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O Arquipélago Gulag

Aleksandr Soljenítsin
1918-1956
Ensaio de investigação literária
Edição abreviada

Traduzido do russo por António Pescada


Prefácio de Natália Soljenítsina

Ficção
O Arquipélago Gulag

Índice

O dom da personificação, Natália Soljenítsina 9

Primeira Parte 31
A Indústria prisional
Capítulo 1 A detenção 33
Capítulo 2 História da nossa canalização 47
Capítulo 3 A instrução do processo 67
Capítulo 4 Os galões azuis 81
Capítulo 5 Primeira cela – primeiro amor 93
Capítulo 6 Aquela Primavera 109
Capítulo 7 Na casa das máquinas 123
Capítulo 8 A lei em criança 129
Capítulo 9 A lei amadurece 137
Capítulo 10 A lei na maturidade 145
Capítulo 11 A medida suprema 153
Capítulo 12 Tiurzak – a prisão 163

Segunda Parte 171
Movimento perpétuo
Capítulo 1 Os navios do Arquipélago 173
Capítulo 2 Os portos do Arquipélago 185
Capítulo 3 Caravanas de escravos 193
Capítulo 4 De ilha em ilha 199
Aleksandr Soljenítsin

Terceira Parte 209
Extermínio pelo trabalho
Capítulo 1 Os dedos da Aurora 213
Capítulo 2 O Arquipélago surge do mar 217
Capítulo 3 O Arquipélago cria metástases 227
Capítulo 4 O Arquipélago petrificado 237
Capítulo 5 Os alicerces do Arquipélago 245
Capítulo 6 Trouxeram os fascistas! 255
Capítulo 7 O dia a dia do indígena 263
Capítulo 8 A mulher no campo 273
Capítulo 9 Os alapados 279
Capítulo 10 Em vez dos políticos 283
Capítulo 11 Os bem-pensantes 291
Capítulo 12 Truz-truz-truz… 297
Capítulo 13 Deste uma pele, dá a segunda! 301
Capítulo 14 Mudar o destino! 305
Capítulo 15 CHIZO, BUR, ZUR 311
Capítulo16 Os socialmente próximos 317
Capítulo 17 Os miúdos 323
Capítulo 18 As musas no Gulag 333
Capítulo 19 Os zeks como nação 343
Capítulo 20 Um trabalho de cão 357
Capítulo 21 O mundo em volta dos campos 365
Capítulo 22 Nós construímos 369

Quarta Parte 377
A alma e o arame farpado
Capítulo 1 Ascensão 379
Capítulo 2 Ou depravação? 389
Capítulo 3 A liberdade amordaçada 393
Capítulo 4 Alguns destinos 401

Quinta Parte 403
Os trabalhos forçados
Capítulo 1 Os condenados 405
Capítulo 2 Uma aragem de revolução 413
Capítulo 3 Cadeias, cadeias… 421
Capítulo 4 Porque é que suportámos? 429

6
O Arquipélago Gulag

Capítulo 5 Poesia debaixo de uma lápide, a verdade debaixo da pedra 437


Capítulo 6 Um fugitivo convicto 445
Capítulo 7 O gatinho branco 459
Capítulo 8 Fugas com moral e fugas com engenharia 461
Capítulo 9 Os rapazinhos das pistolas-metralhadoras 473
Capítulo 10 Quando a terra arde na zona 479
Capítulo 11 Às apalpadelas, quebramos as cadeias 487
Capítulo 12 Os quarenta dias de Kenguir 499

Sexta Parte 519
O desterro
Capítulo 1 O desterro nos primeiros anos de liberdade 521
Capítulo 2 A peste dos mujiques 525
Capítulo 3 O desterro adensa-se 533
Capítulo 4 O desterro dos povos 535
Capítulo 5 Terminada a pena 541
Capítulo 6 Próspero desterro 549
Capítulo 7 Ops zeks em liberdade 557

Sétima Parte 563
Não há Estaline
Capítulo 1 Um olhar por cima do ombro 565
Capítulo 2 Os governos mudam, o Arquipélago permanece 569
Capítulo 3 A lei hoje 571

Posfácio 573
Glossário de abreviaturas e termos 575
Notas biográficas 579

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O Arquipélago Gulag

Capítulo 1
A detenção

Como se chega a esse Arquipélago misterioso? A todas as horas voam


para lá aviões, navegam barcos, atroam comboios – mas não há neles uma
única inscrição que indique o lugar de destino. E tanto os funcionários das
bilheteiras, como os agentes da Sovturist e da Inturist ficarão pasmados se
lhes pedirmos um bilhete para lá.
Não sabem, não ouviram falar nem do Arquipélago no seu conjunto,
nem de nenhuma das suas inumeráveis ilhotas.
Aqueles que vão dirigir o Arquipélago, chegam lá através da escola do
MVD*.
Os que vão guardar o Arquipélago, são convocados através dos centros
de recrutamento militar. Mas aqueles que vão para lá morrer, como eu e
você, leitor, têm de passar forçosa e unicamente através da detenção.
Detenção! Será necessário dizer que isso constitui uma quebra em toda
a nossa vida? Que é um raio que se abate sobre nós? Um choque moral
insuportável, a que nem todas as pessoas conseguem adaptar-se e que leva
muitas vezes à loucura?
O  universo tem tantos centros quantos os seres vivos que nele exis-
tem. Cada um de nós é um centro do universo, e o universo desmorona-se
quando nos murmuram: «Você está preso!».
Mas se você é preso, será possível que alguma coisa fique de pé depois
desse terramoto?
Mas tanto os mais subtis como os mais simples de nós, de cérebro
obscurecido, incapazes de abarcar essa deslocação do universo, não en-
contram nesse momento, de toda a sua experiência de vida, mais nada
para extrair a não ser:
– Eu? Porquê?
Pergunta repetida milhões e milhões de vezes ainda antes de nós e que
nunca obteve resposta.

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AGUL-3
Aleksandr Soljenítsin

A detenção é uma transição instantânea, surpreendente, uma trasla-


dação, uma transmutação de um estado para outro.
Pela longa e sinuosa rua da nossa vida, passávamos felizes ou arrastá-
vamo-nos penosamente ao lado de vedações e mais vedações – paliçadas de
madeira apodrecida, pequenos muretes de barro, de tijolo, de betão, cercas
de ferro forjado. Nunca nos interrogámos: o que estará lá por trás? Nem
pelo olhar, nem pelo raciocínio, não tentámos espreitar o que havia por
trás, e é aí que começa o país Gulag, mesmo ao lado, a dois metros de nós.
E também não notávamos nessas vedações a inumerável quantidade de por-
tas e cancelas bem dissimuladas. Todas, todas essas cancelas estavam pre-
paradas para nós! – e eis que uma delas, fatal, se abriu rapidamente de par
em par e quatro mãos brancas de homens nos agarraram por uma perna,
pelo braço, pela gola, pelo gorro, pelas orelhas – e nos arrastam como um
saco, e a cancela atrás de nós, a cancela fecha-se sobre a nossa vida passada,
para sempre.
E pronto. Você está preso!
E  não encontrará nada que responder a isso, além de um balido de
cordeiro:
– Eu? Porquê?…
E é tudo. E não conseguirá assimilar mais nada na próxima hora, nem
sequer nas próximas vinte e quatro horas.
E no meio do seu desespero cintilará ainda uma lua de circo, de brin-
quedo: «Isto é um erro! Tudo se esclarecerá!»
Tudo o resto, que é já hoje uma tradição e até tem representação literá-
ria sobre a detenção, acumula-se e organiza-se não já na sua memória de-
sordenada, mas na memória da sua família e dos vizinhos de apartamento.
É  o toque estridente da campainha a meio da noite ou as pancadas
rudes na porta. É a entrada galharda dos animados rapazes operacionais
com as botas sujas. É a testemunha assustada que vem atrás deles.
De uma detenção tradicional fazem também parte os preparativos, com
mão trémula, por aquele que vai ser levado: uma muda de roupa, um bo-
cado de sabão, um pouco de comida, e ninguém sabe do que vai precisar,
o que pode levar, o que deve vestir, e os operacionais dão pressa, interrom-
pem: «Não é preciso levar nada. Lá dão comida. Lá está calor.» (Tudo men-
tira. E dão pressa, para atemorizar, meter mais medo.)
Uma detenção tradicional é também, depois de levarem o pobre de-
tido, a ocupação do apartamento durante muitas horas por uma força es-
tranha, numerosa, esmagadora, que quebra, arranca das paredes, rasga,
atira ao chão os objetos dos armários e das mesas, espalha e pisa com
as botas. E  não há nada sagrado durante uma busca! Na detenção do

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O Arquipélago Gulag

maquinista do caminho de ferro Inóchin, havia num quarto um pequeno


caixão com uma criança que acabava de morrer. Os homens da lei reti-
raram a criança do caixão, e também ali revistaram. E retiram os doen-
tes da cama, e retiram-lhes as ligaduras. E durante uma devassa não há
nada que possa ser considerado absurdo! Ao nosso melhor especialista
do Tibete, Vostrikov, apreenderam-lhe preciosos manuscritos tibetanos
antigos (e os discípulos do falecido mal conseguiram retirá-los do KGB
trinta anos mais tarde!). Confiscaram a Vostrikov o arquivo dos Ostiacos
do Ienissei, proibiram o sistema de escrita e o abecedário inventado por
ele – e este pequeno povo ficou sem língua escrita. Em linguagem intelec-
tual tudo isto demora muito tempo a descrever, mas o povo diz acerca das
buscas: buscam o que ninguém lá pôs.
Levam aquilo que separaram, e por vezes obrigam o próprio detido a
transportá-lo – para a goela deles, e para sempre, sem retorno.
É assim que imaginamos a detenção.
E, de facto, a detenção noturna do tipo aqui descrito é a preferida, por-
que apresenta importantes vantagens. Todos os que vivem no apartamento
ficam afetados pelo terror logo à primeira pancada na porta. O detido é
arrancado do calor do leito, está ainda envolto na impotência do ensonado,
com a mente toldada. Na detenção noturna, os operacionais têm superio-
ridade de forças: aparecem vários homens armados contra um, que ainda
nem conseguiu abotoar as calças.
As detenções noturnas têm ainda a vantagem de que nem os prédios vi-
zinhos, nem as ruas da cidade veem quantos foram levados durante a noite.
É como se não tivesse acontecida nada. Por aquela mesma faixa de asfalto
percorrida durante a noite pelas carrinhas celulares, caminha de dia o povo
jovem com bandeiras e flores e entoando canções alegres.
Mas os arrecadadores, cujo serviço consiste precisamente e apenas
nas detenções, para os quais os horrores dos detidos são repetitivos e fas-
tidiosos, têm uma compreensão muito mais ampla da operação de deten-
ção. Possuem uma grande teoria, não se deve pensar que ela não existe.
A ciência da detenção é um capítulo importante do curso geral de gestão
das prisões. As detenções têm uma classificação, segundo vários critérios:
noturnas e diurnas; no domicílio, no trabalho e em viagem; primeiras e
reiteradas; isoladas ou em grupo. As detenções diferem pelo grau de sur-
presa exigido, pelo grau de resistência previsto (mas em dezenas de mi-
lhões de casos não se esperava qualquer resistência, que de resto nunca
houve). As detenções distinguem-se pela seriedade da busca a efetuar; pela
necessidade de fazer ou não o inventário para confisco, selagem de salas
ou apartamentos; pela necessidade de deter também a mulher depois do

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Aleksandr Soljenítsin

marido, e enviar os filhos para a casa de crianças, ou toda a restante família


para o desterro, ou mandar também os velhos para um campo.
As detenções são por vezes muito variadas quanto à sua forma. Irma
Mendel, uma húngara, conseguiu na Internacional Comunista (em 1926)
dois bilhetes para o teatro Bolchoi, nas primeiras filas. O comissário de
instrução Kleguel andava a cortejá-la e ela convidou-o. Comportaram-se
com muita ternura durante todo o espetáculo, e depois ele acompanhou-
-a… diretamente à Lubianka*. E se num belo dia de junho de 1927, na rua
Kuznetski Most, a bela Anna Skripnikova, de tranças aloiradas, que aca-
bava de comprar um tecido azul para um vestido, é convidada por um
qualquer janota ainda novo a sentar-se numa caleça (e o cocheiro com-
preendeu logo e franziu o sobrolho: os Órgãos não lhe pagarão) – fiquem
sabendo que não se trata de um encontro amoroso, mas também de uma
detenção: vão já virar para a Lubianka e entrar pela goela negra do por-
tão. E  se (vinte e duas primaveras mais tarde) o segundo capitão Boris
Burkovski, de túnica militar branca, a cheirar a água de Colónia cara,
compra um bolo para uma jovem – não jurem que a jovem receberá esse
bolo, e que este não será retalhado pelas facas dos investigadores e levado
pelo segundo capitão para a sua primeira cela. Não, no nosso país nunca
se desdenhou da detenção diurna, nem da detenção em viagem, nem da
detenção no meio de uma multidão fervilhante. No entanto, ela é execu-
tada de maneira limpa e – surpreendentemente! – as próprias vítimas, de
acordo com os agentes operacionais, comportam-se com a maior com-
postura possível para não deixar que os vivos percebam a queda de um
condenado.
Nem todos podem ser detidos em casa com uma prévia pancada na
porta (e se alguém bate à porta, é o «administrador do prédio», ou o «car-
teiro»), e nem todos podem ser detidos no local de trabalho. Às altas pa-
tentes, militares ou do partido, era-lhes por vezes dada uma nova missão,
atribuíam-lhes uma carruagem-salão e prendiam-nos durante a viagem.
À entrada da fábrica, depois de você apresentar o livre-trânsito, cha-
mam-no de parte e você está preso; levam-no do hospital militar com
uma temperatura de 39° (Hans Bernstein), e o médico não opõe qualquer
objeção contra a sua detenção (ele que experimentasse opor-se!); levam-
-no diretamente da mesa de operações, da operação a uma úlcera do es-
tômago (N. M. Vorobiov, inspetor regional de educação, 1936) – e quase
morto, a sangrar, metem-no numa cela (recorda Karpunitch); você (Nádia
Levítskaia) solicita uma entrevista com a sua mãe condenada, e concedem-
-lha! – mas isso é apenas para uma acareação, seguida de detenção! Numa
loja de produtos alimentares chamam-no à secção de encomendas, e ali o

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O Arquipélago Gulag

prendem; prende-o o peregrino que você acolheu uma noite em sua casa
por amor de Cristo; prende-o o eletricista que veio para retirar o contador;
prende-o o ciclista que chocou consigo na rua; o condutor do comboio, o
motorista de táxi, o funcionário da caixa económica, e o diretor de uma sala
de cinema – todos eles o detêm, e só muito tarde você verá o bem dissimu-
lado cartão de identidade bordô.
Por vezes as detenções até parecem um jogo – há nelas tanta inventiva
supérflua, tanta energia, quando mesmo sem isso a vítima não oferece-
ria resistência. Pois segundo parece, bastaria enviar uma notificação
a todos os coelhinhos que figuram na lista e eles próprios viriam obe-
dientemente à hora marcada, ao minuto, com um embrulho na mão aos
portões de ferro da segurança do Estado, para ocuparem a superfície
de chão na cela que lhes estava destinada. (É de resto assim que detêm
os kolkhozianos, pois não íamos agora deslocar-nos às cabanas deles de
noite por caminhos intransitáveis. Convocam-no para o soviete da aldeia
e ali o prendem.)
Durante várias décadas, as detenções políticas no nosso país distin-
guiam-se por serem detidas pessoas que não eram culpadas de nada e por
isso não estavam preparadas para qualquer resistência. Criava-se um sen-
timento geral de fatalismo, a ideia (de resto bastante justa, dado o nosso
sistema de passaportes) de que era impossível escapar ao GPU-NKVD. Não
se pedia outra coisa. Uma ovelha mansa para os dentes do lobo.
A inocência geral engendra a inércia geral. Talvez ainda não te levem
a ti? Talvez escapes? A. I. Ladijenski era professor principal na escola da
aldeia remota de Kologriv. Em 1937, no mercado, um camponês aproximou-
-se dele e comunicou-lhe uma mensagem de alguém: «Aleksandr Ivánitch,
vai-te embora, estás na lista!» Mas ele deixou-se ficar: se toda a escola de-
pende de mim e os próprios filhos deles estudam comigo, como podem eles
prender-me?… (Alguns dias depois detiveram-no.) Nem todos conseguem,
como Vânia Levitski, compreender desde os catorze anos: «Toda a pessoa
honesta deve ir parar à prisão. Agora está lá o meu pai, e quando eu cres-
cer prendem-me também a mim.» (Prenderam-no aos vinte e três anos.)
A maioria entorpece na miragem da esperança. Se tu estás inocente, por
que te vão prender? Isto é um erro! Já te arrastam pelo colarinho e tu conti-
nuas a exorcizar para contigo: «Isto é um erro! Quando tudo se esclarecer,
soltam-me!»
E nesse caso, para quê fugir?… E como poderias tu resistir?… Não fa-
rias mais que piorar a tua situação, dificultarias o esclarecimento do erro.
E não só não resistes, como até desces a escada em bicos dos pés, como te
mandaram, para que os vizinhos não oiçam.

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Aleksandr Soljenítsin

As coisas que se passam na alma de um recém-detido! Só isto vale-


ria um livro. Pode haver nela sentimentos de que nem suspeitávamos.
Quando, em 1921, detiveram Evguénia Doiarenko, de dezanove anos, e
três jovens tchekistas lhe revolveram a cama, e a cómoda com a roupa
interior, ela manteve-se tranquila: não há ali nada, não encontrarão nada.
E de repente agarraram o seu diário íntimo, que ela nem à sua mãe po-
deria mostrar – e essa leitura das suas linhas por três rapazes estranhos
e hostis afetou-a mais fortemente do que toda a Lubianka com as suas
grades e subterrâneos. Para muitas pessoas, esses sentimentos e laços
pessoais, afetados pela detenção, podem ser muito mais fortes do que as
ideias políticas ou o medo da prisão. A pessoa que não está interiormente
preparada para a violência é sempre mais fraca do que quem pratica a
violência.
São raros os inteligentes e os temerários que compreendem instan-
taneamente. Grigóriev, diretor do instituto de geologia da Academia das
Ciências, quando o foram deter em 1949, barricou-se e esteve duas horas
a queimar papéis.
Por vezes, o principal sentimento do detido é de alívio e até… de ale-
gria, em especial durante as epidemias de detenções: quando à tua volta
não param de levar outros como tu e só a ti não te vêm buscar, demoram
a decidir-se – isso é esgotante, é um sofrimento pior do que qualquer de-
tenção, e não apenas para uma alma débil.
«Resistência! Onde esteve a vossa resistência?» – recriminam agora
os que escaparam àqueles que sofreram.
Sim, era preciso começar aqui, no momento da detenção.
Não começou.

***

E  pronto, eis que te levam. Durante uma detenção diurna há inevi-


tavelmente aquele momento breve, irrepetível, em que te levam – não às
claras, por uma medrosa persuasão, ou inteiramente às claras, com as
pistolas à vista –, te levam através da multidão entre centenas de outros
igualmente inocentes e condenados. E  não te taparam a boca. Podias e
devias por força gritar! Gritar que vais preso! Que uns miseráveis disfar-
çados andam à caça das pessoas! Que as prendem por falsas denúncias!
Que está em curso uma surda repressão sobre milhões de pessoas! E, ao
ouvir esses gritos muitas vezes por dia e em todos os pontos da cidade,
talvez os nossos concidadãos se insurgissem? Talvez as detenções deixas-
sem de ser tão fáceis!?

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O Arquipélago Gulag

Mas dos teus lábios ressequidos não sai nem um único som, e a multi-
dão que passa descuidadamente considera-te a ti e aos teus carrascos uns
amigos que se passeiam.
Eu próprio tive muitas vezes a oportunidade de gritar.
No décimo primeiro dia depois da minha detenção, três parasitas do
smerch*, mais sobrecarregados com as três malas de troféus do que co-
migo, conduziram-me à estação da Bielorrússia, em Moscovo. Designavam-
-se como escolta especial, mas na verdade as espingardas automáticas só
lhes dificultavam o transporte das pesadas malas – bens roubados na Ale-
manha por eles e pelos seus chefes da contraespionagem do smerch da
2.a Frente da Bielorrússia e que agora traziam para as famílias. Uma quarta
mala transportava-a eu sem qualquer vontade, onde vinham os meus diá-
rios e os meus escritos – provas contra mim.
Nenhum dos três conhecia a cidade, e eu devia escolher o caminho
mais curto para a prisão, eu próprio devia conduzi-los à Lubianka, onde
eles nunca tinham estado (e eu confundia-a com o Ministério dos Negó-
cios Estrangeiros).
Depois de um dia passado na contraespionagem do exército; depois
de três dias na contraespionagem da frente, onde os companheiros de
cela me instruíram (sobre os logros da investigação, as ameaças, os es-
pancamentos; que uma vez detido não te largam nunca mais; sobre a ine-
vitabilidade dos dez anos) – há já quatro dias que por milagre viajo como
livre entre pessoas livres, embora as minhas costelas já se deitassem na
palha podre junto ao balde das fezes, embora os meus olhos já tivessem
visto companheiros espancados e sem dormir, os ouvidos ouvissem a ver-
dade, a minha boca comesse a sopa aguada – porque é que continuo ca-
lado? Porque é que não esclareço a multidão enganada, no meu último
minuto em público?
Fiquei calado na cidade polaca de Brodnica –  mas talvez ali as pes-
soas não percebessem russo? Não gritei nem uma palavra nas ruas de
Bialystok – mas possivelmente isto não interessa nada aos polacos? Não
proferi um som na estação de Wolkowyck  –  mas havia ali pouca gente.
Como se nada fosse, passeei com estes bandidos pela plataforma de
Minsk  –  mas a estação ainda estava em ruínas. E  agora conduzo atrás
de mim estes agentes da contraespionagem sob a cúpula branca do ves-
tíbulo circular superior do metro Bielorrússkaia radial, inundado de luz
elétrica, e de baixo para cima sobem ao nosso encontro duas escadas ro-
lantes paralelas carregadas de moscovitas. Parece que olham todos para
mim! Por uma fita contínua, sem fim, arrastam-se de lá de baixo, das
profundezas da ignorância, desembocam na cúpula cintilante, na minha

39
Aleksandr Soljenítsin

direção, esperando ao menos uma palavrinha de verdade – por que me


calo eu então??!…
Cada pessoa tem sempre uma dúzia de razões simples para não se sa-
crificar.
Alguns têm ainda esperança numa saída favorável e receiam com-
prometê-la com o seu grito (porque não nos chegam notícias do outro
mundo, não sabemos que desde o instante da detenção o nosso destino já
está decidido pela pior variante e é impossível piorá-la). Outros ainda não
amadureceram ao ponto de compreender os conceitos que se cristalizam
num grito lançado à multidão. Pois só o revolucionário tem sempre as
palavras de ordem na ponta da língua e que lhe saem por si mesmas; mas
onde as iria buscar o pacato cidadão comum que não se mete em nada?
Ele simplesmente não sabe o que há de gritar. E finalmente, há ainda uma
categoria de pessoas que têm o peito demasiado cheio, cujos olhos viram
demasiado, para que possam despejar todo esse lago em alguns gritos
sem nexo.
Mas eu – estou calado ainda por outro motivo: porque aqueles mos-
covitas que ocupam os degraus de duas escadas rolantes são em todo o
caso poucos para mim – poucos! O meu grito será ouvido aqui por duzen-
tas, ou duas vezes duzentas pessoas – e quanto aos outros duzentos mi-
lhões?… Tenho o pressentimento confuso de que algum dia gritarei para
duzentos milhões…
E  entretanto, sem que eu abra a boca, a escada rolante arrasta-me
irresistivelmente para o inferno.
E continuarei calado ainda na Okhotni Riad.
Não grito perto do Metrópole.
Não agito os braços no Gólgota da praça Lubianka…

***

A minha detenção foi por certo do género mais fácil que se possa ima-
ginar. Não me arrancou aos braços da família, não me separou da vida do-
méstica que nos é tão grata. Num insípido mês de fevereiro europeu, ela
arrancou-me da nossa faixa de terra que avançava para o mar Báltico, onde
não era muito claro se nós cercávamos os alemães ou se eles nos cercavam a
nós – e privou-me apenas da divisão a que estava habituado e do espetáculo
dos três últimos meses da guerra.
O comandante da brigada chamou-me ao posto de comando, pediu-me
a pistola, não sei porquê, eu entreguei-lha, sem suspeitar de qualquer astú-
cia – e de repente, do meio do grupo de oficiais que se mantinham imóveis

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O Arquipélago Gulag

e tensos a um canto, saíram dois agentes da contraespionagem, atravessa-


ram a sala em alguns saltos e, deitando ao mesmo tempo as quatro mãos à
estrela do gorro, aos galões, ao cinto e ao saco de campanha, gritaram em
tom dramático:
– Você está preso!
E  eu, corado e traspassado da cabeça aos pés, não achei nada mais
inteligente do que perguntar:
– Eu? Porquê?!…
Embora esta pergunta fique habitualmente sem resposta, surpreen-
dentemente eu obtive uma resposta! Isto merece ser lembrado porque
está demasiado fora dos nossos costumes. Mal os agentes da contraes-
pionagem tinham acabado de me depenar e, assustados pelo estremeci-
mento das vidraças devido às explosões alemãs, me empurravam à pressa
para a saída – soou de repente um chamamento enérgico que me era di-
rigido – sim! Por cima do surdo abismo que se cavava entre mim e os que
ficavam, abismo resultante da palavra «preso» que caíra pesadamente,
por cima dessa barreira para lá da qual já nenhum som se filtrava, pas-
saram estas palavras inimagináveis, fabulosas, ditas pelo comandante da
brigada:
– Soljenítsin. Volte aqui.
E  eu, numa reviravolta brusca, soltei-me das mãos dos da contraes-
pionagem e voltei para junto do comandante. Conhecia-o mal, ele nunca
condescendia em ter simples conversas comigo. Para mim, a sua cara expri-
mia sempre ordem, comando, ira. Mas agora iluminava-se pensativamente
– com vergonha pela sua participação involuntária num caso sórdido? Num
impulso para se colocar acima da lastimável subordinação de toda uma
vida? Dez dias antes, de uma bolsa onde tinha ficado a sua divisão de fogo,
composta por doze canhões pesados, eu tirei a minha bateria de reconhe-
cimento quase intacta, e ele devia agora abdicar de mim por causa de um
pedaço de papel com um carimbo?
– Você… – perguntou com voz autoritária – tem um amigo na Primeira
Frente Ucraniana?
– Não pode!… Não tem o direito!  –  gritaram ao coronel o capitão e
o major da contraespionagem. A  comitiva de oficiais do estado-maior
encolheu-se assustada a um canto, como se receasse partilhar a inaudita
irreflexão do comandante da bateria (e, sendo da secção política, prepa-
ravam-se já para transmitir material acerca do comandante da brigada).
Mas para mim já era bastante: percebi logo que estava a ser detido por
causa da correspondência com o meu amigo da escola, e compreendi de
onde devia esperar os perigos.

41
Aleksandr Soljenítsin

E Zakhar Gueorguievitch Travkin bem podia ter ficado por aqui. Mas
não! Continuando a purificar-se e a aprumar-se perante si mesmo, levan-
tou-se da mesa a que estava sentado (nunca se levantava para me rece-
ber nessa vida anterior!), estendeu-me a mão através da linha pestilenta
(nunca me estendera a mão quando eu era livre!) e, durante o aperto de
mãos, perante o mudo pavor da comitiva, com calor no seu rosto sempre
severo, disse corajosamente, com toda a clareza:
– Desejo-lhe boa sorte, capitão!
Eu não só já não era capitão, como era um inimigo do povo desmasca-
rado (porque no nosso país qualquer detido, desde o momento da deten-
ção, está completamente desmascarado). Ele desejava então sorte a um
inimigo?…
Os vidros estremeciam. As explosões alemãs dilaceravam a terra a
duzentos metros de distância, lembrando que aquilo não poderia aconte-
cer além, mais no interior da nossa terra, sob a redoma de uma existência
imobilizada, mas apenas sob o bafo de uma morte próxima e igual para
todos3.

***

Este livro não será de memórias da minha própria vida. Por isso não
contarei os pormenores cómicos da minha extravagante detenção. Nessa
noite, os da contraespionagem desesperaram por completo de decifrar o
mapa (nunca tinham conseguido fazê-lo) e com amabilidades entregaram-
-mo a mim e pediram-me que dissesse ao motorista como chegar à con-
traespionagem do exército. Eu próprio nos conduzi, a mim e a eles, àquela
prisão, e em sinal de gratidão fui logo metido não numa cela, mas num ca-
labouço. Era impossível não falar dessa pequena arrecadação de uma casa
camponesa alemã, que servia de prisão temporária.
Tinha o comprimento do corpo de um homem, e de largura podiam
deitar-se três homens à justa, um quarto ficava muito apertado. Eu era
precisamente esse quarto, empurrado já depois da meia-noite. Os três que
estavam deitados olharam-me com os olhos estremunhados de sono à luz
da lamparina de querosene e moveram-se, dando-me espaço para cair de
lado e introduzir-me pouco a pouco pela força da gravidade. E assim, no
chão juncado de palha triturada, ficámos oito botas viradas para a porta e

3
  coisa surpreendente: em todo o caso é possível ser um homem! – Travkin não
E
sofreu nada. Recentemente encontrámo-nos e pela primeira vez travámos co-
nhecimento. Ele é general reformado e inspetor da união de caçadores.

42
O Arquipélago Gulag

quatro capotes. Eles dormiam, eu fervia. Quanto mais seguro de mim eu


me sentia como capitão meio dia antes, mais doloroso era ficar ali apertado
no fundo daquele cubículo. De vez em quando os rapazes acordavam devido
ao entorpecimento do flanco, e virávamo-nos todos ao mesmo tempo.
De manhã eles acordaram, bocejaram, grasnaram, encolheram as
pernas, meteram-se pelos cantos – e começaram as apresentações.
– E tu, foi porquê?
Mas uma vaga aragem de alerta já tinha soprado sobre mim debaixo
do teto infesto da contraespionagem, e eu surpreendi-me candidamente.
– Não faço ideia. Mas esses canalhas dizem alguma coisa?
No entanto, os meus companheiros de calabouço – tanquistas de capa-
cetes negros macios – não eram dissimulados. Eram três corações simples
e honestos de soldados, o género de pessoas a que eu mais me ligara du-
rante os anos da guerra, sendo eu próprio mais complexo e menos bom.
Eram todos eles oficiais. Os seus galões também lhes haviam sido arran-
cados com fúria, em alguns pontos ainda lhes pendiam as linhas. Nas ca-
misas sebentas, as manchas claras eram os vestígios das condecorações
arrancadas, as cicatrizes escuras e vermelhas nos rostos eram a recordação
de ferimentos e queimaduras. Por desgraça, a sua divisão viera recompor-
-se para esta aldeia, onde estava sediada a contraespionagem do 48.° exér-
cito. Para comemorar o combate que decorrera na antevéspera, na véspera
embebedaram-se e na periferia da aldeia irromperam nos banhos, para
onde, segundo viram, tinham ido lavar-se duas jovens atraentes. As jovens
conseguiram escapar, meio despidas, às pernas bêbedas e desobedientes
deles. Mas uma delas não era uma qualquer, era a amiguinha do chefe da
contraespionagem do exército.
Sim! Havia já três semanas que a guerra decorria em solo alemão e
todos nós sabíamos bem: se as jovens fossem alemãs, podia-se violentá-las,
depois fuzilá-las, e isso seria quase uma distinção de combate; se fossem
polacas ou nossas, russas deportadas, podia-se em todo o caso fazê-las
correr nuas pela horta e dar-lhes umas palmadas nas coxas – e isso não
passava de uma distração divertida. Mas como aquela era a «mulher de
campanha» do chefe da contraespionagem, um qualquer sargento da re-
taguarda arrancou imediatamente com fúria os galões a três oficiais com-
batentes, galões confirmados por uma ordem da frente, arrancou-lhes as
condecorações atribuídas pela Presidência do Soviete Supremo – e agora
esses militares veteranos, que tinham feito toda a guerra e aniquilado tal-
vez mais de uma linha de trincheiras inimigas, esperavam julgamento de
um tribunal militar que sem os tanques deles não teria ainda sequer che-
gado até àquela aldeia.

43
Aleksandr Soljenítsin

Apagámos a lamparina, que mesmo assim já tinha queimado todo o ar


que ali havia para respirarmos. A porta tinha uma fresta do tamanho de
um bilhete-postal, por onde entrava uma luz indireta do corredor. Como se
receassem que o romper do dia nos tornasse o calabouço demasiado espa-
çoso, enfiaram lá um quinto homem. Entrou envergando um capote novo
do exército vermelho, um gorro também novo e, quando ficou em frente
da fresta, mostrou-nos uma cara fresca de nariz arrebitado com as faces
todas rosadas.
– De onde vens, irmão? Quem és tu?
– Venho do outro lado – respondeu ele prontamente. – Sou um espião.
– Estás a brincar? – dissemos nós, atónitos. (Que fosse um espião, e ele
mesmo o dissesse, nem Cheinin, nem os irmãos Tur escreveram nunca uma
coisa assim!)
– Achas que se pode brincar em tempo de guerra? – suspirou o sujeito
sensatamente. – E como é que se pode voltar para casa depois de ter sido
prisioneiro? Ora digam-me.
Mal ele tinha começado o seu relato de como, vinte e quatro horas
antes, os alemães o introduziram através da frente para que ele viesse
aqui espiar e destruir pontes, e de como fora imediatamente entregar-se
ao batalhão mais próximo, mas o comandante do batalhão, sonolento e
extenuado, não acreditara que ele fosse espião e o mandara à enfermeira
para que lhe desse uns comprimidos – quando de repente novas impres-
sões nos assaltaram:
– Formar! Mãos atrás das costas!  –  lançou através da porta, aberta
de par em par, um sargento-ajudante inteiramente capaz de arrastar um
canhão de 122 milímetros.
Todo o pátio da casa camponesa estava já ocupado por um cordão de
soldados com espingardas automáticas, que guardavam a vereda que nos
era indicada para contornar o palheiro. Eu explodi de indignação ao ver um
sargento ignorante ordenar-nos, a nós, oficiais, as «mãos atrás das costas»,
mas os tanquistas obedeceram e eu segui-os.
Atrás do palheiro havia um pequeno cercado quadrado, com neve ainda
não derretida espezinhada – todo sujo de excrementos humanos, de ma-
neira tão desordenada e tão densa por todo o espaço que era difícil encon-
trar um lugar onde pôr os pés e abaixar-se. No entanto lá conseguimos e
todos os cinco nos abaixámos em lugares diferentes. Dois soldados com
armas automáticas postaram-se com ar sombrio diante de nós, ali abai-
xados, e o sargento, antes de passado um minuto, pôs a apressar-nos com
severidade:
– Vamos lá despachar! Entre nós aliviamo-nos depressa!

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O Arquipélago Gulag

Perto de mim estava um dos tanquistas, originário de Rostov no Don,


um primeiro-tenente alentado e carrancudo. Tinha o rosto escurecido de
pó de metal ou de fumo, mas uma grande cicatriz vermelha que lhe atraves-
sava a face era bem visível.
– Onde é isso, entre nós?  –  perguntou ele calmamente, sem mostrar
qualquer intenção de se apressar a voltar para o calabouço, que tresandava
a petróleo.
– Na contraespionagem smerch! – atalhou o sargento com orgulho
e em voz mais sonora do que era necessário. (Os da contraespionagem
gostavam muito dessa palavra fabricada com muito mau gosto a partir de
«smert chpionam»* Achavam-na intimidante.)
– Pois entre nós, fazemo-lo devagar  –  respondeu o primeiro-tenente,
pensativo. Tinha o capacete puxado para trás, revelando na cabeça o cabelo
ainda por rapar.
O seu traseiro de combatente estava exposto ao vento fresco e agra-
dável.
– Onde é isso, entre vós? – latiu o sargento em voz mais alta do que era
necessário.
– No Exército Vermelho – respondeu muito calmamente o primeiro-
-tenente acocorado, medindo com o olhar aquele paquiderme frustrado.

Tais foram os primeiros sorvos da minha respiração de prisioneiro.

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