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Faculdades Promove – Curso de Direito 1º semestre/2019

Disciplina: Filosofia/Filosofia do Direito E-mail: marcoablellis.gmail.com


Prof. Me. Doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada Marco Antônio Barbosa de Lellis

O MUNDO DO MITO
A Origem Histórica e o Significado da Palavra Mitologia.

Texto produzido por Marco Antônio Barbosa de Lellis1


A ideia do Destino implacável: é contraditório que aquilo que aconteceu ontem não tenha
acontecido, que aquilo que acontece hoje não aconteça; é tão contraditório que aquilo que
acontecer possa não chegar a acontecer2.

A HÉLADE

https://www.google.com.br/search?q=mapa+grécia+antiga

A partir do ano de 1600 a.C., a Ἑλλάδα ou Ἑλλάς3 [Hélade ou Hélas: Grécia antiga] passou a ser
ocupada por povos que o poeta Homero [séc. IX a.C.], mais tarde, denominou de Aqueus, provenientes de
Acaia, ao Norte, em que foram erguidas fortificações em Micenas, Tirinto e Pilos [respectivamente: regiões da
Grécia propriamente dita: Tessália, Peloponeso, Ática e Beócia; região litorânea da Ásia Menor, atual Turquia, e
Creta]. Com o poder Aristocrático [Ἀριστοκρατία – Aristokratía: “governo dos melhores, dos nobres”], eles se
mantinham politicamente e mantiveram, concomitantemente, uma ordem sócio-econômica, religiosa e cultural:
a sociedade Micênica.

1
O presente texto fora revisado em Novembro de 2017 pelo autor. Sua primeira impressão saíra na revista Pense, nº 1,
Belo Horizonte-MG, em Agosto de 2013.
2
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Tradução [de] Bruno da Ponte e João Lopes Alves. São Paulo: Abril Cultural, 1973,
p.155. [Col. Os pensadores]. Noção de pré-determinismo: não somos livres em sermos livres, pois quanto mais se tenta
desviar da submissão do destino [τύχη – tíkhe: sorte, fortuna], tanto menos isso acontece. Se havia, a priori, um princípio
que já pré-determinara a liberdade humana; consequentemente, o homem não poderia ser, efetivamente, livre.
3
Todos os vocábulos gregos foram pesquisados no seguinte dicionário: ISIDRO PEREIRA, S. J. Dicionário grego-
português e português-grego. 4ª ed. Porto: Livraria do Apostolado da Imprensa, 1969.
A nobreza é a fonte do processo espiritual pelo qual nasce e se desenvolve a formação de uma
nação. A história da formação grega […] começa no mundo aristocrático da Grécia primitiva
como o nascimento de um ideal definido de homem superior, ao qual aspira o escol da raça 4.

Isso ocorreu devido à fundação de uma vasta e enorme comunidade – Micenas saíra como a grande
vencedora nas lutas entre essas comunidades que guerreavam entre si. Entretanto, por volta do ano de 1300 a.C.,
vários outros povos entraram em conflito e quase toda a civilização micênica fora destruída: a cultura e a
política se retraíram, o comércio e a escrita desapareceram, ou seja, vivia-se no isolamento das aldeias como
formas de vida tribais. Por isso, esse período, que vai até o início do século VIII a.C., é conhecido como Idade
das trevas5. Um desses povos guerreadores, os Dórios, vindos também do Norte da Hélade, séculos depois das
guerras troianas, se estabeleceram naquelas regiões e desenvolveram, posteriormente, às circunvizinhanças do
mar Egeu, uma economia agrícola, incutindo o nascimento de um novo éthos6, isto é, de um novo costume,
hábito, tradição.
Esse nascimento deu origem às Πóλεις [Póleis: Cidades-Estado independentes, muito frequentemente
rivais e cada qual com seus respectivos regimes políticos], às atividades comerciais e à possibilidade, ratifico, à
possibilidade de um alfabeto no século VIII. Portanto, a sociedade se torna mais completa. Ela deixa de ser um
aglomerado de tribos segregadas para se estabelecer como unidade política e religiosa: a Civilização Helênica.
As Póleis passam a ser uma unificação orgânica da pluralidade dos povos. Essa unidade resultou da união
dessas diversas culturas, trazidas por eles, e miscigenadas com as outras antigas. No entanto, as Cidades-Estados
se tornam, cada vez mais, complexas e seus centros de atenções passam para as ágoras [ἀγορά: praça pública,
lugar de reunião, discurso perante a assembleia]. É nesse espaço, na ekklesía [ἐκκλησία: assembleia popular,
igreja] que acontece as discussões sobre os rumos das vidas política e social, vale dizer, das transações
comerciais e da vida boa e feliz na cidade.

Muito antes que as condições geográficas contribuam para que as cidades-Estados venham a se
desenvolver como unidades autônomas, já são motivos para que, desde suas raízes micênicas, a
cultura grega se constitua voltada para o mar: via de comunicação e de comércio com outros
povos, de intercâmbio e de confronto com outras civilizações e a construções imaginárias7.

É aí, entre os séculos IX e VIII a.C., que os homens que habitavam esse espaço territorial ocidental
sentiram uma grande necessidade em tentar explicar os fatos naturais e sobrenaturais que aconteciam no
universo transcendente e, principalmente, no mundo em que eles viviam para se tranquilizarem social e
religiosamente. Porém, essas explicações eram motivadas pela argumentação oral espontânea, fabulosa e não
tinham quaisquer intuitos teórico-racionais. Por essa razão, foram denominadas explicações mitológicas, isto é,
imaginárias. Essas tinham um

4
JAEGER, Werner. Paideia: formação do homem grego. Tradução [de] Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes,
1995, p. 24s.
5
S/A. História da filosofia. São Paulo: Nova cultural, 1999, p. 15s [Col. Os pensadores].
6
Sabe-se que os Dórios [e os Áticos] instituíram, depois, “uma sociedade aristocrática e consolidaram o que seria a
civilização grega ou helênica propriamente dita” [Cf. História da filosofia. São Paulo: Nova cultural, 1999, p. 19 (Col. Os
pensadores)].
7
Org. CUNHA, Elil S.; FLORIDO, Janice. Grandes filósofos: bibliografia e obras. São Paulo: Nova cultural, 2005, p. 7.
[Col. Os pensadores].
modo ingênuo, fantasioso, anterior a toda a reflexão e não-crítico de estabelecer algumas
verdades que não só explicavam parte dos fenômenos naturais ou mesmo a construção cultural,
mas que davam, também, as formas da ação humana 8.

Assim sendo, o cume da mitologia chega à chamada Grécia homérica, que corresponde aos séculos IX e
VIII a.C. Os homens, com medo e à mercê de todos os acontecimentos assustadores da natureza, criaram os
mitos para se apaziguarem e estabelecerem algum sentido às suas vidas. O que é assustador causa impressão de
estranheza e as manifestações dos fenômenos naturais e sobrenaturais causavam, naqueles homens, estranheza,
exatamente por eles serem um mysterium. Nessa época, os principais representantes foram Homero9e Hesíodo,
esse do século VIII a.C. e aquele do IX a.C.
Não obstante haver controvérsias sobre a sua existência, atribui-se a Homero a autoria de dois poemas
épicos: a) Ilíada, que trata dos últimos decênios da guerra de Troia – especula-se que ocorreu entre 1260 a 1250
a.C. [Troia, em grego, é ͗Ἴλιον: Ílion] e b) Odisseia, que relata o retorno de Odisseu à sua terra natal Ítaca, após
a guerra de Troia [͗Οδυσσεύς: Odisseus é o nome grego de Ulisses], isto é, não obstante considerar que a Ilíada e
a Odisseia foram obras de vários poetas, atribui-se, unicamente, à Homero esses poemas épicos; pois, foram e
continuam sendo fontes históricas da nobreza grega primitiva.
Das duas epopeias, a Ilíada focaliza o poder de expansão de uma etnia: evoca o estabelecimento dos
gregos no litoral da Ásia Menor a partir da guerra de Troia, simbolizando suas forças conquistadoras. Ela se
inicia com posição colérica de Aquiles frente às adversidades com Agamêmnon, o rei de Micenas. Segundo
Jaeger:
A Ilíada começa no instante em que Aquiles, colérico, retira-se da luta, o que põe os Gregos no
maior apuro. Depois de tantos anos de luta estão quase perdendo, por causa dos erros e misérias
humanas, o fruto de seus esforços, no momento em que estavam bem perto de alcançar o seu
objetivo. A retirada do seu herói mais poderoso anima os outros heróis gregos a realizar um
esforço supremo e a mostrar todo o brilho de sua bravura. Os adversários, encorajados pela
ausência de Aquiles, lançam no combate todo o peso da sua força e o campo de batalha chega ao
momento supremo, até que o crescente perigo dos seus move Pátroclo a intervir. A sua morte
pelas mãos de Heitor consegue, enfim, o que não haviam alcançado as súplicas e tentativas de
reconciliação dos Gregos: Aquiles entra de novo na luta para vingar o amigo morto, mata Heitor,
salva os Gregos da ruína, enterra o amigo com lamentos selvagens conforme os antigos usos
bárbaros e vê avançar sobre si o próprio destino. Quando Príamo se arrasta a seus pés pedindo-
lhe o cadáver do filho, enternece-se o impiedoso coração de Pelida com a recordação de seu
velho pai, a quem também o filho, embora ainda vivo, foi roubado 10.

Um dos principais enfoques desta batalha é a descrição de combates particulares que termina com o
triunfo de um heroi famoso sobre seu poderoso adversário, isto é, a ἀριστεία [aristeia]. É esta que pressupõe a
noção de ἀρετή [areté: excelência, virtude, capacidade, mérito, habilidade, qualidades morais próprios da
nobreza], em Homero. É o mais alto ideal do heroísmo guerreiro aliado às condutas cavalheirescas e cortesãs.
Essas virtudes designam as excelências dos nobres, os aristoi, cujas forças morais e espirituais se associam à

8
ARANHA, M. A., MARTINS M. H. Temas de filosofia. São Paulo: Moderna, 1995, p. 62.
9
Diz-se que os poemas de Homero chegaram em Atenas no final do século VI a.C. “Conta Platão [427-347 a.C.] que era
opinião geral no seu tempo ter sido Homero o educador de toda a Grécia”. Ainda: “[…] não deixa de ser evidente que
Homero, e com ele todos os grandes poetas da Grécia, deve ser considerado, não como simples objeto da história formal da
literatura, mas como o primeiro e maior criador e modelador da humanidade grega” [JAEGER, 1995, p. 61s].
10
JAEGER, 1995, p. 74.
honra e ao dever11. O dever é, nos poemas homéricos, uma característica fundamental da nobreza. O sentimento
de dever se torna força educadora da nobreza.

Os Gregos sempre consideraram a destreza e a força incomuns como base indiscutível de


qualquer posição dominante. Senhorio e areté estavam inseparavelmente unidos. A raiz da
palavra é a mesma ἀριστος, superlativo de distinto e escolhido, que no plural era constantemente
empregado para designar a nobreza. […] Só uma vez, nos livros finais, Homero entende por
areté as qualidades morais ou espirituais. Em geral, de acordo com a modalidade de pensamento
dos termos primitivos, designa-se por areté a força e a destreza dos guerreiros ou lutadores e,
acima de tudo, heroísmo, considerado não no nosso sentido de ação moral e separada da força,
mas sim intimamente ligado a ela 12.

A Ilíada celebra a glória da maior aristeia da guerra de Troia, o triunfo de Aquiles sobre o
poderoso Heitor, em que a tragédia da grandeza heroica votada à morte se mistura com a
submissão do homem ao destino e às necessidades da sua própria ação13.

Os heróis da Ilíada que se revelam no seu gosto pela guerra e na sua aspiração à honra como
autênticos representantes da sua classe, são, todavia, quanto ao resto de sua conduta, acima de
tudo grandes senhores, com todas as suas excelências, mas também com todas as suas
imprescindíveis debilidades14.

A segunda epopeia narra o retorno de Odisseu para Ítaca. É a aventura do navegador que se afasta para
longe de sua terra natal [caminha em direção à Troia] deixando esposa e filho recém-nascido: “A figura do
aventureiro astuto e rico em recursos é criação do tempo das viagens marítimas dos Jônios” 15. A honra em
Odisseu se concretiza na sua destreza e no engenho de sua inteligência que, “na luta pela vida e na volta ao lar,
sai sempre triunfante em face dos inimigos mais poderosos e dos perigos que o espreitam”16.

A tempestade, a escala forçada, os piratas, o retêm longe da pátria durante tanto tempo que o
julgam ‘morto’. No lar, a esposa porta-se com dignidade; mas, por um lado, sua formosura, e,
por outro lado, os bens familiares atraem a cobiça dos pretendentes; o filho é ainda demasiado
jovem para afastá-los. O marido regressa, quando já se tinha desvanecido a esperança de sua
volta, e reaparece em casa como vagabundo desconhecido. Pode-se imaginar, e a vida o tem
dado, mais de um desfecho para esse tema, tão antigo e tão frequentemente retomado. O
desfecho apresentado pela Odisseia será cruel: o desconhecido, insultado em sua casa pelos que
requestam a esposa, revela sua identidade e chacina os rivais17.

A faculdade de adaptação a solos diferente e o espírito de aventura fez com que os gregos se tornassem
os dominadores do mar através da arte da navegação: os talassocráticos.
A Odisseia é, ainda, um relato magnífico da submissão dos homens frente aos poderes divinos. A
intervenção benéfica ou maléfica dos deuses nas ações e condutas humanas, por sinal muito frequente, origina a
ordem e a desordem naturais, isto é, as divindades atuam na vida cotidiana dos mortais sob formas muito
diferentes e multifacetadas. A presença desses poderes divinos se desenrola tanto na luta entre gregos e troianos

11
“Os aristoi – os possuidores da areté – são uma minoria que se eleva acima da multidão de homens comuns; se são
dotados de virtudes legadas pelos seus ancestrais, por outro lado precisam dar testemunho de sua excelência, manifestando
as mesmas qualidades – valentia, força, habilidade – que caracterizam seus antepassados” [Org. CUNHA; FLORIDO,
2005, p. 11].
12
JAEGER, 1995, p. 26s.
13
JAEGER, 1995, p. 75.
14
JAEGER, 1995, p. 41.
15
JAEGER, 1995, p. 45.
16
JAEGER, 1995, p. 45.
17
HOMERO. Odisseia. Tradução [de] Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nova cultural, 1993, p. 7.
quanto nas aventuras marítimas de Odisseu. Após este ser libertado do palácio da deusa Calipso, ele faz uma
suplica à deusa Atena.

Escutai-me, Senhor, quem quer que seja! Fugido das ondas e das ameaças de Posídon, a ti venho,
a quem tantas vezes dirigi minhas preces. É merecedor de ser respeitado, até pelos deuses
imortais, o náufrago errante que se aproxima como hoje eu venho suplicar ao teu coração e
abraçar teus joelhos, após tanto sofrimento. Senhor, tem compaixão de mim, que a ti recorro,
suplicante18.

Nas epopeias homéricas, mesmo quando os deuses representam forças da natureza, eles são revestidos
pela forma humana. Esse antropomorfismo apazigua os temores humanos relativos às forças obscuras e
incontroláveis naturais. “Os deuses de Homero são, por assim dizer, uma sociedade imortal de nobres; e a
essência da piedade e o culto grego exprimem-se no fato de honrar a divindade. Ser piedoso que dizer ‘honrar a
divindade’. Honrar os deuses e o homem pela sua areté é próprio do Homem primitivo”19.
Portanto, diz Jaeger acerca das obras homéricas:

O mais antigo dos dois poemas mostra-nos o predomínio absoluto do estado de guerra, tal como
devia ser nos tempos das grandes migrações das tribos gregas. A Ilíada fala-nos de um mundo
situado num tempo em que domina exclusivamente o espírito heroico da areté, e corporifica este
estado ideal em todos os seus heróis. Junta numa unidade ideal indissolúvel a imagem tradicional
dos antigos heróis, transmitida pelas sagas e incorporada aos cantos, e as tradições vivas da
aristocracia do seu tempo, que já conhece a vida organizada da cidade, como provam
principalmente as pinturas de Heitor e dos troianos. O valente é sempre o nobre, o homem de
posição. A luta e a vitória são para ele a distinção mais alta e o conteúdo próprio da vida. […] A
Odisseia, ao contrário, tem poucas ocasiões para descrever o comportamento dos heróis na luta.
Porém, se há alguma coisa definitivamente certa sobre a origem da epopeia, é o fato de os mais
antigos cantos heroicos celebram as lutas e façanhas dos heróis20.

Na Odisseia, destaque-se, concomitantemente às destrezas e aventuras dos heróis, a presença das


personagens femininas na cultura aristocrática. A areté própria da mulher era a formosura, a graça e a
valorização dos méritos espiritual e corporal. Essa representação virtuosa refletirá na geração e criação dos
filhos: jovens e homens ilustres e honrosos nobres.

A mulher, todavia, não surge apenas como objeto da solicitação erótica do homem, como Helena
ou Penélope, mas também na sua posição social e jurídica de dona de casa. As suas virtudes são,
a este respeito, o sentido da modéstia e o desembaraço no governo do lar. Penélope é muito
louvada pela sua moralidade rígida e virtudes caseiras. Mesmo a pura beleza de Helena que
tantas desgraças atraíra já sobre Troia, basta para que os anciãos da cidade se desarme ante a sua
simples presença e atribuam aos deuses todas as culpas. Na Odisseia, Helena, de volta à Esparta
com o primeiro marido, aparece como o protótipo da grande dama, modelo de distinta elegância,
e de soberana forma e representação social 21.

A Hesíodo atribui-se uma literatura grega das mais ricas em teogonia e cosmogonia22, cujos protótipos
paradigmáticos são Teogonia e O trabalho e os dias. Suas obras floresceram logo após Homero e tinham caráter
religioso, didático e moral. A partir da tradição oral, suas obras se basearam na poesia rural gnômica, isto é, se
basearam na narrativa em que a sentença e o juízo moral tinham caráteres pedagógicos. Portanto, as obras de

18
HOMERO, 1993, p. 58.
19
JAEGER, 1995, p. 32.
20
JAEGER, 1995, p. 40.
21
JAEGER, 1995, p. 46.
22
Κoσμογονία: gênese, nascimento do universo em sua totalidade.
Hesíodo diferem da de Homero no âmbito social. Ela se encontra mais arraigada a terra; visto que “ela apresenta
a mais viva descrição da vida campestre da metrópole rega no final do século VIII”23.
Se para Homero as formações cultural e educacional partiam do cultivo das qualidades nobres, para
Hesíodo, a fonte da educação cultural provinha do valor do trabalho. A “luta silenciosa e tenaz dos
trabalhadores com a terra dura e com os elementos tem o seu heroísmo e exige disciplina, qualidades de valor
eterno para a formação do homem”24. Por essa razão, a atividade agrícola e o pastoreio foram as ocupações mais
importantes e dignas de divindade para o poeta beócio. Quem, por meio do trabalho, proviesse sua modesta
subsistência, recebia bênçãos maiores que aqueles que cobiçassem injustamente os bens alheios. A pacífica
emulação do trabalho sobreporia o domínio da inveja e das disputas terrenas.
N’Os trabalhos e os dias defende a necessidade da labuta árdua como condição humana, isto é, como
mencionado, a luta silenciosa dos trabalhadores camponeses, na Beócia, com a terra dura. Ao morrer, o pai
deixou a Hesíodo e a seu irmão Perses as terras que, devido ao clima rude da região, continuaram com esforço a
cultivar. Na partilha dos bens, Hesíodo considerou-se lesado pelo irmão, que teria comprado os juízes venais.25
É essa polêmica com Perses que serve de premissa para Os trabalhos e os dias.
Será com a narrativa mítica e a elaboração poética sobre Prometeu e Pandora que Hesíodo encontrará
uma solução para “todos os males da humanidade”.

Os preferidos são os mitos que exprimem a concepção da vida realista e pessimista daquela
classe ou as causas das misérias e necessidades da vida social que os oprimem: o mito de
Prometeu, no qual Hesíodo encontra a solução para o problema do cansaço e dos sofrimentos da
vida humana; a narração das cinco idades do mundo, que explica a enorme distância entre a
própria existência e o mundo resplandecente de Homero, e reflete a eterna nostalgia do Homem
por melhores tempos; […]26.

Conforme o mito de Prometeu e, a partir da disputa jurídica contra o irmão, Hesíodo introduz as ideias
de direito e dever.
A propósito da luta pelos próprios direitos, contra as usurpações de seu irmão e a venalidade dos
nobres, expande-se no mais pessoal dos seus poemas, os Erga, uma fé apaixonada no direito. A
grande novidade dessa obra está em o poeta falar na primeira pessoa. Abandona a tradicional
objetividade da epopeia e se torna porta-voz de uma doutrina que maldiz a injustiça e bendiz o
direito. É o enlace imediato do poema com a disputa jurídica sustentada contra o seu irmão
Perses, que justifica esta ousada inovação. Fala com Perses e dirige a ele as admoestações.
Procura convencê-lo de mil maneiras de que Zeus ampara a justiça, ainda que os juízes da Terra
a espezinham, e de que os bens mal adquiridos nunca prosperam. Dirige-se, então, aos juízes, aos
senhores poderosos, na história do falcão e do rouxinol e em outras passagens. Integra-nos de
modo tão vivo na situação do processo que, e precisamente nos momentos que antecedem a
decisão dos juízes, que não seria difícil cometermos o erro de pensar que Hesíodo escreveu
precisamente naquele momento27.

Hesíodo exorta o irmão, portanto, a não enveredar por esses caminhos escusos e ilícitos e a reconciliar-
se com ele sem qualquer processo judicial; visto que a herança paterna já fora aquinhoada e que ela ficara com
mais do que lhe pertencia, por suborno aos juízes. Para esse esclarecimento, a fábula acerca do falcão e do
rouxinol é mencionada.

23
JAEGER, 1995, p. 85.
24
JAEGER, 1995, p. 85.
25
Org. CUNHA; FLORIDO, 2005, p. 14.
26
JAEGER, 1995, p. 89.
27
JAEGER, 1995, p. 91.
A Teogonia narra a criação, a partir do Caos, a origem e a formação do Universo em sua totalidade, dos
deuses e das forças naturais. Eles surgem ou por segregação natural ou pela intervenção de ͗Έρως [Eros: deus do
amor, da união, da afinidade universal].

A Teogonia de Hesíodo narra o nascimento de todos os deuses; e dado que alguns deuses
coincidem com partes do universo e com os fenômenos do cosmo, além de teogonia ela se torna
também cosmogonia, ou seja, a explicação fantástica da gênese do universo e dos fenômenos
cósmicos28.

Com efeito, a narrativa teogônica expressa uma significação simbólica e liga-se à cosmogonia, já que
faz referência a deuses encarnadores das forças da natureza e/ou dos aspectos da condição humana.
Contudo, o que foram os Mitos?
Mitos [Μὔθος: Mythos], em grego, significa palavra, o que pode ser narrado, o dito. Os mitos foram,
então, tentativas em explicar os principais fatos da vida, da realidade humana, por meio de conteúdos
sobrenaturais e imaginosos. Eles eram narrados de forma alegórica, fantástica, poética pela tradição popular
grega e, transmitido, oralmente, pelos cantores ambulantes, chamados aedos e rapsodos, que os recitavam de
cor nas ágoras. No entanto, era difícil identificar a autoria dos mitos porque a escrita havia se perdido. Para as
autoras de Filosofando, o mito é uma intuição compreensiva da realidade. É “uma forma espontânea de o
homem se situar no mundo. As raízes do mito não se acham nas explicações exclusivamente racionais, mas na
realidade vivida, portanto, pré-reflexiva, das emoções e da afetividade”29.

Conclui-se, então, que o Mito:


a) é desprovido de problematização e se funda no desejo de narrar e retratar os mundos, cósmico e
humano, através da imaginação, da magia e da linguagem simbólica.
b) é uma verdade que não obedece à lógica, à teoria ou à ciência.
c) nasce para apaziguar o homem e afugentar seus medos e inseguranças que permeavam suas vidas, ou
seja, o mito acomoda o homem frente a um mundo misterioso e assustador.
d) é a primeira fala sobre o mundo, uma primeira atribuição de sentido ao mundo.
e) […] serve de instância normativa para a qual apela o orador e se relaciona com a atividade
educacional30.
A estrutura de toda a sociedade assenta nas leis e normas escritas e não escritas que a unem e
unem seus membros. Toda educação é assim o resultado da consciência viva de uma norma que
rege uma comunidade humana, quer se trate de família, de uma classe ou de uma profissão, quer
se trate de um agregado mais vasto, como um grupo étnico ou um Estado 31.

f) é dogmático, pois é uma verdade que não precisa ser provada nem contestada, isto é, a adesão do mito
é feita pela fé e crença. No entanto, isso não quer dizer que a Mitologia deva ser equiparada à Religião. As
verdades do mito se baseiam em verdades consensuais de uma comunidade. As verdades religiosas se baseiam
numa revelação divina proferida por um Ser Supremo absoluto, criador de tudo. Segundo P. Commelin, a

28
REALE, Giovanni.História da filosofia antiga, vol. 1. Tradução [de] Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1993, p. 41.
29
Cf. REALE, 1993, p. 31-41.
30
JAEGER, 1995, p. 68.
31
JAEGER, 1995, p. 4.
mitologia é, evidentemente, uma série de mentiras; porém, essas mentiras foram, durante longos séculos, motivo
de crença. Elas tiveram, no espírito dos gregos e dos latinos, o valor de dogmas e realidades32.

Consequentemente, o que significa Mitologia?


Mitologia é o conjunto de mitos de um povo, de uma comunidade específica. É a história fantasiosa,
metafórica dos deuses, semideuses, dos homens, da sociedade e suas relações mútuas, no intuito de narrar a
origem e a formação do universo e dos homens. Portanto, mitologia é a reunião dos mitos próprios de uma
respectiva etnia ou de uma civilização. Refere-se, segundo o professor de Filosofia Antiga, Marcelo P. Marques,
“ao conjunto de mitos de um grupo social específico, práticas narrativas, enunciados míticos, relatos,
transmitidos ao longo de uma tradução”33.

O homem mais divino é aquele que desenvolve de modo mais vigoroso as suas forças humanas;
e o cumprimento do seu dever religioso consiste essencialmente nisso: que o homem faça, em
honra da divindade, o que é conforme com a sua natureza34.

Não obstante, alguns pensadores gregos, insatisfeitos com as explicações produzidas pelos mitos,
perceberam que seus cultos, sacrifícios, orações e rituais muitas vezes não conduziam aos resultados esperados.
“[…] O importante mesmo é que havia um grande desejo em manipular, de controlar, de obter um poder antes
exclusivamente divino”.35 Consequentemente, originar-se-ia uma nova forma de pensar, mais sistemática,
especulativa e racional: a Φιλοσοφία [Filosofia]: mãe de todas as ciências e ré de alguma de suas filhas.

32
COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Tradução [de] Eduardo Brandão. São Paulo: Martins fontes, 2000, p. VII.
33
Org. ANDRADE, Mônica V; COSCARELLI, Tania C. Mito. Belo Horizonte: UFMG – Núcleo de filosofia Sônia Viegas,
1994.
34
ZELLER-MONDOLFO apud REALE, Giovanni. História da filosofia antiga, vol. 1. Tradução [de] Marcelo Perine. São
Paulo: Loyola, 1993, p. 22.
35
SANTOS, Eberth.; MOURA, Josana de. Minimanual de pesquisa: filosofia e literatura. Uberlândia: Claranto, 2004, p.
348.

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