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Nelson Rodrigues

DUAS MÃOS
POSTAS
“Eu rezo! Pode deixar que eu rezo! Eu
acredito na força da oração!”
Quem falava assim, e trêmulo de fé, não era
o vizinho do lado, nem o açougueiro da esquina,
nem o português do botequim. Não. Era d. Hélder,
sim, sim, exatamente d. Hélder e não um qualquer.
Eu pedia por alguém e repito: alguém da minha
amizade ou, melhor dizendo, alguém do meu amor.
E que fiz eu? Fiz a opção entre d. Hélder e d.
Marcos Barbosa (o que me fascina neste último é o
sorriso de Manuel Bandeira). Acabei ligando para d.
Hélder Câmara. Contei-lhe tudo, tudo. Disse: —
“Há uma moça assim, assim, que eu amo. Que é
tudo para mim. Essa moça está sofrendo. E eu
queria que o senhor fosse vê-la. Faz isso para mim,
d. Hélder, faz?”.
D. Hélder foi de uma solidariedade
fulminante. Não fez o suspense de uma dúvida.
Nada. Faria isso por mim. E, rápido, prático, pedia
endereço, telefone. Sem vê-lo, eu o imaginava
apanhando lápis, papel. Dei a rua, o número e o
telefone. Ah, faltava o nome. Passei-lhe o nome.
Era em Santa Teresa. Subiria Santa Teresa. Deixei
o telefone, certo de que acabava de falar com um

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santo.
Não é recente a minha fascinação pela
batina. Vem de longe, muito longe. Eu era
garotinho e vi uma menina atravessando a rua para
beijar a mão de um padre. E, depois, outras
meninas beijaram a mão de outros padres. Hoje,
ninguém beija a mão de padre, ninguém.
Eu queria um padre junto à mulher que
amava. Ela sofria. Muito bem: — e era preciso que
a piedade e o amor vestissem batina. A
solidariedade de d. Hélder fez-me um bem
lancinante. Eis o que eu pensava: — “Ainda bem
que procurei d. Hélder e não d. Marcos”. Por certo,
d. Marcos teria também uma estrutura muito doce.
Mas d. Hélder era mais promovido. Sim, tinha mais
nome, mais imprensa (pode parecer torpe essa
reflexão que, na época, me ocorreu).
D. Hélder cumpriu a palavra: telefonou. No
dia seguinte, falou comigo: — “A moça estava de
saída”. Combinaram que ele telefonaria depois.
(Carlos Heitor Cony contou-me que, na sua
passagem pelo seminário, falou certa vez com d.
Hélder. Abriu-lhe a alma: — “Meu pecado é o
orgulho. Sou muito orgulhoso etc. etc.”. D. Hélder

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foi exemplar: — “Meu filho, nunca seja orgulhoso
de dentro para fora, mas de fora para dentro”.
Cony parou, perplexo. O outro, mais didático,
completou: — “Para fora, seja modesto, seja
humilde. O orgulho interior Deus perdoa”.)
Liguei para a mulher amada. Ela estava feliz,
feliz, com o telefonema.
Disse: — “Foi tão simpático”. Parecia menos
deprimida, menos crispada. E eu: — “Meu anjo,
escuta. Tudo vai sair bem. Você vai ver: d. Hélder é
formidável. E inteligente, muito inteligente”. A
inteligência era o de menos. Sempre tive a
obsessão da bondade. Mas eu tinha medo, eis a
verdade.
Quem ama conhece todo o inferno da mania
de perseguição. Retifico: a mania de perseguição
não é mania de perseguição. De fato, qualquer
amor há de sofrer uma perseguição concreta e
assassina. Somos impotentes do sentimento e não
perdoamos o amor alheio. Eu amava e comecei a
sentir, por toda a parte, pressões contra mim e o
ser amado. Soube de alguém que fizera este
comentário: — “Se essa moça gosta do Nelson, é
uma débil mental!”.

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E d. Hélder não foi. Desesperado, eu dizia: —
“Mas ele prometeu. Não telefonou para você? Não
disse que ia? Vou falar com ele”. Liguei várias
vezes. Começou a não estar. Cerquei-o em casa. D.
Hélder suspirava: — “Não posso, não devo”.
Aterrado, fiz-lhe todo um furioso apelo: — “D.
Hélder, não se trata de opinar. O senhor não opina.
Não precisa ser nem contra, nem a favor. O que eu
quero do senhor é um ato de compaixão. Me
entende? A moça está sofrendo. O senhor diz uma
palavra amiga e só. D. Hélder!”.
Foi aí que ele falou em “rezar” e repetiu: —
“Rezo! Rezo!”. Por um momento, eu não soube o
que dizer. Ele pôs-se a demonstrar o valor
formidável (e prático) da oração. Foi patético no
telefone: — “Acredito na oração! Acredito! Tenho
rezado pela moça!”. Reagi à sua veemência com a
minha veemência.
O que é que eu disse? Disse que a oração é
linda. Duas mãos postas são sempre tocantes,
ainda que se reze pelo vampiro de Dusseldorf. Mas
por que não (e também) a presença, a cálida
presença física? Por que não o gesto, o olhar, o
sorriso? E por que não a voz, a inflexão? Por que

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não a lágrima? (o ausente não chora). E falei muito
e deixei de dizer tanta coisa. Poderia contar que, na
rua Alegre, quis ser coroinha. Ainda hoje, quando
vejo a torre de uma igreja, sinto em mim todo um
frêmito de batinas, de freiras, de círios e de santos.
Aos oito anos, eu próprio queria ser santo;
desejei ser crucificado e imaginava alguém
enxugando, na minha fronte, o suor do martírio.
Mas calei-me. Senti em d. Hélder o tédio da nossa
discussão. Direi mesmo a palavra cruel e
inapelável: ali, eu era o “chato”. (Desesperado, fui
bater a d. Marcos Barbosa. O nosso primeiro
encontro foi na Rádio Jornal do Brasil. E que bem
me fez o seu sorriso de Manuel Bandeira. (Era mais
gordo do que eu pensava.) Contei-lhe tudo. Repeti
que não se tratava de opinar; ninguém precisava
ser contra ou a favor. O que eu queria era um
mínimo de bondade, apenas isso, um mínimo de
compaixão. Ele me ouviu, tenso; e não senti, na
sua atitude, nenhuma fuga. Quando acabei, disse
que ia; e foi. Aí é que está: foi. Subiu Santa
Teresa; desceu do bonde; bateu na porta. E riu
para a moça, com os dentes de Manuel Bandeira.)
Passou.

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E hoje vejo pelos jornais que d. Hélder
mudou muito. Não é o mesmo, eis a verdade, não é
o mesmo. Aí estão os seus pronunciamentos; faz
viagens; anda de um lado para outro. Foi a Nova
York, que é um pouco mais longe do que Santa
Teresa. E, lá, promovido como O Arcebispo
Vermelho, fez discursos. Por que não ficou aqui
rezando? E outra coisa: — há fome no Nordeste?
Nem tudo está perdido, porque temos aí a fé de d.
Hélder. Pena é que, nos seus manifestos, ele não
faça uma única e escassa referência ao
sobrenatural. Sim, nunca prometeu orar pelas
populações famintas. E eu estou imaginando se, um
dia, Jesus baixasse à Terra. Vejo Cristo caminhando
pela rua do Ouvidor. De passagem, põe uma moeda
no pires de um ceguinho. Finalmente na esquina da
avenida, Jesus vê d. Hélder. Corre para ele;
estende-lhe a mão. D. Hélder responde: — “Não
tenho trocado”. E passa adiante.

[O GLOBO, 16. 12. 1967]

APEDEUTEKA GUINEFORT 2014

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