Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Aleksandr Soljenítsin
1918-1956
Ensaio de investigação literária
Edição abreviada
Ficção
O Arquipélago Gulag
Índice
Primeira Parte 31
A Indústria prisional
Capítulo 1 A detenção 33
Capítulo 2 História da nossa canalização 47
Capítulo 3 A instrução do processo 67
Capítulo 4 Os galões azuis 81
Capítulo 5 Primeira cela – primeiro amor 93
Capítulo 6 Aquela Primavera 109
Capítulo 7 Na casa das máquinas 123
Capítulo 8 A lei em criança 129
Capítulo 9 A lei amadurece 137
Capítulo 10 A lei na maturidade 145
Capítulo 11 A medida suprema 153
Capítulo 12 Tiurzak – a prisão 163
Segunda Parte 171
Movimento perpétuo
Capítulo 1 Os navios do Arquipélago 173
Capítulo 2 Os portos do Arquipélago 185
Capítulo 3 Caravanas de escravos 193
Capítulo 4 De ilha em ilha 199
Aleksandr Soljenítsin
Terceira Parte 209
Extermínio pelo trabalho
Capítulo 1 Os dedos da Aurora 213
Capítulo 2 O Arquipélago surge do mar 217
Capítulo 3 O Arquipélago cria metástases 227
Capítulo 4 O Arquipélago petrificado 237
Capítulo 5 Os alicerces do Arquipélago 245
Capítulo 6 Trouxeram os fascistas! 255
Capítulo 7 O dia a dia do indígena 263
Capítulo 8 A mulher no campo 273
Capítulo 9 Os alapados 279
Capítulo 10 Em vez dos políticos 283
Capítulo 11 Os bem-pensantes 291
Capítulo 12 Truz-truz-truz… 297
Capítulo 13 Deste uma pele, dá a segunda! 301
Capítulo 14 Mudar o destino! 305
Capítulo 15 CHIZO, BUR, ZUR 311
Capítulo16 Os socialmente próximos 317
Capítulo 17 Os miúdos 323
Capítulo 18 As musas no Gulag 333
Capítulo 19 Os zeks como nação 343
Capítulo 20 Um trabalho de cão 357
Capítulo 21 O mundo em volta dos campos 365
Capítulo 22 Nós construímos 369
Quarta Parte 377
A alma e o arame farpado
Capítulo 1 Ascensão 379
Capítulo 2 Ou depravação? 389
Capítulo 3 A liberdade amordaçada 393
Capítulo 4 Alguns destinos 401
Quinta Parte 403
Os trabalhos forçados
Capítulo 1 Os condenados 405
Capítulo 2 Uma aragem de revolução 413
Capítulo 3 Cadeias, cadeias… 421
Capítulo 4 Porque é que suportámos? 429
6
O Arquipélago Gulag
Sexta Parte 519
O desterro
Capítulo 1 O desterro nos primeiros anos de liberdade 521
Capítulo 2 A peste dos mujiques 525
Capítulo 3 O desterro adensa-se 533
Capítulo 4 O desterro dos povos 535
Capítulo 5 Terminada a pena 541
Capítulo 6 Próspero desterro 549
Capítulo 7 Ops zeks em liberdade 557
Sétima Parte 563
Não há Estaline
Capítulo 1 Um olhar por cima do ombro 565
Capítulo 2 Os governos mudam, o Arquipélago permanece 569
Capítulo 3 A lei hoje 571
Posfácio 573
Glossário de abreviaturas e termos 575
Notas biográficas 579
7
O Arquipélago Gulag
Capítulo 1
A detenção
33
AGUL-3
Aleksandr Soljenítsin
34
O Arquipélago Gulag
35
Aleksandr Soljenítsin
36
O Arquipélago Gulag
prendem; prende-o o peregrino que você acolheu uma noite em sua casa
por amor de Cristo; prende-o o eletricista que veio para retirar o contador;
prende-o o ciclista que chocou consigo na rua; o condutor do comboio, o
motorista de táxi, o funcionário da caixa económica, e o diretor de uma sala
de cinema – todos eles o detêm, e só muito tarde você verá o bem dissimu-
lado cartão de identidade bordô.
Por vezes as detenções até parecem um jogo – há nelas tanta inventiva
supérflua, tanta energia, quando mesmo sem isso a vítima não oferece-
ria resistência. Pois segundo parece, bastaria enviar uma notificação
a todos os coelhinhos que figuram na lista e eles próprios viriam obe-
dientemente à hora marcada, ao minuto, com um embrulho na mão aos
portões de ferro da segurança do Estado, para ocuparem a superfície
de chão na cela que lhes estava destinada. (É de resto assim que detêm
os kolkhozianos, pois não íamos agora deslocar-nos às cabanas deles de
noite por caminhos intransitáveis. Convocam-no para o soviete da aldeia
e ali o prendem.)
Durante várias décadas, as detenções políticas no nosso país distin-
guiam-se por serem detidas pessoas que não eram culpadas de nada e por
isso não estavam preparadas para qualquer resistência. Criava-se um sen-
timento geral de fatalismo, a ideia (de resto bastante justa, dado o nosso
sistema de passaportes) de que era impossível escapar ao GPU-NKVD. Não
se pedia outra coisa. Uma ovelha mansa para os dentes do lobo.
A inocência geral engendra a inércia geral. Talvez ainda não te levem
a ti? Talvez escapes? A. I. Ladijenski era professor principal na escola da
aldeia remota de Kologriv. Em 1937, no mercado, um camponês aproximou-
-se dele e comunicou-lhe uma mensagem de alguém: «Aleksandr Ivánitch,
vai-te embora, estás na lista!» Mas ele deixou-se ficar: se toda a escola de-
pende de mim e os próprios filhos deles estudam comigo, como podem eles
prender-me?… (Alguns dias depois detiveram-no.) Nem todos conseguem,
como Vânia Levitski, compreender desde os catorze anos: «Toda a pessoa
honesta deve ir parar à prisão. Agora está lá o meu pai, e quando eu cres-
cer prendem-me também a mim.» (Prenderam-no aos vinte e três anos.)
A maioria entorpece na miragem da esperança. Se tu estás inocente, por
que te vão prender? Isto é um erro! Já te arrastam pelo colarinho e tu conti-
nuas a exorcizar para contigo: «Isto é um erro! Quando tudo se esclarecer,
soltam-me!»
E nesse caso, para quê fugir?… E como poderias tu resistir?… Não fa-
rias mais que piorar a tua situação, dificultarias o esclarecimento do erro.
E não só não resistes, como até desces a escada em bicos dos pés, como te
mandaram, para que os vizinhos não oiçam.
37
Aleksandr Soljenítsin
***
38
O Arquipélago Gulag
Mas dos teus lábios ressequidos não sai nem um único som, e a multi-
dão que passa descuidadamente considera-te a ti e aos teus carrascos uns
amigos que se passeiam.
Eu próprio tive muitas vezes a oportunidade de gritar.
No décimo primeiro dia depois da minha detenção, três parasitas do
smerch*, mais sobrecarregados com as três malas de troféus do que co-
migo, conduziram-me à estação da Bielorrússia, em Moscovo. Designavam-
-se como escolta especial, mas na verdade as espingardas automáticas só
lhes dificultavam o transporte das pesadas malas – bens roubados na Ale-
manha por eles e pelos seus chefes da contraespionagem do smerch da
2.a Frente da Bielorrússia e que agora traziam para as famílias. Uma quarta
mala transportava-a eu sem qualquer vontade, onde vinham os meus diá-
rios e os meus escritos – provas contra mim.
Nenhum dos três conhecia a cidade, e eu devia escolher o caminho
mais curto para a prisão, eu próprio devia conduzi-los à Lubianka, onde
eles nunca tinham estado (e eu confundia-a com o Ministério dos Negó-
cios Estrangeiros).
Depois de um dia passado na contraespionagem do exército; depois
de três dias na contraespionagem da frente, onde os companheiros de
cela me instruíram (sobre os logros da investigação, as ameaças, os es-
pancamentos; que uma vez detido não te largam nunca mais; sobre a ine-
vitabilidade dos dez anos) – há já quatro dias que por milagre viajo como
livre entre pessoas livres, embora as minhas costelas já se deitassem na
palha podre junto ao balde das fezes, embora os meus olhos já tivessem
visto companheiros espancados e sem dormir, os ouvidos ouvissem a ver-
dade, a minha boca comesse a sopa aguada – porque é que continuo ca-
lado? Porque é que não esclareço a multidão enganada, no meu último
minuto em público?
Fiquei calado na cidade polaca de Brodnica – mas talvez ali as pes-
soas não percebessem russo? Não gritei nem uma palavra nas ruas de
Bialystok – mas possivelmente isto não interessa nada aos polacos? Não
proferi um som na estação de Wolkowyck – mas havia ali pouca gente.
Como se nada fosse, passeei com estes bandidos pela plataforma de
Minsk – mas a estação ainda estava em ruínas. E agora conduzo atrás
de mim estes agentes da contraespionagem sob a cúpula branca do ves-
tíbulo circular superior do metro Bielorrússkaia radial, inundado de luz
elétrica, e de baixo para cima sobem ao nosso encontro duas escadas ro-
lantes paralelas carregadas de moscovitas. Parece que olham todos para
mim! Por uma fita contínua, sem fim, arrastam-se de lá de baixo, das
profundezas da ignorância, desembocam na cúpula cintilante, na minha
39
Aleksandr Soljenítsin
***
A minha detenção foi por certo do género mais fácil que se possa ima-
ginar. Não me arrancou aos braços da família, não me separou da vida do-
méstica que nos é tão grata. Num insípido mês de fevereiro europeu, ela
arrancou-me da nossa faixa de terra que avançava para o mar Báltico, onde
não era muito claro se nós cercávamos os alemães ou se eles nos cercavam a
nós – e privou-me apenas da divisão a que estava habituado e do espetáculo
dos três últimos meses da guerra.
O comandante da brigada chamou-me ao posto de comando, pediu-me
a pistola, não sei porquê, eu entreguei-lha, sem suspeitar de qualquer astú-
cia – e de repente, do meio do grupo de oficiais que se mantinham imóveis
40
O Arquipélago Gulag
41
Aleksandr Soljenítsin
E Zakhar Gueorguievitch Travkin bem podia ter ficado por aqui. Mas
não! Continuando a purificar-se e a aprumar-se perante si mesmo, levan-
tou-se da mesa a que estava sentado (nunca se levantava para me rece-
ber nessa vida anterior!), estendeu-me a mão através da linha pestilenta
(nunca me estendera a mão quando eu era livre!) e, durante o aperto de
mãos, perante o mudo pavor da comitiva, com calor no seu rosto sempre
severo, disse corajosamente, com toda a clareza:
– Desejo-lhe boa sorte, capitão!
Eu não só já não era capitão, como era um inimigo do povo desmasca-
rado (porque no nosso país qualquer detido, desde o momento da deten-
ção, está completamente desmascarado). Ele desejava então sorte a um
inimigo?…
Os vidros estremeciam. As explosões alemãs dilaceravam a terra a
duzentos metros de distância, lembrando que aquilo não poderia aconte-
cer além, mais no interior da nossa terra, sob a redoma de uma existência
imobilizada, mas apenas sob o bafo de uma morte próxima e igual para
todos3.
***
Este livro não será de memórias da minha própria vida. Por isso não
contarei os pormenores cómicos da minha extravagante detenção. Nessa
noite, os da contraespionagem desesperaram por completo de decifrar o
mapa (nunca tinham conseguido fazê-lo) e com amabilidades entregaram-
-mo a mim e pediram-me que dissesse ao motorista como chegar à con-
traespionagem do exército. Eu próprio nos conduzi, a mim e a eles, àquela
prisão, e em sinal de gratidão fui logo metido não numa cela, mas num ca-
labouço. Era impossível não falar dessa pequena arrecadação de uma casa
camponesa alemã, que servia de prisão temporária.
Tinha o comprimento do corpo de um homem, e de largura podiam
deitar-se três homens à justa, um quarto ficava muito apertado. Eu era
precisamente esse quarto, empurrado já depois da meia-noite. Os três que
estavam deitados olharam-me com os olhos estremunhados de sono à luz
da lamparina de querosene e moveram-se, dando-me espaço para cair de
lado e introduzir-me pouco a pouco pela força da gravidade. E assim, no
chão juncado de palha triturada, ficámos oito botas viradas para a porta e
3
coisa surpreendente: em todo o caso é possível ser um homem! – Travkin não
E
sofreu nada. Recentemente encontrámo-nos e pela primeira vez travámos co-
nhecimento. Ele é general reformado e inspetor da união de caçadores.
42
O Arquipélago Gulag
43
Aleksandr Soljenítsin
44
O Arquipélago Gulag
45