara, o desapego à vida, a entrega a uma causa sem
nada querer ganhar em troca, sem nenhuma sede de poder. Aí se pode
vislumbrar a emergência do Foucault militante dos anos 1970, o intelectual
generoso disposto a colocar suas energias, sua escrita, seu dia a dia a serviço da
causa de todos aqueles perseguidos pelo poder, de todas as minorias:
imigrantes, prisioneiros, operários, estudantes, homossexuais terão sua
solidariedade e sua ação imediata.

© Fang Lijun Serie 2, nº 2,óleo sobre tela, 1992. Reprodução


Pintura do artista chinês Fang Lijun. Foucault escreveu “o livro de todas as
solidões”, a solidão dos que a sociedade exclui

Em 1969 retorna à França e vai ser responsável pela direção e pela


organização do departamento de filosofia da Universidade de Vincennes,
centro experimental criado como reação ao Maio de 1968, onde devem ser
aplicados os novos princípios da autonomia, da pluridisciplinaridade e da
participação dos usuários. Volta e meia a universidade é agitada pelas greves e
ocupações dos estudantes. Foucault é visto trocando tapas com um militante
comunista mais radical, organizando barricadas ou atirando pedras nos
policiais que invadiam o campus, sendo preso e levado para Paris. Mas ele
cansa desse clima e começa a preparar seu ingresso no Collège de France,
causa que já vinha sendo defendida por Jean Hyppolite, Jean Vuillemin e
Georges Dumézil, muito influentes junto àquela instituição. Mas Jean
Hyppolite morre em 1968 e é justo a sua vaga que será ocupada por Foucault.
Em 1969, publica A Arqueologia do Saber, em que responde a várias das
incompreensões e críticas formuladas ao As palavras e as Coisas, livro em que a
influência formalista, que logo abandonará, é mais nítida e no qual busca
esclarecer os principais conceitos que sua démarche filosófica tinha
introduzido.
Em 2 de dezembro de 1970, pronuncia sua aula inaugural no Collège de
France, que depois será publicada com o título A Ordem do Discurso. Sua
candidatura foi defendida por Jean Vuillemin, que propusera a criação de uma
cátedra em história das formas de pensamento, para que viesse ocupá-la. A
eleição não foi tranquila, de novo as instituições acadêmicas mostravam a sua
reserva em relação à “fama do candidato”, agora acrescida do fato de que seria
um esquerdista descabelado. Aprovada, sua candidatura, antes de ser remetida
ao Ministro da Educação, deveria ser submetida ao parecer da Academia de
Ciências Morais e Políticas. Dos 31 votantes, 27 compareceram, 5 votos estão
em branco e 22 estão marcados com uma cruz. Mesmo nomeado, ficava a
marca de mais uma rejeição da instituição escolar e acadêmica para uma
pessoa que, segundo testemunho de todos, só se dedicava com grande rigor e
responsabilidade ao seu trabalho. Por isso, talvez, o tom irônico do tema que
escolhe para sua aula inaugural: como as instituições impõem limites à
liberdade dos discursos, quais os mecanismos sociais de controle do perigo da
fala. A suspeita repetida sempre em relação a quem ousa tomar a palavra,
ocupar o lugar de autor.

■ A morte
Os anos 1970 são marcados pela constante militância política, que se
Os anos 1970 são marcados pela constante militância política, que se
conecta com a própria mudança em seus temas de pesquisas. A arqueologia
do saber é substituída ou passa a conviver com a genealogia do poder. Em
seus cursos anuais no Collège de France desenvolve os temas que o
preocupavam então e que resultarão na publicação de Vigiar e Punir (1975) e
A Vontade de Saber (1976), primeiro volume de sua História da Sexualidade.
Passa a tratar dos mecanismos de exclusão que sustentam uma dada cultura.
Negando a hipótese repressiva, comum aos discursos em torno da
sexualidade, nesse momento, busca entender por que o Ocidente não cansou
de fazer discursos em torno do sexo, instituindo o que chamou de dispositivo
da sexualidade, aquele que julga que nossa verdade mais recôndita encontra-se
na maneira como praticamos o sexo. Foucault vai procurar encontrar na
história o momento em que emergiu esse sujeito de desejo que a psicanálise
não cansa de invocar. Isso leva seu projeto de uma história da sexualidade a
ficar paralisado por quase oito anos, já que o recua para os primórdios da
civilização ocidental. Com os gregos e romanos antigos vai encontrar uma
outra forma de relação com os prazeres, com o corpo.

© Egon Schiele, Die Umarmung (Die Liebenden), óleo sobre tela, 1917. Reprodução
Pintura do artista austríaco Egon Schiele. Foucault nega a hipótese repressiva,
comum aos discursos em torno da sexualidade

Publicados pouco antes de sua morte, O Uso dos Prazeres e O Cuidado de


Si (1984) são fruto desse longo período de estudos e leituras, período em que
chegou a ser anunciado o esgotamento de seu pensamento. Perío​do em que,
possivelmente, ficou sabendo do caráter da doença que o acometia e que o
debilitava. Doença contra a qual teve de lutar enquanto corrigia as provas
finais desses dois livros. Neles emerge uma espécie de nova ética da existência,
ética que vinha sendo praticada por Foucault em seus próprios
relacionamentos amorosos e sexuais. O uso do corpo na busca dos prazeres
sem estes virem acompanhados da pergunta pela verdade de nosso ser. As
práticas sadomasoquistas, com as quais se deleita nas saunas californianas,
quando passa a ir regularmente ministrar um seminário anual na Universidade
de Berkeley, a partir de 1978, fazem parte do que chamava a experimentação
de novas formas de afetos, de novas formas de relacionamento e de prazeres.
Coerente com seu pensamento heterotópico, Foucault não esperava por
mudanças sociais que viriam no futuro, mas nos convidava a criar o novo no
presente, em todas as relações em que nos encontramos.
Foucault passa a viajar regularmente a vários países. Vem ao Brasil em
1965, a convite de Gérard Lebrun, e retornaria ainda em 1973, a convite da
Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde proferiu uma série de
conferências que deu origem ao livro A Verdade e as Formas Jurídicas. Retorna
em 1974 e em 1975, quando do assassinato de Vladimir Herzog. Faz uma
declaração pública negando-se a ministrar conferências num país sem
liberdade, e parte às pressas. Em 1976, para desafiar o regime e a proibição
oficiosa que pesa sobre ele, aceita fazer uma série de conferências para a
Aliança Francesa em Salvador, Recife e Belém.

© Cildo Meireles, inserções em circuitos ideológicos, projeto cédula, 1970. Reprodução

Obra do brasileiro Cildo Meireles. Foucault partiu às pressas do Brasil quando do


assassinato do jornalista Vladimir Herzog, negando-se a ministrar conferências
em um país sem liberdade

Michel Foucault morre vítima da AIDS em 25 de junho de 1984,


Michel Foucault morre vítima da AIDS em 25 de junho de 1984,
cercado de seus amigos e amores, com quem ainda brincava e ria. De manhã
cedo, a voz de seu grande amigo, Gilles Deleuze, se levanta rouca e
emocionada, no pátio atrás do hospital de La Pieté-Salpêtrière, de que tanto
falara Foucault em seus livros. Ele lê um trecho do prefácio ao livro O Uso dos
Prazeres, onde praticamente expunha o que tinha sido a sua trajetória
intelectual e onde se encontra uma frase que nos interpela a todos: “De que
valeria o empenho do saber se assegurasse apenas a aquisição de
conhecimentos, e não, de certo modo, e na medida do possível, o descaminho
daquele que conhece”.

DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR é professor titular do Departamento de


História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
É coorganizador de Cartografias de Foucault (Autêntica, 2008) e autor de A
Invenção do Nordeste e Outras Artes (Cortez, 2006) e Nordestino: uma
Invenção do Falo: uma História do Gênero Masculino (Catavento, 2003)
FOUCAULT PENSA A EDUCAÇÃO

Por Sílvio Gallo e Alfredo Veiga-Neto


Ensaio para uma filosofia da
educação
A filosofia precisa abalar os fundamentos educacionais,
tirar-lhes o chão, para que o pensamento venha à tona uma
vez mais

Se quisermos um bom exemplo de atividade intelectual interdisciplinar,


poderemos encontrar na produção de Michel Foucault o que há de mais
representativo nesse difícil exercício de não se ater a um campo específico do
saber, de não se vincular a uma única corrente epistemológica e nem mesmo
se preo​cupar em estar junto com a maioria dos intelectuais de seu tempo. No
caso de Foucault, talvez seja até mais adequado falarmos em
transdisciplinaridade, pois ao invés de se valer de saberes híbridos, o que ele
fez foi cruzar livremente através de campos tão distintos como a filosofia, a
psiquiatria, a história, o direito, a sociologia, a linguística, a biologia, a
literatura e as artes em geral. Aqui, logo surge uma primeira pergunta: qual o
objetivo desse exercício transdisciplinar de Foucault? Será que ele tinha algum
interesse epistemológico? Seria uma tentativa de criar um novo sistema
filosófico capaz de unificar o conhecimento? É ele mesmo que nos responde,
num célebre texto intitulado “O Sujeito e o Poder”, escrito um pouco antes de
sua morte, ocorrida em 1984: “Meu objetivo foi criar uma história dos
diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-
se sujeitos. [...] é o sujeito que constitui o tema geral de minha pesquisa”.
Assim, como filósofo, Foucault desenvolveu minuciosos estudos
históricos, de modo a nos mostrar que o sujeito moderno não é tão somente
uma invenção da modernidade, mas que o próprio conceito moderno de
sujeito – ou seja, a ideia que hoje fazemos do que é ser um sujeito – é uma
invenção recente. E, indo além, ele chegou a afirmar, em As palavras e as
Coisas, que talvez o fim dessa invenção esteja próximo.
A fim de dar conta desse projeto intelectual, Foucault desenvolveu o que
ele mesmo chamou de três modos de investigação, compreendendo o sujeito
não como algo dado, algo que estivesse desde sempre aí, mas como algo
produzido por diferentes tipos de saberes, por relações de poder e por relações
que cada um estabelece consigo mesmo.
Voltaremos a essa questão, mostrando que esses três modos de
investigação seguidos por Foucault permitem que, com fins didáticos, se
estabeleçam três domínios capazes de agrupar a sua extensa produção
intelectual. Por enquanto, vamos procurar caracterizar mais detalhadamente
sua maneira um tanto peculiar de compreender a atividade filosófica.

■ Uma reflexão sobre a relação com a verdade


Vimos que a produção teórica de Michel Foucault constitui-se como uma
espécie de pensamento transversal, não ficando circunscrito a uma única área
de saber. Ao transitar por campos tão variados, ele acabou se tornando um
autor difícil de classificar. Alguns chegam até mesmo a questionar se sua
produção poderia ser considerada filosófica; mas não são poucos os que
defendem sua “condição de cidadania” na área da filosofia. O mesmo se passa
com os historiadores.

© Reprodução
Foucault compreendia o sujeito não como algo dado, mas como algo produzido
por diferentes tipos de saberes e por relações que cada um estabelece consigo
mesmo

Essa questão do estatuto filosófico do pensamento foucaultiano é um


tanto polêmica. Deriva do entendimento não canônico que ele tinha acerca do
que era, afinal, filosofar. Não entraremos aqui nessa polêmica. Pensamos não
estar mais em questão o caráter filosófico de sua produção, inclusive porque
ele nos mostra que a filosofia é uma forma de interrogarmos nossa relação
com a verdade, de questionarmos o que identificamos como verdadeiro e qual
a razão que nos leva a isso. Assim, em vez de pensar a filosofia como um
inquérito capaz de levar a determinadas verdades, Foucault a compreendia
como uma prática de pensarmos sobre o próprio pensamento. O que mais
interessava para ele era perguntar e responder sobre os “caminhos” que nos
levaram a aceitar e acreditar que isso ou aquilo se constitui, num determinado
momento histórico, numa verdade a ser admitida e proclamada por todos.
Portanto, isso implica uma atitude completamente avessa à busca de qualquer
tipo de “certeza pronta”, de “verdades permanentes”, de “princípios
universais”.
Vejamos como o filósofo pronunciou-se a esse respeito, numa entrevista
que concedeu ao Le Monde em 1980: “O que é a filosofia senão uma maneira
de refletir, não exatamente sobre o que é verdadeiro e o que é falso, mas sobre
nossa relação com a verdade? Lamenta-se às vezes que não haja filosofia
dominante na França. Tanto melhor. Nenhuma filosofia soberana, é verdade,
mas uma filosofia, ou melhor, a filosofia em atividade. É filosofia o
movimento pelo qual, não sem esforços, hesitações, sonhos e ilusões, nos
separamos daquilo que é adquirido como verdadeiro, e buscamos outras regras
de jogo. É filosofia o deslocamento e a transformação dos parâmetros de
pensamento, a modificação dos valores recebidos e todo o trabalho que se faz
para pensar de outra maneira, para fazer outra coisa, para tornar-se diferente
do que se é [...]”.
E, mais adiante, ainda na mesma entrevista, Foucault evidencia o caráter
ético dessa relação com a verdade: “Eu dizia há pouco que a filosofia era uma
maneira de refletir sobre nossa relação com a verdade. É preciso acrescentar:
ela é uma maneira de nos perguntarmos se esta é a relação que temos com a
verdade, como devemos nos conduzir? Acredito que se fez e que se faz
atualmente um trabalho considerável e múltiplo, que modifica
simultaneamente nossa relação com a verdade e a maneira de nos
conduzirmos. E isso em uma conjunção complexa entre toda uma série de
pesquisas e todo um conjunto de movimentos sociais. É a própria vida da
filosofia”.
Tecendo alguns comentários acerca da sua própria obra, o filósofo disse
que seus livros podiam ser lidos como livros-experiência; mesmo naqueles em
que havia sido mais metódico e estruturado, seu objetivo principal sempre
fora não propriamente declarar e transmitir verdades, mas sim trazer
problematizações sobre o que se considerava verdadeiro em determinado
campo do saber e em determinado momento histórico. Mais de uma vez, ao
se referir às suas obras, Foucault usou a expressão livros-bomba, indicando o
seu caráter transgressivo, desacomodador. Aqui, a transgressão não se dá
simplesmente para contrariar ou destruir, mas para instigar e desconstruir
determinadas maneiras tradicionais de pensar.
Vemos, assim, que Foucault compreende a filosofia como uma espécie de
“diagnóstico do presente”; um diagnóstico que permite que identifiquemos
nossas possibilidades de ação. Para ele, isso é a liberdade.

■ Pensar a educação com Foucault


Apesar da multiplicidade de campos de trabalho abordados por Foucault,
a educação, porém, não foi uma das áreas às quais ele tenha dedicado seu
tempo e seu pensamento. Não tendo sido, certamente, o foco de suas
investigações, ele dedicou-se à educação de uma forma um tanto marginal,
transversal. Sem nenhum exagero, pode-se dizer que em toda a produção
foucaultiana jamais se vai encontrar qualquer recomendação sobre como deve
funcionar a educação, sobre como deve ser conduzida a pesquisa e a prática
pedagógicas. Em nenhum lugar da sua obra se encontrarão advertências éticas
e técnicas sobre o papel do professor, sugestões sobre a educação no seio da
família ou na escola, exortações a essa ou àquela política educacional. Por que,
então, falarmos de Foucault na educação? Ou, melhor dizendo, por que
fazermos Foucault falar à educação? Como isso é possível? Como fazer isso?
De uma maneira resumida, podemos dizer que a articulação de todo o
pensamento de Foucault com a educação pode ser feita tomando o sujeito
como uma dobradiça, isto é, como o elemento que, por excelência, é capaz de
fazer a conexão entre ambos. De um lado, como vimos, o sujeito foi o “tema
geral da pesquisa” do filósofo; de outro, o sujeito é o elemento central para
qualquer pedagogia, ou seja, por estranho que possa parecer, o sujeito é o
objeto-objetivo de qualquer teorização ou prática educacional. Dessa maneira,
é justamente o sujeito que acaba funcionando como um, digamos,
denominador comum à perspectiva foucaultiana e ao pensamento pedagógico.
Mas aqui é preciso um alerta. Enquanto Foucault entende o sujeito como
uma invenção moderna, a imensa maioria das correntes pedagógicas – senão
sua totalidade... – entende o sujeito como uma entidade preexistente, como
um a priori, a ser “trabalhado”, isto é, a ser educado. A rigor, cada um não vê
o sujeito da mesma maneira que o outro está vendo; no limite e por mais
paradoxal que pareça, não se trata de um mesmo sujeito aquilo que cada um
chama de sujeito. Mas, seja como for, para cada um a educação tem a maior
importância. Para Foucault, ela funciona como um conjunto de dispositivos e
estratégias capazes de subjetivar, ou seja, constituir/fabricar os sujeitos. Para a
pedagogia, a educação funciona para “transformar” algo que estava desde
sempre aí, isto é, dar o “acabamento” em algo que já existia como potência e
que estava à espera de ser realizado.
Eis por que a filosofia de Foucault e as pesquisas históricas por ele
empreendidas interessam tanto para a educação. Não se trata tão somente de
que, com o filósofo, podemos compreender de outras maneiras a educação e o
sujeito modernos, mas também se trata de nos valermos dele para analisarmos
e problematizarmos o que se diz sobre a teorização e a prática educacionais
modernas.
Já nos anos 1970 começaram a surgir os primeiros estudos que, numa
perspectiva foucaultiana, se ocuparam da educação. Isso aconteceu sobretudo
na França, na Espanha e na Inglaterra. No Brasil, foi a partir da década
seguinte que, sob a inspiração de Vigiar e Punir, a pesquisa educacional
começou a sentir os primeiros impactos da produção foucaultiana. Nesse
início, tratava-se de alguns trabalhos que privilegiavam sobretudo a questão
do disciplinamento, buscando constatar nas escolas brasileiras as teses
levantadas pelo filósofo francês sobre essa instituição moderna. Nos anos
1990, novo impacto, mais significativo, mais abrangente. Trata-se da
produção do “Grupo de Porto Alegre” que, em torno de Tomaz Tadeu da
Silva e Alfredo Veiga-Neto, buscou os diversos caminhos possíveis dos
estudos foucaultianos em educação.
Desde então, a produção nacional nesse campo vem crescendo, através de
livros, artigos, apresentações em congressos, dissertações e teses. Aqueles que
quiserem conhecer uma parte expressiva do que se produziu em nosso país,
até recentemente, encontrarão várias referências e comentários no livro de
Veiga-Neto, Foucault e a Educação (Autêntica, 2003). Ainda no que concerne
a sugestões bibliográficas, não podem deixar de ser recomendados tanto o
livro que Tomaz Silva organizou em 1994, e foi editado pela editora Vozes
sob o título O Sujeito da Educação: Estudos Foucaultianos, quanto o “Dossiê
Michel Foucault”, da revista Educação & Realidade, organizado por Alfredo
Veiga-Neto e Rosa Bueno Fischer, publicado em 2004.

© Ross M Brown, Ruína do Presente, óleo sobre tela, 2010. Reprodução


Pintura do artista americano Ross Brown, intitulada “Ruína do presente”. Foucault
compreende a filosofia como uma espécie de diagnóstico do presente

Talvez simplificando um pouco – mas sem que isso implique qualquer


incorreção –, costuma-se dizer que os “usos” que se pode fazer do pensamento
foucaultiano para a educação são de dois tipos. Tanto se pode trazer para as
nossas pesquisas educacionais os conceitos que o filósofo construiu – a seu
modo e para dar conta de suas investigações –, tais como poder, disciplina,
governamentalidade, discurso, dispositivo, quanto se pode assumir a perspectiva
foucaultiana como um “fundo” sobre o qual pensamos nossas investigações e
desenvolvemos nossas práticas educativas. No primeiro caso, costuma-se falar
em aplicação da analítica foucaultiana “sobre” temas educacionais; isso
significa tomar aqueles conceitos desenvolvidos por Foucault como
ferramentas para o trabalho investigativo. No segundo, fala-se em “repensar”
a educação; isso significa tornar uma vez mais o pensamento possível em
educação, mas agora a partir de outra perspectiva.
De certa maneira, os textos que constituem este volume ora se centram
mais num, ora mais noutro desses dois tipos. Os interessados no primeiro
“tipo de usos” comentado acima felizmente já têm à sua disposição uma
numerosa e variada bibliografia, que discute questões metodológicas e de
exemplos daquilo que tem sido feito e daquilo que se pode e não se pode fazer
com Foucault e a partir dele. Dada essa quase abundância, este texto não se
ocupará em levar adiante esse primeiro “tipo de usos”; o que nos interessará, a
partir daqui, é discutirmos por que razão se pode dizer que Foucault torna
mais uma vez possível pensarmos a educação.
Para tanto, é útil começar estabelecendo um contraste entre as
possibilidades que Foucault abre para nós e aquela que tem sido a forma
canônica – ou, pelo menos, a hegemônica em nosso país – de pensar a
educação. Aí abundam duas espécies de posturas, que atrapalham o
pensamento e até mesmo o impedem: a primeira espécie é a das certezas
prontas dos dogmatismos de toda ordem, que creem numa verdade revelada,
seja por um deus, pela natureza ou pela história, como no caso das visões
religiosas, dos positivismos, de certos marxismos. A segunda espécie é a das
certezas prontas das “novidades”, que são anunciadas a cada ano, e que
propõem uma “nova visão”, uma nova verdade que substituirá aquela dos
dogmatismos, tornando-se ela mesma um novo dogmatismo.
Pensamos que a produção filosófica de Foucault, quando deslocada para
se pensar a educação, pode agir como um antídoto contra essas posturas
dogmáticas, tornando o pensamento de novo possível.
Antes de prosseguir, um parêntese. No Brasil, a filosofia tem sido
compreendida como um dos fundamentos da educação, juntamente com a
história, a sociologia, a psicologia. Estas áreas são vistas como conhecimentos
básicos sobre os quais se assentam os saberes pedagógicos, isto é, como
verdades primeiras, premissas, que embasam as verdades pedagógicas. Nos
cursos de pedagogia é comum que disciplinas de Filosofia ou Filosofia da
Educação, assim como de História, Sociologia e Psicologia, apareçam nos
primeiros semestres, obedecendo a esta lógica.
Se a filosofia, como afirma Foucault, é o exercício da suspeita, a busca
inquietante por aquilo que ainda não pensamos, uma interrogação sobre a
própria maneira de nos conduzirmos, então a filosofia da educação precisa ser
um questionar-se sobre as certezas prontas do universo educacional. Para
além de ser um dos pilares, um dos fundamentos da educação, a filosofia
precisa ser para a educação justamente aquilo que lhe tira os fundamentos,
aquilo que lhe tira o chão, fazendo com que o pensamento uma vez mais
venha à tona. Esta parece ser a principal lição que temos a aprender com a
obra de Foucault, nós que nos dedicamos à área de educação.

© Stephanie Pierce, Sem título, óleo sobre tela, 2009. Reprodução


Pintura da americana Stephanie Pierce. Foucault afirma que a filosofia é o
exercício da suspeita, uma interrogação sobre a maneira de nos conduzirmos

Dizendo de outro modo, para se pensar a educação, para se fazer uma


filosofia da educação, a produção foucaultiana pode ser tomada como ponto
de partida, mas uma partida que não anuncia de antemão o ponto de chegada,
que permita que o pensamento aconteça livremente e não o circunscreva em
cânones predefinidos. Se quisermos falar com Deleuze e Guattari, teremos
em Foucault uma espécie de “filosofia menor”, de “filosofia nômade”,
opondo-se à filosofia instituída, definidora dos cânones do pensamento oficial
(a respeito desse tema, sugerimos a obra Mil Platôs, em especial o quinto
volume da edição brasileira e também o livro Deleuze e a Educação, de Silvio
Gallo). Se na filosofia instituída as certezas das premissas já anunciam de
antemão o ponto de chegada, um pensamento nômade é aquele que não tem
caminhos definidos a priori, pois segue ao léu, segundo o fluxo dos
acontecimentos, fazendo descortinar perspectivas novas, muitas vezes
insuspeitadas.
Produzir uma Filosofia da Educação com inspiração foucaultiana,
portanto, é operar deslocamentos no pensamento. E é o próprio Foucault
quem nos inspira nesse empreendimento de deslocamento do pensamento,
que permite a emergência de novas possibilidades, de caminhos outros, como
veremos a seguir.

■ Os “três domínios” da produção foucaultiana


Foucault publicou o primeiro volume (A Vontade de Saber) de sua História
da Sexualidade em 1976; o segundo e o terceiro só viriam à luz em 1984,
pouco antes de sua morte. Esse período foi marcado por intensas pesquisas
nos textos antigos, sobretudo gregos e romanos, que mudaram
completamente a direção do projeto original. Por isso, ele introduz o segundo
volume (O Uso dos Prazeres) com uma explicação sobre o deslocamento
efetuado. Vale a pena lermos um trecho desse esclarecimento aos leitores:
“Um deslocamento teórico me pareceu necessário para analisar o que
frequentemente era designado como progresso nos conhecimentos: ele me
levara a interrogar-me sobre as formas de práticas discursivas que articulavam
o saber. E foi preciso também um deslocamento teórico para analisar o que
frequentemente se descreve como manifestações do ‘poder’: ele me levara a
interrogar-me sobretudo sobre as relações múltiplas, as estratégias abertas e as
técnicas racionais que articulam o exercício dos poderes. Parecia agora que
seria preciso empreender um terceiro deslocamento a fim de analisar o que é
designado como ‘o sujeito’; convinha pesquisar quais são as formas e as
modalidades da relação consigo através das quais o indivíduo se constitui e se
reconhece como sujeito. Após o estudo dos jogos de verdade considerados
entre si – a partir do exemplo de um certo número de ciências empíricas dos
séculos XVII e XVIII – e posteriormente ao estudo dos jogos de verdade em
referência às relações de poder, a partir do exemplo das práticas punitivas,
outro trabalho parecia se impor: estudar os jogos de verdade na relação de si
para si e a constituição de si mesmo como sujeito, tomando como espaço de
referência e campo de investigação aquilo que poderia chamar-se ‘história do
homem de desejo’”.
Nesse trecho o pensador francês nos fornece, ele próprio, uma visão geral
de sua produção teórica, articulada em torno de três processos, todos eles
frutos de deslocamentos teóricos: a análise do “progresso” dos conhecimentos,
com uma interrogação sobre as práticas discursivas, isto é, o estudo dos jogos
de verdade entre si; a análise das manifestações do poder, com uma
interrogação em torno das múltiplas relações de poder, isto é, o estudo dos
jogos de verdade em relação ao poder; por fim, a análise da constituição do si
mesmo como sujeito, com uma interrogação em torno do desejo, isto é, o
estudo dos jogos de verdade na relação de si para si.
Essas três dimensões da produção teórica de Foucault já foram
identificadas como três momentos estanques e independentes. Vários autores
chegam a falar em três métodos distintos, ou então em três dimensões
sucessivas: a arqueologia, voltada para as questões epistêmicas; a genealogia,
envolvida com as relações de poder; e finalmente a ética, voltada para a análise
dos processos de constituição de si mesmo. Miguel Morey, na introdução à
edição espanhola do texto “Tecnologias do Eu”, forneceu uma visão mais
articulada dessas três dimensões, como que constituindo “eixos” em torno de
uma ontologia do presente. Na mesma direção proposta por Morey, que
julgamos mais adequada à própria percepção de Foucault, quando nos oferece
aquela visão perspectiva de sua produção, preferimos identificar na produção
foucaultiana três “domínios”: o do ser-saber; o do ser-poder; e o do ser-consigo.
Parece-nos que cada um desses domínios pode ter implicações
interessantes no pensamento educacional contemporâneo, se quisermos
investir num pensamento aberto, produtivo, criativo, não afeito a verdades
prontas e definitivas. A seguir, indicamos as potencialidades que vemos em
cada um desses domínios, sem a menor pretensão de fazer uma análise, muito
menos uma análise exaustiva.

■ No primeiro domínio: educação e ser-saber


Para que a pedagogia pudesse ousar reivindicar um estatuto científico, foi
necessário que os saberes se constituíssem enquanto representação do real e
que o próprio homem se fizesse alvo de representação, através das ciências
humanas. Só quando ele próprio torna-se objeto científico é que se pode
arriscar fazer ciência sobre sua formação.
No palco da episteme moderna, da representação, o saber científico
constrói-se então numa busca de ordenação do mundo. Ora, as diversas
ciências – ou as várias disciplinas – constituem-se em esforços de construção
de uma ordem do mundo ao nível do saber. Esta ordenação está intimamente
relacionada com os mecanismos de poder.
A disciplina, que se tornou sinônimo de campo de saber tanto na
epistemologia quanto na estrutura curricular do saber escolar, apresenta uma
ambiguidade conceitual muito interessante: invoca em si tanto o campo do
saber propriamente dito quanto um mecanismo político de controle, de um
certo exercício do poder. Disciplinarizar é tanto organizar/classificar as
ciências quanto domesticar os corpos e as vontades. Para a filosofia da
educação pensada a partir dos dispositivos foucaultianos, este é um dos
referenciais mais promissores.
Uma filosofia da educação de inspiração foucaultiana pode revelar a
historicidade dos conhecimentos educacionais, para além de qualquer apelo
universal, auxiliando a desvendar os mecanismos disciplinares e de tecnologia
de saber que permitiram a conformação da escola moderna tal como a
conhecemos, fornecendo elementos para que compreendamos sua crise. E, se
a analítica foucaultiana não é propositiva, permite-nos estabelecer
experiências de pensamento que possibilitem exercícios em torno de
concepções de educação e de práticas pedagógicas não fundamentalistas.

■ No segundo domínio: educação e ser-poder


Analisando a conformação histórica dos poderes, Foucault mostrou que
vivemos, naquilo que se convencionou chamar de modernidade, três modelos
de exercício de poder: o de soberania, o disciplinar e o biopoder. Eles não se
excluem, mas se complementam. As tecnologias disciplinares são construídas
no âmbito mesmo da soberania, como uma forma de introjetar a dominação.
Podemos dizer então que a própria noção moderna de indivíduo é um efeito
de exercícios de poder, pois é o disciplinamento que faz com que o indivíduo
venha à baila. As instituições disciplinares começaram a tomar forma a partir
do século XVII e se consolidaram durante o XVIII. É no final deste século
que começou a se delinear a tecnologia do biopoder, quando a disciplina já
cumprira seu papel de individuação. E o biopoder permitirá o exercício sobre
um novo corpo político: a população. É o biopoder que possibilita a
governabilidade dos povos.
Da mesma maneira em que a tecnologia do poder disciplinar tem como
objeto a sujeição do corpo do indivíduo, tornando-o dócil, manipulável, a
tecnologia do biopoder é exercida sobre um corpo, mas não um corpo
individual e sim coletivo; esse novo corpo político, distinto do corpo
individual e do corpo social, a um só tempo instituído por e objeto sobre o
qual o biopoder se exerce, é a população. No livro Em Defesa da Sociedade,
Foucault diz que a “biopolítica lida com a população, e a população como
problema político, como problema a um só tempo científico e político, como
problema biológico e como problema de poder, acho que aparece nesse
momento”.

Na sociedade sob a égide da biopolítica, trata-se de controlar a


Na sociedade sob a égide da biopolítica, trata-se de controlar a
população, de modo que se estabelecem mecanismos de acompanhamento e
controle da proporção de nascimentos e óbitos, da taxa de reprodução, de se
efetuar o controle de endemias e epidemias que se abatem sobre uma dada
população etc. Como se trata de “fazer viver” e, em determinados casos,
“deixar morrer”, a biopolítica faz nascer sistemas de seguridade social, de
previdências públicas e privadas, de poupanças. Em suma, podemos dizer que
a própria noção de Estado de bem-estar social só foi possível sob a égide do
biopoder.

©Ana Teixeira, Sem título, da série Nós, os vivos, aquarela sobre papel, 2009. Reprodução

Desenho da artista brasileira Ana Teixeira. Disciplinarizar é tanto organizar quanto


domesticar os corpos e as vontades

Essa análise genealógica do poder nos permite compreender as diferentes


conformações históricas das práticas educativas e de suas instituições.
Desvendando as relações de poder no âmbito das práticas educativas,
podemos investir na criação de novas relações, de novas possibilidades de ser e
de construção subjetiva, não necessariamente moldadas pelos cânones
instituídos.

■ No terceiro domínio: educação e ser-consigo


Nesse terceiro domínio, Foucault permite a nós, educadores, pensarmos
em torno daquilo que estamos fazendo de nós mesmos. A investigação em
torno das relações de poder levou-o a encontrar os mecanismos de relação do
indivíduo consigo, a noção da Antiguidade clássica da ética como uma
construção de si, como uma forma de cuidar de si.
E qual é a ação do educador, senão cuidar dos outros (os educandos) e,
assim, cuidar de si mesmo, constituindo-se ele próprio como sujeito do ato
educativo?
Escrevendo sobre a escrita como técnica de si, Foucault afirmou:
“Nenhuma técnica, nenhuma aptidão profissional podem adquirir-se sem
exercício; também não se pode aprender a arte de viver, a tekne tou biou, sem
uma askesis, que é preciso entender como um adestramento de si por si
mesmo”. E mais adiante afirma que o uso da escrita como treino de si
encontra em Plutarco sua definição como função etopoiética, isto é, a
afirmação de que a escrita de si e sobre si mesmo serviria como uma forma de
transformar a verdade em ethos, em forma de conduta para moldar a própria
vida, como o artesão que com as mãos dá forma ao barro.
Na tradição ocidental, a educação tem sido identificada como Paideia
(pelos gregos antigos) e como Bildung (pelos alemães da modernidade), isto é,
como uma forma de edificação dos sujeitos, como construção de si, como
formação, numa palavra. O problema é que não raro essa formação foi
constituí​da como um processo de subjetivação externa, heterônoma,
constituindo sujeitos para uma máquina social de produção e reprodução. A
inspiração foucaultiana nos desafia a pensar uma construção autônoma de si,
como resultante dos jogos de poder, de saber e de verdades nos quais vamos
nos constituindo social e coletivamente. Aquela “educação de si” da qual já
falava Nietzsche, na contramão da instituição formativa alemã.
Pensando com Foucault, o educador precisa adestrar-se a si mesmo,
construir-se como educador, para que possa educar, isto é, preparar-se para o
outro para que se adestre a si mesmo. Se quisermos dizer como o Rancière de
O Mestre Ignorante, o educador precisa emancipar-se a si mesmo, para que sua
atividade docente possa ser um ato de emancipação e não de embrutecimento.
Apenas se emancipado, exercitado em si mesmo, o educador poderá estar
apto para um processo de subjetivação que insista em que cada um eduque-se
a si mesmo.

■ Finalizando...
Pensar a educação, repensar a educação. Usar a filosofia de Foucault
como ferramenta, como dispositivo para descolonizar o pensamento, em lugar
de novamente loteá-lo, agora em nome de conceitos e expressões
foucaultianas. Fazer da aula e do livro mais espaços para a experiência do que
para a verdade. Isso não significa, é claro, que não se tenha também de
estatuir verdades que nos sirvam de balizas para o pensamento e para a ação;
não se trata, certamente, de um vale-tudo. Trata-se, sim, de estarmos sempre
atentos, desconfiados e humildes adiante das verdades que nós mesmos, como
professores e alunos, ajudamos a construir e a disseminar, de modo a estarmos
preparados para, a qualquer momento, revisá-las e, se preciso for, buscarmos
articular outras que consigam responder melhor aos nossos anseios e
propósitos por uma vida melhor.

© José García y Más, Apocalypse II, óleo sobre tela, 2010. Reprodução
Pintura do artista espanhol José García y Más. Na tradição ocidental, a educação
tem sido identificada como forma de edificação dos sujeitos, como construção de
si, como formação

Repensar a educação em seus domínios epistemológicos, políticos e


ético-estéticos, possibilitando uma descolonização do pensamento, tornando
o pensamento uma vez mais possível nesse território, eis o que nos possibilita
o deslocamento da produção foucaultiana para o território da educação. Em
outras palavras, tal empreendimento faz sentido na medida em que permita
que pensemos sobre nós mesmos, por meio das questões educacionais,
fazendo o movimento da filosofia viva. A filosofia da educação como um
exercício do “ensaio”. Não é pouca coisa.

Concluímos, corroborando essa afirmação com mais uma citação de


Concluímos, corroborando essa afirmação com mais uma citação de
Foucault: “O ‘ensaio’ – que é necessário entender como experiência
modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora
de outrem para fins de comunicação – é o corpo vivo da filosofia, se, pelo
menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma ‘ascese’, um exercício
de si, no pensamento”.

SÍLVIO GALLO é licenciado em Filosofia, mestre e doutor em Educação. É


professor de Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade
de Educação da Unicamp. É autor, entre outros, de Pedagogia do Risco
(Papirus), 1995); Educação Anarquista: Um paradigma para Hoje (Editora
Unimep, 1995); Ética e Cidadania: Caminhos da Filosofia – Elementos para o
Ensino de Filosofia (Papirus, 1997)

ALFREDO VEIGA-NETO é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação


da Universidade Luterana do Brasil. Professor titular (aposentado) do
Departamento de Ensino e Currículo e professor convidado do Programa de
Pós-Graduação em Educação (PPG-Educação) da Faculdade de Educação da
UFRGS. É autor de Estudos Culturais da Ciência (Autêntica, 2002), Foucault &
a Educação (Autêntica, 2003) e organizador dos livros Crítica Pós-Estruturalista
e Educação (Sulina, 1995), Imagens de Foucault e Deleuze: Ressonâncias
Nietzschianas (DP&A, 2002) e Figuras de Foucault (Autêntica, 2006)
SUJEITO E CULTURA

Por Inês Lacerda Araújo


Vigiar e punir ou educar?
Se não há uma subjetividade livre, não haverá pessoas
educadas, criativas; justo o que a escola deveria produzir

■ Cultura, sociedade, história


No lugar de apresentar uma visão geral e sistemática da cultura, da
sociedade e da história, Foucault analisa, diagnostica nosso presente, nossa
situação. Como intelectual engajado e enquanto historiador do presente, seus
temas são específicos (as ciências humanas, a psiquiatria, a sexualidade, a
medicina, a governabilidade); ele não fornece receitas, nem uma teoria da
totalidade social. Em Dits et Écrits (1994), Foucault escreve que pretende
apenas “diagnosticar o presente, dizer o que é o presente, dizer em que ele é
diferente, absolutamente diferente de [...] todo o passado”. Denuncia práticas
específicas, mostra que a verdade é produzida por discursos que carregam
poder e saber. Por isso afirma que caminha num “solo minado”.
É possível abordar as macroestruturas da economia e da política. Mas
Foucault foi por outro caminho, o das práticas reais e locais, que tecem
relações entre discursos e saberes de um lado, e instituições e poderes de outro
lado. Sua análise é genealógica, isto é, ele pergunta quais são as relações de
força, como se desenvolvem estratégias, lutas e táticas nas malhas da cultura,
no mosaico social. Essa nova forma de ver e de analisar a cultura não está
baseada nas noções de totalidade, de classe social, de ideologia, de causalidade
ou de influência. Mas também não é uma abordagem do sujeito pessoal,
psicológico. Ele vê a cultura não como uma massa homogênea e sim como
diversificada, com múltiplos movimentos. O material da análise vem de
conteúdos históricos concretos, de saberes sujeitados, aos quais ele dá voz. As
visões sistemáticas e globais mascaram ou desqualificam esses saberes e essas
vozes, acham que estão abaixo do nível de cientificidade. A nova crítica
cultural de Foucault se acerca do psiquiatrizado, da criança, do escolar, do
doente, do anormal, e mostra que o sujeito é objetivado e sujeitado.

■ O sujeito objetivado e sujeitado


Para Foucault, o sujeito é constituído e não constituinte, como pensa a
maioria dos filósofos. Tem uma gênese, uma história. A tradição filosófica
que remonta a Descartes afirma o sujeito pensante como uma substância;
Kant afirma a razão e suas formas puras, a priori, universais. Mesmo na
filosofia contemporânea, a atividade subjetiva da consciência é vista como
fundadora, tanto para a fenomenologia quanto para o existencialismo.
Foucault, em contrapartida, questiona as filosofias do sujeito, pois elas
pressupõem que há o homem em geral, que ele é um ser dotado de uma
substância ou essência pensante, que essa subjetividade é um dado
permanente. Ora, a razão é um produto histórico, houve necessidade de
apartá-la e distingui-la das formas consideradas estranhas, irracionais, ou seja,
as formas da loucura. Também a subjetividade é fruto da necessidade cultural
de chegar à verdade “interior”, “profunda”.

© Philip Pearlstein, Mickey Mouse, White House as Bird House, Male and Female Models, óleo sobre tela,
2001 Reprodução
Pintura do artista americano Philip Pearlstein. Para Foucault o sujeito é constituído
e não constituinte, tem uma gênese, uma história

O homem foi pensado como objeto de saber das ciências humanas, a


partir de transformações históricas, sociais, culturais que produziram as
condições “epistêmicas” para pensá-lo como sujeito constituído por práticas
científicas. No final do século XVIII surge a biologia, que produz o conceito
de vida, de evolução, e o homem aparece para o saber ocidental como vivente;
surge a economia política, que produz o conceito de trabalho, permitindo
pensar o homem como o ser que trabalha e produz; surge a filologia, com o
conceito cultural de linguagem, e o homem é visto como o ser que fala.

O sujeito é também constituído por práticas disciplinares, das quais surge


O sujeito é também constituído por práticas disciplinares, das quais surge
um tipo de saber “organizado em torno da norma que possibilita controlar os
indivíduos ao longo de sua existência. Esta norma é a base do poder, a forma
do poder/saber que dará lugar não às grandes ciências da observação [...], mas
àquelas que chamamos de ‘ciências humanas’: psiquiatria, psicologia,
sociologia”. A produção de verdade tem vários e pesados efeitos sobre o
sujeito. O poder de tipo disciplinar sujeita o indivíduo, e, ao mesmo tempo, o
objetiva; dele resulta um tipo de saber que serve para examinar a conduta,
qualificar, corrigir, induzir à normalidade, à sanidade.
Há ainda as práticas que constituem a subjetividade, provenientes de
mecanismos como o da confissão cristã, que se difundiram e se modificaram,
culminando nas técnicas de análise modernas, como a psicanálise. Extrair a
verdade de si é uma forma de vontade de saber sobre o sexo, de uma incitação a
falar e decifrar o sexo, que resultaram na “estranha” ciência da sexualidade.
Em nossa época, qualquer “verdade” sobre o ser humano deve passar pelo
filtro da verdade científica.

■ Discurso, verdade, saber e poder


Foucault sofreu a influência de Nietzsche (1844-1900), para o qual a
verdade tem relação com a vontade de poder, o que exige uma reavaliação de
todos os valores, através de um procedimento histórico: os conceitos, os
critérios, os valores nasceram de necessidades, de hábitos. O exame e a crítica
históricos, isto é, a genealogia, mostram que a verdade é uma interpretação
dada em certa época, adaptada ao modo humano de ser, frágil.
De forma semelhante, para Foucault o exercício do poder cria objetos de
saber, os faz emergir, leva a um modo institucionalizado de acumular
informações e de fazê-las circular. O exercício do poder cria saber e o saber
acarreta efeitos de poder. O poder opera por meio de discursos, especialmente
os que veiculam e produzem verdade. Há interfaces entre verdade e poder,
saber e poder, discurso e poder. Apenas numa utopia ingênua, de um
humanismo também ingênuo, o saber poderia ser considerado independente
das formas de exercício do poder. A verdade é deste mundo, é produzida por
múltiplas e variadas restrições, ela não está fora do poder nem é possível sem
o poder.
Seu veículo mais difundido e poderoso é o discurso científico, pelo qual a
verdade é difundida, consumida, valorizada; ela circula, por exemplo, nos
aparelhos de educação ou de informação, que têm um papel social e cultural
de peso; essa produção é controlada por aparelhos políticos, econômicos,
sociais, como o sistema escolar. Os regimes de verdade são essenciais às
estruturas e ao funcionamento da sociedade. Há, sobretudo em nossa época
técnica e científica, uma luta em torno da verdade, das políticas de verdade.
Foucault não desqualifica o valor de verdade das proposições científicas, nem
se refere aos conjuntos de crenças tomadas como verdadeiras, essenciais à vida
cotidiana. Ele aborda o regime do enunciado científico, a “política da
verdade”.
Em meados do século XVIII, surgiram certas “tecnologias de poder”, que
são concretas, precisas e incidem sobre uma multiplicidade de práticas sociais
e culturais. Um tipo de poder que age sobre os corpos, sobre suas forças.
Foucault não analisa o poder pelo ângulo da economia, nem pela perspectiva
da teoria jurídica, como ato fundador do direito e como precisando ser
legitimado. Diferentemente da análise marxista, que vê o poder maciço e
dominador de uma classe sobre a outra, Foucault mostra os efeitos múltiplos e
as relações múltiplas de poder, que funcionam em redes; o cruzamento de
relações de poder é que permite a dominação de uma classe sobre a outra.
O poder se exerce, penetra e age nas instituições, nas desigualdades
econômicas, na linguagem, no corpo. A hipótese repressiva do poder o situa
no eixo do poder soberano de legislar por meio de contrato. As teorias
políticas são elaboradas a partir desse poder para o qual é pertinente a questão
dos direitos e deveres. Já para o poder relacional analisado por Foucault, o
direito não legitima o poder e sim põe para funcionar procedimentos de
sujeição.
A capilaridade do poder penetra nas instituições, como na instituição
penal; pelas técnicas de vigilância e punição se obtêm efeitos reais, como
sujeitar os corpos, “endireitar” o comportamento. Assim, “progressiva, real e
materialmente, são constituídos os sujeitos a partir da multiplicidade dos
corpos, das forças, das energias, dos motivos, dos desejos, dos pensamentos”,
diz Foucault no terceiro volume de Dits et Écrits, e se apreende “a instância
material de sujeição enquanto constituição dos sujeitos” (grifo da autora). O
indivíduo não é um átomo isolado e sufocado, ele é efeito e ponto de apoio
das relações de poder.

© Gil Vicente, Autorretrato matando Bento XVI, carvão sobre papel, 2009. Reprodução
Desenho do artista brasileiro Gil Vicente, que questiona o poder e seus
desdobramentos. Para Foucault, o exercício do poder cria saber e o saber
acarreta efeitos de poder

Isso não significa que os mecanismos globais de dominação tenham se


esvaziado, pelo contrário, eles se fortalecem ao serem reconduzidos pelos
“micropoderes” até a menor das relações sociais. O sujeito sujeitado e
disciplinado é muito mais útil aos mecanismos econômicos e políticos.
Os agentes desse poder podem ser os pais, os médicos, os professores, os
psicólogos. A burguesia não se interessa pela exclusão, mas precisa, e muito,
dos mecanismos de exclusão, de vigilância, de punição, de treinamento. As escolas,
as prisões, os hospitais, as fábricas são colonizados e sustentados pelos
mecanismos globais e pelo Estado, porque têm uma utilidade, porque
permitem ganho.
Esses mecanismos de poder demandam a constituição simultânea de
saber acumulado, registrado, por procedimentos de investigação, pesquisa,
verificação. Sobrepostos a um quadro jurídico, eles podem ser aplicados e
permitem maior coesão social.

■ A sociedade disciplinar
É bem conhecido o lado institucional das regras jurídicas, das leis, do
governo, das instituições políticas, da liberdade e da cidadania. Foucault
mostra o outro lado mais sombrio e pouco conhecido, em Vigiar e Punir, o
lado da norma, das regras, da vigilância, da punição, que sujeitam e controlam
os indivíduos, os quais se tornam peças de um maquinário que “distribui os
indivíduos nesse campo permanente e contínuo”. Nessa sociedade disciplinar,
a vigilância e a punição produzem corpos dóceis e capazes. A medicina, com
seu discurso científico, acolhido como insuspeito, neutro, é o árbitro para a
normalização do comportamento das condutas, dos desejos.

Como se chegou à sociedade da norma, da saúde, da vigilância? Por que


Como se chegou à sociedade da norma, da saúde, da vigilância? Por que
“psicologizar” e “medicalizar” o criminoso, o escolar? Com o crescimento
populacional e o aumento da produção industrial, os mecanismos de
vigilância, exame, punição suscitam e ao mesmo tempo se servem das relações
entre discurso, saber, verdade e poder. Os resultados são, por exemplo, baixar
a taxa de mortalidade, aumentar a eficácia do trabalho, fixar o escolar, isolar e
conhecer o doente mental, punir o delinquente e todos os que fogem da
norma. O capitalismo demanda sistemas de poder político com produção a
mais intensa possível, pessoas capacitadas, divisão e especialização do
trabalho, observação precisa, concreta. Os indivíduos são considerados em
função de sua normalidade, o que é “um dos grandes instrumentos de poder
da sociedade contemporânea”, diz Foucault.
A disciplina é antiga, não foi inventada na modernidade. Começou há
muito tempo nos colégios medievais. Mas a partir do século XVIII ela foi
refinada. Expandiu-se para a escola elementar, para o exército, os hospitais e,
no século XIX, para as fábricas. Na escola, facilitou a implementação
generalizada da alfabetização, a localização espacial em carteiras; esse espaço
recortado, analisado, permite individualizar e classificar; a disciplina é
apropriada para desenvolver aptidões, mas também é essencial para gerir a
população, torná-la governável, administrável. As redes disciplinares
penetram as instituições do Estado, do governo, da justiça, cujo poder é
reconduzido a essas verdadeiras “fábricas” de individuação, de objetivação, que
são os hospitais, as escolas, as indústrias, os quartéis.

© K McCal. Reprodução
Na sociedade disciplinar, a vigilância e a punição produzem corpos dóceis e
capazes

A minúcia dos regulamentos, a inspeção constante, o controle por quadro


classificatório demandam saberes criados a partir de descrições, receitas,
registros. É muito provável que daí tenham vindo as ciências humanas e que
aí tenha surgido o homem moderno. Tomar alguém como objeto de ciência
resulta numa forma mais eficaz, aceitável e econômica de controlar. Encontrar
o outro, o estranho, o diferente para afastá-lo do normal, enfim, marcar o
diferente como diferente não produz apenas o preconceito, produz também o
indivíduo da sociedade disciplinar. Como assim?
Os dispositivos que disciplinam, extraem do corpo o máximo de suas
forças, o tornam submisso. Esses dispositivos funcionam como máquinas que
esquadrinham, articulam e desarticulam os indivíduos; mas também
produzem atitudes e comportamentos que ajustam o corpo ao espaço físico. A
disciplina fabrica corpos submetidos e exercitados em termos de capacidades e
aptidões, de um lado; e de submissão e sujeição, de outro lado. Assim, para
curar é essencial separar e classificar os doentes; para a eficiência do trabalho,
é essencial a localização setorial, a ocupação funcional, o treinamento dos
gestos, precisos, rápidos e seguros; para aprender é essencial organizar as
classes, séries, repartir por idade; para defender e atacar, é essencial treinar
para executar movimentos precisos e ordenados.
Controlar o tempo e programá-lo em fases geram economia, prontidão,
evitam o desperdício e a desatenção. O treinamento precisa ser contínuo,
progressivo, cumulativo para qualificar o aprendiz, o operário, o soldado.
A distribuição arquitetônica típica da sociedade disciplinar é o Panopticon
(pan = tudo; optikós = visão) de Benthan (1971). De uma torre central vigiam-
se as celas individuais que a circundam. Em cada cela há uma janela com
grades voltada para o centro e uma abertura nos fundos para a entrada de luz
externa. A tecnologia da vigilância contínua e permanente funciona como
operador disciplinar; pode-se controlar, fazer experiência, modificar o
comportamento. Essas “gaiolas cruéis e sábias”, cuja arquitetura serve para
corrigir, punir, instruir, guardar loucos, treinar operários, recuperar mendigos
e desocupados, sofreram modificações no decorrer do século XX. Hoje, as
câmeras vigiam prédios, ruas, grandes e pequenos estabelecimentos comerciais
e até mesmo as escolas.

■ A escola na sociedade disciplinar


Foucault analisa os casos da escola, da medicina, das indústrias, das
prisões, nos quais há um espaço disciplinar. Na escola se tem a divisão em
classes homogêneas, crianças alinhadas, o lugar marcado tendo à frente o
mestre; os escolares são distribuídos conforme a idade, o sexo; as tarefas e
matérias têm níveis crescentes de dificuldade; há distribuição por mérito. O
ensino elementar sofreu uma mutação técnica com as séries, os níveis e o
tempo de aprendizagem. Esse “espaço escolar” é “uma máquina de aprender,
mas também de vigiar, hierarquizar e premiar”. Com isso, há economia de
tempo, obediência, a instalação de verdadeiros “quadros vivos”, o que evita a
indisciplina, a heterogeneidade, e tudo o que impede o controle e, por tabela,
o aprendizado.
O exercício é uma forma de empregar o tempo, e também os horários, a
atribuição de tarefas com certa duração e ordem. As carteiras articulam os
gestos e a postura para ler, escrever, recitar. Há toda uma ténica, por exemplo,
para alfabetizar, começando com letras, sílabas, palavras. As atividades são
repetidas ao longo do dia, do mês, do ano; podem ser cobradas para aprovar,
reprovar, castigar, premiar. O exercício leva à qualificação; a sujeição é
permanente. A obediência, ao menor sinal, é imediata, não há desperdícios
nem insubordinação. Aí entram o professor, os monitores. A segmentação do
tempo, sua acumulação, a gradação, são meios para auferir o resultado do
aprendizado. Diz Foucault em Vigiar e Punir: “É esse tempo disciplinar que
se impõe pouco a pouco à prática pedagógica, especializando o tipo de
formação e destacando-o do tempo do adulto”. Mais adiante, acrescenta: “A
escola se torna um aparelho para aprender no qual o aluno, o nível e a série,
combinados adequadamente, são utilizados permanentemente no processo
geral de ensino”.
A disposição espacial e arquitetônica em dormitórios, banheiros, salas de
aula, carteiras localiza e “prende” os indivíduos a um espaço analítico.
Circulação, vigilância, enquadramento e registro servem à perfeição para o
aprendizado, a correção, a adaptação. A qualificação e a norma se obtêm pelos
castigos e sanções, punem-se a desatenção, a ausência, o não cumprimento de
tarefas, a desordem. Tudo o que foge à norma deve ser corrigido e punido.

© Marcelo Amorim, Iniciação, acrílica sobre tela, 2009. Reprodução


Pintura do artista brasileiro Marcelo Amorim. Segundo Foucault o corpo da criança
se tornou objeto de manipulação e condicionamento

No século XVIII inventaram-se máquinas a vapor para serem colocadas


em cada jurisdição de Paris, que eram usadas para corrigir e endireitar
crianças preguiçosas, gulosas, indóceis, insolentes, provocadoras, tagarelas,
sem religião.
Na sociedade da norma, a pedagogia e as ciências humanas produzem o
indivíduo mensurável, adaptável, “psicologizado”, enfim, o normal. O exame
provém da combinação da vigilância permanente, do registro constante, com
a norma. Ele faz de cada indivíduo um caso, algo a ser descrito, analisado,
comparado, adestrado, corrigido, normalizado, excluído. A observação do
comportamento, dos gestos, dos desejos é transcrita na forma de gráficos,
boletins, relatórios, relatos clínicos, enfim, toda uma verdade sobre o
indivíduo é extraída. O corpo da criança se tornou objeto de manipulação e
condicionamento. Dessa verdadeira produção de verdade, surge um saber de
tipo pedagógico que normaliza, examina e pune. São exercícios de poder. O
exame não se limita a proibir ou reprimir, ele produz o escolar, a criança apta
a aprender. A “escola se torna um tipo de aparelho de exame contínuo que se
duplica ao longo de todas as operações do ensino [...]. O exame não só
sanciona um tipo de aprendizado, ele é também um de seus fatores
permanentes e o sustenta segundo um ritual de poder constantemente
reproduzido. Isso porque ele permite que o professor estabeleça acerca de seus
alunos, ao transmitir seu saber, todo um campo de conhecimentos [...] a
escola se torna o lugar de elaboração da pedagogia; [...] a era da escola
examinadora marcou o começo de uma pedagogia que funciona como
ciência”.

■ Consequências para a educação


Na escola os procedimentos disciplinares funcionam simultaneamente
como mecanismos para ajustar o aluno (filas, carteiras, horário) e como
operadores pedagógicos (os testes, o treinamento de habilidades, a avaliação
das capacidades). Forma-se um tipo de saber sobre o indivíduo que permite
situá-lo com relação aos demais; o problemático, o indisciplinado, e não só é
suscetível de punição corretiva, como é alvo de um saber que o qualifica. Esses
recursos “pedagogizadores” reproduzem na escola o poder, e seus efeitos, que
funciona em discursos, práticas, saberes. Há a disciplina “pedagogia” e há a
disciplina do controle, do treinamento e do exercício.
Isso quer dizer que a escola não educa, apenas disciplina? Os mecanismos
disciplinares são constitutivos do nosso tipo de sociedade. Só uma mudança
radical na sociedade os eliminaria. O que fazer então?
Em primeiro lugar, é preciso perguntar até onde as análises de Foucault
nos levam. Ele não é “contra” a escola, e, portanto, “contra a educação”.
Foucault disseca o sistema escolar moderno, como ele se formou e foi usado
na sociedade disciplinar. Essa sociedade, que em larga medida ainda é a
nossa, surgiu de condições históricas, sua função é a adaptação da população
aos processos de produção, às técnicas de gestão sobre a vida, o aprendizado,
o treinamento, a aptidão de indivíduos. As análises de Foucault não visam
destruir, anarquizar; ele não desqualifica a escola nem o aprendizado, não
condena a escola, não afirma que seus procedimentos estejam errados.
Foucault mostra a proveniência e os usos daquelas “pequenas” técnicas e
dispositivos de saber e poder que passam despercebidos por aqueles que fazem
a história da pedagogia moderna. Jamais diria, por exemplo, que a disciplina
intelectual, que os estudos, a aplicação, o conhecimento, a educação, a
formação da criança, do jovem são desprezíveis, que se limitam aos efeitos de
poder e saber.
Neste sentido, a disciplina intelectual, o rigor, a aplicação do pensamento
sobre o próprio pensamento são essenciais para a formação, para o
aprendizado inteligente, para raciocinar, refletir, argumentar, analisar, obter
resultados. Essas operações levam adiante o aprendizado, não são simples
técnicas de repetição, reforço, reprodução. É possível e desejável que a
disciplina chamada “pedagogia”, justamente por seus recursos técnicos,
teóricos e práticos, sirva para modificar os padrões de um ensino voltado
exclusivamente para a produção na escola da normalização, das relações entre
saber e poder.
Em segundo lugar, cabe denunciar essa violência insidiosa cujo alvo e
cujo resultado é o indivíduo sujeitado, cabe também recusar esse modelo, que
ainda prevalece nas escolas. É preciso imaginar e criar novas políticas do
corpo, que proporcionem autonomia, reconhecer o caráter inacabado das
instituições (o que dá chance para a inovação, para a criatividade), e,
principalmente, abrir caminhos para a crítica, para a denúncia das práticas que
sujeitam. Ora, é na escola, mediante os recursos de formação plena e de
educação consistente, de qualidade, que essas atitudes de resistência podem
germinar. É difícil fazer a crítica e a reflexão sobre o papel e os desafios da
escola, dos processos de escolarização e de formação. Difícil, pois implica a
própria escola, a própria educação. Se não há uma subjetividade livre,
autônoma, não haverá também pessoas educadas, criativas, que é justamente o
que a escola deveria produzir. Sem criatividade, não é possível recusar o sujeito
preso ao saber e ao poder de disciplinas que normalizam; sem indagar o que
queremos para nós, não é possível criar novos estilos de vida, pautados por
atos éticos de liberdade e autonomia, como propõe Foucault em seus últimos
escritos. Quem sabe, na escola não se possam constituir outras formas de
subjetividade mais prazerosas, estilos de vida mais criativos, plurais, com lugar
para a diferença? O desafio é, para os educadores, encontrar meios para esse
exercício de liberdade e criatividade.
Enfim, as críticas de Foucault levam à reflexão e talvez tenham levado,
inclusive, a importantes modificações na escola e nos procedimentos atuais de
ensino e aprendizado. Não saberíamos como funcionaria uma escola que
dispensasse totalmente os procedimentos disciplinares. O que não significa
acomodar-se, é possível atenuar os efeitos de poder que se propagam nas
instituições disciplinares, modificá-los, e, até mesmo, perguntar em que
medida eles cabem. Isso porque educar, diz ele, “não é somente uma maneira
de aprender a ler e escrever, e de comunicar saber, mas também uma maneira
de impor”. Os efeitos de poder podem ser alterados para que os resultados
produtivos de todo um processo educacional se sobreponham aos efeitos de
poder e saber embutidos nas técnicas disciplinares. A educação não é um tipo
de ortopedia, ela é transformadora. Na escola não burocratizada, não
colonizada pelas demandas imediatas de obtenção de grau, de cumprimento
de protocolos, é que prevalece a formação, a capacitação, o aprendizado
produtivo. Vigilância, punição e controle desceriam a um segundo plano, e,
conforme o interesse pela educação crescesse, os procedimentos disciplinares
se tornariam intoleráveis.

©Reprodução
A educação não é um tipo de ortopedia, ela é transformadora

Hoje, o castigo e a punição foram atenuados ou mesmo eliminados; a


função de normalizar assume formas “científicas”, como a necessidade do
psicólogo, do terapeuta educacional. Ressalta-se a produtividade, a escola
funciona nos moldes empresariais. Mas não seriam novas roupagens do
discurso e das práticas pedagógicas tradicionais?
São necessários atenção e cuidados permanentes com relação à escola, à
educação, aos procedimentos pedagógicos. Cabe lutar, em suma, por novas
formas de cultura, de discursos, de práticas, “onde houver relações de poder,
há uma possibilidade de resistência. Não somos uma presa do poder:
podemos sempre modificar sua tomada, em condições determinadas e
conforme uma estratégia precisa”.

INÊS LACERDA ARAÚJO foi professora no Departamento de Filosofia da UFPR


(1974-1998). Autora de: Introdução à Filosofia da Ciência (Editora da UFPR,
2003); Foucault e a Crítica do Sujeito (Editora da UFPR, 2000); Do Signo ao
Discurso: Introdução à Filosofia da Linguagem (Parábola, 2004)
CONHECIMENTO E SABER

Por Jorge Ramos do Ó


O governo do aluno na
modernidade
É preciso ter uma imagem menos idealizada da escola e
enxergá-la conforme as várias forças e dinâmicas
disciplinares sobre as quais ela foi se construindo

Os últimos escritos de Michel Foucault, os três volumes da História da


Sexualidade, têm tido grande impacto no modo como setores importantes da
investigação atual vêm entendendo e discutindo os processos de expansão das
situações educativas no processo de construção da modernidade. Foucault
definiu aí um espaço analítico que permite ao investigador cruzar
permanentemente os domínios da ética com os da política e determinar-se em
estabelecer as bases sobre as quais as modernas práticas da subjetivação vêm
sendo construídas.
A meu ver, o novo olhar analítico que é lançado sobre a coisa educativa
tem se desenvolvido, no essencial, a partir do tríptico que sequencia todo o
projeto de trabalho de Foucault: a análise dos sistemas de conhecimento, as
modalidades de poder e as relações do eu consigo próprio. E se para cada um
desses domínios viria a utilizar também três formas específicas de análise –
designadas por “arqueologia”, “genealogia” e “ética” – no ano de 1978, num
dos seus cursos anuais​ do Collège de France, Foucault cunhou um termo
“governamentalidade” que, aliado à expressão “tecnologias do eu”, surgiriam
como um pivô e um ponto de condensação do conjunto das suas reflexões
anteriores. É a hipótese desse vaivém permanente que muito tem animado,
entre vários outros, historiadores, sociólogos e filósofos da educação.

O objetivo das tópicas da “governamentalidade” e das tecnologias do eu é


O objetivo das tópicas da “governamentalidade” e das tecnologias do eu é
gerar uma aparelhagem conceitual que possa tornar explícita tanto uma visão
micro, tomando o indivíduo no seu próprio universo, quanto uma visão macro
do tecido social, revelando uma preocupação de governo da população no seu
conjunto. Admite-se assim que as dinâmicas da individualização e da
totalização correspondem a um e a um só processo, e os últimos textos de
Foucault mobilizam-se para inventariar os mecanismos de poder
desenvolvidos, a partir do século XVI e na Europa Ocidental, para
administrar e supervisionar as condições de vida dos cidadãos, de todos e de
cada um em particular de modo homólogo. Esses textos procuram desvendar
a emergência de todo um novo exercício do poder soberano ligado à Razão de
Estado.
A governamentalidade corresponderia, assim, ao desencadear de toda uma
arte caracterizada pela heterogeneidade de autoridades e agências,
empregando igualmente uma desmesurada variedade de técnicas e formas de
conhecimento científico destinadas a avaliar e a melhorar a riqueza, a saúde, a
educação, os costumes e os hábitos da população. Este modelo biopolítico terá
conhecido uma enorme aceleração a partir do século XVIII. Com efeito, o
Estado moderno foi se afirmando através de formas de notação, coleção,
representação, acumulação, quantificação, sistematização e transporte de
informação, alimentando-se ainda do propósito de reinventar
permanentemente novas modalidades de divisão do espaço e do tempo social.
Estas operações de poder-saber terão paulatinamente configurado um
dispositivo ágil para o governo da nação no seu conjunto e disponibilizaram,
da mesma maneira, critérios para o aperfeiçoamento ético. A verdade do
Estado passou a ser a verdade produzida pela ciência e, assim, tudo o que esta
enuncia remete diretamente para relações de poder.
Quando falava em tecnologias do eu, Foucault referia-se a um conjunto de
técnicas performativas de poder que incitaram o sujeito a agir e a operar
modificações sobre a sua alma e corpo, pensamento e conduta, procurando
vinculá-lo a uma atividade de constante vigilância e de adequação permanente
aos princípios morais em circulação na sua época. A subjetivação, tal como
nos é apresentada por ele, envolve exercícios de inibição do eu, ligados às
dinâmicas políticas de governo e ao desenvolvimento de formas de
conhecimento científico. A sociedade moderna terá se transformado, por essa
via, numa sociedade essencialmente disciplinar. É exatamente esta
preocupação geral que anima a investigação foucaultiana dos últimos anos:
analisar a formação do homem moderno através dos mecanismos por meio
dos quais cada um passa a se relacionar consigo mesmo e a desenvolver toda
uma autêntica arte de existência destinada a reconhecer-se a si como um
determinado tipo de sujeito. E um sujeito cuja verdade pode e deve ser
conhecida. Compreende-se assim como, para ele, a ética torna-se inteligível
somente como um domínio da prática.

© Laerte Ramos, No jardim, cerâmica, 2003. Reprodução


Obra do artista brasileiro Laerte Ramos. As dinâmicas da individualização e da
totalização correspondem a um só processo

Muitos investigadores entendem que esse posicionamento intelectual traz


agregado um conjunto de ferramentas que permitem compreender as
racionalidades, as técnicas e as práticas que têm envolvido o cálculo e a
formatação das capacidades humanas. Por exemplo, o modelo de aluno
autônomo – tão nosso conhecido e que a escola tem promovido e sob
tradições político-culturais as mais diversas – explica-se por inteiro na
tecnologia de governo discutida por Michel Foucault.

■ De criança a aluno, ou o governo de si mesmo


Importa, desde logo, constatar que o processo de afirmação e
consolidação histórica da chamada escola de massas, a partir de finais do
século XIX, nos faz ver que as crianças e os jovens passaram a ser definidos,
desde então e antes de qualquer outro, pelo rótulo de escolares. A reflexão
teórica do chamado último Foucault é um convite a que o investigador
educacional centre a sua atenção nos processos pelos quais a subjetividade dos
alunos se viu produzida. E veja o leitor aqui uma importantíssima inversão. É
como se, a partir de agora, passássemos a entender que toda a paisagem
escolar moderna tenha sido construída​ não tanto sobre o saber – sobre as
competências intelectuais​ do aluno – mas, essencialmente, sobre o ser, isto é,
sobre o modelo de cidadão que importava construir para as várias autoridades,
fossem elas quais fossem.
Com efeito, no espaço da modernidade, toda a relação educativa pareceu
alimentar-se do princípio de que se deveria estabelecer um nexo causal entre o
conhecimento particularizado das tendências, hábitos, desejos ou emoções dos
alunos e a moldagem da sua sensibilidade moral. A meu ver, foi exatamente a
tentativa de viabilizar esta tecnologia disciplinar-normalizadora que esteve na
origem da descoberta do aluno e do seu tratamento diferenciado a partir do
último quartel do século XIX. Se, nessa conjuntura histórica, a personalidade
individual havia se tornado o elemento central da cultura intelectual, era
natural que o educador passasse, também ele, a ter em conta o germe de
individualidade que se escondia no interior de cada criança. Para tanto, logo
se consolidaria o princípio segundo o qual bastaria um conhecimento efetivo
das leis psicológicas de cada escolar para modificar, de alto a baixo, a
instituição escolar. De fato, foi a defesa desta tese que levou a declarar-se
cientificamente a falência da pedagogia tradicional, autoritária,
uniformizadora, o velho ensino tradicional que havia esquecido a livre
iniciativa e a inventividade própria do aluno, no apelo constante que fazia ao
exercício estereotipado e à memorização estupidificante. Em vez de tratar a
população escolar de forma uniforme e invariável, o educador que quisesse
receber o epíteto de moderno deveria, ao contrário, variar as suas
metodologias de ensino de acordo com a estrutura de cada inteligência e o
temperamento individual. O propósito de ajustar as práticas educativas à
diversidade de casos particulares – ou o ensino por medida – iria se transformar,
assim, na máxima pedagógica por excelência da modernidade.

© Brian Muller,14.11.1963, óleo e acrílica sobre tela. Reprodução


Pintura do artista canadense Brian Muller. Foucault investiga a formação do
homem moderno através dos mecanismos por meio dos quais ele se reconhece
como sujeito

Esta nova dinâmica de enquadramento das populações infantojuvenis


universalizou, igualmente, um modelo de integração moral inteiramente
diverso do anterior. A incorporação de princípios éticos, mediante uma
prática cada vez mais definida como da autonomia funcional e da liberdade,
viria a impor-se como a marca socializadora mais distintiva e consensual do
modelo de educação que se espalhou pelos quatro cantos do mundo ao longo
do século XX e que nos atinge inteiramente no presente. No também
designado “século da criança”, a disciplina passou, de fato, a ser um exercício
cada vez mais solitário e associado à autonomia e iniciativa pessoal do aluno.
No contexto de afirmação e expansão da escola de massas, liberdade e
autoridade passaram a ser descritas como realidades justapostas senão mesmo
simbióticas. O discurso pedagógico moderno projetou um e só um ideal-tipo
moral, o do estudante independente-responsável. Aquele que, medindo muito
bem tanto os seus atos como as formas de comportamento, saberia sempre
encontrar a melhor forma de se adaptar espontaneamente à vida escolar. Todo
um programa de poder se vulgarizou, portanto, explicando que a verdadeira
aprendizagem consistia em levar o aluno a descobrir por si mesmo a forma de
instituir um lugar social no espaço que ele próprio ocupava.
Não há dúvida de que a grande bandeira dos renovadores educacionais
tem sido sempre a de valorizar a identidade sobre o conhecimento: a conduta
passaria a constituir o problema pedagógico maior e a cultura de si a ocupação
mais importante da criança e do jovem. O essencial do seu esforço foi no
sentido de mostrar como a matéria ética deveria ser indissociável do postulado
segundo o qual a escola fabricaria um tipo de ator que devia, ele mesmo, ser
sujeito da sua própria educação. O conhecimento psicopedagógico procurou
oferecer repertórios discursivos reclamando a normalização social como um
trabalho sobre o eu.
Numa palavra, os sistemas estatais de ensino foram, portanto, sendo
constituídos de acordo com a regra da governamentalidade: o treino moral da
população jovem fez-se tendo em vista o objetivo mais geral do aumento da
força e prosperidade do Estado, mas teve pressuposta a reivindicação do bem-
estar de cada um dos cidadãos.

■ Um pouco de teoria: poder e discurso em Foucault


Esta intencionalidade programática tem obrigado, pelo menos, à
definição de dois grandes problemas teóricos. Atentemos às suas linhas gerais.
O primeiro tem a ver com o entendimento e a utilização do conceito de
poder. Para Foucault ele não deve mais ser trabalhado como uma propriedade,
qualquer coisa que se detenha, mas como uma composição. Quando falarmos
de poder deveremos valorizar a circulação, a difusão, as redes, o consumo e,
jamais, a posse. Foucault convida-nos a olhar e verificar que até mesmo as
sociedades do Antigo Regime se representavam já como politicamente
plurais, dotadas de uma série de polos políticos, cada um no seu âmbito de
forma autônoma, e adotando interesses particulares, que deviam ser
compatibilizados em função do bem comum, e nunca podiam ser sacrificados a
um interesse público absolutamente hegemônico. Nesta linha, os
investigadores educacionais que reclamam a herança intelectual foucaultiana
procuram tentar perceber como, numa profusão de locais e sem uma ordem
única, foram sendo codificados e postos a circular modelos de conduta que a
instituição escolar foi tomando como seus e foi sucessivamente desenvolvendo
até atingir o coração dos alunos.
Esta compreensão dos jogos de poder obriga a verificar que nas
sociedades modernas o domínio da moralidade foi remetendo cada vez menos
para sistemas universais de injunção e proibição e mais para um quadro de
liberdade regulada. Cada singularidade passou a ser vista como um ponto de
passagem objetivada de princípios e forças de poder. A modernidade será
assim, caracterizada pelo permanente desígnio de governar sem governar, de
ampliar o poder até aos limites mais distantes, ou seja, às escolhas de sujeitos
autônomos nas suas escolhas. De acordo com esta perspectiva, é possível
enquadrar a coisa educativa e as próprias práticas de socialização das crianças
e dos jovens à luz da dinâmica maior da liberdade. As estratégias que temos
desenvolvido a partir de finais do século XIX, ou seja, desde que se constituiu
o campo das ciências da educação, parecem poder de fato explicar-se como
fazendo coincidir a direção e a condução de sujeitos livres com os objetivos de
governo da população. Os padrões e respectivos incentivos à reflexão-ação do
aluno configuram um modelo em que a autonomia e o autocontrole surgiam
como as marcas da identidade e da relação interpessoal. Mas veja-se que não
se está dizendo que a escola tenha sido alguma vez um espaço onde os seus
habitantes circulassem livremente, sem ordem nem regras. Muito longe disso.
O que se defende, na linha de Foucault, é que todos os mecanismos de
submissão ética desenvolvidos, ao menos de um século até agora, têm suposto
sempre que ele possa tomar as suas próprias decisões. Na escola, de há muito
que a palavra moral se traduz por vontade e governo de si.

© Danny Hennesy, O enlutado, seu macaco e o enforcado, óleo sobre tela, 2009. Reprodução
Pintura do artista Danny Hennesy. No século da criança a disciplina passou a ser
um exercício cada vez mais solitário e autônomo

Um segundo problema relaciona-se com o discurso, ou seja, com os


regimes de inteligibilidade. Governar passa a ser entendido como agir de
acordo com uma certa discrição. De fato, na modernidade as zonas de
governo vêm se confundindo cada vez mais com operações intelectuais e com
a circulação de discursos científicos suscetíveis de refletir toda uma massa de
fenômenos. A população no seu conjunto passou a ser objeto de
conhecimento, reclamando a presença de novos especialistas. O Estado viu-se
a produzir e a sofisticar a legislação, as estatísticas, os índices etc., com o fim
de simultaneamente explicar e conformar o funcionamento da economia e a
sociedade. Estou, portanto, falando de todo um regime de enunciação que, em
nome de um conhecimento racional, permitiu a diferentes autoridades,
públicas e privadas, reclamar a possibilidade do seu governo dos homens e das
coisas. Neste quadro, a pedagogia foi também ela, em grande medida,
construída sob as categorias e divisões definidas pela ciência e absorvidas pelos
sistemas de ensino estatais. Toda a relação educativa moderna tem uma raiz
psi, o que significa que se tornou dependente dos diagnósticos, orientações
teóricas, divisões e formas de explicação que a psicologia concebeu para
indexar e reelaborar os imperativos éticos. Pode-se então falar de uma
regulação psicológica do eu, como derivando daquela ciência da alma em
franca expansão há mais de um século. Apontando para as capacidades e as
aptidões, a saúde e as doenças, as virtudes e as perversões, a normalidade e as
patologias do escolar, a psicologia está na base, de fato, de todas as técnicas e
dispositivos discursivos relativos à identidade e à conduta. O arco psicológico
não configurou mais que uma problematização sequenciada da forma como as
crianças e jovens foram eles mesmos constituídos historicamente também
como um problema.

■ Uma visão da escola disciplinar


Os velhos mecanismos da direção e da confissão, para Foucault, passaram
a ser misturados, no interior da escola, a fim de que todos os aspectos
relacionados com a intimidade dos alunos fossem seguidos até as ramificações
mais delicadas. Neste tipo de organização que vimos historicamente
construindo, há uma mecânica de governo que faz com que a criança e o
adolescente trabalhem a memória, o entendimento, a vontade e o desejo
numa mesma sequência lógica. De fato, espírito e corpo passaram a ser
simultanea​mente apresentados pelos experts e pelas autoridades escolares
como realidades plásticas e moldáveis – espécie de página em branco onde a
instituição pode inscrever livremente tudo –, e, ao mesmo tempo, realidades
plenamente constituídas, em que cada sujeito está incumbido da missão de
descobrir a raiz, as ramificações e as deslocações dos seus pensamentos e
fantasias súbitas.
Foucault remeteu a realidade escolar para esta técnica de poder que, já no
século XVIII, incitava ao dis​curso acerca do corpo e da sexualidade. É muito
significativo que tenha apresentado dela uma visão integrada a partir de um
trabalho sobre a intimidade. Vejamos então a descrição que Foucault nos dá
dos colégios de ensino da época, colhida no primeiro volume da sua História
da Sexualidade: “O espaço da aula, a forma das mesas, a disposição dos pátios
de recreio, a distribuição dos dormitórios (com ou sem divisórias, com ou sem
cortinados), os regulamentos previstos para a vigilância do deitar e do sono,
tudo isso remete de um modo muito prolixo para a sexualidade das crianças.
Aquilo a que se poderia chamar o discurso interno da instituição – aquele que
ela profere para si própria e que circula no meio dos que a fazem funcionar –
está em parte importante articulado com a verificação de que essa sexualidade
existe, precoce, ativa, permanente. Mas há mais: o sexo do colegial tornou-se,
do decurso do século XVIII – e de um modo mais especial do que o dos
adolescentes em geral –, um problema público. Os médicos dirigem-se aos
diretores de estabelecimentos e aos professores, mas dão também os seus
conselhos às famílias; os pedagogos fazem projetos que submetem às
autoridades; os mestres viram-se para os alunos, fazem-lhes recomendações e
redigem para eles livros de exortação, de exemplos morais ou médicos. Em
torno do colegial e do seu sexo prolifera toda uma literatura de preceitos, de
conselhos, de observações, de conselhos médicos, de casos clínicos, de
esquemas de reforma, de planos para instituições ideais... Seria inexato dizer
que a instituição pedagógica impôs maciçamente o silêncio ao sexo das
crianças e dos adolescentes. Pelo contrário, desde o século XVIII, ela
desmultiplicou a seu respeito as formas do discurso”.

As regras da arte de governo foram se impondo naturalmente na escola.


As regras da arte de governo foram se impondo naturalmente na escola.
A palavra-chave não será tanto a aprendizagem mas o exame – e são vários os
sentidos que a palavra pode adquirir –, a que toda a sua população permanece
vinculada. Nessa operação formalizam-se inúmeros códigos da
individualidade que permitem transcrever, e introduzir na série, os traços de
cada sujeito. Mais do que em qualquer outra organização social, a figura do
exame é ritualizada pela escola num jogo de pergunta/resposta/recompensa
que reativa os mecanismos de constituição do saber numa relação de poder
específica. Desde logo, o sistema das notas, além de garantir a passagem
desigual dos conhecimentos, força à comparação perpétua de cada aluno com
todos os outros da classe. Depois, a lógica linear e progressiva caracteriza o
exercício propriamente escolar – com a sua complexidade crescente, tarefas a
um tempo repetitivas e diferentes mas apontando sempre para essa figura
terminal do exame –, permite, sem dúvida, que o indivíduo se vá adequando
desde o início à regra da relação tanto com os outros como com um
determinado tipo de percurso. Os rituais escolares avaliam o aprendizado,
oferecendo-lhe ainda um lugar entre pares num alinhamento espaçotemporal.
Pouco a pouco, relembra Foucault em sua História da Sexualidade, “o
espaço escolar desdobra-se; a classe torna-se homogênea [...], só se compõe
de elementos individuais que vêm colocar-se uns ao lado dos outros sob os
olhares do mestre. A ordenação por fileiras, do século XVIII, começa a
definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de
alunos na sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em
relação a cada tarefa e a cada prova; colocação que eles obtêm de semana em
semana, de mês em mês, de ano em ano; alinhamento das classes de idade
umas depois das outras; sucessão de assuntos ensinados, das questões tratadas
segundo uma ordem de dificuldade crescente [...] Movimento perpétuo onde
os indivíduos se substituem uns aos outros, num espaço escondido por
intervalos alinhados. A organização de um espaço serial foi uma das grandes
modificações técnicas do ensino elementar. Permitiu ultrapassar o sistema
tradicional (um aluno que trabalha alguns minutos com o professor, enquanto
fica ocioso e sem vigilância o grupo confuso dos que estão esperando).
Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o
trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de
aprendizagem. Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar,
mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar”.

© http://www.sxc.hu Reprodução.

Na escola, de há muito que a palavra moral se


traduz por vontade e governo de si

Mas este trabalho de diferenciação é ainda mais profundo. Por meio de


uma intervenção de tipo clínico constrói-se o que Foucault define como
microfísica ou anatomia política do detalhe. Nas escolas não se examinam
apenas conhecimentos, mas também os comportamentos e as aptidões que
cada um dos escolares apresenta de forma natural. Quando se mede uma
realidade a partir duma tabela universal, está se utilizando unicamente uma
técnica de hierarquização – correlacionando elementos, organizando campos
comparativos, formando categorias –, que estabelece médias e infere normas
do comportamento populacional. Ora, são exatamente essas escalas orgânicas
e combinatórias, como as dos testes de inteligência ou personalidade, que dão,
de forma paradoxal, visibilidade aos indivíduos. É, pois, todo um poder que
individualiza justamente na medida em que obriga à homogeneidade. A
figura lata do exame parece assim fixar a singularidade como uma aposição, o
que indica bem o aparecimento de uma nova modalidade de poder em que
cada um recebe como status a sua própria individualidade, e onde está
estatutariamente ligado aos traços, às notas que o caracterizam e fazem dele,
de qualquer modo, um caso.

©Tom Lohre, Retrato de Drew, óleo sobre tela, 2004. Reprodução


Pintura do artista americano Tom Lohre. Espírito e corpo
passaram a ser apresentados pelas autoridades escolares como
realidades moldáveis, espécie de página em branco onde a
instituição pode inscrever tudo

É claro que todo este gigante aparelho de anotação e registro das


aptidões, capacidades e do percurso biográfico de cada estudante é
determinado pela lógica de funcionamento do que Foucault denomina de
campo científico-disciplinar. A medicina, mas também a psicologia e a
pedagogia, entre outras ciências positivas do indivíduo que aparecem no fim
do século XVIII, não cessam de investigar tendo como referência única um
padrão de normalidade. Os processos individuais mostram uma fiscalização
multilinear e uma variação constante das situações em que o corpo, a mente e
a performance escolar são observados. O insucesso, a delinquência ou a
loucura secreta ficam nas franjas de qualquer estatística populacional-escolar,
determinada sempre pela vitória de uma maioria assaz produtiva e saudável,
mas nenhum sujeito terá de si a visão reconfortante da instituição em que se
insere. As variáveis quantitativas e qualitativas em que é medido, comparado,
e que traduzem a sua existência singular como aluno, só deixam registradas as
situações de desvio ou os planos inclinados que levam diretamente a ele.
Numa palavra: a individualização objetiva-se pela dimensão da distância em
relação ao padrão médio da escola. É esta a regra sobre a qual se estabelecem
todas as diferenças individuais. O efeito unificador não desaparece após a
descoberta e consequente classificação destes indivíduos; continua a operar
mas no interior deles, e no momento em que diferenciadamente passam a ter
de referenciar a sua identidade a esses rótulos e esferas desviantes que o
poder/saber lhes oferta. As fronteiras identitárias dos alunos tendem a
adequar-se colando-se-lhes ou negando-as veementemente, às categorias em
que se acham referenciados. Será porventura ocioso sequer lembrar que a
realidade do normal não é descrita, tampouco enunciada, apesar desta arte de
governo não visar outro objetivo que não o do seu pleno enraizamento. A
normalização é um processo, espécie de meta unificadora, todavia jamais
franqueada por qualquer sujeito. As tabelas primeiramente ensaiadas nos
espaços que tratam da deficiência ou da marginalidade vão transformar-se, na
época contemporânea e em grande parte graças à ação da escola, em
verdadeiras tecnologias políticas do eu. É muito importante reconhecer que
esta integração, pela via de uma racionalidade de tipo marginalista, e
fundamentalmente a partir do século XIX, amplia o tipo de relação entre o
social e o individual.

©Ana Teixeira.Reprodução

Nas escolas não se examinam apenas conhecimentos, mas


também comportamentos e aptidões

■ Pensar contra o presente


Parece-me que um dos grandes desafios da investigação social que hoje
procuramos fazer está em mostrar que o conhecimento das relações
pedagógicas instauradas em relação às crianças e aos jovens – transformando-
os sempre, isto é, crescentemente desde o século XIX, em alunos – aprofunda-
se a partir das perspectivas abertas pela governamentalidade e das tecnologias
do eu. Talvez por essa via consigamos pensar, com outro distanciamento,
aquela que é a instituição social que nos é mais familiar. E talvez ainda passar
a ter dela uma imagem menos ingênua ou idealizada em face das suas
múltiplas forças e dinâmicas disciplinares sobre as quais se foi paulatinamente
construindo. É esse o desafio que Foucault nos propõe: estudar de forma
cuidadosa especificidades e formas de funcionamento que desnaturalizem as
nossas evidências menos questionadas. Pensar contra o presente. Pensar
diferente.

JORGE RAMOS DO Ó é doutor em História da Educação e professor do Instituto de


Educação da Universidade de Lisboa. Publicou O Lugar de Salazar: Estudo e
Antologia (Alfa, 1990), Os Anos de Ferro: O Dispositivo Cultural nos Anos da
Política do Espírito – 1933-1949 (Estampa, 1999) e O Governo de Si Mesmo
(Educa, 2003)
ÉTICA E VALORES

Por Vera Portocarrero


O mundo como sala de aula
Foucault tenta encontrar um modo de o pensamento escapar
de si mesmo e “mostrar que as pessoas são muito mais
livres do que pensam”

A questão ética e dos valores no pensamento de Michel Foucault


explicita-se, em sua fase tardia, por meio de uma reflexão moral que
permaneceu inconclusa. É uma genealogia do homem do desejo, um trabalho
histórico e crítico sobre a sexualidade, que estabelece um elo entre sexo,
subjetividade e verdade. Foucault observa que, contrariamente aos outros
interditos, os interditos sexuais são sempre ligados à obrigação de o sujeito
dizer a verdade sobre si mesmo. Ele desenvolve essa questão privilegiando a
pesquisa dos modos da relação consigo, a partir da hipótese que a reflexão
moral na antiguidade greco-romana foi dominada pelo tema da prática de si.
Trata-se de uma análise do modo pelo qual os homens se governam a si
mesmos e aos outros pela produção de verdade.
Sua genealogia indaga a maneira pela qual os indivíduos foram levados a
elaborar sobre si e sobre os outros uma hermenêutica do desejo, com o
objetivo de estudar de que forma os indivíduos são levados a reconhecer-se
como sujeitos de uma sexualidade, cuja história deve ser compreendida como
experiência que correlaciona, numa cultura, campos de saber, tipos de
normatividade e formas de subjetividade. Tal história só se realiza, de fato,
em contraponto com o cristianismo primitivo, o estoicismo tardio e o
pensamento grego clássico.
O estudo da formação da hermenêutica de si e de seu desenvolvimento é
realizado em dois contextos diferentes: por um lado, o da filosofia greco-
romana dos dois primeiros séculos do início do Império Romano; por outro o
da espiritualidade e dos princípios monásticos tais como se desenvolveram nos
séculos IV e V. O sujeito é analisado por meio da noção de indivíduo e sua
relação com um conjunto de práticas da Antiguidade tardia. Nos gregos, tais
práticas tomaram a forma de um preceito: “cuidar-se”, “preocupar-se
consigo”.
Foucault discute muitos temas éticos como autonomia, egoísmo,
felicidade, liberdade, individualismo, prazer, austeridade etc. O tema da
liberdade, por exemplo, é tratado por Foucault, primeiro, como imanente às
relações de forças na medida em que estas são por ele diferenciadas de uma
relação de violência, em sua genealogia do poder, desenvolvida na década de
1970; mais tarde, é tratado em uma pesquisa sobre o liberalismo em nossa
sociedade, o qual coloca a liberdade, paradoxalmente, como uma obrigação
para o funcionamento do Estado liberal, e também através do recuo histórico
correlacionado à ascese antiga e a seu princípio de autotransformação e
autodominação. Outro exemplo é o tema do individualismo, ao qual o projeto
de uma genealogia do homem do desejo com ênfase no cuidado de si e no uso
dos prazeres poderia conduzir, como criticam alguns especialistas. Foucault,
no entanto, o trata por meio do caráter social necessariamente incluído nas
práticas de si.

© Rosana Palazian, Baseado em uma história real- João e Maria, bordado sobre cuecas infantis, 1991.
Reprodução
Obra da artista brasileira Rosana Palazian. Para Foucault os interditos sexuais
são sempre ligados à obrigação de o sujeito dizer a verdade sobre si mesmo

Esta questão será aqui apresentada, resumidamente, a partir da diferença


teórico-metodológica estabelecida por Foucault entre ética e moral e sua
relação com o domínio das práticas do cuidado de si.
■ Estética da existência
A reflexão foucaultiana sobre a ética é apresentada em A História da
Sexualidade II. O Uso dos Prazeres, em História da Sexualidade III. O Cuidado
de Si, em uma série de escritos, entrevistas e conferências do final da década
de 1970, reunidos em Ditos e Escritos, e em seus cursos do Collège de France
como por exemplo A Hermenêutica do Sujeito. Ela é de fundamental interesse
para os problemas educacionais atuais, se for compreendida como um recuo
histórico cujo objetivo é fornecer elementos para compreendermos como nos
tornamos o que somos hoje, mas, sobretudo, o que estamos nos tornando. E
isto não por meio de uma mitificação da Antiguidade como algo a ser
transposto ao presente, mas como forma de questionar as evidências de nosso
presente, suas falsas necessidades no nível das práticas, principalmente as
educacionais. Os gregos não são uma solução para nós, explica Foucault. Até
porque, dada a historicidade constitutiva das éticas e das formas de
subjetivação, tal transposição seria impossível.
Ele se afasta das análises dos sistemas filosófico-morais que a ética
apresenta tanto em termos da legitimidade e dos limites dos códigos como em
termos dos comportamentos, dos direitos e dos deveres dos indivíduos ante
esses sistemas. Sua pretensão é pensar uma ética tendo como eixo um outro
elemento que a constitui – a relação dos indivíduos consigo mesmos – com
base numa arte da vida. A relação da subjetividade com a verdade é buscada
não no interior do conhecimento, como na tradição, mas na história.
Portanto, não se trata de dedicar-se à problemática do conhecimento, do
fundamento do sujeito e da verdade, segundo o qual o sujeito conheceria
verdades sobre o mundo, sobre si mesmo e sobre sua conduta; mas às formas
históricas em que foram tramadas, no Ocidente, as relações entre a
subjetividade e a verdade fora do âmbito das teorias do conhecimento. Isso se
fará, como diz Foucault na Hermenêutica do Sujeito, mediante um recuo até o
regime dos comportamentos e prazeres sexuais na Antiguidade – não às ideias
ou aos comportamentos propriamente, mas àquilo que os regulamenta: o
regime dos aphrodisia (termo que se referia aos prazeres do amor, relações
sexuais, atos da carne, volúpias etc.): “era realmente no regime dos aphrodisia
e de modo algum na moral cristã ou, pior, judaico-cristã, que se encontrava o
arcabouço fundamental da moral sexual europeia moderna”.
Este novo interesse afasta Foucault da hipótese sustentada até História da
Sexualidade I. A Vontade de Saber. Aí, ele afirma que, a partir do século XVIII,
ao invés de se instaurar apenas a repressão sexual, instaura-se um processo de
produção, uma multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do
exercício do poder. O projeto moderno de “colocação do sexo em discurso” e
sua obstinação em constituir uma ciência da sexualidade, “sem dúvida através
de muitos erros, formara-se, há muito tempo, numa tradição ascética e
monástica”, diz ele, então.

© Ana Teixeira. Reprodução

Para Foucault, o dizer verdadeiro é intrínseco às práticas de si. Esta é uma ética
que diz respeito a uma estética da existência, a arte de viver como governo da
própria vida
Porém, ao analisar a maneira pela qual é inventado, na Antiguidade grega
e romana, um tipo de relação de si com o corpo e com o prazer, Foucault
mostra sua irredutibilidade ao modelo cristão da decifração do desejo,
rediscutindo a noção de ética e diferenciando-a de moral. A partir desta
análise, ele concebe a ética como um modo de vida no qual bem e bom não
são contraditórios entre si; em que o indivíduo e o outro não se sujeitam a
elementos externos como regras transcendentais, princípios formais ou
universalidades racionais prévia e definitivamente dadas. Seu objetivo é
deslocar as fronteiras das morais vigentes para que o sujeito possa ser levado a
se transformar, estilizando sua vida na presença do outro, amigo ou mestre
virtuoso.
A moral é definida como um conjunto de valores e de regras de ação que
são propostos aos indivíduos e aos grupos por intermédio de diferentes
aparelhos prescritivos como a família, as instituições educativas, as igrejas, os
sistemas de leis, de prescrições do código moral. Ela produz uma moralidade
dos comportamentos que corresponde a uma variação individual mais ou
menos consciente, que é a maneira pela qual os indivíduos se submetem a um
princípio de conduta, obedecem ou resistem a uma interdição ou prescrição,
respeitam ou negligenciam um conjunto de valores.
Já a ética é concebida como a maneira pela qual o indivíduo se
transforma, constituindo-se como o próprio sujeito moral do código. A
questão da ética é conduzida por Foucault com base na problematização dos
processos históricos segundo os quais as estruturas de subjetivação ligaram-se
a discursos de verdade, através do que se construíram, desde a Antiguidade,
formas de subjetivação. Essas formas se dão como um trabalho dos indivíduos
de modificação de si mesmos, ligados à parrhesia, que Foucault traduz por
“dizer verdadeiro”.
O dizer verdadeiro é intrínseco às práticas de si, que são técnicas da
Antiguidade grega voltadas para a vida considerada como uma obra de arte.
Esta é uma ética que diz respeito à estética da existência, uma arte de viver
como governo da própria vida cuja finalidade é dar-lhe a forma mais bela
possível – uma das hipóteses mais interessantes de Foucault com relação a
esta questão.
Em suas conferências proferidas na Universidade da Califórnia, em 1983
Foucault apresenta seus estudos sobre a noção grega de parrhesia,
compreendida como práticas envolvendo um discurso que é uma verdade
ligada à atitude de coragem, que se afirma, não devido a seu caráter lógico ou
retórico, à sua habilidade argumentativa, mas devido a uma atitude de risco,
de perigo, um modo de vida com o qual aquele que diz a verdade se acha
comprometido.
O dizer verdadeiro é imanente a práticas que buscam uma existência bela,
brilhante, heroica, por meio do cuidado de si, da elaboração de si, do governo
de si – tema presente na reflexão moral desde o Alcibíades de Platão até
Sêneca, Marco Aurélio, Epíteto. Sócrates, por exemplo, poderia ser
considerado um parrhesiastes por viver de acordo com suas afirmações mesmo
diante do risco de sua morte; sua coragem e austeridade no cuidado de si
davam beleza à sua existência.
Ao traçar uma história de como o homem, em nossa cultura, elabora um
saber sobre si mesmo, Foucault analisa as técnicas utilizadas para fazê-lo em
sua relação com as diferentes matrizes da razão prática como: as técnicas
capitalistas de produção dos objetos; as técnicas dos sistemas de signos que
estabelecem a comunicação; as técnicas de poder, que determinam a conduta
dos indivíduos, os submetem a certos fins ou à dominação, tornando-os
objetos de poder e de saber, na modernidade; as técnicas de si, que permitem
aos indivíduos efetuar, com a ajuda dos outros, um certo número de operações
sobre seu corpo e sua alma, seus pensamentos, suas condutas, seu modo de
ser, de se transformar a fim de alcançar um certo estado de felicidade, de
pureza, de sabedoria, de perfeição ou de imortalidade.
Essas técnicas não funcionam separadamente, apesar de cada tipo estar
associado a uma determinada forma de dominação, e implicar modos de
educação e de transformação dos indivíduos, na medida em que se trata de
adquirir certas aptidões e atitudes. Em seu pensamento tardio, a análise da
interação operada entre si mesmo e os outros indivíduos, assim como as
técnicas de dominação individual, isto é, o modo de ação que um indivíduo
exerce sobre si mesmo através das técnicas de si, desempenham um papel
central.

■ O governo de si
Neste centro encontra-se a articulação entre as técnicas do poder e as
técnicas de si. Pode-se considerar a noção de governamentalidade um dos
principais conceitos operatórios para tal genealogia. Ela é o conjunto de
técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens,
permitindo-nos falar de governo – em seu sentido amplo do século XVI:
governo das crianças, de uma família, de uma casa, um principado, um
Estado, bem como governo das almas ou de si mesmo. Enfim, governo de si e
dos outros. Governo de si, condição do governo do outro, que o cristianismo
reorganizou instituindo uma hermenêutica de si que é uma decifração de si
próprio como sujeito de desejo.
O método de tal pesquisa distingue os atos do código moral e substitui
uma história dos sistemas de moral, feita a partir das proibições, por uma
história das problematizações éticas, feita a partir das práticas de si. Aí, os
atos, as condutas são o comportamento efetivo das pessoas diante do código
moral que lhes é imposto, de suas prescrições. Diz Foucault, em O Uso dos
Prazeres: “Mas não é só isso. Com efeito, uma coisa é uma regra de conduta;
outra, a conduta que se pode avaliar ante essa regra. Mas outra coisa ainda é a
maneira pela qual é necessário ‘conduzir-se’ – isto é, a maneira pela qual se
deve constituir a si mesmo como sujeito moral, agindo em referência aos
elementos prescritivos que constituem o código”.

© Roberto Jacoby, La Castidad, série de 12 fotografias, 2007. Reprodução


Fotografia do artista argentino Roberto Jacoby. Foucault ressalta em O Uso dos
Prazeres: “Uma coisa é uma regra de conduta; outra, a conduta que se pode
avaliar ante essa regra”

Em O Uso dos Prazeres são apontados três componentes da moral: o


código moral – conjunto prescritivo de valores e regras de ação propostas ao
indivíduo e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos como
família, instituições educativas etc.; a moralidade dos comportamentos –
comportamento real dos indivíduos em sua relação com as regras e valores
propostos; e a ética propriamente dita, em que se reúnem as práticas ou
técnicas de si.
Foucault se contrapõe, portanto, à tradição das histórias da moral que se
enganam; pois essa tradição focaliza exclusivamente a história das formas da
subjetivação moral. Este tipo de análise constitui-se de uma busca histórica e
filosófica fundada no importante pressuposto de que a ação moral é
indissociável das formas de atividade sobre si, que são tão diferentes de uma
moral a outra quanto o sistema de valores, regras e interdições.
Também o elemento forte e dinâmico de uma moral é diferente nas
diversas morais. Sua ênfase, afirma Foucault, pode estar do lado do código, de
sua capacidade de ajustar-se a todos os casos possíveis, sendo uma moral das
instâncias de autoridade (aprendizagem do código, sua observação e sanções).
Neste caso, a subjetivação opera-se de forma quase jurídica, com predomínio
da lei. Mas há também morais orientadas para a ética, cuja ênfase está do lado
das formas de subjetivação e das práticas de si, como é o caso da Antiguidade
greco-romana, e, aí, o sistema dos códigos pode ser bem rudimentar. No
cristianismo houve justaposições, conflitos e até composições desses tipos de
ênfase.
Vejamos o argumento em O Uso dos Prazeres. Aí são distinguidos quatro
aspectos que compõem a ética nas morais antiga e cristã. O primeiro aspecto é
a ontologia ou determinação da substância ética, isto é, o modo pelo qual o
indivíduo deve considerar uma determinada parte de si como sendo o material
principal sobre o qual vai se pautar sua conduta moral. Na moral grega
clássica, do ponto de vista da sexualidade, trata-se da aphrodisia, a saber, ato,
prazer e desejo; na moral cristã, trata-se da “carne” definida a partir da
finitude, da queda e do mal. O segundo aspecto é a deontologia, isto é, o
modo de sujeição, que é aquele pelo qual o indivíduo estabelece sua relação
com a regra e se reconhece como ligado à obrigação de colocá-la em prática.
São, na moral grega, as condições e as modalidades de seu uso, e, na moral
cristã, a lei e a obediência. O terceiro aspecto é a ascética, isto é, as formas do
trabalho ético, da experiência ética, que o indivíduo efetua sobre si mesmo,
não somente para tornar seu comportamento conforme uma regra dada, mas,
sobretudo, para tentar se transformar a si mesmo em sujeito moral de sua
conduta. É, na moral grega, a forma ativa de mestria de si, e, na cristã, a
decifração da alma e a hermenêutica dos desejos, subordinadas à obediência
incondicional à figura do pastor. Finalmente, uma teleologia do sujeito moral,
sua finalidade, que é a constituição de uma conduta moral que leva o
indivíduo a um certo modo de ser, característico do sujeito moral. Na moral
grega constitui-se da busca da liberdade ativa indissociável de uma relação
com a verdade, e, na cristã, da busca da pureza que tende à renúncia a si.
O que significa, para Foucault, que uma ação para ser chamada moral
não pode ser reduzida a um ato ou a uma série de atos conformes a uma regra,
lei ou valor. Pois envolve uma certa relação a si – que não é simplesmente
consciência de si, mas sobretudo constituição de si como experiência, como
sujeito moral, experiência na qual o indivíduo circunscreve a parte dele
mesmo que constitui o objeto de sua prática moral, define sua posição em
relação ao preceito que respeita, estabelece para si um certo modo de ser que
valerá como realização moral dele mesmo. Para tanto, age sobre si mesmo,
procura conhecer-se, aperfeiçoa-se, transforma-se. “Não existe ação moral
particular que não se refira à unidade de uma conduta moral; nem conduta
moral que não implique a constituição de si mesmo como sujeito moral; nem
tampouco constituição do sujeito moral sem ‘modos de subjetivação’, sem
uma ‘ascética’ ou sem ‘práticas de si’ que as apoiem.”

■ “Cuidado de si mesmo x “Conhece-te a ti mesmo”


Em O Cuidado de Si, Foucault estuda o que ele denomina cultura de si,
apontando, no pensamento filosófico e médico dos primeiros séculos de nossa
era, uma inquietude e uma severidade crescentes a respeito dos prazeres,
inclusive os sexuais, que de alguma maneira independem do poder público, da
lei ou dos costumes propriamente. Antes, dizem respeito a uma iniciativa de
certos indivíduos e grupos que intensificaram e valorizaram as relações de si
consigo mesmos por meio de uma filosofia fundada, desde o helenismo, no
preceito da ascese e no preceito do “cuidar-se”.
Esse preceito envolve inúmeras atividades, tarefas práticas, exercícios,
muitos cuidados consigo mesmo, numa correlação estreita entre a prática e o
pensamento filosóficos, médicos e morais. Por exemplo, exame de
consciência, cuidados do corpo, regimes de saúde, exercícios físicos sem
excesso, satisfação tão comedida quanto possível, meditações, leituras,
anotações de conversas ou de livros a serem relidas em seguida, rememoração
das verdades que já se conhecem para delas melhor apropriar-se, conversas
com um confidente, correspondência em que se expõe o estado de sua alma,
solicitação de conselhos. É, portanto, um conjunto de atividades da palavra e
da escrita em que se ligam o trabalho de si sobre si e a comunicação com
outro, que são práticas ao mesmo tempo individuais e sociais.
Nessas práticas, o conhecimento ocupa, sem dúvida, um lugar
considerável. Entretanto, para Foucault, sua finalidade não é a renúncia de si,
como no pensamento do cristianismo, mas a aquisição de uma virtude que
permitiria a constituição de uma soberania de si, de uma forma de medida e
da confirmação da independência quanto a tudo aquilo que não é
indispensável nem essencial. Nesses trabalhos sobre si inclui-se aquele do
pensamento sobre si mesmo. Seu papel é operar uma filtragem permanente
das representações, seguindo o princípio daquilo que depende ou não de nós,
em que se desvaloriza o que não depende de nós, para a conversão a si e a
posse de si.
Foucault elabora essa questão, por um lado, ao definir a filosofia como
estilo de vida e não como posse da habilidade argumentativa com vistas à
descoberta da verdade; por outro, ao rediscutir a noção de ética,
desvinculando-a dos tradicionais problemas morais.
Em O Cuidado de Si, é no quadro dos temas e das práticas de uma cultura
de si que se desenvolveram, nos séculos I e II, reflexões sobre a moral dos
prazeres e sua austeridade, não em resposta a interdições mais duras, não
como tentativas de barrar o desejo, mas em busca de certas modificações no
âmbito da constituição da subjetividade moral. Nessa época, a moral sexual
ainda exigia que o indivíduo se sujeitasse a uma certa arte de viver que definia
os critérios estéticos e éticos da existência como no helenismo; só que essa
arte, na idade do ouro da cultura de si, referia-se, cada vez mais, a princípios
universais da natureza ou da razão.

© Pedro Bonnin, Mush & Fabi, óleo sobre tela, 2008. Reprodução.

Pintura do mexicano Pedro Bonnin. A moral grega clássica encara a sexualidade


como prazer e desejo; e a moral cristã, como queda e mal

A definição do trabalho a ser realizado sobre si mesmo sofre, então, uma


mudança que coloca a questão da verdade no centro da constituição do sujeito
moral, apesar de ainda ter, como ponto máximo de sua elaboração, a
soberania do indivíduo sobre si mesmo. Porém, essa soberania amplia-se
numa experiência em que a relação a si ganha a forma não apenas de uma
dominação, mas de um prazer consigo, isento de desejo e de perturbação.
Apesar dos cuidados e temores que a experiência dos prazeres sexuais
inspira, ainda há uma distância entre esta experiência e sua associação ao mal,
ao comportamento submetido à forma universal da lei, à decifração do desejo
como condição indispensável para uma existência purificada como acontecerá
no ascetismo cristão. Já aparecem, contudo, a questão do mal ligado ao antigo
tema da força, a questão da lei fazendo uma inflexão no tema da arte e da
técnica, e a questão da verdade e o princípio do conhecimento de si ligando-
se às práticas da ascese.
Nesse contexto, coloca-se a hipótese foucaultiana de que o preceito
délfico do “conhece-te a ti mesmo” teria aparecido na filosofia ligado a
Sócrates, subordinado ao quadro mais geral do preceito do cuidado de si,
sendo uma de suas formas, uma de suas aplicações concretas e particulares;
que o cuidado de si, sendo uma de suas formas, uma de suas aplicações
concretas e particulares; que o cuidado de si teria percorrido, com diferentes
modalidades, todo o decurso da filosofia antiga, tendo seu apogeu nos séculos
I e II de nossa era; teria sido reencontrado no cristianismo tornando-se uma
espécie de matriz do ascetismo cristão.
Definido como conjunto de experiências modificadoras do sujeito para
ter acesso à verdade com a finalidade de transformar o ser mesmo do sujeito,
o cuidado de si é privilegiado por Foucault como ponto de partida e
fundamento da moral na Antiguidade, em contraposição ao privilégio
concedido pelos historiadores e antropólogos ao preceito délfico, e teria
perdido sua importância com a introdução, na filosofia moderna, do princípio
da evidência da consciência.
Tal princípio interroga as condições e os limites do acesso do sujeito ao
conhecimento, situando-as no próprio conhecimento, por meio de uma
analítica da verdade. As técnicas de si ou artes da existência perderam grande
parte de sua importância e de sua autonomia não somente quando se impõe o
princípio da evidência do sujeito e da verdade na consciência, mas já
anteriormente com o cristianismo, quando estas técnicas foram integradas ao
exercício do poder pastoral e, mais tarde, às práticas modernas de tipo
educativo, médico ou psicológico.
Embora tenha perdido para nós sua força, esta noção de cuidado de si
constituiu, na Antiguidade, um dos grandes princípios das cidades, uma das
regras de conduta da vida social e individual. Contudo, quando perguntamos:
“Qual é o princípio moral que domina toda a filosofia da Antiguidade?”, a
resposta imediata não é “tomar cuidado de si mesmo”, mas o princípio
délfico, “conhece-te a ti mesmo”.

■ “O mundo é nossa sala de aula”


Com esta forma original de introduzir a questão da ética grega centrada
no trabalho de si sobre si, Foucault investiga de que modo a atividade sexual
foi constituída como problema moral, e isso mediante as técnicas de si que
permitem assegurar o domínio dos prazeres e dos desejos. Esta é, na
Antiguidade grega, uma experiência ética com forte ênfase no prazer e seu
uso, apesar da crescente tensão que aí se observa entre o prazer e a saúde.
A hipótese, explicitada em seu pensamento tardio, segundo a qual há um
campo de historicidade complexa e rica na maneira pela qual o indivíduo é
chamado a se reconhecer como sujeito moral da conduta sexual, conduzirá à
análise da maneira pela qual esta forma de subjetivação se estabeleceu e se
transformou, a partir do pensamento grego clássico até a constituição da
doutrina e da pastoral cristã da carne.
Ao buscar, com essas análises, uma possibilidade de resistência a um tipo
de subjetividade que, desde o começo da modernidade, aparece como uma
produção dos saberes e dos poderes que se exercem em nossa sociedade, cujos
pontos mais vivos são as instituições, inclusive as educacionais atuais, sem
com isto cair na afirmação de um sujeito universal, Foucault tenta encontrar
um modo de o pensamento escapar de si mesmo e “mostrar que as pessoas são
muito mais livres do que pensam; pois elas consideram evidentes e
verdadeiros temas que foram fabricados e esta pretensa evidência pode ser
criticada e destruída”. Esta atitude consiste na capacidade e na coragem de
elaborar sua própria subjetividade, afastada da “verdade” do “sujeito-
identidade” e do poder normalizador da lei e das ciências do homem
hegemônicos em nossa educação.

© Abir Karmakar, I Love Therefore I am, óleo sobre tela, 2006 Reprodução
Pintura do artista indiano Abir Karmakar intitulada: Eu amo, portanto eu sou. O
cuidado de si constituiu, na Antiguidade, uma das regras da conduta da vida social
e individual

Sua relevância deve-se à possibilidade que nos oferece de avaliar até que
ponto é possível entrever um novo campo de invenções que permita fazer ver,
hoje, margens, em que o sujeito se constitua como sujeito ético de ação, pela
experimentação no pensamento. Pois ainda pertencemos “à escola de um
mestre que só pergunta a partir das respostas inteiramente escritas em seu
caderno; o mundo é nossa sala de aula. [...] a obrigação de pensar ‘em comum’
com os outros, o domínio do modelo pedagógico, [...] eis toda a vilania moral
do pensamento, da qual seria fácil sem dúvida decifrar o jogo em nossa
sociedade. É preciso nos libertarmos disso”.

VERA PORTOCARRERO é professora titular de Filosofia da Universidade do Estado


do Rio de Janeiro, pesquisadora do Prociência/Faperj, autora de diversos
artigos sobre Foucault, de Arquivos da Loucura (Fiocruz, 2002), organizadora
de Filosofia, História e Sociologia das Ciências: Abordagens Contemporâneas
(Fiocruz, 1998)
EM ATO

Por Rosa Maria Bueno Fischer


Foucault e os meninos
infames de Cidade de Deus
Neste filme, veem-se modos de exclusão aprendidos há
séculos e que estão sempre se transformando. O mesmo
ocorre com práticas de direito sobre a vida e a morte
© Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, 2005. Reprodução

Os infames do século XVII estudados por Foucault ecoam no filme Cidade de


Deus, de Fernando Meirelles

Como pensar um filme a partir de Foucault? Várias opções se abrem para


quem percorre a obra do filósofo e com ele aprende a escapar das grandes
unidades, a fim de aceitar as multiplicidades e os acontecimentos; a operar
com jogos de verdade; a investigar em suas descontinuidades práticas sociais,
imersas em relações de poder; a pensar no divórcio entre as palavras e as
coisas. O leque de escolhas mostra-se tão vasto quanto a riqueza da obra do
autor.
Experimentei um longo tempo até decidir sobre o filme Cidade de Deus
[sobre o filme, ver o site http://cidadededeus.globo.com], de Fernando
Meirelles. Talvez esse não seria propriamente um “filme foucaultiano”, como
tantos que tratam de diferentes formas de enclausuramento na sociedade
ocidental. Um filme como O que Você Faria?, de Marcelo Piñeyro (de 2005),
uma espécie de Big Brother em que candidatos a um posto executivo são
vigiados sem saber, não poderia ser mais foucaultiano. Cidade de Deus foi
escolhido pelo marco que significou na história do cinema brasileiro, em vista
da ampla circulação que teve em vários países; e, principalmente, por aquilo
que neste filme nos convoca: aqueles jovens da favela carioca Cidade de Deus
não são apenas olhados por nós e pelas câmeras de Meirelles; eles nos olham.
Aqueles meninos nos olham e nos contam algo da história brasileira.
Como diz Ismail Xavier, em O Olhar e a Cena (2003), o cinema nos
permite usufruir de um olhar privilegiado, através do qual podemos assistir ao
maior dos horrores e permanecer a salvo – já que se trata de um olhar sem
corpo, que se dá por meio do olho da câmera. Mas quando escrevemos sobre
a narrativa, não é possível permanecer a salvo. Aliás, haveria sempre uma
mistura de fruição e de exercício de pensamento, quando pensamos um filme:
a magia de estar e não estar lá – por exemplo, no horror da guerra do tráfico –
tem a ver com uma experiência que é misto de atividade e passividade.
Inspirada em Foucault, proponho-me a abrir algumas das enunciações do
filme, a localizar cenas e sequências, retomando gestos, ritmos e sonorizações
pelos quais fui “tomada”, como pesquisadora em educação. A ideia é articular
essas imagens a enunciados de um determinado tempo e a relações de poder
específicas, buscando ecos das escritas do filósofo, ora usadas como
ferramentas teóricas, ora como sugestões de outros modos de pensar o que
vemos.
■ Pedagogias da exclusão
Meirelles constrói a narrativa em torno de existências ínfimas: existências
de meninos entre 8 e 20 anos, que passam na tela à condição de “existências-
clarão”. Da vida na favela, passam a personagens de livro e, na sequência, a
protagonistas de um filme que chega a Hollywood. Seguindo as pegadas de
Foucault em “A Vida dos Homens Infames”, podemos dizer que os
personagens de Cidade de Deus são vidas obscuras e desafortunadas que,
alçadas à visibilidade midiática, misturam beleza e assombro. Inteiramente
diferentes dos infames descritos por Foucault, e paradoxalmente próximos
deles, eles aparecem no século XXI – em 2003, quando é lançado o filme –,
encarnando histórias dos anos 1970 e 80, numa favela do Rio de Janeiro, no
momento em que emerge a possibilidade de “existirem”, por meio de ações
relacionadas ao controle do tráfico, num sistema próprio de poder, ao mesmo
tempo à margem e por dentro do sistema oficial.
Para esses jovens, a exposição ao olhar do poder decerto não se dá pelo
caminho dos infames do século XVII estudados por Foucault. A denúncia da
infâmia dispõe hoje de toda uma rede de comunicação, dos jornais impressos
à TV, do telefone celular à internet. Dispõe também da literatura e do
cinema. E nos anos 1970 e 80, período recriado no filme, as páginas dos
jornais impressos tinham um lugar de poder inquestionável como tecnologia
de comunicação e de atribuição de poder. Tratava-se de outra formação
social, outra ordem discursiva. Os infames de Foucault, entretanto, ecoam em
Cidade de Deus. Pedem que se faça a história destas gentes desafortunadas,
agora narradas inclusive em cadeia nacional, para milhões de brasileiros –
como ocorreu com o documentário de MV Bill, Falcão, Meninos do Tráfico,
veiculado no Fantástico, em março de 2006. Enfim, aprendemos com
Foucault que determinados princípios de exclusão e de exposição de
anormais, loucos ou indesejados não deixam de existir: há deslocamentos
desses princípios, eles não se apagam, exercem-se​ de outro modo,
correspondem a novas formas de vontade de poder e saber.
Gostaria de pensar sobre a hipótese de Foucault em relação aos homens
infames e ao que olhamos e ao que nos olha em Cidade de Deus. Foucault
(1992) pesquisou documentos que remontam aos séculos XVII e XVIII, na
França, basicamente cartas dirigidas ao rei, pedindo a prisão de soldados
desertores, monges vagabundos, mulheres e homens escandalosos e danados.
Para o autor, essas vidas não chegariam até nós se algum feixe de luz não se
tivesse posto sobre elas. No caso, como denúncia, como pedido de prisão. O
poder que as aprisionou, que as vigiou e as entregou ao poder real, foi o
mesmo que nos possibilitou o acesso a elas. São pessoas que teriam
desaparecido se não houvessem momentaneamente se defrontado com o
poder: foram para sempre fixadas em narrativas, nas quais se tornaram
visíveis. São histórias de vida, de desgraça, loucura e morte, que carregam em
si beleza e assombro, justamente porque registradas em breves textos que
marcaram o destino de vidas efetivamente “reais”. Mediocridade e “medonha”
grandeza – tudo ao mesmo tempo.
Ora, desde Griffith, o cinema tem feito incidir luz sobre feridas sociais,
sobre tipos escusos, escandalosos, marginais, defrontados com o poder. O
personagem Carlitos, de Chaplin, é exemplar. No Brasil, os últimos anos
parecem mostrar uma tendência que retorna ao cinema: a de falar dos
problemas sociais. Vejam-se filmes como Cidade Baixa, de Sérgio Machado, e
os documentários de Eduardo Coutinho e Marcelo Masagão: neles, vidas
singelas e insignificantes recebem o olhar das lentes do cinema, e nos são
oferecidas sem a necessidade de roteiros padronizados e fórmulas dualistas,
mediante os quais se toca nas feridas sociais sem correr o risco de perder a
audiência.
Ora, o filme Cidade de Deus parece fazer uma opção semelhante, à qual,
porém, se mescla a marca pelo cinema de qualidade técnica, pelas regras do
mercado, enfim, pela bilheteria. Diria mais: há no filme uma opção pela
crueza das cenas e das histórias, semelhante ao que nos oferece o ganhador do
Oscar de 2006, Crash – No Limite (de Paul Haggis). Neste, acabamos por nos
perguntar sobre um tempo em que se multiplicam infames, e em que alguns
(muitos) se sentem convocados a tornar-se coautores de “cartas ao rei”,
porque os diferentes (o indiano, o jamaicano, o mexicano, o norte-americano
negro, o afegão) estão ali, a cutucar o temor generalizado de um outro que
parece já não ser possível normalizar. E que é preciso, de alguma forma,
eliminar, ou pelo menos violentar, ferir, humilhar.

© Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, 2005. Reprodução

Os personagens de Cidade de Deus são vidas obscuras e desafortunadas que,


alçadas a visibilidade midiática, misturam beleza e assombro

As práticas de disciplinamento estudadas por Foucault, no interior de


instituições como prisões, hospitais, hospícios, quartéis, fábricas, sem dúvida
não desapareceram – basta visitar uma escola de ensino fundamental no Brasil
ou em outros países. Toda a analítica do poder, feita por Foucault em várias
de suas pesquisas e exposta com rigor insuperável em A Vontade de Saber
(1990), talvez possa nos ajudar a ver que, em Cidade de Deus, trata-se de
relações de poder muito específicas, já que experimentadas à margem e
sempre em situação explícita de violência, em cada personagem, em cada
pequena história de vida daqueles jovens. Ali, a disputa entre os grupos de Zé
Pequeno e Sandro Cenoura abre por dentro tensas relações que expõem em
ritmo alucinado de videoclipe, de que modo, para cada nova ordem instalada,
criam-se sistemas de regras, num ciclo infinito de dominações sobre
dominações.
Estamos falando aqui de uma cisão radical entre cidadãos e subcidadãos,
entre ricos e pobres, gente do asfalto e gente da favela, que instaura no
ambiente da favela relações de poder e de violência muito particulares. Na
narrativa de Cidade de Deus, tais relações acontecem entre crianças e jovens,
reproduzindo um ciclo que parece não ter fim. Toda a discussão de Foucault
sobre a microfísica do poder assume, aqui, uma configuração específica: trata-
se de um grupo social que resiste e cria sua própria linguagem, seus próprios
códigos de honra, de ética e de bom comportamento; ali, cada novo chefe,
cada novo grupo de “soldados” das facções terá todo o poder, de vida e de
morte, um poder tão grande quanto frágil, pois a ordem das coisas pode se
inverter a qualquer momento.
Interessa-me pensar sobre as relações de poder neste filme, que opta por
jogar-nos no rosto a violência em estado quase puro. O que Cidade de Deus
parece fazer é concentrar-se nas relações de poder internas à favela e ao
mundo do tráfico de drogas, no Rio de Janeiro – nos anos de 1970 e 80, bem
antes do agravamento substancial do problema, que passou a atingir várias
capitais do país. Tais relações atingem diretamente as crianças e adolescentes,
cuja única forma de “pegar consideração” – como dizem os personagens –, ter
algum poder, ser reconhecido, é simplesmente matar, “passar” os outros,
todos que atravessarem seu caminho.

Várias cenas de Cidade de Deus parecem remeter-nos à descrição dos


Várias cenas de Cidade de Deus parecem remeter-nos à descrição dos
suplícios vividos pelos criminosos do século XVII descritos em Vigiar e Punir
(1991), de Foucault. As sequências de barbárie a que são submetidos os
jovens e crianças não deixam entrever quase nenhuma experiência que não
seja a da banalização da morte e da vida. E não é só o assassinato do inimigo
de facção dentro da favela: pode ser o assassinato da mulher, por ciúme ou o
que for, como acontece com o personagem Paraíba, que no filme enterra viva
a mulher. Ninguém escapa, a não ser o narrador do filme, Buscapé, menino
que se torna fotógrafo e através de cujo olhar conhecemos a trajetória dos
demais personagens.
O filme de Meirelles nos conduz a uma realidade do final do século XX,
no Brasil, a qual parece concentrar-se no exercício de um direito de vida e de
morte muito particular: tal exercício se dá entre chefes do tráfico, mal saídos
da adolescência, e que não chegarão a mais de 25 anos, se tanto; e se reproduz
com a mesma agilidade de clipe de montagem, numa sequência ao infinito de
assassinatos, que ali existem como normalidade cotidiana e como lição
número um para os que desejam “ser alguém”. Por fim, é um tipo de prática
“jurídica” que não poupa principalmente as crianças – submetidas a uma
pedagogia do crime, ao aprendizado do poder de “macho”, visível pela
potência da arma empunhada e as respectivas execuções que ela permite.

■ “Sou sujeito homem”


Numa das cenas em que é “acusado” de ser criança, o personagem
batizado de Filé com Fritas, do alto de seus 10 anos de idade, de alguém que
presenciou um sem-número de assassinatos e cenas de violência, nos olha de
baixo para cima, sério, dirigindo-se a Zé Pequeno e reivindicando
participação no grupo do líder: “Meu irmão, eu fumo, eu cheiro, já roubei, já
matei... Não sou criança não. Sou sujeito homem”. Em outra cena, num
espaço que lembra os “chiqueirinhos” domésticos de crianças, oito meninos
em torno de 9 anos de idade fumam maconha e discutem a forma mais rápida
de “pegar consideração”: é preciso fazer como o Zé Pequeno, que pra subir
“passa todo o mundo e pronto”. É o momento de passagem, do grupo da
“Caixa Baixa”, de assaltantes a traficantes. Os mesmos que, no final do filme
eliminam Zé Pequeno e, de armas na mão, gingam pelas ruelas, poderosos.

© Crash,no limite, de Paul Haggis,2005. Reprodução

Em Crash - No limite, de Paul Haggis, está evidente a angústia de


normalizar aqueles que já não parecem passíveis de
normalização

A lição foi aprendida: eles já estavam suficientemente subjetivados; seu


A lição foi aprendida: eles já estavam suficientemente subjetivados; seu
linguajar, o modo de andar e olhar, tudo é a própria inscrição nos corpos
daquilo que viveram na carne. As câmeras, a iluminação, a perfeita
“incorporação” de personagem nos atores – tudo no filme parece carregar a
cena mais dramática, a mesma cena que a nós, espectadores, deixou sem voz e
respiração. Falo do momento em que Zé Pequeno chega para colocar ordem
na favela, exigindo bom comportamento de quem roubava os moradores da
comunidade. Plenamente dono de vidas e mortes, Zé Pequeno não pede,
exige que uma das crianças, como repreensão, escolha onde vai levar o tiro;
outro deve decidir qual dos colegas deve morrer, e no qual ele mesmo deverá
atirar. A criança que chora, inconsolável e “infantil”, é a escolhida pelo
companheiro. Este é seguramente o momento mais dramático da narrativa,
em que se destaca o desempenho impecável dos pequenos atores – aliás, o
grande diferencial do filme.
Entendo que esse clímax da narrativa parece conter a memória discursiva
de outras épocas: por um lado, a cena capta algo do tempo dos soberanos do
século XVII, senhores que tinham o privilégio de se apoderar das vidas e
igualmente de suprimi-las; por outro, algo também da primeira metade do
século XX, com marcas de um verdadeiro genocídio. No primeiro caso, algo
relacionado ao velho direito de matar; no segundo, algo que remete aos
poderes modernos, os quais se exercem, segundo Foucault, em nome da vida.
Nesse filme, mostra-se um poder que se exerce em nome da vida das
populações, na medida em que aqueles agentes tornam-se sujeitos de um
discurso segundo o qual, mesmo de modo não explícito, marginais “devem”
ser eliminados, para o saneamento geral da nação. As palavras do rapper MV
Bill, em um depoimento ao site da Globo em 2006, não podem ser mais
claras, ao referir-se às populações pobres envolvidas com o tráfico: “as
comunidades vivem uma situação de guerra onde os homens não param de se
matar. A maioria dos personagens, por volta dos 16 anos, já não tem pai e
seus filhos estão prestes a ficar órfãos. Aos 16 anos, é o fim da linha da vida
deles. Estamos diante de um verdadeiro genocídio”.
É nos corpos que se inscreve a história; é sempre deles que ela trata. Isso
está em Nietzsche. Isso está em Foucault. Quem nos olha da tela de Cidade de
Deus são crianças, são jovens. O personagem Bené, por exemplo, nos olha
acenando com a possibilidade de sair do crime; marca esse desejo pintando o
cabelo de louro e vestindo roupa de playboy. Toda essa quase lírica preparação
para uma nova fase da vida é embalada pela célebre composição de Raul
Seixas, muito ouvida naqueles anos: “Metamorfose Ambulante”. Bené não
chega a viver a felicidade adolescente com a namorada. É morto em plena
festa de despedida. O aprendizado da vida se dará pelo tiro na mão, pelo tiro
no peito; acontecerá na prática de manejar uma arma, quase tão pesada
quanto a criança que a empunha. A eliminação de corpos juvenis é a marca
dessa história. Não há como escapar: como a galinha que foge no início do
filme, desesperada pelos labirintos da favela, e que ao final é depenada, assada
e consumida, ao ritmo de um samba popular.

■ Para além da representação da “realidade”


Gostaria de pensar agora sobre o tema da representação – em relação ao
filme Cidade de Deus. No texto sobre a tela Las Meninas, de Velásquez, assim
como em “Isto Não É um Cachimbo” (sobre Magritte), Michel Foucault
oferece-nos farto material para pensarmos as frágeis relações entre palavras e
coisas. Nesses escritos, o autor fala da irredutibilidade da linguagem à
imagem, e desta àquela. Da impossibilidade de, pela palavra, referirmos em
plenitude o que “estaria” nas imagens pintadas. Haveria um trabalho infinito
– diante de um quadro, por exemplo –, uma tarefa para sempre incompleta,
como escreve Foucault em “Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema”,
volume III dos Ditos e Escritos (2001): “por mais que se diga o que se vê, o que
se vê não está jamais no que se diz, e por mais que se faça ver por imagens,
metáforas, comparações o que se vai dizer, o lugar onde elas resplandecem
não é aquele que os olhos percorrem, mas aquele que as sucessões da sintaxe
definem”.

© Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, 2005. Reprodução

Varias cenas de Cidade de Deus parecem remeter-nos à descrição dos suplícios


vividos pelos criminosos do século XVII, descritos por Foucault em Vigiar e Punir

Podemos, no caso de Cidade de Deus, procurar os personagens do


romance de Paulo Lins e nomeá-los, reconhecê-los na narrativa fílmica de
Meirelles. Podemos apontar com o dedo meninos “reais” do Rio de Janeiro e
dizer: o filme “representa” esta realidade. De fato, seria ingênuo afirmar que o
cineasta tratou de outra realidade e não dessa. Mas é preciso distinguir filmes
cuja narrativa seria mais (ou menos) marcada pelo desejo de tudo dizer, de
tudo cobrir, deixando ou não espaços para a criação possível dos espectadores.
Alain Badiou prefere distinguir filmes que se caracterizariam por serem mais
carregados de impurezas, de outras produções, mais “puras” – entendendo que
desde sempre o cinema seria feito de impurezas, como as ligadas às condições
de produção industrial, busca do maior número de espectadores, dependência
de financiamentos etc. Nessa perspectiva, Cidade de Deus seria um filme de
grande público, pleno de “impurezas”, porque se entrega à linguagem do
clipe, à espetacularização da violência, sem oferecer espaços em branco, do
mesmo modo que o drama O Que Você Faria?.
Ambas as produções teriam uma “impureza” fundamental: carregariam
em si o desejo de atar o mais fortemente possível as imagens às coisas, no
esforço inatingível de confundir o visível com o “real”. Foucault nos diz
justamente que o fato de algo se fazer visível, em pinturas ou outras imagens,
atestaria seu afastamento de qualquer realidade. O filme, ele mesmo seria uma
outra realidade: apesar de todo o esforço em retratar, em refletir, em imitar,
haveria uma invisibilidade total de algo se fazer presente, “mesmo em uma
representação que se oferecesse a si mesma como espetáculo”.
Foucault nos estimula a abandonar a dicotômica ideia de que existiria
alguma coisa “lá fora” – a pobreza e a violência nas favelas brasileiras, por
exemplo –, enquanto nós, espectadores, ou o próprio Meirelles, estaríamos
numa outra ponta, donos da palavra, das imagens, numa relação polarizada, a
nomear de outra forma aquilo que vemos e observamos; a interpretar e a
classificar as coisas ditas e observadas, a articular palavras e coisas, numa
relação de mútua dependência. Tal dicotomia replica em uma concepção de
linguagem segundo a qual insistimos em negar a vida como acontecimento,
relacionando a linguagem à eternidade, ao tempo, ao próprio sujeito-autor.
Pensar a linguagem para além daquilo que ela quer dizer. Esse é um
convite fundamental de Foucault. A partir da literatura e do cinema
especialmente, aprendemos com ele o não isomorfismo entre ver e falar, entre
o visto e o falado, entre a palavra e a coisa. Criar, escrever, pintar e filmar são
dessa ordem, têm a ver com um espaço que não se deixa apanhar por
completo, que é luta, fuga do instituído, que jamais se torna forma fixa –
embora na pintura, no cinema e na literatura também se possam evidenciar a
força do instituído, a lógica do mercado, a busca de soluções menos vitais de
linguagem, que acabam por limitar criações, como a meu ver é o caso de
Cidade de Deus, em muitos aspectos.
Vejamos, nesse sentido, o caso de dois personagens. Primeiro, a figura do
narrador, Buscapé: o menino consegue escapar à violência da favela, ao se
tornar fotógrafo, como sonhava. Mas o personagem é construído de tal forma
que a fotografia não parece emergir para ele como força desestabilizadora da
ordem vigente. Haveria, assim, a opção por uma solução individual, ao
mesmo tempo em perfeita conexão com outras ordens instituídas, como a dos
meios de comunicação de massa (no caso, o grande jornal, para o qual
Buscapé vende as fotos do bando de Zé Pequeno – cujo desejo de aparecer na
primeira página chegou a ser satisfeito, antes de ele ser morto). Já o
personagem Bené parece interpelar o espectador em direção a algo mais do
que a negação de um tipo de vida, para ele tornado intolerável: dourar o
cabelo, vestir roupa de rico, namorar como qualquer menino de sua idade,
dançar e festejar uma nova vida imaginada possível – tudo isso é narrado com
uma delicadeza que deixa espaços não cobertos por “significações cheias”.
Finalmente, seria importante ressaltar ainda as várias camadas de olhares
que se sobrepõem e cruzam no filme: o olhar de Buscapé, intermediado pelo
olho da máquina fotográfica, por sua vez mediado pelo olho da câmera de
Meirelles (que olha a escrita de Lins), além do nosso olhar de espectador.
Todos esses olhares acabam por narrar aquelas histórias reforçando a
impossibilidade de dizer por completo que “isto é a violência e a pobreza no
Brasil” e, ao mesmo tempo, reforçando a escolha de uma linguagem que busca
exatamente afirmar: isto é”.
Quando Meirelles nos faz ouvir “Metamorfose Ambulante”, pode sugerir
uma ligação com a transformação do personagem Bené (e então temos uma
busca de colagem das palavras às coisas); mas há a traição dada pela própria
composição de Raul Seixas, da qual temos memória, a acionar sentidos que
escapam a interpretações simplistas, ligadas a rastros de ausências, a
possibilidades de pensarmos outra coisa para além do é. Da mesma forma,
quando o diretor nos faz ouvir Cartola (a música e a letra de “Preciso Me
Encontrar”), o personagem Buscapé torna-se mais do que um menino
querendo sair da favela e tornar-se fotógrafo. Traições das imagens. Traição
das palavras. Multiplicação de sentidos. Impossibilidade de fixações. Por mais
que haja semelhanças com a realidade, há sempre outras relações sugeridas
pelo que vemos e ouvimos.
Penso que a análise de Cidade de Deus permite que nos afastemos das
interpretações desejosas de descobrir o que estaria “por trás” das coisas ditas,
para mergulhar nas superfícies das imagens e textos, sem a pretensão de
afirmar o que queriam dizer efetivamente. Busquei olhar o filme apontando
para modos de exclusão aprendidos por séculos, e que não cansam de
transformar-se, sempre outros, como também ocorre com o problema do
direito de vida e de morte. De outro, procurei mostrar a impossibilidade de
um filme dar conta de uma dada realidade, embora as escolhas do diretor
indicassem esforços nítidos de mostrar o que é, num ritmo veloz e quase
asfixiante de cobrir vazios, amarrando o espectador à lógica do “soco no
estômago”.

© Reprodução
Foucault nos estimula a abandonar a dicotômica ideia de que existiria alguma
coisa “lá fora”, enquanto nós, espectadores, estaríamos numa obra pronta

Neste texto, não deixei de considerar o fato de o filme ter gerado


inúmeras polêmicas, como a da opção pela estética da “pobreza” e pela
violência como espetáculo, em meio ao aplauso do grande público, desejoso
de mostrar “a cara” do país. A não identificação com o filme, por parte dos
moradores da favela “real”, igualmente pode ser incluída nessa trama de
olhares que se multiplicam, anunciando ainda outra vez: por mais que
queiramos, é impossível cercar as coisas ditas e apontar o que de fato elas
queriam dizer. Em Cidade de Deus, também evidenciamos o cruzamento de
vários discursos – do próprio cinema, articulado aos discursos econômico e
publicitário – e a certas escolhas estéticas, que ousaram na definição do elenco
e da trilha sonora, mas que por vezes deixaram a desejar, no sentido de nos
convocar com mais vigor no papel de espectadores-pensantes. A companhia
de Foucault, certamente, permitiu olhar uma face da história presente e
multiplicar perguntas sobre, afinal, como nos tornamos o que hoje somos.

ROSA MARIA BUENO FISCHER é professora da Faculdade de Educação e do


Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora do CNPq, coordenadora do GT
Educação e Comunidade da Associação Nacional de Pós-Graduação (ANPEd,
2005-2006), e foi editora da revista Educação & Realidade, da UFRGS, de
set/1997 a junho/2008 editora da revista Educação & Realidade, da UFRGS. É
autora do livro Televisão & Educação: fruir e pensar a TV (Autêntica, 2006, 3ª
ed.)
A EDUCAÇÃO POR FOUCAULT

Seleção: Alfredo Veiga-Neto


Excertos foucaultianos
Um panorama de temas da obra do autor e suas relações
possíveis com o campo educacional

■ Esclarecimento preliminar
Em geral, traçar um panorama acerca de um autor a partir de excertos de
sua obra é uma tarefa difícil e arriscada. Qualquer seleção é, obviamente,
sempre arbitrária, parcial e simplificadora. No caso de Michel Foucault – um
autor tão produtivo, diversificado e quase sempre polêmico – a dificuldade e o
risco assumem proporções alarmantes. Assim, o que se segue deve ser lido
como não mais do que uma amostra bastante modesta do que Foucault
produziu e que guarda relações mais ou menos diretas com o campo da
Educação.
Os excertos estão organizados por assuntos. As pessoas interessadas em
mais detalhes poderão encontrar várias outras passagens pertinentes
principalmente nas obras das quais as citações foram retiradas (e que constam
na bibliografia listada ao final). Os números entre parênteses, junto às
citações, referem-se à ordenação adotada naquela bibliografia.

■ Disciplina
A disciplinaridade é uma técnica de individualização do poder. (10)
De uma maneira global, pode-se dizer que as disciplinas são técnicas para
assegurar a ordenação das multiplicidades humanas. (5)
As “Luzes” que descobriram as liberdades inventaram também as
disciplinas. (5)
© Richard Long, Sem título, detalhe, argila sobre papel preto, 1992. Reprodução

Obra do artista inglês Richard Long. “As disciplinas são técnicas para assegurar a
ordenação das multiplicidades humanas”

No interior de seus limites, cada disciplina reconhece proposições


verdadeiras e falsas; mas ela repele para fora de suas margens toda uma
teratologia do saber. O exterior de uma ciência é mais ou menos povoado do
que se crê: certamente há a experiência imediata, os temas imaginários que
carregam e reconduzem, sem cessar, crenças sem memória; mas talvez não
haja erros em sentido estrito, porque o erro só pode surgir e ser decidido no
interior de uma prática definida; em contrapartida, rondam monstros cuja
forma muda com a história do saber. (16)
A disciplina é um princípio de controle da produção de um discurso. (16)
■ Linguagem, discurso e arqueologia
A arqueologia entende o discurso enquanto um conjunto de enunciados
que se apoia em um mesmo sistema de formação. (4)
Os discursos não são conjuntos de signos (elementos significantes que
remetem a conteúdos ou a representações), mas práticas que formam
sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos
de signos; mas o que eles fazem é mais que utilizar esses signos para designar
coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato de fala. (4)
Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é
uma moral do estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres
quando se trata de escrever. (4)
Se a linguagem exprime, não o faz na medida em que imite e reduplique
as coisas, mas na medida em que manifesta e traduz o querer fundamental
daqueles que falam. (8)
O verbo e os pronomes pessoais são o elemento primordial da linguagem
– aquele a partir do qual ela pode desenvolver-se. (8)
Se a linguagem acaba por mostrar as coisas como que apontando-as com
o dedo, é na medida em que elas são o resultado, ou o objeto, ou o
instrumento dessa ação; os nomes não recortam tanto o quadro complexo de
uma representação; recortam, detêm e imobilizam o processo de uma ação.
(8)
A arqueologia faz uma análise dos discursos na dimensão de sua
exterioridade. (10)
No fundo, eu não gosto de escrever; trata-se de uma atividade muito
difícil de realizar. Escrever não me interessa senão na medida em que o
escrever se incorpora à realidade de um combate, como um instrumento, de
tática, de esclarecimentos. Eu gostaria que meus livros fossem como bisturis,
coquetéis molotov, ou minas, e que se carbonizassem depois do uso, quais
fogos de artifício. (13)

Todo o meu devir filosófico foi determinado pela minha leitura de


Todo o meu devir filosófico foi determinado pela minha leitura de
Heidegger. Mas reconheço que foi Nietzsche que me fascinou. (13)
Mas o que é filosofar hoje em dia – quero dizer, a atividade filosófica –
senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? (12)
Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do meu
trabalho nos últimos vinte anos. Não foi analisar os fenômenos do poder nem
elaborar os fundamentos de tal análise. Meu objetivo, ao contrário, foi criar
uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres
humanos tornaram-se sujeitos. Meu trabalho lidou com três modos de
objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos. Assim, não é o
poder, mas o sujeito, que constitui o tema geral de minha pesquisa. (15)
Talvez o mais evidente dos problemas filosóficos seja a questão do tempo
presente e daquilo que somos neste exato momento. (15)
Talvez o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas
recusar o que somos. (15)
O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de seu retorno.
(16)
Gostaria que um livro, pelo menos da parte de quem o escreveu, nada
fosse além das frases de que é feito. Gostaria que esse objeto-evento, quase
imperceptível entre tantos outros, se recopiasse, se fragmentasse, se repetisse,
se simulasse, se desdobrasse, desaparecesse enfim, sem que aquele a quem
aconteceu escrevê-lo pudesse, alguma vez, reivindicar o direito de ser seu
senhor, de impor o que queria dizer, ou dizer o que o livro devia ser. (1)

© Levi Van Veluw, Landscape 1, fotografia, 2008. Reprodução


Obra do artista holandês Levi Van Veluw. “Não me pergunte
quem sou e não me diga para permanecer o mesmo”

■ Genealogia
A genealogia é cinza. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados,
A genealogia é cinza. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados,
riscados, várias vezes reescritos. (7)
A genealogia é uma metodologia que busca o poder no interior de uma
trama histórica, em vez de procurá-lo em um sujeito constituinte. (7)
A genealogia coloca-se contra os efeitos de poder de um discurso que é
considerado científico. (2)

■ Estruturalismo
Não vejo quem possa ser mais antiestruturalista do que eu. (7)
Eu acuso explicitamente de mentir, e de mentir desavergonhadamente,
pessoas como Piaget que dizem que eu sou um estruturalista. Piaget não pode
tê-lo dito senão por engano ou por estupidez: eu deixo a ele a escolha. (13)

■ Poder (disciplinar, biopoder etc.)


O exercício de poder não é simplesmente uma relação entre “parceiros”
individuais ou coletivos; é um modo de ação de alguns sobre outros. O que
quer dizer, certamente, que não há algo como “o poder” ou “do poder” que
existiria globalmente, maciçamente ou em estado difuso, concentrado ou
distribuído: só há poder exercido de “uns” sobre os “outros”; o poder só existe
em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo de possibilidade esparso
que se apoia sobre estruturas permanentes. (15)
O poder se manifesta como resultado da vontade de estruturar o campo
possível da ação dos outros. (15)
As relações de poder se enraízam profundamente no nexo social; elas não
se reconstituem, acima da sociedade, uma estrutura suplementar com cuja
obliteração radical pudéssemos talvez sonhar. Viver em sociedade é, de
qualquer maneira, viver de modo que seja possível a alguns agirem sobre a
ação dos outros. Uma sociedade sem relações de poder só pode ser uma
abstração. (15)

Entender a dominação como uma ação global de um sobre os outros, ou


Entender a dominação como uma ação global de um sobre os outros, ou
de um grupo sobre outro é uma concepção totalmente insuficiente do poder,
uma concepção jurídica, uma concepção formal do poder; é necessário
elaborar outra concepção de poder. É preciso elaborar uma concepção que
não seja jurídica, negativa, do poder, senão uma concepção positiva da
tecnologia do poder. (10)
É justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber. (11)
O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie.
Servimo-nos dele como matriz das disciplinas e como princípio das
regulações. (11)
Seria talvez preciso também renunciar a toda uma tradição que deixa
imaginar que só pode haver saber onde as relações de poder estão suspensas e
que o saber só pode desenvolver-se fora de suas injunções, suas exigências e
seus interesses. Seria talvez preciso renunciar a crer que o poder enlouquece e
que, em compensação, a renúncia ao poder é uma das condições para que se
possa tornar-se sábio. Temos antes que admitir que o poder produz saber (e
não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é
útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de
poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não
suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Essas relações
de “poder-saber” não devem então ser analisadas a partir de um sujeito do
conhecimento que seria ou não livre em relação ao sistema de poder; mas é
preciso considerar ao contrário que o sujeito que conhece, os objetos a
conhecer e as modalidades de conhecimentos são outros tantos efeitos dessas
implicações fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas.
Resumindo, não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um
saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que
o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos
possíveis do conhecimento. (5)

Para o homem disciplinado, como para o verdadeiro crente, nenhum


Para o homem disciplinado, como para o verdadeiro crente, nenhum
detalhe é indiferente, mas menos pelo sentido que nele se esconde que pela
entrada que aí encontra o poder que quer apanhá-lo. (5)

© Jens Hedin, Wanting you, not wanting me, óleo sobre tela,2008. Reprodução

Pintura do artista americano Jens Hedin. “Há dois significados para a palavra
sujeito: sujeito a alguém pelo controle ou dependência, e preso à sua própria
identidade por uma consciência”

O poder disciplinar se exerce tornando-se invisível: em compensação,


impõe aos que submete um princípio de visibilidade obrigatória. (5) O exame
é a técnica pela qual o poder, em vez de emitir os sinais de seu poderio, em
vez de impor sua marca a seus súditos, capta-os num mecanismo de
objetivação. O exame vale como cerimônia dessa objetivação. (5)

Com o biopoder, a partir do século XIX, a vida entra no domínio do


Com o biopoder, a partir do século XIX, a vida entra no domínio do
poder: mutação capital, sem dúvida uma das mais importantes na história das
sociedades humanas. (13)
Parece-me que é um erro, ao mesmo tempo metodológico e histórico,
considerar que o poder é essencialmente um mecanismo negativo de
repressão; que o poder tem essencialmente por função proteger, conservar ou
reproduzir relações de produção, que se situa num nível superestrutural. (17)

■ Sujeito
Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle
e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou
autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna
sujeito a. (15)
O sujeito encontra-se tanto dividido no interior de si mesmo, quanto
dividido em relação aos outros. Esse processo faz dele um objeto. (15)
O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso
pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo. (8)
Mas não devemos nos enganar: a alma, ilusão dos teólogos, não foi
substituída por um homem real, objeto de saber, de reflexão filosófica ou de
intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar
já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma
“alma” o habita e o leva à existência, que é, ela mesma, uma peça no domínio
exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma
anatomia política; a alma, prisão do corpo. (5)

■ Estado, governabilidade, razão política


O problema político de nossos dias não consiste em tentar liberar o
indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos liberarmos
tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga. Temos
de promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de
individualidade que nos foi imposto há vários séculos. (15)
O Estado, nas sociedades contemporâneas, não é simplesmente uma das
formas ou um dos lugares – ainda que seja o mais importante – de exercício
do poder, mas que, de um certo modo, todos os outros tipos de relações de
poder a ele se referem. Porém, não porque cada um dele derive. Mas, antes,
porque se produziu uma estatização contínua das relações de poder.
Poderíamos dizer que as relações de poder foram progressivamente
governamentalizadas. (15)
Governamentalidade é o encontro entre as técnicas de dominação
exercidas sobre os outros e as técnicas de si. (13)
Nunca a disciplina foi tão importante, tão valorizada quanto a partir do
momento em que se procurou gerir a população. E gerir a população significa
geri-la em profundidade, minuciosamente, no detalhe. (7)
Devemos compreender as coisas não em termos de substituição de uma
sociedade de soberania por uma sociedade disciplinar e desta por uma
sociedade de governo. Trata-se de um triângulo: soberania-disciplina-gestão
governamental, que tem na população seu alvo principal e nos dispositivos de
segurança seus mecanismos essenciais. (7)
Se o Estado é hoje o que é, é graças a essa governamentalidade, ao
mesmo tempo interior e exterior ao Estado. São as táticas de governo que
permitem definir, a cada instante, o que deve ou não competir ao Estado, o
que é público ou privado, o que é ou não estatal. (7)

■ Verdade
As grandes mutações científicas podem talvez ser lidas, às vezes, como
consequências de uma descoberta, mas podem também ser lidas como a
aparição de novas formas na vontade de verdade. (16)

Essa vontade de verdade apoia-se sobre um suporte institucional: é ao


Essa vontade de verdade apoia-se sobre um suporte institucional: é ao
mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de
práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das
bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas
ela é também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo
como o saber é aplicado em uma sociedade, como ele é valorizado,
distribuído, repartido e, de certo modo, atribuído. (16)
Nós somos sujeitados à produção da verdade através do poder e não
podemos exercer o poder exceto através da produção da verdade. (3)
Penso que a partir desse tema geral é preciso ser ao mesmo tempo
extremamente prudente e empírico. Nada prova, por exemplo, que na relação
pedagógica – quero dizer, na relação de ensino, essa passagem que vai daquele
que sabe mais àquele que sabe menos – a autogestão produza os melhores
resultados; nada prova, pelo contrário, que isso não paralise as coisas. (18)

■ Normal e anormal, saberes e práticas psiquiátricas


O grupo dos anormais formou-se a partir de três elementos cuja
constituição não foi exatamente sincrônica: o monstro humano, o indivíduo a
corrigir e o onanista. (17)

© Erin Rengel, Emotion Series, óleo sobre tela, 2007 Reprodução


Pintura da artista americana Erin Rengel. “A psiquiatria se institucionalizou como
um domínio contra todos os perigos que a doença possa acarretar à sociedade”

A Psiquiatria não se especificou como um ramo da Medicina Geral, mas


como um ramo especializado da higiene pública. Antes de ser uma
especialidade da Medicina, a Psiquiatria se institucionalizou como um
domínio particular da proteção social, contra todos os perigos que o fato da
doença possa acarretar à sociedade. (17)
No que diz respeito ao controle dos indivíduos, o Ocidente só teve dois
grandes modelos: um é o da exclusão do leproso; o outro é o modelo da
inclusão do pestífero. A substituição do modelo da lepra pelo modelo da peste
corresponde a um processo histórico importantíssimo que chamarei de
invenção das tecnologias positivas de poder. A reação à lepra é uma reação
negativa, de rejeição, de exclusão. A reação à peste é uma reação positiva, de
inclusão, de observação, de formação de saber, de multiplicação dos efeitos de
poder a partir do acúmulo da observação e do saber. (18)
A Psiquiatria, em meados do século XIX, abandonou ao mesmo tempo o
delírio, a alienação mental, a referência à verdade e, enfim, a doença. O que
ela assume agora é o comportamento, são seus desvios, suas anomalias; ela
toma sua referência num desenvolvimento normativo. Há uma
despatologização do objeto médico. O poder médico estende-se sobre o não
patológico, sobre a anomalia. A Psiquiatria não visa mais essencilamente à
cura, mas sim à proteção e à ordem. O racismo que nasce na Psiquiatria, nessa
época, é o racismo contra o anormal. (17)
O normal e o anormal, estando previstos pela norma, são casos da norma,
isto é, estão na norma, sob uma mesma norma. (17)
BIBLIOGRAFIA
1 História da Loucura
2 “Two Lectures”
3 “Power and Strategies
4 A Arqueologia do Saber
5 Vigiar e Punir
6 “Politics and the Study of Discourse”
7 Microfísica do Poder
8 As Palavras e as Coisas
9 História da Sexualidade
1: A Vontade de Saber
10 Las Redes del Poder
11 História da Sexualidade
1: A Vontade de Saber
12 História da Sexualidade
2: O Uso dos Prazeres
13 Dits et Écrits: 1954-1988
14 A Arqueologia do Saber
15 “O Sujeito e o Poder”
16 A Ordem do Discurso
17 Os Anormais
18 Ditos e Escritos IV

EDUARDO BRANDÃO é professor doutor de História da Filosofia Contemporânea


no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo
DIÁLOGOS

Por Sylvio Gadelha


Foucault como intercessor
O legado de ricos instrumentos conceituais para averiguar
as virtuais implicações da educação nos atuais processos de
exclusão

Como estimar a presença atual de Foucault no pensamento e na prática


educacionais, e como tentar dar conta de pelo menos alguns dos encontros
significativos de sua obra com as de outros filosófos, que com ele guardam
afinidades eletivas, ou que o tomam como mediador privilegiado em seus
respectivos trabalhos? Claro que para isso, devido à amplitude e à
complexidade da obra de Foucault, é preciso estabelecer um recorte em sua
obra. Então, após algumas breves considerações iniciais sobre a presença e o
itinerário de sua obra, tratarei da proximidade entre Foucault e Gilles
Deleuze, e, ao final, de maneira muito sucinta, farei uma apreciação de como
Foucault serve de referência privilegiada para algumas importantes
formulações de Antonio Negri e Giorgio Agamben acerca da biopolítica.

■ Pirotecnia e resistência
No plano intelectual, é indubitável a influência e disseminação das ideias
de Foucault. Para o historiador Paul Veyne, no campo do pensamento, sua
obra constitui o acontecimento mais importante do século XX. Tome-se, a
título de exemplo, o testemunho, dado em 1994, por Didier Eribon,
responsável por sua melhor biografia: “Portanto, dez anos após a morte de
Michel Foucault, sua obra continua no centro da vida intelectual, na França
como em muitas regiões do mundo. Pode-se dizer sem errar que ela dominou
a década passada como dominara a precedente. [...] Ainda mais importante é
o fato de que seus livros são estudados não apenas em e por si mesmos, mas
também servem de ponto de apoio heurístico para muitos setores da pesquisa
histórica e das ciências sociais, bem como da filosofia”.
Por outro lado, ainda segundo Eribon, essa marcante influência também
se evidencia em outra dimensão que não a meramente intelectual, pois o
pensamento de Foucault terminou por constituir-se como um “quadro de
referência política” a que recorrem, com frequência, inúmeros cientistas
sociais, filósofos, ativistas, movimentos de esquerda, étnico-raciais, de
minorias sexuais, num número cada vez maior de paí​ses. O recurso a essa
referência se mostra tão diversificado, e exercitado em contextos tão distintos,
que ele se indaga “se os mil Foucault que vemos surgir em todos os países, em
todos os continentes, são compatíveis entre si”. Ora, a julgar pela quantidade
de escritos sobre, ou em torno de, Foucault, pelos colóquios e congressos que
lhe têm sido dedicados – tanto no exterior quanto no Brasil –, pelas
ressonâncias da publicação de Ditos e Escritos e de seus cursos no Collège de
France, e considerando ainda a penetração de suas ideias nos novos
movimentos sociais, sua presença parece continuar viva e atuante entre nós,
mesmo 22 anos depois de sua partida.

© Cildo Meireles, Para ser curvada com os olhos, 1970 Reprodução


Obra do artista brasileiro Cildo Meireles. Foucault propõe que seus conceitos
sirvam de “caixa de ferramentas” para aqueles que neles vejam algo de útil para
lidar com seus problemas

Tudo isso faz lembrar duas coisas caras a Foucault, e ao mesmo tempo
úteis para entender a reverberação de suas ideias junto a outros pensadores. A
primeira é que lhe agradava muito que seus construtos conceituais​ servissem
de “caixa de ferramentas” para aqueles que neles vissem aqui e ali algo de útil
para lidar com seus próprios problemas, para fazer a gestão tática de suas
próprias lutas políticas localizadas etc. Esse caráter instrumental de seu
pensamento se expressa, por exemplo, no modo como o próprio Foucault
chegou uma vez a definir a si mesmo e o seu trabalho. Mais do que um
filósofo, ou um historiador, disse ele: “Eu sou um pirotécnico. Fabrico alguma
coisa que serve, finalmente, para um cerco, para uma guerra, uma destruição.
Não sou a favor da destruição, mas sou a favor de que se possa passar, de que
se possa avançar, de que se possa fazer caírem os muros”. A segunda, por sua
vez, é que essa estranha pirotecnia histórico-filosófica, fazendo as vezes de
“máquinas de guerra” (para usar um termo de Gilles Deleuze e Felix
Guattari), pelo menos a partir de meados dos anos 1970, esteve
invariavelmente a serviço da potencialização de resistências (“guerra de
guerrilhas”), inclusive no campo educacional, aos mecanismos de regulação e
controle das vidas dos indivíduos e coletividades.
No fim dos anos 1960 e início da década seguinte, o pensamento
foucaultiano sofre uma inflexão, transmutando-se em sua dimensão política, e
passando a exercer-se efetivamente como arqueogenealógico. Antes desse
período, a obra de Foucault “alinhava-se”, não sem algumas tensões, às
formulações dos principais nomes associados à corrente do estruturalismo:
Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes e Jacques Lacan. Sem entrar no
polêmico debate sobre até que ponto e como Foucault comungou dos
pressupostos dessa corrente, ou sobre as especificidades de “seu
estruturalismo”, o importante a assinalar é que, por efeito da proximidade
(discordante) a esse tipo de abordagem, pela forte influência que teve da
epistemologia francesa do conceito (Koyré, Bachelard, Cavaillès,
Canguilhem) e da leitura de Nietzsche (por intermédio de Blanchot,
Klossovsky e Bataille), suas formulações vão de encontro a algumas
características típicas do pensamento filosófico, social e crítico-revolucionário,
predominante naquela época: o humanismo, a dialética (hegelianismo), a
fenomenologia, o primado da subjetividade, a transcendência, o idealismo, a
representação e o uso de princípios abstratos e universalistas.
A essas primeiras características de seus pensamentos, já relativamente
presentes nessa fase arqueo​lógica, outras serão agregadas por influência,
dentre outros fatores, de três acontecimentos significativos para o autor: sua
experiência com a mobilização política dos estudantes na Universidade de
Túnis, as rebeliões estudantis de Maio de 68, na França, e, por fim, a arrojada
atuação político-social do GIP (Grupo de Informações sobre as Prisões),
criado e animado por Foucault, de janeiro de 1971 a dezembro de 1972. Que
efeitos esses três acontecimentos tiveram sobre Foucault? A que novos
encontros políticos e intelectuais o arrastam? Em termos muito breves, eles o
conectaram a toda uma atmosfera intempestiva e fervilhante, na qual as
instituições universitárias, políticas e sociais são questionadas em sua
autoridade e legitimidade, as grandes disciplinas científicas estabelecidas no
âmbito das ciências humanas (em particular o marxismo e a psicanálise) são
interrogadas em seus compromissos com o status quo, e com o capitalismo; na
qual, enfim, o próprio Foucault identifica uma insurreição dos “saberes
sujeitados” (“menores”, “marginais”, “intersticiais”, como a análise da
antipsiquiatria, a esquizoanálise etc.). Tudo isso, associado às suas
investigações sobre os sistemas punitivos modernos, os mecanismos
psiquiátricos de regulação e controle da loucura, e os mecanismos
disciplinares de adestramento dos corpos, o induz a deslocar suas pesquisas
para outro domínio: o do poder. Tratava-se, então, não só de repensar o que
vem a ser “o poder”, como também de ressituar o saber (os discursos, em
particular os das ciências humanas e os das disciplinas clínicas) e, portanto, a
arqueologia, em face do exercício do poder, mas debruçando-se sobre este sob
uma perspectiva analítica diversa daquela tradicionalmente utilizada na
ciência e na historiografia políticas (jurídico-política, filosófico-jurídica), a
genealogia, retomada e reconstruída a partir das formulações de Nietzsche.

© Peter Ravn, Luggage, óleo sobre tela, 2010. Reprodução


Pintura do artista dinamarquês Peter Ravn. As investigações de Foucault o
fizeram deslocar suas pesquisas para outro domínio: o do poder

Ocorre, todavia, que pensar em termos genealógicos (e, portanto, pensar


com Nietzsche) implica abordar a relação entre pensamento e vida noutros
termos, atípicos, anômalos em relação aos cânones da história da filosofia
(com raras exceções) e do pensamento político-social até então hegemônicos.
Por exemplo: afirmando a imanência entre ambos, poder e vida; positivando a
desordem (o “fora”); restituindo ao pensamento sua potência disruptora,
intempestiva (em vez de cultuar um pensamento fraco, incapaz de inquietar e
provocar quem quer que seja); valorizando a diferença e o acontecimento (em
detrimento da repetição do mesmo e de uma história teleológica); enfatizando
a invenção, a transvaloração dos valores e a experimentação singular (como
contrapartidas à recognição e à reprodução do já instituído); afirmando uma
ética e uma estética da existência, desde as quais fosse possível escapar aos
sistemas morais estabelecidos de prescrição, vigilância, julgamento e punição;
por fim e, sobretudo, tomando a vida e o exercício do poder como regidos por
relações de forças que necessitam, a cada vez, a cada momento, serem
mapeadas nas circunstâncias concretas e moventes que lhes dão materialidade
(formações discursivas e não discursivas, relações de saber-poder) e
efetividade. O que, por seu turno, supõe a valorização dos domínios
microfísicos e agonísticos nos quais poder e vida se entrelaçam, rivalizam-se,
reinventam-se de forma permanente.

■ O encontro com Deleuze


O primeiro contato entre Deleuze e Foucault se deu em 1962, quando
este terminava de escrever Raymond Roussel e O Nascimento da Clínica. Juntos,
coordenaram a edição francesa das obras completas de Nietzsche (da edição
italiana, de Colli e Montinari) e trabalharam em estreita colaboração nas
atividades do GIP. Deleuze e Foucault estabeleceram entre si uma
cumplicidade intelectual, política, ética e estética, cujo legado jamais foi
abalado, nem mesmo quando se afastaram. Mais do que metodológica, como
disse uma vez Deleuze, essa cumplicidade se dava em torno de uma “causa
comum”: “Não possuíamos o gosto pelas abstrações, o Uno, o Todo, a Razão,
o Sujeito. Nossa tarefa era analisar estados mistos, agenciamentos, aquilo que
Foucault chamava de dispositivos. Era preciso não remontar aos pontos, mas
seguir e desemaranhar as linhas: uma cartografia, que implicava uma
microanálise (o que Foucault chamava de microfísica do poder e Guattari,
micropolítica do desejo). É nos agenciamentos que encontramos focos de
unificação, nós de totalização, processos de subjetivação, sempre relativos, a
serem sempre desfeitos a fim de seguirmos ainda mais longe uma linha
agitada. Não buscaríamos origens mesmo perdidas ou rasuradas, mas
pegaríamos as coisas por onde elas crescem, pelo meio: rachar as coisas, rachar
as palavras. Não buscaríamos o eterno, ainda que fosse a eternidade do tempo,
mas a formação do novo, a emergência ou o que Foucault chamou de ‘a
atualidade’”.

©Ana Teixeira, Aviso, da série “Discretas Intervenções Mund’Anas”, 2011. Reprodução

Intervenção da artista brasileira Ana Teixeira. Deleuze dizia que ele e Foucault
não buscariam a eternidade do tempo, mas a formação do novo, ou o que
Foucault chamou de “a atualidade”

Seguindo nas trilhas abertas por Nietzsche, isto é, pensando contra o


tempo, no tempo, a favor de um tempo por vir, Foucault, através de uma
ontologia do presente (com a ajuda de Kant), e Deleuze, através de cartografias
micropolíticas das relações entre capitalismo e esquizofrenia (junto com
Guattari), buscavam maneiras de avaliar o que se passa de significativo em
nossa atualidade, o que assinala a singularidade do tempo em que vivemos, e
que constitui, por isso mesmo, uma novidade, uma diferença, um
acontecimento, de que devemos ser dignos. A questão de fundo, aqui, para
ambos, é de como visua​lizar, dimensionar e, sobretudo, ultrapassar os lugares
e significações que constituímos (e que constituí​ram) de antemão para nós.
Como trespassar aquilo que nos cerca, nos define e nos delimita; em suma,
aquilo em relação ao qual estamos em vias de diferir, a história? Mas,
também, como fazê-lo a fim de dar consistência, concreção, às novas e outras
relações de forças que nos exprimem e que nos singularizam numa variação
diferencial complexa?
Para dar conta dessa tarefa, Foucault tanto mapeia as estratégias de
dominação, regulação e controle que consubstanciam as sociedades
disciplinares, de regulamentação e normalização, como se esforça para pensar
em como a vida resiste ao poder, ou seja, como podemos nos lançar em
experimentações éticas de modos outros de subjetivação (de relação a si), que
corporifiquem resistências às tecnologias políticas de poder, inclusive aquelas
que caracterizam as emergentes sociedades de controle. Já Deleuze, por sua
vez, irá mostrar em que sentido o capitalismo constitui uma máquina
esquizofrênica que libera forças, intensidades e fluxox sociais, maquínicos,
políticos, semióticos, subjetivos, dentre outros, em face dos quais não possui
controle total, apesar de pretender axiomatizá-los e reterritorializá-los de
forma absoluta, mediante um equivalente geral, o dinheiro, e da produção de
subjetividades serializadas. Daí porque, em seu modo de entender, o que é
primeiro em uma sociedade não é tanto o fato de que ela se estrategiza (como
defendia Foucault), senão que algo nela foge, resiste, escapa: as linhas de fuga
do desejo. Daí porque, também, toda resistência digna desse nome, para ele,
se dê somente pela experimentação e pela invenção.
Por outro lado, nessa luta política em que se engajam os autores, a
filosofia por eles exercitada deixa as alturas transcendentes e se abre e se
conecta virtualmente com o não filosófico (o cinema, o corpo, a literatura, o
cotidiano, a sexualidade, a educação etc.), entretendo com ele conversações
originais, produtivas e polissêmicas. Pop-Filosofia sem mestres pensadores,
apesar de toda a sedução dos meios de comunicação; apesar de todo o
glamour que cerca a noção de autor. À espetacularização do pensamento,
Foucault e Deleuze preferem o anonimato, a vida dos homens infames, os
devires imperceptíveis. Ademais, já não intervêm na sociedade seguindo o
pretensioso modelo do intelectual como consciência universal esclarecida das
massas, tal como o encarnavam Sartre e tantos outros. Ambos consideram
indigna e equivocada a intenção de “falar por”, de representar o outro, assim
como a de tornar dócil a alteridade (através, por exemplo, da “tolerância à
diferença”); dirigem suas investigações teóricas para problemas regionais, mais
localizados, no que são acusados de negligenciar “o todo”.

■ Educação e subjetividade
Ora, daí já se pode depreender a dificuldade experimentada pela
educação em assimilar os pensamentos iconoclastas desses dois filósofos. Com
efeito, as pesquisas de Foucault terminam por evidenciar um cruel paradoxo
que permeia a tão enaltecida missão civilizadora dos educadores. Desde a
modernidade, atribuiu-se à educação, por intermédio de sua universalização, a
grandiosa tarefa de esclarecer e emancipar “O Homem”, dando-lhe as
condições de construção de sua liberdade moral. Foucault nos mostra, porém,
que antes de meados do século XVIII essa figura abstrata (“O Homem”) não
existia. Antes o contrário, ela constitui justamente um efeito do poder; mais
precisamente, de relações de saber-poder. Sua objetivação, subjetivação e
normalização, diz ele, só foram tornadas possíveis, por um lado, por
intermédio da disciplinarização, (adestramento, regulação e controle) dos
corpos dos indivíduos, de modo a torná-los submissos à governamentalidade e
úteis ao sistema de produção capitalista e, por outro, pela ação de um
dispositivo da sexualidade, que agenciava os saberes das ciências humanas aos
das disciplinas clínicas, produzindo subjetividades (identidades,
personalidades, maneiras de agir, pensar e sentir) e enquadrando-as em
padrões arbitrários de normalidade ou anormalidade. Ora, isso não seria
possível sem o concurso decisivo da pedagogia, da escolarização e das
instituições educativas. Mas não só, Foucault também aponta a ingenuidade
dos educadores em pensar “o sujeito da educação” em termos essenciais,
identitários, substancialistas: livre e racional, por natureza, fundamento para o
conhecimento e a prática, na esteira de uma confluência entre as doutrinas do
jusnaturalismo e do liberalismo clássico. De pensá-lo, portanto, de acordo
com a ideia de que existe uma natureza humana”, interiorizada, cuja boa
formação pressupõe o ideal de perfectibilidade, o desenvolvimento de suas
potencialidades (do menos para o mais, da incompletude para a plenitude),
numa temporalidade linear simplista (como se observa já em Rousseau e nas
posteriores teorias de desenvolvimento que marcaram a psicologia do século
XX).
Fazendo eco ao empirismo de Foucault, com David Hume, Deleuze diria
que “as relações são exteriores a seus termos”, e que a pedagogia e a psicologia
da educação jamais entenderam isso, pois na medida em que circunscreveram
sua atenção e atua​ção aos termos (da relação), tomando-os como essenciais
(identidade ou personalidade do sujeito A, do sujeito B etc.), nada tinham a
dizer, e nem poderiam, sobre o que se passa entre eles, isto é, sobre o que
concretamente os faz agir, pensar e sentir dessa ou daquela forma. Eis, pois,
da parte desses autores, um misto de contribuição e tormento à educação, ou
seja, pensar essas questões em termos processuais (estratégicos e maquínicos):
processos de individualização, modos de subjetivação e existencialização.
É importante assinalar, de passagem, que a tradicional concepção de
subjetividade reinante na educação e o projeto libertador que lhe era correlato
foram abraçados tanto pela direita como pela esquerda (neste caso, pela
teorização educacional dita crítica, progressista). Esta, por sinal, tendeu a
criticá-los apenas em seus supostos desvirtuamentos (alienação do sujeito e
degeneração da razão esclarecida em razão tecno-instrumental), mas não nos
fatores que lhes davam condições de possibilidade. Como afirma Tomaz
Tadeu da Silva, as “suposições sobre consciência e sujeito são comuns às
pedagogias da repressão e às pedagogias libertadoras – a oposição binária que
lhes opõem apenas revela a existência de uma mesma essência a ser reprimida
ou liberada, conforme o caso. Não escapam a essa tradição nem mesmo as
pedagogias críticas – a própria noção de conscientização, tão cara a algumas
de suas importantes correntes, está integralmente vinculada à suposição de
uma consciência unitária e autocentrada, embora momentaneamente alienada
e mistificada, apenas à espera de ser despertada, desreprimida, desalienada,
liberada, desmistificada”.

© Louise Bourgeois 6, Arco da Histeria, escultura em tecido, 2000. Reprodução


Obra da artista francesa Louise Bourgeois. Para Foucault a subjetivação só
tornou-se possível por intermédio da disciplinarização dos corpos dos indivíduos,
de modo a torná-los submissos à governamentalidade

Tendo em vista esse desmanchamento do sujeito, a recusa de um


humanismo moralista e da identidade, indaga-se, então, se esses filósofos
teriam, além de suas problematizações “desconstrucionistas”, algo “de
positivo” a propor à educação. Aqui, são os próprios sentidos de “propor” e de
“positivo” que devem ser colocados em análise, pois a insistência em
apreender os pensamentos de Foucault e Deleuze sob a perspectiva da
representação clássica (imagem dogmática do pensamento, humanista, moral,
jurídico-política, filosófico-jurídica, dialética) parece fadada a condená-los à
negatividade e ao esvaziamento de suas proposições. Para escapar a esse
equívoco, talvez seja proveitoso enfatizar em que sentido esses dois autores
afirmam a vida, o pensamento e a política, por meio de uma fórmula em que
distinguem a ética da moral, privilegiando a primeira: “Sim, a constituição
dos modos de existência ou dos estilos de vida não é somente estética, é o que
Foucault chama de ética, por oposição à moral. A diferença é esta: a moral se
apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que
consiste em julgar ações e intenções referindo-as a valores transcendentes (é
certo, é errado...); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o
que fazemos, o que dizemos, em função do modo de existência que isto
implica. Dizemos isto, fazemos aquilo: que modo de existência isso implica?”.
De todo modo, apesar das resistências iniciais, em particular da parte das
teorizações educacionais ditas críticas (do “otimismo dialético” em educação,
conforme expressão de Lúcia Aranha), e mesmo que tardiamente, pouco a
pouco o pensamento de Foucault foi ganhando espaço entre os educadores.
No Brasil, isso se deu no decorrer dos anos 1990, não sem algumas tensões, e
também por efeito do empenho de pesquisadores como Tomaz Tadeu da
Silva e Alfredo Veiga-Neto, dentre outros que, seja pelo exercício da
teorização, seja pela tradução e divulgação de uma série de estudos
foucaultianos (Popkewitz, Walkerdine, Larossa etc.), contribuíram de
maneira significativa para a disseminação das ideias de Foucault nas searas
educativas. Não por coincidência, nos últimos anos, também os pensamentos
de Deleuze e de Derrida vêm sendo objeto de acolhida entre os profissionais
da educação, amiúde acionados numa relação de proximidade ou de
transversalidade com o autor de Vigiar e Punir.

■ Biopolítica: uma nova tecnologia do poder


Os processos de inclusão e exclusão vêm se constituindo como um dos
problemas mais agudos de nossa contemporaneidade, implicados que estão a
uma problemática que foi intuída em primeiro lugar por Walter Benjamin e
Hannah Arendt, mas precisamente desenvolvida e sistematizada por
Foucault, a saber: a biopolítica. Para Foucault, em complementaridade aos
dispositivos disciplinar e da sexualidade, a arte de governar, na modernidade,
deu ensejo ao aparecimento de uma outra tecnologia política, voltada
especificamente para a gestão e o controle do corpo-espécie da população, ou
seja, dos modos de vida das populações, passando a se ocupar de fenômenos
ligados, por exemplo, à natalidade, à mortalidade, à higiene, ao ócio e à
vadiagem, à segurança pública, dentre outros temas relacionados às “questões
sociais”. Designada por Foucault como biopolítica, essa nova tecnologia
política foi exercida, de início, tanto pelo que ele chamou de “medicina social”
quanto pela “polícia”. A noção nos acena para o fato de que, diferentemente
do que ocorria nas sociedades de soberania, nas sociedades disciplinares, de
normalização e regulamentação, a vida (entendida como suporte de processos
biológicos) entra em definitivo na órbita dos cálculos e estratégias de
biopoderes. É assim que na Europa e nos Estados Unidos ganharam força
campanhas higienistas, as teorias eugênicas e projetos de purificação racial,
levadas ao extremo pelos nazistas, através do extermínio de milhões de judeus
nos campos de concentração.
Trabalhando nas trilhas abertas por Foucault, os filósofos italianos
Antonio Negri e Giorgio Agamben vêm buscando, cada um a seu modo,
explorar a problemática da biopolítica em nosso conturbado presente. Tanto
para um como para o outro, o que está em jogo, em primeiro lugar, é o
estatuto (a qualificação) do vivo nas sociedades de controle e, em segundo,
algumas difíceis e desafiadoras questões: Quais são, de fato, em nosso
presente (na atual ordem Imperial, como quer Negri), as relações de força que
dão condições de possibilidade às estratégias biopolíticas mediante as quais os
novos biopoderes buscam assenhorear-se da vida? Que estratégias e
biopoderes são esses e como operam? Mas também: “O que fazer quando o
campo de ancoragem da resistência tende a coincidir com o campo de
incidência do poder?”. Negri, influenciado por Espinosa, Marx, Deleuze e
Guattari, tende a atribuir uma primazia ontológica da vida em face do poder,
tomando a biopolítica num sentido inverso ao que lhe atribuiu Foucault, ou
seja, justamente como a resistência que encarna e exprime uma biopotência
incomensurável, imponderável, solidária da multidão (multitude), em relação
aos novos mecanismos de controle e dominação do Império. Agamben, por
seu turno, defende a ideia de que os governos nas democracias ocidentais têm
lançado mão, com frequência cada vez maior, de estados de exceção, mediante
os quais se decide que vidas devem ser qualificadas como indignas de serem
vividas e, conquentemente, nessa condição, passíveis de exclusão ou
extermínio, sem que isso constitua uma afronta à ordem legal. Trata-se de
uma lógica de inclusão por exclusão.

© Gustav Klimt, Esperança I, óleo sobre tela, 1903. Reprodução


Pintura do artista austríaco Gustav Klimt. A
biopolítica é voltada para a gestão e o controle
do corpo-espécie da população e ocupa-se de
fenômenos ligados à natalidade, higiene, ócio etc

Não é preciso citar as aberrações que vêm acontecendo em alguns países


africanos, os conflitos cruéis que marcaram a guerra na ex-Iugoslávia, os
massacres nos campos palestinos, os descuidos em relação às populações
pobres diante de catástrofes “naturais” – como o tsunami na Indonésia e as
enchentes em New Orleans –, o desemprego, a miséria, o preconceito às
minorias, e a violência que grassam nas periferias das grandes cidades (mesmo
nos países ditos desenvolvidos), para que se depreenda e se dimensione a
importância das questões levantadas pela biopolítica em nossa
contemporaneidade. No Brasil, a vida das populações pobres parece ser
tratada como supérflua pelos poderes constituídos, caracterizando uma
situação de barbárie social, na qual indivíduos são exterminados sem mais
nem menos. Pois bem, numa sociedade como a nossa, em que imperam a
desigualdade, a fome, a violência, a corrupção, a descrença nas instituições e
uma ordem social excludente, Foucault tem algo a dizer àqueles educadores
sensíveis à defesa e à afirmação da vida. Ele nos lega ricos instrumentos
conceituais e nos convida a que os utilizemos (e reinventemos) na averiguação
da lógica que preside todas essas insanidades e nas virtuais implicações da
educação nesses processos de exclusão.

SYLVIO GADELHA é psicólogo, especialista em Psicopedagogia, mestre em


Sociologia, doutor em Educação (UFC) e professor do Departamento de
Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação
Brasileira da Universidade Federal do Ceará. É autor de Subjetividade e Menor-
Idade: Acompanhando o Devir dos Profissionais do Social (Annablume, 1998),
organizador (com Daniel Lins e Alexandre Veras) de Nietzsche e Deleuze: O
Que Pode o Corpo, ambos editados pela Relume Dumará
BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Por Durval Muniz de Albuquerque Júnior


Michel Foucault, ou como
nos tornamos sujeitos
©Joana Lucas, À volta da mesa, acrílico sobre tela, 2010. Reprodução

Pintura da artista portuguesa Joana Lucas. Em “História da Sexualidade”,


Foucault nos dá acesso a outras pedagogias, outras formas de educar o sujeito,
de produzi-lo

Torna-se difícil indicar um ou outro texto de Foucault que seria mais pertinente
ou interessaria mais àqueles que militam na área da educação. Considerando
que as práticas pedagógicas ou educativas visam à formação de
subjetividades, podemos dizer que todo o percurso do pensamento
foucaultiano interessa diretamente aos educadores, já que este se caracteriza
por ser uma reflexão histórico-filosófica sobre as estratégias, as práticas e os
saberes que participaram da constituição de sujeitos na sociedade ocidental.
Portanto, em vez de escolher textos, escritos por Foucault, que seriam mais
adequados às preocupações dos estudiosos da educação, me proponho a
apresentar uma espécie de programa de estudos, que dê conta não apenas de
suas principais obras, mas também de autores que escreveram textos
fundamentais sobre ele e sua obra. Como o que caracteriza o percurso
intelectual de Foucault é a constante mudança nos temas, nas estratégias de
pesquisa, nos conceitos; como é um autor que está sempre revendo seus
próprios pressupostos e está relendo aquilo que fez, proponho que este
programa de estudos siga o percurso da obra de Foucault, que não apenas foi
marcado pelo pensar através da história, como ele próprio pode ser pensado
historicamente, observando as inflexões e descontinuidades que marcam a sua
própria trajetória.

Como chegamos a ser o que somos


Pode-se então afrontar as duas últimas obras publicadas por Foucault, ambas
no ano de 1984, o mesmo de sua morte: História da Sexualidade II (O Uso
dos Prazeres) e História da Sexualidade III (O Cuidado de Si). Depois de um
período de oito anos sem publicar um livro, tempo em que o projeto inicial de
uma história da sexualidade foi modificado, o autor desloca sua análise da
arqueogenealogia do sujeito do desejo no ocidente, do período moderno para a
antiguidade, ao mesmo tempo que a ênfase nas relações de poder, nas
relações com o outro como instituintes de lugares de sujeito, é substituída pela
ênfase na relação do sujeito consigo mesmo, nas práticas de elaboração de si
mesmo que emergem nas sociedades antigas. Recuando para um período
histórico em que o dispositivo da sexualidade ainda não funcionava, em que o
sexo não tinha a mesma centralidade que em nossa sociedade e ainda não
tinha o papel de revelar a nossa verdade mais essencial, Foucault vai nos
informar sobre outras possibilidades de uso dos prazeres, de uso do corpo,
sobre outras formas históricas em que a vida era encarada como uma obra de
arte, passível de uma estetização. Podemos dizer que Foucault nos dá acesso a
outras pedagogias, outras formas de educar o sujeito, de produzi-lo. A ética se
coloca como o terreno preferencial para esta reflexão sobre o cuidado de si,
sobre a escrita de si, como o campo onde devemos procurar responder à
pergunta nietzschiana, o que estamos fazendo de nós mesmos e, ao mesmo
tempo, onde devemos rejeitar a pergunta platônica pelo quem somos. O
sujeito aparecendo como produto histórico e social, como artefato construído
pelas relações de poder e saber, pelas instituições, mas também por um
trabalho de si para si mesmo, como possibilidade de um trabalho de liberdade.

Sobre Foucault
Concluída a leitura dos livros e textos mais importantes escritos por Foucault e
que têm pertinência para as reflexões no campo da educação, sugiro que se
passe ao contato com as obras que possam vir a esclarecer aspectos que
porventura tenham quedado obscuros na leitura de seus livros. Esta etapa
prepararia para a última delas, que seria a leitura do que se vem produzindo
sobre educação a partir de suas reflexões. Tomarei o cuidado de indicar
aqueles textos mais acessíveis, ou seja, aqueles que estão em língua
portuguesa ou que estão em língua espanhola. Esta etapa poderia ser iniciada
pela leitura de Foucault e a Crítica do Sujeito, de Inês Araújo e sequenciada
pela consulta às seguintes obras: Entre Cuidado e Saber sobre Si: Michel
Foucault e a Psicanálise e Foucault e a Liberdade, de Joel Birman;
Foucault, de Gilles Deleuze; La Filosofia de Michel Foucault, de Esther Díaz;
Michel Foucault, uma Trajetória Filosófica, de Paul Rabinow e Hubert
Dreyfus; Foucault, a Norma e o Direito, de François Ewald; Michel Foucault e
a Constituição do Sujeito e Michel Foucault e o Direito, de Márcio Alves
Fonseca; Michel Foucault, de Frédéric Gros; Introdução ao Pensamento de
Michel Foucault, de Angèle Kremer-Marietti; Foucault, a Filosofia e a
Literatura, de Roberto Machado; Tecnologias del Yo y Otros Textos Afines,
de Michel Morey; Foucault Vivo, organizado por Ítalo Tronca; Imagens de
Foucault e Deleuze, organizado por Margareth Rago, Luiz Orlandi e Alfredo
Veiga-Neto; Retratos de Foucault, organizado por Vera Portocarrero e
Guilherme Castelo Branco; Foucault: o Paradoxo das Passagens, de André
Queiroz; Foucault, a Liberdade da Filosofia, de John Rajchman; Michel
Foucault, um Pensamento Infame, de Paulo Vaz, e Michel Foucault e a
Idade do Homem, de José Ternes.
BIBLIOGRAFIA COMENTADA
Arqueologia do saber
Para iniciar um estudo da obra foucaultiana, eu recomendaria a leitura de três
obras indispensáveis para a compreensão de sua démarche. Dois de Didier
Eribon: Michel Foucault, uma Biografia (Trad. Hildegard Feist. São Paulo:
Cia. das Letras, 1990) e Michel Foucault e seus Contemporâneos (Trad. Lucy
Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996) e um de Roberto
Machado, Ciência e Saber: a Trajetória da Arqueologia de Foucault (Rio de
Janeiro: Graal, 1988).
As obras de Eribon mostram as inequívocas vinculações entre a vida do
filósofo francês e seu percurso intelectual. Nelas, os interessados em verificar
o papel que a escola e as instituições acadêmicas tiveram, para o
desenvolvimento de seus pensamentos e para a definição dos temas de seus
livros, encontrarão a narrativa de acontecimentos bastante significativos. O
livro de Machado nos ajuda a situar a trajetória do pensamento de Foucault,
notadamente da chamada fase arqueológica, no debate intelectual que a
possibilitou. Este livro traça uma história da trajetória do pensamento do autor
em suas relações com duas tradições com as quais dialoga e das quais se
separa: a história das ideias e a epistemologia.
O próximo passo é começar a ler os livros de Foucault seguindo a ordem de
sua publicação, para que se percebam as questões que vão sendo colocadas
por suas obras e como estas vão se modificando a par com as mudanças que
ocorrem em sua vida, nas condições históricas em que são produzidas, e a
par, também, com a recepção dessas obras. Tome-se como ponto de partida
aquela que o próprio Foucault considerava sua primeira obra, História da
Loucura (1961), já que seu primeiro livro, Doença Mental e Personalidade
(1954), republicado em 1962, totalmente reformulado e com o título alterado
para Doença Mental e Psicologia, foi excluído pelo próprio autor de sua obra,
por não mais concordar com ela, tendo proibido sua republicação. Em História
da Loucura, Michel Foucault faz o que chamou de uma arqueologia da
percepção, pensa como ao longo da história a cultura ocidental percebeu a
desrazão, como lidou com a figura do louco e que práticas foram geradas em
torno dele. Michel Foucault também dirá que fez aí a arqueologia de um
silêncio, aquele imposto à desrazão pelo pensamento racional. Esta obra
pressupõe a existência de uma experiência primeira da desrazão, experiência
trágica por excelência que teria sido silenciada e dominada pela racionalidade
ocidental. Neste livro já se trata de interrogar como foi possível historicamente
o surgimento do sujeito racional moderno, como se deu a emergência desse
sujeito que se define pela centralidade da razão. Como será comum em seu
trabalho, Foucault toma uma experiência-limite como forma de tentar escrever
as bordas de nossa cultura e de nosso presente, bordas onde não mais
reconhecemos nosso rosto, onde nos encontramos com experiências que nos
definem, nos delimitam, por serem experiências de fronteira, mas em que não
nos reconhecemos, nos estranhamos e nos tornamos estrangeiros em relação
a nós mesmos.
Em seguida viria a leitura de O Nascimento da Clínica (1963), em que
Foucault exercita uma arqueologia do olhar, busca pensar as mudanças
históricas que levaram à emergência da medicina anatomoclínica como parte
de um remanejamento nas relações entre olhar e corpo, em nossa cultura. Ao
contrário do que fazia crer a história das ideias ou as tradicionais histórias da
medicina, essa ruptura não se deu preferencialmente no plano do saber e nem
foi fruto de mudanças nas relações cotidianas, no corpo a corpo entre médicos
e paciente, que foram responsáveis pela instauração de uma nova visibilidade,
em que um olhar de profundidade vem substituir um olhar periférico e
taxinômico que caracteriza o período clássico. O doente passa a ser visto como
sujeito de sua doença, como sendo o ponto de partida de sua própria moléstia.
Assim, é seu corpo que adoece e não a doença, como ser à parte, que vem
habitar seu corpo.
A leitura de As Palavras e as Coisas (1966) e A Arqueologia do Saber (1969),
obras consideradas como aquelas que encerram a primeira fase de sua
trajetória filosófica, poderia ser acompanhada pela leitura de A Ordem do
Discurso, aula inaugural proferida no Collège de France, em 1971, já que esta
ao mesmo tempo abria um novo período em suas pesquisas e se constituía
também num balanço do que havia produzido até então. Em As Palavras e as
Coisas, Foucault faz uma arqueologia do saber, de um saber em particular, o
saber das ciências humanas. Tenta entender como foram possíveis
historicamente aqueles saberes que giram em torno do Homem. Nesta obra
que o consagrou, Foucault faz a história da emergência do Homem como
sujeito e como objeto de saber, na cultura moderna ocidental. Para uma área
de saber muito marcada pelo humanismo, como é a da educação, a leitura
deste livro se torna obrigatória. A Arqueologia do Saber vai responder às
inúmeras críticas que recebeu o livro de 1966, precisando muitos de seus
conceitos, como os de enunciado e formação discursiva, mas principalmente a
noção de epistéme, como sendo aquele solo histórico, aquele conjunto de
regras que disciplina e permite ver e dizer dados saberes, dadas visibilidades e
dizibilidades, em dada época.
BIBLIOGRAFIA COMENTADA
Genealogia do poder
Em seguida, recomendo a leitura dos seus livros da chamada fase da
genealogia do poder: Vigiar e Punir (1974) e História da Sexualidade I (A
Vontade de Saber) (1976), junto com vários textos publicados originalmente
em periódicos e mais tarde reunidos em coletâneas como Microfísica do
Poder, aqui no Brasil, e Ditos e Escritos, na França, além de algumas
conferências, como as proferidas na PUC do Rio de Janeiro, reunidas em A
Verdade e as Formas Jurídicas, e cursos ministrados no Collège de France,
em especial Os Anormais e Em Defesa da Sociedade, que interessam
diretamente a quem busca compreender como o seu pensamento pode
favorecer uma reflexão no campo da educação.
Em Vigiar e Punir encontra-se a tematização da história das formas de
punição na sociedade ocidental, notadamente, da emergência da forma prisão.
Obra que interessa diretamente para quem trabalha com a escola, que aparece
tematizada no livro no contexto da emergência do que o autor chama de
surgimento da sociedade disciplinar. A escola seria um dos eventos da
constituição desta sociedade em que a relação entre poder e corpo, poder e
mente é alterada. A escola seria uma das instituições onde as relações de
poder deixam entrever sua positividade, ou seja, seu caráter produtivo, já que
produzem comportamentos e saberes. Esta reflexão sobre o caráter positivo do
poder e sua distribuição e circulação microfísica aparecerá mais detidamente
analisada no capítulo chamado Método do livro História da Sexualidade I. Aí,
ao questionar a hipótese repressiva pela qual eram majoritariamente analisadas
nossas relações com o sexo, com o desejo, Foucault chama a atenção para o
caráter produtivo e normativo do poder, o modo como este molda corpos e
práticas, como gera prazer e induz a agir. Tomando o poder como relações
multidirecionais, contrapondo-se ao que chama de modelo da soberania, que
seria prevalecente nas análises que tenderiam a reduzir o poder ao Estado,
vendo-o partir de um centro e desde cima, Foucault propõe pensar o poder
como uma fina rede, como um conjunto de relações de força que nos
produzem enquanto sujeitos e também enquanto objetos de práticas e de
saberes. Tendo as instituições como o núcleo de sua análise, já que seria nelas
que relações de poder e saberes correlatos se cristalizariam, as obras,
sobretudo dos anos 70, são valiosas para inspirar análises em torno da
instituição escolar e das pedagogias presentes em diversas instituições
modernas, além da escola, que são fundamentais para nossa constituição
como sujeitos.
Alguns artigos são importantes para quem quer refletir sobre a educação a
partir do pensamento foucaultiano, como: “Soberania e Disciplina”; “Verdade e
Poder”; “Genealogia e Poder”; “A Governamentalidade”, todos publicados em
Microfísica do Poder e “Poder e Saber”, incluído em Ditos e Escritos, vol. IV.
Um livro desse período, que foi organizado por Foucault, é valioso para os
educadores, pois tematiza a relação entre as instituições, a escola em especial,
e a produção da identidade sexual do sujeito: trata-se de Herculane Barbin ou
O Diário de um Hermafrodita, que nos permite refletir sobre as dificuldades
com que se defrontam a escola e os educadores quando se veem diante da
diferença, da alteridade, daquilo que é visto como anormal. Ler este livro junto
com o curso cujo tema foi os anormais, como se constituiu historicamente
esta categoria e a que experiências recobria, será um bom exercício.
Foucault e a educação
Cumpridas estas etapas do programa de leitura se poderia então adentrar na
produção acadêmica, notadamente a brasileira, que vem usando as inspirações
foucaultianas para as reflexões no campo da educação. De saída, se impõe a
produção de dois autores, que se tornaram referências nesse campo de
estudos no Brasil: Alfredo Veiga-Neto e Tomaz Tadeu da Silva, de quem se
recomenda a leitura de toda a produção. Nesta bibliografia indicaremos apenas
os títulos que, por sua abordagem mais didática e panorâmica, ajudam a um
primeiro contato com o pensamento de Foucault e o que é possível pensar no
campo da educação a partir de sua obra.
De Alfredo Veiga-Neto, Foucault e a Educação (Belo Horizonte: Autêntica,
2003), em que o autor expõe de maneira didática a trajetória do pensamento
de Foucault com base no que chama de seus três núcleos de problematização
ou domínios: o ser-saber, o ser-poder e o ser-consigo, e como podem servir
de inspiração para pesquisas na área da educação.

© Raquel Schembri, Think Twice, acrílica sobre tela, 2010. Reprodução


Pintura de Raquel Schembri. Em “Vigiar e Punir” encontra-se a
tematização da história das formas de punição na sociedade
ocidental

De Tomaz Tadeu da Silva, recomenda-se O Sujeito da Educação: Estudos


Foucaultianos (Petrópolis: Vozes, 1994), uma coletânea organizada por ele,
cujos textos abordam a questão do sujeito na educação, em suas mais
diversas dimensões, desde os tipos de sujeitos produzidos pelas práticas
pedagógicas e pelas instituições de ensino até os que estão presentes no
espaço escolar e como interagem entre si. Outro título organizado por ele,
Liberdades Reguladas: As Pedagogias Construtivistas e Outras Formas de
Governo do Eu (Petrópolis: Vozes, 1998), se insere num debate dos mais
atuais na área da educação em nosso País, onde as pedagogias construtivistas
gozam de inequívoco prestígio, tanto entre dirigentes como entre agentes da
educação. Neste livro, uma série de artigos analisa as implicações políticas e
pedagógicas do exercício destas pedagogias.
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