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48 FRANCISQUINI, J. d’A. et al.

Revisão DOI: 10.14295/2238-6416.v72i1.541

REAÇÃO DE MAILLARD: UMA REVISÃO

Maillard Reaction: review

Júlia d’Almeida Francisquini1, Evandro Martins1, Paulo Henrique Fonseca Silva2,


Pierre Schuck3, Ítalo Tuler Perrone1*, Antônio Fernandes Carvalho1

RESUMO

A reação de Maillard é um importante tema de estudo em ciência e tecnologia


de alimentos e diferentes áreas do conhecimento estão integradas como química,
engenharia de alimentos, nutrição e tecnologia de alimentos. O objetivo deste artigo
é apresentar os conceitos envolvidos na reação de Maillard levando em conta as
etapas da reação, os principais produtos e algumas consequências tecnológicas para
os produtos lácteos.
Palavras-chave: glicosilamina; produtos de Amadori; 5-hidroximetilfurfural;
glicação.

ABSTRACT

Maillard reaction is an important subject of study in food science and


technology and different areas of knowledge are involved such as chemistry, food
engineering, nutrition and food technology. The objective of this paper is to present
the basic concepts of the Maillard reaction, such as the reaction stages, the main
compounds producced and some technological consequences for dairy products.
Keywords: glucosamine, products of Amadori, 5-hydroxymethylfurfural,
glycation.

1 Universidade Federal de Viçosa (UFV), Av. Peter Henry Rolfs, s/n, Campus Universitário, 36570-900,
Viçosa, MG, Brasil. Email: italotulerperrone@gmail.com
2 Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG, Brasil.
3 UMR STLO, INRA, Agrocampus-Ouest, França.
* Autor para correspondência.
Recebido / Received: 16/11/2016
Aprovado / Approved: 01/06/2017

Rev. Inst. Laticínios Cândido Tostes, Juiz de Fora, v. 72, n. 1, p. 48-57, jan/mar, 2017
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INTRODUÇÃO reação é subdividida em três estágios: estágio


inicial, estágio intermediário e estágio final
Existem diferentes tipos de escureci­ (BASTOS et al., 2011; BRIÃO et al., 2011;
mento dos alimentos os quais ocorrem roti­ FENNEMA, 2010; MEHTA; DEETH, 2016;
neiramente tanto nas residências quanto na RODRIGUEZ, et al., 2016).
indústria. O escurecimento enzimático corres­ O estágio inicial consiste na conden­
ponde àquele que resulta em descoloração sação do grupo carbonila do açúcar redutor
oriunda de reações catalisadas por uma enzi­ com o grupamento amino livre de aminoá­
ma conhecida por polifenol oxidase (PPO). cidos, peptídeos ou proteínas, o que ocorre
Tal enzima age principalmente sobre frutas através do ataque nucleofílico do par de elé­
e vegetais gerando consequências indesejá­ trons do nitrogênio do grupo amino, levando
veis como perdas econômicas, diminuição ao início da reação. Como consequência
do valor nutritivo, alterações de sabor e apa­ desta condensação há formação da base de
rência do alimento ou desejáveis como cor, Schiff instável que libera água e forma uma
sabor e aroma no caso de alimentos como glicosilamina. Assim, esta base de Schiff
chá, café, cacau e ameixa seca (FENNEMA, sofre rearranjos sequenciais produzindo uma
2010). Há também o escurecimento não-en­ ami­nocetose razoavelmente estável conheci­
zimático, mais lento do que o escurecimento da como produto de Amadori (açúcar aldose)
enzimático por não ter a enzima catalisadora ou produto de Heyns (açúcar cetose). Estes
da reação, sendo representado pelas reações produtos, desenvolvidos no estágio inicial,
de caramelização, Maillard e de oxidação são estáveis e não possuem cor, fluorescên-
do ácido ascórbico (vitamina C). Cada ali­ cia ou absorção na região ultravioleta resul­
mento, de acordo com suas características, tan­do em uma enorme variedade de produ­tos
vai apresentar um escurecimento específico, em distintas proporções (BASTOS et al.,
já que a velocidade da reação é dependente 2011; BRIÃO et al., 2011; FENNEMA, 2010;
da natureza dos componentes reativos dos MEHTA e DEETH, 2016).
ali­mentos (BRIÃO et al., 2011). Com o prolongamento do aquecimen­to
Dentre as reações de escurecimento não- ou armazenamento inicia-se a segunda fase.
enzimático destaca-se a reação de Maillard Os produtos de Amadori ou produtos de
(RM) que foi descoberta em 1912 por Louis- Heyns são fragmentados e originam uma sé­
Camille Maillard durante a tentativa da sín­ rie de reações como desidratação, enolização
tese de peptídeo em condições fisiológicas. e retroaldolização. Nesta etapa intermediá­
É objeto de grande interesse na atualidade, ria, surgem os compostos dicarbonílicos,
estando relacionado com aspectos químicos, redutonas, derivados do furfural e produtos
sensoriais, nutricionais, toxicológicos e ma­ da degradação de Strecker, podendo ocorrer
ni­festações in vivo (BASTOS et al., 2011; o aparecimento de um derivado furano que
MEHTA; DEETH, 2016). origina uma hexose comumente conhecida
A RM é representada por uma comple­- por 5-hidroximetilfurfural (BASTOS et al.,
xa cascata de reações, que surge principal­ 2011; BRIÃO et al., 2011; FENNEMA, 2010;
mente durante o aquecimento e arma­ze­na­ MEHTA; DEETH, 2016).
mento prolongado de produtos alimentí­cios Os compostos originados na fase in­
resultando em modificações na qualidade dos termediária são fluorescentes e com capaci­
alimentos, favorecendo a formação de com­ dade de absorção da radiação na região ultra­
postos responsáveis pelo aroma, sabor e cor vio­leta. Os mesmos são cíclicos e altamente
dos alimentos tratados termicamente. Esta reativos, se polimerizando junto com resíduos

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de lisina ou arginina em proteínas, resultan­ As diferentes etapas da RM em alimen­


do em compostos estáveis e culminando na tos são representadas na Figura 1.
formação de pigmentos escuros conhecidos A reação de Maillard pode ser afetada
como melanoidinas. Estes pigmentos levam por diversos fatores entre eles a temperatura
à coloração dos alimentos sendo desejáveis ou e o pH. A velocidade desta reação é lenta
indesejáveis e fazendo parte do estágio final a temperaturas mais baixas e praticamente
da RM (BASTOS et al., 2011; BRIÃO et al., duplica a cada aumento de 10 ºC entre 40 ºC
2011; FENNEMA, 2010; LIU et al., 2014). e 70 ºC. Em soro em pó o valor de Q10 varia
O controle da formação de produtos entre 1,77 e 4,14, enquanto que a magnitu­
de Amadori é o ponto chave para limitar a de da energia de ativação encontra-se entre
intensidade da RM em lácteos. De acordo com 15,9 e 28,4 kcal/mol (SITHOLE et al., 2005;
Troise et al. (2016), o emprego da frutosa­ ARENA et al., 2017; RODRIGUEZ, et al.,
mina oxidase (Faox) em leites UHT baixa lac­ 2016).
tose (< 0,1% de lactose) reduziu a velocidade O pH também exerce efeito sobre a
da RM, assim como, a adição de flavonói­des intensidade da reação, assim a velocidade
(epicatequinas – EC eepicatequinas gallate – má­xima ocorre na faixa alcalina entre pH 9 e
ECG) foi efetiva no controle da RM durante 10 (BASTOS et al., 2011; FENNEMA, 2010;
o processamento e estocagem de leite UHT RODRIGUEZ et al., 2016).
(SCHAMBERGER; LABUZA, 2007). O tipo de amina influencia diretamente

Figura 1 – Representação das principais etapas da reação de Maillard em alimentos.


Fonte: adaptado de Arena et al. (2017); McSweeney; Fox (2009).

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na facilidade de desenvolvimento da RM. Os derados interferentes nesta reação (BASTOS


aminoácidos de alta reatividade represen­ et al., 2011; FENNEMA, 2010).
tados pela lisina, glicina, triptofano, tirosina A extensão da reação de Maillard pode
facilitam a ocorrência da reação quando com­ ser monitorada pelo surgimento de compos­tos
parados com os de reatividade média como os quais permitem avaliar a intensidade do
prolina, leucina, isoleucina, hidroxiprolina, processamento térmico aplicado bem como
me­tionina e com os de fraca reatividade como as prováveis alterações nutricionais relacio­-
histidina, treonina, ácido aspártico, ácido nadas a ele. Entre estes compostos estão: a fu­
glu­tâmico e cisteína. A lisina, por apresentar rosina, o hidroximetilfurfural e a carboxime­
o grupo amino épsilon livre, apresenta alta tilisina (LIU et al., 2014; MEHTA; DEETH,
rea­tividade sendo mais susceptível à reação 2016; RAJCHL et al., 2013).
(carbonila-amino) o que pode reduzir o valor
nutricional do alimento em que se encontra REFERENCIAL TEÓRICO
(BASTOS et al., 2011; FENNEMA, 2010;
RODRIGUEZ et al., 2016). Produtos da reação de Maillard (PRM)
O açúcar redutor é essencial para que a
reação de Maillard aconteça, as pentoses são Os PRM são consumidos diariamente
mais reativas que as hexoses que são mais pela população, por meio da ingestão de ali­
reativas que os dissacarídeos. Este tipo de mentos como leite, produtos de panificação,
es­curecimento sucede com maior ênfase nos cereais infantis e matinais, caramelo, mel,
valores intermediários de atividade de água café, cerveja, chocolate, carnes, vegetais de­
(0,5 e 0,8). Isto porque em baixa ativi­d a- si­dratados e frutas processadas apresentan­do
de de água (@ 0,20) a velocidade tende a zero um importante papel tecnológico e sensorial
por uma diminuição de solvente e em altos para a indústria de alimentos por suas pro­
priedades antioxidantes, flavor, aroma, odor,
va­l o­r es (@ 0,9) os reagentes se encontram
textura e coloração (BASTOS et al., 2011;
muito diluídos o que diminui a veloci­dade
HELLWIG et al., 2015; VHANGANI; WYK,
de escurecimento (BASTOS et al., 2011;
2016).
FENNEMA, 2010; RODRIGUEZ et al.,
Em geral, alimentos ricos em lipídeos
2016). A magnitude da atividade de água em
e que são submetidos a calor seco como gre­
pro­dutos lácteos desidratados é um atributo de
lhados, fritos e assados apresentam os maiores
controle do pro­cesso de desidratação, sendo
teores de produtos da reação de Maillard.
al­cançado por meio da relação de equilí­brio
Métodos mais brandos de aquecimento como
entre a umi­dade relativa do ar de saída do
ensopados e a vapor apresentam meno­res
spray dryer e o produto (SCHUCK et al.,
teores de produtos da RM (BASTOS et al.,
2016; O’CALLAGHAN; HOGAN, 2013).
2011; HELLWIG et al., 2015).
A RM e as consequentes interligações das Sabe-se que os PRM correspondem
pro­teínas acar­retam perda da solubilidade de a um grupo heterogêneo de substâncias de
produ­tos lac­teos desidratados, em especial os baixo peso molecular. O HMF é considerado
con­centrados proteicos do leite, com 80% de um destes produtos e não existe em alimen­tos
proteínas (LE et al., 2013). crus e frescos, porém é produzido rapida­
Além destes fatores, os íons metálicos mente durante o processamento térmico e no
(ferro e cobre), luz, sulfito, condições de ar­ armazenamento prolongado, principalmente
ma­z enagem, tipo, tempo e temperatura do em alimentos ricos em carboidratos e lipídeos
tra­tamento térmico e método de cozimento ou (RAJCHL et al., 2013; ROSATELLA et al.,
concentração dos alimentos podem ser con­si­ 2011).

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O 5-hidroximetilfurfural foi relatado pH. Em condições ácidas, com pH menor


pela primeira vez no final do século 19, a partir ou igual a 7, há formação desta hexose no-
da descrição da sua síntese por aquecimento meada pela União Internacional de Quí-
da inulina com uma solução de ácido oxálico mica Pura e Aplicada (IUPAC) de 5-(hi­
sob pressão (ROSATELLA et al., 2011). droximetil) furan-2-carbaldeído. A
Em temperaturas acima de 100 ºC os mesma também é conhecida por 5-hidro­
produtos de enolização que são formados ximetilfurfural ou 5-hidroxi-2-metilfu­
du­rante o estágio intermediário da reação de raldeido ou hidroximetilfurfural ou 5-hidro­
Maillard, sofrem desidratação com frag­men­ ximetilfuraldeído (KAVOUSI et al., 2015;
tação do açúcar e degradação de aminoácidos. NCBI, 2005). A Figura 2 representa as eta-
A desidratação do açúcar neste caso, pode pas da reação de Maillard na qual forma-se
acontecer de duas formas dependentes do o HMF.

Figura 2 – Representação das etapas da reação de Maillard destacando o HMF


Fonte: adaptado de Arena et al. (2017), Fennema et al. (2010), Mehta; Deeth (2016).

Figura 3 – Fórmulas estruturais do 5-hidroximetilfurfural, NCBI (2005)

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Tabela 1 – Propriedades físicas, químicas e antioxidantes, benefícios prebióticos, função


experimentais do 5-hidroximetilfurfural anti-hipertensiva, atividade bacteriostática,
prevenção de doenças dentárias, redução
Propriedades Característica do HMF do risco de câncer, ação antiinflama­tó­
Peso molecular 126,11g mol-1 ria (ANDRADE, 2014; SAKKAS, 2014).
Como um exemplo de ação favorável da RM
Coloração Sólido cristalino
encontra-se o aumento da capacidade an­
Odor Flores de camomila
tioxidante em isolados de proteínas do soro
Manteiga, caramelo (LIU et al., 2014).
Textura
ou mofado Lechner (1982), citado por Pinto e
Ponto de fusão 31,5 ºC Wolfschoon-Pombo (1984), assegura que a
1,2062 g/mL denominação teor de HMF para aqueles que
Densidade
a 25 ºC utilizam a metodologia de Kenney e Basete
5,28 10-3 mmHg (1959) não é adequada, sendo assim o mesmo
Pressão de vapor
a 25 ºC autor sugere a utilização do termo: “valor de
HMF” ou “índice de ácido tiobarbitúrico”.
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de NCBI (2005).
Neste trabalho o termo utilizado será índice
de HMF.
O HMF é cíclico e pode ser um marcador
da fase intermediária da reação de Maillard Percebe-se que as gerações atuais co­
sendo reativo e dependente da severidade do meçam a ingerir alimentos ricos em produtos
tratamento térmico empregado no alimento da reação de Maillard cada vez mais cedo.
e podendo se polimerizar com grupos As fórmulas infantis e alimentos de fácil
amino originando materiais insolúveis, de prepa­ro como fast food, frituras e industriali­
maior massa molar, que contém nitrogênio za­dos muitas vezes apresentam altas concen­
e coloração que pode variar de marrom t r a ­ç õ e s dos PRM (ANDRADE, 2014;
a preto conhecidas como melanoidinas BASTOS et al., 2011). Os produtos da
(ARENA et al., 2017; FENNEMA, 2010). reação de Maillard presentes nas dietas po­
O índice de HMF pode ser satisfatoriamente dem elevar os níveis séricos dos produtos
correlacionado a atributos tecnológicos e de finais de glicação avançada (AGEs) estando
textura do doce de leite (FRANCISQUINI et diretamente relacionados com aumento do
al. 2016), contudo não se mostra um índice estresse oxidativo, tais como disfunções or­
adequado para descrever a reação de Maillard gânicas e aumento dos níveis de modula­do­
no soro em pó quando submetido a diferentes res inflamatórios (VLASSARA et al., 2008;
condições de armazenamento (LEIVA et al., KELLOW; COUGHLAN, 2015).
2017). Segundo Guerra-Hernández et al. Um dos pontos negativos mais eviden­
(2002), os índices de HMF total, HMF livre, tes do escurecimento dos alimentos e dos
bem como, lactulose e percentual de perda pro­dutos formados a partir dele corresponde
de lisina mostraram-se indicadores aplicáveis à destruição ou redução do valor nutricional
ao acompanhamento do escurecimento não de aminoácidos essenciais como arginina,
enzimático em alimentos infantis (produtos lisina, metionina e triptofano, além de redução
de base láctea destinados a alimentação da digestibilidade do alimento (MEHTA;
infantil, também conhecidos como leites DEETH, 2016). Além disto, o HMF pode
maternizados). estar relacionado com danos ao DNA, forma­
As melanoidinas apresentam efei­tos ção de inibidores do crescimento e ativida­
biológicos positivos por suas atividades des citotóxicas, genotóxicas, mutagênicas e

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carcinogênicas (MONARO, 2012; KAVOUSI Em adição aos produtos finais de glica­


et al., 2015). Na tecnologia de produção do ção avançada que se formam no interior do
doce de leite, a substituição de 10% da saca­ corpo, existem os provenientes dos alimentos.
rose por glicose acarreta em um aumen­to de A formação dos AGEs endógenos sucede em
90% da glicação da lisina, enquanto que a baixas temperaturas quando comparados com
hidrólise da lactose leva a obtenção de um os dietéticos, desta forma existe uma menor
do­c e com teor de lisina livre muito baixo quantidade de compostos formados in vivo
(< 50mg de lisina por g de proteína) (MALEC quando comparado com aqueles formados nos
et al.2005). alimentos. A quantidade de AGEs ingeri­dos
normalmente é maior do que a quantidade
Reação de Maillard in vivo (glicação) formada no plasma sanguineo ou nos tecidos.
As duas fontes principais, peculiares ao esti­lo
A reação de Maillard também pode de vida moderno, que fornecem uma oferta
acontecer in vivo tornando-se conhecida co-­ crescente de AGEs exógenos, são a ali­men­
mo glicação, e ocorre nos tecidos e cor­pos tação e o tabagismo, sendo que da fra­ção total
fluidos estando normalmente associada a absorvida cerca de dois terços são retidos no
con­dições patofisiológicas, envolvendo a for­ organismo e apenas um terço é excretado pela
mação dos produtos finais de glicação avan­ urina (POULSEN et al., 2013; VLASSARA
çada (URIBARRI et al., 2010; VISTOLI et al., et al., 2008).
2013). O método de preparo e a composição
Os AGEs, também conhecidos como de nutrientes do alimento podem influenciar
gli­cotoxinas, apresentam estruturas variadas, na maior ou menor quantidade de AGEs.
sendo dependentes das características indi­ Alimentos submetidos a altas temperaturas e
viduais, do tipo de alimento ingerido e do com baixo teor de umidade como grelhados,
método do tratamento térmico empregado. assados, tostados, secos e fritos ou alimentos
Os mesmos surgem pela reação de Maillard ricos em lipideos/proteínas ou ainda aliment­
ou pela glicação as quais são iniciadas pela os processados por calor seco como chips,
associação entre açúcares redutores e gru­ cockies, bolachas, são normalmente aqueles
pos amino livres de proteínas, lipídios ou que apresentam maior teor destes compostos
ácidos nucleicos (POULSEN et al., 2013; (KELLOW; COUGHLAN, 2015; URIBARRI
URIBARRI et al., 2010). et al., 2010; ).
Os AGEs são originados endogena­ Normalmente o grupo de alimentos
mente, fazendo parte do metabolismo normal, que contém menor quantidade de AGEs são
podendo neste caso prevenir doenças como aqueles que apresentam em sua constituição
diabetes tipo I, além de facilitar a proli­fe­ carboidratos como os amidos, as frutas, os
ração da intima após angioplastia, melho­rar legumes e o leite, provavelmente esta situação
a sensibilidade à insulina, auxiliar na cica­tri­ acontece pelo maior teor de água, maior nível
zação de feridas. Porém, se os níveis de AGEs de antioxidantes e vitaminas ou pelo fato de
forem excessivamente elevados, como em que nesta categoria de alimentos, a maioria
condições de hiperglicemia ou estresse oxi­da­ dos polissacarídeos consistem em açúcares
tivo, podem alcançar os tecidos e a circulação não redutores (KELLOW; COUGHLAN,
tor­nando-se patogênicos (POULSEN et al., 2015; URIBARRI et al., 2010).
2013; URIBARRI et al., 2010; VHANGANI; De acordo com a pirâmide alimen­tar
WYK, 2016; VISTOLI et al., 2013). atual o grupo dos cereais, pães, tubérculos,

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raízes e massas são os alimentos que devem BARBOSA, R. M. S. et al. Food intake by
ser ingeridos em maior quantidade durante children based on the Brazilian food guide
o dia (BARBOSA et al., 2005). Isto pode re­ pyramid for young children. Revista de Nu­
sultar em uma maior ingestão de produtos da trição, v.18, n. 5, p. 633-641, 2005.
rea­ção de Maillard ou AGEs e consequente­
men­te afetar o pool endógeno, auxiliando BASTOS, D. H. M. et al. Produtos da rea­ção
para o excesso destes produtos no organis­mo de Maillard em alimentos industrializados.
modificando suas características positivas Nutrire, v. 36, n. 3, p. 63-78, 2011.
para negativas.
BRIÃO, V. B. et al. Cinética do escurecimeno
CONSIDERAÇÕES FINAIS não-enzimático com soluções modelo de
açúcares e aminoácidos em pH neutro e ácido.
Há mais de 100 anos estuda-se a reação Acta Scientiarum Technology, v. 33, n. 1, p.
de Maillard e o controle de seus pontos 87-93, 2011.
positivos e negativos continua desafiando a
ciência e a tecnologia de alimentos. A uti­li­ Centro Nacional de Informações sobre Bio­
zação de marcadores químicos para as fases tecnologia (NCBI). Composto de banco de
da reação, bem como a avaliação dos impac­tos dados PubChem, CID=237332. 2005. Dis­
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gov/compound/237332>. Acesso em: 11 jan.
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à realidade industrial e ao desenvolvimen­to
de produtos lácteos.
FENNEMA, O. R.; SRINIVASAN D.; KIRK,
L. P. Química de Alimentos de Fennema.
AGRADECIMENTOS
Porto Alegre: Artmed, 2010. 900p.
Os autores agradecem ao CNPq e a
FRANCISQUINI, J. A. et al. Avaliação da
FAPEMIG pelo suporte financeiro a projetos
intensidade da reação de Maillard, de atribu­tos
na área de produtos lácteos concentrados e
físico-químicos e análise de textura em doce
desidratados, e, a CAPES e ao CNPq pelas
de leite. Revista Ceres, Viçosa, v. 63, n. 5,
bolsas de pós-doutorado e de produtividade p. 589-592, 2016.
concedidas.
GUERRA HERNÁNDEZ, E. et al. Chemical
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