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O JAGUNÇO SOMOS NÓS

VISÕES DO BRASIL NA CRÍTICA DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Danielle dos Santos Corpas

Faculdade de Letras/UFRJ
Rio de Janeiro
2006
CORPAS, Danielle dos Santos. O jagunço somos nós: visões
do Brasil na crítica de Grande Sertão: veredas. Rio de
Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2006. 270 fl. mimeo.
Tese de Doutorado em Teoria Literária.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________
Professor Doutor Ronaldo Lima Lins
Orientador

______________________________________________
Professora Doutora Carmen Lúcia Negreiros de Figueiredo

______________________________________________
Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno

______________________________________________
Professor Doutor Victor Manuel Lemus

______________________________________________
Professora Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira

______________________________________________
Professora Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins

______________________________________________
Professor Doutor Eucanaã Ferraz

Defendida a Tese:

Conceito:

Em: / / 2006
O JAGUNÇO SOMOS NÓS
Visões do Brasil na crítica de Grande sertão: veredas

por
Danielle dos Santos Corpas

Tese de Doutorado em Teoria Literária,


apresentada à Coordenação de Cursos
do Programa de Pós-graduação em
Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Orientador: Ronaldo Lima Lins.

Rio de Janeiro - 2o semestre de 2006


Faculdade de Letras – Universidade Federal do Rio de Janeiro
SINOPSE

Esta análise da recepção de Grande


sertão: veredas no Brasil reflete sobre
procedimentos e resultados de uma
parcela de sua fortuna crítica: aquela em
que se engendram interpretações do
romance de Guimarães Rosa nas quais é
posta em discussão alguma possibilidade
de vínculo entre a configuração estética do
livro e processos políticos e sociais vividos
no país.
Para Sergio e Vicente
AGRADECIMENTOS

Sou especialmente grata a essas pessoas que tanto


me ajudaram na preparação desta tese: Ronaldo
Lima Lins e André Bueno, professores da UFRJ que
me vêm formando desde a graduação; integrantes
do Grupo Formação, com os quais tenho
compartilhado desde 1999 um espaço de debate
rigoroso e generoso sobre a literatura brasileira – o
que instigou boa parte das reflexões registradas
aqui; Sergio Mauricio, meu cúmplice nessa e em
tantas outras empreitadas; Nanci e Osvaldo Corpas,
meus pais e paus-pra-toda-obra.
Os impulsos dos autores se extinguem no conteúdo objetivo
do que capturam. No entanto, a pletora de significados
encapsulada em cada fenômeno espiritual exige de seu
receptor, para se desvelar, justamente aquela
espontaneidade da fantasia subjetiva que é condenada em
nome da disciplina objetiva. Nada se deixa extrair pela
interpretação que já não tenha sido, ao mesmo tempo,
introduzido pela interpretação. Os critérios desse
procedimento são a compatibilidade com o texto e com a
própria interpretação, e também a sua capacidade de dar
voz ao conjunto de elementos do objeto.

Theodor W. Adorno, O ensaio como forma


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 08

CAPÍTULO 1 – A TRANSCENDÊNCIA DO REGIONAL ..................................................... 32


1.1 – U M REGIONALISMO CUJA REFERÊNCIA É O GLOBO ........................................... 44

CAPÍTULO 2 – MUNDO DE JAGUNÇO , MODO DE SER JAGUNÇO..................................... 61


2.1 – A CONDIÇÃO JAGUNÇA ................................................................................... 75
2.2 – O JAGUNÇO ARRIVISTA.................................................................................... 88

CAPÍTULO 3 – EXPRESSÃO E PERSONALIDADE DO NARRADOR ................................... 101


3.1 – U M NARRADOR SOFISMADO DE LADINO ............................................................ 114

CAPÍTULO 4 – GRANDE SERTÃO : MUNDO MODERNO ................................................. 134


4.1 – GRANDE SERTÃO E UNIVERSO URBANO ............................................................ 147
4.2 – D IALÉTICA DO ESCLARECIMENTO NO GRANDE SERTÃO .................................... 161

CAPÍTULO 5 – GRANDE SERTÃO : FORMAÇÃO BRASILEIRA .......................................... 186


5.1 – LEMBRANÇAS DO BRASIL ................................................................................ 191
5.2 – O BRASIL DE ROSA......................................................................................... 202
5.3 – GRANDESERTÃO.BR ....................................................................................... 227

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 255

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 260


INTRODUÇÃO

Críticos de literatura brasileira têm registrado uma série de juízos


sobre a cultura, a ordem social e a política no Brasil em análises de Grande
sertão: veredas. Logo que surgiu, o romance de Guimarães Rosa chamou
atenção pelo modo inusitado e complexo como a matéria sertaneja ganhou
ares de universalidade, e desde então tenta-se elucidar vinculações entre o
Grande sertão e experiências vividas no país. Somando-se as observações
acerca de particularidades locais surgidas em comentários sobre passagens
e aspectos da narrativa às hipóteses de interpretação da obra como um todo
que vêm de par com alguma tentativa de explicação da história nacional,
temos boa amostra das posições que uma parcela significativa de nossa
intelectualidade nos últimos cinqüenta anos assumiu em relação a tópicos
controversos nos debates sobre a literatura e a vida brasileiras.1
Por caminhos diversos, estudos publicados entre 1956 (ano de
lançamento do livro) e o início da década de 1970 procuraram esclarecer as
condições de configuração dessa prosa na qual uma enorme gama
singularidades locais recebeu um tratamento artístico capaz de dissolver as
fronteiras regionais. Cedo se percebeu que as cenas passadas no sertão
mineiro, referência evidentemente fundamental na obra de Rosa, revestem-
se de significação que vai muito além da representação de modos de vida em

1
Nas páginas que se seguem, levei em conta textos críticos publicados entre 1956 e 2006, em livros,
periódicos, anais e meios eletrônicos. Dadas a intensidade da produção acadêmica a respeito da obra
de Guimarães Rosa e a dificuldade de acesso a materiais inéditos, seria inviável pesquisar também as
teses e dissertações apresentadas em universidades do país ao longo de cinco décadas.

8
determinada área geográfica, identificou-se como questão crítica a equação
entre raiz no particular e projeção para o universal.2 O primeiro desses
termos aparecia com freqüência em todo tipo de especulação sobre o livro.
Naquele período, entre o governo de Juscelino Kubitschek e a década inicial
da ditadura militar, os projetos de modernização nacional e as disputas
acirradas na arena política mantinham na ordem do dia a discussão sobre as
especificidades do país. De modo geral, tanto à direita quanto à esquerda,
tanto as promessas de construção do Brasil do futuro quanto as contestações
ao desenvolvimentismo oficial erigiam-se na perspectiva de uma lógica da
nacionalidade – convidavam ao vislumbre de alguma situação na qual
estivessem resolvidas as tensões internas, de modo que os cidadãos
gozassem dos benefícios de uma nação emancipada. Era mote, para o bem
ou para o mal, a peculiaridade da vida brasileira, o mesmo tópico que
mobilizara tantos de nossos autores do século XIX e que o primeiro
Modernismo havia definido como valor positivo para a arte. No campo das
ciências humanas, desde a década de 1930, uma sucessão de estudos
procurava dar conta dos processos de formação nacional, enfocando a
constituição progressiva das forças motrizes de nossos sistemas social,
político, econômico e literário.3 Então, a representação das realidades locais
e da nação figurava em posição privilegiada também na pauta dos debates
estéticos. Nesse contexto, e ainda sob o influxo das discussões provocadas
pelo regionalismo nordestino de 30, boa parte da crítica literária brasileira
recebeu Grande sertão: veredas como um acontecimento importante,
instigante e benfazejo, por muitas razões, com destaque para a apresentação
do sertão distanciada dos “hábitos realistas dominantes em nossa ficção”.4
Dentre os estudos que nessa época sondaram a possível homologia Grande
sertão: Brasil, os que se tornaram mais influentes foram os de Antonio
Candido e de Walnice Nogueira Galvão.

2
Esta percepção já estava na base de algumas apreciações de Sagarana, o primeiro livro que
Guimarães Rosa publicou, dez anos antes de Grande sertão: veredas (ver CAPÍTULO 1).
3
Refiro-me a Casa grande e senzala (Gilberto Freyre, 1933), Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de
Holanda, 1936), Formação do Brasil contemporâneo (Caio Prado Jr., 1942), Os donos do
poder: formação do patronato político brasileiro (Raymundo Faoro, 1958), Formação econômica do
Brasil (Celso Furtado, 1959) e Formação da literatura brasileira (Antonio Candido, 1959).
4
Antonio Candido, O homem dos avessos. In: Tese e antítese, p. 123.

9
Candido dedicou ao romance de Guimarães Rosa uma resenha
(1956), um ensaio de interpretação (O homem dos avessos, publicado
originalmente, com o título O sertão e o mundo, em 1957), boa parte de um
ensaio de viés historiográfico (Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães
Rosa, resultado de um curso ministrado em 1966) e algumas breves
considerações esparsas (como as contidas em Literatura e
subdesenvolvimento – cuja publicação original, em francês, é de 1970 – e em
A nova narrativa, versão de uma comunicação apresentada em 1979 num
encontro sobre ficção latino-americana). Um conjunto de poucas páginas,
onde estão indicados, entre outras coisas, a característica fundamental da
obra, seu princípio geral, sua condição formal básica e uma chave de
interpretação. Esta, forjada no trabalho de 1966, dá boa idéia do alcance que
tem para a análise de Grande sertão: veredas a perspectiva do autor de
Formação da literatura brasileira. A seu ver, Rosa incorporou uma série de
características presentes na ficção de viés regionalista para criar um tipo de
personagem e um espaço ficcional ao mesmo tempo particulares e muito
abrangentes: o sertão com dimensão de mundo inóspito onde o herói jagunço
vive uma vida perigosa. No Grande sertão, universo regido pela
arbitrariedade, onde “o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e
de mais juízo”,5 transita um “tipo especial de homem violento”, que não se
resume ao fora-da-lei, exceção à regra social. Pelo contrário, trata-se do
indivíduo comum de um mundo um tanto anômico, onde a ordem institucional
é inconsistente. A arbitrariedade que rege o convívio no sertão demanda uma
“conduta de guerra”, a violência parece muitas vezes a única forma de ação
justa. Essa é a chave de leitura proposta por Antonio Candido: encarar a
figura do jagunço como forma (“forma de existência”, “modo de ser” no
“mundo-sertão”, “realização ontológica”), e não mera representação de um
tipo social, pois as atuações dos diferentes valentões convergem todas para
uma mesma lógica de comportamento “ante a desordem e a brutalidade do
sertão”. Justapondo essa percepção à análise da ficção regionalista
precedente a Guimarães Rosa (realizada na primeira parte de Jagunços

5
João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, p. 248. A partir de agora, as citações de trechos do
romance serão indicadas no corpo do texto, entre parênteses, com os número das páginas antecedidos
pela sigla GSV.

10
mineiros) – sempre com um olho na literatura (mirando ao mesmo tempo a
dinâmica própria do texto e sua interação com a tradição cultural com a qual
dialoga) e com o outro olho na formação do país – o ensaísta estabelece
relação entre, de um lado, a maneira como agem os jagunços no romance e,
de outro lado, o funcionamento específico da “máquina econômica” a que
servem e os termos de uma ordenação do convívio em que se aliam arbítrio e
arbitrariedade. Assim, lança luz sobre um aspecto constitutivo da obra: as
principais injunções subjacentes aos atos dos personagens, do protagonista-
narrador aos coadjuvantes citados de passagem. Do ângulo do estudo de
Candido, a figura do jagunço em Grande sertão: veredas, a um só tempo,
desempenha papel de peão das “fortalezas do lucro e da ordem” no Brasil e
as põe em xeque – as estratégias de instauração, manutenção e reprodução
dessa ordem são objetos virtuais, subliminares, dos comentários do crítico.6
Como disse certa vez Roberto Schwarz, uma abordagem como essa
consegue explorar virtualidades nacionais estilizadas artisticamente na obra,
mesmo que nesta não esteja evidente o âmbito nacional.7
Muitas observações de Antonio Candido sobre Grande sertão:
veredas têm esse potencial de rendimento. No conjunto de suas
considerações sobre o romance, há, é verdade, mais sugestões de caminhos
para a reflexão do que análises acabadas – não são formulações tão
amadurecidas quanto as reunidas nos ensaios dedicados a O cortiço ou a
Memórias de um sargento de milícias. Ainda assim, concentra-se nessas
anotações um considerável e fértil acúmulo crítico. Os intérpretes do livro de
Guimarães Rosa que deram continuidade de modo mais produtivo a tal
legado foram aqueles que, junto com hipóteses específicas sobre o texto,
assimilaram algo da perspectiva a partir da qual Candido pensa a literatura
nacional. É essa a tradição que mais interessa aqui. Ela é responsável pelos
encaminhamentos mais conseqüentes nas discussões sobre a matéria
brasileira no romance.
Antonio Candido soube exercitar e ensinar a crítica que concilia análise
estética e social, sem resvalar para o sociologismo esquemático ou para o

6
Cf. Antonio Candido, Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. In: Vários escritos, p. 111-
122.
7
Ver, adiante, os comentários a respeito do I Seminário de Cultura e Literatura Brasileira (CAPÍTULO 1.1,
p. 57-60).

11
formalismo restritivo. Em Crítica e sociologia (ensaio teórico de 1965),
especificou orientações básicas que seguiu em sua prática: não interessa ao
crítico de literatura apenas assinalar na obra signos representativos da
realidade histórica (“referências a lugares, modas, usos; manifestações de
atitudes de grupo ou de classe; expressão de um conceito de vida”); os
elementos externos que se fazem legíveis na literatura têm que ser
considerados do ponto de vista interno ao texto (“o traço social constatado é
visto funcionando para formar a estrutura”; “o que interessa é averiguar que
fatores atuam na organização interna, de maneira a constituir uma estrutura
peculiar”). Ou seja: apenas analisar o texto literário como documentário do
real, identificando um conteúdo de referências à vida material, seria tão
insuficiente quanto esclarecer só a dinâmica dos elementos de linguagem
que compõem a forma estética, como se ela fosse um sistema autogerado.
As perspectivas sociológica e formal têm que estar integradas para que se
verifique em que medida os fatores sociais se fazem “agentes da estrutura”
do texto ficcional: “os elementos de ordem social serão filtrados através de
uma concepção estética e trazidos ao nível da fatura, para entender a
singularidade e a autonomia da obra”. Esse preceito remete a trabalhos de
Lukács, Arnold Kettle, Lucien Goldmann e Erich Auerbach, mencionados
como precursores que, com maior ou menor sucesso, realizaram esforços
para “mostrar a interiorização dos dados de natureza social” no texto
literário.8
A agudeza e a fertilidade dos melhores trabalhos de Antonio Candido
provêm da associação dessa estratégia de análise a um outro fator: a
perspectiva “formativa”, visão abrangente da literatura nacional que enfoca os
movimentos de constituição e transformação de um sistema articulado por
relações entre autores, obras e público. A observação dos componentes de
cada texto (narrador, personagens, enredo, linguagem etc.) não perde de
vista os processos sociais que lhe são contemporâneos e vem associada à
consideração do modo como a obra se inscreve no sistema literário, do modo
como dialoga com uma tradição e como passa a interferir em sua
configuração. Com isso, a reflexão crítica projeta-se naquelas quatro

8
Cf. Antonio Candido, Crítica e Sociologia. In: Literatura e sociedade, p. 5-16.

12
dimensões que fazem a “força de intervenção do programa dialético”
apontadas por Roberto Schwarz em suas considerações sobre Dialética da
malandragem (o ensaio de Candido a respeito de Memórias de um sargento
de milícias incluído em O discurso e a cidade): 1) indica fatores que
concorrem para a estruturação da obra e 2) revela aspectos obscuros da
ordem social implicada no texto; com isso, 3) avança na compreensão dos
processos que informaram a nossa história literária e social e 4) reúne
elementos que esclarecem o resultado contemporâneo desses processos.9
Essa síntese assinala o rendimento a que dá ensejo a idéia social de
forma que Schwarz, em Adequação nacional e originalidade crítica,
identificou na prática de Antonio Candido. Uma concepção da forma estética
distinta daquela, mais corrente, que considera a articulação entre os signos
como resultado de um tipo de dinâmica exclusivo da linguagem – ao
contrário, forma é algo que diz respeito tanto à esfera da arte quanto à
materialidade da experiência.10 Roberto Schwarz ressalta a contribuição da

9
Cf. Roberto Schwarz, Pressupostos, salvo engano, de Dialética da malandragem. In: Que horas são?,
p. 130. Em ensaio mais recente, Schwarz traçou um esclarecedor panorama das tendências teóricas
com as quais dialogam e se confrontam os posicionamentos de Candido: “A partir da década de 60,
uma parte dos ensaios de Antonio Candido tem como desafio teórico a reversibilidade entre análise
literária e análise social. Convencido do interesse desses relacionamentos, bem como de sua
dificuldade, o crítico procura torná-los judiciosos, evitando a falta de discriminação reinante na
historiografia positivista e naturalista, continuada no marxismo vulgar, tradições para as quais a
peculiaridade da esfera literária pouco existia.
(…) No extremo, o estudo da organização interna da obra pode se tornar uma finalidade auto-
suficiente, como acontece nalguns tipos de formalismo, para os quais a referência ao mundo não é
uma questão artística nem crítica, mas uma impureza. Esta é outra frente onde intervém o ensaio de
Antonio Candido, cujos cuidados na apreensão e na descrição da forma literária vêm de par com uma
descrição não menos estruturada nem menos original de realidades históricas pertinentes. Quais são
estas? É uma pergunta para a qual não há resposta geral, mas só caso a caso, e dependendo sempre
de um achado crítico, em que a relação interna e discriminada entre os âmbitos acrescente à
inteligência dos dois.
(...) A vantagem ressalta no confronto com os diferentes ‘formalismos’ – termo confuso, que pensa
designar pejorativamente a superestimação teórica do papel da forma, quando talvez se trate, pelo
contrário, de uma subestimação. Com efeito, os formalistas costumam confinar a forma, enxergar nela
um traço distintivo e privativo, privilégio da arte, aquilo que no campo extra-artístico não existe, razão
por que a celebram como uma estrutura sem referência. (…)
A comparação mais relevante contudo se faz com o estruturalismo de inspiração lingüística. Salvo
engano, ao adotar o ideal de cientificidade e o tipo de estrutura elaborada por essa disciplina, a crítica
literária incorpora um modelo indiferente a aspectos decisivos de seu objeto. Não custa lembrar que,
embora feito de palavras, este último não funciona como uma língua, pois é um artefato singular, obra
de um indivíduo em face de uma situação artística, social etc. (…) Na medida em que o estruturalismo
calca sua investigação da forma no exemplo da lingüística, onde a referência, por definição, é apenas
um horizonte, as relações históricas ficam relegadas ao campo dos conteúdos sem potência
plasmadora e, aliás, sem interesse para a crítica.” (Roberto Schwarz, Adequação nacional e
originalidade crítica. In: Seqüências brasileiras, p. 29-31. Itálicos do autor.)
10
Isto já está sugerido na epígrafe do ensaio de Schwarz – “O crítico é aquele que nas formas entrevê
o destino (...)” –, extraída de Sobre a natureza e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper, texto de
abertura de A alma e as formas, o primeiro livro publicado por G. Lukács, em 1911. O trabalho de
Candido parece ter, de fato, esse ponto em comum com a sensibilidade crítica do jovem Lukács: lançar
luz sobre formas literárias que incida sobre formas da vida. “O momento de destino do crítico é portanto
aquele em que as coisas se tornam formas, o instante em que todos os sentimentos e todas as

13
idéia social de forma para a crítica literária brasileira enquanto analisa os
movimentos do ensaio De cortiço a cortiço (também incluído em O discurso e
a cidade). Mostra que, graças a um “desvio expositivo” (a revelação de um
componente ideológico entranhado em dito popular que, a princípio, parece
não ter nada a ver com o romance em estudo), Candido conseguiu identificar
uma homologia entre o enfoque narrativo de O cortiço e o ponto de vista do
homem livre no Brasil escravocrata: “O que Antonio Candido explicita é o
sistema de relações sociais pressuposto, a cuja lógica virtual empresta
expressão pelo prisma de uma de suas figuras cardeais (…)”. O achado
crítico não provém simplesmente da observação de características de uma
ou mais personagens que aludam a grupos sociais existentes à época em
que transcorre o enredo, mas da percepção de que há correspondência entre
uma dinâmica de relações sociais e a conformação de um componente da
ordem profunda da obra, um aspecto que interfere na configuração do
romance como um todo. O ponto de vista identificado “não é temático no
livro, estando na posição influente e impalpável de sobredeterminante
formal”; a peculiaridade da ordem social encontra-se “encapsulada num
dispositivo formal com desdobramento autônomo” (no caso, o enfoque
narrativo); a sociedade “não aparece como elemento envolvente, mas como
elemento interno ativo, sob a forma de um dinamismo especificamente seu,
resultado consistente dela e potência interior ao romance, onde atritará com
outras forças e revelará algo de si”.11
A operação crítica com a idéia social de forma implica encarar tanto os
fenômenos estéticos quanto a vida material como âmbitos perpassados por
formas – formas de linguagem, formas de pensar, formas de relacionamento
entre indivíduos, formas que organizam a produção, a política, a
representação etc. Observando, na configuração da expressão literária, uma
lógica também presente em determinado conjunto de experiências históricas,
esclarecendo, por meio da comparação entre essas duas esferas, os fatores
que presidem à lógica que rege uma e outra, o crítico consegue chamar
atenção para uma forma objetiva, uma condição prática.

experiências vividas que estavam aquém e além da forma recebem uma forma, se fundem e se
condensam em uma forma” (Georg Lukács, A propos de l’essence et de la fome de l’essai. In: L’âme et
les formes, p. 21).
11
Cf. Roberto Schwarz, Adequação nacional e originalidade crítica, op. cit., p. 28-35.

14
A forma de que falamos aqui é inteiramente objetiva, com o que
queremos dizer que ela se antepõe às intenções subjetivas, das
personagens ou do autor, as quais no âmbito dela são apenas matéria sem
autoridade especial, que não significa diretamente, ou que só significa por
intermédio da configuração que a redefine. (...) Fora da literatura, o
sentimento análogo se encontra na idéia marxista do processo, cuja
engrenagem objetiva, funcionando atrás das costas dos protagonistas,
também lhes utiliza e desqualifica os propósitos, transformados em ilusões
funcionais (...). O interesse dessa idéia “desumana” e puramente relacional
de configuração artística, cheia de implicações materialistas e desabusadas,
não está na harmonia, mas na dissonância reveladora, cuja verdade
12
histórica é tarefa da interpretação evidenciar.

Ainda que superficial, esse resumo da explanação de Roberto


Schwarz sobre a idéia social de forma deve servir aqui para sugerir o quanto
a perspectiva de Antonio Candido pode contribuir para a interpretação de
Grande sertão: veredas. Quem acompanha os debates sobre o romance
sabe que são muito valorizadas, mesmo pela crítica interessada na dimensão
histórica, as intenções subjetivas do protagonista do livro e de seu autor,
figuras extremamente carismáticas cujo discurso e comportamento
intrigantes apaixonam os intérpretes.
Se os comentários de Antonio Candido deram várias pistas sobre a
matéria brasileira no Grande sertão, a tese As formas do falso, que Walnice
Nogueira Galvão apresentou em 1970 (sob orientação acadêmica do mesmo
Candido) e publicou dois anos depois, definiu com mais minúcia alguns focos
para a leitura do livro à luz da política nacional e da realidade social,
econômica e cultural do sertão. Esse estudo pouco se serviu das
interpretações então existentes, são citados apenas O homem dos avessos,
um artigo de Roberto Schwarz de 1960, e o trabalho que Manuel Cavalcanti
Proença elaborou entre 1957 e 1958, Trilhas do Grande sertão (pioneiro na
abordagem de tópicos como o componente religioso na perspectiva do
narrador, as ressonâncias medievais na composição da obra e pormenores
de elaboração da linguagem).13 O que apóia as considerações de Walnice

12
Ibid., p. 41.
13
Vale lembrar que a análise de Cavalcanti Proença a respeito dos aspectos formais do romance
também serviu de ponto de partida para Antonio Candido em O homem dos avessos.

15
Nogueira Galvão é a pesquisa cuidadosa no campo da história brasileira e da
literatura de apresentação da vida no sertão, refletida em uma bibliografia
que inclui de Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro,
Caio Prado Jr. e Maria Sylvia de Carvalho Franco a Franklin Távora,
Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha, Afonso Arinos e Câmara Cascudo.
Interessada em descobrir onde se radica e como se constrói a
ambigüidade que identifica como princípio organizador de Grande sertão:
veredas, a autora equaciona uma ampla gama de elementos do texto
(enredo, linguagem, personagens, narrador) e a realidade sertaneja a que ele
remete. Sem perder de vista o plano geral da ordem política e social do
tempo em que se passa a ação (o período da República Velha), consegue
distinguir e coadunar, de um lado, a “matéria historicamente dada” – a
experiência dos jagunços reais, suas condições de subsistência, costumes
etc., assim como as circunstâncias objetivas que a informavam – e, de outro
lado, uma “matéria imaginária”, as ressonâncias da literatura medieval
incorporadas à cultura sertaneja que são convocadas no livro. Deste modo,
em síntese muito esclarecedora, mostra como a condição do sertanejo
pobre, “radicalmente ambígua”, é coerente com sua representação nos
termos da novela de cavalaria. O recurso a essa fonte literária, matriz
evidente na caracterização de personagens e em algumas peripécias do
enredo, não aparece em As formas do falso como mera referência com
função de conferir verossimilhança à fala do narrador, não remete somente à
“sobrevivência verificável do imaginário medieval no sertão, seja na tradição
oral, seja no romance de cordel”.14 Tem a ver também com “uma verdadeira
‘célula ideológica’” cuja presença é marcante no tecido da tradição letrada
brasileira, “que, em estudos, crônica, história e ficção, pratica a analogia
entre jagunço e cavaleiro andante, latifúndio e feudo, coronel e senhor feudal
(...), que força uma semelhança nobilitadora e minimiza a necessidade de
estudar o fenômeno naquilo que tem de específico”.15
A primeira parte de As formas do falso assinala que, em uma
economia calcada na pecuária extensiva, a figura do vaqueiro/cangaceiro

14
Walnice Nogueira Galvão, As formas do falso: um estudo sobre a ambigüidade no Grande sertão:
veredas, p. 12.
15
Ibid., p. 52.

16
reveste-se de ares de independência e liberdade. Afinal, são homens que
vão e vêm pelo sertão afora, conduzindo gado ou combatendo grupos rivais.
Fica mascarada, nessa mobilidade física, o aprisionamento às injunções do
sistema sócio-econômico de que participam esses integrantes daquilo que
Oliveira Vianna chamou de “plebe rural”. Não tendo posses, são reféns dos
interesses de quem os emprega, fato que se manifesta na reversibilidade de
sua atuação: ora empregados nas lides do campo, ora braços armados em
disputas territoriais e políticas entre proprietários, cujas finalidades últimas
sequer conhecem; sempre morando de favor em terra alheia, sempre
submissos e sujeitos a serem dispensados.

Livre, e por isso mesmo dependente. Sem ter nada de seu, e por isso
mesmo servidor pessoal de quem tem. Inconsciente de seu destino, e por
isso mesmo tendo seu destino totalmente determinado por outrem. Sem
causas a defender, e por isso mesmo usado para defender causas alheias.
Avulso e móvel, e por isso mesmo chefiado autoritariamente e fixado em sua
posição de instrumento. Posto em disponibilidade pela organização
econômica que não necessita de sua força de trabalho, e por isso mesmo
encontrando quem dele disponha, para outras tarefas que não as da
produção. Tal é a condição dessa imensa massa de sujeitos disponíveis em
suas “existências avulsas” que estavam aí para serem usados, e que o
16
foram, ao longo de toda a história brasileira.

Reconhecidas tais ambigüidades na vida do jagunço real, a presença


do imaginário da novela de cavalaria em Grande sertão: veredas é avaliada
junto com o “pendor que têm os letrados brasileiros, dentro e fora da ficção, a
representar o sertão como um universo feudal”. Segundo Walnice Nogueira
Galvão, esse recurso tende a servir a “propósitos de dominação”, na medida
em que acaba por veicular uma mitificação reiteradora da aura de honra,
valentia, lealdade etc. que encobre a condição miserável do vassalo
sertanejo. Para ela, “através de tantas mediações”, delineia-se no romance
de Guimarães Rosa o impasse em que consiste a posição, também ambígua,
do intelectual brasileiro, ao mesmo tempo tradicionalmente preso aos
compromissos de servidor do Estado e “capaz, por treino, de experimentar

16
Ibid., p. 41-42. A expressão entre aspas na citação foi extraída da tese de Maria Sylvia de Carvalho
Franco, Homens livres na ordem escravocrata (São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1969. p.
149).

17
imaginariamente outras situações de vida”.17 Essa é uma perspectiva crucial
em As formas do falso, raras vezes retomada posteriormente. Por mais que
as principais observações sobre o caráter de “jagunço letrado” do
protagonista-narrador sejam constantemente lembradas – a ponto de tal
expressão ter sido incorporada ao jargão dos estudos rosianos, empregada a
torto e a direito –, poucos discutem a argumentação que conduziu a tal
achado crítico.
O gênero de questionamentos que mobilizou Antonio Candido e
Walnice Nogueira Galvão permaneceu quase que de todo ausente das
análises de Grande sertão: veredas por mais ou menos duas décadas. De
meados dos anos 1970 a meados dos anos 1990, os esforços interpretativos
se desviaram para o cumprimento de programas definidos pelas correntes
teóricas que se sucederam em posição hegemônica nos nossos
departamentos de Letras. Análises estruturalistas esquadrinharam a estética
de Guimarães Rosa; a hermenêutica de viés heideggeriano encontrou terreno
fértil no “ser-tão” percorrido por seu herói. Nesse ínterim, e com mais
intensidade a partir de 1980, cresceu entre os estudiosos da obra do
ficcionista a empolgação com chaves de leitura filosófico-metafísicas e
esotéricas, muito prestigiosas até hoje – o que resultou em um subconjunto
bastante extenso em sua fortuna crítica. Apenas a partir da segunda metade
da década de 1990 ressurgiu o interesse pelas relações entre o Grande
sertão: veredas e aspectos de nossa sociedade, política e cultura.
Por esse histórico se nota que os estudos rosianos não fogem à regra
de descontinuidade da reflexão que Roberto Schwarz apontou como um
inconveniente para o andamento da crítica literária brasileira no ensaio
Nacional por subtração. O fenômeno, também observável em qualquer outro
campo da atividade intelectual no país, é em parte resultado de uma
constante histórica que temos em comum com outras nações periféricas: a

17
Cf. Ibid., p. 12-14. Antes de Walnice Nogueira Galvão, Bento Prado Jr., da mesma USP onde se
formou a autora de As formas do falso, tratou do “jagunço iletrado” e da “relação crucial entre o
analfabetismo e a escrita” na obra de Rosa, no ensaio O destino decifrado: linguagem e existência em
Guimarães Rosa, de 1968 (ver CAPÍTULO 3.1, p. 116-119). Recentemente, outro professor da USP, Willi
Bolle, em grandesertão.br (2004), valeu-se da noção de “jagunço letrado” para desenvolver, no escopo
de sua visão de Grande sertão: veredas como “retrato do Brasil” e “romance de formação do Brasil”,
hipóteses sobre os impasses históricos e as possibilidades contemporâneas de intervenção do letrado
brasileiro na vida social – impasses e possibilidades que, segundo ele, estão figurados na conformação
do texto (ver CAPÍTULO 5.3).

18
importação de modelos teóricos da Europa (desde os tempos coloniais) e dos
Estados Unidos (nas últimas décadas). Empenhada em atualizar-se com
relação às novas doutrinas que entram em voga nas metrópoles culturais,
cada geração deixa mais ou menos de lado o trabalho das gerações
anteriores, e com isso problemas e decifrações referentes à vida e à cultura
no país, a custo alcançados, ficam “sem o desdobramento que lhes poderia
corresponder”. Raramente se investe na elaboração de um “juízo refletido
sobre as perspectivas propostas” por predecessores locais, cujo trabalho
poderia ser encarado “como elemento dinâmico e irresolvido, subjacente às
contradições contemporâneas”. O fluxo da crítica é interceptado pelo
atravancamento nos processos de elaboração tanto de hipóteses e
conclusões quanto de parâmetros empregados para se lidar com as
especificidades do texto ficcional e da sociedade a que, de um jeito ou de
outro, ele remete. Se, a cada momento, trata-se com indulgente menosprezo
os resultados obtidos no período anterior e definem-se novos objetivos, se
em curto espaço de tempo estipulam-se novos critérios de avaliação e
descartam-se peremptoriamente os juízos formulados a partir de parâmetros
que pareciam válidos, com pouca ou nenhuma discussão sobre a razão de
ser dos juízos e parâmetros renegados, fica difícil atingir “uma dose de
adensamento cultural, dependente de alianças ou confrontos entre disciplinas
científicas, modalidades artísticas e posições sociais ou políticas sem a qual
a idéia mesma de ruptura, perseguida no culto ao novo, não significa nada”.
Os saltos de um paradigma a outro podem representar menos progresso do
que lacunas – essa é a conclusão de Schwarz a respeito da sucessão de
escolas seguida pela crítica literária brasileira. Tal visão não é motivada por
qualquer xenofobia ou nacionalismo tacanho – pelo contrário, o ensaio
adverte para o fato de que a “busca de um fundo nacional genuíno” consiste
em solução ilusória para um problema mal posto (vale lembrar que Nacional
por subtração versa sobre o “caráter postiço, inautêntico, imitado da vida
cultural que levamos” e revela o que está por trás do “sentimento aflitivo da
civilização imitada”: a “estrutura social do país, que confere à cultura uma
posição insustentável, contraditória com o seu autoconceito”). O
inconveniente que Roberto Schwarz percebe na descontinuidade da reflexão
não se traduz em avaliação depreciadora do caráter de “segunda mão” de

19
boa parte de nossa produção intelectual. Esforço de atualização teórica é
algo que está longe de constituir em si um problema; problemática é a
postura acrítica no ato de assimilação das novidades, a contínua interrupção
no fluxo do debate, a decapitação periódica de “percepções e teses notáveis
a respeito da cultura do país” que poderiam contribuir para um “adensamento
cultural”, para a “constituição de um campo de problemas reais, particulares,
com inserção e duração históricas próprias, que recolha as forças em
presença e solicite o passo adiante”.18
Vamos partir do fato de que, nos cinqüenta anos que nos separam do
lançamento de Grande sertão: veredas, formou-se, ainda que marcado por
certa descontinuidade, atravessado por lacunas, um conjunto de
considerações sobre o Grande sertão: Brasil que convida ao passo adiante.
Num artigo de 1959 em que reflete sobre a tarefa da historiografia da
literatura brasileira, Otto Maria Carpeaux observa – comentário breve mas
digno de nota – que “o problema de crítica que nos apresenta a obra de
Guimarães Rosa” corresponde ao equacionamento entre “valores estéticos” e
“valores documentários” nessa “contribuição originalíssima, situada no meio
entre os dois critérios, da literatura brasileira à universal”.19 Vários intérpretes
do romance têm participado da longa discussão a respeito do que seria, nos
termos de Carpeaux, seu “valor especificamente brasileiro”; são cinco
décadas na tentativa de entender o que a vida no país tem a ver com a
constituição da narrativa que (conforme a apuração das enquetes de virada
de milênio, realizadas junto a intelectuais locais pelos cadernos de cultura de
nossos principais jornais) é considerada o mais alto momento da prosa
nacional desde Machado de Assis. De saldo, temos muitas reflexões sobre a
relação entre a ficção de Rosa e a matéria brasileira, e muito o que pensar
sobre o modo como se vem refletindo sobre tal relação.
Esse conjunto de estudos que procuram avaliar o peso do
especificamente brasileiro em Grande sertão: veredas é considerado ou
insuficiente ou totalmente destituído de valor por boa parte dos críticos que,
nos últimos quinze anos, fez algum balanço da recepção do romance.

18
Cf. Roberto Schwarz, Nacional por subtração. In: Que horas são?, p. 29-48.
19
Otto Maria Carpeaux, Problemas de história literária brasileira. In: Ensaios reunidos, p. 848.

20
A desvalorização é praxe entre os intérpretes votados à decifração de
signos esotéricos e referências ao pensamento metafísico na narrativa, que
vêem a relação literatura-sociedade como tópico sem relevância, refutam
programaticamente a hipótese de que a experiência histórico-social constitua
componente notável na literatura de Guimarães Rosa. É bom exemplo e
síntese dessa posição uma afirmativa presente na introdução de João
Guimarães Rosa: Metafísica do Grande sertão, de Francis Utéza. Esse
professor francês esteve por alguns anos radicado no Brasil e, depois,
continuou participando dos debates locais sobre a obra do escritor mineiro,
sendo hoje um dos mais respeitados representantes do esoterismo rosiano.
Para ele, a “autenticidade” da “realidade brasileira” no romance é, em termos
de interpretação, “uma conquista que é preciso ultrapassar para desembocar
em certezas mais elevadas”.20 Certezas como a seguinte, registrada no
capítulo Realismo e transcendência: “Se os sertanejos se batem é porque a
lei do Cosmos se exprime por seu intermédio”.21 Nota-se aí uma
desqualificação da matéria histórica como elemento influente na constituição
da obra – e, por extensão, como tópico relevante nas discussões a seu
respeito –, que foi referendada por Benedito Nunes, filósofo que assina
alguns dos textos mais freqüentemente citados nas bibliografias de trabalhos
sobre Grande sertão: veredas desde o final da década de 1970 (os estudos
reunidos na primeira parte de O dorso do tigre). Em 1998, numa avaliação da
recepção dos três primeiros livros publicados por Guimarães Rosa
(Sagarana, Grande sertão: veredas e Corpo de baile), Nunes considera as
reflexões que abrangem a vida brasileira como estágio ultrapassado,
enquanto apresenta os “inúmeros trabalhos hermenêuticos, de explicitação
aclaradora do sentido filosófico-religioso latente” como um ponto de chegada:

À fase filológica, lingüística, histórico-literária da obra de Rosa,


também sociologicamente interpretada, no momento da primeira
recepção, entre 1956 e 1960, e que teve um prolongamento
estruturalista, seguiu-se, desde o início dos anos 70, a fase
propriamente hermenêutica do estudo dessa obra, possibilitada pela

20
Francis Utéza, João Guimarães Rosa: Metafísica do Grande sertão, p. 23.
21
Ibid., p. 105.

21
ampliação que o enfoque antropológico e psicanalítico do
entendimento da literatura proporcionou a partir desse período. 22

Benedito Nunes não deixa de ressalvar que as perspectivas filosófica


e ocultista tão exercitadas a partir dos anos 1970 são, a princípio,
insuficientes – afirma que, qualquer que seja a mensagem transmitida pelos
textos, seu caráter é essencialmente poético, sua grandeza advém da
multiplicidade de significados que comporta em si. Ainda assim, valoriza a
“completude interpretativa” do estudo de Utéza, bem como o pioneirismo de
Consuelo Albergaria (Bruxo da linguagem no Grande sertão, 1977), alegando
que a revelação da simbologia oculta na ficção evidencia o fato de que “no
romance de Guimarães Rosa a narrativa sofre uma total absorção pelo mito”.
São, a seu ver, contribuições que esclarecem a “perspectiva mitomórfica”
própria da narrativa. Para o filósofo, uma vez alcançada essa “fase
propriamente hermenêutica” da recepção da obra, o que resta fazer é
explorar sua “pluralidade de sentido”, inesgotável manancial que a grande
criação estética oferece aos seus leitores. Parece satisfatória – e isso é um
lugar-comum entre os admiradores profissionais da obra de Guimarães Rosa
– “a possibilidade de a interpretarmos sempre renovadamente, como se ela
tivesse aparecido hoje e a lêssemos pela primeira vez”. Ou seja, Benedito
Nunes não reclama nem propõe um programa crítico que contemple aspectos
da formulação ficcional cuja importância venha sendo subestimada, não
enxerga nenhum inconveniente na trajetória dos estudos rosianos.
Por aí se vê que repete-se com Guimarães Rosa, como aconteceu
com Machado de Assis, aquela propensão de alguns setores da crítica a
louvar a excelência artística e/ou a magnitude das preocupações metafísicas
do grande escritor, desmerecendo e tomando quase como ofensa à
qualidade filosófica e estética da obra qualquer tentativa de correlação entre
literatura e sociedade. No caso de Grande sertão: veredas, alega-se que as
alusões à história brasileira no romance são “parcas e vagas”23 e que os
dados da realidade local não passam de cenário ou trampolim a projetar o

22
Benedito Nunes, De Sagarana a Grande sertão: veredas. Range rede, nº 3, p. 76.
23
Cf. Kathrin Rosenfield, Os descaminhos do Demo – tradição e ruptura no Grande sertão: veredas, p.
101-102.

22
Grande sertão rumo à significação universal.24 Argumentos nessa linha
deixam de levar em conta uma observação feita por Walnice Nogueira
Galvão há mais de trinta anos: se apenas umas poucas referências permitem
identificar no enredo do romance os contornos da política no Brasil da
Primeira República, justamente esse tipo de imprecisão merece atenção, pois
corresponde a uma singularidade no tratamento da matéria histórica: o
escritor “dissimula a História, para melhor desvendá-la”.25
Subjacente às leituras filosófico-metafísicas e ocultistas há um critério
que condiciona a avaliação da configuração ficcional à eficácia na
apresentação figurada de relações entre categorias integrantes de
determinadas doutrinas, como o neoplatonismo ou o Tao. O grande valor do
romance corresponderia à sua excelência como manual de ensinamentos
místicos ou filosóficos, espécie de guia espiritual transmissor de um conteúdo
cifrado que, uma vez decodificado, ajudaria os leitores a melhorar sua
performance na relação com o cosmos ou a assimilar para sua vida alguma
perspectiva filosófica ou visão de mundo. Ora, a abordagem da narrativa
eminentemente como transcrição figurada de sistemas de idéias e símbolos é
tão restritiva quanto seria a tentativa de explicá-la apenas a partir da
realidade sertaneja, negligenciando toda sua inegável carga de simbologia,
sua propensão ao transcendente. O influxo dessas duas ordens de
referências na configuração ficcional aparece evidente até em uma análise
rápida do contexto em que Guimarães Rosa escreveu, como a apresentada
recentemente por Walnice Nogueira Galvão num livreto sobre a obra do
escritor destinado ao público leigo. A autora descreve o lugar de Guimarães
Rosa na literatura brasileira a partir do panorama da prosa nacional entre as
décadas de 1930 e 1950, quando duas tendências divergentes definiam as
principais linhas em nossa ficção. De um lado, o viés regionalista, de

24
Cf. Francis Utéza, op. cit., p. 23.
25
Walnice Nogueira Gavão, op. cit., p. 63.
Para atestar a correção de sua perspectiva de leitura, não é raro que os estudiosos do conteúdo
filosófico ou ocultista na obra recorram a declarações do autor. Lembram dados biográficos que
confirmam as inclinações místicas de Guimarães Rosa e depoimentos em que ele assinala sua
preocupação com o dado “metafísico-religioso” em sua ficção – como a entrevista a Günter Lorenz no
Congresso de Escritores Latino-Americanos (Gênova, 1965) e a célebre carta de 25 de novembro de
1963 ao tradutor italiano de Corpo de baile (ver Günter Lorenz, Diálogo com Guimarães Rosa. In: João
Guimarães Rosa, Ficção completa, v. 1, p. 43 e 45; e também João Guimarães Rosa,
Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, p. 90-91). O recurso à autoridade do autor
procura referendar o valor conferido por tantos críticos às intenções subjetivas do escritor, normalmente
em detrimento da reflexão sobre as condições práticas implicadas na forma estética.

23
considerável tradição em nossas letras, que alcançou o apogeu entre os anos
1930 e 1940, com suas preocupações sociais, empenhado em trazer para a
literatura as especificidades de diferentes realidades vividas no país. De outro
lado, a corrente espiritualista, influenciada pelo romance católico francês do
entreguerras, com sua feição introspectiva, seu culto ao Mistério do universo
e da alma, suas inquietações metafísicas e religiosas. Na visão de Walnice
Galvão, a ficção rosiana é “uma síntese feliz das duas vertentes”, “algo assim
como um regionalismo com introspecção, um espiritualismo em roupagens
sertanejas”.26 Talvez a tarefa mais espinhosa para a crítica de Grande sertão:
veredas seja lidar com essa questão elementar detectada pela primeira
recepção do romance: a conjugação entre raiz no particular e projeção para o
universal. É hoje patente, muitas exegeses demonstram, que Guimarães
Rosa opera com símbolos e arquétipos das mais diversas procedências,
assimila em sua escrita tradições de pensamento de grande ressonância na
sensibilidade ocidental. Em que medida a inclinação para o mítico e o
transcendente na articulação da narrativa está relacionada a condições
práticas determinantes da experiência brasileira?
Contrapondo-se à tendência ao “’aniquilamento do éthos histórico’”,27
desde meados da década de 1990 alguns intérpretes voltaram a assinalar, de
diferentes modos, a relevância da matéria brasileira em Grande sertão:
veredas. Em geral, suas avaliações da fortuna crítica do livro consideram
insuficientes os resultados das especulações a esse respeito acumulados até
o momento em que escrevem. Comentam com maior ou menor
aproveitamento as teses dos predecessores mais respeitáveis e partem para
uma nova hipótese. É o caso de Willi Bolle, que tomou para si a tarefa de
revelar o “retrato do Brasil no século XX inscrito na obra”. Primeiro, em 1995,
afirma que a critica até então pouco tinha se mobilizado para sublinhar os
traços da experiência nacional no livro, uma vez que não havia reconhecido
seu caráter de romance urbano. Como exemplos de estudos que
colaboraram para tal “deciframento”, cita apenas os ensaios de Antonio
Candido e a tese de Walnice Nogueira Galvão. Dá a entender que é preciso
distinguir o alcance desses trabalhos das análises que se limitam a rastrear

26
Walnice Nogueira Galvão, Guimarães Rosa, p. 8-26.
27
Cf. Willi Bolle, O pacto no Grande sertão – esoterismo ou lei fundadora?. Revista USP, nº 36, p. 28.

24
referências à realidade no texto literário, oferecendo informações pertinentes
sem chegar a desenvolver efetivamente uma reflexão – por exemplo,
recensões como Itinerário de Riobaldo Tatarana, de Alan Viggiano.28 Num
outro artigo, de 1998, Bolle apresenta uma classificação tripartida do conjunto
da recepção do livro de Guimarães Rosa, distinguindo análises “estritamente
formais”, “histórico-sociológicas” e “esotérico-metafísicas”. Sem negar a
importância das informações lingüísticas e estilísticas fornecidas pelo
primeiro grupo, ressalta a necessidade de se suprir uma grande insuficiência
nos resultados atingidos pelo segundo: “Poucos, na verdade, souberam
decifrar no romance a dimensão da história a partir de categorias estéticas” –
a única exceção mencionada neste ponto é Walnice Nogueira Galvão. O
ensaio chama atenção para o fato de que tal problema foi agravado, nos
anos 1990, pela hegemonia das interpretações esotéricas e metafísicas,
promotoras do “’aniquilamento do éthos histórico’, que se tornou opinião
corrente entre os leitores do romancista”. Willi Bolle propõe a inversão dessa
tendência, um desafio para a crítica contemporânea: compreender os signos
esotérico-metafísicos à luz da história – é o que procura fazer ao analisar o
episódio do pacto com o demônio.29 Por fim, no livro em que reúne os
resultados de sua longa pesquisa (grande sertão.br, 2004), reagrupa o amplo
conjunto de trabalhos sobre o texto de Guimarães Rosa em “cinco tipos
metodológicos”. Afora os estudos onomásticos, bibliográficos, folclorísticos e
cartográficos, enumera os seguintes paradigmas de interpretação: estudos
lingüísticos e estilísticos; análises de estrutura, composição e gênero; crítica
genética; interpretações esotéricas, mitológicas e metafísicas; interpretações
sociológicas, históricas e políticas. Novamente menciona As formas do falso
como um ponto alto no histórico da recepção do romance, ressaltando que
apenas a partir da década de 1990 – com seus próprios trabalhos e os de
Heloísa Starling – voltou-se a avançar na “leitura do Grande sertão: veredas
como retrato do Brasil”. Esse “estudo crítico que faltava” é o que pretende
apresentar.30

28
Cf. Id., Grande sertão: cidades. Revista USP, nº 24, p. 80-88.
29
Id., O pacto no Grande sertão – esoterismo ou lei fundadora?, op, cit., p. 28.
30
Id., grande sertão.br: o romance de formação do Brasil, p. 19-22. Sobre esse livro, ver CAPITULO 5.3.

25
Heloísa Starling, em Lembranças do Brasil (tese defendida em 1997 e
publicada dois anos depois), afirma que “o potencial político do projeto
literário de Guimarães Rosa e sua inserção no cenário agudamente
contemporâneo da modernidade sempre pareceram algo definitivamente
excluído do horizonte da crítica literária brasileira até tempos muito recentes”
(em nota, cita como indícios de “mudança nessa postura” os ensaios de Bolle
publicados até então e um de Ettore Finazzi-Agrò). Também classifica a
fortuna crítica rosiana em “três grandes matrizes temáticas”, nas suas linhas
gerais correspondentes aos três grupos comentados por Bolle em 1998. No
entanto, à diferença deste, que enxerga no campo das investigações de
caráter histórico-sociológico um problema numérico (escassez de estudos e
resultados), Starling afirma existir aí uma limitação no enfoque de
interpretações que levam em conta apenas “uma realidade geograficamente
predeterminada e cronologicamente datada”, apenas as decorrências que
tiveram, na região em que transcorre a ação em Grande sertão: veredas, “as
relações sociais e de poder consolidadas ao longo dos primeiros 50 anos da
República brasileira, especialmente durante a República Velha”. 31
Luiz Roncari é outro que especifica o tipo de trabalho interpretativo do
qual a fortuna crítica do romance carece, e sua avaliação conflita muito com a
de Starlig. Na tese O Brasil de Rosa (2004), ele observa que a camada de
significação dos textos de Guimarães Rosa “mais ausente da critica” é
justamente aquela em que se verifica a alegorização da “história da vida
político-institucional de nossa primeira experiência republicana”.32
As avaliações de Bolle, Starling e Roncari partem do pressuposto de
que a incipiência que identificam na discussão sobre a vida nacional nas
análises de Grande sertão: veredas se deve exclusivamente ao andamento
da atividade crítica no país. Uma visão diferente do problema aparece num
ensaio que José Antonio Pasta Jr. publicou em 1999, no qual afirma que o
próprio princípio organizador da obra, aquilo que “responde pelo conjunto de
sua estruturação formal”, define também seu regime de leitura. Pasta toca
num ponto nevrálgico: o fato de, diante da grande obra estética, os

31
Heloisa Starling, Lembranças do Brasil – Teoria, política, história e ficção em Grande sertão:
veredas, p. 14-15. Sobre esse livro, ver CAPÍTUO 5.1.
32
Luiz Roncari, O Brasil de Rosa: mito e história no universo rosiano: o amor e o poder, p. 19. Sobre
esse livro, ver CAPÍTUO 5.2.

26
intérpretes tenderem a se colocar em atitude de reverência, a referendar as
soluções que vêem engendradas no texto ficcional.

(...) de modo mais ou menos sutil, não é raro ver-se, diante dele, o ofício do
crítico converter-se na celebração do oficiante – os elementos de
objetivação e de distância, próprios do discurso crítico, desdobrando-se em
um rito de comunhão com a obra, no qual os limites entre o sujeito e o
objeto, o mesmo e o outro, tornam-se ao mesmo tempo fluidos e
33
indecidíveis.

Essa constatação é o ponto de partida para a hipótese de que a


tendência geral a enxergar na obra “virtudes exclusivamente positivas” não
corresponde a um mero “acidente da recepção”. O ensaísta argumenta que a
identificação dos intérpretes com o texto, fato que compromete o “gesto de
relativização que implica toda crítica”, “manifesta de maneira decisiva o modo
de ser mais íntimo da obra”, o “princípio de hibridização”, assim descrito:
“vigência simultânea de dois regimes de relação sujeito-objeto – um que
supõe a distinção entre sujeito e objeto ou, se se quiser, o mesmo e o outro,
e um segundo que supõe a indistinção de ambos”. Observando a constituição
da consciência do narrador, Pasta procura demonstrar que esse princípio de
passagem do mesmo ao outro define um movimento de “formação
supressiva” do narrador-protagonista, que repercute também na leitura.
Vincado por uma série de contradições (“livre e dependente; homem de lei e
de mando, de contrato e de pacto; letrado e iletrado – moderno e arcaico”),
Riobaldo o tempo todo “se ‘forma’ passando no seu outro”. Lembrando a
lógica que o próprio narrador enuncia – tudo é e não é – o crítico nota que, na
medida em que ele se constitui como “mutação contínua”, “vem a ser no e
pelo movimento mesmo em que deixa de ser: ele se forma suprimindo-se”. A
estrutura da recepção do livro é determinada pela mesma dinâmica: “O
Grande sertão, também ao leitor ele o forma suprimindo-o, isto é,
simultaneamente ele o concebe como alteridade e o suprime enquanto tal”;
somos absorvidos em “um mundo que simultaneamente nos constitui e nos
abole, baralhando os limites que nos separam dele”. Se o narrador pede a
todo momento a opinião de seu interlocutor, numa atitude que parece

33
José Antonio Pasta Jr., O romance de Rosa – temas do Grande sertão e do Brasil. Novos Estudos
CEBRAP, nº 55, p. 62.

27
salvaguardar os limites da alteridade, ao mesmo tempo, a voz desse outro é
sistematicamente suprimida, encontra-se amalgamada à narração, de tal
modo que o leitor acaba por se converter em “uma espécie de duplo do
narrador”. Com isso, do ponto de vista da recepção, o romance de Rosa se
apresenta como uma aporia, “parece esperar que a crítica, renunciando ao
seu enleio nessa duplicidade hipnótica” resolva “o dilema insolúvel de
sucumbir a um encantamento e ao mesmo tempo denunciá-lo”. 34 O ensaio
de Pasta alerta para o fato de que questões de longo alcance permanecem
em aberto enquanto a crítica não encarar de frente esse desafio, uma vez
que o hibridismo "constitui uma espécie de marca de nascença do próprio
país”.

Nação colonial e pós-colonial, o Brasil já surge na órbita do capital e como


empresa dele, mas se estabelece e evolui com base na utilização maciça,
praticamente exclusiva e multissecular, do trabalho escravo. Essa
contradição de base forma uma espécie de enigma sociológico que as
ciências humanas permanecem a interrogar, entre nós. (...) Ao longo de
séculos, e de um modo que nunca superaram completamente seja a
Independência, sejam as sucessivas modernizações conservadoras, o Brasil
praticou a junção contraditória de formas de relações interpessoais e sociais
que supõem a independência ou a autonomia do indivíduo e sua
dependência pessoal direta.
Assim, a contradição e as infinitas complicações que derivam do fato de
que a alteridade – ou a autonomia – do outro seja ao mesmo tempo
reconhecida e negada, pressuposta e inconcebível, constituem em
profundidade o imaginário paradoxal das relações interpessoais e
intersubjetivas no Brasil. Estas são, naturalmente, matéria literária – em
especial, matéria de romance – e as formas literárias brasileiras não cessam
de atualizá-las, de um modo que a crítica, em geral, ainda está longe de
35
acompanhar.

Aqui, por ora, o que mais interessa no ensaio de José Antonio Pasta
Jr. é esse equacionamento entre configuração do romance e atitude da crítica
em relação a ele – com foco nas implicações que tem em ambas “o modo de
produção que diz respeito à nossa formação histórica”. O reconhecimento da
equivalência entre a lógica de base de uma obra divisora de águas na
34
Ibid., p. 62-69.
35
Ibid., p. 67.

28
literatura brasileira e a lógica que rege o trabalho de sua interpretação
convida a pensar a singularidade da alta cultura no Brasil e as injunções a
que ela responde. Em certa medida, a reflexão de Pasta repõe, noutros
termos, aquela questão a respeito da posição “sumamente ambígüa” do
letrado brasileiro que se encontrava na perspectiva de Walnice Nogueira
Galvão em As formas do falso.36
Esse tipo de questionamento foi o que motivou a pesquisa da qual
resulta esta tese. Que valores e pressupostos subjazem às visões do Brasil
atribuídas ao romance? Em que medida tais valores e pressupostos
determinam o sentido proposto para o livro e, por extensão, para a
experiência nacional? A análise dos textos interpretativos procura localizar os
fatores implicados na constituição de avaliações que recaem tanto sobre a
obra quanto sobre a realidade a ela relacionada, considerando os contextos
em que surgiram as interpretações e os recursos com que foram elaboradas
– referências manifestas ou não, escolha de aspectos para estudo, modo de
articulação dos argumentos, seleção de contribuições de predecessores etc.
O melhor modo encontrado para apresentar essa reflexão
metacrítica37 foi a aliança entre cronologia e foco em tópicos que parecem
cruciais no conjunto da recepção de Grande sertão: veredas levado em
conta. Na linha do tempo, ressaltam-se os resultados dos encaminhamentos
e das elisões de determinados juízos, do descarte de certos achados críticos
e da eleição de outros. O contraste entre o trabalho das sucessivas gerações
ajuda a evidenciar as motivações das escolhas, o significado que elas têm
em face dos contextos nos quais se efetuaram e o papel que
desempenharam na definição de direcionamentos para a avaliação do

36
Ver acima p. 17-18.
37
Sobre o conceito de metacrítica, ver o livro de Marc Jimenez, La critique: crise de l’art ou consensus
culturel? (p. 17-23), no qual o autor defende a importância do propósito metacrítico. Expressão surgida
no ambiente anti-racionalista do Sturm und Drang, em obras que questionavam pressupostos da crítica
kantiana, “metacrítica” não se reduz a um mise en abîme de uma crítica da crítica, como pode parecer
a princípio. Quem põe em xeque os critérios em nome dos quais uma crítica é formulada, obriga-se
necessariamente a examinar a validade dos critérios que o autorizam a um tal julgamento – e isso
resultaria na esterilidade de um questionamento infindável de critérios, pois seria necessária sempre
uma outra instância crítica, que avaliasse os pressupostos da própria autocrítica, e assim por diante.
Precisamente por seu caráter auto-reflexivo, a metacrítica não remete indefinidamente a uma instância
primeira de legitimação, a um dogma que oriente o questionamento. É na dialética entre crítica e
criticado que reside seu radicalismo. Seu propósito não é normativo, sua função não é decidir até onde
vai a exatidão ou a imprecisão de uma interpretação, simplesmente julgar o julgamento. Sua prioridade
consiste em refletir sobre o que há de irrefletido nas proposições que examina, pôr em questão os
parâmetros aceitos de antemão no ato crítico, pôr em discussão pré-juízos que determinaram a
avaliação da obra estética.

29
romance. Por outro lado, eventualmente são necessárias idas e vindas no
tempo para lembrar como certas preocupações são constantes entre os
críticos que participam desse debate feito de algumas questões deixadas em
aberto e outras retomadas por novos ângulos.
Embora o objetivo deste estudo não seja a elaboração de uma nova
leitura de Grande sertão: veredas, as considerações sobre sua fortuna crítica,
em algumas passagens, dão ensejo a hipóteses sobre o livro. Às vezes, a
sondagem das possibilidades de interpretação abertas por determinadas
conclusões ou sugestões contidas nos textos comentados contribui para a
análise dos fatores que interferiram no andamento da discussão. É o caso
das digressões que ocorrem quando a questão é o fluxo de
continuidade/descontinuidade no pensamento crítico. Para compreender
melhor o que motivou um intérprete a passar ao largo de certas formulações
ou referências e assimilar outras ao seu discurso, para identificar o que está
implicado nessas decisões, é útil conferir até onde poderia conduzir aquilo
que se privilegia e, principalmente, o que se descarta. O procedimento
adotado em tais passagens do texto interpretativo ao literário é bem comum:
toma-se determinada proposição para perscrutar seus possíveis
desdobramentos em face de trechos, elementos constitutivos ou
características da obra que não apareceram (ou que não foram ressaltados)
na enunciação do intérprete. Não se trata de fazer prova dos nove com as
interpretações, recorrendo ao seu objeto a fim de verificar o que há de
acertado ou equivocado nelas. Em geral, o objetivo dessas incursões ao texto
de Guimarães Rosa é sondar a potência de certos achados críticos talvez
subaproveitados. Elas são motivadas também pelo fato de que – como já
devem ter sugerido os últimos comentários sobre os estudos de Walnice
Nogueira Galvão e de José Antonio Pasta Jr. – durante o processo de
pesquisa o próprio romance de Guimarães Rosa converteu-se em referência
para a análise do percurso recente da crítica literária que procura pensar o
Brasil. Impasses inerentes à tentativa de entendimento do país por meio da
literatura aparecem ressaltados na “sombra do letrado brasileiro” que Walnice
Galvão viu delineada no livro. Certos matizes da condição em que se
constroem as reflexões em estudo parecem estar figurados no próprio
romance – na trajetória do protagonista, na personalidade do narrador, na

30
situação em que se dá a narrativa: o jagunço letrado frente a um interlocutor
urbano silenciado, cena que implode, sem maniqueísmo nem mera inversão
de posições, a dicotomia de um encontro arquetípico em nossa formação
literária – o intelectual diante de uma voz do “povo”, registrando-a ao seu
modo na escrita.

31
1

A TRANSCENDÊNCIA DO REGIONAL

Quando Guimarães Rosa surgiu na cena literária, com Sagarana, em


1946, a primeira providência dos críticos foi compará-lo com a tradição da
prosa regionalista. Havia pouco tempo que o regionalismo, viés tão presente
na literatura nacional desde o período romântico, tinha atingido um alto
patamar estético com o romance nordestino de 30, que ocupou o centro das
atenções e discussões literárias. No primeiro momento, os elogios a
Sagarana partiram da constatação de que aquelas histórias ambientadas no
sertão mineiro inovavam o modo de ficcionalizar experiências distantes dos
centros de alta cultura, fugindo tanto ao lugar-comum da exploração realista
do pitoresco quanto às soluções encontradas pelos melhores prosadores
brasileiros da década anterior. Um pequeno artigo de autor desta geração, já
então consagrado, sintetiza o ânimo positivo com que a intelectualidade
brasileira recebeu o livro de estréia de Guimarães Rosa. Antes mesmo de lê-
lo, José Lins do Rego (fiando-se nas avaliações de Paulo Dantas, Graciliano
Ramos e Álvaro Lins) aposta que se trata de “um caso literário”, “coisa muito
séria”. Propõe-se à leitura “com disposição para pisar em terra nova”, uma
vez que “o romance e o conto, no Brasil, andavam a se repetir”.1

1
José Lins do Rego, Sagarana. Correio Paulistano, 26 abr. 1946, p. 4.

32
Menos de um mês depois, já tendo lido os contos, o autor de Fogo
morto revê sua predisposição inicial, fazendo uma ressalva à celebração do
novo escritor – “O que não me convence é a afirmação de que a forma
literária do Sr. Rosa seja uma terra nova, um mundo à vista, como nunca
existira”. Põe em pé de igualdade os textos em questão e os feitos por
Monteiro Lobato e Luiz Jardim, e critica o tipo “intervenção do autor” que se
verifica nos momentos em que ocorre “pausa na corrente da narração para
que o Sr. Guimarães Rosa apareça com a sua erudição botânica e os seus
conhecimentos zoológicos. Passa-se assim da boa e telúrica literatura, para
uma quase pedante exibição de detalhes que nos enfada”.2 Nesses
comentários, José Lins do Rego posiciona-se com relação a tópicos que
geraram polêmica nos círculos literários da época: a linguagem peculiar de
Rosa, o valor de Sagarana no confronto com os resultados alcançados por
autores que o precederam. Antonio Candido, numa resenha quase o tempo
todo elogiosa, também assinala um “certo pendor verboso do autor”;3
Graciliano Ramos, no mesmo artigo em que menciona “certa dissipação
naturalista” nos contos, valoriza a construção de um “diálogo
rebuscadamente natural”, alcançada por “admiráveis qualidades” (como a
vigilância na observação e a honestidade na reprodução dos fatos) e
especula que tais qualidades encontrariam “campo mais vasto” em um
romance;4 Rosário Fusco, recorrendo à comparação com Mário de Andrade,
avalia a questão da linguagem nos escritos deste como uma “advertência”
válida para o autor recém-chegado – “[Mário] obstinado em atingir o remate
proposto, isto é, uma língua brasileira antes de sua elaboração subconsciente
coletiva, antes da consagração do povo (...) caiu no estilismo, passou a vida
a escrever num dialeto próprio, mas antinatural e anticientífico,
antipsicológico e antinacional” – e questiona o caráter inovador que tantos
críticos notaram em Sagarana (“Sinceramente, não sei como sentir nesse
livro a ‘novidade’ que lhe emprestam”).5 Com relação à comparação com a

2
Id., Sagarana. O Globo, 10 maio 1946.
3
Antonio Candido, Sagarana. In: Textos de intervenção, p. 189.
4
Graciliano Ramos, Conversa de bastidores, A casa, jun. 1946, p. 26-27. É curioso o caráter
retrospectivamente profético que assume no artigo a percepção de que as qualidades da prosa de
Guimarães Rosa teriam ainda maior rendimento na forma de romance: “Certamente ele fará um
romance que não lerei, pois, se for começado agora, estará pronto em 1956, quando meus ossos
começarão a dissipar-se” (p. 27).
5
Rosário Fusco, Entre a perfeição e a pândega. A vanguarda, 21 jun. 1946.

33
ficção regionalista, ao contrário de José Lins, muitos elogiam na criação de
Guimarães Rosa justamente o fato de se distinguir dos predecessores, de
conferir nova dimensão ao universo sondado por eles. Dois exemplos: Nelson
Werneck Sodré afirma que, em face das criaturas de Guimarães Rosa, as de
Afonso Arinos “parecem de palha”, o que por si “define, ao que parece, a
importância de Sagarana”;6 para Oswald de Andrade, que considera o autor
mineiro e Clarice Lispector sucessores da “alta especulação literária” a que
ele e Mário se dedicaram (cujo curso, a seu ver, foi perturbado “pelos búfalos
do Nordeste”),7 o “jecacentrismo” inaugurado por Monteiro Lobato só teria
interesse, em meados da década de 1940, no “terno novo de um Guimarães
Rosa”.8
No cômputo geral das polêmicas, a recepção inicial de Sagarana foi
muito positiva. Álvaro Lins e Antonio Candido, que eram então críticos-
titulares em jornais de grande circulação nos dois epicentros da difusão
cultural no país – Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente – registraram
em resenhas constantemente lembradas a expectativa de que o livro, em
face da produção recente, estivesse abrindo um caminho original e
promissor, com meios que incluíam os da expressão regional.
Lins gozava de grande prestígio, consolidado em quase dez anos de
jornalismo literário (primeiro no Diário da Manhã de Recife, depois nos
cariocas Diário de Notícias e Correio da Manhã) e referendado pela posição
de Professor Catedrático de Literatura Brasileira do Colégio Pedro II. Em
1946, quando saiu Sagarana, a série de compilações de suas resenhas já
estava no quarto volume. Vinha assistindo atentamente ao andamento da
literatura brasileira que lhe era contemporânea. Foi o primeiro a manifestar,
no Correio da Manhã de 12 de abril de 1946, a empolgação com o
surgimento de “uma grande obra que amplia o território cultural de uma
literatura, que lhe acrescenta alguma coisa de novo e insubstituível”. Note-se

6
Nelson Werneck Sodré, Vida literária. Correio paulistano, 01 jun. 1952.
7
Cf. Oswald de Andrade, Tentativa. Atibaia, ano 2, nº 6, fev. 1950. Ver também Prosa e Poesia.
Correio da manhã, 10 out. 1952.
8
Id., Uma carreira de romancista. Correio da manhã, 08 out. 1948. Se desde o momento inicial da
recepção de Guimarães Rosa, tem sido freqüente a comparação com Mário de Andrade e com a prosa
regionalista, até hoje pouco se investiu em confrontar sua obra com o pensamento de Oswald de
Andrade. Nas pastas da série Recortes, sub-série Recortes sobre JGR, do Arquivo João Guimarães
Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros (USP), há alguns textos, reunidos por Rosa, nos quais Oswald
tece breves comentários sobre os escritos do autor mineiro.

34
que o “novo e insubstituível” celebrado pelo crítico é aferido por meio da
comparação com a ficção regionalista precedente:

Todavia o valor dessa obra provém principalmente da circunstância de não


ter o seu autor ficado prisioneiro do regionalismo, que o teria conduzido ao
convencional regionalismo literário, à estreita literatura das reproduções
fotográficas, ao elementar caipirismo do pitoresco exterior e do
simplesmente descritivo. Apresenta ele o mundo regional com um espírito
universal de autor que tem a experiência da cultura altamente requintada e
intelectualizada, transfigurando o material da memória com as potências
criadoras e artísticas da imaginação, trabalhando com um luxuriante,
recheado, abundoso instrumento de estilo. Em Sagarana, temos assim
regionalismo com um processo de estilização, situando-se, portanto na linha
do que, a meu ver, deveria ser o ideal da literatura brasileira na feição
regionalista: a temática nacional numa expressão universal, o mundo ainda
bárbaro e informe do interior valorizado por uma técnica valorizadora de
9
representação estética.

Antonio Candido, àquela altura, também firmava seu nome como


referência para a avaliação dos novos rumos da criação literária nacional.
Também já havia saído, em 1945, sua primeira coletânea de artigos (Brigada
ligeira), em que preponderam textos sobre a narrativa brasileira dos anos
1940, antes publicados na coluna Notas de Crítica Literária (São Paulo, Folha
da Manhã, jan. 1943 – jan. 1945). No mesmo ano em que deixou a Folha,
defendeu a tese de livre-docência O método crítico de Sílvio Romero, um
passo decisivo para a carreira nas Letras do jovem sociólogo que, em 1941,
havia ajudado a fundar a revista Clima e assumido a sessão de crítica
literária no periódico. Assim como Álvaro Lins, Candido mantinha-se atento à
produção contemporânea. Para analisá-la, buscava somar ao bom manejo
das categorias tradicionais de abordagem do texto uma visão direcionada às
peculiaridades da vida cultural no Brasil, buscava trazer para a reflexão sobre
nossa literatura o singular acúmulo intelectual cultivado aqui e que, com seus
erros e acertos, foi resultado de injunções locais relevantes, influentes na
realização artística e naturalmente fora do escopo das matrizes teóricas que
desde sempre nortearam nossa alta cultura de colônia e de país periférico –

9
Alvaro Lins, Uma grande estréia. In: Os mortos de sobrecasaca, p. 260.

35
daí a tese sobre Sílvio Romero. Já naquele momento, exercitava os principais
procedimentos que viriam a fazer do conjunto de sua prática um raro exemplo
de adequação nacional e originalidade crítica: a leitura simultaneamente
colada ao texto e projetada tanto para o entorno histórico geral quanto para
os processos de formação do sistema literário nacional, a perspectiva voltada
para a relação entre as formas da literatura e da experiência social (ver p. 11-
15 da INTRODUÇÃO).
Na resenha sobre Sagarana (Diário de S. Paulo, 11 jul. 1946), Antonio
Candido reitera, em termos gerais, a apreciação de Álvaro Lins quanto ao
lugar de destaque que o livro deve merecer no panorama da literatura
brasileira. São duas avaliações muito positivas, irmanadas em suas
manifestações de empolgação com o aparecimento de um autor que “entra
na vida literária com o valor de um mestre na arte da ficção” (A. Lins), que
“vai reto para a linha dos nossos grandes escritores” (A. Candido). A
diferença, certamente mais evidente a posteriori, fica por conta do grau de
complexidade, e de relevância para o entendimento da obra, dos elementos
que cada um dos críticos arregimenta na argumentação.
Álvaro Lins começa com um excurso sobre a tarefa de crítico-titular,
ressaltando sua satisfação com o “excepcional acontecimento” que teve o
prazer de anunciar. Segue-se um comentário sobre a maturidade artística do
prosador e depois uma descrição da estrutura do livro e do que há nele de
documental e representativo do interior de Minas Gerais. É nesse passo que
aparecem as observações a respeito do traço regionalista transcritas acima.
O crítico parte logo para a enunciação dos que seriam os principais
elementos e características de composição do livro como um todo e de cada
uma das histórias que o integram. Essa análise, que ocupa mais da metade
do artigo, aborda diversos aspectos da “técnica valorizadora de
representação estética” capaz de conferir “expressão universal” à “temática
nacional”, mas não chega a evidenciar quais são os pontos de continuidade e
quais os de ruptura com a tradição que a obra de alguma maneira lembra.
Fica a impressão de que apenas a temática interiorana responde pelo vínculo
entre Sagarana e a “feição regionalista” existente na literatura brasileira.
Antonio Candido fundamenta de outro modo seu juízo na resenha
publicada três meses depois da escrita por Lins. Desenvolve toda sua análise

36
a partir da questão do regionalismo, cuja relevância para a avaliação da obra
explicita já no primeiro período do artigo: “O grande êxito de Sagarana (...)
não deixa de se prender às relações do público ledor com o problema do
regionalismo e do nacionalismo literário”. Para defender essa hipótese, antes
mesmo de qualquer observação sobre os textos de Guimarães Rosa, explica
as circunstâncias em que floresceu o prestígio da expressão regionalista
entre nós. Vale a pena reproduzir a passagem, exemplo tanto de amplitude
na perspectiva com que o crítico encara o fato literário (levando em conta a
atitude do público e as posições de autores influentes), quanto de perspicácia
na identificação de processos históricos relevantes para o andamento da
literatura – tudo isso apresentado com grande capacidade de síntese e
clareza:

Há cerca de trinta anos, quando a literatura regionalista veio para a ribalta,


gloriosa, avassaladora, passávamos um momento de extremo federalismo.
Na intelligentsia, portanto, o patriotismo se afirmou como reação de unidade
nacional. A Pátria, sempre com pê maiúsculo, latejou descompassadamente,
e os escritores regionais eram procurados como afirmação nativista. (...)
A reviravolta econômica nos grandes Estados, subsequente à crise de
1929, alterou os termos da equação politica, e a descentralização
federalista, depois de alguns protestos nem sempre platônicos, foi cedendo
passo à nova fase centralizadora, exigida quase pelo desenvolvimento da
indústria. Processo cuja aberração foi o Estado Novo, assim como a
Constituição castilhista tinha sido a aberração do processo anterior.
Para compensar – como às vezes acontece – a intelligentsia se virou
para o bairrismo. Antes, quando a palavra de ordem política e o sentimento
geral eram provincianos, foi chique ser nacionalista, e o porta-voz mais
característico da tendência foi Olavo Bilac. Agora, que as forças unitárias
predominam e já se vai generalizando um certo sentimento do todo – deste
todo de repente vivo e existente por meio do rádio e do aeroplano – agora a
moda é ser bairrista, e o porta-voz mais autorizado da tendência é o sr.
Gilberto Freyre, pai da voga atual da palavra “província”. (...) O maior elogio
do dia é o “sabor de terra”, traduzido do francês, já se vê, e a maior ofensa,
10
dizer a um escritor que ele “não tem raízes”.

10
Antonio Candido, op. cit., p. 183-184.

37
Mais do que histórico de movimentos na interseção entre vida política
e literária brasileiras, esses parágrafos têm na resenha uma função
específica para a avaliação que ainda será enunciada: trazem à tona as
condições implicadas na configuração dos critérios mais elementares com
que a sensibilidade da época tendia a julgar o livro. No passo seguinte, fica
evidenciada a legitimidade desse procedimento, pois o valor que o crítico
atribui à obra é afirmado por meio do contraste com um tipo de avaliação
previsível:

Natural, em meio semelhante, o alvoroço causado pelo sr. Guimarães


Rosa, cujo livro vem cheio de “terra” (...).
Mas Sagarana não vale apenas na medida em que nos traz um certo
sabor regional, mas na medida em que constrói um certo sabor regional, isto
11
é, em que transcende a região.

Daí por diante a análise se concentra no trabalho de Rosa, toda


perpassada pelo viés do problema do regionalismo e do nacionalismo
literário. Isto confere uma notável unidade ao artigo, garantindo a coesão dos
argumentos na defesa das hipóteses a respeito dos contos. O mais
importante na resenha de Candido, do ponto de vista da recepção de
Guimarães Rosa, é o fato de, já num primeiríssimo momento, termos contado
com uma apreciação capaz de, ao mesmo tempo, perceber dois aspectos
estruturais na composição de Sagarana e de avaliar o peso destes tanto para
a configuração singular da obra quanto para a definição do lugar que ela
poderia ocupar no conjunto da literatura nacional. O primeiro desses
aspectos é a seleção analítica de elementos da realidade local e sua síntese
na ficção, isto é, um original trabalho de construção do universo em que
transcorrem as histórias (“menos uma região do Brasil do que uma região da
arte”). O segundo aspecto estrutural é a ruptura com a distinção entre sujeito
e objeto na enunciação, com a distância entre o autor culto e a experiência
dos matutos. Segundo Candido, a conjugação de um com outro resulta na
transcendência do “critério regional” – nem negação nem assimilação
indiscriminada de parâmetros correntes, mas sua incorporação como herança
cultural para a elaboração de uma expressão estética capaz de fazer com

11
Ibid., p. 184-185. Itálicos do autor.

38
que a experiência particular, local, revista-se da maior carga de significação,
encontre ressonância na experiência humana em geral. Isso passa, inclusive,
por encarar os obstáculos que as convenções herdadas impõem à criação de
“uma vivência poderosamente nossa e ao mesmo tempo universal”.
Guimarães Rosa não se furta a esses desafios e consegue, na avaliação do
crítico, superá-los um a um: a própria temática regional, “batida e
aparentemente esgotada”; “o exotismo do léxico, recurso geralmente fácil,
abusado pelos escritores gaúchos”; “a tendência descritiva, quase de
composição escolar”, típica dos jornais do interior; “o capricho meio oratório
do estilo”. Inscrevendo em sua prosa uma linha forte na história de nossa
literatura, assimilando-a para ir além, o escritor ingressa no sistema literário
nacional como uma força ao mesmo tempo de síntese e de transformação:

(...) o sr. Guimarães Rosa como que iluminou, de repente, todo o caminho
feito pelos seus antecessores. (...) De Bernardo Guimarães a ele, passando
por Afonso Arinos, Valdomiro Silveira, Monteiro Lobato, Amadeu de Queirós,
Hugo de Carvalho Ramos, assistimos a um longo movimento de tomada
de consciência, através da exploração do meio humano e geográfico. É
a fase do pitoresco e do narrativo (...). Fase ultrapassada, cujos produtos
envelheceram rapidamente (...). Fase, precisamente, em que os escritores
trouxeram a região até o leitor, conservando, eles próprios, atitude de sujeito
e objeto. O sr. Guimarães Rosa construiu um regionalismo muito mais
autêntico e duradouro, porque criou uma experiência total em que o
pitoresco e o exótico são animados pela graça de um movimento interior, em
que se desfazem as relações de sujeito a objeto para ficar a obra de arte
12
como integração total de experiência.

A percepção de que Guimarães Rosa opera uma transcendência do


regional, assinalada na resenha sobre Sagarana, parece constituir a base da
qual se projetam todas as reflexões posteriores de Antonio Candido sobre os
livros do escritor. Torna a esse tópico nos escritos sobre Grande sertão:
veredas e nas breves avaliações do conjunto da obra registradas em ensaios
da década de 1970. Em A nova narrativa, reputa a Rosa o mérito de “fazer a
síntese final das obsessões constitutivas da nossa ficção: a sede do
particular como justificativa e como identificação; o desejo do geral como

12
Ibid., p. 186. É meu o destaque em negrito, os itálicos são do autor.

39
aspiração ao mundo dos valores inteligíveis à comunidade dos homens”.
Afirma que o autor operou uma “explosão transfiguradora do regionalismo”,
tomando-o por dentro, incorporando o “pitoresco regional mais completo e
meticuloso, e assim conseguindo anulá-lo como particularidade, para
transformá-lo em valor de todos” – o que constitui, para Antonio Candido,
uma “etapa mais arrojada” na execução do projeto machadiano explicitado
em Instinto de Nacionalidade. Ele lembra que Machado de Assis recomendou
resistência à “tentação do exotismo (quase irresistível no seu tempo)” para
que se elaborasse literatura “de grande significado”; Guimarães Rosa,
segundo o ensaísta, tentou atingir esse resultado sem contornar o perigo,
fazendo do mundo rústico do sertão “matéria, não de regionalismo, mas de
ficção pluridimensional, acima do seu ponto de partida contingente, (...)
mostrando como é possível superar o realismo para intensificar o senso do
real”.13 Alguns anos antes, em Literatura e subdesenvolvimento, Candido já
havia inscrito na categoria do “super-regionalismo” a “obra revolucionária de
Guimarães Rosa, solidamente plantada no que poderia chamar de a
universalidade da região”. Situa então o autor mineiro numa geração de
escritores brasileiros e hispano-americanos que

(...) corresponde à consciência dilacerada do subdesenvolvimento e opera


uma explosão do tipo de naturalismo que se baseia na referência a uma
visão empírica do mundo; naturalismo que foi a tendência estética peculiar a
uma época em que triunfava a mentalidade burguesa e correspondia à
14
consolidação das nossas literaturas.

Quase trinta anos depois da resenha sobre Sagarana, em Literatura e


subdesenvolvimento, Candido reafirma que há vínculo entre a singular
expressão rosiana e um tipo de consciência acerca do país manifesta nela,
agora associando a passagem do regional ao universal, a relação da escrita
com o problema do regionalismo e do nacionalismo literário, à peculiaridade
da visão da matéria brasileira na ficção do autor.
Na resenha com que saudou o lançamento de Grande sertão: veredas
(Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, 06 out. 1956), Antonio

13
Id., A nova narrativa. In: A educação pela noite, p. 207-208. Itálico meu.
14
Id., Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite, p. 162. Itálico meu.

40
Candido também assinala como “característica fundamental” do livro
comentado a “transcendência do regional”. Dez anos depois de seu primeiro
contato com a prosa da Guimarães Rosa, o crítico reencontrou na história de
Riobaldo o mesmo tipo de operação estética que observara nos contos de
estréia do escritor: o inventivo “aproveitamento literário do material observado
na vida sertaneja” concorrendo para fazer do romance um dos “raros
momentos em que a nossa realidade particular brasileira se transforma em
substância universal”.15 Assim como fizera com Sagarana, rapidamente situa
Grande sertão: veredas na tradição literária do país. Com sua visão
historiográfica focada pelo prisma da dialética local-universal, identifica um
movimento de aproximação e distanciamento com relação ao
documentarismo arrogante da “ficção regionalística”, de um lado, e, de outro,
o tom “voluntariamente ingênuo” de obras modernistas como Macunaíma. A
continuidade na reflexão do crítico evidencia-se no fato de a avaliação dos
escritos de Guimarães Rosa ter como referência a obra de Mário de Andrade.
Este é lembrado, no texto de 1946, em um parágrafo a respeito do trabalho
com a língua que serviria igualmente para caracterizar a publicação de 1956:

Sagarana nasceu universal pelo alcance e pela coesão da fatura. A


língua parece ter atingido o ideal da expressão literária regionalista. Densa,
vigorosa, foi talhada no veio da linguagem popular e disciplinada dentro das
tradições clássicas. Mário de Andrade, se vivo fosse, leria, comovido, este
resultado esplêndido da libertação lingüística, para que ele contribuiu com a
16
libertinagem heróica da sua.

As balizas postas nos dois extremos da resenha sobre Grande sertão:


veredas – a comparação com o regionalismo logo após as observações
iniciais, a menção a Mário de Andrade nas últimas linhas – são, elas
mesmas, próximas (no empenho em incorporar vozes populares estranhas à
expressão literária, culta, urbana, litorânea) e distantes (sobretudo nos
procedimentos com a linguagem: realismo regionalístico x experimentação
estética dos primeiros modernistas). É como síntese desses extremos em
comunicação que Candido explica o procedimento de Guimarães Rosa com a
matéria sertaneja: misto de “anotação e construção”. A partir de uma analogia
15
Id., No Grande sertão. In: Textos de intervenção, p. 190-192.
16
Id., Sagarana, op. cit., p. 186.

41
com a estética musical de compositores como Bela Bartók (que “infundiram o
espírito do ritmo e das melodias populares numa obra da mais requintada
fatura”), assinala que o resultado de alto nível literário alcançado pela
inventividade do escritor é tributário da descoberta das “leis mentais e sociais
do mundo que descreve”.17 Note-se que, como viria a afirmar em Literatura e
subdesenvolvimento, o crítico sugere que se manifesta na figuração literária
alguma tomada de consciência em relação à realidade específica de uma
sociedade. Logo no ano seguinte, na abertura do ensaio O homem dos
avessos, recorre novamente à analogia com a música de Bartók, desta vez
para caracterizar o efeito estilístico alcançado pela peculiar articulação de
“realidades expressionais e humanas” em Grande sertão: veredas – a
“impressão de que o compositor [no caso, o escritor] se havia posto no
nascedouro da inspiração do povo, para abrir um caminho que permite
chegar à expressão universal”. O método de “anotação e construção” consta
como fator responsável pela recriação de uma experiência local em termos
compatíveis com a sensibilidade universal: “A experiência documentária de
Guimarães Rosa, a observação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e pelo
nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do rústico”, todo o
aperfeiçoamento das técnicas próprias do registro naturalista põe-se a
serviço de uma imaginação criadora capaz de converter a matriz regional em
metonímia dos “grandes lugares comuns, sem os quais a arte não sobrevive:
dor, júbilo, ódio, amor, morte, – para cuja órbita nos arrasta a cada instante,
mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade o Sertão é o
Mundo”.18
“O Sertão é o Mundo.” A frase posta no início do ensaio é a mesma
que o encerra. Ela sintetizou de antemão a amplitude de significação que
veio a ser atribuída a Grande sertão: veredas. Daquele momento para cá (O
homem dos avessos, com o título O sertão e o mundo, saiu pela primeira vez
em 1957), o relato do ex-jagunço no sertão mineiro ganhou diversas
conotações referentes à experiência humana em geral, e não apenas à de
um tipo regional em espaço geográfico mais ou menos demarcado. O que

17
Id., No Grande sertão, op. cit., p. 191.
18
Id., O homem dos avessos. In: Tese e antítese, p. 122. Sobre a impressão de que a narrativa provém
da “inspiração do povo”, ver, adiante, os comentários a respeito do livro de Willi Bolle, grandesertão.br,
no CAPÍTULO 5.3.

42
tem variado são os significados propostos para a travessia efetuada por
Riobaldo e a lógica com que cada intérprete procura explicar, no escopo de
sua enunciação do sentido proposto para a narrativa, a convivência entre
regional e universal, a transposição de um a outro.

43
1.1 – UM REGIONALISMO CUJA REFERÊNCIA É O GLOBO

Assim como se percebeu, de saída, que o diálogo com a tradição


regionalista e com a “inspiração do povo” são fatores decisivos na
configuração de Grande sertão: veredas, logo também a crítica começou a se
esforçar por esclarecer as peculiaridades do livro em face das criações
provindas da alta cultura européia e do legado grego no qual se enraíza a
civilização ocidental. As referências convocadas ao longo dos cinqüenta anos
de recepção do romance vão de Homero a James Joyce e Thomas Mann, da
tragédia ática à novela de cavalaria e ao romance de formação. Na maior
parte dos casos, as abordagens em que se efetuam aproximações desse tipo
raramente coincidem com reflexões sobre a manifestação de experiência
brasileira no romance. Em geral, a consideração do universo literário do
Ocidente serve mais para atestar a abrangência ampla das questões
humanas e/ou dos símbolos e recursos de composição articulados na prosa
rosiana. E não é raro que pareça confirmar seu distanciamento em relação a
processos históricos específicos.1
É o que acontece no ensaio Um lance de “dês” do Grande sertão, que
Augusto de Campos publicou em 1959, três anos depois do Manifesto da
Poesia Concreta e de Grande sertão: veredas. Fica flagrante aí um esforço
que se mostrou constante na criação, na crítica e nas formulações teóricas
de nosso Concretismo literário: a tentativa de valorização de determinados
autores brasileiros em face do panorama internacional. No campo da crítica
da literatura feita no Brasil, boa parte da atuação de Augusto e de seu irmão
Haroldo de Campos foi empenhada em ler ou reler os conterrâneos à luz de
critérios estritamente formais de avaliação da produção estética – elaborados
a partir do paideuma (o cancioneiro provençal, Rimbaud, Mallarmé, Pound,
Joyce, Oswald, a poesia russa moderna etc.) e de teóricos (como Charles

1
Uma exceção recente a essa tendência é a tese de Luiz Roncari, O Brasil de Rosa, que toma a
simbologia de matriz grega incorporada ao romance como elemento participante da configuração de
alegorias referentes ao Brasil da Primeira República. Ver, adiante, CAPÍTULO 5.2.

44
Sanders Pierce) que os inspiraram. Com isso, forjaram uma visão
universalista na qual não há lugar para a noção de literatura nacional – por
conseqüência, a interpretação não confere importância à averiguação das
relações entre a experiência local e a conformação do texto.
Em Um lance de “dês” do Grande sertão, a composição narrativa é
abordada a partir de um parâmetro geralmente empregado na crítica de
poesia. O que se prioriza como objeto de interpretação é o ritmo das frases e
a significação que a sonoridade das palavras ganha no conjunto. O que a
análise ressalta no romance é, nos termos da poética de Ezra Pound, que
tanto influenciou a poesia e a crítica concretista, a melopéia – modalidade de
constituição de significação poética que se processa por meio de
“correlações emocionais por intermédio do som e do ritmo da fala”.2 Do ponto
de vista poundiano assimilado pelos concretistas, são menos importantes as
tradicionais categorias de gênero (que, coerentemente, não são convocadas
na análise de Augusto de Campos) do que a hierarquia entre artistas
inventores, mestres, diluidores etc.3 Guimarães Rosa seria, nas palavras de
Campos, um “romancista-inventor”, como James Joyce. E é por meio da
comparação com o trabalho do irlandês que o poeta-crítico procura destacar
a “atitude experimentalista perante a linguagem” do prosador brasileiro.
Assinala que há em comum entre Grande sertão: veredas e Finnegans Wake
certos tipos de procedimentos lingüísticos e estruturais, em especial o
método de “tematização ‘musical’ da narração”, sobre o qual recai o foco de
seu estudo. Primeiro, Augusto de Campos mostra como se dá o “manuseio
‘musical’ dos temas” em Finnegans Wake, depois comenta os “motivos
‘musicais’” de Grande sertão: veredas: “Falamos de uma temática de
timbres”, que “podem elaborar-se a partir de uma frase (‘O diabo na rua no
meio do redemoinho’, ‘Viver é muito perigoso’), ou mesmo de uma palavra
quase sempre situada em posição sintática característica (‘Nonada’, ‘Sertão’,
‘Travessia’)”.4 A fala do narrador é encarada como sistema no qual a
sonoridade dos principais “temas” (frases, palavras ou até um fonema) têm
papel preponderante na construção do sentido do relato. Daí a relevância do

2
Ezra Pound, ABC da Literatura, p. 63. Ver também p. 41.
3
Cf. Ibid., p. 42-43.
4
Augusto de Campos, Um lance de “dês” do Grande sertão. In: Eduardo Coutinho (org.), Guimarães
Rosa, p. 332-334. Itálicos do autor.

45
“lance de dês” que o ensaio, aludindo a Mallarmé, procura valorizar,
afirmando que a “prevalência do fonema D” (de Diadorim e de Demônio) tem
um “correspondente isomórfico no nível semântico da obra”. Dessa
perspectiva que privilegia a melopéia, a significação-chave do texto encontra-
se na “dúvida existencial, a dúvida hamletiana – ser ou não ser – que
Guimarães Rosa equaciona com uma fórmula própria: DEUS OU O DEMO”.
Fórmula que Augusto de Campos vê sintetizada no elemento melopaico em
questão no seu ensaio: “o fonema D é a geratriz a partir da qual se estrutura
a projeção, na linguagem, desse dilema”. Em uma passagem que tornou-se
célebre, são apresentadas as “reverberações semânticas” do dualismo na
constituição do nome ambíguo Diadorim (no eixo positivo: Dia + adora + im;
no eixo negativo: Dia + dor + im). Com outros “temas” do livro repete-se o
procedimento analítico que visa a explicitar a carga significativa de “timbres-
temáticos” e, no conjunto, dar uma amostra do “emaranhado de constelações
sonoras, a tecedura musical do Grande sertão”.5
Essa abordagem conduz à seguinte avaliação da criação de
Guimarães Rosa: sendo ele um inventor, proporciona uma positiva e sensível
“experiência de convívio com as palavras, com as coisas e os seres”. Com
isso, “reabilita o romance brasileiro no seu aspecto estético”, distinguindo-se
dos compatriotas contemporâneos – os “ingenuamente realistas e caricato
regionais”, de um lado e, de outro, “o grupo pretensioso dos intimistas
alienados”. O autor mineiro estaria tão isolado (“muito acima”) da ficção
nacional contemporânea e pregressa quanto próximo de James Joyce (o feito
de Rosa, nos termos do ensaio, “reduz a maior parte da prosa de ficção em
nossa língua ao estado de subliteratura”). Na avaliação de Augusto de
Campos, Guimarães Rosa não chegou ao radicalismo do criador de
Finnegans Wake em matéria de experimentalismo lingüístico, mas tem o
mérito de ser o prosador brasileiro que mais se assemelha à estatura do
grande escritor de Dublin.6
Os critérios que levam Campos a ressaltar a inventividade lingüística
como fator que projeta Rosa ao plano da alta literatura universal são os
mesmos que obliteram a cogitação de hipóteses como: a ruptura com os

5
Cf. Ibid., p. 334-346.
6
Cf. Ibid., p. 348-349.

46
padrões então vigentes na ficção brasileira é completa? Não acrescenta nada
à compreensão da literatura de Guimarães Rosa a reflexão sobre dinâmicas
locais de acumulação literária? Não interessa, para comentar a sofisticação
formal que eleva Grande sertão: veredas ao patamar de grande obra estética,
levar em conta certos processos históricos, como aqueles nos quais se deu a
criação e aqueles aos quais ela remete?
Alguns meses depois de publicado o ensaio de Augusto de Campos,
Roberto Schwarz manifestou-se pela vez a respeito de Grande sertão:
veredas, e também levou em conta a elocução poética na narrativa.7 É
importante observar as diferenças nas abordagens desses críticos influentes,
da mesma geração, e que ao longo de décadas defenderam posições
bastante díspares, freqüentemente opostas na cena do debate literário
nacional. Não que Schwarz, no caso específico dos artigos sobre o romance
de Rosa, estabeleça conexões entre a fatura do texto e o contexto brasileiro,
como veio a fazer em suas célebres teses sobre Machado de Assis. Em
1960, afirma ser “virtude” o fato de a História estar praticamente ausente na
história relatada por Riobaldo. O ponto de interesse, neste passo de nossa
discussão sobre as tentativas de se construir na interpretação do Grande
sertão uma reflexão sobre o Brasil, diz respeito às implicações que pode ter a
visão nacional do crítico, mesmo que em sua apreciação não se evidenciem
considerações sobre a experiência nacional. É para chegar a isso que será
útil comparar as análises feitas por Augusto de Campos e Roberto Schwarz.
O concretista atribui à “atitude experimentalista perante a linguagem”
(expressa na tematização musical da narração) o peso de fator estruturante
do romance, valorizando na elaboração lingüística efeitos totalmente
independentes de qualquer circunstância exterior à elocução – mesmo a
situação em que transcorre a narrativa, a conversa cujo caráter de
comunicação oral poderia integrar considerações referentes à constituição

7
Em abril de 1960, saíram no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo três textos de Schwarz
sobre o romance de Rosa: Grande-Sertão e Dr. Faustus (parte I no dia 09, parte II no dia 23) e Grande-
Sertão em curso (no dia 30). Na coletânea A sereia e o desconfiado (1965), o último, sob o título
Grande-Sertão: a fala, aparece como ensaio isolado, antes daquele em que se reúnem as duas partes
da comparação entre Grande sertão: veredas e Dr. Faustus publicadas em 1960. No volume sobre a
obra de Guimarães Rosa organizado por Eduardo Coutinho para a coleção Fortuna Crítica da editora
Civilização Brasileira (1983), os três artigos foram agrupados sob a denominação Grande sertão:
estudos, mantendo-se a mesma ordem e subdivisão de 1965. As menções feitas aqui a tais escritos de
Roberto Schwarz seguem a segunda edição de A sereia e o desconfiado.

47
das sonoridades, é desconsiderada na leitura. Já Roberto Schwarz trabalha
com a hipótese de que uma das chaves para o modo de ser próprio do
romance, o que lhe confere qualidade de obra-prima, é a original e bem
articulada combinação de gêneros. O último parágrafo de Grande-Sertão: a
fala resume o entrelace entre situação dramática, memória épica e tom lírico
descrito ao longo do artigo:

(...) o relato épico serve uma situação dialógica, trazendo o fluxo para o nível
da palavra falada; revela-se uma dicção narrativa que suspende, pela
extrema segmentação, a estrutura gramatical; do acúmulo segmentar nasce
a dinâmica do discurso, que, por sua vez, como totalidade, localiza o sentido
de cada segmento; este localizar não se confunde com determinar, a relativa
inarticulação dá margem à plenitude do vocábulo; a palavra, símbolo dela
8
mesma, tende a absoluta; é o que chamamos lirismo.

Antes de chegar a essa síntese, o ensaísta havia apresentado o


“desenho lógico da obra” como uma conjunção entre o épico e o dramático
(“responsáveis por sua estrutura e ordenação”), uma “arquitetura narrativa”
que se arma em forma de T: “O contexto indica a situação dramática em
primeiro plano, servida pela memória épica de um dos interlocutores” – o eixo
vertical, mergulhado no passado, no curso das aventuras do jagunço
Riobaldo, é matéria épica que serve de “material de exemplificação” ao eixo
horizontal, que corresponde à situação dramática, ao diálogo acerca da
existência do diabo. Quanto ao gênero lírico, para Schwarz sua presença
constitui “questão de tom” e manifesta “uma atitude em face da linguagem e
da realidade”. O segundo termo dessa definição, (realidade) – ausente da
perspectiva de Augusto de Campos – é, em Grande sertão: a fala,
fundamental para a definição da atitude poética do prosador. Sem ele não há
como avaliar o papel do lirismo na composição. Isso fica evidente no artigo
de Roberto Schwarz antes mesmo de serem explicados os processos pelos
quais a palavra adquire qualidade poética na narrativa, numa passagem que
faz alusão ao stream of consciousness joyceano – e que parece pôr em
xeque os critérios de avaliação pelos quais Campos elogia em Guimarães
Rosa o fato de ser quase um James Joyce nos experimentos lingüísticos.

8
Roberto Schwarz, Grande-Sertão: a fala. In: A sereia e o desconfiado, p. 41.

48
Grande sertão: veredas não se passa no recesso de uma consciência
(...): faz-se do diálogo de duas personagens, entre as duas, no espaço social
que exige a objetivação das relações por meio da língua falada. (...). Em
contraste com a maioria de seus pares na grande literatura contemporânea,
a obra de Guimarães Rosa tem a virtude de colocar o experimento estético
no nível da consciência, de reivindicar para ele a condição acordada. Não
partilha a profunda nostalgia de irracionalismo representada, em última
análise, pela pesquisa exclusiva dos níveis pré-conscientes. Sua audácia é
mais audaz, pois não se escora no caráter informe dos estados anteriores à
9
formulação (...).

Em outras palavras, ainda de Schwarz: o eixo dramático (o “diálogo


visto por uma face” em que se discute o problema do diabo) corresponde à
cena narrativa na qual o fluxo lírico assume o caráter de expressão desperta,
uma vez que transcorre em situação objetiva. Em relação ao eixo épico do
romance (“seu material de exemplificação [...] que se estende para o
passado” de Riobaldo), o lirismo visa a “uma recriação quanto possível
integral da experiência”. O escritor se vale, para conjugar presente e
passado, de “uma espécie de técnica pontilhista” que confere qualidade lírica
ao texto na medida em que preserva a relativa autonomia dos vocábulos na
articulação sintática – na medida em que conforma um discurso em prosa
marcado pela segmentação e pela preponderante coordenação entre
elementos que se articulam, não por sucessão, mas por acúmulo. A solução
peculiar que Guimarães Rosa encontrou para a “tensão entre vocábulo e
sintaxe” responde pela “riqueza expressiva” de seu texto.

O discurso anuncia uma direção, lança uma gestalt que se sobrepõe à


gramática e tem força para incorporar, segundo sua dinâmica de sentido, os
segmentos mais diversos; estes não precisam entrar em conexão gramatical
explícita, podem simplesmente se acumular, guardando seu modo de ser
mais próprio (...); importante não é o desenho lógico da sucessão, mas o
acúmulo; o efeito é dado pelo curto-circuito (recurso poético) entre
segmentos (...).
A atenção como que não se detém no desenho da frase, oscila entre o fluxo
como direção geral e os segmentos isolados. Pela ausência relativa do
mediador (o desenho sintático), aumenta a importância dos extremos. O

9
Ibid., p. 39. Itálicos do autor.

49
mesmo dá-se com relação à palavra. O poder do fluxo não lhe limita a força,
pelo contrário, possibilita que, liberta de conexões gramaticais secundárias,
10
exista mais solitária e apresente mais pleno o seu sentido.

A tonalidade poética da fala de Riobaldo é então definida por meio da


aproximação a uma conceituação de Sartre: “a palavra poética se distingue
da comum por preterir a função utilitária e simbólica, transparente com vista
ao mundo objetivo, em favor da opacidade, do ser símbolo e do gozo dela
mesma”.11
Em Grande-Sertão: a fala, como em Um lance de “dês” do Grande
sertão, não há uma palavra na análise do romance de Guimarães Rosa que
dependa de referência à vida brasileira – afora a avaliação positiva de sua
qualidade estética, esta talvez seja a única semelhança entre as duas
avaliações. Augusto de Campos até se refere a circunstâncias locais, mas
apenas para elaborar uma rápida descrição do campo literário (ver, acima, p.
46), nenhum aspecto da história nacional é convocado para a interpretação
propriamente dita. Tal ponto em comum nos escritos desses dois críticos
chama atenção para uma particularidade da primeira recepção do romance
de Guimarães Rosa. No conjunto das leituras realizadas entre 1956 e 1960,
afirmar a universalidade de sentido e valor de Grande sertão: veredas parece
ser uma tarefa assumida pela crítica. Tanto as sondagens dos aspectos
regionais concorrentes para a realização da empreitada narrativa quanto as
constatações de que nela estão assimilados recursos da tradição literária
ocidental (graças a um engenho criativo de categoria comparável ao de seus
melhores integrantes) parecem querer chamar atenção para uma proeza
estética. Não se evidencia esforço interpretativo para apontar um caráter
nacional na figuração elaborada pelo romancista, para identificar fatores da
história do país que concorram de modo decisivo para a fatura do texto.
Esse traço da crítica de literatura brasileira que recebeu Grande
sertão: veredas em primeira mão pode ser melhor compreendido se
comparado às atitudes de nossos escritores modernos com relação à idéia
de representar artisticamente a nação. Como lembrou Roberto Schwarz num

10
Ibid., p. 39-40.
11
Ibid., p. 41.

50
debate ocorrido em 2001,12 na história brasileira literária recente observa-se o
seguinte contraste: se os momentos fortes do modernismo são nacionais,
escritores marcantes da segunda metade do século XX – Clarice, Rosa e
Cabral – não o são. Os dois últimos mostram-se mesmo acintosamente
regionais e, com isso, em certa medida, fizeram-se mais aceitáveis para o
espírito moderno do que a graça nacionalista tão pitoresca dos modernistas.
O recuo para a região que se observa na sensibilidade artística de
Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, assim como em parte da obra
de Carlos Drummond de Andrade, parece uma alternativa ao patriotismo
cultivado mais programaticamente depois da Semana de 1922. Essa atitude
dos três constitui, segundo Schwarz, uma reação à incorporação de ideologia
patriótica à obra de arte: quando recuam para a região, os escritores vêem-se
livres da carga ideológica que se imiscuía nas expressões de nacionalismo
dos predecessores.
Na seqüência desse comentário, o crítico fez algumas considerações a
respeito da interpretação dos escritos de Rosa, que serão mencionadas
ainda neste capítulo. Por enquanto, essa sua breve observação sobre um
aspecto da dinâmica da literatura brasileira de algumas décadas atrás tem
aqui apenas a função de indicar o quanto o trânsito entre o regional, o
nacional e a universalidade da sensibilidade moderna estava no horizonte do
campo intelectual no Brasil de meados do século XX.
No âmbito da crítica contemporânea ao romance de Rosa, é decisivo o
arranjo de forças entre observação de traços regionais, visão nacional e
projeção para o universal. O mesmo Antonio Candido que valorizou, numa
apreciação inicial de Grande sertão: veredas, a transcendência do critério
regional, a conjugação sertão-mundo – sem atribuir ostensivamente à
experiência sertaneja um caráter de representatividade brasileira –, ao
comentar posteriormente seu primeiro contato com a narrativa,13 disse ter
experimentado a grata satisfação de constatar que seu país era capaz de
produzir uma obra de tal magnitude – “em que a nossa realidade particular

12
Em 18 de maio, durante o I Seminário de Cultura e Literatura Brasileira (Casa da Ciência e
Faculdade de Letras/UFRJ, Rio de Janeiro, 16 a 19 de maio de 2001).
13
Em depoimento ao lado de José Mindlin na abertura do Seminário Internacional 50 anos de Grande
sertão: veredas e Corpo de baile (15 de maio de 2006, Instituto de Estudos Brasileiros/Universidade de
São Paulo).

51
brasileira se transforma em substância universal”, como escreveu na resenha
de 1956.14 Ainda que, nos ensaios de 1957 e de 1966 (suas duas análises
mais detalhadas deste “momento” que lhe pareceu “raro” em nossa história
literária), o ponto de vista nacional não se manifeste como tentativa de
demonstração da existência de algum retrato ou alegoria do Brasil no
romance de Guimarães Rosa; ainda que Candido concentre-se em abordar a
articulação entre a matéria regional e a constituição de um texto cuja
significação diz respeito à humanidade em geral, isso não significa que a
dimensão nacional estivesse ausente de sua perspectiva. Ela figura como
critério fundamental na atitude do crítico que três anos depois de lançado
Grande sertão: veredas publicaria Formação da literatura brasileira.
A vigência desse critério constitutivo de uma certa tradição crítica foi
determinante para o surgimento de especulações a respeito da inscrição da
peculiaridade nacional na passagem, articulada em Grande sertão: veredas,
do particular sertanejo ao mundo. Mais de quarenta anos depois das
considerações iniciais de Candido sobre o livro de Guimarães Rosa, José
Antonio Pasta Júnior põe bem claramente a questão:

“Riobaldo é apenas o Brasil”, disse Rosa em célebre entrevista –


afirmação que, por si só, relança a polêmica quanto a se saber se, enfim,
em Rosa, o salto do sertão para o mundo é imediato ou se, ao contrário, ele
15
passa por uma mediação essencial, que é o Brasil.

Nesse questionamento, o ensaio de Pasta dialoga com as


considerações que Roberto Schwarz deixou registradas em 1960, quando
comparou Grande sertão: veredas e Dr. Faustus. A inscrição da História na
ficção é aí fator central para a reflexão, mas a interpretação do texto de
Guimarães Rosa não segue no sentido de afirmar algum caráter de
representatividade nacional na obra em análise. O parágrafo final de Grande
sertão e Dr. Faustus resume a avaliação de Schwarz a respeito das relações
entre o romance de 1956 e a experiência brasileira:

14
Antonio Candido, No Grande sertão, op. cit., p. 192.
15
José Antonio Pasta Júnior, Temas do Grande sertão e do Brasil, op. cit., p. 70. A entrevista
mencionada é aquela que o escritor concedeu a Günter Lorenz (Ver Günter Lorenz, Diálogo com
Guimarães Rosa. In: João Guimarães Rosa, Ficção completa, v. 1, p. 60).

52
Em Grande sertão a História quase não tem lugar – o que não é defeito;
dentro das proposições do livro é virtude. Enquanto em Dr. Faustus a trama,
no seu caminho para os valores universais, passa detidamente pelo destino
alemão, em Guimarães Rosa a passagem da região para o destino
humano, tomado em sentido mais geral possível, é imediata. O sertão é
o mundo, mostra Antonio Candido (...); o que se passa no primeiro é
elaboração artística das virtualidades do segundo. Esta ligação direta
desobriga o autor de qualquer realismo, pois o compromisso assumido
pouco se prende à realidade empírica. É ainda Antonio Candido que mostra
como são concebidos homem e paisagem, mesclas da realidade e símbolo,
constituindo para além do mapa, da língua e dos habitantes mineiros um
16
regionalismo cuja referência é o globo.

A maneira como se manifesta uma determinada experiência histórica


pauta toda a análise de Schwarz, é o ponto-chave na indicação tanto do que
aproxima quanto daquilo que é apresentado como distinção entre os
romances de Mann e Rosa. São registradas três semelhanças: 1) trata-se de
dramas fáusticos – na história do compositor Adrian Leverkuehn como na do
sertanejo Riobaldo, o “trato maldito” é “o núcleo controverso” da narrativa; 2)
as narrações são feitas “de memória, por um personagem narrador,
passados anos sobre a história relatada”; 3) os relatos se revestem de
“dimensão exemplar”, um porque alegoriza a Alemanha nazista, o outro por
constituir “discussão exemplificada (pela aventura) do destino humano”.
Conjugadas, essas três características dos dois romances configuram um
paradigma moderno. No uso do mito “como forma de compreender a relação
entre tradição e psicologia individual”, nas narrações de tom exemplar em
que o fantástico é relativizado pela condição de intérpretes dos fatos que os
narradores assumem, Roberto Schwarz identifica a modernidade do “modo
de consciência histórica ou das coisas” expresso nas “soluções que os dois
escritores encontraram”.

Se dão vigência ao mito com relatá-lo, não deixam de suspendê-lo em


aspas, ao fornecer elementos para uma explicação racionalista do que se
passa. (...) O relato, nos dois casos, é feito a posteriori. Não temos portanto
fatos, mas interpretações dadas por quem tudo sentiu muito de perto. O mito

16
Roberto Schwarz, Grande sertão e Dr. Faustus, op. cit., p. 50-51. São meus os destaques em
negrito, os itálicos são do autor.

53
desloca-se da realidade para sua compreensão. Não tem a necessidade das
seqüências físicas, é apenas um modo de consciência histórica ou das
coisas.
(...)
Resumindo: o mito, nos dois romances, não comporta milagres, em nenhum
momento a causalidade é suspensa; o diabólico é produto da interpretação
humana; esta não se esgota, contudo, em psicologia individual; transcende o
homem isolado, é um produto de cultura. (....) É o núcleo imprevisível da
espontaneidade humana, que não podendo ser simplesmente explicado,
pode ser descrito, levando os autores a narrar, em dois longos romances, a
17
história de sua manifestação.

Se o tratamento do mito configura um universo moderno comum aos


dois autores, o modo de inserção da historicidade em suas obras os
distingue. Espécie de romance de formação “pelo avesso” – o “caráter
peculiar [do herói] emerge da fuga ao mundo” –, Dr. Faustus tem em sua
problemática uma “prefiguração crítica da desventura nacional do nazismo”.
A História, na avaliação de Schwarz, aparece como agente estruturador do
romance de Mann, uma vez que: 1) a “precipitação narrativa” que antecipa os
fatos para o leitor estabelece um “nexo teleológico” para a vida do
protagonista – ou seja, a técnica empregada na narração confere um sentido
à linearidade temporal; 2) a despeito da inscrição do fantástico no relato, um
certo grau de realismo (“minúcia na descrição das pessoas, casas, cidades”)
interpõe uma “camada histórica” à relação dos personagens com o meio em
que transitam, confere ao livro uma “dimensão precisa da História”; 3) a
perspectiva dúplice do romancista volta-se para o passado (o período da
Primeira Guerra Mundial em que transcorre o enredo) e, ao mesmo tempo,
para as perspectivas da Alemanha em plena Segunda Guerra, quando é
escrito o romance. Tudo isso convida à “substituição mítica” Dr. Faustus:
Alemanha. As tensões contemporâneas implicadas no destino de toda uma
nação se vêem figuradas na trajetória de um personagem.

No interior de uma obra o autor compromete-se aos dois: à imaginação e, do


modo mais radical, ao momento político, deixando o curso incerto da
[segunda] guerra colaborar no roteiro de seu romance. A coincidência parcial

17
Ibid., p. 44-47.

54
do calendário romanesco e histórico cria aqui um complicado exemplo de
arte participante, cuja problemática se enriquece pela refração no próprio
momento do qual vai surgindo. O realismo, no caso, é instrumento de artista
18
e testemunha.

São outros os resultados que o ensaísta aponta no uso do mito


medieval em Grande sertão: veredas. A seu ver, tal apropriação não se
compromete com a figuração de uma história nacional, como ocorre no livro
de Thomas Mann. Na elaboração artística do escritor mineiro, observa-se a
manifestação da História apenas como determinado “modo de consciência”
que diz respeito ao universo da modernidade. Valendo-se da confrontação
com Dr. Faustus, Roberto Schwarz destaca dois aspectos do romance de
Guimarães Rosa atuantes no engendramento da passagem imediata do
sertão ao mundo.
O primeiro é a especificidade da quebra da linearidade temporal na
narração: em Grande sertão: veredas, o narrador tanto se antecipa à
cronologia quanto voltas atrás. Esse “saltitar no tempo” não constitui qualquer
nexo teleológico para a trajetória do protagonista. Enquanto o herói de Mann,
Adrian Leverkuehn, parece “predestinado desde o início” – “traz a sina já dos
primeiros passos”, o pacto com o diabo apenas o arrastando mais para
dentro de si, acentuando e levando às últimas conseqüências a maneira de
ser demoníaca que “sempre foi a sua” –, Riobaldo “é picado pelo destino”
quando encontra Diadorim. Em Dr. Faustus, a narrativa parece anunciar o
tempo todo o preço que o compositor pagaria pela glória tão perseguida; no
romance de Guimarães Rosa, a lógica da “intrincada mistura de alienação e
realização pessoal” que resulta das aventuras do menino pobre feito jagunço,
e depois chefe de jagunços, não é nada previsível. Para Schwarz, as idas e
vindas que constituem a narração de Riobaldo perfazem sobretudo a
expressão de um questionamento universal, são “reflexo estrutural da
intenção do romance: passado ou presente, em tudo está, atual, o seu
problema: o demo vige ou não vige; desde a primeira página do livro”.19
A segunda característica de Grande sertão: veredas que sobressai no
artigo é o tratamento estético conferido à “camada histórica” correspondente

18
Ibid., p. 50.
19
Ibid., p. 48.

55
ao enredo. Tanto a linguagem do narrador e dos personagens quanto os
traços postos em jogo na apresentação do homem e da paisagem do sertão
vão além dos limites do realismo. Num passo em que recorre às observações
de Antonio Candido, Schwarz sublinha que o escritor mineiro mesclou
realidade empírica e símbolo ao criar as pessoas e o espaço que habitam
seu romance. Com isso, o Grande sertão se faz metonímia do mundo, “o que
se passa no primeiro é elaboração artística das virtualidades do segundo”.20
A conclusão de Grande-Sertão e Dr. Faustus é que a homologia entre
o microcosmos sertanejo e o universo moderno se faz sem a mediação da
História. É isso que José Antônio Pasta Jr. questiona: o salto do sertão para o
mundo é mesmo imediato? Esse percurso não inclui em algum momento
decisivo para a formulação estética uma passagem pela experiência
nacional? Como se define a eventual mediação que seriam os processos
formadores da nação? O propósito central desta tese é justamente elucidar
de que modo os críticos vêm construindo definições do país em suas leituras
da obra. Os ensaios publicados por Schwarz em 1960, que não apontam o
destino brasileiro como fator de mediação na transcendência do regional, no
caminho da região para o destino humano, são de grande interesse do ponto
de vista da trajetória de uma recepção em que, posteriormente, procurou-se
provar que o curso da história brasileira é, sim, elemento importante na
configuração romanesca. E o que vem ao caso, nesta etapa de nossa
discussão, não é nem confrontar a avaliação de Roberto Schwarz com outras
hipóteses sobre a presença da História no livro, mas assinalar que a
comparação entre Rosa e Mann – ao considerar uma realidade empírica
nacional como fator estrutural na composição de um e sem lugar significativo
na do outro – ilumina uma condição de possibilidade para as construções
sobre o Brasil elaboradas na análise do texto literário.
Tal condição ficará mais clara se nos detivermos em algumas breves
considerações sobre Guimarães Rosa feitas pelo crítico em 18 de maio de
2001, por ocasião de questões a respeito da expressão nacional na literatura,
surgidas durante o debate entre Roberto Schwarz e os integrantes do Grupo

20
Ibid., p. 50-51. Itálico meu.

56
Formação reunidos no I Seminário de Cultura e Literatura Brasileira.21 O
interesse central era discutir com o autor os ensaios Nacional por subtração
(Que horas são?), Adequação nacional e originalidade crítica e Os sete
fôlegos de um livro (integrantes de Seqüências brasileiras e dedicados a
trabalhos de Antonio Candido – o primeiro versa sobre De cortiço a cortiço e
o último, sobre Formação da literatura brasileira). O título do seminário e o
teor dos artigos em pauta já anunciam que seria tópico privilegiado a
inscrição da questão nacional na produção estética e intelectual brasileira. De
fato, o assunto apareceu em muitas das falas e foi com ele que se encerreu o
debate de mais de duas horas, numa síntese muito interessante do ponto de
vista do assunto discutido aqui. Em seu último pronunciamento, como no
texto de 1960, Schwarz formulou juízos sobre a obra de Guimarães Rosa que
levaram em conta as relações desta com o universo moderno. E o fez
conjugando a polêmica sobre a possibilidade de conferir à obra de arte uma
dimensão nacional a certas postulações quanto ao papel do crítico na
discussão dos problemas do país. Essa sua fala teve lugar após uma
seqüência de duas perguntas referentes à cena cultural contemporânea. Não
cabe discutir aqui as proposições expostas em tais intervenções e nas
respostas correspondentes, mas é preciso mencioná-las, não só para
contextualizar as declarações de que vamos tratar como também porque elas
integram um universo de problemas atuais ao qual está relacionado o objeto
deste estudo.

21
O Grupo Formação, que organizou o seminário já mencionado aqui (ver trecho correspondente à
nota 12, p. 51), reúne professores e alunos de graduação e pós-graduação em Letras de vários
estados do Brasil. Como relata Luis Alberto Nogueira Alves na Apresentação de uma revista que colige
trabalhos expostos em um dos encontros do grupo, este se organizou a partir de dois eventos ocorridos
na Faculdade de Letras da UFRJ, em 1998 (“40 anos de Formação da Literatura Brasileira”) e 1999
(Conferência de Antonio Candido). “O prisma contemporâneo que anima as intervenções do grupo
aciona e atualiza a questão nacional e através desta a memória da experiência histórica acumulada,
por mais problemática ou limitada que tenha sido no plano da criação e reflexão estéticas. Daí o
diálogo intenso com Formação da Literatura Brasileira (daí o nome do grupo); daí o aproveitamento
crítico da noção de sistema literário, testada de vários ângulos a propósito de vários livros e autores
(...). Em comum, todos [os integrantes do grupo] são de esquerda, com ou sem militância partidária.
(...) Sua relativa coesão [do grupo] decorre também de simpatias comuns. Para nós é uma vantagem
poder contar com figuras da estatura intelectual e moral de Antonio Candido e Roberto Schwarz.
Através deles, temos assimilado, em chave crítica, toda uma tradição intelectual, estrangeira e
brasileira, marxista e não-marxista: de Lukács a Adorno, passando por Benjamin, Auerbach, Brecht; de
Machado de Assis a Sérgio Buarque de Holanda, passando por Mário de Andrade, Drummond,
Bandeira, João Cabral. Assim, podemos nos dar ao luxo de entrar em campo com o que de melhor foi
feito em termos de reflexão estética e política – à esquerda.” (Luis Alberto Nogueira Alves,
Apresentação. In: Terceira margem, ano IX, nº 12, 2005, p. 8-9).

57
Na primeira das perguntas, Irenísia Torres de Oliveira (hoje professora
do curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará) indagou se Schwarz,
a exemplo de Frederic Jameson em Pós-modernismo – a lógica cultural do
capitalismo tardio,22 teria uma proposta de atuação intelectual para contrapor-
se à atual situação de inorganicidade do sistema literário e da sociedade
brasileira contemplados em Os sete fôlegos de um livro.23 O crítico
respondeu com algumas reflexões sobre a perda de organicidade ou eventual
perda de centro nacional na atualidade. Ressaltou três fatos. Primeiro, que
isso constitui uma experiência comum aos países que constituem a periferia
do capitalismo. Segundo, que tal perda foi concomitante com o aparecimento
de um outro fator para a localização: a própria percepção de fazer parte da

22
No primeiro capítulo de seu livro, Jameson explicita o “espírito político” com o qual o concebeu:
“projetar uma certa concepção de uma nova norma culta sistemática e de sua reprodução, a fim de
poder fazer uma reflexão mais adequada a respeito das formas mais efetivas de política cultural radical
em nossos dias”, o que inclui “algumas reflexões sobre a missão da arte política no novo e
desconcertante espaço mundial do capitalismo tardio ou multinacional” (Cf. Frederic Jameson, Pós-
modernismo – a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 32). Uma boa síntese de seus propósitos e
perspectivas (incluindo a revisão de formulações enunciadas em capítulos anteriores) encontra-se no
último tópico da Conclusão, Como mapear uma totalidade, onde o crítico, diante do “problema da
representação” e de “nossa inserção como sujeitos individuais” em meio à “desorientação do espaço
saturado”, procura identificar possíveis estratégias capazes de confrontar a “estrutura da sociedade da
imagem” no âmbito da política cultural (Ibid., p. 396-413).
23
Esse ensaio sobre Formação da literatura brasileira termina com uma reflexão sobre o “significado
contemporâneo da idéia da Formação”. Segundo a análise de Roberto Schwarz, o processo formativo
descrito no livro de Antonio Candido tem “dimensão civilizatória” e um claro valor de “desalienação
cultural e histórica”, pois na formação da literatura nacional está implicado o esforço integrador de
autores, obras e públicos num sistema abrangente de incorporação da vida no país em formas e temas,
que investe na superação da inorganicidade da ordem colonial.
Da perspectiva atual, a idéia de formação assume outros significados, uma vez que a conclusão do
processo na esfera literária não coincidiu nem foi seguido pela realização do projeto de formação
econômica e social da nação (historiado por autores da geração de Candido, como Caio Prado Jr.,
Sérgio Buarque de Holanda e Celso Furtado): “Chegando aos dias de hoje, parece razoável dizer que o
projeto de completar a sociedade brasileira não se extinguiu, mas ficou suspenso num clima de
impotência, ditado pelos constrangimentos da mundialização. A expectativa de que nossa sociedade
possa se reproduzir de maneira consistente no movimento geral da modernização capitalista está
relegada ao plano das fantasias pias, não sendo mais assumida por ninguém. Por boa-fé, ceticismo ou
cinismo, os governantes não escondem que nas circunstâncias a integração social não vai ocorrer”. A
partir desse quadro, o ensaísta formula quatro perspectivas para se pensar a noção de formação.
Com relação à esfera estética, assinala o seguinte: “Se em lugar das influências literárias
[provenientes de toda parte do universo cultural globalizado] (...) pensarmos na linguagem que usamos,
comprometida – sob pena de pasteurização – com o tecido social da experiência, veremos que a
mobilidade globalizada do ficcionista pode ser ilusória. A nova ordem mundial produz suas cisões
próprias, que se articulam com as antigas e se depositam na linguagem. De modo mudado, esta
continua local, e até segunda ordem qualifica as aspirações dos intelectuais que gostariam de escrever
como se não fossem daqui – restando naturalmente descobrir o que seja, agora, ser daqui”. E continua:
“No momento, o sistema literário nacional parece um repositório de forças em desagregação. Não digo
isso com saudosismo, mas em espírito realista. O sistema passa a funcionar, ou pode funcionar, como
algo real e construtivo na medida em que é um dos espaços onde podemos sentir o que está se
decompondo. A contemplação da perda de uma força civilizatória não deixa de ser civilizatória a
seu modo. Durante muito tempo, tendemos a ver a inorganicidade, e a hipótese de sua superação,
como um destino particular do Brasil. Agora ela e o naufrágio da hipótese superadora aparecem
como o destino da maior parte da humanidade contemporânea, não sendo, nesse sentido, uma
experiência secundária” (Cf. Roberto Schwarz, Os sete fôlegos de um livro. In: Seqüências brasileiras,
p. 53-58. Itálicos do autor, negritos meus.).
É a esse ponto final do ensaio que se refere a pergunta de Irenísia.

58
periferia do capitalismo, expressa na expressão “terceiro mundo” (aí, ilustrou
o raciocínio com a trajetória de Glauber Rocha, que tinha visivelmente o
projeto de se tornar um cineasta do terceiro mundo, tinha o propósito de fazer
uma arte capaz de unir o terceiro mundo). Por fim, ressaltou que certa
consciência do movimento geral do capitalismo, permitindo que se perceba
hoje que a desagregação ocorre em muitos lugares (inclusive em partes dos
países centrais), criou novas possibilidades de associação, dependentes de
iniciativas intelectuais e artísticas que procurem consubstanciar esses
vínculos. Quanto a seu próprio trabalho, disse apenas que empenha-se em
descrever essa dinâmica atual.
Em seguida, mantendo a linha da pergunta anterior, Luís Augusto
Fischer (professor do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul) apresentou uma conjugação hipotética de duas alternativas
para indagar qual seria a escolhida por Schwarz. Colocou, de um lado, a
possibilidade de se fazer arte que incidisse numa idéia nacional, que
apresentasse ao leitor o âmbito ou a consciência nacional como opção à
desterritorialização vigente. De outro lado, estaria a hipótese da solidariedade
internacional, a consciência de classe ou de periferia. Lembrando que o
nacionalismo na cultura muitas vezes tem servido a propósitos reacionários e
que, por seu turno, o internacionalismo, no momento, parece ser muito mais
a moeda do capital do que a moeda do debate à esquerda, Fischer perguntou
qual seria a aposta de Schwarz: em qual das duas alternativas o risco de
ideologização seria menor?
Em sua resposta assumidamente indireta, Roberto Schwarz atualizou
a conclusão a respeito da obra de Guimarães Rosa registrada décadas
antes, desta vez levando em conta aspectos do panorama literário brasileiro
em que se insere o autor. Foi então que chamou atenção para aquele
contraste, mencionado acima (p. 51), entre o nacionalismo patriótico dos
modernistas e o alcance que tem o recuo para a região em obras de autores
da geração de Rosa. Depois de voltar ao contexto contemporâneo, à
possibilidade de se operar artisticamente com a dimensão nacional hoje,
concluiu o raciocínio acrescentando o fator reflexão crítica à equação criação
literária x problemática nacional, ressaltando que distingue as atuações do
artista e do crítico em face de algo que se possa identificar como experiência

59
brasileira. O ponto que assinalou foi o seguinte: o crítico explora as
virtualidades nacionais de uma experiência. Para esclarecer a distinção,
recorreu novamente ao caso Guimarães Rosa, comentando a hipótese
apresentada em um dos trabalhos do seminário, segundo a qual, a partir das
análises de Antonio Candido, pode-se discernir uma alegorização da política
nacional na relação com a lei em Grande sertão: veredas. Schwarz
argumentou que, mesmo que na obra a dimensão nacional esteja ausente,
mesmo que o artista não confira âmbito nacional à figuração estética, o crítico
pode detectar que a estilização artística reflete alguma experiência que se
configurou nacionalmente. Sua última palavra no debate consistiu na
explicitação de uma posição: confessa ser favorável à discussão nacional na
crítica, mas não exige do artista nem empenho nem distanciamento, nenhum
compromisso em relação a essa discussão.
Ao concordar – numa formulação que leva em conta a distinção entre
as atuações do crítico e do artista no manejo com a matéria brasileira – com
a possibilidade de se interpretar um aspecto de Grande sertão: veredas à luz
da história sociopolítica nacional, Schwarz redimensionou sua avaliação de
1960 quanto ao papel da História no romance. Se o texto de Rosa se
singulariza como “regionalismo cuja referência é o globo”, se é inegável nele
a universalidade na qual está implicado, inclusive, um tom metafísico, nada
impede a priori que seus intérpretes tragam para a pauta questões de âmbito
nacional. Isso depende, antes de mais nada, de uma perspectiva analítica
capaz de reconhecer virtualidades nacionais detectadas na obra – não
necessariamente expressas como um retrato ou alegoria do país –, de
investigar a correlação entre formas estéticas e as formas históricas
observáveis no Brasil. No texto crítico, a experiência brasileira pode ser, sim,
mediadora entre a realidade sertaneja e a sensibilidade moderna, tão ampla,
na qual o romance encontra ressonância.
Vamos ver então como, ao longo dos últimos cinqüenta anos,
procurou-se estabelecer tal mediação.

60
2

MUNDO DE JAGUNÇO, MODO DE SER JAGUNÇO

No conjunto das observações de Antonio Candido sobre Grande


sertão: veredas, a sugestão de virtualidade nacional que teve
desdobramentos mais imediatos e contínuos na fortuna crítica do livro foi a
chave de interpretação proposta e utilizada em Jagunços mineiros de Cláudio
a Guimarães Rosa: encarar o jaguncismo no romance como “modo de ser e
reajuste de personalidade a fim de operar num plano superior”.1 Esse
entendimento da figura do jagunço na história relatada por um ex-jagunço
começou a ser construído quase dez anos antes, em O homem dos avessos.
Para demonstrar como se processa a assimilação do critério regional
numa expressão universal, o ensaio de 1957 se organiza a partir do confronto
entre elementos estruturais que têm em comum Grande sertão: veredas e Os
sertões. A comparação dessas duas obras que se comunicam em nossa
tradição literária é estratégia de que vieram a se valer depois, cada um de
modo distinto, M. Cavalcanti Proença (Trilhas do Grande sertão, 1958),
Walnice Nogueira Galvão (As formas do falso, 1972) e Willi Bolle
(grandesertão.br, 2004). Nos três casos, a confrontação entre Guimarães
Rosa e Euclides da Cunha integra o esforço de investigação das vinculações
de Grande sertão: veredas com aspectos da vida material no sertão, de sua

1
Antonio Candido, Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa, op. cit. p. 117.

61
cultura e de sua representação na alta cultura – sendo que, em
grandesertao.br, as distinções entre as duas obras configuram a espinha
dorsal de uma ampla análise. Veremos, no CAPÍTULO 5.3, os resultados e os
problemas que esse encaminhamento acarreta para o livro de Bolle, cuja
insistência na lógica comparativa leva a ilações um tanto forçadas sobre o
livro de Guimarães Rosa, e reforçadas por considerações a respeito da
atitude de Euclides que são comprometidas por anacronismos. O ensaio de
Candido recorre à comparação entre os dois autores com mais parcimônia.
Em O homem dos avessos, ela serve para ordenar as etapas de abordagem
do texto rosiano, feita conforme a tripartição de Os sertões, e para ressaltar
tanto a singularidade da composição de Grande sertão: veredas quanto o
modo como nele se apresentam “as leis próprias do universo” criado pelo
ficcionista mineiro.

Mas a analogia pára aí; não só porque a atitude euclideana é constatar para
explicar, e a de Guimarães Rosa inventar para sugerir, como porque a
marcha de Euclides é lógica e sucessiva, enquanto a dele é uma trança dos
três elementos, refugindo a qualquer naturalismo e levando, não à solução,
mas à suspensão que marca a verdadeira obra de arte, e permite a sua
2
ressonância na imaginação e na sensibilidade.

No ensaio de Candido, o caminho entre o meio local e o sertão


simbólico que se constitui na narrativa de Riobaldo é descrito nos seguintes
passos:
1) A Terra - A apresentação da topografia e de outros aspectos que
compõem o cenário da travessia efetuada obedece “freqüentemente a
necessidades de composição”: a precisão documentária, que traça na
narrativa um mapa reconhecível da região, é submetida às exigências de
constituição de simbologias que expressem as transformações sofridas pelo
protagonista-narrador ao longo do enredo. Daí que, em diferentes momentos
do texto, a um mesmo elemento da paisagem sertaneja sejam conferidos
atributos diferentes – é o caso do Liso do Sussuarão: “A variação da
paisagem, inóspita e repelente num caso [na ocasião em que o raso jagunço
Riobaldo passou por ali em meio ao bando liderado por Medeiro Vaz, numa

2
Id., O homem dos avessos, op. cit., p. 123.

62
investida malograda contra os hermógenes], sofrível no outro [quando o
chefe Riobaldo consegue conduzir o bando à posição estratégica para a
vitória sobre os inimigos], foi devida ao princípio de adesão do mundo físico
ao estado moral do homem, que é uma das partes da visão elaborada neste
livro”.3
2) O Homem - Simetricamente, “os homens, por sua vez, são
produzidos pelo meio físico”. Quem vive no rude sertão, só sobrevive se tiver
“comportamento adequado à sua rudeza”. Não se trata, claro, do tipo de
influência mecânica da natureza ou do meio sobre as atitudes do indivíduo
que as teorias sócio-biológicas do século XIX supunham existir e que o
romance naturalista se esmerou em representar. O ensaísta refere-se às
condições de vida em paragens distantes do braço do poder público, nas
quais as normas de convívio são definidas pela lei do mais forte: “o indivíduo
avulta e determina; manda ou é mandado, mata ou é morto”.
A identificação da importância vital de atributos individuais para os
jagunços reais conduz o crítico a perceber uma razão de ser para a
“genealogia medieval” que integra a lógica do livro. Investindo num caminho
que, no ano seguinte, M. Cavalcanti Proença iria explorar com mais minúcia
(no capítulo II de Trilhas do Grande sertão), Candido procura explicar a
coerência do tratamento da matéria sertaneja nos termos da novela de
cavalaria, reconhecíveis sobretudo em certos episódios do enredo e na
caracterização dos principais personagens. Tal tratamento contribui para o
fato de o romance “transcender a realidade do banditismo político” no interior
do Brasil do início do século XX. Assim como, para Riobaldo e seus
companheiros, atuar como jagunço era a única alternativa, “também o
paladino foi a única possibilidade de ‘consertar’ um mundo sem lei. Daí
possuírem ambos uma ética peculiar, corporativa, que obriga em relação ao
grupo, mas liberta em relação à sociedade”. O “verdadeiro bushidô” que é a
ética da jagunçagem, por um lado, remonta à lenda, por outro, configura uma
estratégia de sobrevivência em que os ditames da ferocidade com que o
homem tem que lidar no sertão se convertem em norma de ferocidade do
homem. Partindo dessa constatação, Candido enuncia pela primeira vez uma

3
Ibid., p. 123-126. Itálicos meus.

63
hipótese importante e influente a respeito da estruturação do romance de
Rosa: “Essas considerações sobre o poder recíproco da terra e do homem
nos levam à idéia de que há em Grande sertão: veredas uma espécie de
princípio geral de reversibilidade, dando-lhe um caráter fluido e uma
misteriosa eficácia. A ele se prendem as diversas ambigüidades (...)”. Essa
primeira indicação de que, em vários planos do romance, ocorre “um
deslizamento entre os pólos, uma fusão de contrários, uma dialética
extremamente viva” é outro achado do crítico levado adiante posteriormente
– por Walnice Nogueira Galvão, Davi Arrigucci Jr. e José Antonio Pasta Jr.,
entre outros (ver INTRODUÇÃO, p. 16 e 27; CAPÍTULO 4.2, p. 163). Antonio
Candido identifica na mistura entre opostos, na reunião de esferas distintas
(“o real e o irreal, o aparente e o oculto, o dado e o suposto”) um fator
responsável pela coerência do livro e pelo caráter “uno, total, do Sertão-
enquanto-Mundo”.4
3) O problema - O trecho final de O homem dos avessos concentra-se
na significação do pacto com o demônio em face da individualidade do
protagonista-narrador. Dinamizado pela questão recorrente na narrativa (se
houve ou não o pacto), ganha forma aquilo que o ensaísta indica como “o
intuito fundamental” da obra: “o angustiado debate sobre a conduta e os
valores que a escoltam”. O próprio Candido apressa-se em admitir um certo
excesso de generalidade na afirmativa – “todo livro de vulto acaba neste
problema”. Em vez de seguir na generalização, procura indicar os fatores de
singularidade no livro, identificando os elementos que definem-lhe um tonus
específico na abordagem do problema da conduta e dos valores. São eles: 1)
a “crispação incessante do narrador em face dos atos e sentimentos vividos,
traduzidos pela recorrência dos torneios de expressão, elaborados e
reelaborados a cada página em torno das obsessões fundamentais” e 2) “o
símbolo escolhido para dinamizar a recorrência (o pacto com o demônio), e
que representa as caudalosas águas turvas da personalidade”.5
A significação do pacto é apresentada na passagem transcrita abaixo
– a citação fica um pouco longa, mas é importante observar as proposições

4
Ibid., p. 127-135. Itálicos meus.
5
Ibid., p. 135.

64
contidas nesse trecho do ensaio, para prosseguir na descrição dos estágios
de formulação da chave de leitura cujo núcleo é a figura do jagunço.

Mas por que o demônio em tudo isso? Porque nada encarnaria melhor
as tensões da alma, nesse mundo fantástico, nem explicaria mais
logicamente certos mistérios inexplicáveis do Sertão. (...)
O demônio surge, então, como acicate permanente, estímulo para viver
além do bem e do mal; e bem pesadas as coisas, o homem no Sertão, o
homem no mundo, não pode existir doutro modo a partir duma certa altura
dos problemas. (...)
Daí o esforço para abrir caminho, arriscando a perder a alma, por vezes,
mas conservando a integridade do ser como de algo que se sente existir no
próprio lanço da cartada. A ação serve para confirmar o pensamento, para
dar certeza da liberdade.
(...)
A vida perigosa força a viver perigosamente, tendendo às posições
extremas a que podem levar a coragem, a ambição, o dever. Pelo menos
duas vezes ocorre na fala do narrador um conceito que exprime este
movimento, fundamental na ética do livro e na estrutura dos seus
acontecimentos, e que encontramos, quase com as mesmas palavras, nas
“Considerações sobre o pecado, a dor, a esperança e o verdadeiro
caminho”, de Kafka, onde vem formulado assim: “A partir de um certo ponto
não há mais retorno. Esse é o ponto que se precisa atingir”. Riobaldo
caminha para ele e o alcança através do pacto, que é ao mesmo tempo
ascese (sob o aspecto iniciatório) e compromisso (sob o aspecto moral),
confirmando a sua qualidade de jagunço.
O jagunço, sendo o homem adequado à terra, (“O Sertão é o jagunço”)
não poderia deixar de ser como é; mas ao manipular o mal, como condição
para atingir o bem possível no Sertão, transcende o estado de bandido.
Bandido e não-bandido, portanto, é um ser ambivalente, que necessita
revestir-se de certos poderes para definir a si mesmo. O pacto desempenha
esta função na vida do narrador, cujo Eu, a partir desse momento, é de certo
modo alienado em benefício do Nós, do grupo a que o indivíduo adere para
ser livre no Sertão, e que ele consegue levar ao cumprimento da tarefa de
aniquilar os traidores, os “Judas”. Graças a isto é vencida, pelo menos na
duração do ato, a ambiguidade do jagunço, que se fez integralmente
paladino. (...)
Renunciando aos altos poderes que o elevaram por um instante acima
de sua própria estatura, o homem do Sertão se retira na memória e tenta
laboriosamente construir a sabedoria sobre a experiência vivida, porfiando,

65
num esforço comovedor, em descobrir a lógica das coisas e dos
6
sentimentos. “E me inventei neste gosto, de especular idéias”.

Em meio a essas considerações sobre o pacto e sua função na


narrativa, estabelece-se um sentido para a trajetória do protagonista. Há aí
muitos pontos para a discussão de Grande sertão: veredas, e eles não foram
negligenciados pelos críticos que sucederam Antonio Candido (ver, por
exemplo, os comentários sobre o significado do pacto com o demônio e/ou
sobre a relação individualidade x coletividade nos CAPÍTULOS 2.2, 5.2 E 5.3).
Por ora, em relação a O homem dos avessos, interessa sublinhar o fato de o
ensaio abrir uma perspectiva que se fez fundamental para o direcionamento
da recepção do romance: a tomada das injunções da vida do jagunço no
sertão como fator decisivo para a configuração do princípio geral que rege o
livro e do qual depende a transcendência do regional.
Isolado, o trecho citado acima poderia levar a crer que toda a análise
converge para evidenciar apenas a dimensão existencial na experiência de
um herói de romance moderno – as inquietações do sujeito entre o bem e o
mal; a busca da liberdade e a inescapável obrigação de assumir
compromissos; o empenho em prol do esclarecimento. Sem dúvida, a
interpretação valoriza tudo isso que remete às “tensões da alma” e faz a
ponte mais imediata entre o homem no sertão e o homem no mundo.
Construir essa ponte, intenção patente na menção a Kafka (e também no
título com que o artigo apareceu pela primeira vez, O Sertão e o Mundo),
talvez seja seu principal propósito. Por outro lado, o texto crítico só chega a
essa conclusão quanto à significação de abrangência universal elaborada no
livro depois de firmar dois passos anteriores: 1) o “princípio de adesão do
mundo físico ao estado moral do homem” e 2) a “idéia de que há em Grande
sertão: veredas uma espécie de princípio geral de reversibilidade”. Em suma:
o que faz do jagunço um ser ambivalente e, de sua existência, uma vida
perigosa, são as condições do mundo sem lei que é o sertão, “sociedade sem
poder central forte, baseada (...) na competição dos grupos rurais”, “onde a
brutalidade impõe técnicas brutais de viver”. 7

6
Ibid., p. 136-139.
7
Ibid., p. 130-132.

66
O homem dos avessos já deixa bem claro que o jagunço em Grande
sertão: veredas não se limita ao tipo pitoresco mais freqüente até então na
ficção brasileira. Quase dez anos depois, outro estudo de Antonio Candido
aprofunda a reflexão sobre a dialética local-universal no sertão e no jagunço
rosianos. Em Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa, afirma-se
que, se outras possibilidades de leitura também podem ser válidas, a chave
de interpretação do romance mais esclarecedora é o reconhecimento da
condição de jagunço como forma de viver, modo de existência no mundo-
sertão, realização ontológica. O modo de ser jagunço responde às exigências
do grande sertão, “onde a pressão da lei não se faz sentir, e onde a ordem
privada desempenha funções que em princípio caberiam ao poder público”.8
Princípio de reversibilidade e injunções da condição jagunça
permanecem na pauta do crítico. O rumo de leitura inaugurado no texto de
1957, a partir da comparação com Os sertões, consolida-se em Jagunços
mineiros por meio da visada capaz de identificar, na “exploração literária da
violência na vida rural”, uma constante na história da literatura brasileira que
remonta às origens do romance nacional – “o gênero teria começado entre
nós” pela “descrição da tropelia, da violência grupal e individual”.9 Candido
reflete então sobre as relações entre papéis literários assumidos pelo jagunço
mineiro e certos processos sociais vivenciados no país do início do século
XVIII a meados do século XX.
O ensaio de 1966 pode ser dividido em duas grandes partes. Na
primeira, são analisadas as aparições do jagunço na literatura ambientada
em Minas Gerais até a década de 1930. O crítico reconhece as deficiências
estéticas das obras que comenta e sabe avaliar o peso que tem nelas o
excesso de compromisso documental. Por outro lado, confere nova
importância a essa literatura muito pautada pelo registro das singularidades
regionais, extraindo daí um sumário das características de um personagem
marcante em nossa tradição literária: o “valentão armado”, categoria ampla,
que abrange diversos tipos sociais – o sujeito que atua por conta própria; o
capanga ou jagunço que obedece a ordens; o coronel, líder pára-militar ou
chefete local, que muitas vezes não se limita ao papel de mandantes de

8
Id., Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa, op cit., p. 99.
9
Ibid.

67
ações violentas, assumindo a tarefa de executá-las. Um traço permanece
recorrente nos cenários pelos quais circulam os valentões, a despeito das
perspectivas de autores distantes no tempo: a ordem social é, pelo menos
inicialmente, marcada pela anomia, as instâncias do poder público são
inexistentes ou extremamente frágeis, de modo que a ação violenta serve à
manutenção da lei ou ao estabelecimento de alguma espécie de ordenação
do convívio – “no mundo da violência, então como agora, há pouca variação
de método entre transgressores e defensores da lei”.10 A ordem pública se
funda na autoridade dos proprietários (ou de seus mandatários), define-se de
acordo com interesses privados que presidem à “organização da violência”,
resultando em mandonismo e jaguncismo.
O histórico apresentado por Candido mostra que, dos primórdios de
sua formação até a década de 1960, a literatura brasileira apresenta
impasses e paradoxos de um processo de ordenação social em que
desempenha papel decisivo a sobreposição entre institucionalidade e poder
conferido pela propriedade privada, legalidade e transgressão, normatização
e violência. Em Jagunços mineiros, são analisados momentos decisivos
nesse percurso: Vila Rica (Cláudio Manoel da Costa, circa 1773) canta “a
vitória da ordem pública” sobre a “anomia dos primeiros anos do século
XVIII”, “mas deixa ver que o movimento se fazia (...) por meio da ação dos
valentões, freqüentemente formando bandos a serviço dos chefes locais,
precursores dos coronéis”; na visão retrospectiva sobre o mesmo período
plasmada nos romances históricos Maurício ou Os paulistas em São João
d’El-Rey e O bandido do Rio das Mortes (Bernardo Guimarães,
respectivamente 1877 e 1904), aparecem determinados modos de
“organização da violência e o recrutamento dos marginais (índios avulsos,
escravos foragidos), assim como o mecanismo do choque entre as facções”;
o romance de estréia de Lúcio Cardoso, Maleita (1934), “traçou um quadro
largo das mais diversas formas de violência por assim dizer constitucional”.11
A segunda parte de Jagunços mineiros é quase que inteiramente
dedicada a Guimarães Rosa. Só o início do trecho se concentra em
Chapadão do bugre (Mário Palmério, 1966), após um breve comentário sobre

10
Ibid., p. 102.
11
Ibid., p. 100-105.

68
Guapé, reminiscências (Passos Maia, 1933) – livro que faz menção a um
massacre de chefes políticos ocorrido em cidade do Sudoeste de Minas
Gerais e que parece corresponder ao acontecimento central na narrativa de
Palmério. Vale a pena sublinhar os comentários de Antonio Candido a
respeito de Chapadão do bugre porque, no ensaio, esse romance funciona
como contraponto contemporâneo de que se vale o crítico para evidenciar
certas singularidades de Grande sertão: veredas, sobre o qual recai em
seguida o foco da análise. São reconhecidas duas qualidades na narrativa de
Mário Palmério. A primeira é de caráter documental:

A parte mais interessante de Chapadão do Bugre mostra de que


maneira se instala e procura eternizar-se a ordem social torcida dos coronéis
de Santana e vilas vizinhas, tendo por base a imposição do arbítrio e por
instrumento o que se poderia chamar exploração do trabalho criminoso do
jagunço individual.
(...)
(...) Chapadão do Bugre faz ver como o poder central do Estado,
dependente dos coronéis, graças ao mecanismo do voto localmente
acaudilhado, exerce uma ação, antes de usufruto político do que de restrição
12
do coronelismo.

No segundo mérito atribuído ao livro inclui-se a consideração de


aspectos mais propriamente romanescos, referentes à integração entre a
“história de um destino individual” e o “panorama bem traçado do coronelismo
mineiro sob as suas formas mais drásticas –, as que suscitam, organizam e
disciplinam o crime como instrumento de dominação política”. Na avaliação
de Candido, apesar de seus defeitos de composição (“muita prolixidade inútil
e certo exibicionismo de estilo”), o texto de Mário Palmério alcança essa
síntese, graças a um “método de contraponto” entre “três ordens de
realidade”:

De um lado, o jagunço individual, com o seu destino e as suas motivações,


que o levam a transformar-se em peça do mecanismo dos coronéis (...). De
outro lado, os coronéis, com o seu destino grupal, o prestígio e a
prosperidade de suas famílias, levando ao comportamento politico, à
formação das clientelas, ao parasitismo em relação ao Estado. Entre ambos,

12
Ibid., p. 108-109.

69
a força pública, que corta o fio dos destinos individuais e procura abalar o
sólido feixe de interesses de grupo. Como critério de ação de todos, o
romancista põe em cena alguns atos de jaguncismo, que mostram ao leitor a
função do jagunço na sociedade rústica, desde as motivações psicológicas
até a inserção na vida coletiva.
Assim, temos em Chapadão do bugre uma visão realista e pitoresca do
jaguncismo, integrado em seu contexto social e em seus aspectos pessoais,
com a descrição completa de sua formação, atuação e sentido da ação
13
individual do jagunço, no quadro dos interesses do mandonismo.

A partir daí, altera-se consideravelmente o procedimento de análise


até então praticado. Ao tratar do romance de Guimarães Rosa, Antonio
Candido não faz questão de rastrear características da vida social e política
sertanejas perceptíveis no texto literário. Diante de “livro carregado de
valores simbólicos, onde os dados da realidade física e social constituem
ponto de partida”, toma o “universo das relações correntes” no sertão
histórico como “plano elementar”, do qual a interpretação se projeta para
entender o caráter “fluido e ambíguo” do jagunço rosiano, oscilante entre o
típico valentão sertanejo e o herói idealizado nas novelas de cavalaria.
Lembra que, à exceção de Hermógenes, “princípio negativo do mal”, em
Grande sertão: veredas “ninguém nasce bandido” – jagunço “se forma”. Note-
se que o crítico, ao comentar as diversas causas em que se engajam os
jagunços, não se refere à massa de homens que se move nas campanhas
relatadas pelo narrador, mas a personagens que têm destaque em sua
memória e/ou no enredo – fazendeiros ajagunçados no comando de seus
homens ou, no mínimo, capangas de maior patente. Riobaldo atribui a cada
um algum traço ou motivação que não condiz com os do puro e simples
banditismo: Joca Ramiro “era político”; Titão Passos, “pelo preço dos
amigos”; Andalécio, “no fundo um homem-de-bem”; Medeiro Vaz, “o mais
supro, mais sério”, “saiu por esse mundo em roda para impor justiça”... É da
ambigüidade desses personagens mais proeminentes (em termos sociais e
no relato) que se infere, em Jagunços mineiros, o “tipo especial de homem
violento” apresentado no livro de Rosa: “naquele sertão, o jaguncismo pode

13
Ibid., p. 110.

70
ser uma forma de estabelecer e fazer observar normas”, “pode ser uma
busca dos valores, do bem e do mal”.

O jagunço é, portanto, aquele que, no sertão, adota uma certa conduta


de guerra e aventura compatível com o meio, embora se revista de atributos
contrários a isto; mas não é necessariamente pior do que os outros, que
adotam condutas de paz, atuam teoricamente por meios legais como o voto,
14
e se opõem à barbárie enquanto civilizados.

A vida arriscada, disciplinada pela ética severa da guerra, reveste a


figura do jagunço de uma dignidade que se evidencia, no plano das relações
estabelecidas naquele ambiente, pelo contraste com a figura dos fazendeiros,
“estadonhos”, como diz Riobaldo, “solertes aproveitadores da situação, que o
empregam [o jagunço] para seus fins ou o exploram para maior luzimento da
máquina econômica”, conforme se lê no ensaio. Apenas a essa altura –
quando se comenta que, diante dos homens encastelados nas “fortalezas do
lucro e da ordem, sentimos vagamente que ser jagunço é mais reto” –
comparecem à análise os jagunços rasos, aqueles que pegam em armas
como em enxadas, que o fazendeiro pode ter como “encangados para cavar
a sua terra e plantar o seu feijão” ou para matar e morrer sem nem saber
muito bem por quê. Nesse movimento da interpretação, transborda para toda
a massa que se move em combates pelo sertão algo da positividade
encontrada nos atributos dos chefes jagunços mencionados antes, capaz de
relativizar a qualificação de fora-da-lei. Na visão do jagunço delineada pelo
ensaio, os componentes de barbárie, “as ruindades de regra” (GSV, p. 38) na
ação dos integrantes de exércitos pára-militares, não são a tônica – ainda
que o narrador não deixe de mencionar, ao longo do relato e em algumas
ocasiões nas quais descreve o costume jagunço, hábitos como o estupro, a
execução sumária, sangrar prisioneiros como bichos, apontar os próprios
dentes com facas para simular presas animais, figurar valentia... Essas
barbaridades que o protagonista-narrador arrenega não são apresentadas
apenas como exotismos, elas integram o universo ao qual o se dirigem suas
“maiores perguntas” (GSV, p. 363), e assim o tom pitoresco fica bem diluído.
Além disso, são suprimidas em Grande sertão: veredas referências “normais

14
Ibid., p. 112.

71
no tratamento do jaguncismo em nossa ficção” (chefetes políticos,
representantes da força pública, cidades que compõem a cena de tantas
narrativas regionalistas ambientadas em zonas de conflito entre grupos
armados). Desse modo, o Grande sertão se faz um “espaço fechado”, onde
“ocorrem quase apenas jagunços, agrupados em bandos enormes, vivendo
em contato com outros jagunços, obedecendo a chefes jagunços, movendo-
se conforme uma ética de jagunços”.15 Atento à função dos dados
documentais na obra de Guimarães Rosa, em sua observação do jagunço
criado pelo escritor, Candido prioriza o resultado da “sublimação estética” por
meio da qual se “supera e refina o documento” ao mesmo tempo em que é
conservada sua “força sugestiva”.

Daí sermos levados a dizer que há em Guimarães Rosa um “ser


jagunço” como forma de existência, como realização ontológica no mundo
sertão. (...) Ele encarna as formas mais plenas da contradição no mundo-
sertão e não significa necessariamente deformação, pois este mundo, como
vem descrito no livro, traz imanentes no bojo, ou difusas nas aparências,
certas formas de comportamento que são baralhadas e parciais nos outros
homens, mas que no jagunço são levadas a termo e se tornam coerentes. O
jagunço atualiza, dá vida a essas possibilidades atrofiadas do ser, porque o
sertão assim o exige. E o mesmo homem que é jagunço (...) seria outra
coisa noutro mundo.
(...)
Isto significa que Guimarães Rosa tomou um tipo humano tradicional em
nossa ficção e, desbastando os seus elementos contingentes, transportou-o,
além do documento, até a esfera onde os tipos literários passam a
representar os problemas comuns da nossa humanidade, desprendendo-se
16
do molde histórico e social de que partiram.

15
A elisão de fatores externos ao universo jagunço talvez tenha se configurado como técnica na
literatura brasileira para lidar com experiências de camadas pobres da população. Em seu ensaio sobre
Cidade de Deus (romance de Paulo Lins publicado em 1997), Roberto Schwarz observa o mesmo
fechamento de espaço que Candido assinalou em Grande sertão: veredas: “A ação move-se no mundo
da Cidade de Deus, com uns poucos momentos fora, sobretudo em presídios, para acompanhar o
destino das personagens. Embora apresentado em grande escala, o curso das coisas está em versão
restrita em relação a suas premissas: as esferas superiores do negócio de drogas e de armas, a
corrupção política e militar que lhe assegura o espaço, não comparecem. Já os seus prepostos locais,
quando não são os próprios bandidos, não se distinguem destes. A não ser por raros flashes, que no
entanto bastam para sugerir a afinidade de todos com todos, a administração pública e a especulação
imobiliária que estão na origem da favela tampouco aparecem.” (Roberto Schwarz, Cidade de Deus,
Seqüências brasileiras, p. 166.)
16
Antonio Candido, Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa, op cit., p. 113-120.

72
Até esse ponto, o crítico procura demonstrar o alcance da força
sugestiva que o romance extrai das circunstâncias históricas e sociais. À
condição jagunça transformada em “forma de viver”, “modo de conceber a
vida perigosa”, corresponde o sertão construído como “mundo separado do
resto do mundo”. Um reforça a singularidade e ao mesmo tempo a amplitude
do outro. O sertão se faz “espaço de vida” no qual não se encontram
instâncias para amenizar experiências-limite, um passo pode conduzir à vida
ou à morte, bem e mal são indistinguíveis; jagunço é quem, por algum motivo
que não lhe deixa outra alternativa, admite conviver com a iminência do mal
ou da morte (e mesmo perpetrar algum mal ou morte) em meio à busca do
bem ou da vida plena. Nesse contexto, a ação jagunça pode ser a forma mais
justa de comportamento (“fazer o bem através do mal”). Antonio Candido
lembra que, já em Sagarana, na trajetória de Augusto Matraga, a violência
aparece como “instrumento da redenção” e que, em Grande sertão: veredas,
“fica mais claro este aspecto do jaguncismo como modo de ser e reajuste da
personalidade a fim de operar num plano superior” – a simbologia do pacto
com o diabo e a “alteração do comportamento de Riobaldo depois do pacto”
são evidências de tal aspecto.

(...) Guimarães Rosa parece ter querido mostrar que o ato [do jagunço]
decorre, antes de mais nada, de um modo peculiar de ser e se torna uma
construção da personalidade no mundo-sertão. Daí a universalidade que
assume; e daí abalando por indução a personalidade do leitor, tocar
17
profundamente a todos nós.

Por essa passagem se vê que, da perspectiva de Candido, o “modo


peculiar de ser” jagunço no romance interfere na própria dinâmica da leitura,
o que fica mais claro algumas páginas adiante, quando é analisado o foco
narrativo:

Trata-se, com efeito, de ver o mundo através dum ângulo de jagunço,


resultando num mundo visto como mundo-de-jagunço. (...)
Do ângulo do estilo, ser jagunço e ver como jagunço constitui portanto
uma espécie de subterfúgio, ou de malícia do romancista. Subterfúgio para
esclarecer o mundo brutal do sertão através da consciência dos próprios

17
Ibid., p. 117. Itálico meu.

73
agentes da brutalidade; malícia que estabelece um compromisso e quase
uma cumplicidade, segundo a qual o leitor esposa a visão do jagunço
porque ela oferece uma chave adequada para entrar no mundo-sertão. Mas
sobretudo porque através da voz do narrador é como se o próprio leitor
estivesse dominando o mundo, de maneira mais cabal do que seria possível
18
aos seus hábitos mentais.

O tipo regional se faz – conforme a célebre expressão das últimas


linhas de Grande sertão: veredas – “homem humano” (GSV, p. 538), a região
específica se faz universo, o leitor, esposando a visão do jagunço, dispõe de
uma “espécie de posição privilegiada para penetrar na compreensão
profunda do bem e do mal, na trama complicada da vida”: “Se ’o sertão é o
mundo’ (...), não é menos certo que o jagunço somos nós”.19 Para Antonio
Candido, o caráter de “realização ontológica” conferido aos “agentes da
brutalidade” no sertão projeta a narrativa para um plano de significação
universal fazendo o leitor identificar-se com o jagunço. Por outro lado, a
ênfase do crítico no papel desempenhado pela forma de existência jagunça
no romance também sugere a importância que têm na configuração dessa
forma dados cruciais na experiência brasileira: implicações da anomia na
ação individual, sobreposição entre poder privado e poder público, submissão
à arbitrariedade e à violência que regem a ordenação das relações em
sociedade onde impera a lei do mais forte.

18
Ibid., p. 120-121. Sobre esse passo do ensaio de Candido, ver CAPÍTULO 3, p. 112-114.
19
Ibid., p. 115.

74
2.1 - A CONDIÇÃO JAGUNÇA

No início da década de 1970, Walnice Nogueira Galvão publicou


considerações indispensáveis para se pensar a relação entre a vida material
dos homens que se tornam jagunços no sertão, a história do país e a
transcendência do regional em Grande sertão: veredas. A tese As formas do
falso: um estudo sobre a ambigüidade no Grande sertão: veredas aparece
sempre nas bibliografias de estudos sobre o livro, é raro o trabalho que não
faça alguma referência à noção de “jagunço letrado”, expressão cunhada
para caracterizar o narrador-protagonista. Mas sua contribuição para a
fortuna crítica da obra vai muito além do achado de um termo preciso, e
mesmo além do fato de elaborar uma explicação consistente para a
ambigüidade que se processa nos diferentes níveis do romance – outro
tópico freqüentemente levado em conta em abordagens realizadas dos mais
diversos ângulos.
A primeira parte do estudo, A condição jagunça, trata de aspectos
econômicos, sociais e culturais que entram em jogo na ambientação da
história de Riobaldo. Aí se manifesta com maior evidência o enfoque com que
a autora encara a literatura, seu interesse em compreender não só a
dinâmica constitutiva do texto mas também a relação que ela tem com a
sociedade. A observação das circunstâncias que determinam a vida no
sertão serve para fundamentar a hipótese interpretativa desenvolvida nas
duas partes seguintes do estudo. Porém, mesmo na última década, quando
voltou a ganhar ênfase a inscrição da realidade histórica nas discussões
sobre o trabalho desse escritor, houve pouco debate a respeito das
formulações que Walnice Nogueira Galvão registrou no trecho inicial de sua
tese. Em boa medida, esse desinteresse se explica pela diminuição do
prestígio que tinha no Brasil a perspectiva sociológica de análise da literatura
entre a década de 1960 e o início da seguinte. A partir de meados dos anos
1970, quando ocuparam o primeiro plano do debate acadêmico correntes

75
teóricas que avaliam a criação literária como sistema desvinculado de
quaisquer condições exteriores à ordem textual – e que rejeitaram
programaticamente a prática anterior – durante bom tempo passou-se a dar
pouca ou nenhuma atenção a pesquisas como a que se encontra no começo
de As formas do falso.
É certo que o recurso à Sociologia e a outros campos das ciências
humanas pode gerar, e gerou entre nós, muita super-interpretação e
subcrítica literária. Por outro lado, desconsiderar a relação entre sociedade e
literatura constitui um tipo de atitude muito comum por aqui quando se trata
de trocar um modismo intelectual por outro: joga-se fora a criança com a
água da bacia. Passa a valer quase nada todo um conjunto de problemas há
pouco candentes em discussões cuja efervescência possivelmente traz à
tona questões relevantes. Esse tipo de negligência tem efeito duradouro.
Como o trabalho de análise de textos literários procede-se, em grande parte,
pelo desdobramento gradual de achados interpretativos – o crítico repensa as
indicações, hipóteses ou conclusões daqueles que o precederam, para
buscar na relação entre essas formulações e a obra novos ângulos de
compreensão –, acaba que o desinteresse momentâneo por determinado
encaminhamento interpretativo pode relegá-lo a um esquecimento que
demora a ser revertido. Os problemas e caminhos para a reflexão nele
contidos ficam no ar, sem a repercussão que as idéias só ganham com o
debate contínuo, em perspectiva histórica capaz de conciliar, na mesma
visada, os fatores implicados na elaboração feita no passado e os que
passam a integrar a pauta em cada momento.
De meados dos anos 1990 para cá, a primeira parte do livro de
Walnice Nogueira Galvão voltou a ser posta em questão, por autores como
Sandra Guardini Vasconcelos, Luiz Roncari e Willi Bolle.
Num ensaio em que analisa o romance da perspectiva da história
social sertaneja, Sandra Vasconcelos retomou vários aspectos do
coronelismo e da jagunçagem tratados em As formas do falso. Boa parte do
texto é dedicada à descrição das circunstâncias político-sociais que
determinavam “as relações de poder vigentes no sertão brasileiro durante a
República Velha” e que tiveram que se ajustar ao “processo político de

76
consolidação nacional que se seguiu a 1889”.1 As caracterísitcas mais
significativas desse contexto encontrado em Grande sertão: veredas não
chegam a acrescentar nada de substancial à análise que Walnice Nogueira
Galvão apresentou em seu livro. São elas: 1) da manutenção do latifúndio
como base da estrutura econômica do país após a proclamação da República
decorre a manutenção do poder privado dos coronéis, adaptado à ordem
republicana; 2) com a abolição da escravidão, estende-se a um enorme
contingente populacional do campo a condição de “homem livre”, excedente
de mão-de-obra que, por não possuir meios de sustento, punha-se sob
proteção e jugo de fazendeiros, disponível inclusive para ações ilegais.
Porém, na conclusão, Guardini faz questão de afirmar uma diferença entre
sua avaliação de Grande sertão: veredas e a de Walnice:

Na sua mescla de ficção e história, o romance de Guimarães Rosa é não


apenas o “mais profundo e mais completo estudo até hoje feito sobre a
plebe rural brasileira”, como avalia Walnice Nogueira Galvão, mas é
sobretudo um agudo ensaio sobre a liquidação do coronelismo durante a
Primeira República, narrado de dentro e de baixo, da perspectiva de uma
2
personagem que viveu todo o processo.

Não sobressai no texto de 2002 nenhuma grande divergência com


relação a As formas do falso, pelo menos no que se refere à análise dos
signos do romance que permitem “inscrevê-lo no cruzamento entre o literário
e o histórico”.3 Como Homens provisórios, a tese de 1972 também leva em
conta as transformações que a modernização das primeiras décadas do
século XX no Brasil impôs à forma de organização política calcada na
autoridade dos coronéis. Para Sandra Guardini Vasconcelos, o “principal
golpe” contra esta ordem “foi desferido pelo movimento de 1930, numa
investida da burguesia por uma maior participação no poder”;4 no livro de
Walnice Nogueira Galvão lê-se que é “mérito de grande escritor (...) a
encarnação em personagens do próprio processo político de consolidação
1
Cf. Sandra Guardini T. Vasconcelos, Homens provisórios: coronelismo e jagunçagem em Grande
sertão: veredas. Scripta, v. 5, nº 10, p. 324-327. Itálico meu.
2
Ibid., p. 331. Willi Bolle também considera que o escritor mineiro deu voz à camada “de baixo” da
sociedade brasileira: “Ele não se limita a escrever sobre o povo, mas faz com que as pessoas do povo
sejam elas mesmas donos das palavras” (grandesertão.br: o romance de formação do Brasil, p. 44).
Sobre essa avaliação de Bolle, ver, adiante, CAPÍTULO 5.3.
3
Ibid., p. 324.
4
Ibid., p. 331.

77
nacional levado a cabo em sua última parte pela República Velha, e de que a
ditadura Vargas marca o termo”.5 Esta comenta a convivência ambígua entre
“atributos pessoais tradicionais” e valores modernos na figura de Zé Bebelo6;
a outra, afirma que “Grande sertão: veredas expõe a face contraditória do
país ao sugerir que o arcaísmo não é apenas resíduo do passado, mas um
dos modos mais efetivos do presente e, como tal, corolário do projeto de
modernização do país”.7 A argumentação que defende tal hipótese tende
desigualmente para os fatores históricos, deixando quase que de lado a
fatura literária. Ao contrário do que ocorre em As formas do falso, no trabalho
mais recente são escassas as indicações de modos como os processos
vividos no país aparecem na configuração ficcional. Não fica claro, por
exemplo, a quais aspectos do romance a autora se refere quando afirma que
“a liquidação do coronelismo durante a Primeira República” é narrada “de
dentro e baixo”, nem quais são os problemas que essa perspectiva simulada
pelo escritor revela (ou vela?).
É verdade que o ensaio de Guardini menciona problemas reais da
“história escrita com sangue, iniqüidade e violência que marca nosso país”,
problemas passados (manifestos nas tantas rebeliões rurais da virada do
século XIX para o XX) e presentes (“hoje os homens sem terra e sem
trabalho continuam em busca de seu pedaço de chão”). Mas, à altura em que
foi escrita essa leitura de Grande sertão: veredas, sublinhar o fato de se trata
de uma história narrada da perspectiva de um jagunço não acrescenta quase
nada ao esclarecimento da forma singular assumida pela experiência
nacional no livro. Em nossa literatura há outras de tentativas de registrar
testemunhos “de dentro e de baixo”, e temos acúmulo crítico suficiente para
saber que, se na obra de Guimarães Rosa opera-se uma importante
transformação do papel conferido ao sertanejo na ficção brasileira – de
personagem do documentarismo regionalista a personagem-narrador de um
romance no qual estão entrelaçadas diversas matrizes da tradição em prosa
e verso, regional, nacional e universal –, essa transformação é dependente e
determinante de uma série de processos estéticos influentes na estruturação

5
Walnice Nogueira Galvão, op. cit., p. 64. Grifo meu.
6
Ibid.
7
Sandra Guardini T. Vasconcelos, op. cit., p. 324.

78
do romance como um todo. Que significado têm tais processos do ponto de
vista da história da modernização brasileira, ponto de vista convocado em
Homens provisórios? Como não se faz essa pergunta, ainda que o ensaio
contenha informações originais a respeito de prováveis fontes que
alimentaram a criação de Rosa,8 boa parte de sua contribuição para a fortuna
crítica do Grande sertão consiste mesmo no fato de retomar o trabalho de
Walnice Nogueira Galvão.
Em grandesertão.br: o romance de formação do Brasil, Willi Bolle
avalia da seguinte maneira As formas do falso: ao estabelecer um diálogo
entre Grande sertão: veredas e os resultados de pesquisas fundamentais em
ciências humanas, “Walnice fornece os indispensáveis parâmetros históricos,
institucionais, econômicos e sociais para se entender o universo descrito no
romance”. Bolle assinala o rendimento dessa abordagem, ressaltando que
ela “focaliza a jagunçagem como fenômeno não apenas regional, mas
revelador das estruturas do país inteiro”.

A autora analisa detalhadamente a “condição jagunça”, sob quatro aspectos:


a constituição das unidades de poder no Brasil, a partir da propriedade
latifundiária; as unidades de produção econômica e sua função na economia
mundial; as relações de trabalho no meio rural; e as formas de organização
9
política a partir da categoria do “inútil utilizado”.

Já Luiz Roncari, em O Brasil de Rosa, só se refere à tese de Walnice


Nogueira Galvão para fazer uma ressalva. Em nota a uma passagem na qual
aproxima formulações de Oliveira Vianna à composição de Guimarães Rosa,
reputa justificável o recurso da autora às idéias do historiador “para explicar
as bases históricas das lutas do sertão”. Em seguida, observa que é mais
válido seu próprio tratamento das teorias de Vianna na interpretação da obra
do escritor – ele as toma como ideário-fonte para a alegorização ficcional da

8
As formulações de Sandra Guardini T. Vasconcelos partem da comparação de passagens do
romance com duas “fontes documentais” localizadas no Acervo João Guimarães Rosa (IEB-USP): os
a
livros de Optato Gueiros (Lampeão: memórias de um oficial ex-comandante de forças volantes. 2 ed.
São Paulo: Linográfica, 1953) e de Esperidião de Queiroz Lima (Antiga família do sertão. Rio de
Janeiro: Agir, 1946).
9
Willi Bolle, op. cit, p. 118.

79
primeira experiência republicana brasileira nos três primeiros livros
publicados por Rosa.10
Quanto ao procedimento interpretativo praticado em As formas do
falso, vale notar duas coisas. Primeiro: o estudo vai do contexto ao texto,
fazendo da síntese de uma gama de conhecimentos a respeito de um o
passo inicial para a reflexão sobre o outro. Isso fica evidente na própria
organização da tese: na parte 1, focada no contexto, as remissões ao
romance figuram sobretudo como ilustração das circunstâncias que regem a
vida política, social, econômica e cultural do sertão. Quase todas cumprem
eminentemente a função de demonstrar, de modo imediato, que as análises
sobre o Brasil e o sertão selecionadas podem lançar luz esclarecedora sobre
a produção ficcional em questão. Se o restante do livro ficasse nisso, se aos
elementos literários fosse destinado, o tempo todo, papel coadjuvante na
confirmação da validade de hipóteses existentes acerca da política, da
sociedade, da economia e da cultura sertanejas ou brasileiras, seria um
trabalho que talvez acumulasse dados para pesquisas em ciências humanas,
mas que não constituiria acréscimo considerável para a crítica de Grande
sertão: veredas. O segundo movimento do livro o desvia desse rumo. Aí se
vê que a parte 1 tinha sido destinada a um ajuste de foco necessário à
abordagem de uma obra que apresenta de modo inusitado questões
complexas – referentes à época em que se passa a ação, à época em que é
narrada, à época em que foi escrito o romance e ao presente da crítica. Nas
partes 2 e 3, a análise se concentra efetivamente na criação de Guimarães
Rosa; a articulação inicial entre passagens da narrativa e textos a respeito do
sertão e do Brasil resta como prisma bem estruturado, eximindo a autora de
intercalar explicações fundamentais aos passos da interpretação.
Segundo ponto digno de nota no modo como Walnice Nogueira
Galvão aborda a relação Grande sertão-Brasil: ela toca no desconfortável
problema das relações entre classes sociais no país – jagunços são filhos da
plebe rural, das “massas subordinadas ao dono da terra”. É um componente
essencial na sua perspectiva de leitura o fato de que a ação envolve
integrantes da “imensa massa humana excluída do processo produtivo

10
Luiz Roncari, O Brasil de Rosa: mito e história no universo rosiano: o amor e o poder, p. 274. Essa e
outras hipóteses de Roncari são matéria do CAPÍTULO 5.2 desta tese.

80
principal”, que “encontra sua possibilidade material de sobrevivência na
peculiaridade do latifúndio”.11 Ainda temos muito a fazer para esclarecer as
implicações dessas circunstâncias objetivas na estruturação da ficção de
Guimarães Rosa. Dezesseis anos depois do surgimento da história narrada
por Riobaldo, As formas do falso foi um impulso decisivo no sentido de
sublinhar na forma de Grande sertão: veredas o peso de questões desse
gênero. Por vários anos, raras foram as análises subseqüentes que deram
continuidade a tal inclinação crítica. A partir do momento em que se instalou,
pouco depois da instauração da ditadura militar no Brasil, o império
estruturalista no meio acadêmico, começou a parecer chato, demodée, terra-
a-terra, sem-sentido, falar em conflito de classes na literatura. Ainda mais a
respeito de uma obra na qual o trabalho com a linguagem abre um universo
que aponta para além das contingências.
Tal tendência se perpetuou na fortuna crítica de Guimarães Rosa por
toda a década de 1980, fortalecida pela hegemonia que ganharam as
interpretações metafísicas do texto e pelo prestígio alcançado pelas teorias
pós-estruturalistas em nossos departamentos de Letras. Por outro lado, em
1972, quando saiu As formas do falso (a tese havia sido defendida na USP
em 1970), conflito de classes era expressão na prática proibida, dada a
vigência do AI-5. Deixou de ser censurada nos discursos com a abertura
política mas nem por isso voltou a ser empregada sempre que necessário.
Os direcionamentos prioritários definidos para a discussão sobre literatura no
Brasil depois da década de 1970 deixaram como tópico difuso, tido como
menos relevante para o entendimento da forma literária, os impasses
aportados pela enorme disparidade social que acomete essa e todas as
nações da periferia do capitalismo. Embora eventualmente capazes de
reconhecer filigranas da estética com que Guimarães Rosa trouxe à tona a
dimensão dos sofrimentos de quem tem que se vender barato – pagando
com a vida, à vista ou a prestações, o preço alto que o capital cobra aos que
só contam com a força-de-trabalho para sobreviver –, as reflexões sobre
Grande sertão: veredas que mencionam a tensão entre classes sociais no
Brasil costumam ser movidas prioritariamente por valores como ética,

11
Walnice Nogueira Galvão, op. cit., p. 24, p. 36-37.

81
liberdade, justiça. Em geral, reconhecem problemas dessa ordem e anunciam
as alternativas que a ficção parece figurar. Por mais bem-intencionadas que
sejam, não incidem sobre a maneira como a lógica de base do sistema
determina os processos sociais no país e se manifesta no romance. São
poucos os críticos que conseguem fazer com que esclarecimentos a respeito
da forma literária recaiam sobre as formas que efetivamente regem a vida na
sociedade brasileira e vice-versa. As formas do falso é um deles.
Na explanação de Walnice Nogueira Galvão sobre a realidade do
jagunço sobressai o mesmo traço de anomia que Antonio Candido levou em
conta ao tratar do homem do sertão em Jagunços mineiros de Cláudio a
Guimarães Rosa. O primeiro capítulo de sua tese intitula-se A lei e a lei do
mais forte, como que a chamar atenção para o fato de que o ponto de partida
para se ingressar no universo sertanejo é observar a submissão das formas
de organização do convívio ao poder conferido, na prática, pela propriedade
dos meios de produção, observar a permissividade institucionalizada entre
prática de violência e orquestração da ordem pública. É exatamente assim
que procede a autora: antes de entrar no romance, sonda as instâncias em
que se manifesta a constante na história do Brasil que é o “exercício privado
e organizado da violência”. Sintetizando as considerações a respeito desse
“nosso direito público costumeiro” que Oliveira Vianna registrou em
Instituições políticas do Brasil, lista suas manifestações mais flagrantes no
sertão da época a que remete a narrativa de Riobaldo: no nível das
instituições (“a solidariedade da família senhorial, o banditismo coletivo, o
fanatismo religioso, o partido do coronel”) e no nível do indivíduo (a ética
movida pela honra e pela lógica da vingança, “distante das normas legais,
porém dentro da tradição”). O capítulo se encerra com a enunciação do “nexo
de análise” entre as instituições do direito público costumeiro e “o sistema
global de que fazem parte” – termo que designa o todo da “organização
sócio-econômica-política” brasileira, cujo cerne o fenômeno do banditismo
integra.

Todas elas [as instituições do direito público costumeiro] se reportam a um


regime autoritário de dominação, ao poder que emana de cima, do chefe ou
senhor; a massa da população, a ele submetida, não conheceu qualquer

82
forma de organização que lhe fosse própria e defendesse seus interesses.
(...)
Essas massas subordinadas ao dono da terra são por ele
arregimentadas, seja para a defesa da propriedade, seja para objetivos
eleitorais; é assim que se vêm a constituir as unidades mínimas de poder no
país. Dessas unidades e alianças entre os senhores que as lideram
12
originam-se os partidos municipais, estaduais e nacionais.

Já se nota, nesse primeiro capítulo do estudo, que a abordagem das


da vida jagunça não deixa de levar em conta o cenário nacional. A
perspectiva abrangente, aliada à acuidade com que são apontados e
relacionados entre si os aspectos relevantes da realidade sertaneja, é
responsável por alguns dos mais valiosos rendimentos críticos do livro de
Walnice Nogueira Galvão. Ainda que a análise das peculiaridades da forma
estética seja feita apenas mais à frente – o método seguido pela autora,
como foi dito acima, separa da apreciação da narrativa a observação das
injunções sociais, políticas e econômicas implicadas na figuração ficcional –,
a parte 1 tem por si só o mérito de assinalar a dimensão brasileira de muitas
circunstâncias reais figurados no romance. A descrição das especificidades
do sertão pauta-se sempre pela demonstração de que as formas sociais,
políticas e econômicas locais integram um sistema vigente em área
geográfica mais ampla.
No capítulo seguinte, O sertão e o gado, quando se trata da “forma
econômica predominante” na região, a própria noção de sertão é relacionada
a “um episódio da expansão do capital” no Brasil-colônia. O que veio a
unificar sob essa nomenclatura terras no centro do país com características
naturais bastante distintas foi a pecuária extensiva. Aliando “análises
clássicas sobre a acumulação primitiva” à leitura de Capistrano de Abreu
(Capítulos de história colonial) e de Caio Prado Jr. (Formação do Brasil
contemporâneo), Walnice Galvão lembra que a criação do gado solto
constituiu a alternativa de atividade econômica mais adequada aos
parâmetros extrativistas da empresa colonial no caso de solos impróprios
para lavoura. Não encontrando à princípio no Brasil produtos rentáveis para o
comércio internacional, que eram o objetivo primordial do expansionismo

12
Walnice Nogueira Galvão, op. cit., p. 23-24.

83
europeu, os colonizadores só puderam extrair proveito de sua nova posse por
meio do empreendimento agrícola. E a pecuária ajustava-se perfeitamente à
produção principal. Para que a colônia cumprisse a contento seu papel no
sistema mundial, fornecendo gêneros alimentícios escassos na Europa, era
necessária essa atividade ancilar, que gerava alimento e força-de-trabalho
animal para os engenhos. Assim, com pouco investimento para a ocupação
do território e para a obtenção e manutenção da mão-de-obra, uma vez que o
boi solto no pasto não demanda maiores cuidados, podia-se obter o melhor
ganho das vastas extensões de terra disponíveis que não serviam para a
plantação.13
Das características da atividade pecuarista, a autora depreende o
perfil do trabalhador que lida com o gado. Sua gênese remonta ao período
colonial; o Império e a República Velha confirmaram seus traços. Trata-se
dos homens livres da zona rural brasileira: não sendo escravos nem
proprietários, formaram a massa “constituída por todos aqueles que não têm
meios de vida”. Sobressai nesse perfil uma junção contraditória de liberdade
e dependência. À diferença da lavoura, que prende o homem à plantação
com as contínuas exigências de seus ciclos, a pecuária extensiva
proporciona ao vaqueiro tempo e espaço para ir e vir no sertão: “a
perambulação que ela implica dá, no mínimo, um simulacro físico de
liberdade”. Além disso, a posse ou mero uso do cavalo, “sinal de posição
desde a Ibéria”, confere-lhe uma certa qualificação naquela sociedade,
distinguindo-o do agricultor preso à terra que lhe cabe cultivar. Soma-se ao
simulacro e ao símbolo de liberdade uma atraente promessa de libertação
antevista nos termos do sistema de remuneração: “cuidar de gado e receber
em paga a quarta parte dos bezerros, [sic] encadeia o homem à possibilidade
de passar de empregado a dono”.14
No ensaio O homem dos avessos, Antonio Candido já havia incluído a
busca de uma “certeza da liberdade” entre as inquietações que mobilizam
Riobaldo em sua travessia e, em Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães
Rosa, a valorização da liberdade reaparece como fator fundamental na
configuração do modo-de-ser do jagunço rosiano (ver, acima, p. 65). É o caso

13
Cf. Ibid., p. 30-32.
14
Ibid., p. 32-34.

84
do trecho de Jagunços mineiros em que se comenta o encontro do bando de
jagunços com o fazendeiro sêo Habão: “É interessante notar, a propósito,
que quando ambos entram em contato, o risco (ao contrário do que seria
normal) é todo do jagunço, não do homem de ordem. Este constitui uma
ameaça à natureza do jagunço, um perigo de reduzi-lo a peça de
15
engrenagem, destruindo a sua condição de aventura e liberdade.” Walnice
Nogueira Galvão, mesmo sem fazer menção a essas considerações de seu
orientador, aporta elementos que as iluminam. Valendo-se com freqüência
das observações de Candido sobre o caipira paulista que ele reuniu na tese
de doutorado em Sociologia (Os parceiros do Rio Bonito, defendida em
1954), chama atenção para a vinculação entre liberdade e dependência no
cerne das condições de vida dos homens livres que formam a plebe rural: “A
liberdade absoluta desses homens, que deriva da falta de tudo – de
propriedade, tradição, raízes, qualificação profissional, instrumentos de
trabalho, direitos e deveres –, tem como corolário a dependência também
absoluta. O único meio de sobreviver é colocar-se sob a ‘proteção’ de um
poderoso”.16 A sujeição do homem supostamente livre ao proprietário garante
àquele os “mínimos vitais e sociais” (“trabalho rudimentar e esporádico,
alimentação insuficiente, frouxa trama da organização social, produção
cultural quase inexistente”), ao mesmo tempo em que fornece ao fazendeiro
uma força disponível para qualquer trabalho, pois “o morar ‘de favor’ em terra
alheia traz implícito o compromisso pessoal com o proprietário da terra”. Para
contar com o beneplácito de habitar um pedaço de terra e extrair dele a
subsistência, os pobres no sertão têm que prestar os mais diversos serviços
– e mesmo que o façam com total dedicação, sabem que, a qualquer
momento, podem ser mandados embora dali.

A natureza da unidade produtiva prioritária no Brasil, – a fazenda,


simultaneamente empresa e lar, produção e vida doméstica, relações de
trabalho e relações pessoais de indivíduo para indivíduo – em si mesma
contraditória, fixou um quinhão também contraditório para o homem pobre.
Dispensável ao processo produtivo, encontra sua subsistência em atividades
residuais, para o exercício das quais depende da autorização do dono da

15
Antonio Candido, Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa, op. cit., p. 113.
16
Walnice Nogueira Galvão, op. cit., p. 37.

85
terra. O direito de moradia, contrato verbal de pessoa para pessoa,
expressando uma ordem de relações, implica na reciprocidade de serviços
por parte do morador. Mas a outra ordem de relações, regida pelo interesse,
leva freqüentemente o fazendeiro a expulsar o morador quando precisa das
terras anteriormente cedidas. Sua lealdade, portanto, é alternadamente
solicitada e violada. Uma vez expulso, resta-lhe pôr o pé na estrada e
17
procurar outro senhor.

Na “típica mobilidade do homem pobre no meio rural”, em sua


condição de “homem muito provisório” – termo preciso com que o narrador de
Grande sertão: veredas define o jagunço (GSV, p. 364) –, confundem-se
portanto liberdade e dependência. E um dos serviços para os quais o homem
livre que vive de favor se põe à disposição de seu patrão (misto de
empregador, senhor, benfeitor, padrinho e chefe militar) é pegar em armas
para defender os limites da fazenda, em disputas mais específicas, ou para,
em disputas de maior abrangência, compor os exércitos pára-oficiais que
garantem resultados em pleitos eleitorais: “a unidade econômica mínima é
também a unidade mínima do poder político no Brasil rural”.

Cada fazendeiro com seus chefiados, em guerra privada (...). Célula


econômica com sua própria força armada (...). Na passagem da colônia para
país independente, com a criação formal de um quadro de instituições para
o exercício eleitoral-representativo do poder político, tais células entraram
intactas nesse quadro. Não houve alteração do sistema de poder efetivo,
houve apenas um ajustamento dele aos quadros formais então criados.
Cada célula significava um número de votos; da aliança entre os senhores
locais é que resulta, inflexivelmente, a eleição do candidato escolhido em
18
combinação com os partidos, de quem eles são a expressão local.

Assim, feito jagunço, o homem da plebe rural ingressa na história


republicana brasileira como “potencial de força manipulada por outrem para o
exercício do poder”:

17
Ibid., p. 38. Neste passo, Walnice Nogueira Galvão remete ao estudo Homens livres na ordem
escravocrata, de Maria Sylvia de Carvalho Franco. Sobre as implicações que tem na narrativa de
Grande sertão: veredas a “junção contraditória de formas de relações interpessoais e sociais que
supõem a independência ou a autonomia do indivíduo e sua dependência pessoal direta”, ver o
comentário sobre o ensaio de José Antonio Pasta Jr., O romance de Rosa: temas do Brasil e do
Grande sertão (Novos Estudos Cebrap, nº 55, p. 67), na INTRODUÇÃO desta tese (p. 26-29).
18
Walnice Nogueira Galvção, op. cit., p. 44.

86
Passível de ser utilizada para o trabalho como para a destruição, para
manter a ordem como para ameaçá-la, para impor a lei como para
transgredi-la, para vingar ofensas como para praticá-las, as razões que
decidem sua atuação num ou noutro sentido independem de sua escolha. O
senhor é quem opta, o jagunço executa. Tudo o que se passa fora da
imediatez das tarefas cotidianas, o traçado dos interesses, as linhas-mestras
19
da história, está também fora do alcance de sua consciência.

Investigando a face documental de Grande sertão: veredas pelo


prisma das condições objetivas que determinam a existência dos sertanejos
da época em que transcorre a narrativa, Walnice Nogueira Galvão seguiu
Antonio Candido na abertura de um caminho para o entendimento do modo
como processos históricos brasileiros concorrem para a especificidade da
composição literária. Os primeiros rendimentos críticos do procedimento
adotado na parte 1 de As formas do falso já ficam patentes nas partes
seguintes do próprio estudo, onde a autora distingue aspectos formais da
narrativa – alguns apenas assinalados, outros, analisados mais detidamente
– que parecem vinculados a traços constitutivos da estrutura sócio-
econômica de abrangência nacional identificados na observação do sertão
real.

19
Ibid., p. 47.

87
2.2 - O JAGUNÇO ARRIVISTA

A certa altura da Advertência ao leitor, que abre a segunda edição da


coletânea de ensaios Nova narrativa épica no Brasil (1988), José Hildebrando
Dacanal confessa que se, naquele momento, fosse reescrever o texto sobre
Grande sertão: veredas (A epopéia de Riobaldo, preparado entre 1971 e
1972 e publicado no ano seguinte, na primeira edição do livro),
provavelmente teria mais peso em sua análise a “matéria histórica brasileira”
presente no romance (“os fenômenos do coronelismo e da jagunçagem na
República Velha, por exemplo”). Assim, ficariam acentuadas “linhas
interpretativas que são apenas afloradas ao longo do texto ou que aparecem
em observações à margem”.1 Com essa afirmativa, o autor pôe-se na
contramão das tendências vigentes na recepção da obra de Guimarães Rosa
em fins da década de 1980. A maioria dos intérpretes pouco se interessava
pelas relações entre o romance e a história do país, permaneciam sem
desdobramento os achados a esse respeito existentes nos trabalhos de
Antonio Candido e Walnice Nogueira Galvão (que, em nota ao ensaio sobre o
livro de Rosa, Dacanal cita como exceções em meio ao “descaminho ou a
ausência de resultados satisfatórios da maior parte da crítica”).
Em A epopéia de Riobaldo, as “linhas interpretativas” referentes à
matéria histórica, ainda que não plenamente desenvolvidas, compõem um
encaminhamento bem singular para a abordagem de Grande sertão: veredas
do ponto de vista da experiência brasileira. Veja-se, por exemplo, o
comentário a respeito da inserção do protagonista na hierarquia social do
sertão:

Riobaldo, filho natural de Bigri e Selorico Mendes, é um arrivista no plano


social. (...) Nascido e crescido às margens do São Francisco, Riobaldo difere

1
José Hildebrando Dacanal, Advertência ao leitor. In: Nova narrativa épica no Brasil, p. 6. Segundo o
autor, o ensaio A epopéia de Riobaldo sofreu apenas pequenas alterações, irrelevantes para seu
sentido geral, na passagem da primeira à segunda edição, à qual se reportam os comentários deste
capítulo.

88
por completo, neste ponto, de Joca Ramiro – o fazendeiro e latifundiário
tradicional – e de Ricardão – “bruto comercial”, “dono de muitas fazendas”,
talvez com um passado parecido com o de Paulo Honório, de Graciliano –,
aproximando-se muito de Hermógenes – “bom jagunço, cabo de turma” (...).
O sonhar de Riobaldo por Otacília não é apenas um sonhar romanticamente
Penélope em uma Ítaca qualquer (por exemplo [...]: “Mesmo com a minha
vontade toda...” etc., onde a necessidade de uma companheira termina na
recordação das grandes fazendas da mesma!...). Os bens de Otacília,
portanto, são um tema que sempre retorna (...).
Riobaldo, socialmente, é um jagunço calculista e arrivista, flor de
reacionarismo, que consegue chegar a grande fazendeiro, colocando-se ao
final em uma posição digna do mais puro filisteu: “Mas o que mormente me
fortaleceu foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam como
talentoso homem-de-bem, e louvavam meus feitos, eu tivesse vindo,
corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais da
jagunçagem. Fui indo melhor.” (...) Realmente, ir além é impossível!
Riobaldo surge assim renegando suas origens, satisfeito por ter sido o
instrumento de destruição de seus próprios iguais, de seus companheiros do
passado. Socialmente, o herói de Guimarães Rosa é um inocente útil.
2
Talvez mais útil do que inocente...!

A descrição da travessia social de Riobaldo como percurso oportunista


orientado pelo arrivismo tem, o autor sabe de antemão, tudo para desagradar
“os construtores apressados de um impressionismo laudatório sem base”, já
então comum na recepção da obra de Guimarães Rosa. De fato, as
proposições do crítico gaúcho raramente são lembradas por intérpretes que o
sucederam. Em textos sobre Grande sertão: veredas, é freqüente a avaliação
indiscriminadamente positiva do destino do protagonista e das motivações
que fazem dele narrador. Na maior parte das vezes, os significados
atribuídos aos movimentos do enredo, assim como aos procedimentos de
elaboração lingüística e narrativa, revestem-se de valor positivo – o intérprete
apresenta as atitudes do narrador-protagonista como opções louváveis no
contexto dos processos históricos implicados no tecido ficcional. Por
exemplo, costuma-se elogiar a inquietação auto-questionadora que
impulsiona a narrativa por seu caráter de busca de esclarecimento e
superação do obscurantismo no universo sertanejo, ficando em segundo

2
Id., A epopéia de Riobaldo, op. cit, p. 37-38.

89
plano, na maioria das leituras, o viés negativo presente no interesse de auto-
justificação, que também anima o narrador. Veremos, no CAPÍTULO 3, que a
identificação desse e de outros matizes da expressão e da personalidade do
narrador constitui um achado importante para a crítica que se propõe a lidar
com a forma complexa como a matéria brasileira se inscreve no romance.
Com relação ao trabalho de Dacanal, importa observar que a
identificação das “pretensões de Riobaldo” no plano social não conduz à
exploração simplista do que há de realismo na trajetória do personagem, no
fato de sua ascensão ser processo verossímil na sociedade sertaneja. É
como tentativa de esclarecer a vinculação entre a forma do romance e as
coordenadas históricas em que ela se configurou que o crítico considera o
arrivismo do herói – menino muito pobre, filho bastardo de fazendeiro que
chegou a chefe de jagunços e assim conseguiu casamento proveitoso para
confirmar seu posicionamento na classe social dos donos de terras e
homens. Esse percurso é descrito logo na parte 1 do ensaio, onde consta
como argumento a favor da hipótese de que a contraposição entre passado e
presente corresponde à “estrutura mais profunda da narrativa rosiana”. Em
vários outros pontos surgem comentários mais breves a respeito da trajetória
social de Riobaldo, inclusive em passagens importantes para a defesa da
tese que unifica os artigos reunidos no volume.
Em clave historiográfica, A nova narrativa épica no Brasil propõe-se a
explicar um conjunto de romances da segunda metade do século XX em face
da experiência econômica e social de nosso continente – a literatura do país
figura portanto como manifestação local de um processo em curso na ficção
latino-americana. As reflexões sobre a matéria histórica brasileira presente
em Grande sertão: veredas adquirem dimensão de questões relativas ao
passado, ao presente e ao futuro do então chamado Terceiro Mundo.
Romances como o de Rosa, O coronel e o lobisomem (José Cândido de
Carvalho, 1964), Cem anos de solidão (Gabriel García Márquez, 1967),
Sargento Getúlio (João Ubaldo Ribeiro, 1971) e Os Guaianãs (tetralogia de
Benito Barreto publicada entre 1962 e 1975) são apresentados como
integrantes do “ciclo da nova narrativa épica latino-americana”, um estágio
recente na história da literatura ocidental desde Homero – hipótese que o
autor, na Advertência à segunda edição de seu livro, reconhece pretensiosa,

90
mas que nem por isso descarta. Os livros seriam experssão de “um
fenômeno qualitativo radicalmente novo no âmbito daquela ficção romanesca
ocidental cujo primeiro grande marco indiscutível é Cervantes, com seu Dom
Quixote (...)”. Para Dacanal, o “caráter fundamental”, ou “essencial”, dessa
tradição se define pela “perspectiva ficcional lógico-racionalista”, engendrada
por dois elementos: a “busca da verossimilhança, exigida por uma estrutura
consciencial lógico-racional”, e o “distanciamento perante tudo quanto não for
verossímil” do ponto de vista daquela estrutura de consciência. São fatores
que estabeleceram uma “continuidade racionalista” na ficção romanesca de
vertente européia. O crítico argumenta que a singularidade da nova narrativa
épica latino-americana reside no fato de esta “colocar lado a lado, de forma
inocente, sem distanciamento, o mundo real, verossímil, e o mundo mítico-
sacral, inverossímil”. Seria “um terceiro (ou quarto) momento da épica” na
história literária que inclui o epos grego, as obras da literatura medieval
(épicas entre aspas, dada “a Weltsanschauung idealista dentro da qual tais
obras se inscrevem e a enorme incidência do lírico e, às vezes, do trágico
nelas notada”) e o romance da idade burguesa européia. O critério levado em
conta para classificar como épicos esses “mundos ficcionais de natureza
diversa que surgem em mundos de estruturas conscienciais obviamente
também diversas (...) é o fato de neles, (...) ser fixada, narrada e celebrada a
ação do homem sobre o mundo (...)”.3 Daí a necessidade do “diálogo
implícito” com as Lições de estética de Hegel e com a Teoria do romance de
Lukács, que serve para especificar os contornos do universo ficcional
brasileiro/latino-americano, filiado à tradição e ao mesmo tempo distinto das
expressões épicas anteriores. Isso não é possível sem uma visão da
literatura orientada pela dialética histórica.

Hegel e Lukács são importantes como pontos de referência na análise


de uma obra da nova narrativa épica latino-americana na medida em que
ambos captam as coordenadas históricas dentro das quais surgiu e
desapareceu o romance [europeu]: a estrutura consciencial laicizada,
dessacralizada do mundo europeu; na medida em que, por terem desvelado

3
Cf. Ibid., p. 10-19.

91
o essencial, esclarecem, por contraposição, a especificidade de uma obra
4
nascida dentro de outras coordenadas históricas.

Em síntese, José Hildebrando Dacanal apresenta Grande sertão:


veredas como forma épica na qual o tipo de consciência lógico-racional
assimilado pelo narrador-protagonista ao longo de sua formação confronta-se
com a estrutura de consciência mítico-sacral, manifesta tanto na
“problemática demonológica” pessoal – que inquieta o personagem e dá
ensejo à narração – quanto no contexto sertanejo de crendices e
superstições em que se ambienta a história. Para definir o “caráter
específico” do mítico-sacral na obra de Guimarães Rosa, o ensaísta opera
com a dialética passado-presente que considera estruturadora do romance, e
o tema da trajetória social de Riobaldo assume um papel decisivo na
argumentação. Reaparece na seguinte seqüência de constatações: 1) no
presente da narração, o problema demonológico retorna constantemente, sob
forma de negação da existência do Demônio (ressaltada pelas digressões
reflexivas em que o narrador convoca a racionalidade do interlocutor como
reforço contra a possibilidade de encarnação da essência do Mal) e nas
intermitentes menções ao episódio do pacto (cujo relato, “iniciado várias
vezes e outras tantas postergado”, só ocorre, na íntegra, quando se encaixa
no curso da cronologia); 2) essas duas formas de negação do Demônio (a
refutação lógica e o adiamento da narração da cena do pacto) são possíveis
porque o narrador se refere a uma experiência “que já é passado distante”, 3)
experiência que “poderia desvelar o núcleo central da obra”: “o salto
qualitativo de um plano de consciência para outro”. Nesse ponto, quando
apresenta sua análise dos acontecimentos relacionados à cena do pacto,
4
Ibid., p. 19. Itálicos do autor. Para melhor entendimento das proposições de Dacanal, vale a pena
transcrever alguns trechos do ensaio que especificam a abrangência de termos como “épica”,
“consciência de estruturas lógico-racionais” e “consciência de estruturas mítico-sacrais”:
“(...) o termo épico, empregado como substantivo ou adjetivo, possui aqui o sentido amplo com que é
utilizado seja na Estética de Hegel, seja em Teoria do romance, de Lukács. (...) o termo épico define a
forma literária (ficcional) cujos exemplos mais puros são o epos grego e o romance (real-naturalista).
Esta forma é a da narração da ação (e a celebração desta ação) do indivíduo sobre o mundo que o
cerca”. (p. 68).
“Para uma consciência de estruturas lógico-racionais (...) o mundo exterior existe e é interpretado na
medida em que possuir objetividade empírica – os fenômenos – ou lógica (...) existe apenas o
fenômeno como fenômeno, em sua imediaticidade captada ou captável, empírica ou lógica (as leis
resultantes da observação das relações entre os fenômenos). O fenômeno tem apenas e sempre o
valor de fenômeno e jamais é o portador de um significado que o ultrapasse.
Para uma consciência de estruturas mítico-sacrais, ao contrário, o fenômeno pode carregar um
sentido, uma mensagem que ultrapassa sua realidade empírica ou lógica. Assim, o raio pode ser o
mensageiro de um poder transcendente (...).” (p. 41-42).

92
Dacanal avança nas considerações a respeito da ascensão de Riobaldo na
hierarquia da sociedade sertaneja.
É verdade que o ensaísta ressalva que o tema da ascensão social e
econômica tem, no conjunto do romance, peso menor do que a
“transformação interior” pela qual o protagonista passa quando busca o
Demônio na encruzilhada. Ainda que “secundária”, a mutação do raso
jagunço em fazendeiro aparece na interpretação como processo vinculado à
transformação vivida pelo personagem-narrador (“a libertação dos terrores
mítico-sacrais, dando início à caminhada que o levaria à conquista de uma
visão de mundo agnóstico-existencial, dentro da qual ser-lhe-ia possível
integrar todos os fenômenos contraditórios da existência humana”).
Associando o tópico que privilegia (a diferença de visões de mundo – mítico-
sacral x lógico-racional) ao histórico social de Riobaldo, José Hildebrando
Dacanal formula uma leitura de Grande sertão: veredas na qual o romance é
apresentado como figuração do “processo de ascensão do Terceiro Mundo”.
O que torna A epopéia de Riobaldo um ensaio relevante para a perspectiva
crítica que observamos aqui é esse seu investimento numa possibilidade
muito original de compreensão do livro, que conjuga a constituição do enredo
e do protagonista-narrador, o viés realista empenhado nessa constituição
(verossímil em relação ao contexto local em que a ação é ambientada) e uma
experiência histórica que, ao mesmo tempo, é nacional e ultrapassa
fronteiras, que diz respeito a uma grande área do globo. Segundo Dacanal,
ao procurar o Diabo para fazer o pacto, o herói de Guimarães Rosa tenta
achar um caminho que lhe permita “encontrar para a vida um sentido
totalizador” e, nesse movimento, abraça seu “destino elitário”. Evocando a
teoria do romance de Lukács, o crítico atribui à atuação do herói problemático
o significado de esforço elaborador de uma totalização que não se evidencia
na imediaticidade dos fatos: “[Riobaldo] Vê que deve encontrar um
denominador comum para ordenar os fenômenos contraditórios que
compõem o mundo, a existência”. Essa busca de sentido é associada à
escalada feita pelo jagunço arrivista:

Riobaldo marcha para a transformação com a qual pretendia alcançar


dois objetivos: encontrar (...) um fundamento que pudesse dar sentido

93
totalizante às realidades desconexas, contraditórias, do mundo e subir
socialmente, deixando de cachorrar pelo sertão como um raso jagunço.
(...)
O evento essencial desta trajetória é a superação de um plano de
consciência por outro: o mítico-sacral pelo lógico-racional. (...)
O episódio de Veredas Altas [local onde é invocado o Demônio] se
encerra com um sentimento de alegria indizível (...), com o alvorecer, o
nascer de um novo dia (...), contraponto do nascer do homem novo (...).
Agora, Riobaldo está pronto para assumir o comando dos jagunços e,
através da contraposição Diadorim/Hermógenes e da conquista de Otacília,
entrar na plenitude de seu destino, misto de trajetória cultural-filosófica – a
superação do plano consciencial mítico-sacral e o encontro de uma visão de
mundo agnóstico-existencial, capaz de integrar a totalidade dos fenômenos
da condição humana – e de arrivismo social e econômico – o casamento e a
nova posição sócio-econômica de fazendeiro e, last but not least, de ultra-
5
reacionário e filisteu.

O que isso tem a ver com o conjunto de nações que há pouco tempo
era chamado de Terceiro Mundo ou, nas palavras de Dacanal, com “os
grupos nacionais, étnicos e culturais que até o momento tinham sido
marginalizados e, na condição de explorados, permaneciam como simples
objeto da história do planeta dos últimos séculos”? No ensaio, arma-se uma
equação que inclui entre seus termos o Grande sertão: veredas, o “novo
colonialismo global” da década de 1970 e as perspectivas que então se
apresentavam para os países da periferia do capitalismo. Ou seja, a reflexão
sobre a singularidade épica do romance de Guimarães Rosa incide também
sobre a história recente do Brasil, naquilo que ela tem em comum com a de
outros países do continente, e de outras regiões. Para o crítico, “Grande
sertão: veredas é o Terceiro Mundo em marcha”. Isso porque Guimarães
Rosa construiu “um herói equilibrado e unitário, um herói que mergulha(ra) na
ação e se justifica ao aceitar a condição humana – sem problematizá-la –
num contexto de pura horizontalidade”,6 quando, em nações do centro do
capitalismo, já não parecia haver condições para a configuração de
totalização épica – a qual ainda fora possível mesmo no “mundo degradado”
da ficção real-naturalista observado por Lukács, “mundo completo em si

5
Ibid., p. 49-54. Itálicos do autor.
6
Cf. Ibid., p. 68-72

94
próprio, completo mesmo em sua intrínseca problematicidade”. A teoria do
romance figura por isso como marco de uma divisão de águas na ficção
romanesca européia, assinalando o fim do “simples existir histórico, da
epifania inocente de um mundo” e o “início da consciência, ao debruçar-se
reflexivamente sobre este mundo”. O autor faz questão de ressaltar, em seu
comentário sobre o romance da consciência individual burguesa, que Lukács,
nos termos com que o descreve, evidencia o fato de que se trata de uma
derradeira e paradoxal unificação totalizadora (épica) na narrativa do Velho
Continente.7 Em A epopéia de Riobaldo, a discussão acerca do clássico
problema dos gêneros literários integra um esforço de compreensão das
relações entre as formas estéticas e a experiência histórica, resultando em
reflexões bem singulares no conjunto da fortuna crítica de Grande sertão:
veredas. Encaminhando-se para o fim do texto, José Hildebrando Dacanal se
pergunta: o que viabiliza a emergência do épico, de uma visão de mundo
totalizadora, num romance brasileiro de 1956, décadas depois de a literatura
européia ter iniciado uma busca de rumos para a forma romanesca que já
não se pautava pela tentativa de fazer da figuração literária a expressão de
uma totalidade (nas criações de, por exemplo, Marcel Proust, James Joyce e
Thomas Mann)? O que significa, no âmbito da história contemporânea, a
permanência da possibilidade de figuração totalizadora da experiência
encontrada por um escritor do Terceiro Mundo?
Eis os passos da explicação apresentada.
A “estrutura fundamental” de Grande sertão: veredas, o “alternar-se
contínuo dos planos temporais do presente e do passado”, permite “a
valoração do passado como experiência existencial, vital, imanente, positiva
e, em conseqüência, épica”. A fala do narrador avança num movimento
pendular, repetidamente indo ao passado (relato dos fatos vividos) e voltando
ao presente (reflexões formuladas no tempo da narração). Se os momentos
reflexivos trazem para o primeiro plano a situação dramática (o fazendeiro em

7
Cf. Ibid., p. 17-18. “Depois dele [Lukács] não será mais possível esquecer – sob pena de não se
entender nada – que o romance europeu é realmente a epopéia de ‘um mundo sem deuses’,
dessacralizado, onde todos os valores são relativos e onde esta relativização é, paradoxalmente, a
própria plenitude. Um mundo estilhaçado, órfão de um centro catalisador ou, melhor, mundo cuja
própria unidade é a de não possuí-la. Este é o sentido da expressão lukacsiana mundo degradado,
dentro do qual caminha um herói também degradado, incapaz de recolher os fios e repor os estilhaços.
Cada romance é um mundo próprio, cada herói busca outros, diversos, valores. Eis por que o romance
é o mundo da total relatividade ou, em termos lukacsianos, da total degradação.” (p. 18).

95
conversa com o “doutor”), nos momentos em que são contados os episódios
da vida de jagunço parece que aquela cena presente é esquecida pelo
narrador, cancelando-se a possibilidade de distanciamento crítico com
relação ao passado. E isso vale também para o leitor: também ele, naqueles
momentos, tende a encarar as aventuras do herói menos como objeto para
reflexão do que como eventos cujo curso se acompanha. Assim, “Riobaldo
torna-se um aedo: o cantor de feitos heróicos existentes em definitivo num
tempo mítico (do passado que jamais retornará).” É essa vivência definitiva,
absoluta do passado, compartilhada pelo narrador e pelo leitor do romance,
que o crítico caracteriza como épica.8
Esclarecida a dinâmica interna que viabiliza a emergência do épico no
romance, Dacanal passa a desenvolver uma hipótese sobre as condições
históricas implicadas na possibilidade de se armar uma tal estrutura ficcional.
E propõe um sentido bastante original para a tão propalada universalidade de
Grande sertão: veredas, associando-a à trajetória do Terceiro Mundo na
ordem global do século XX. As opiniões que o autor emite com relação a
fatos contemporâneos ao seu texto – em especial aquelas que se referem ao
destino dos países da periferia do capitalismo – poderão hoje parecer
ingenuamente otimistas e equivocadas, se não forem levados em conta as
tendências que se apresentavam no contexto mundial da época, o
posicionamento político de quem escreve e os ideias em circulação
assimilados no texto. No início dos anos 1970, nem mesmo a realidade
desestimulante da ditadura Médici impedia que se alimentasse o projeto
revolucionário. A mera existência de nações não-capitalistas dava força à
idéia de que era possível uma guinada à esquerda no Brasil. Considerando a
História pelo prisma da dialética hegeliana e assumindo a perspectiva que
reputava comum às “elites progressistas do Terceiro Mundo”, Dacanal encara
o “processo de ascensão” dos países que formavam esse bloco como
movimento radicalmente transformador. As obras “épicas” que analisa em
seu livro, criadas por membros daquelas elites, parecem constituir um sinal
de ímpeto afirmativo dos “grupos nacionais, étnicos e culturais” que, na visão
do autor, mostravam-se inclinados a romper com a condição de “serem

8
Cf. Ibid., p. 69-70.

96
apenas objetos da história e área de rapina econômica e cultural dos grandes
impérios europeus e norte-americano”.

Tudo leva a crer que a espinha dorsal do processo histórico que


atravessa o séc. XX se estruture em torno de um movimento
ascendente/descendente entre dois pontos. Na parte superior está a
decadência da idade européia, com o desaparecimento da cena histórica
dos grandes impérios coloniais (...) e sua substituição – entre 1914 e 1945 –
por duas novas potências, Estados Unidos e União Soviética (...). Na parte
inferior deste movimento ascendente/descendente se encontra o Terceiro
Mundo. (...) Tais grupos, ameaçados de desaparecimento diante do avanço
implacável do novo colonialismo global representado pelo avanço da
civilização racionalista e tecnicizada ad nauseam da era da computação e
pressionado pelo instinto de sobrevivência, são levados a reagir. Dado que
uma reação negativa – quer dizer, de recusa total, de não aceitação –
representaria, no contexto de uma economia mundial de mercado (...), o
suicídio livremente escolhido, esses grupos são obrigados, na medida de
suas possibilidades, a optar pela única saída existente: um movimento
dialético de recusa de seu estágio anterior e de aceitação mais ou menos
rápida do processo. (...)
(...) marcarão de forma profunda e indelével a consciência ocidental e a
história do planeta. A partir de agora esta será também a sua história, o que
determina, assim, dialeticamente, o fim definitivo do Ocidente pós-
renascentista e das estruturas sócio-econômicas dele específicas: a
expansão capitalista, o colonialismo de rapina e o neocolonialismo
9
tecnológico e militar.

Sabemos que as mais louváveis expectativas de José Hildebrando


Dacanal não se confirmaram. De todo modo, aqui, o que interessa não é pôr
em discussão a validade de qualquer visão ou projeção da História, mas
sublinhar a possibilidade de aproveitamento crítico de certas percepções
sobre a forma literária que dependem da compreensão de circunstâncias
históricas. Desse ponto de vista, o que há de mais relevante nas teses de A
nova narrativa épica latino-americana é o fato de ensaiar-se uma leitura de
Grande sertão: veredas que se propõe a entender a forma ficcional levando
em conta processos sociais, econômicos e políticos globais, sem recair no
lugar-comum de atribuir ao livro de Guimarães Rosa uma universalidade tout

9
Ibid., p. 73-75. Itálicos do autor.

97
court. O crítico especifica matizes para a abrangência ampla dos processos
históricos sobre os quais reflete enquanto comenta a obra estética. Ao longo
do ensaio, a transição entre os “estados de consciência” “mítico-sacral” e
“lógico-racional” surge como realidade comum a várias nações da periferia do
capitalismo e, para demonstrar isso, Dacanal as contrasta com países do
centro do sistema, enfoca a ordem mundial. A mesma transição constitui o
cerne daquilo que ele considera a “estrutura profunda” na construção
romanesca de Rosa – passado x presente na narração. E também aparece
nos comentários esparsos a respeito da trajetória arrivista do herói na
sociedade sertaneja. Assim, fica sugerido no ensaio que o arrivismo de
Riobaldo é fator estruturante da forma ficcional.
Voltando à hipótese de Dacanal a respeito das interações entre
circunstâncias históricas e a configuração do romance: a emergência do
épico se faz possível porque 1) as circunstâncias em que transcorrem as
aventuras narradas deixaram de existir – o jagunço encerra sua carreira no
momento de transformação da ordem política da República Velha, aquele é
um tempo definitivamente passado, “perdido irremediavelmente para
Riobaldo e para a comunidade que ele representa”; 2) por outro lado, a
consciência do narrador permanece em defasagem com relação a “seus
pares (elites) do Ocidente urbanizado”, pois “Riobaldo, ao superar o nível de
consciência mítico-sacral, não passa ao nível cético-racionalista próprio dos
centros urbanizados do Ocidente desde a segunda metade do século XIX”.10
A visão que tem o narrador de Guimarães Rosa só pode funcionar como
ponto de vista capaz de justificar o desconcerto do mundo apegando-se à
imanência – “Existe é homem humano” (GS:V, p. 538) –, mantendo-se a
salvo do ceticismo contemporâneo que refuta toda possibilidade de
totalização. Ilhado em sua fazenda, isolado no sertão, ele consegue formular
reflexões “baseadas na aceitação do mundo como experiência e como
realidade imanente”, sem que alguma problematização das explicações em
que aposta ameace o equilíbrio conquistado. O contexto no qual está fixado
viabiliza o “estado de consciência” que lhe proporciona o conforto de encarar
a própria existência como um todo justificável, retrospectivamente não-

10
Ibid., p. 69.

98
problemático – todos os movimentos imprevistos no fluxo da vida, todas as
decisões arbitrárias tomadas, tudo se reveste de sentido e parece lógico,
ordenado numa mitologia pessoal. “Somente no sertão de um país do
Terceiro Mundo – ainda não plenamente integrado na crise de fundamento da
consciência ocidental (...) – apenas ali seria possível localizar e recriar um
mundo épico”.11 Esse isolamento estratégico em que o escritor coloca seu
narrador-protagonista inclui a possibilidade de interação com o universo
mítico-sacral da religiosidade popular. Mesmo no presente da narração,
mesmo assimilada a lógica personificada no “doutor”, não está de todo
neutralizada a inquietação com a razão de ser dos fenômenos em que
Riobaldo se viu envolvido, como testemunha ou como agente. Sinal disso,
segundo Dacanal, é sua participação em “experiências religiosas ecléticas”,
ocasiões de catarse às quais “não adere interiormente”, as quais “usa como
calmante para esquecer o desconcerto do mundo que sempre o perturba
apesar da solução agnóstico-existencial-imanente que soubera encontrar”.12
A conciliação oportuna entre o estado de consciência do velho Riobaldo
(“agnóstico-existencial-imanente”) e suas práticas vinculadas a um estado de
consciência que ele no passado renegou leva o ensaísta a afirmar que a
figura do narrador-protagonista de Grande sertão: veredas é uma “solução de
compromisso”, que confere singularidade ao romance (do ponto de vista do
andamento da literatura latino-americana que lhe é contemporânea):

Mas este processo de ascensão do Terceiro Mundo é, evidentemente,


contraditório e doloroso. Porque ao mesmo tempo em que tais grupos
nacionais, étnicos ou culturais se movimentam para cima em busca de sua
sobrevivência e da manutenção de seus valores próprios, eles são
obrigados a aceitar, se não totalmente, pelo menos em parte, a civilização
racionalista, tecnicizada e pragmática do Ocidente. Ora, esta aceitação da
modernização provoca necessariamente a destruição de seus valores mais
profundos, de seu próprio mundo até hoje guardado no mais recôndito de
seu ser. (...) Talvez não seja por acaso que as grandes obras do realismo
mágico ou, na expressão utilizada na introdução deste ensaio, as grandes
obras da nova narrativa épica latino-americana se encerrem com
cataclismas em que – com exceção da solução de compromisso em

11
Ibid., p. 71.
12
Ibid., p. 70-71. Itálico do autor.

99
Grande sertão: veredas – os personagens são destruídos, varridos da face
13
da terra juntamente com o mundo que os cerca.

O sujeito esclarecido que é o velho Riobaldo recorre à religiosidade


popular com intuito de apaziguamento, e este parece ser também uma de
suas motivações na narração. Ao contar seu passado, esforça-se por obter
de quem acompanha o relato uma avaliação positiva para as alternativas que
encontrou. E o visitante vindo da cidade – ou seja, aparamentado com os
princípios racionais e, portanto, gabaritado para avaliar a justificabilidade dos
fatos narrados segundo essa ótica – parece sempre confirmar as proposições
do narrador. Do modo como se estrutura o romance, o papel reservado ao
interlocutor da narrativa parece ser o de validar as opções que deram vida
nova ao herói. Depois das tragédias da guerra e do amor irrealizado, ele
encontra no casamento com Otacília, na paz doméstica da vida de
fazendeiro, o conforto de manter-se, na prática, à salvo das tensões com que
convivera. E ao ouvinte, duplo do leitor, esta trajetória surge como que
justificada em si. Nessa medida, Grande sertão: veredas é uma solução de
compromisso da qual o leitor é pactário.

13
Ibid., p. 75. Itálicos do autor, negritos meus.

100
3

EXPRESSÃO E PERSONALIDADE DO NARRADOR

Na conferência que proferiu por ocasião do 2º Seminário Internacional


Guimarães Rosa (PUC-MG, 2002), Walnice Nogueira Galvão reafirmou, 30
anos depois da publicação de As formas do falso, uma de suas percepções
iniciais mais conseqüentes para a análise da inscrição da história brasileira
em Grande sertão: veredas: o fato de que se expõe nele “a concretude dos
fenômenos históricos, encarnados em personagens” e, em especial, uma
“regra” determinante em nossa história, “o exercício privado e organizado da
violência”, no qual se enraíza “um dos fundamentos de uma sociedade sem
par em sua iniqüidade, com um dos maiores índices de desigualdade quando
comparada aos demais países”.1
A análise da condição jagunça que a autora realizou na primeira parte
da tese de 1972 (ver CAPÍTULO 2.1) serve de base para a constatação de que,
no livro, a singularidade no tratamento da matéria histórica passa pela
“encarnação em personagens de romance do próprio processo político de
consolidação nacional levado a cabo em sua última parte pela República
Velha, e de que a ditadura Vargas marca o termo”.2 Tal hipótese aparece
desenvolvida nos parágrafos seguintes – trecho do estudo sempre
relembrado e reiterado por outros intérpretes até hoje –, onde Zé Bebelo é

1
Walnice Nogueira Galvão, O mago do verbo. Scripta, v. 5, nº 10, p. 347.
2
Id., As formas do falso, p. 64.

101
apresentado como representante do princípio centralizador republicano que
se opõe ao princípio federativo e localista encarnado nos chefes de jagunços.

Zé Bebelo é o homem da Ordem (...) e do Progresso (...). Embora pense


em seus interesses particulares e tenha um olho no Congresso, fala sempre
nos interesses da nação (...). E é a única personagem deste livro capaz de
raciocinar não em termos de tradição e de alianças privadas de dominação,
mas em termos de república e de canais democráticos. (...).
Os atributos pessoais de Zé Bebelo representam a modernidade, no
contexto histórico da República Velha do romance; são eles a inteligência, o
desejo de instruir-se e a visão nacional. Mas, também ele ambíguo,
comporta forte contingente de atributos pessoais tradicionais: a valentia em
primeiro lugar, a sede de poder pessoal, a utilização dos recursos habituais
para cumprir seus intentos – usa jagunços para acabar com jagunços.
Rende-se afinal à lei do sertão, assumindo a chefia do próprio bando que
combatera; e isso, para levar avante uma missão de vingança particular sem
qualquer propósito “nacional”. Perdeu a parada histórica; só lhe restava ou
morrer pelas armas – à maneira tradicional – ou degradar-se em negociante,
3
que é o que lhe acontece (...).

O modelo alegórico de interpretação praticado em As formas do falso


ficou como um achado determinante para a crítica posterior. Pauta-se muito
por correlações como a exercitada nos parágrafos transcritos acima uma
parcela considerável do conjunto de textos críticos que, desde meados da
década de 1990, reinaugurou o interesse pelo que há de vida brasileira em
Grande sertão: veredas. De um lado, características e papéis
desempenhados por determinados personagens ou episódios; de outro,
traços identificados como definidores e problemáticos da modernidade no
país. A impressão que se tem, lendo os ensaios que recentemente
retomaram o livro de Walnice Nogueira Galvão, é que seu avanço mais
importante resume-se a um procedimento interpretativo: a análise de
personagens e passagens da narrativa como alegorias da história política do
país. Mesmo Luiz Roncari, que só uma vez em seu livro de 2004 refere-se ao
trabalho da autora – para questionar um ponto de sua análise (ver CAPÍTULO
2.1, p. 79) –, não diverge tanto dela quanto à possibilidade de se reconhecer

3
Ibid., p. 64-65.

102
aspectos da história brasileira entranhados na caracterização de
personagens com os quais Riobaldo conviveu. Pelo contrário: em sua leitura
do romance de Guimarães Rosa, a correlação entre caracteres e processos
históricos é reforçada por um jogo de correspondências entre personagens
da ficção e figuras de nossa vida político-institucional na passagem do
Império à Primeira República – Zé Bebelo/Rui Barbosa; Joca Ramiro/D.
Pedro II/Barão do Rio Branco; Hermógenes/Hermes da Fonseca.4 Por um
outro lado, em seu todo, a interpretação de Roncari distingue-se de grande
parte da crítica que enfoca o romance à luz de experiências vividas no Brasil.
Para assinalar o peso da matéria brasileira na ficção de Guimarães Rosa, ele
parte de percepções registradas em estudos no campo das ciências
humanas que dizem respeito aos modos específicos como se organizou
historicamente a vida social, política e cultural no país (assim como foi feito
em As formas do falso, sendo que Walnice Nogueira Galvão enfatizou
também aspectos de nossa formação econômica). À diferença do autor de O
Brasil de Rosa, de modo geral, cada um dos intérpretes que se debruçaram
sobre Grande sertão: veredas nos últimos anos arregimenta seu arsenal
particular de referências da filosofia e/ou teoria política européias, pinçando
daí formulações que remetem a algum aspecto da experiência moderna para
contrapô-las ao texto ficcional. Com isso, embora certas nuances diferenciem
as reflexões elaboradas com os elementos do romance, a maioria dos
estudos se unifica no que parece ser uma das tendências na recepção
recente de Grande sertão: veredas: opera-se eminentemente pelo enfoque
de personagens e cenas como alegorias, tomando como recurso de
mediação entre a alegorização romanesca e a experiência brasileira
categorias teóricas alheias às especificidades locais – o que faz com que
sobressaiam nessas leituras, de modo não refletido, mais as linhas genéricas
que a vida no país tem em comum com a história das modernas sociedades
ocidentais do que seus traços particulares.
Dois exemplos:
No ensaio O pacto no Grande Sertão – Esoterismo ou lei fundadora?,
Willi Bolle, com o objetivo de "revelar o retrato criptografado do processo de

4
Cf. Luiz Roncari, O Brasil de Rosa, p. 293. Sobre o trabalho deste autor, ver, adiante, o CAPÍTULO 5.2.

103
modernização do Brasil contido na obra", procura estabelecer o significado do
pacto com o Demônio a partir do método historiográfico benjaminiano
implicado nos conceitos de Urgeschichte e "imagem dialética".5

Em termos históricos e antropológicos gerais, o pacto de Riobaldo


com o Diabo pode ser interpretado como uma simbolização da
institucionalização da Lei, expressa pelo primeiro pacto ou contrato social,
firmado na Urgeschichte da humanidade. Minha tese é que o pacto em
Grande Sertão: Veredas pode ser entendido como uma visão romanceada
daquilo que a filosofia política, no limiar da modernidade, imaginou
como sendo a base da sociedade civil e do Estado. (...)
Focalizando-se a chefia, o problema moral – aquilo "que induz a gente para
más ações estranhas" (...) – transcende a esfera estritamente individual para
se tornar uma questão política. Efetivamente, o Mal de que trata Grande
6
Sertão: Veredas, lido como fato da Urgeschichte do Brasil, é um mal social.

É uma premissa na reflexão de Bolle o ideal rousseauniano do


contrato social que deveria constituir a "base institucional da humanidade
civilizada" – a soberania do povo expressa na instituição do corpo político
governante. Em face desse princípio fundador da moderna idéia ocidental de
Estado, o pacto com o Demônio no Grande sertão reveste-se das
características do que Rousseau considera um "contrato falso" – aquele que
se estabelece nos termos do "pacto de sujeição", a fonte de legitimação do
poder do Príncipe descrita por Hobbes em Leviatã. A partir desses
postulados da teoria política clássica, o ensaísta analisa o percurso social de
Riobaldo – de jagunço nômade a fazendeiro sedentário – para tentar revelar
o potencial político de Grande sertão: veredas. Segundo Bolle, antes de sua
ascensão na hierarquia da sociedade sertaneja – ou seja, antes do pacto –, o
protagonista passa por "um triplo processo de iniciação à política",

5
"O método de Benjamin é inspirado no modelo mnemônico e onírico proposto por Sigmund Freud.
Enquanto um indivíduo é capaz somente a partir de uns cinco anos de reproduzir suas experiências
vividas como uma cadeia contínua, o tempo anterior, decisivo para sua formação, permanece nas
trevas do esquecimento, com raros lampejos de memória, comparável à Urgeschichte dos povos,
articulada em mitos e lendas. Desse modelo, Benjamin extrai uma historiografia nova: um discurso não-
linear, constituído de fragmentos arrancados do continuum da história e reveladores do processo
histórico-social. A Urgeschichte, nesse método, é constituída por um conjunto de imagens,
inconscientes ou seminconscientes, que pertencem aos domínios do mito e da loucura. Compreender a
Urgeschichte significaria, então, revelar a consciência histórica a partir dessas formas específicas que
são 'imagens arcaicas'. O historiador torna-se um 'intérprete dos sonhos coletivos', procurando traduzir
as imagens arcaicas em 'imagens dialéticas', isto é, torná-las legíveis enquanto informações históricas."
(Willi Bolle, O pacto no Grande Sertão — Esoterismo ou lei fundadora?. Revista USP, nº 36, p. 28-29.)
6
Ibid., p. 34-35. São meus os destaques em negrito.

104
aprendizagem "complexa e contraditória", ao longo da qual ele se depara
com três qualidades de problema: 1) as questões da propriedade, 2) da
violência e da justiça, e 3) do "mal social" ("a existência de um imenso
contingente de miseráveis"). A atenção de Riobaldo para esses problemas
será gradativamente despertada graças ao convívio com personagens mais
ou menos emblemáticos no romance, cujas trajetórias e características
integram a imagem alegórica da esfera política brasileira ao tempo da ação:
Medeiro Vaz, Joca Ramiro, Zé Bebelo, Hermógenes, Ricardão e os
fazendeiros sêo Habão e sêo Ornelas, além da massa de jagunços
resignados em sua condição de homens provisórios, intercambiáveis.
Tal processo de iniciação à política é apresentado em termos
rousseaunianos: transformação do "homem natural" em "homem civilizado".
Para Rousseau, a origem da sociedade civil é indissociável da idéia de
propriedade, pois é a partir do momento em que alguns poucos se apropriam
daquilo que, originalmente, era de todos e de ninguém, quando as hordas
nômades tornam-se sedentárias, que surge a necessidade do contrato social
para organizar a convivência. A propriedade estabelece a desigualdade entre
os homens, é responsável pelo mal social, e redunda, num primeiro
momento, no "estado de guerra", luta desenfreada pela posse, que só o
verdadeiro contrato social será capaz de regrar, estabelecendo a situação
eqüitativa entre os indivíduos. Antes deste, vige um falso contrato, firmado
somente com vistas a defender o direito dos proprietários (o Estado
constituído por e para os que detêm a propriedade), que apenas sanciona a
lei do mais forte, a hegemonia dos que possuem bens sobre os que não os
possuem. A expressão do falso contrato é a guerra (no contexto de Grande
sertão: veredas, os embates entre bandos de jagunços determinados pelos
interesses dos fazendeiros). Na leitura de Willi Bolle, a ascensão do
protagonista na hierarquia da sociedade sertaneja passa por esse pacto de
sujeição. O trato com o Demônio, na consciência do herói, é o que lhe faculta
a liderança do bando, condição para a acomodação na classe dominante. Tal
recurso significa a "forja de uma nova identidade social" para Riobaldo,
passagem simbólica de filho da plebe rural a proprietário. A herança de
"miserinhas" que lhe legou sua mãe havia feito dele um raso jagunço, mas,
em seu íntimo, confiava que, por parte de pai, era filho de fazendeiro. Só

105
conclama o Demo nas Veredas Mortas porque se decide entre duas
alternativas: antes ser senhor na guerra, mandante, do que homem
provisório, sujeito a virar novamente um miserável a mais no sertão. Em
suma, o pacto com o Demônio configura "uma adaptação oportunista ao
status quo. Nesse sentido, pode-se ver no trato de Riobaldo com o Diabo o
modelo de um falso contrato social".7
Ainda conforme Bolle, a narração funcionaria como “psicanálise social”
da culpa que tem o narrador por seus atos, ante o reconhecimento de que a
decisão tomada não soluciona aqueles problemas dos quais tomou
consciência antes da opção pelo pacto, e que o conduziram a essa
alternativa. Para o ensaísta, "a narração de Riobaldo não é uma legitimação
do status quo". A conclusão do ensaio pautado pelo ideal rousseauniano de
civilidade é otimista quanto às perspectivas engendradas na figuração
literária. O texto termina com a afirmativa de que, em Grande sertão:
veredas, imagina-se uma situação política efetivamente democrática.

(...) o escritor esboça a visão de um “re[di]mir” da história: um povo que


saberá julgar seus dirigentes, assim como julgará seus escritores. Essa
visão constitui o pano de fundo de Grande sertão: veredas, a matéria de que
o romance é tecido. O povo está presente o tempo todo, no fundo do
romance – não como dócil destinatário de mensagens populistas, mas como
figura ficcional interna, discreta e soberana. Calado, ouve os dircursos dos
8
que falam em seu nome. E julga.

Um segundo trabalho recente que enfoca a experiência brasileira


expressa no romance e no qual os fatores locais pesam menos do que a
feição geral dos problemas da modernidade ocidental é o ensaio A busca da
liberdade e as regras de direito em Grande sertão: veredas, publicado em
2002. Suzi Frankl Sperber afirma que o “eixo estruturador da ação” é a busca
da liberdade. Partindo, conforme os termos de seu resumo, “de regras de
direito, que podem ser deduzidas de um catálogo mínimo dos direitos
humanos”, a autora se propõe a refletir sobre a “consciência dilacerada do
subdesenvolvimento” que Antonio Candido, em Literatura e
subdesenvolvimento, identificou na obra de autores latino-americanos da
7
Cf. Ibid., p. 37-42.
8
Ibid., p. 44. São meus os destaques em negrito.

106
geração de Guimarães Rosa. O ensaio se inicia com uma menção à análise
de Walnice Nogueira Galvão a respeito da condição ambígua do jagunço –
livre e ao mesmo tempo dependente, dotado de certa autonomia para ir e vir
e aprisionado ao jugo dos poderosos (ver CAPÍTULO 2.1, p. 84-86). Logo em
seguida começa a se revelar o enfoque pelo qual será tratada a questão
sintetizada no título do artigo. Sperber faz uma ressalva à primeira parte de
As formas do falso com a qual pretende validar a perspectiva de sua própria
análise.

A verdade é que os capítulos em que Walnice caracteriza histórica e


sociologicamente o jagunço são assertivos e deixam pouco espaço para
dúvidas. Enquanto que Riobaldo questiona todas as noções, todos os
conceitos, todas as verdades estabelecidas.
(...)
O que vemos é que quando um autor toca aspectos relativos à realidade
sociopolítica, a expectativa do leitor é de correspondência e repetição da
história. E a visão da história conforme se usava. Acontece que o ficcionista
tem a liberdade criativa e, pois, o direito à reinvenção do mundo. E isto pode
implicar a utopia, ou algo que se possa chamar de utopia, mas que
9
corresponde à reinvenção do olhar.

Em outras palavras: haveria uma incompatibilidade elementar entre o


procedimento analítico empregado nos capítulos iniciais de As formas do
falso (o recurso a conhecimentos a respeito da história e da sociedade
sertaneja) e o modo de pensar tanto do protagonista-narrador quanto do
autor. Tal critério de avaliação do trabalho crítico serve menos à reflexão
sobre o rendimento da análise efetuada por Walnice Nogueira Galvão (o qual,
aliás, não é comentado mais detidamente) do que à afirmação de um viés de
leitura concorrente, enunciado assim: “a necessidade de interpretar melhor, a
partir de critérios políticos, a medida e a desmedida, a liberdade, o estatuto
do jagunço tal como colocado em Grande sertão: veredas”.10 Para isso,
Sperber vale-se de formulações extraídas das obras de Elias Canetti (apud
Hans Magnus Enzensberger), Hannah Arendt, Norberto Bobbio e Gerard
Lebrun. Desse composto de idéias de pensadores europeus atuantes na

9
Suzi Frankl Sperber, A busca da liberdade e as regras de direito em Grande sertão: veredas. Scripta,
v. 5, nº 10, p. 334-335.
10
Ibid., p. 337.

107
segunda metade do século XX resulta a apresentação laudatória de um
Riobaldo “libertário”, defensor de um “ideal utópico”. A trajetória do herói é
descrita como “um processo de aprendizagem de manifestação e ideologia
na direção da liberdade e igualdade”.

Por que [Riobaldo] permanece nas batalhas? Porque considera que é


preciso acabar com a tirania, matando o tirano, a fim de instaurar um novo
tempo. (...) A paz só é concebível sob outras condições de contrato social.
(...)
Na ausência de um Estado que tome conta do sertão, é preciso inventar
ou reinventar um pacto, uma norma, que possa ser respeitada, cumprida.
Algo fundamental, original, primevo (...)
Em Grande sertão: veredas o narrador procura a redenção da culpa, a
compreensão e atribuição de sentido à própria vida e revela sua
11
preocupação com a comunidade, reafirmando-a diversas vezes.

Assim como no ensaio de Willi Bolle comentado acima, as questões


sociopolíticas incrustadas no romance são analisadas eminentemente pela
perspectiva da fundação das modernas sociedades ocidentais. E também os
“conflitos morais, psíquicos e éticos” do protagonista, expressos no mea
culpa do narrador, são encarados como ponte que conduz imediatamente a
um rumo positivo em meio ao reconhecimento dos obstáculos à efetivação do
estado de direito.

A busca da liberdade e o espírito igualitário que finalmente presidem as


ações de Riobaldo permitem que se entenda esta consciência dilacerada
do subdesenvolvimento, sem que o sujeito deixe de tomar nas mãos – na
medida do possível de cada um e dentro dos limites socialmente dados –
12
as rédeas de seu destino.

Vê-se nas conclusões desses dois trabalhos recentes algo que é muito
comum no atual momento da recepção do romance: finaliza-se a reflexão
afirmando que a atuação de Riobaldo, ou que a figuração literária que
incorpora em si problemas da maior gravidade, sugere a existência de uma
perspectiva pela qual talvez se possa encontrar a indicação de algum
caminho para os impasses que marcam a história do país na modernidade,

11
Ibid., p. 339-340.
12
Ibid., p. 341. São meus os destaques em negrito.

108
ou da modernidade em geral. O trecho que encerra um terceiro ensaio
publicado na última década ilustra bem essa expectativa que a crítica
contemporânea alimenta em relação ao romance. Em um pequeno artigo de
1996, Outras conversas sobre os jeitos do Brasil, Heloísa Starling postula que
o livro de Guimarães Rosa “configura, na realidade, uma proposta de releitura
intensa do país, como meio de contraste necessário para interromper a
hegemonia de um projeto triunfalista de adesão à modernidade, repleto de
maravilhas tecnológicas e vazio de humanidade”.13 Tal potencial contestatório
da ficção estaria subjacente à manifestação de algo identificado como “o nó
de nossa dupla dificuldade”. País periférico na modernidade, o Brasil tem que
lidar tanto com as tensões próprias desse tempo quanto com aquelas que, do
ponto de vista da formação nacional das modernas sociedades ocidentais,
seria próprio de uma etapa anterior – a configuração das “bases de
constituição da comunidade política”, “de condições originais para mútuo
comprometimento entre indivíduos independentes”. Segundo Starling, na
medida mesmo em que põe em evidência o fato de que “continua truncado
em nossa formação nacional o sentimento de comunidade”, o romance deixa
sugerida alguma perspectiva de se “inventar um caminho próprio para o
moderno”, superando-se o entrave à construção da Nação.

País de experiências extremas, parece repisar na memória o velho Riobaldo


sem jamais conseguir capturá-lo numa definição única, literal, completa,
formalmente adequada. Do seu ponto de vista, somos este espaço-limite
instável e ambivalente de possibilidades, nem centro nem periferia, mas
outra coisa: o lugar comum abominável de um mundo onde os pastos
carecem de fecho, onde tudo está por fazer e, simultaneamente, o lugar do
desterro, onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de
autoridade, onde uma grande oportunidade se perdeu irremediavelmente.
Ao final, esta é a sua única herança e consolo: contar uma história de
fim de mundo sobre uma terra que, se já perdeu o tempo, ainda
conserva a esperança de reconhecer passagens em meio às ruínas de
14
sua história.

13
Heloísa. Starling, Outras conversas sobre os jeitos do Brasil. Suplemento Literário de Minas Gerais -
Arquivo Guimarães Rosa, p. 14-16.
14
Ibid., p. 16. São meus os destaques em negrito. Sobre as análises de Heloísa Starling a respeito do
romance, ver adiante CAPÍTULO 5.1.

109
Em Jagunços mineiros, Antonio Candido também avalia de modo
positivo o esforço empenhado na narrativa por encontrar passagens em meio
à brutalidade da experiência vivida. A “dignidade da lucidez”15 que elogia nela
é um valor moderno. Embora no ensaio não esteja explicitamente
preocupado em analisar as vinculações do romance com a formação do
Brasil contemporâneo – como é o caso de Bolle, Sperber e Starling nos
artigos mencionados há pouco –, a caracterização do “jagunço lúcido” remete
à noção de esclarecimento, um dos pilares da modernidade ocidental. Do
ponto de vista do exercício crítico, o importante é que o modo por meio do
qual o crítico indiretamente lança luz sobre a peculiaridade de nossa
modernidade periférica sugere, desde a resenha com que saudou o
lançamento de Grande sertão: veredas, um viés de abordagem distinto
daquele, mais comum, que corresponde à interpretação de personagens e
cenas como alegorias de momentos e processos marcantes em nossa
história sociopolítica.
Na resenha de 1956, além de chamar atenção para a “transcendência
do regional” operada pelo escritor (ver CAPÍTULO 1), Candido, com alguma
hesitação, indica o narrador como elemento seminal no romance: “o miolo
nutritivo é – não sei se diga – a expressão ou a personalidade do narrador”.16
Essa é mais uma passagem de sua apreciação inicial que foi retomada em O
homem dos avessos, onde observa que o tonus singular da narrativa se deve
“à crispação incessante do narrador em face dos atos e sentimentos vividos,
traduzidos pela recorrência dos torneios de expressão, elaborados e
reelaborados a cada página em torno das obsessões fundamentais”.17 Até aí
não estava desenvolvida uma hipótese que esclarecesse o modo como a
expressão ou a personalidade do narrador interfere nos diversos planos da
obra, o que acontece apenas em 1966, em Jagunços mineiros de Cláudio a
Guimarães Rosa. No trecho final da análise de Grande sertão: veredas, que
conduz à conclusão do ensaio, a transcendência do regional aparece
relacionada aos fatores implicados na “condição formal básica” do romance –
por sua vez identificada no modo como o narrador conduz a apresentação da

15
Antonio Candido, Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa, op. cit., p. 122.
16
Id., No Grande sertão, op. cit., p. 190.
17
Id., O homem dos avessos, op. cit., p. 135.

110
matéria. Já foram reproduzidos em páginas anteriores alguns parágrafos
desse trecho, mas convém repeti-los agora, para acompanhar na íntegra a
formulação do raciocínio e destacar os principais passos.

(...) Guimarães Rosa tomou um tipo humano tradicional em nossa ficção


e, desbastando os seus elementos contingentes, transportou-o, além do
documento, até à esfera onde os tipos literários passam a representar os
problemas comuns da nossa humanidade, desprendendo-se do molde
histórico e social de que partiram.
Em Grande sertão: veredas, esta operação de alta estética foi possível
devido a certos procedimentos ligados ao foco narrativo, que por sua
vez comanda uma expressividade máxima da linguagem utilizada. (...) No
espaço fechado do sertão a vida ganha aspectos projetados pela
maneira de ser de Riobaldo, que descobre ou redescobre o mundo em
função da sua angústia e do seu dilaceramento. A narrativa na primeira
pessoa favorece a solidariedade entre ambos, ao estabelecer uma paridade
entre o dilaceramento do narrador e o dilaceramento do mundo, que se
condicionam e se reforçam mutuamente. O narrador tinge a narrativa por
uma constante redução ao presente, fazendo com que o passado seja
aferido incessantemente à cor da sua angústia de agora (...). O mundo é
visto numa totalidade impressionante, na qual ser jagunço foi a condição
para compreender os vários lados da vida, vistos agora por quem foi
jagunço. Primeira pessoa conduzindo a uma presentificação do
passado, a uma simultaneidade temporal que aprofunda o significado
de cada coisa –, parece a condição formal básica de Grande sertão:
veredas.
Do ângulo do estilo, ser jagunço e ver como jagunço constitui portanto
uma espécie de subterfúgio, ou de malícia do romancista. Subterfúgio
para esclarecer o mundo brutal do sertão através da consciência dos
próprios agentes da brutalidade; malícia que estabelece um compromisso
e quase uma cumplicidade, segundo a qual o leitor esposa a visão do
jagunço porque ela oferece uma chave adequada para entrar no mundo-
sertão. Mas sobretudo porque através da voz do narrador é como se o
próprio leitor estivesse dominando o mundo, de maneira mais cabal do
18
que seria possível aos seus hábitos mentais.

Conjugando as formulações de Antonio Candido ressaltadas acima às


que já foram mencionadas antes, temos o seguinte: o miolo nutritivo do livro é

18
Id., Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa, op. cit., p. 120-121. São meus os destaques
em negrito.

111
a personalidade do narrador, do ex-jagunço que apresenta as experiências
do passado por meio de uma projeção de sua maneira de ser no presente; a
narrativa em primeira pessoa, na qual o passado é filtrado pelo sujeito no
presente, transcende o depoimento documentário por exprimir as leis mentais
e sociais do contexto; a condição formal básica de Grande sertão: veredas
constitui um artifício do ficcionista que tende a fazer do leitor um dúplice do
narrador-protagonista, permitindo-lhe a compreensão do mundo-sertão. Na
avaliação de Candido, esse artifício que favorece o entendimento do romance
(a “cumplicidade, segundo a qual o leitor esposa a visão do jagunço porque
ela oferece uma chave adequada para entrar no mundo-sertão”) também
proporciona ao leitor um esclarecimento sobre seu próprio mundo. Assim
como o modo de ser jagunço possibilitou ao protagonista o enfrentamento
dos desafios com os quais se deparou, o ângulo de visão do jagunço faculta
ao leitor certo aprendizado sobre o bem e o mal, instigando a busca da
síntese possível entre “dois movimentos contraditórios” – o reconhecimento
da “complexidade dos fatos” e a tentativa de “esclarecê-los num sistema
simples”, capaz de desfazer as ambigüidades que nublam a clareza do juízo
“no plano da conduta”. Esta síntese corresponde à empenhada insistência na
“dignidade da lucidez”.

(...) no conhecimento o ângulo de visão do jagunço (de Riobaldo que foi


jagunço) é uma espécie de posição privilegiada para penetrar na
compreensão profunda do bem e do mal, na trama complicada da vida.
A astúcia da narrativa corresponde à astúcia do mundo, ao desencontro dos
acontecimentos, que excitam e engodam a capacidade de entendê-los. (...)
A fluidez do real leva o espírito a ir além da aparência (...) leva a dois
movimentos contrários, que compõem uma visão diversificada e ambígua:
reconhecer a complexidade dos fatos, que o estado de jagunço permitiu
experimentar através do absurdo e do mal; tentar esclarecê-los e defini-
los num sistema simples, que deixe evidente o que são o bem e o mal, o
justo e o injusto, tão misturados na vida vivida, e que o ex-jagunço vê (e nos
faz ver) melhor, por ter estado de ambos os lados e poder relacioná-los de
modo conveniente (...).
Com efeito a experiência do mal, que o jagunço lúcido deste livro possui,
aguça o sentimento das complicações insolúveis do mundo, da
impossibilidade de esclarecê-las. Mas aguça ao mesmo tempo o desejo de
ver claro, de lutar contra a ambigüidade; e mesmo sem poder isolar em seu

112
lugar respectivo as forças opostas, este esforço é a dignidade da lucidez
(...).
Consequência extrema é que, em frente dessa irremediável mistura,
desse “mundo à revelia”, como diz Zé-Bebelo, muitas vezes é pelo avesso
que se chega ao direito (...). Em tal mundo, ser jagunço pode formar a
19
base para ver melhor.

Candido já valorizava essa possibilidade em O homem dos avessos,


onde o papel destinado ao leitor na estrutura da obra reveste-se de caráter
inequivocamente positivo – o crítico parece não abrir margem para dúvida
quanto ao fato de que a dinâmica de leitura de Grande sertão: veredas pauta-
se pelo esclarecimento:

(...) na literatura, a fantasia nos devolve sempre enriquecidos à realidade do


quotidiano, onde se tecem os fios da nossa treva e da nossa luz, no destino
que nos cabe. “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é
tomando conta dele a dentro...!”. Entremos nessa realidade fluida para
compreender o Sertão, que nos devolverá mais claros a nós mesmos e aos
20
outros. O Sertão é o Mundo.

Ficam algumas questões: o que se pode deduzir a respeito da matéria


brasileira colocando-se os fatos narrados em segundo plano e trazendo para
o centro da reflexão o comportamento do narrador e (por extensão) do leitor?
Quais aspectos de sua atitude manifestam quais leis mentais e sociais? Qual
é o peso de quais particularidades da modernização nacional na constituição
desse fator estruturante do romance que é a relação narrador-leitor? Que tipo
de atitudes do narrador interferem no modo como o leitor em geral avalia sua
história? Que tipo de atitudes interferem no modo como os críticos constroem
visões do Brasil na interpretação da narrativa? O que se pode dizer a respeito
dos direcionamentos que a expressão e a personalidade do narrador definem
para a recepção do livro?

19
Ibid., p. 121-122.
20
Id., O homem dos avessos, op. cit., p. 139.

113
3.1 – UM NARRADOR SOFISMADO DE LADINO

Dá para se ter idéia do alcance e da complexidade da reflexão a que


convidam as formulações de Antonio Candido observando-se as linhas gerais
de uma característica proeminente na expressão e na personalidade do
narrador de Grande sertão: veredas – a propensão para a simulação, a
manipulação do discurso. Como Candido, outros críticos que escreveram
sobre o romance até a década de 1970 assinalaram aspectos da narrativa
que lançam luz sobre essa faceta do ex-jagunço.
Riobaldo descreve a si mesmo, logo no início do livro, como
“sofismado de ladino” (GSV, p. 7). A expressão aparece em passagem na
qual sumariza para o interlocutor culto a instrução formal recebida na
adolescência, e deixa implícita em seus termos a consciência da habilidade
para direcionar o discurso em proveito de uma causa – o que parece
confirmado pelas preferências de leitura listadas logo em seguida:

Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma
doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. (...) Tive mestre, Mestre Lucas,
no Curralinho (...). Ah, não é por falar: mas, desde o começo, me achavam
sofismado de ladino. (...) Em tanto, ponho primazia é na leitura proveitosa,
vida de santo, virtudes e exemplos – missionário esperto engambelando os
índios, ou São Francisco de Assis, Santo Antônio, São Geraldo... Eu gosto
muito de moral. Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho,
aconselhar a justo. (GSV, p. 7)

De fato, o narrador de Grande sertão: veredas demonstra muita


esperteza no modo como conduz o relato. Tem a intenção confessa de obter
do interlocutor uma avaliação de sua história que o ajude a solucionar as
dúvidas que o consomem, dúvidas que são, em última instância, referentes à
correção de seus atos – “Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe
pedir um conselho” (GSV, p. 187). Ao longo da narração, desculpa-se várias

114
vezes pela incapacidade de contar bem ou de refletir sobre os fatos de que
participou. O que elogia, em contraste com a limitação de seus
conhecimentos de sertanejo pouco instruído, é o saber letrado do ouvinte
urbano culto, ao qual atribui valor judicativo em relação ao que narra.
Em 1968 – portanto antes de Walnice Nogueira Galvão cunhar a
expressão “jagunço letrado” para referir-se a Riobaldo – Bento Prado Jr.
dedicou um ensaio à discussão da “relação crucial entre o analfabetismo e a
escrita” na obra de Guimarães Rosa.1 O foco analítico recai sobre duas
narrativas de Corpo de baile (Dão-Lalalão e O recado do morro), depois de
um breve comentário a propósito do conto Famigerado, de Primeiras estórias.
Mas a reflexão, como um todo, vale também para Grande sertão: veredas, ao
qual o ensaísta se reporta no início e no fim do texto. A seu ver, o romance
“abre um espaço de comunicação entre dois mundos” que é via de mão
dupla, pois o “jagunço iletrado” – integrante de uma “humanidade exótica”,
“que desconhece a escrita e que se debate com o seu destino nas trevas
desse não-saber” – dirige ao leitor letrado e citadino uma pergunta que põe
em xeque o saber deste que “‘conhece’ a linguagem” e “a domina e a
manipula como um instrumento”. Bento Prado Jr. sintetiza a “essência do
romance (...) na seguinte pergunta: – o senhor que sabe ler e que, portanto,
melhor do que eu domina o universo das essências, poderá certamente
decifrar o sentido de minha existência, que até agora me parece obscuro e
ambíguo”.2 O primeiro parágrafo do texto apresenta a percepção do autor a
respeito da literatura de Rosa, o campo de problemas e o propósito que
mobiliza sua análise:

Guimarães Rosa é, para seus leitores, uma linguagem e um universo.


Ambas as faces – isto é, tanto o destino que dá a seus personagens quanto
o delírio com que transfigura nossa língua – já mereceram análises várias e
convergentes. Por que não perguntar pela articulação e pela solidariedade
que une o estilo ao universo? O Sertão é o mundo, como já se sabe. Mas,
por que deve a linguagem entrar assim em delírio para nos falar do Mundo?
E quem nos fala através dela, quem é o sujeito desse discurso tantas vezes
hermético? Mais ainda: – se amiúde, como no Grande Sertão, esse discurso

1
Bento Prado Jr., O destino decifrado: linguagem e existência em Guimarães Rosa, Alguns ensaios:
filosofia, literatura e psicanálise.
2
Ibid., p. 175.

115
assume a forma de uma longa interrogação, a quem se endereça, que
interlocutor solicita ou constitui? Eis algumas das questões – talvez
redutíveis a uma pergunta única – para cuja formulação pretendemos
3
colaborar nas notas que se seguem.

Depois do intróito, vem a leitura de Famigerado, que termina com a


constatação de que, na “situação irônica que contrapõe o letrado ao iletrado”,
“o analfabetismo não indica apenas uma carência e (...) pode significar uma
virtude e um privilégio”; “o uso instrumental da língua, a sua domesticação
através da escrita pode aparecer como uma perda ou como um
esquecimento”. Bento Prado Jr. descreve “o esquema que comanda a
estrutura de Grande Sertão: Veredas” depois de identificar “uma função
essencialmente estratégica” que a falta de letramento desempenha na obra
do escritor: a “neutralização da experiência corrente da linguagem”, que é,
“ao mesmo tempo, suspensão da existência quotidiana e decisão de
interrogar pelo sentido do próprio destino”.4

Para além da mera escrita, o analfabetismo remete a uma relação com a


Escritura, isto é, com um Lógos mais primitivo, anterior a toda letra. A
relação entre o letrado e o iletrado deixa, portanto, de figurar como um
contato entre duas humanidades separados pelo espaço da geografia e da
cultura, para indicar uma relação interna do homem com o seu destino.
(...)
Ao tornar possível a questão crucial (o que é o que é?), o analfabetismo nos
devolve a uma perplexidade diante do destino (...). Perplexidade que nos
apresenta o destino, não como problema suscetível de uma resolução
intelectual, nem como mistério, que transcende irremediavelmente os
recursos do entendimento, mas como enigma, como um texto obscuro e
hermético a ser decifrado. É assim apenas na aparência que a longa
interrogação que atravessa os textos de Guimarães Rosa visa um
interlocutor letrado: essa linguagem é a supressão de todo interlocutor,
momento em que a linguagem, solitária, volta-se negativamente sobre si
mesma. Talvez pudéssemos definir essa literatura, que é a obra de
Guimarães Rosa, como a tentativa de recapturar, no interior da escrita, a
Escritura que a precede, devolvendo à linguagem sua condição de sujeito.

3
Ibid., p. 173-174.
4
Ibid., p. 176-177.

116
Tal parece ser o esquema que comanda a estrutura de Grande Sertão:
5
Veredas.

Após analisar as duas novelas de Corpo de baile, o intérprete sublinha


essa condição de sujeito conferida à linguagem na obra de Guimarães Rosa,
sua “autonomia total (...) em relação aos homens que dela se utilizam”. A
superposição das estruturas narrativas de Dão-Lalalão e O recado do morro
– nas quais “a trama consiste na decifração de uma mensagem”, “decifração
que não implica manipulação” – conduz à atribuição de um caráter objetivo à
linguagem. Esta não aparece apenas como instrumento a serviço dos
homens, “sistema de signos que permite a comunicação entre os sujeitos”,
mas “como um ‘elemento’, como um horizonte (...) como se ela se
explicitasse e se aproximasse de sua verdade sem que os sujeitos se
apercebessem disso, como se cada fala indicasse, às suas costas e
retrospectivamente, seu verdadeiro sentido”.6 Munido dessa constatação,
Prado Jr. retoma a questão posta nas primeiras páginas de seu texto, sobre
“o problema do estilo de Guimarães Rosa”, o vínculo entre a linguagem “em
delírio” que manifesta o universo do ficcionista.

(...) a sua linguagem exótica deixaria de ser apenas uma maneira de dizer
indiferente e exterior àquilo que é dito. Se é a própria linguagem, em sua
dimensão própria, e não na transparência do signo, que é trazida à luz
nessa estranha prosa, é compreensível que a linguagem se contorça para
auscultar suas próprias entranhas. O recurso aos modelos da linguagem
rústica não é fruto de uma escolha ocasional: essa linguagem, que
desconhece a codificação estrita de uma gramática que visa à eficácia
operacional, é privilegiada para quem quer retornar àquele brilho das
palavras que precede toda ação e prefigura as nervuras do imaginário. É o
analfabeto, como o poeta, que consulta o volume interno das palavras, que

5
Ibid., p. 177. Itálicos do autor. O ensaio dialoga nesse ensaio com a filosofia de Derrida, de onde
provém a epígrafe do texto e a distinção escrita x escritura. Em Temas do Grande sertão e do Brasil,
José Antonio Pasta Jr., revê, trinta anos depois, a distinção entre “mistério” e “enigma” posta por Bento
Prado Jr., e a revisão conduz a outras formulações a respeito da supressão do interlocutor e da relação
narrador-leitor no romance de Guimarães Rosa (ver INTRODUÇÃO, p. 26-28; C APÍTULO 5.3, p. 253).
6
Ibid., p. 196. É meu o destaque em itálico nas últimas palavras.
Note-se que a reflexão de Bento Prado Jr. harmoniza-se com considerações de Roberto Schwarz –
“a palavra, símbolo dela mesma, tende a absoluta” (ver CAPÍTULO 1.1, p. 49-50) –, cujo ensaio sobre a
linguagem em Grande sertão: veredas (de 1960) é lembrado no início de O destino decifrado. O
interesse pela objetividade de uma verdade que se estabelece “às costas” dos sujeitos é outro ponto
em comum nas interpretações dos dois autores formados pela Faculdade de Filosofia, Ciências
Humanas e Letras da USP (ver as observações de Schwarz sobre forma objetiva transcritas na
INTRODUÇÃO, p. 15).

117
interroga as franjas que a cercam, na esperança de alimentar a sua
sabedoria. Aquém da escrita é que se pode encontrar uma experiência da
linguagem semelhante àquela que a literatura procurara restituir: esperança
de captar, no puro movimento das palavras, no domínio exíguo que
7
instauram, a verdade do mundo e da experiência.

Não é que Riobaldo, como ele mesmo diz, “esteja analfabeto” (GSV, p.
7). Seu universo geográfico e social – o sertão da plebe rural – é que, por
oposição à cidade de onde provém o interlocutor letrado, caracteriza-se pelo
analfabetismo. Aqui, o interesse de O destino decifrado reside na ênfase
conferida ao valor de conhecimento que se atribui ao trabalho do escritor com
a língua, valor que advém do realce da potência não-instrumental da
linguagem, obtido graças ao recurso aos “modelos da linguagem rústica” –
algo como a “inspiração do povo” a que se refere Antonio Candido (ver
CAPÍTULO 1, p. 42). Na linha de Derrida, Bento Prado Jr. elogia na literatura de
Rosa uma força que tem seu núcleo na autogeração, no fato de reinventar o
próprio fazer literário, como numa nova gênese da motivação que impulsiona
esse fazer (ver nota 10 do CAPÍTULO 4.2, p. 171), numa reafirmação da
“esperança de captar, no puro movimento das palavras (...) a verdade do
mundo e da experiência” ao “construir esse ‘modelo’ de linguagem em
‘estado natural’” – uma possibilidade, “privilégio”, de que o iletrado dispõe,
por não estar condicionado a “uma gramática que visa à eficácia
operacional”. Tal caráter positivo que o filósofo paulista ressalta na “escritura”
de Guimarães Rosa, de horizonte para um esclarecimento de grande impacto
– para a decifração do destino – é dependente da não-manipulação da
linguagem, do “movimento pelo qual a linguagem abandona a sua função
comunicativa, para tornar-se valor e palavra pensante”.8 Essa positividade,
com a qual a maioria dos críticos do escritor tende a concordar, fica
relativizada se levarmos em conta a atitude do narrador-protagonista de
Grande sertão: veredas. Ele opera, sim, com a função instrumental das
palavras, manipula o discurso como meio de se afirmar junto a seus
interlocutores – primeiro, os jagunços analfabetos que liderou e os chefes de

7
Ibid., p. 197-198.
8
Ibid., p. 198. Itálico do autor.

118
jagunços, analfabetos ou não, com os quais se relacionou; depois, o
ouvinte/leitor culto de seu relato.
Não sabemos o que diz o “doutor” hospedado na fazenda do ex-
jagunço, cujas falas são eclipsadas no texto – apenas, pelo que se pode
deduzir dos resquícios de suas intervenções no discurso de Riobaldo, parece
prevalecer a concordância com as suposições deste: “Mas o senhor é
homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e
repensa, e rediz, então me ajuda” (GSV, p. 84); “as idéias instruídas do
senhor me fornecem paz” (GSV, p. 29). Na última página do livro, tudo indica
que o objetivo é atingido: o interlocutor deve ter corroborado a hipótese
acerca da questão para a qual o narrador faz convergir toda a narrativa, a
pergunta que atravessa o romance de ponta a ponta – se o Diabo existe ou
não: “Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não
existe.” (GSV, p. 538).
Com esperteza de padre engabelando índio, o narrador cultiva
tenazmente a amabilidade de seu interlocutor. Walnice Nogueira Galvão
identificou três estratégias de que se vale para isso: o “recurso de louvar o
preparo do outro”, a “sonsice cabocla que ‘esconde o leite’” e a “faceirice do
bom narrador”.9 A primeira, já mencionada, é bem explícita nos reiterados
elogios à capacidade do ouvinte “nascido em cidades, (...) instruído e
inteligente” (GSV, p. 358), com “carta de doutor” (GSV, p. 17). A segunda é
mais sub-reptícia, subliminar. Transparece, por exemplo, no emprego da
afirmação “o senhor sabe” (e suas variantes): o que parece mera
idiossincrasia lingüística, assume caráter mais significativo na recorrência
com que se justapõe a circunstâncias da experiência sertaneja que o
interlocutor urbano obviamente desconhece, não sabe.

Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do


que o poder do lugar. (GSV, p. 7)

Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. (GSV, p. 134)

O sertão: o senhor sabe. (GSV, p. 343)

9
Cf. Walnice Nogueira Galvão, As formas do falso, p. 84-87.

119
A manifestação cabal de sonsice do narrador é a omissão do fato de
que Diadorim é mulher, justificada como necessária para que o interlocutor
sinta a dimensão de um problema pungente, conhecendo a verdade apenas
na passagem do relato correspondente ao momento vivido. Nesse caso, a
sonsice cabocla está aliada à “faceirice do bom narrador, que, não contente
com bem narrar, também teoriza a respeito”.10 O relato de Riobaldo é
intercalado por inúmeros trechos nos quais o sertanejo comenta as
dificuldades de trazer o passado para o presente, reflexões sobre o trabalho
de narração muito mais próprias do narrador de romance moderno que do
narrador épico oral que parece a matriz evidente em Grande sertão: veredas
(o sujeito velho, sedentário e depositário de conhecimentos hauridos de
experiências passadas). A faceirice desse narrador de romance inclui o
“fetiche do texto”, erigido como “espaço privilegiado, lugar da clareza, da
coerência, de tudo aquilo a que a razão aspira”.11
Louvor à instrução, sonsice cabocla, faceirice de bom narrador, tudo
isso colabora para a amabilidade com a qual o interlocutor urbano culto que é
o leitor o Grande sertão: veredas encara o relato de Riobaldo. São fatores
que amaciam a brutalidade dos fatos narrados, forjam um filtro que os torna
palatáveis à sensibilidade esclarecida, por uma espécie de familiaridade da
qual se revestem na composição literária. Fica mais fácil compreender as
atitudes do jagunço Riobaldo, a ponto de eximi-lo dos erros cometidos, que
passam a ser encarados da perspectiva de uma travessia rumo ao
esclarecimento (ver CAPÍTULO 4.2). Saímos do romance satisfeitos com as
vitórias do protagonista, solidários com seus sofrimentos, compreensivos com
suas falhas. Não salta tanto aos olhos o lado demoníaco de um narrador que
volta e meia nos ludibria, ressaltando o que há de melhor no modo
controverso como se conduziu no passado.
“Tudo tinha de semelhar um social” (GSV, p. 390). A frase proferida
pelo narrador durante o relato de um dos episódios de sua atuação quando
chefe do bando de jagunços define um dos princípios que regeram seu
comando. É quase um slogan político: sonora (graças às aliterações em /t/ e
/s/), genérica (“tudo”) e enérgica (“tinha de”). Seria hoje um bom bordão de

10
Ibid., p. 87.
11
Ibid., p. 88-90.

120
campanha eleitoral se fosse submetida a pequenos ajustes: Tudo tem que
ser social. Mas o verbo empregado (“semelhar”) deixa implícito o caráter de
simulação do compromisso assumido pelo então líder daquela peculiar
comunidade. O trecho em que consta a frase ajuda a perceber que o recurso
à simulação – responsável por boa parte do efeito positivo que o relato tem
sobre o leitor – é aspecto preponderante na expressão e na personalidade do
narrador.
Na passagem em que conta sua ascensão de jagunço a chefe do
bando, Riobaldo comenta: “Aí eu mandava. Aí eu estava livre, a limpo de
meus tristes passados. Aí eu desfechava. Sinal como que me dessem essas
terras todas dos Gerais, pertencentes” (GSV, p. 386-387). Os “tristes
passados” a que se refere correspondem às três diferentes condições de
desprovimento, subjugação, subalternidade que conhecera: a infância pobre
junto à mãe, que ao morrer só lhe deixa a memória do afeto e uma trouxa
com cacarecos; a adolescência de filho bastardo, agregado mantido às
custas do favor de um fazendeiro – o suposto padrinho Selorico Mendes (nas
entrelinhas do relato reconhecido como pai); e a recente atuação como raso
jagunço, braço armado sob as ordens de superiores, peão empregado em
combates cujas finalidades demora a compreender, sujeito a matar ou morrer
na defesa de interesses alheios. Ao tornar-se chefe de jagunços, Riobaldo se
vê momentaneamente livre desses desconfortos de quem não tem posses.
Pronuncia então uma frase que sintetiza a sensação de regozijo com a nova
posição, o poder recém-coquistado: “Tinham me dado em mão o brinquedo
do mundo” (GSV, p. 387). A primeira providência que toma como líder é
convocar todos para a comemoração da posse. Poderia ter optado por levar
os comandados para se divertir invadindo algum povoado próximo,
saqueando casas e comércio, estuprando e atirando a esmo, como era praxe
no sistema jagunço. Pensa, porém, em fazer uma festa, provavelmente à
moda das confraternizações em cidadezinhas e fazendas do sertão, e manda
que seus homens tragam a gente dos arredores para participar da
celebração.
Naquele intervalo em meio à sucessão de embates sangrentos entre
grupos rivais, Riobaldo imaginou um momento de bem-estar comum, a
sociabilidade em meio à guerra. “‘Quem tiver instrumento – a toque! Quem

121
gostar de dançar, arre melhor! P’r’ apreparo, trazer as mulheres também...
Com que as músicas de lá, lá lá...’ Tudo tinha de semelhar um social” (GSV,
p. 390). Ao relatar o episódio, no modo como enuncia essa aspiração,
demonstra consciência de que a realização de tal expectativa não chegaria a
ser mesmo mais que encenação de um tipo de convívio que só poderia ser
semelhado no contexto do sistema jagunço, onde vigora a lei do mais forte.
“Ao pois, quem era que ordenava, que se prazia e mandava? Eu, senhor, eu:
por meu renome, o Urutu-Branco...” (GSV, p. 390). Rapidamente,
arbitrariamente, desiste da idéia da festa, optando por uma alternativa que
reafirma a lógica vigente no sertão. “Ah, não. Festa? Eu já estava resolvendo
o contrário. Mas reunir aquela porção de homens, e formar todos de
guerreiros” (GSV, p. 390-391). Seus comandados haviam trazido, entre
outros, uns moradores de Sucruiú, mal recuperados de um surto de bexiga. O
narrador comenta: “Aquela gente depunha que tão aturada de todas as
pobrezas e desgraças. Haviam de vir, junto, à mansa força. Isso era
perversidades? Mais longe de mim – que eu pretendia era retirar aqueles,
todos, destorcidos de suas misérias” (GSV, p. 391). Vieram também os
catrumanos do arremedo de povoado que é o Pubo. São esses, no romance,
uma das personificações mais cabais da miséria, pessoas desprovidas de
tudo – mais grunhiam que falavam, suas roupas eram trapos toscos, um
deles portava um porrete, imagem de homem pré-histórico. “Homens sujos
de suas peles e trabalhos” (GSV, p. 391) que a princípio não querem integrar
o bando: “– ‘... Quem é que vai tomar conta das famílias da gente, nesse
mundão de ausências? Quem cuida das rocinhas nossas, em trabalhar para
o sustento das pessoas de obrigação?...’”( GSV, p. 392). Para vencer sua
hesitação, o novo chefe jagunço promete: “– ‘Vamos sair pelo mundo,
tomando dinheiro dos que têm, e objetos e as vantagens, de toda valia... E só
vamos sossegar quando cada um já estiver farto, e já tiver recebido umas
duas ou três mulheres, moças sacudidas, p’ra o renovame de sua cama ou
rede!...’” (GSV, p. 393). Quase todos aprovam a proposta, para satisfação de
Riobaldo: “Fiz gesto, com meu contentamento. (...) Eu ia transformar os
regimentos desses foros.” (GSV, p. 393).
Chama atenção, nessa e em outras passagens do romance, o
contentamento do herói de Guimarães Rosa com circunstâncias em que

122
participa da simulação de uma ordem de convívio que garanta os direitos de
cada um, semelhante a um ideal de civilidade moderna – “que eu pretendia
era retirar aqueles, todos, destorcidos de suas misérias”. Chama atenção o
esforço do narrador em demonstrar esse tipo de compromisso, aparente no
modo como narra sua participação nos eventos e nas considerações
paralelas à narração. Riobaldo se compraz em observar os ritos da civilidade.
Quando se hospeda com seu bando nas terras de seo Ornelas, fazendeiro de
"ponderadas maneiras, cidadão", o chefe recém-empossado orgulha-se da
conversação respeitosa e da "cortesia social" em relação às mulheres da
casa, contra as quais não permitiria "nenhuma falta de consideração" (GSV,
p. 399). Tudo semelha um convívio civilizado, quase citadino, de pólis – "Só
faltava lá uma boa cerveja e alguém com jornal na mão, para alto se ler e a
respeito disso tudo se falar" (GSV, p. 399). A aspiração à ordem civil de
caracterização eminentemente urbana, herdada de Zé Bebelo, traduz a
síntese do que seria para Riobaldo um modelo de harmonia social: a não-
violência, o respeito à integridade, a discussão participativa. Mas isso não
passa de aspiração, modelo cuja realização nunca deixa de ser aparente ou
parcial. É patente a fragilidade do comprometimento de Riobaldo com o ideal
que professa, na facilidade com que abriu mão dele no passado e no
empenho com que, no relato, procura justificar suas deserções. Sua narração
é toda perpassada por inquietações de ordem moral. A culpa que demonstra
por ter buscado o caminho do Mal (o pacto com o Demônio) e as várias
dúvidas que expõe ao interlocutor quanto à correção de condutas individuais
no espaço coletivo parecem exprimir empenho em prol de alguma espécie de
Bem comum. A trajetória do herói, no entanto, culmina no relativo
apaziguamento proporcionado por uma solução individualista: a ascensão
social, confirmada pelo casamento com Otacília, é o que permite ao ex-
jagunço, inclusive, ficar de “range rede” (GSV, p. 3) na velhice para refletir
sobre o passado. Algo desse desfecho já era almejado pelo jovem Riobaldo,
antes de se tornar jagunço. Quando foge da fazenda de Selorico Mendes,
numa revolta confusa de filho que se descobre bastardo, vai para o arraial
onde havia estudado, e o primeiro lugar onde procura abrigo é a casa da
namoradinha Rosa’uarda, filha de Assis Wababa, o dono da venda. Ali teve
regozijante acolhida e ficou sabendo:

123
que em breves tempos os trilhos do trem-de-ferro se armavam de chegar até
lá, o Curralinho então se destinava ser lugar comercial de todo valor. (...) Me
alembro: eu entrei no que imaginei – na ilusãozinha de que para mim
também estava tudo assim resolvido, o progresso moderno: e que eu me
representava ali rico, estabelecido. Mesmo vi como seria bom, se fosse
verdade. (GSV, p. 105-106)

Riobaldo é um narrador muito perspicaz e, até certo ponto, muito


crítico, capaz de evidenciar, no relato de falas e atitudes, intenções
subliminares. Deixa sugeridos para seu interlocutor, por exemplo, os
objetivos eleitoreiros do discurso “muito nacional” (GSV, p. 114) de Zé Bebelo
e as estratégias do latifundiário Seo Habão para conseguir mão-de-obra
barata. Mas quando se trata de denunciar os interesses escusos nas próprias
atitudes, não é tão incisivo – pelo contrário, sempre que pode, aferra-se a
ilusõezinhas confortáveis, como a lógica cármica do kardecismo de seu
compadre Quelemém ou a demagogia de Zé Bebelo. Sobretudo na parte final
do livro, quando narra suas ações como chefe do bando, seu ímpeto crítico
parece ter menos fôlego. O relato dos fatos toma um ritmo mais acelerado, as
reflexões sobre cada ato se tornam mais breves, logo se passa a um novo
acontecimento digno de nota. As decisões extremamente arbitrárias e
demagógicas do chefe Urutu-Branco são contempladas com olhar mais
complacente, menos questionador. Ganha mais força o componente de auto-
justificação de um discurso que parece comprometido com a exigência de
Bem ideal, universal, ao mesmo tempo que se vale da profissão desse
compromisso para respaldar uma ação que, ao fim e ao cabo, conduz ao
êxito individual, gozado na paz doméstica. A conquista de valorização na
hierarquia sertaneja graças ao sucesso na empreitada guerreira garante a
herança do padrinho/pai e o casamento com Otacília, guinadas que
promovem a inscrição definitiva do protagonista de Grande sertão: veredas
na classe dos fazendeiros, onde se encontra ao narrar a história. No
momento da narração, os jagunços que foram companheiros de Riobaldo
tinham virado meeiros de suas terras, força com a qual conta para garantia
da propriedade, numa lógica de relação socioeconômica pouco transformada
mesmo com a modernização do sistema jagunço da qual o personagem

124
principal de Guimarães Rosa participou, com seu talento para o manejo das
armas e do discurso – “Pontaria, o senhor concorde, é um talento todo, na
idéia” (GSV, 139).

Mas, hoje, que raciocinei e penso a eito, não nem por isso dou por baixa
minha competência, num fogo-e-ferro. A ver. Chegassem viessem aqui com
guerra em mim, com más partes, com outras leis, ou com sobejos olhares, e
eu ainda sorteio de acender esta zona, ai, se, se! É na boca do trabuco, é no
té-retê-retém... E sozinhozinho não estou, há-de-o. Pra não isso, hei
coloquei redor meu minha gente. Olhe o senhor: aqui, pegado, vereda
abaixo, o Paspe – meeiro meu – é meu. Mais légua, se tanto, tem o Acauã,
e tem o Compadre Ciril, ele e três filhos, sei que servem. Banda desta minha
mão, o Alaripe (...). Depois mais: o João Nonato, o Quipes, o Pacamã-de-
Presas. E o Fafafá (...). Até um pouco mais longe, no pé-de-serra, de bando
meu foram o Sesfredo, Jesualdo, o Nélson e João Concliz. Uns outros. O
Triol... E não vou valendo? Deixo terra com eles, deles o que é meu é,
fechamos que nem irmãos. Para que eu quero ajuntar riqueza? Estão aí, de
armas areiadas. Inimigo vier, a gente cruza chamado, ajuntamos: é hora de
um bom tiroteiamento em paz, exp’rimentem ver. Digo isto ao senhor, sem
fidúcia. Também, não vá pensar em dobro. Queremos é trabalhar, propor
sossego. De mim, pessoa, vivo para minha mulher, que tudo modo-melhor
merece, e para a devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me auxiliou,
rezas dela, graças. (GSV, p. 16-17)

Antes de José Hildebrando Dacanal comentar o casamento com


Otacília como projeto relacionado ao arrivismo social de Riobaldo (ver
CAPÍTULO 2.2, p. 88-89), Marlyse Meyer havia chamado atenção para a paz
doméstica como ponto de chegada no enredo de Grande sertão: veredas, em
um ensaio de 1970 no qual investiga o papel do romance Saint-Clair das ilhas
ou Os desterrados da ilha da Barra na história da literatura brasileira. A
autora documenta a difusão que teve no Brasil o romance de aventuras
publicado originalmente por Elizabeth Helme na Inglaterra, em 1803, e como
sua ampla circulação aqui entre o século XIX e o início do XX reverberou na
formação de alguns de nossos mais importantes romancistas (José de
Alencar, Machado de Assis e Guimarães Rosa). O livro de Helme foi o
primeiro “de romance” que Riobaldo leu, enquanto o bando que integrava, na
época liderado por Zé Bebelo, estava hospedado num sítio em Currais-do-

125
Padre para recuperar-se de uma sucessão de investidas fracassadas contra
os rivais jurados de morte por crime de traição.

Mas o dono do sítio, que não sabia ler nem escrever, assim mesmo possuia
um livro, capeado em couro, que se chamava o “Senclér das Ilhas”, e que
pedi para deletrear nos meus descansos. Foi o primeiro desses que
encontrei, de romance, porque antes eu só tinha conhecido livros de estudo.
Nele achei outras verdades, muito extraordinárias. (GSV, p.333)

Do ponto de vista assinalado por Marlyse Meyer, tal leitura constitui


fator muito significativo na formação do narrador de Grande sertão: veredas.
Saint-Clair das ilhas foi lido por gerações e gerações pelo país afora
durante aproximadamente cem anos. Citado por José de Alencar e Machado
de Assis, seu papel nas obras desses ficcionistas constitui objeto de
comentários de Raymundo Magalhães Jr. e Astrogildo Pereira. O romance se
passa no século XV e conta a história, cheia de aventuras e sentimentalismo,
do herói Saint-Clair, líder de um bando de dezessete amigos que, depois de
desterrado por James I da Escócia, vive em um castelo nas Ilhas Hébridas.
Após muitas batalhas, revela-se a filiação nobre do valoroso Saint-Clair, que,
lutando contra os dominadores ingleses, consegue resgatar sua honra
injustamente maculada pelas falcatruas do processo de desterro. Tudo se
encerra com um happy end: punição para os maus, prêmio para os justos e a
paz no doce lar de Saint-Clair, orquestrada pela fiel esposa Ambrosina.12
José de Alencar menciona o livro em Como e porque sou romancista,
no capítulo dedicado às suas leituras de juventude.13 A situação de leitura
descrita por ele reaparece, ligeiramente modificada, no conto Anedota
Pecuniária, de Machado de Assis: Saint-Clair é o único livro que o
protagonista Falcão lê e relê seguidamente – segundo afere Marlyse Meyer
da datação do conto, as leituras mencionadas ocorrem em 1857, 1869 e

12
Esta sinopse sintetiza informações fornecidas por Marlyse Meyer em dois trabalhos (Prólogo –
Sinclair das Ilhas: onde se narram as peripécias da pesquisa empreendida pela autora em busca do
que é, quem foi e por que “Sinclair das Ilhas”. In: Folhetim – uma história; Machado de Assis lê Saint-
Clair das ilhas. In: As mil faces de um herói canalha).
13
“Nosso repertório romântico era pequeno; compunha-se de uma dúzia de obras entre as quais
primavam a Amanda e Oscar, Saint-Clair das Ilhas, Celestina e outros de que já não me recordo.
Esta mesma escassez, e a necessidade de reler uma e muitas vezes o mesmo romance, quiçá
contribuiu para mais gravar em meu espírito os moldes dessa estrutura literária, que mais tarde deviam
servir aos informes esboços do novel escritor.” (Como e porque sou romancista, p. 23).

126
1870.14 Praticamente toda a obra de Machado, desde Contos Fluminenses
(1864-1870) até Quincas Borba (1889-1891), é atravessada pela utilização
ficcional do livro de Elizabeth Helme. E Falcão não é o único personagem de
Machado que devota ao Saint-Clair exclusividade de leitura. Raimundo
Magalhães Jr., em Ao redor de Machado de Assis (1958), após um
levantamento sistemático dos hábitos de leitura nos contos e romances do
escritor, observa que “praticamente o único livro lido por seus personagens é
o Saint-Clair das Ilhas”.15 Quincas Borba integra esse recenseamento: o
romance inglês constitui “toda a biblioteca” de major Quaresma.16 Mas a
situação de leitura, aí, já é outra, mais moderna, individual, e essa
sobrevivência do livro à modernização dos hábitos de leitura confirma a
extensão temporal de sua popularidade no Brasil. Romances góticos, como o
Saint-Clair, que alimentavam as bibliotecas ambulantes da Europa na
primeira metade do século XIX, foram também extremamente populares por
aqui, vendidos de porta em porta sob forma de folhetins. A penetração
dessas obras em território nacional atinge o século XX – portanto, é
verossímil o fato de Riobaldo encontrar um exemplar nos confins de Minas
Gerais. Pelo que se pode deduzir do estudo de Marlyse Meyer, há algo de
documental no fato de o livro aparecer no caminho do herói de Grande
sertão: veredas.

Pude interrogar o autor a respeito. (...) O que ele queria, disse-me, era
fazer um livro sobre o sertão. E o que trazia como certo da infância era a
lembrança, em todas as fazendas do centro e do centro-norte por onde
andara – onde, aliás, muita gente se chama Sinclair –, de um livro

14
“(…) não seria ela quem lhe faria o chá, quem lhe traria, à noite, quando ele quisesse ler, o velho
tomo ensebado do Saint-Clair das Ilhas, dádiva de 1850. (…) Às vezes, como a vista do tio começava a
diminuir muito, lia-lhe ela mesma alguma página do Saint-Clair das Ilhas. (…) ela sentava-se ao pé da
cama, contando-lhe histórias, espiava o relógio para dar-lhe os caldos ou a galinha, lia-lhe o sempiterno
Saint-Clair.” (Machado de Assis, Anedota Pecuniária, Histórias sem data. In: Obra completa, v. 2,
p.429-436).
15
Apud Marlyse Meyer, Prólogo, op. cit., p. 24.
16
“Logo que Rubião dobrou a esquina da Rua das Mangueiras, D. Tonica entrou e foi ao pai, que se
estendera no canapé, para reler o velho Saint-Clair das Ilhas ou os Desterrados da Ilha da Barra. Foi o
primeiro romance que conheceu; o exemplar tinha mais de vinte anos; era toda a biblioteca do pai e da
filha. Siqueira abriu o primeiro volume, e deitou os olhos ao começo do cap. II, que já trazia de cor.
Achava-lhe agora um sabor particular, por motivo de seus recentes desgostos:
Enchei bem os vossos copos, exclamou Saint-Clair, e bebamos de uma vez; eis o brinde que vos proponho. À
saúde dos bons e valentes oprimidos, e ao castigo dos seus opressores. Todos acompanharam Saint-Clair, e foi
de roda a saúde.”
(Machado de Assis, Quincas Borba, op. cit., v. 1, p. 757).

127
encadernado em couro, o que para aquela gente era sinal de muito respeito
e muito manuseio, que era o Sencler da Ilhas.

Tenho quase como certo que, quando romance havia, este era o Sencler. O
Carlos Magno, a gente contava de cor. Vinha às vezer encadernado com
outro livro, imprescindível, o Chernoviz, que existia sempre. Nas casas mais
cultas havia um terceiro livro, a mãe-livro, o dicionário; este, vinha trancado
na gaveta.

Lembrava-se de ter lido o Sinclair quando menino, mas só guardava


recordações vagas, nunca mais o relera, não o tendo reencontrado; ao
passo que relera, adulto, o Carlos Magno em prosa. O Sinclair das Ilhas
17
misturava-se na memória com o Kidnapped de Robert Louis Stevenson.

O testemunho de Alencar, as repetidas aparições do Saint-Clair na


obra de Machado de Assis e a forma como o livro figura no romance e na
memória de Guimarães Rosa sinalizam a importância, para a formação tanto
do público leitor quanto da tradição romanesca no Brasil, de narrativas desse
gênero, com seus enredos cheios de peripécias, forte apelo sentimentalista e
cunho moral. Por aí se vê que há, na tradição do romance brasileiro, a
influência forte de um componente cujo teor ideológico e implicações para a
ficção nacional Marlyse Meyer procurou investigar. Foi em função do
“eventual papel formador dessas leituras na elaboração de nossa ficção em
prosa” que ela se dedicou, durante quase 20 anos, a rastrear as edições de
Saint-Clair das ilhas que circularam no Brasil da segunda década do século
XIX às primeiras do século XX.18 No conjunto das informações levantadas,
uma merece especial atenção: até onde se sabe, a primeira tradução do
romance de Elizabeth Helme para a língua portuguesa (1825) é brasileira e
foi impressa em tipografia carioca – numa época em que a atividade editorial
na colônia era extremamente restrita. Embora esta não tenha sido a edição
que mais circulou por aqui (a versão de A. V. de C. e Souza tornou-se muito
mais popular, ao lado da tradução modernizada de Oscar Ney), o contexto

17
Marlyse, Meyer, Prólogo, op. cit., p. 25. O trecho em corpo menor destacado na citação segue a
diagramação do ensaio – ao que tudo indica, corresponde à transcrição de um depoimento oral de
Guimarães Rosa.
18
A autora localizou pelo menos nove edições, cujos formatos variam do sofisticado ao popular, e três
diferentes traduções, num espaço de aproximadamente cem anos – um feito editorial para aquele
período (Cf. Marlyse Meyer, Prólogo, op. cit., p. 23-39; Id., Machado de Assis lê Saint-Clair das Ilhas,
op. cit., p. 86-89).

128
em que surgiu a edição de 1825 ajuda a esclarecer o significado adquirido
pelo Saint-Clair na tradição do romance brasileiro.
A tipografia de Silva Porto, onde foi composto o primeiro Saint-Clair
das ilhas brasileiro, era um ponto de encontro dos liberais da terra, ponte
para a difusão de seus escritos. Liberais também eram os subscritores que
financiaram a publicação, mencionados na última página do volume. Em
geral, informa Marlyse Meyer, a subscrição de livros no Brasil era então
motivada muito mais por prestígio e possibilidade de investimento que por
amor à leitura. No caso do texto lido por Riobaldo, ao que tudo indica, o
empenho para a publicação de uma história que acabou por deixar marcas
consideráveis na cultura literária nacional tem nítido significado político.

(...) a quantidade de nomes conhecidos salta aos olhos até para um neófito
em história do Brasil. O que não deixa de dar uma nota com quê de
comovente: tantos grandes do jovem império a conjugarem com negociantes
19
e outros seus esforços para a publicação de um opúsculo moral (…).

Vemos aí, manifesto em outros campos de atuação, algo daquele


“empenho”, do “sentimento de missão” que Antonio Candido, em Formação
da literatura brasileira, identifica, nos escritores brasileiros do período
neoclássico e romântico, como elemento formativo da literatura brasileira.
Conforme mostrou Candido, nas obras de um Cláudio Manuel da Costa ou
de um José de Alencar, o exercício da literatura no Brasil correspondia a uma
espécie de investimento na potência civilizatória dos modelos culturais
europeus, impulsionado pelo compromisso com a constituição da nova
nação. O gesto do tradutor do Saint-Clair, dos subscritores e do tipógrafo
Silva Porto atesta que, também no âmbito da produção material da cultura,
observa-se o esforço em prol da difusão do legado de certos valores
ocidentais, tão decisivo no processo de formação nacional. Marlyse Meyer
aponta, na carta-dedicatória do primeiro tradutor de Saint-Clair – dirigida a
um alto oficial do Exército Brasileiro – relações entre o enredo de Elizabeth
Helme e motivações da classe que subvenciona o livro:

Ora, o tom, assim como certos trechos da carta-dedicatória, soa como a


projeção de um duplo ressentimento. Em parte de cunho pessoal (“nestes

19
Id., Prólogo, op. cit., p. 41.

129
tempos em que reina a ingratidão”), a que vai responder em eco, anos mais
tarde, a mágoa do humilhado major Siqueira, para quem a leitura do Sinclair
também tem função vicariante. De outro lado, um ressentimento mais geral,
algo como o ressentimento da jovem nação, ainda não bem instalada na
nova identidade. Ressentimento também contra o imperador, que vem
desapontando os jovens patriotas. Haja vista as repetidas afirmações de
brasilidade do tradutor, a cor política dos subscritores e do editor. Assim, à
luta do pequeno mas destemido bando do chefe Sinclair contra os
20
poderosos usurpadores responde a dos “brasilienses” (…).

Tendo em conta o histórico no Brasil desse primeiro romance lido por


Riobaldo, vejamos que elementos para a análise da expressão e da
personalidade do narrador de Grande sertão: veredas ele aporta. Do ponto
de vista realista, a menção a Saint-Clair das ilhas constitui um dado
verossímil no enredo de Guimarães Rosa: o fato de haver um exemplar em
fazenda do sertão mineiro nos tempos da Primeria República é
absolutamente plausível. Como outros dados de realidade no Grande sertão,
este traz consigo uma carga de significação que ultrapassa o aspecto
documental. Mas a questão central aqui não é o caráter realista da menção
ao livro, nem mesmo a possibilidade, que a leitura da história de Senclér
abriu para o ex-jagunço, de descobrir “outras verdades, muito
extraordinárias” na ficção. Interessa mais averiguar como o teor de
“verdades” veiculadas de uma forma específica, e num momento específico
da história brasileira, participa da constituição do personagem-narrador do
romance de Guimarães Rosa. Interessa mais assinalar como reverberam, no
relato de Riobaldo, certos aspectos das correlações, assinaladas por Marlyse
Meyer, entre o ideário do “opúsculo moral” de Elizabeth Helme e a finalidade
política a que serviu sua difusão no país.
Chegaremos à matéria das idéias observando traços comuns aos
enredos dos dois romances. O fato de o autor brasileiro confundir na
memória o Saint-Clair com narrativas congêneres não desautoriza o método.
O importante é justamente a relação entre a formação do protagonista-
narrador de Grande sertão: veredas e uma visão de mundo tributária de toda
uma rede de obras amplamente difundidas no Brasil, da qual o romance de

20
Ibid., p. 44.

130
Helme é um carro-chefe. Portanto, as principais semelhanças entre as
histórias de Riobaldo e de Saint-Clair – o contexto de disputas entre grupos
rivais (clãs escoceses, bandos de jagunços mineiros) e o motivo da donzela-
guerreira (Ambrosina, que vem a ser esposa de Saint-Clair, aparece
inicialmente travestida de homem, como a amada de Riobaldo, Diadorim) –
devem ser tomadas não como influências diretas ou citações da narrativa do
século XIX mas como marcas de uma tradição literária com a qual o autor
brasileiro dialoga. Tradição que se reporta às gestas medievais tão
divulgadas no Brasil e da qual a lenda escocesa protagonizada por Saint-
Clair é tributária. Afora isso, há um fato decisivo na trajetória dos dois
protagonistas: o “casamento apaziguador” (Saint-Clair com Ambrosina,
Riobaldo com Otacília), gesto de acomodação a uma ordem calcada na
lógica da vida privada, que se realiza como reação conservadora ao
vislumbre ou à experiência da desordem social num mundo em processo de
mudança. Embora uma longa distância se interponha entre o sertão mineiro
conhecido por Riobaldo e as ilhas escocesas de meados do século XV, onde
se passam as aventuras de Saint-Clair, há equivalências entre a sociedade
organizada em clãs e aquela, que conhecemos bem, estruturada em torno do
poder dos coronéis. Ambas se caracterizam pela fragilidade do Estado no
âmbito de uma dinâmica política em que o poder se encontra loteado entre
proprietários de terra. Na ausência de arbítrio estatal, disputas as mais
diversas são resolvidas em conflitos bélicos, imperando a lei do mais forte
que se concilia com uma ética de guerra, de valores personalistas como
coragem, fidelidade, honra... Nesses embates, a casta dos proprietários
conta com a força da massa de subordinados para a defesa de seus
interesses; os não-proprietários são mão-de-obra convertida em braço
armado sempre que necessário. A submissão destes aos detentores dos
meios de produção – a terra, eminentemente – é garantida por mecanismos
de ordem econômica e política (emprego e proteção) e por uma ideologia em
que o imperativo da fidelidade sustenta a distribuição da autoridade. Tal
gênero de equivalências entre os contextos implicados nos dois romances é
chave para a compreensão de um sentido nas verdades extraordinárias que
Riobaldo encontra na leitura do “Senclér das Ilhas” – algo que se manifesta
na trajetória do protagonista e em sua constituição como narrador.

131
No universo criado por Elizabeth Helme nota-se a idealização de um
período histórico já ultrapassado na época em que ela escreve Saint-Clair
das ilhas. Esse retorno a um passado edulcorado é, segundo Marlyse Meyer,
uma reação conservadora comum na geração da autora escocesa que viveu
a virada do século XVIII para o XIX, reação às transformações econômicas e
sociais que surgem no lastro das Revoluções Industrial e Francesa.21 O
casamento de Saint-Clair com Ambrosina figura, no enredo, como
culminância do projeto conservador de paz doméstica que o tempo todo
subjaz como via de solução para os conflitos no romance, garantia de
preservação daqueles valores de honra e moral firmemente arraigados na
perspectiva da autora – e que os liberais de 1825 queriam importar para o
Império brasileiro. É essa visão de um mundo permeado por conflitos, no
qual o recôndito do lar, a solidez da ordem privada aparece como paradigma
social, modelo de convivência, espaço de salvaguarda dos valores, é essa
reação conservadora que procura diluir as tensões sociais pela via da
solução individualista que reaparece no romance de Guimarães Rosa. A
ocorrência do casamento benfazejo como forma de apaziguamento dos
impasses no livro “de romance” citado por Riobaldo parece sugestão –
“prenúncio”, nas palavras de Marlyse Meyer22 – da situação de que desfruta
o narrador de Grande sertão: veredas.
Aos problemas graves da vida no mundo-sertão, Riobaldo responde
com a transcendência individualista – a vida privada, o investimento em
práticas religiosas votadas à salvação pessoal e, no presente da narrativa, a
arte de narrar a própria história com solércias de jagunço experiente. A fusão

21
“Aquela época dos 1790 (…): da ‘agitação para uma democracia inglesa’, de fortes raízes locais e
realimentada pela vigente Revolução Francesa; época do sucesso retumbante dos Direitos do Homem
(…). Um entusiasmo compartilhado de início pelos grandes intelectuais do tempo, o qual, diante dos
excessos do Terror, descambou para a reação contra-revolucionária do conjunto da população
igualmente movida pelo patriotismo diante da guerra contra a França (…). Época também em que se
exerce a forte influência apaziguadora e conformista dos metodistas de Wesley (…).
(…) Como diz Hobsbawm, opondo-se à tradicional inimizade da Inglaterra contra a França, a antiga
aliança entre Escócia e França reforça e acentua a agitação democrática na Escócia e seu forte cunho
popular. (…)
(…) O apelo à temática doméstica como que responde ao medo e ao desejo geral de ordem num
mundo em mudança. Se a “turma da melancolia e do ressentimento” denota nostalgia de um tempo
que a aventura sonhada não pode mais devolver, o que vai permitir a entrada no mundo outro que
dispensa clãs, bandos e heróis será o casamento e a constituição da família. A autora professora
reencontra a boa tradição wesleyana metodista que gerou a Society for promotion of Christian
Knowledge, com sua concepção de um gênero de vida cuja ‘cidadela era o lar da classe média, com
seu culto familial (...)’”. (Id., Machado de Assis lê Saint-Clair das ilhas, op. cit., p. 53-55).
22
Ibid., p. 57.

132
que se observa no narrador de Grande sertão: veredas, entre perspectiva
crítica – conferida pelo investimento na “dignidade da lucidez” – e retórica
justificadora do benefício individual, parece manifestar um estágio avançado
(moderno) de uma espécie de lei mental que tem grandes implicações
sociais no Brasil, que era vigente na época em que se passam os fatos
narrados e até agora: salve-se quem puder.

133
4
GRANDE SERTÃO: MUNDO MODERNO

Desde o primeiro momento da recepção de Grande sertão: veredas,


veio se firmando o consenso segundo o qual, assim como a linguagem de
Riobaldo não reproduz exatamente nenhum registro lingüístico regional –
embora incorpore elementos do falar sertanejo, estes aparecem
transfigurados numa expressão absolutamente original –, também, no espaço
que a personagem percorre, efetua-se a transposição dos atributos de uma
região específica a outros, muitos campos de significação. É rara a sessão de
debates dedicada à obra de Guimarães Rosa em que não se recaia no lugar-
comum de elogiá-la pela qualidade de grande-texto-literário-que-permite-as-
mais-diversas-interpretações. Essa fórmula genérica é aplicada para justificar
todo e qualquer caminho de leitura – como se todas as hipóteses fossem
igualmente válidas, tivessem o mesmo alcance crítico, já que há de tudo no
Grande sertão. Espécie de salvo-conduto de que se valem tantos intérpretes
para usar o texto literário como trampolim a partir do qual se lançam em
especulações pautadas por variadas matrizes filosóficas ou teóricas, a crença
de que o vale-tudo interpretativo estaria de antemão autorizado na obra tem
servido para legitimar um grande conjunto de leituras unificado por certa falta
de critério no exercício da crítica que poderia não ser tão corrente entre nós.
É verdade que o postulado puro e simples segundo o qual a literatura
está aberta às mais diversas interpretações tem, numa aparente contradição,
limitado a discussão sobre tantas outras grandes e menores obras. A

134
ampliação do círculo universitário no Brasil ocorrida desde os anos 1970, e
mais acelerada nas últimas duas décadas, fez-se de tal modo que a
respeitabilidade emprestada pelo mero fato de se integrar a academia pode
recair sobre qualquer coisa que parta dela, desde que sejam cumpridas
regras básicas. Ao mesmo tempo, a dinâmica do mercado internacional de
idéias intensificou o ritmo com que ganham e perdem prestígio por aqui as
categorias e teorias produzidos mundo afora. Considerando-se apenas o
circuito da produção intelectual, a aliança desses dois fatores tem
comprometido muito o rendimento da discussão literária no fórum acadêmico
nacional. Com tantas possibilidades de interpretação postas em prática,
raramente se chega a pontos efetivamente críticos no debate, ao momento
no qual cada interlocutor apresenta argumentos que demonstrem o peso que
têm, na composição da forma estética, os elementos selecionados na análise
e – passo ainda mais raro – que esclareçam a relação entre a forma e as
condições históricas com as quais ela dialoga. Não é incomum que, nas
sessões onde se contrastam enunciações mais ou menos divergentes entre
si sobre um mesmo texto, autor ou aspecto da literatura nacional, os
pesquisadores que as elaboraram estejam menos interessados em ponderá-
las com os outros do que em expor as hipóteses e conclusões que a esfera
de manifestação cultural no qual estão inscritos lhes permite validar. Fale e
deixe falar – é o lema subliminar de tais eventos. De um ponto de vista mais
amplo, tal praxe no campo da cultura (e de sua crítica) pode ser
compreendida como algo condizente com as diretrizes-mestras da política
cultural no atual momento do capitalismo – algo que se apresenta como se
fosse natural: há espaço para tudo e tudo é nivelado pela condição de
produto para o qual existe algum nicho de mercado. Se é assim com a
música, a literatura, a moda e o sabão em pó, porque não haveria de ser com
a produção crítica?
No caso de Grande sertão: veredas essa situação geral fica agravada
pela efetiva abrangência de registros culturais e campos simbólicos que se
interpenetram na obra. Nela já se encontraram rastros de tradições populares
e eruditas, de raízes na modernidade e em tempos imemoriais, das mais
variadas vertentes místicas, de filosofia ocidental e oriental... Tudo isso
amalgamado em um trabalho de criação lingüística e de composição

135
romanesca que se faz com a melhor verve da arte moderna e que ao mesmo
tempo parece sair daquela criatividade coletiva responsável pelo andamento
da história das línguas, aquilo que Antonio Candido chamou de “inspiração
do povo” (ver CAPÍTULO 1). Não é de espantar, portanto, que Grande sertão:
veredas sirva hoje como exemplo prestigiado para reafirmar a multiplicidade
significativa do artefato literário e para referendar o direito do intérprete de
pôr em prática na leitura a diretriz hermenêutica que mais lhe aprouver. No
que diz respeito a isso, mais uma vantagem desse romance em relação a
outros textos da literatura brasileira reside no fato de que, a despeito de sua
complexidade, ser relativamente fácil pinçar nele cenas, frases e
características de personagens para compor uma metáfora de algum sistema
de pensamento. Em primeiro lugar porque, como foi dito acima, de fato nas
entrelinhas convivem referências das mais diversas ordens. Segundo, porque
o escritor engendrou com minúcia o entrelaçamento de tais referências para
conferir a todos os níveis do texto grande carga expressiva (a crítica genética
tem provado nos últimos anos que cada palavra era cuidadosamente
pensada para ter a maior força sugestiva1). Terceiro, porque a variedade de
situações que compõem o enredo e o fato de o narrador ser dado a
“especular idéia” (GSV, p. 3), aliados, fazem do livro um grande celeiro de
citações. Quarto, porque, para seu último signo, o sinal de infinito, acabou
firmando-se o sentido paradoxalmente fixo de abertura para o leitor, o que
muitas vezes é entendido como sinal verde para a interpretação que se pauta
eminentemente pelas idiossincrasias do intérprete, trazendo o objeto estético
a reboque.
“Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é
questão de opiniães...” (GSV, 1). O dito enunciado por Riobaldo logo no início
de sua fala, quando comenta as controvérsias a respeito das fronteiras que
demarcam o sertão, pode ficar como emblema da convivência de múltiplos
sentidos na narrativa. Também espelha muito bem um problema que afeta
boa parte da recepção do romance, a questão da opinião. Sem dúvida, a
avaliação de uma obra estética depende em parte da sensibilidade individual.

1
“As emendas em R1 [o primeiro rascunho conhecido do romance] incidem em minúcias, quase
palavra a palavra, alterando a grafia, a ordem usual, acrescentando expletivos, modificando a
pontuação.” (Cecília de Lara, Grande sertão: veredas – processos de criação. Scripta, v. 2, nº 3, p. 43).

136
É impossível ser bom crítico de literatura sem experimentar a fruição do texto
como momento de vida que suscita associações com outras experiências,
pessoais, sociais ou intelectuais – talvez até comecem aí os melhores
escritos críticos. Mas opiniões são só o começo; do insight à crítica vai um
longo caminho. Não basta transpor para termos conceituais aquilo que a
sensibilidade captou, é preciso refletir sobre o papel que os elementos que
chamaram atenção desempenham no todo da obra. São dados isolados ou
expressam uma lógica interna de composição? Se não são aspectos
pontuais, suas relações ao longo do texto são responsáveis pelo
engendramento de determinado campo simbólico ao qual ele remete ou, mais
do que isso, manifestações de componentes de sua ordem profunda, dos
artifícios estéticos que articulam a forma na qual se lê a simbologia? Em que
medida os fatores estruturantes da forma literária estão relacionado sàs
formas que se observam na experiência histórica?
A maioria das opiniões sobre Grande sertão: veredas passa ao largo
desse tipo de questionamento. Fica parecendo que o romance de Guimarães
Rosa se abre com praticamente qualquer chave de leitura. Ainda não se fez
entre nós tão corrente quanto poderia ser uma prática que Antonio Candido
exercitou ao abordar o livro há quarenta anos atrás, no ensaio Jagunços
mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa: levar em conta, no ato crítico, a
hierarquia entre os elementos estabelecida na lógica do conjunto que é a
obra. Para afirmar a importância do modo de ser jagunço como chave de
interpretação – e sem descartar a validade da análise de outros dados
(“inclusive os rigorosamente documentários”) – Candido demonstrou que os
traços identificados no jagunço rosiano estão relacionados à construção dos
mais diversos planos da composição (“princípio que rege a sua estrutura”,
“procedimentos ligados ao foco narrativo”, “condição formal básica”, “estilo”,
relação com o leitor), que tal modo de ser traz para dentro do texto, de
maneira peculiar (e não documental), aspectos importantes de uma realidade
social.2 Com isso, o crítico sugeriu um caminho fértil para pensarmos as
passagens entre o sertão criado por Guimarães Rosa e o mundo
contemporâneo.

2
Cf. Antonio Candido, Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa, op. cit. Ver CAPÍTULO 2.

137
No que se refere à reflexão sobre a projeção do Grande sertão para o
mundo, seguindo a linha de discussão que leva em conta a experiência
histórica, foram muito marcantes alguns ensaios dos anos 1990, que
ressaltaram no romance a presença de um universo de problemas onde se
imbricam tensões entre sertão e cidade, barbárie e civilização, arcaico e
moderno, animismo e esclarecimento. Um pequeno texto de Eduardo
Coutinho, escrito no início da década 1980 e revisto dez anos depois, pode
ser lido como sinal da tendência a valorizar como foco de análise a implosão
de tais dicotomias na articulação da narrativa.3 Segundo esse estudioso da
obra de Guimarães Rosa, no romance mesmo, até do ponto de vista
estritamente geográfico, o sertão é território de definição cambiante, de
fronteiras imprecisas – Riobaldo explica isso a seu interlocutor logo na
primeira página da narrativa. Efetivamente, o que se conhece por sertão no
Brasil é "um aglomerado de diversas regiões menores que se unificaram
através de um rótulo comum", áreas do Nordeste ao Centro-oeste do país (e
também uma parcela da região Sudeste) que têm como traços em comum a
atividade da pecuária extensiva e a miséria em que vivem seus habitantes.4
Partindo para a enunciação dos matizes que compõem a multiplicidade
conceitual do sertão rosiano, Coutinho começa por lembrar que o termo
sertão também designa "uma região basicamente rural, em oposição à
cidade, vista aqui como um centro de progresso e civilização mais avançado".

É neste sentido do “sertão” como região rural e anacrônica, oposta à cidade,


que o principal conflito do romance no nível factual, episódico – a guerra que
os jagunços levam a cabo primeiro contra os soldados do governo e, em
seguida, após o assassinato de Joca Ramiro, contra os traidores que o
matam – pode ser compreendido. Entretanto, assinale-se que, neste ponto o

3
Eduardo Coutinho tornou-se uma referência nos círculos rosianos a partir da apresentação de uma
tese de doutorado sobre Grande sertão: veredas defendida na Universidade da Califórnia (Berkeley,
1983): The “Synthesis” Novel in Latin America: a Study on João Guimarães Rosa’s Grande sertão:
veredas. Segundo a Nota introdutória de Em busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande
sertão: veredas (1993), o ensaio comentado aqui é resultado de parte dos esforços para elaboração
dessa tese, e tal coletânea da década de 1990 onde foram coligidos, com maiores ou menores ajustes,
esse e outros textos a respeito do romance, compõe “um panorama variado de leituras, tradutor da
visão crítica do autor sobre esta obra de riqueza inesgotável, que suscita e continuará sempre
suscitando releituras onde quer que se estude com interesse a verdadeira arte da palavra”. (Em busca
da terceira margem, p. 13-14)
4
Cf. Eduardo Coutinho, Sertão: um conceito múltiplo em Grande sertão: veredas. In: Em busca da
terceira margem: ensaios sobre o Grande sertão: veredas, p. 18. O autor se vale de observações
contidas em As formas do falso e em um ensaio de Adonias Filho (A ficção de Guimarães Rosa,
publicado em 1969).

138
conceito de “sertão” como região física começa a confundir-se com o de
uma realidade humana, e a região que servira ao autor como ponto de
partida passa a ser representada pelo sistema de valores do jagunço, aqui
identificado com a terra: “Jagunço é o sertão”, diz Riobaldo ao seu
interlocutor, e a sua guerra, “o constante mexer do sertão”, é a arma que ele
empunha a fim de resguardar o seu mundo da invasão da cidade. A última
constitui o novo, é o progresso e a civilização que penetram no sertão sob
forma de soldados para conquistá-lo; daí a reação dos jagunços, por
intermédio de uma guerra que nada mais é do que o conflito social,
económico e cultural entre duas sociedades que coexistem em estágios
5
consideravelmente distintos de desenvolvimento.

O trecho remete ao lugar que o sertão ocupa no imaginário nacional:


território do atraso. A adversidade natural dessas terras, a produtividade
econômica pouco expressiva, o isolamento em relação aos centros urbanos
litorâneos, a incipiência do aparato institucional – enfim, um histórico déficit
de desenvolvimento com raízes na colonização do país contribui para a
identificação do sertão com a negação de todas as vantagens que a
modernidade promete. No sertão rosiano, as benesses da civilização são
apenas aspirações, nas quais se vislumbra a solução para problemas das
mais diversas ordens. Como diz Riobaldo:

Olhe: o que devia de haver, era de reunirem-se os sábios, políticos,


constituições gradas, fecharem definitivo a noção – proclamar por uma vez,
artes assembléias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor
de lei! Só assim, davam tranqüilidade à boa gente. Por que o Governo não
cuida?! (GSV, p. 8).

Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse,


então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas,
remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil
escolas. (...) Ao que Zé Bebelo elogiou a lei, deu viva ao governo, para perto
futuro prometeu muita coisa republicana. (GSV, p. 111-114).

São aspirações trazidas na fala de personagens que mantêm algum


vínculo com a cultura citadina: Zé Bebelo e o próprio Riobaldo — ambos em

5
Ibid., p. 19-20.

139
contato com o universo urbano pela via da instrução —, além do estrangeiro
Emílio Wusp, caixeiro-viajante que leva notícias dos avanços tecnológicos
àquelas paragens isoladas. Não só a ausência de itens do progresso material
constitui o atraso atribuído ao sertão. Este se verifica, de maneira ainda mais
contundente, na ordem social definida pelo império da lei do mais forte, pela
disputa sangrenta por propriedades, pela falta de legitimidade e de atuação
das instâncias legais de organização do convívio. O jaguncismo é expressão
cabal desse estado de coisas – não é à-toa que seu combate figura como um
dos tópicos da plataforma eleitoral de modernização erigida nos
pronunciamentos públicos do chefe-jagunço-aspirante-a-deputado Zé Bebelo,
personagem que, como notou Walnice Nogueira Galvão, encarna melhor,
com todas as suas contradições, as tensões entre o sertão e a modernidade
republicana da época em que transcorrem as aventuras de Riobaldo.

– “(...) Deixa, que daqui a uns meses, neste nosso Norte não se vai ver mais
um qualquer chefe encomendar para as eleições as turmas de sacripantes,
desentrando da justiça, só para tudo destruírem, do civilizado e legal!” (...) A
gente devia mesmo de reprovar os usos de bando em armas invadir
cidades, arrasar o comércio, saquear na sebaça, barrear com estrumes
humanos as paredes da casa do juiz-de-direito, escaramuçar o promotor
amontado à força numa má égua, de cara para trás, com lata amarrada na
cauda, e ainda a cambada dando morras e aí soltando os foguetes! Até não
arrombavam pipas de cachaça diante da igreja, ou isso de se expor padre
sacerdote nu no olho da rua, e ofender as donzelas e as famílias, gozar
senhoras casadas, por muitos homens, o marido obrigado a ver? (GSV, p.
111).

Desde o Brasil-colônia, o sertão se coloca como um desafio aos ideais


de construção da nação. O vasto espaço mais ou menos desértico6 que se
estende no interior do país foi sempre, da perspectiva litorânea em que se
situa historicamente a voz da civilização, o "cenário invisível", "o interior
enigmático" onde ainda não chegou o desenvolvimento, a "porção
desconhecida do Brasil”, aquém do patamar civilizatório almejado para o

6
M. Cavalcanti Proença lembra o que disse Saint-Hilaire em meados do século XIX a respeito de
moradores de uma área entre Paracatu e Goiás: “Tinham a vaidade de julgar que esta zona não
pertencia ao sertão: o deserto, diziam, só começa além de certas montanhas que se encontram entre
esta região e o São Francisco.” (Trilhas do Grande sertão. In: Augusto dos Anjos e outros ensaios, p.
189. Itálico meu.)

140
país.7 E tem sido fundamental na diferenciação entre sertão e litoral o
aspecto institucional. O pensamento sociográfico brasileiro, ao longo do
tempo, qualificou como sertão áreas em que se observam não só menor
penetração das instâncias legais como também a resistência à introdução da
ordem nacional calcada na legitimidade do poder central. Em todo o país,
ainda hoje é marcante a tradição de privatismo do poder cujas raízes têm
vínculos com um processo de ocupação de território que passou por
capitanias hereditárias e investidas de bandeirantes. Até pelo menos a
década de 1930, a atuação efetiva do Estado nas áreas ditas sertanejas era
substituída pela força de fazendeiros locais que exerciam as atribuições de
poder público. Essa externalidade em relação ao Estado – resultado da
conivência do poder público com as forças privadas – é uma das
características históricas do que se chama sertão.8 À época em que se
passam as aventuras de Riobaldo, a institucionalidade estatal, para os
sertanejos, não é mais que a sombra imprecisa de algo muito distante
conhecido como Governo, quase uma virtualidade. Ali, praticamente, só se
sente o braço do Estado sob a forma de expedições militares, raros arrochos
de autoridade que, atualizando práticas coloniais, chegam para debelar
grupos insurrectos, num movimento que se limita a ser conquista bélica, que
só reafirma a lei do mais forte, sem efetivar a integração das comunidades
que habitam aquele espaço à ordem de direito. M. Cavalcanti Proença
registrou como característica do sertão rosiano a ausência da legalidade
formal, numa passagem que Eduardo Coutinho não leva em conta, embora
cite uma expressão empregada em Trilhas do Grande sertão poucas linhas
depois:

Desde aí [Cavalcanti Proença refere-se às primeiras palavras de Riobaldo],


o sertão surgirá sempre como terra sem lei, “onde manda quem é forte, com
as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado”. Sertão ainda
igual ao dos relatórios dos tempos coloniais que falavam de homens
absolutos, sem Deus, sem rei. Mundo de homens solitários, cruzando os
cerrados e gerais, sem nome, sem história. Mundo semeado de terrores
para o próprio natural do lugar que, talvez para sugestionar-se com a

7
Cf. Candice Vidal e Souza, A pátria geográfica: sertão e litoral no pensamento social brasileiro.
8
Ibid.

141
negação, talvez para fugir à pecha de primitivismo, informa: “Não, aqui ainda
9
não é o sertão.”

Tal dimensão histórico-política do sertão “múltiplo” escapa à análise de


Eduardo Coutinho. Operando com a genérica noção de “conflito entre o velho
e o novo”, ele deixa de considerar as especificidades nacionais implicadas na
tensão entre ordem urbana e ordem rural em Grande sertão: veredas. Seu
ensaio seria mais elucidativo se o diálogo com a pesquisa de Walnice
Nogueira Galvão não se restringisse a pinçar em As formas do falso a
definição do sertão como conjunto de regiões unificadas pela pecuária, se
levasse em conta também as reflexões e indicações da crítica precedente a
respeito da lógica política e social identificadas no romance.
No texto de Coutinho, a oposição sertão x cidade é homóloga a velho
x novo. Citando observações de Cavalcanti Proença que se seguem ao
trecho citado acima, o autor procura demonstrar que, no romance,
distinguem-se “o conflito sertão x cidade (...) e a dicotomia civilização x
barbárie tão freqüente na ficção anterior não só do Brasil como de toda a
América Latina”.10 A seu ver, a instituição de um tribunal bancada por um
grande chefe jagunço “indica a introdução de hábitos novos e civilizados no
sertão, tendência que irá gradualmente desenvolver-se, sobretudo durante as
chefias de Zé Bebelo e Riobaldo”. Por outro lado, o sucesso do protagonista
contra “a facção mais conservadora” – representada por Hermógenes e
Ricardão, que se rebelaram contra o veredicto do tribunal instituído por Joca
Ramiro e o mataram à traição – depende da “integração de Riobaldo com o
sertão”.

Filho do sertão, Riobaldo é ciente de que “a gente só sai do sertão é


tomando conta dele a dentro”, pois, como diz ao seu interlocutor, “o sertão
não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa
o sertão, ou o sertão bendito vos governa”. Todavia, governar o sertão
implica paradoxalmente obedecer-lhe, aceitar certas obrigações impostas

9
M. Cavalcanti Proença, Trilhas do Grande sertão, op. cit., p. 190.
10
Eduardo Coutinho, op. cit., p. 23. A visão de Coutinho a respeito do conflito sertão x cidade reproduz
a de M. Cavalcanti Proença, que afirma o seguinte: “Sertão não protege ninguém. Só é a favor do
jagunço porque ele compreendia as virtudes físicas do mestre em ofícios e habilidades da vida rústica e
defende a terra primitiva contra o avanço da civilização, enfrentando a autoridade, peito a peito. O
sertão se alia a essa luta, repelindo o invasor. (...) O julgamento de Zé Bebelo é o diálogo entre sertão
e cidade, adversários que nenhuma aliança jamais unirá, porque ambos se temem mais do que se
odeiam, e só podem aproximar-se para destruir-se”. (M. Cavalcanti Proença, op. cit., p. 190-191).

142
pelas circunstâncias. (...) Riobaldo, apesar de hesitante a princípio, aprende
a escutar o chamado da terra, e acaba bem sucedido somente na medida
em que foi capaz de identificar-se com ela e assumir tal identidade até o fim.
Seu sucesso, porém, como tudo mais no romance, tem um sentido duplo,
pois, a fim de alcançá-lo, ele teve de submeter-se ao poder fatalístico do
meio e aceitar um destino que parecia haver sido previsto para ele de
antemão. (...)
O sertão não é, na obra de Rosa, um mero antagonista do homem, como no
famoso ciclo do romance da selva, em que este é indubitavelmente levado à
destruição ou ruína final, mas antes uma região múltipla, complexa e
ambígua, construída sob um eixo semântico plural, que oscila de acordo
com a maneira de o homem relacionar-se com ela. (...)
“Sertão”, neste ponto não é mais uma região geográfica (...), mas antes um
microcosmo do mundo, uma região misteriosa, ilimitada, em que o homem
11
vive em constante busca de sentido.

“Tudo política, e potentes chefias!” – falta, na análise de Eduardo


Coutinho a dimensão sugerida pela frase com que o pai/padrinho de
Riobaldo, Selorico Mendes, define a “vida vera” do “cidadão do sertão” (GSV,
p. 94), e que Walnice Nogueira Galvão não deixou de sublinhar para
caracterizar o contexto sertanejo. É verdade que os ensaios de Em busca da
terceira margem não se detêm nunca em comentários mais aprofundados a
respeito de leituras anteriores, via de regra apenas as mencionam para
corroborar uma proposição em curso. No caso da seleção operada em As
formas do falso, chama atenção a elisão da perspectiva histórica e
sociológica, fundamental na caracterização que a análise convocada faz do
sertão rosiano. De costas para a vida política e social, a conclusão do texto
de Coutinho sobre o conceito múltiplo de sertão, sobre a “visão do sertão
como região universal”, reitera o tema da ‘travessia, da vida como “busca do
conhecimento, processo de aprendizagem” no qual “cada passo dado pelo
homem em seu caminho constitui um instante de risco que o coloca frente ao
mistério, ao desconhecido”.

Este conceito do sertão como um microcosmo é o que predomina no


plano subjetivo da narrativa, constituído pelos conflitos interiores e a
perquirição metafísica do protagonista, pois tanto estes conflitos quanto a

11
Eduardo Coutinho, Sertão: um conceito múltiplo em Grande sertão: veredas, op. cit., p. 22-24.

143
busca por ele empreendida do sentido da vida são preocupações universais
12
que ultrapassam as barreiras de uma região geográfica específica.

A universalidade do sertão, do ponto de vista que privilegia o “plano


subjetivo da narrativa”, reside essencialmente no fato de ser a travessia de
Riobaldo um “itinerário existencial”. Isso engloba suas aventuras passadas e
o próprio ato de narrar. Ao contar a história vivida, numa, “viagem através das
palavras, da literatura”, Riobaldo faz do sertão também “uma região humana,
recriada pela arte”. A narração constitui uma nova “fase” do “percurso
existencial” empreendido pelo personagem-narrador “em busca do sentido
das coisas e da essência da condição humana”. Embora sem o mencionar, a
análise de Eduardo Coutinho, nessa conclusão, é bem alinhada com as
considerações que Benedito Nunes registrou, no final da década de 1970, em
um dos ensaios de O dorso do tigre que dedicou ao motivo da viagem na
obra de Guimarães Rosa. Ambos ressaltam que o sertão ganha dimensão
significativa de "microcosmo do mundo", como diz Coutinho. Ou, nos termos
de Nunes, “espaço que se abre em viagem e que a viagem converte em
mundo”, como a Dublin de Ulisses e a Mancha de D. Quixote – travessias
geográficas que convertem-se, na narrativa, em “processos de abertura do
espaço, concomitantes ao desvendamento do mundo”.13 Benedito Nunes não
chega a levar em conta, em sua explanação sobre a “viagem” na narrativa de
Grande sertão: veredas, o fato de ser um relato em primeira pessoa. Essa
circunstância, lembrada por Antonio Candido, torna mais sensível a dimensão
de experiência individual com implicações intelectuais e existenciais que o
filósofo paranaense salienta no romance – a narração é, ao mesmo tempo,
ocasião de presentificação das aventuras passadas e tentativa de abarcá-las
numa percepção de seu sentido conjunto.

Existir e viajar se confundem. A existência de Riobaldo totaliza-se como


viagem finda, que precisa ser relatada para que se perceba o seu sentido.
(...) Vivendo de momento a momento, de lugar a lugar, sem a compreensão
da linha temporal e sinuosa que liga todos os momentos e todos os lugares
da existência, só percebemos saídas e entradas, idas e vindas. Mas a
viagem redonda, a travessia das coisas, – que é vivência e descoberta do

12
Ibid., p. 25. Itálicos meus.
13
Benedito Nunes, A viagem. In: O dorso do tigre, p. 174.

144
mundo e de nós mesmos, consiste – a viagem travessia que se transvive na
lembrança, constitui o saldo imponderável das ações, que a memória e a
imaginação juntas recriam. (...) Só no final da narrativa, quando Riobaldo
consegue fixar o perfil completo de sua existência relembrada, é que a
travessia se apresenta nitidamente (...).
O motivo da viagem (...) assim transparece na estrutura, na temática e
nas intenções morais, filosóficas e religiosas de Grande sertão: veredas (...).
Sertão e existência fundem-se na figura da viagem, sempre recomeçada –
viagem que forma, deforma e transforma e que, submetendo as coisas à lei
do tempo e da causalidade, tudo repõe ao final nos seus justos lugares. (...)
Para Guimarães Rosa, não há, de um lado, o mundo, e, de outro, o
homem que o atravessa. Além do viajante, o homem é a viagem – objeto e
sujeito da travessia, em cujo processo o mundo se faz. Ele atravessa a
realidade conhecendo-a, e conhece-a mediante a ação da poiesis originária,
dessa atividade criadora que nunca é tão profunda e soberana como no ato
de nomeação das coisas, a partir do qual se opera a fundação do ser pela
14
palavra, de que fala Heidegger.

A singularidade da experiência coletiva local nem aparece nesse tipo


de leitura, quando muito é mencionada tão-somente como matéria-prima
indistinguível ou pouco importante no produto final que é o sertão feito
metonímia do território muito mais amplo onde se desenrola a aventura do
pensamento e da criação, onde o personagem-narrador efetua um percurso
que é experiência existencial, onde andanças e narração participam de uma
mesma busca de conhecimento e estabelecimento de sentido para a vida.
Como Benedito Nunes, Eduardo Coutinho vai da região ao universo sem
passar pelo Brasil. Apenas, na conclusão de seu texto, ressalta que a “visão
do sertão como realidade múltipla e ambígua” distingue a criação de Rosa da
“ficção regionalista anterior tanto do Brasil em particular quanto da América
Latina de maneira geral”. Ou seja, o crítico leva em conta a dimensão da
história literária nacional para sublinhar a singularidade da obra mas não se

14
Ibid., p. 175-179. No final de Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa, Antonio Candido
chama atenção para o fato de que a “condição formal básica de Grande sertão: veredas” (“Primeira
pessoa conduzindo a uma presentificação do passado, a uma simultaneidade temporal que aprofunda
o significado de cada coisa”) é fator que “favorece a solidariedade” entre personagem-narrador e
mundo (op. cit., p. 121). A leitura de Benedito Nunes, exclusivamente interessada em formular ilações
filosóficas a partir dos componentes do romance, embora propondo-se a tratar de um aspecto do
conjunto implicado tanto na estrutura quanto na temática da obra, não reflete sobre esse fator, deixa de
fora da perspectiva de sua crítica a possibilidade de questionamento a respeito das peculiaridades do
mundo que o narrador cria, e das motivações desse narrador.

145
questiona a respeito de eventuais especificidades do país (e de sua literatura)
que possam estar implicadas no sertão construído nela.
Na década de 1990, outros ensaios sobre Grande sertão: veredas
focaram tensões mencionada por Eduardo Coutinho: entre sertão e cidade,
atraso e progresso, civilização e barbárie, esclarecimento e obscurantismo.
Em alguns casos, o percurso do regional ao universal inclui passagens por
peculiaridades da experiência brasileira.

146
4.1 – GRANDE SERTÃO E UNIVERSO URBANO

Em meados dos anos 1990, começaram a aparecer em revistas


acadêmicas brasileiras ensaios de Willi Bolle que serviram de substrato ao
seu cuidadoso estudo sobre o romance de Guimarães Rosa publicado em
2004. O primeiro desses textos a sair no Brasil foi Grande sertão: cidades
(Revista USP, nº 24, dez./fev. 1994/95). Já então o crítico assegurava que
Grande sertão: veredas constitui um “retrato do Brasil”. O artigo firma as
bases que sustentam a visão de Bolle a respeito da narrativa de Riobaldo: a
suposição de que esta pode (e deve) ser decifrada como romance urbano; o
recurso às categorias da historiografia benjaminiana como “meio heurístico”
para revelar o retrato do país no século XX inscrito no texto ficcional – no
qual são identificadas contradições do processo de modernização e uma
forma de pôr em cena “o discurso dos vencedores e dos vencidos, lado a
lado”; a estruturação da abordagem calcada na comparação entre Grande
sertão: veredas e Os sertões; a caracterização da “estrada-texto” que é o
romance de Rosa como um “labirinto”, onde o “perder-se” é condição sine
qua non para que se constitua um conhecimento sobre o país pela via da
ficção, o que configura a proposta de “um novo modelo de escrita da
história”.1

1
Tudo isso se encontra sintetizado nos parágrafos de conclusão do ensaio:
“O romance de Guimarães Rosa encena duas maneiras de narrar a história: o discurso dos
vencedores e dos vencidos, lado a lado. Uma tensão já experimentada pelo seu precursor Euclides da
Cunha. O autor de Os Sertões, militar e jornalista, representante do Brasil republicano e da fé no
progresso, começõu a duvidar dos valores em nome dos quais veio para documentar o fim de
Canudos. Suas simpatias se deslocaram para o lado de lá. Esse ponto de vista oscilante é colocado
por Guimarães Rosa dentro de um mesmo personagem. Riobaldo, o jagunço letrado – eis a imagem
dialética que sintetiza o romance. Ele é mostrado ora no papel de vencedor, ora no papel de vencido. A
história do sertão é iluminada a partir dessa dupla perspectiva, cambiante. Com isso, o romancista
propõe um novo modelo de escrita da história.
As “veredas” são o contraponto do grand récit da história monumental. Não é um contar seguido, não
é um contar linear. É contar torto, por linhas tortas, como Deus “que escritura os livros mestres” (...),
linhas quebradas e sinuosas, como as que caracterizam as igrejas barrocas de Minas, e as esculturas,
onde revive e ressuscita – escondida sob a pompa das alegorias, dos cultos religiosos e das
mortificações oficiais – a physis bela e sensual. As veredas são os momentos de atenção da alma no
Grande Sertão. Elas representam o próprio movimento da história, a “matéria vertente”. (Willi Bolle,
Grande sertão: cidades. Novos Estudos Cebrap, nº 24, p. 93)

147
Tais direcionamentos são mais decisivos para os movimentos feitos
por Bolle em sua leitura do trabalho deste autor do que o primeiro livro que
lhe dedicou (Fórmula e fábula: teste de uma gramática narrativa, aplicada aos
contos de Guimarães Rosa, de 1973). São também expressões das
prioridades que o crítico havia assumido para sua reflexão em geral.
Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter
Benjamin, estudo publicado meses antes de Grande sertão: cidades, termina
com um “esboço de comparação” entre os escritos de Benjamim e o “projeto
literário de Guimarães Rosa”, ao qual é atribuído o titulo de “mestre na
representação do imaginário social”.

O trabalho do escritor nasce do diálogo com a cultura dessa multidão rural


analfabeta, na qual mergulha por inteiro, reforjando-a como um demiurgo e
projetando-a numa inaudita “escrita de trânsito universal”. Diferentemente de
Benjamin, que realizou seu projeto de escritor diante do fundo de massas
urbanas, o engenho de Guimarães Rosa é arcaico, “ctônico”; sua obra é
dedicada a uma sociedade que vive longe das metrópoles, na periferia da
periferia. Contudo, essa dimensão extrema é o exato complemento da
benjaminiana “proto-história” da Modernidade. A obra de Rosa oferece uma
visão ao mesmo tempo “arqueológica” e “pós”-moderna das relações entre
2
as grandes cidades e o que é o seu avesso, o sertão (...).

Willi Bolle começa Grande sertão: cidades afirmando que o livro de


Guimarães Rosa, na seqüência de Os Sertões e Macunaíma, “questiona uma
posição canônica na qual a história da literatura brasileira se acomodou: a
separação entre literatura urbana e literatura rural ou regionalista”.3 Em sua
avaliação, àquela altura (1994), a crítica ainda não havia cumprido a tarefa de
decifrar Grande sertão: veredas como romance urbano, hipótese que ele se
propõe a experimentar.
Bem, sabemos que, desde o primeiro momento da recepção de
Guimarães Rosa, embora as preocupações dos críticos estivessem de fato
bastante pautadas pelas questões do regionalismo, percebeu-se que sua
literatura ultrapassava os limites da região. Macunaíma foi referência para

2
Willi Bolle, A Metrópole, vista da periferia. In: Fisiognomia da metrópole moderna: representação da
história em Walter Benjamin, p. 399. A nota junto à primeira expressão entre aspas no trecho citado
remete à passagem do livro que assinala o “trânsito espiritual entre o moderno e o arcaico” como
“afinidade eletiva” a aproximar Benjamin e Rosa.
3
Id., Grande sertão: cidades, op. cit., p. 80.

148
Antonio Candido já em 1946, na resenha sobre Sagarana – e justamente
como marco de um trabalho com a linguagem que buscava a mediação entre
a cultura letrada (urbana) e a cultura popular rural (ver CAPÍTULO 1). Ou seja,
não se pode dizer que a dicotomia contestada por Bolle tenha sido seguida
como parâmetro inescapável pelos intérpretes de Guimarães Rosa. Por outro
lado, de fato, ali nos anos 1990, se estávamos mais do que cientes de que
Grande sertão: veredas se articula numa terceira margem entre moderno e
arcaico, rural e citadino, realmente não contávamos com reflexões voltadas
especificamente para o modo como se apresenta nele aquilo que é próprio da
experiência urbana em um país onde a maioria da população gradualmente
se concentrou nas cidades justamente ao longo das décadas que nos
separavam do lançamento do livro. O título de Bolle e as primeiras palavras
de seu texto parecem prometer algum esclarecimento sobre a representação
da metrópole brasileira no Grande sertão. Porém, não é nessa direção que
segue o texto. A prioridade, logo se nota, é demonstrar que a composição do
romance é orientada por uma lógica de expressão urbana lato sensu, e em
tempos bem pós-modernos. O foco recai sobre um aspecto da forma
narrativa, a “estética do fragmento urbano” que o ensaísta procura analisar
por meio de conceitos benjaminianos. É por aí que se estabelece a paridade
Grande sertão: cidades.
O ponto de partida é o livro que Willi Bolle considera precursor de
Grande sertão: veredas, Os sertões. Se o “choque entre cultura citadina e
cultura sertaneja” manifestou-se na obra de Euclides como uma questão
crucial – “onde está o centro e onde está a periferia da barbárie?” –,
Guimarães Rosa procurou “novos procedimentos de mediação” para lidar
com ela. O principal deles, segundo o ensaio, é a figura do jagunço letrado
que narra sua vida ao ouvinte da cidade. Na avaliação de Bolle, por meio
dessa “imagem dialética”, que encarna um “ponto de vista oscilante” – ao
mesmo tempo próximo e distante do discurso do poder, próximo e distante
“da perspectiva rasteira dos medos e dos sofrimentos das vítimas” – o
romancista consegue repensar a oposição civilização x barbárie (e seu
correlato, cidade x sertão), fornecendo com a “representação do sertão um
retrato do Brasil”. Nesse primeiro ensaio, não chegam a ser especificados
traços de tal retrato nacional. A hipótese trabalhada com mais ênfase é: a

149
busca por mediações entre sertão e cidade que viabilizam a revelação do
país na representação literária do sertão corresponde à tentativa do escritor
de elaborar “uma nova escrita da história”. O crítico, nesse momento, está
mais preocupado em “transpor o procedimento da historiografia alegórica
para a leitura de Grande sertão: veredas”.4
A análise do romance propriamente dita começa por sua “epiderme”, o
título, lido “como hieróglifo profano, um sinal de trânsito: ‘Grande Sertão –
dois pontos – Veredas”, “resposta dialética” ao modo como são
representadas as tensões da realidade sertaneja em Os sertões.

Grande Sertão amplifica ainda mais, talvez até com uma conotação
parodística, a hipérbole euclidiana; Veredas, como um recolhimento, marca
o contraponto.
(...)
Valoração: o Grande Sertão. Isto é, a história dos jagunços, estilizada
em gesta da jagunçagem, epopéia do sertão, romance de cavalaria. É o
grand récit, o estilo “elevado”, o “enaltecimento mítico”, de que falam vários
intérpretes.
(...)
Desvalorização. (...) As “veredas” constituem o contraponto do grand
récit. No título se concentra a teoria de uma nova escrita da história. As
“veredas” são as frestas abertas pelo escritor, para interromper o discurso
que martela uma visão idealizada do país.
(...)
As “veredas” ou “passagens” do Grande Sertão configuram uma história
do cotidiano, uma micro-história do dia-a-dia em contraposição aos feitos da
historiografia monumental ou dos ministérios de propaganda. Como resposta
à desvalorização do cotidiano sertanejo pelo olhar de quem olha de cima
para baixo, as “veredas” representam uma inversão de perspectiva. Trata-se
do olhar sóbrio de quem não idealiza a realidade sertaneja. O olhar de baixo,
5
a perspectiva rasteira, a fala dos humildes.

Não vem ao caso agora pôr em questão as ilações que Willi Bolle
formulou a partir da “dialética entre o estilo grandiloqüente e o sermo humilis”

4
Cf. Ibid., p. 80-82. Willi Bolle apresenta a noção benjaminina de “historiografia alegórica” nos
seguintes termos: “A ‘alegoria’ é o conceito-chave em que se baseiam todas as demais categorias
imagéticas da historiografia benjaminiana. // No sentido etimológico, a alegoria é o discurso através do
‘outro’. A partir daí é derivada a ‘historiografia alegórica’, que consiste no estudo de uma época ou de
um espaço diferente, para o historiador esclarecer aspectos do seu próprio espaço-tempo” (p. 82).
5
Ibid., p. 83-84.

150
que identifica na narrativa (isso é matéria para o CAPÍTULO 5.3, onde são
comentadas as conclusões registradas em grandesertão.br). Por enquanto,
interessa observar especificamente como, nesse ensaio inicial, o crítico
defendeu a hipótese de que a relação sertão-cidade desempenha um papel
decisivo no romance e no retrato do Brasil no século XX que enxerga nele.
A contraposição com Os Sertões é fundamental em sua
argumentação. Na trilha de Antonio Candido, M. Cavalcanti Proença e
Walnice Nogueira Galvão, Bolle aborda o sertão rosiano a partir do
paradigma cunhado por Euclides da Cunha. Com uma diferença: enquanto os
críticos que o antecederam tomaram as vinculações entre os dois livros como
ponto de partida necessário, a partir do qual desenvolveram algumas
hipóteses sobre Grande sertão: veredas, na visão de Bolle essa confrontação
integra o centro do prisma – tanto que um dos tópicos de Grande sertão:
cidades se intitula Guimarães Rosa, autor dos Sertões. “Grande sertão:
veredas é uma retomada minuciosa do livro precursor”, “uma releitura intensa
e um ‘reescrever’”, “um contraponto”.6 É digno de nota o fato de que a
tentativa de especificação do caráter urbano do romance de Guimarães Rosa
– perspectiva que valoriza seu potencial de representação do moderno
universal – destaque as “matrizes bíblicas” que Walnice Nogueira Galvão
apontou em Os sertões.

Euclides projeta o martírio sobre a condição do homem condenado a viver


nos desertos do sertão e nas solidões da Amazônia. O sofrimento de Jesus
se desdobra aí numa maldição, que recaiu sobre uma figura humana
arquetípica, condenada a errar pelas estradas durante a vida inteira: Judas
Ahasvérus.
A profissão do sertanejo, ligada à vaquejada e à arribada, é nômade.
(...) Ao encontro dessa condição socioeconômica vai a religião. O
personagem histórico de Antônio Conselheiro, com suas peregrinações e
martírios, torna-se, como mostra Euclides, a figura por excelência de
7
identificação para os sertanejos.

6
Ibid., p. 84-85. Sobre o modo como Willi Bolle opera com a relação entre Os sertões e Grande sertão:
veredas em grandesertão.br, ver, adiante, o CAPÍTULO 5.3.
7
Ibid., p. 86. Conforme a nota 17 do ensaio, o comentário de Walnice Nogueira Galvão mencionado
logo antes do trecho transcrito foi pronunciado em uma Conferência sobre Os sertões, na Freie
Universität Berlin, em maio de 1990.

151
Na seqüência do raciocínio exposto no ensaio, o sentido proposto para
a referência religiosa encontrada no romance de Euclides da Cunha conduz,
por analogia, a uma caracterização da condição jagunça em Grande sertão:
veredas. São ressaltados nesta os mesmos traços de movimento nômade,
itinerante, o “errar sem rumo pelo sertão". O crítico projeta tal mobilidade para
a situação narrativa, que descreve como “marcada por esse movimento
dialético entre cidade e estrada: o conforto material de uma pessoa instruída,
sedentária, e a inquietude do homem itinerante, para quem a vida é um
sofrido caminhar pelo labirinto”. Daí conclui que é tendo por guia o livro de
Euclides que Guimarães Rosa abre sua “estrada-texto”, leva adiante o
“projeto literário de representação da sociedade, da mentalidade e do
imaginário sertanejos”.8
O tópos da viagem geográfica e narrativa, antes abordado por
Benedito Nunes, é retomado em outros termos, aportando outras
decorrências à interpretação. Para Nunes, o movimento pelo sertão ganha a
amplitude de busca existencial do sujeito, percurso individual que, no
momento da narrativa, resulta em “desvendamento do mundo”.9 Para Bolle, a
fala de Riobaldo também é tentativa de autoentendimento, “uma reflexão
permanente sobre o modo de narrar a história de sua vida”, mas se desdobra
na “problematização, por parte do autor João Guimarães Rosa, de como
apresentar a história do seu país”, e esse questionamento se reflete na
construção de “um vasto tableu etnográfico apresentando os caracteres
sociais do sertão e a sua história cotidiana”. Willi Bolle faz questão de
sublinhar que “não se trata só da problemática de um ‘eu’ narrativo individual,
mas da representação de uma coletividade, do conjunto de uma cultura”.
Em síntese: o caráter urbano de Grande sertão: veredas estaria
radicado no projeto de um “novo modelo de escrita da história”, pautado pela
justaposição entre o discurso idealizador dos poderosos e os fragmentos que
registram o cotidiano da gente miúda, “contraponto do grand récit” que vem à
tona em um “contar torto”. Assim como a metrópole de Benjamin, o sertão de
Guimarães Rosa é apresentado por meio de uma “composição fragmentária,
onde as ‘passagens’ ou ‘veredas’ constituem trilhas de informação”. Não é

8
Ibid.
9
Cf. Benedito Nunes, Guimarães Rosa. In: O dorso do tigre. Ver CAPÍTULO 4, p. 144-145.

152
espaço que se deixe mapear com traçados contínuos, mas labirinto. “O
sertão como labirinto, como lugar por excelência do errar”; “o perder-se no
sertão”, “essa perda, que é a chave da construção do romance”, leva o
personagem (e o leitor) a encontrar-se diante de “’passagens’ da vida”, as
quais formam “uma constelação de detalhes aparentemente irrelevantes que,
no entanto, representam as juntas e os parafusos que mantêm funcionando a
gigantesca máquina social”: as veredas “representam o próprio movimento da
história”.
No fim do ensaio, o autor analisa, a título de exemplo, três dessas
“veredas-passagens”. Todas são retomadas em grandesertão.br, e vale mais
a pena levar em conta, para a discussão específica das proposições, seu
formato final (ver CAPÍTULO 5.3). Por enquanto, segue somente a síntese
dessas interpretações de episódios do romance em sua primeira formulação,
apenas para observarmos aonde conduz a estratégia de leitura que parte da
percepção do sertão como espaço similar à metrópole em sua conformação
labiríntica.
A primeira passagem tem como mote o episódio no qual o bando
chefiado por Zé Bebelo, logo depois de se deparar com os catrumanos do
Pubo – a gente mais desprovida de tudo no romance – passa pela fazenda
de seu Habão, próxima ao povoado do Sucruiú, cuja miséria havia sido
acentuada por uma epidemia. Riobaldo percebe então, conforme as palavras
de Bolle, “como funciona a economia” e qual a “sua situação social
verdadeira”.

Falta mão-de-obra na agricultura, porque os habitantes do lugar estão


inutilizados pela doença. Quando Riobaldo sente o olhar do fazendeiro
avaliando a ele e aos seus companheiros – “cobiçava a gente como
escravos” – nasce uma nova forma de consciência.
Essa consciência é histórica e social. Vem à tona o caráter
fantasmagórico da condição de jagunço – até então encoberto pela
romantização e a retórica. (...) Se deixasse as armas nesse momento, não
seria mais que um simples peão, recaindo no anonimato da plebe rural.

153
Tornam-se visíveis os elementos ideológicos da jagunçagem. Desfaz-se
a ilusão de estar acima das diferenças de classes, a idealização da
10
liberdade e da independência garantida apenas pela prática da violência.

A segunda passagem refere-se ao pacto com o Diabo, interpretado


como revelação da “mola psicológica e social que faz os sertanejos entrarem
na jagunçagem”: o “desejo coletivo” de gozar dos benefícios individuais
oferecidos pela inserção em um sistema regido pela violência, pela prática do
crime. O pacto de Riobaldo com o Diabo seria, desse ponto de vista,
metonímia de um pacto entre chefes e chefiados.

Sem disfarces, o escritor registra a motivação real dos que optam pela
jagunçagem. Chefe e chefiados optam conscientemente pela prática do
crime. Eis o pacto. E eis o ponto para se questionar as interpretações
metafísicas, como também a tese de Walnice Nogueira Galvão de que o
romance de Guimarães Rosa seja “a mais profunda e mais completa
11
idealização da plebe rural brasileira”.

O terceiro ponto eleito para análise agrupa várias situações vividas


pelo bando de jagunços chefiados por Riobaldo. É ressaltado o fato de que,
tal como é narrada, essa história da jagunçagem “põe em cena os que
praticam a violência ou sonham com ela e os que sofrem a violência”, o que
“desautoriza as interpretações idealizadoras do romance”.
Recapitulando os movimentos do ensaio: parte-se da postulação da
possibilidade (e da necessidade) de ler Grande sertão: veredas como
romance urbano, condição para decifrá-lo como retrato do Brasil no século
XX. Para isso, recorre-se a uma estratégia de duas faces. De um lado, para
ressaltar a singularidade da mediação entre cultura citadina e cultura
sertaneja efetuada na narrativa de Riobaldo, ela é contrastada com alguns
procedimentos de Euclides da Cunha em sua apresentação do sertão e dos
sertanejos. De outro lado, são empregados como recursos metodológicos
certos conceitos benjaminianos ligados à historiografia alegórica e à
representação da metrópole moderna (imagem dialética, passagem, estrada-
texto). Daí emerge a caracterização do teor urbano desse romance de

10
Willi Bolle, Grande sertão: cidades, op. cit., p. 91-92.
11
Ibid., p. 92. O trecho de As formas do falso citado na passagem encontra-se à página 74.

154
ambientação rural: urbano é o modo como o escritor, explorando as brechas
no discurso grandiloqüente de seu precursor, faz do sertão um espaço
labiríntico, no qual o leitor se depara com fragmentos de vida muito
significativos dos movimentos da história do país.
Acontece que toda essa armação teórica parece um tanto
desconectada das três análises finais. Parece faltar no ensaio uma ponte
mais sólida entre os problemas percebidos nas passagens da história
sertaneja e as peculiaridades da experiência urbana brasileira. Se a forma de
labirinto é o como que vincula o sertão ao universo urbano, se “perder-se” no
sertão é, nas palavras de Willi Bolle, “a chave da construção do romance”,
que aspectos da sociedade brasileira no século XX esse romance ilumina?
As três passagens analisadas evidenciam bem o potencial que tem a
narrativa de desmascarar a idealização da jagunçagem, mostrando a crueza
tanto do sistema econômico a que ela serve quanto dos impulsos de violência
e dos sofrimentos que alimenta. Mas a jagunçagem é, a princípio, um
problema sertanejo. Que relação tem com o universo urbano moderno o
sistema de trabalho no sertão, a violência que anima os jagunços, as
condições de vida da plebe rural?
O último episódio do romance a que Willi Bolle se refere enfatiza, na
conclusão do ensaio, um ponto de fuga para o qual converge a perspectiva
do crítico: a função desempenhada pelo intelectual na ordem social.
Na Fazenda dos Tucanos, chefiado por Zé Bebelo, Riobaldo recebe
ordem de escrever uma carta na qual o líder do bando jagunço que ele
integra tenta um acordo com as autoridades: visando a um apoio para o
ingresso no esquema político-institucional, o chefe revela o paradeiro do
bando, termina o ditado com fecho formal – “Ordem e Progresso, viva a Paz
e a Constituição da Lei” – e assina “José Rebelo Adro Antunes, cidadão e
candidato” (GSV, p. 288). A mensagem estratégica é pautada por motivação
pessoal – a carreira política, “engordar com o Governo (GSV, p. 325) – e
rompe simbolicamente com o dever de honra assumido no contexto do
sistema jagunço por aquele que havia adotado o nome de guerra Zé Bebelo
Vaz Ramiro. O jagunço letrado chama atenção para isso quando questiona a
opção pelo nome civil. Para Bolle, o questionamento de Riobaldo, ao pôr em
xeque a linguagem retórica do chefe, tem caráter exemplar com relação à

155
“função do intelectual: interromper o discurso dominante”. Há na avaliação do
crítico um indisfarçado elogio à atitude de Riobaldo, análogo à valorização da
criação de Guimarães Rosa como reescrita ou nova escrita da história capaz
de trazer à tona a micro-história dos vencidos.
Mas o que há em comum entre a “micro-história” dos sertanejos e a
dos habitantes das grandes cidades?
Em um trecho de sua explanação a respeito do jagunço em Grande
sertão: veredas, Antonio Candido deixou sugerida a possibilidade de
realização do modo de ser jagunço em contexto urbano. É um parágrafo que
já foi citado aqui, mas sem as linhas finais – a transcrição de uma fala de
Riobaldo –, justamente as que abrem caminho para a aproximação entre
sertão e cidade, apresentando o modo de ser jagunço como forma que pode
ser, entre outras coisas, urbana:

[O jagunço] encarna as formas mais plenas da contradição no mundo-sertão


e não significa necessariamente deformação, pois este mundo, como vem
descrito no livro, traz imanentes no bojo, ou difusas nas aparências, certas
formas de comportamento que são baralhadas e parciais nos outros
homens, mas que no jagunço são levadas a termo e se tornam coerentes. O
jagunço atualiza, dá vida a essas possibilidades atrofiadas do ser, porque o
sertão assim o exige. E o mesmo homem que é jagunço (...) seria outra
coisa noutro mundo. “A paz no Céu ainda hoje-em-dia, para esse
companheiro, Marcelino Pampa, que de certo dava para grande homem-de-
12
bem, caso se tivesse nascido em grande cidade”.

O ensaio de Willi Bolle tem a ver com essa sugestão a respeito do


modo de ser jagunço, mas não se refere a ela. Também certas observações
de Walnice Nogueira Galvão, sobretudo as referentes à sobreposição entre
dependência e perspectiva de liberdade que a dinâmica da pecuária
extensiva aporta ao modo de vida da plebe rural sertaneja,13 poderiam trazer
mais especificidade à reflexão a respeito da “condição nômade que marca o
dia-a-dia” do vaqueiro e do jagunço, abordada por Bolle. Mais: se em uma
passagem ele refuta a tese de As formas do falso segundo a qual o romance
idealiza a plebe rural brasileira (ver acima, p. 154), seria interessante

12
Antonio Candido, Jagunços mineiros: de Cláudio a Guimarães Rosa, op. cit., p. 114.
13
Ver Walnice Nogueira Galvão, As formas do falso, capítulos 2 (O sertão e o gado) e 3 (A plebe rural)
da primeira parte, comentados no CAPÍTULO 2.1.

156
contextualizar a afirmativa da autora, que surge em meio à discussão da
peculiar mistura entre popular e erudito, fala e escrita, lucidez e mitificação na
linguagem de Guimarães Rosa. Indiretamente, o trecho remete à
ambiguidade que, na introdução de seu estudo, Walnice Nogueira Galvão
aponta como “ao nível da prática, a raiz das demais” ambigüidades de
Grande sertão: veredas: “a posição do escritor” – que é, afinal, ponto-chave
na leitura de Bolle. Em As formas do falso, consta que:

(...) neste discurso oral que é escrito, sertanejo ao mesmo tempo que
erudito, lúcido enquanto apanha o processo histórico e mitologizante quando
o feudaliza, identificado ao homem pobre do sertão e dele distanciado, com
uma concepção metafísica veiculada pelo espiritismo popular mas que tem a
sofisticação do budismo e das idéias de Heráclito, que proclama sua fé na
vida mas que faz do texto um fetiche, que apreende as tensões da realidade
como ambigüidade sem radicalizá-las em contradições, é, afinal, a posição
do intelectual brasileiro que se delineia. Preso a seus privilégios ,as sendo
capaz, por treino, de experimentar imaginariamente outras situações de
vida, convive no mundo dos valores, mas é tradicionalmente servidor do
Estado; aqui existe e aqui produz, mas de olho na última moda das agências
centrais da cultura. Ninguém ainda nos mostrou nosso retrato tão
impiedosamente, mesmo através de tantas mediações, e talvez sem o
saber, como Guimarães Rosa no Grande Sertão: Verredas. Nas páginas
14
deste livro perpassa a sombra do letrado brasileiro.

A imagem do intelectual que Willi Bolle apresenta em sua leitura é, no


fim das contas, muito mais luminosa, positiva, ressalta mais algo como a
“dignidade da lucidez”, a que se refere Candido em Jagunços mineiros, do
que a “sombra”, as ambigüidades do retrato impiedoso enxergado por
Walnice. Da ótica de Bolle, como diz ele em ensaio publicado em 1998,
Guimarães Rosa é escritor que, falando “em código cifrado dos segredos do
poder”, colabora para a construção de um “‘re[di]mir’ da história” na medida
em que dá voz efetiva ao povo, “não como dócil destinatário de mensagens
populistas, mas como figura ficcional interna, discreta e soberana. Calado,
ouve os discursos dos que falam em seu nome. E julga”.15

14
Ibid., p. 13-14.
15
Willi Bolle, O pacto no Grande Sertão, op. cit., p. 44.

157
Voltando a Grande Sertão: cidades. Ainda que o ensaísta afirme que
os ensaios de Antonio Candido e As formas do falso haviam sido, até aquele
momento (1994), as únicas investidas no sentido de entender Grande sertão:
veredas à luz da experiência brasileira no século XX; embora desenvolva, a
partir da noção de jagunço letrado, considerações relevantes a respeito do
ponto de vista que rege a narrativa, chama atenção que a categoria
formulada por Walnice Nogueira Galvão, e já consagrada na época, seja um
dos poucos resultados do trabalho dos precursores explicitamente convocado
para construir a argumentação que pretende demonstrar a interpenetração
entre Grande sertão e cidade moderna. Nessa tentativa de ressaltar o caráter
urbano do romance de Rosa como aspecto que constitui o retrato do Brasil
no século XX, fica mais proeminente o diálogo com Walter Benjamin do que a
retomada de hipóteses e conclusões específicas sobre a obra que levam em
conta dados locais. Ao que tudo indica, as escolhas do autor não são regidas
apenas por um critério que priorize, na abordagem do texto literário, a
observação de experiências sociais descartadas ou disfarçadas no discurso
dominante, que tanto interessa à sua interpretação. Afinal, Candido e Galvão,
como Benjamin – cada um a seu modo – souberam ressaltar o gênero de
problemas a que Bolle se dedica: a inscrição de tensões sociais na criação
estética. Por mais que o pensamento de Walter Benjamin possa contribuir
para a reflexão a respeito do livro de Guimarães Rosa e de certos problemas
expressos nele, fica uma pergunta: porque a inclusão dos termos
benjaminianos na discussão sobre a representação da história do país em
Grande sertão: veredas vem de par com o escasso aproveitamento de um
acúmulo crítico diretamente relacionado à discussão de peculiaridades
locais? A questão tem especial relevância porque Grande sertão: cidades
constitui um marco na recepção recente do romance, junto com outros
estudos que, a partir de meados da década de 1990, puseram em evidência
as relações Grande sertão: Brasil.
Seria leviano emitir um juízo quanto ao procedimento de Willi Bolle
considerando apenas esse primeiro ensaio, sem levar em conta o resultado
integral dos muitos anos de pesquisa dedicados a Grande sertão: veredas,
dos quais resultou o livro grandesertão.br. Mas desde já não se pode deixar
de notar o quanto seu esforço de decifração de um retrato do Brasil na

158
narrativa de Riobaldo é pautado por duas constantes: 1) valorização (ou
idealização?) do potencial de interferência que têm as manifestações
estéticas ou intelectuais questionadoras de discursos dominantes e 2)
abordagem dos vínculos entre forma literária e experiência social com o
propósito de pensar as especificidades do Brasil no século XX, e com ênfase
no contraste entre os problemas do país e o ideal de civilização fundador das
modernas sociedades ocidentais. Tal ênfase se evidencia nos termos
políticos muito genéricos como é tratada, em Grande Sertão: cidades, a
questão da expressão das camadas populares na obra literária, a “fala dos
humildes”: trazer à tona o discurso dos vencidos corresponde a papel de
intelectual cioso de seu compromisso com as exigências da democracia.
As duas preocupações perceptíveis no texto de Bolle manifestam uma
certa militância humanística, que poderia ser descrita a partir de termos que
Antonio Candido utiliza para descrever os momentos decisivos da formação
literária nacional na Introdução de Formação da literatura brasileira: trata-se
de uma crítica empenhada. Como no caso dos escritores do Arcadismo e do
Romantismo brasileiros estudados por Candido, é componente determinante
no juízo de Willi Bolle um certo “sentimento de missão” de intelectual que
trabalha com a convicção de estar fazendo a sua parte no “esforço de
construção do país livre”. Obviamente, a noção de “país livre” já não é aquela
que mobilizou os artistas dos momentos formativos – mas as prioridades
civilizatórias de Bolle também não se distanciam tanto assim daquela visão
(ver CAPÍTULO 5.3).
Do ponto de vista do andamento da crítica literária brasileira, o que
significam as preocupações de Willi Bolle e o modo como ele procura atendê-
las em sua leitura de Grande sertão: veredas? Uma hipótese: estamos diante
de um esforço de demonstração de que o romance considerado o maior feito
da literatura brasileira (ou até da língua portuguesa) no século XX tem – para
não fugir ao vocabulário benjaminiano – “afinidade eletiva” com algo da
sensibilidade, dos termos conceituais e da experiência da – agora, para dizer
como Bolle em Fisiognomia da metrópole moderna – “pós”-modernidade
mundial. Um exemplo de manifestação desse esforço no procedimento do
crítico: reflete sobre a “errância” (esse vocábulo é empregado apenas em
grandesertão.br, mas não seria dissonante no texto de 1994) do jagunço e da

159
narração a partir das matrizes bíblicas que Walnice Nogueira Galvão
demonstrou integrarem Os sertões, ao mesmo tempo desconsidera a
minuciosa análise que a autora faz dos fatores socioeconômicos implicados
na condição “provisória” (conforme Riobaldo) da plebe rural integrada pelos
jagunços de Grande sertão: veredas. Por mais que a trajetória do
personagem bíblico mencionado em Grande sertão: cidades (Judas
Ahasvérus) tenha o tom doloroso de um martírio, a referência à mítica cristã
(por sua universalidade, pelo caráter a-histórico de que se revestiu, pelo
potencial de comoção que tem o heroísmo dos mártires) é muito mais
palatável à cognição contemporânea do que os dados objetivos, radicados na
formação do Brasil, que levam o homem pobre a errar pelo sertão – a
correlação entre “natureza da unidade produtiva” rural e dispensabilidade da
mão-de-obra.16

16
Cf. Walnice Nogueira Galvão, op. cit., p. 38. Ver CAPÍTULO 2.1. Teremos oportunidade de observar a
afinidade de Bolle com a sensibilidade contemporânea mais adiante, no CAPÍTULO 5.3, dedicado a
grandesertão.br.

160
4.2 – DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO NO GRANDE SERTÃO

Poucos meses antes de Willi Bolle publicar Grande Sertão: cidades,


saiu o ensaio O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães
Rosa, de Davi Arrigucci Jr. A relação entre os universos rural e urbano
também é considerada aí um aspecto fundamental em Grande sertão:
veredas, mas a avaliação se estrutura de modo bastante diverso da
apresentada por Bolle. Enquanto os procedimentos interpretativos deste se
fundamentam na historiografia alegórica de Walter Benjamin, Arrigucci ajusta
o foco com que aborda o livro conciliando a análise benjaminiana do narrador
tradicional, as considerações de Luckács sobre o herói problemático do
romance e as reflexões de Adorno e Horkheimer a respeito da dialética do
esclarecimento. Essas referências, que já se anunciam no resumo do
trabalho, estão implícitas nas principais hipóteses, objetivos e conclusões
para que ele se encaminha:

Esse ensaio de interpretação de Grande sertão: veredas trata da forma


mesclada do romance de formação com outras modalidades de narrativa,
provindas da tradição oral, em consonância com o processo histórico-social
que rege a realidade também misturada do sertão rosiano. (...) O estudo
descreve e tenta apreender (...) a mistura peculiar que define a singularidade
do livro, intrinsecamente relacionada ao mundo misturado que tanto
desconcerta esse narrador, cujo desejo de saber vai além da sabedoria
prática do narrador tradicional, pois envolve questões do sentido da
experiência individual típica do romance, voltado para o espaço urbano do
trabalho e da vida burguesa. Na reconstrução da mistura como um todo
orgânico, em que o romance parece renascer do interior da poesia do mais
fundo do sertão brasileiro, se busca tornar inteligível um verdadeiro processo
de esclarecimento. Por ele, Riobaldo, ao repassar o vivido e sua paixão
errante por Diadorim, se esquiva da violência mítica do demo que marcou
sua existência, expondo-a à luz da razão. Isto faz da travessia desse herói

161
problemático de romance, homem humano, um contínuo aprender a viver –
1
a real dimensão moderna da obra-prima de Guimarães Rosa.

Davi Arrigucci Jr. procura conjugar forma narrativa mesclada e


dinâmica histórico-social para evidenciar a figuração de um processo de
esclarecimento. Seu ponto de partida é a percepção de que, em vários
planos do romance, ocorrem “inversão de posições, misturas e
reversibilidades”.2 Trata-se de um aspecto da composição da obra e da visão
de mundo do narrador-protagonista que tem sido sublinhado, com freqüência
e de maneiras bem diversas, ao longo da fortuna crítica desse texto onde
tudo o que é pode deixar de ser, tudo o que não é pode vir a ser, os
contrários se sobrepõem, os limites entre uma coisa e outra são muito
tênues, às vezes apagados. A experiência relatada atesta a instabilidade das
distinções absolutas: confundem-se ou transmutam-se um no outro o bem e o
mal, o seguro e o duvidoso, o justo e o injusto, e assim por diante. Isso é
matéria de muitas das digressões reflexivas com que Riobaldo interrompe a
narração dos fatos. Duas das mais citadas são as seguintes:

Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas,
não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que
mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de
repente virar azangada – motivos não sei; às vezes se diz que é por
replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em
amargando, de tanto em tanto, de si mesmo toma peçonhas. E, ora veja: a
outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo,
de se comer sem nenhum mal. E que isso é? (GSV, p. 4).

Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o
bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o
branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza!
Quero os todos pastos demarcados... Como é que eu posso com este
mundo? (...) Ao que, este mundo é muito misturado... (GSV, p. 192).

Como tantos outros intérpretes, Arrigucci considera que a figura de


Diadorim encarna aquilo que obseda Riobaldo – a dificuldade de reconhecer

1
Davi Arrigucci Jr., O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa. Novos estudos
Cebrap, nº 40, p. 07.
2
Ibid., p. 8.

162
dicotomias efetivas no fluxo dos acontecimentos, problema que se manifesta
na história narrada e na consciência do narrador. Procura explicar como e
porque esse impasse vivido no passado e revivido no relato intervém na
composição do romance. Lida, portanto, com duas instâncias passíveis de
divergência crítica. A primeira diz respeito à definição do princípio que
preside a lógica de relação entre termos opostos (ou, no mínimo,
dessemelhantes). Antonio Candido fala em “reversibilidade”, Walnice
Nogueira Galvão, em “ambigüidade”, José Antônio Pasta Jr., em “hibridismo”.
Além disso, variam também as explicações que procuram elucidar a razão de
ser dessa lógica a partir do reconhecimento da função estrutural que ela tem
no romance. Em O mundo misturado, opera-se com a noção de “mistura”. A
hipótese central sobre a constituição da forma ficcional de Guimarães Rosa é
enunciada depois de um trecho que assinala o desconforto do protagonista-
narrador, no passado e no presente da narração, com a “dificuldade de
entender as coisas claras, delimitando os opostos”. As “cismas de Riobaldo”
– a inquietação alimentada pelo “lado contemplativo do herói”, pelo
“demonismo íntimo do personagem, a sua interioridade partida”, “o modo de
ser de um herói problemático, debruçado sobre o fluxo da vida” – incidem
sobre o caráter equívoco das experiências, “inversão de posições, misturas e
reversibilidades”, mesclas que o ensaísta identifica também na “forma de
contar”.

Ao que parece, a singularidade do livro, que se impõe desde logo ao


leitor, depende em profundidade da mescla das formas narrativas que o
compõem, intrinsecamente relacionadas com o mundo misturado que tanto
desconcerta o Narrador. Esta relação orgânica entre a forma de contar e a
matéria de que se trata, espelhando-se na mescla narrativa, é o primeiro
ponto crítico de que se pode partir. De algum modo, a mescla das formas se
articula com a psicologia demoníaca do herói problemático.
A questão crítica pertinente é, pois, deslindar em que consiste a
3
especificidade da mescla, definindo-lhe primeiro o modo de ser.

3
Ibid., p. 10. Itálicos do autor. Até certo ponto, o trabalho de Davi Arrigucci Jr. retoma uma hipótese de
Roberto Schwarz: “O livro de Guimarães Rosa, em atenção à sua linhagem de obra-prima, furta-se à
composição usual dos conceitos críticos. Tem muito de épico, guarda aspectos da situação dramática,
seu lirismo salta aos olhos. O modo original e entranhado pelo qual obtém essa combinação dos
gêneros parece-nos uma das chaves para seu próprio modo de ser, que tentaremos abordar”. (Grande
sertão: estudos, op. cit., p. 378).

163
Parte-se então para uma explanação que aponta evidências do
princípio de mistura na linguagem do escritor, na caracterização dos
personagens e no contexto ao qual o romance remete. Nesses passos,
Arrigucci põe em articulação, nem sempre de modo explícito, achados
decisivos de intérpretes que o precederam.
Mistura na linguagem: o “largo aproveitamento dos materiais
lingüísticos mais heterogêneos, fundidos em liga incomum, mas
homogeneizante”. Entre os recursos convocados na criação verbal incluem-
se o “amplo e rico material idiomático” disponível ao escritor poliglota, o
conhecimento da história do português – que lhe permite tanto fazer
“recircular a tradição” quanto explorar as “virtualidades da língua” – e o
convívio atento com falas populares da região em que se ambienta a
narrativa. Soma-se a isso uma “forte vontade de estilo”, que motiva a
assimilação de referências da alta literatura ocidental, da filosofia, de escritos
místicos os mais diversos, de viajantes que estiveram pelo país nos séculos
passados, da tradição literária brasileira (com ênfase nos escritores que
trataram do sertão desde o romantismo)... são muitas as fontes.4 A fusão de
tantos tipos de referências se faz em uma prosa na qual “é intenso e
constante o lirismo”, com “permanente realce da função poética”. Mas
Arrigucci adverte: não provém apenas do manuseio da “materialidade do
signo – por meio do ritmo e da sintaxe, dos recursos sonoros e imagéticos –”
toda a intensidade da poesia entranhada no romance de Guimarães Rosa.5

4
Nesta passagem, o autor remete à primeira parte de Trilhas do Grande sertão, de M. Cavalcanti
Proença, dedicada à análise dos procedimentos de criação lingüística no romance. O trabalho de
Proença (o trecho mencionado por Arrigucci encontra-se em artigo publicado originalmente em 1957) e
o de Oswaldino Marques a respeito de Corpo de Baile (Canto e plumagem das palavras, da mesma
época) foram pioneiros na tentativa de esclarecer o repertório verbal do escritor, tarefa que,
compreensivelmente, mobilizou muito sua crítica num primeiro momento.
Os estudos dedicados a referências textuais empregadas na elaboração da linguagem e das
narrativas de Guimarães Rosa como um todo passaram a contar com um recurso valioso a partir da
organização do Arquivo Guimarães Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (iniciada em
1973). Hoje, o arquivo constitui um filão de onde se pinçam argumentos para as mais diversas
interpretações. Por exemplo: Ana Luiza Martins Costa, em Rosa, ledor de Homero (Revista USP, nº 36)
vale-se das anotações de leitura da Ilíada e da Odisséia para esmiuçar a presença de elementos
épicos no texto rosiano; Elizabeth Hazin, em O arquivo como espelho: reflexos no Grande sertão:
veredas de artigos de revistas encontrados no arquivo Guimarães Rosa (In: Lauro Belchior Mendes e
Luiz Cláudio Vieira de Oliveira (org.), A astúcia das palavras: ensaios sobre Guimarães Rosa), procura
demonstrar, a partir de matérias selecionadas por Rosa em publicações de orientação mística, que “os
temas das ‘leituras espirituais’ (...) moldaram a personalidade” de Riobaldo (p. 25).
5
Cf. Davi Arrigucci Jr., O mundo misturado, op. cit., p. 11-13.

164
No entanto, a mais poderosa e impressionante poesia desse grande livro de
prosa narrativa, para a qual os recursos poéticos da linguagem parecem
confluir, é um elemento constitutivo da sua esturura e, em parte também, um
efeito dela, na dependência precisamente do amálgama de formas que o
6
compõem como um todo orgânico, de cerrada e complexa unidade estética.

Depois de indicar os elementos que se misturam na linguagem e de


reafirmar que sua amalgamação é presidida por um princípio estrutural
vinculado à configuração do romance como um todo, Davi Arrigucci Jr.
aborda um segundo plano em que se opera a mistura: a caracterização dos
personagens. A análise começa pela figura do demônio, central para a
interpretação em andamento. “A questão da mistura parece estar, na
essência, ligada à própria idéia do demoníaco, sabidamente uma das formas
arquetípicas da divisão do ser.” Vêm em seguida algumas alusões a trechos
em que o narrador comenta os atributos dos chefes jagunços. Lembrando as
alternativas de representação que Aristóteles associa aos gêneros na Poética
– “os homens podem ser representados melhores, iguais ou piores do que
nós” –, Arrigucci nota que, em Grande sertão: veredas, os grandes chefes
formam um conjunto no qual “se percorre toda essa gama de variações
representativas”: “a mistura na constituição dos caracteres é realmente ampla
e complexa”, “em fina gradação”, que vai do heroísmo idealizado em tom
cavaleiresco (Medeiro Vaz, Joca Ramiro) aos traços prosaicos de Zé Bebelo.
Ou seja, a figura do chefe jagunço não é construída com base em uma única
matriz. Desse ponto de vista, o pacto com o demônio ganha o sentido de
caminho encontrado por Riobaldo para revestir-se dos atributos necessários
ao ingresso no “mundo da alta política da jagunçagem” (condição para
atender às expectativas de Diadorim). Para passar de raso jagunço atirador a
chefe, foi necessário esse “meio de participação numa esfera mais elevada e
decerto mais arcaica”; misturar-se com o demônio surge como alternativa de
eliminação das hesitações que lhe comprometiam a coragem e a convicção,

6
Davi Arrigucci Jr., op. cit., p. 13. Neste passo, o crítico diverge do modo como Roberto Schwarz
caracterizou o aspecto lírico de Grande sertão: veredas em 1960, a partir do pensamento de Sartre (ver
nesta tese o CAPÍTULO 1.1). Reconhece que “o leitor pode ter a impressão de que se tende a absolutizar
o valor da palavra em si mesma, tomando-a como a verdadeira palavra-coisa da poesia, conforme a
conhecida distinção de Sartre”. Aí remete ao ensaio de Schwarz, e observa: “Para se compreender a
fonte e a força dessa poesia mesclada às formas épicas que se amalgamam no todo, será necessário,
por isso mesmo, penetrar na intimidade mais profunda da obra onde a multiplicidade se articula em
unidade”. (p. 13)

165
as quais parecem nunca faltar aos grandes chefes idealizados e que, nele,
eram claudicantes. Desse pacto que é feito, em última instância, com o
“mundo da guerra, (...) da alta traição e da divisão do ser”, Riobaldo tenta
depois “remir-se pelo esclarecimento”, “fazendo-se Narrador nostálgico do
sertão que já não há, e pelo aburguesamento do ex-jagunço aposentado”
(casado com filha de fazendeiro e estabelecido em uma das propriedades
herdadas de Selorico Mendes).7 Como se pode ver, processa-se neste ponto
do ensaio o trânsito do plano da composição dos personagens ao enredo, em
meio ao qual se faz um comentário sobre a trajetória social do protagonista. É
um movimento analítico que exprime a coerência entre o procedimento
adotado na leitura e a hipótese segundo a qual a mistura constitui fator de
integração entre níveis do livro, que confere unidade à multiplicidade dos
elementos postos em jogo na obra, e que se relaciona à feição sertaneja da
dinâmica histórico-social. Os comentários sobre as gradações na
caracterização dos chefes jagunços conduzem a um dado central na reflexão
de Arrigucci que só ganha forma na análise do conjunto das peripécias: a
tensão entre a “norma civilizada” (o “modelo modernizante”, encarnado por
Zé Bebelo, e o “mundo mais arcaico dos demais chefes”). A coerência
interpretativa é reforçada pelo passo subseqüente ao comentário sobre as
transformações vividas por Riobaldo em sua trajetória. O ensaísta parte da
conexão entre esses fatos do enredo e o modo como são caracterizados os
personagens para armar o vínculo entre convivência de tempos históricos
distintos no relato, circunstâncias históricas em sua expressão local sertaneja
e mescla de formas narrativas no romance:

(...) o grande sertão representado no livro, através de seus personagens,


supõe uma perspectiva histórica da mudança, com figuras em gradação
diferente, em diferentes estágios de realidade, envolvendo temporalidades
distintas, ainda que combinadas.
Embora o sertão não se enquadre claramente na História (...) está
referido ao processo histórico (e ao mundo urbano). (...) Embora as balizas
propriamente históricas sejam poucas no relato, a temporalidade histórica
está presente no interior do sertão enquanto processo, como uma dimensão
da matéria vertente, de que trata o relato. (...)

7
Cf. Ibid., p. 14-17.

166
Apesar desse procedimento, é possível notar a significativa mistura dos
níveis da realidade histórica, combinados nas profundezas do sertão,
demonstrando como esse espaço tão particular se acha siderado pelos
valores da cidade, que penetram fundo nos modos de vida onde parece que
reina apenas a natureza.
(...)
Considerado, pois, em seu conjunto, esse modo mesclado de
caracterizar, com suas articulações sutis entre níveis distintos de realidade
logo permite ver que estamos de fato diante de diferentes formas de
narrativa misturadas, correspondendo no mais fundo a temporalidades
igualmente distintas, mas coexistindo mescladas no sertão que é o mundo
misturado. Não é à toa que esse é o lugar do atraso e do progresso
imbricados, do arcaico e do moderno enredados, onde o movimento do
8
tempo e das mudanças históricas compõe as mais peculiares combinações.

Antes de passar às reflexões de Davi Arrigucci Jr. a respeito da


mistura de formas narrativas em Grande sertão: veredas, cabe assinalar dois
detalhes no trecho citado acima, referentes à relação entre o ensaio e outras
abordagens do romance. Primeiro: ao definir o modo como a experiência
histórica se inscreve no relato de Riobaldo, Arrigucci retoma quase que
literalmente – mas sem citar e sem discutir – as considerações de Walnice
Nogueira Galvão segundo as quais, embora sejam inexatas as referências
que delimitam o período em que transcorre a ação, justamente esse tipo de
imprecisão define a singularidade do tratamento da matéria histórica no
romance: o escritor “dissimula a História, para melhor desvendá-la”.9 Até os
marcos identificados na narrativa que permitem situar a ação na segunda
década do século XX são os mesmos: a Coluna Prestes, alusões a jagunços
reais e breves referências isoladas a circunstâncias históricas. Na visão de
Walnice Nogueira Galvão, o romance apresenta dissimuladamente o
processo de afirmação do Estado republicano no Brasil, momento no qual as
instâncias governamentais, incapazes de integrar um vasto território
dominado pela tradição do privatismo do poder, de raízes coloniais,
delegavam autoridade aos proprietários rurais e dependiam destes para ter
autoridade. Em outras palavras: o tempo da ação corresponde a um
momento crucial de instauração da república brasileira, determinado por uma
8
Ibid., p. 16-17. Os negritos e itálicos são do autor.
9
Walnice Nogueira Gavão, As formas do falso, p. 63.

167
relação de – para usar o termo de Arrigucci – mistura entre ordem pública e
esfera privada. Isso não é levado em conta em O mundo misturado.
O segundo ponto importante relaciona-se ao andamento mais recente
da fortuna crítica do romance: a caracterização da dimensão urbana de
Grande sertão: veredas no ensaio de Davi Arrigucci Jr. é bem diferente
daquela que Willi Bolle apresenta em Grande Sertão: cidades. Para Bolle, a
articulação de discursos no romance assume um caráter de modernidade
citadina na medida em que é perpassada pela fragmentação – em lugar da
tradicional oposição sertão-cidade, temos uma correspondência entre os
termos que se estabelece a partir de uma perspectiva própria de um deles (o
segundo). A leitura de Arrigucci ressalta um aspecto central na distinção
entre sertão (“o universo da cultura rústica de base oral”, esfera do mythos) e
cidade (“o mundo da cultura escrita”, esfera do logos). Na situação de diálogo
que dá ensejo à narração (o sertanejo em conversa com um interlocutor
culto) dramatiza-se a comunicação entre os dois âmbitos. Mesmo assim (e
esse é o ponto da comparação entre os dois estudos que interessa assinalar
no momento), O mundo misturado, como Grande Sertão: cidades, também
mostra que a perspectiva da cidade prevalece sobre a do sertão. São
diferentes os modos como os dois ensaístas enunciam essa percepção, os
caminhos por que chegam a ela (ainda que partam de reflexões
frankfurtianas) e as ilações que extraem daí. Por isso mesmo, chama atenção
a coincidência que, no fim das contas, revela um certo consenso com relação
ao resultado do esquema técnico armado pelo escritor: segundo Bolle,
alcança-se uma revelação (de um retrato do Brasil); para Arrigucci, encena-
se um “processo dialógico de esclarecimento”.10 Nos dois casos, o romance é
avaliado como figuração de alternativas positivas para se pensar tensões
constitutivas do país. No conjunto do trabalho de Willi Bolle, isso fica mais
evidente em grandesertão.br (ver CAPÍTULO 5.3). No ensaio de Davi Arrigucci
Jr., a mistura entre tradição oral e romance de aprendizagem é indicada
como correlato formal de uma conciliação entre aquelas tensões, que se faz
“na medida do possível”.

10
Cf. Davi Arrigucci Jr., O mundo misturado, op. cit., p. 19-20.

168
Eis, em resumo, o argumento de Arrigucci: de saída, forma-se em
Grande sertão: veredas, “o quadro do narrador tradicional” descrito por
Walter Benjamin – a narrativa oral de Riobaldo começa com causos diversos,
refere-se a andanças de um passado aventureiro e sintetiza um saber obtido
no curso delas. Acontece que, além de a narração ocorrer em situação
dialógica na qual há um interlocutor urbano, o suposto narrador tradicional
tem o “gosto de especular” (GSV, p.3), mais próprio do sujeito esclarecido
pelo conhecimento letrado:

(...) Riobaldo formula questões que vão muito além do saber que
caracteriza o homem de bom conselho que é o narrador tradicional, cuja
sabedoria prática se funda em larga medida na experiência comunitária. Na
verdade, as interrogações que formula sobre o sentido de sua experiência
configuram a pergunta pelo sentido da vida típica do romance burguês,
voltado para os significados da experiência individual no espaço moderno do
11
trabalho e da cidade capitalista.

No confronto entre a perspectiva do sertão e a perspectiva da cidade,


o representante da primeira “não surge absolutamente diminuído”, como
acontece nos textos regionalistas que condescendentemente cercam o
sertanejo com a aura de sábio primitivo. Os questionamentos enunciados
pelo ex-jagunço Riobaldo, ou deixados implícitos em sua fala, emergem na
interseção entre a ética arraigada numa comunidade “arcaica” (sertaneja,
jagunça) e a sensibilidade individualista da era burguesa. Se de um lado as
inquietações do narrador são expressas por meio de casos exemplares, se
sintetizam-se na imagem mítica do demônio, por outro lado, no fluxo da
narração, “o enredo narrativo se traduz no discurso intelectual”, “o mythos se
faz logos”. Trata-se de um processo de esclarecimento que se constitui a
partir de um paradoxo. A figura do narrador tem traços da tradição épica oral,
mas o relato de suas aventuras transborda os moldes dessa tradição, pois
esta não é suficiente para justificar a experiência pessoal. A sabedoria prática
não chega a conferir sentido ao sofrido drama amoroso que perpassa a
linearidade da história do jagunço de ponta a ponta – do encontro com o
Menino na infância à morte de Diadorim, quando se dá por “acabada” a

11
Ibid., p. 19. Itálicos do autor.

169
estória do jagunço Riobaldo (GSV, p. 531). Esse passado vivido num mundo
das “cercanias do mito” impele o narrador à busca de esclarecimento sobre a
própria existência, busca típica do individualismo urbano, e isso faz com que
o jagunço Riobaldo apareça, na forja da narrativa oral, como herói
problemático de romance moderno. Ou, nos termos de Arrigucci: herói
problemático de romance de formação.12 O paradoxo referido no ensaio
reside no fato de que tal empenho urbano e burguês de esclarecimento
emerge de uma trajetória vinculada às peculiaridades de “uma região em
princípio atrasada, imersa em outros tempos”, o que “define um dos aspectos
fundamentais da obra e nos leva ao coração da mescla, fazendo ressaltar
suas articulações profundas com o contexto histórico-social do sertão (e do
País) a que remete”.13
A compreensão do “movimento do enredo ou do mythos rumo ao
diálogo esclarecedor” em Grande sertão: veredas é, segundo Arrigucci,
determinante para que se entenda a dimensão moderna do livro, seu “modo
de ser fundamental”. Investigando a mistura de formas na composição de
Guimarães Rosa, o ensaísta procura elucidar o “problema teórico mais fundo
implicado na construção dessa espantosa obra-prima, a dialética entre
gênero e História que ela de algum modo designa em sua forma mesclada e
paradoxal”.14 Essa correlação entre forma literária e processo histórico-social
permanece o tempo todo no horizonte de sua reflexão enquanto ele tenta
deslindar o “enredamento por vezes labiríntico” entre caráter poético do texto,
formas narrativas tradicionais e uma configuração de romance de formação.
Na análise, lirismo e espírito épico encontram-se firmemente amalgamados.
Os “recursos poéticos a serviço da prosa de ficção” aparecem como
expediente de um discurso narrativo cuja linguagem, desde o primeiro signo
da narrativa (o travessão que inaugura a fala) se dedica a recriar o mundo do
sertão, começando pela incorporação de sua forma mais característica de
literatura, a estória oral. Mesmo aquela célebre passagem, logo no início do

12
Cf. Ibid., p. 17-20. A noção clássica de romance de formação em jogo no ensaio de Arrigucci –
“forma literária que a burguesia do Ocidente transformou, com o advento da Era Moderna, num dos
principais instrumentos do seu espírito, debruçado sobre o sentido da experiência individual. (...) Forma
que se caracteriza precisamente pela falta de senso de harmonia entre o ser (o herói) e o mundo, de
modo a resolver-se na procura impossível de um sentido que se desgarrou da vida ordinária” –
distingue-se daquela que é empregada por Willi Bolle em grandesertão.br (ver CAPÍTULO 5.3).
13
Ibid., p. 20.
14
Ibid.

170
romance, em que se manifesta de modo cabal a verve lírica do texto na
“evocação poética da paisagem do sertão” – “Lhe mostrar os altos claros da
Almas (...)” (GSV, p. 20) –, cumpre a função épica de motivo retardante,
acentuada por sua posição no fluxo da fala: o trecho se estende por duas
páginas antes que o “rastro” de Diadorim, fixado em meio às “quisquilhas da
natureza” (GSV, p. 20), conduza Riobaldo a passar dos causos esparsos ao
relato de suas andanças. Já os componentes de romance de formação
aportam à mistura entre formas de proveniência oral (épica e lírica) uma outra
vertente literária. Seguindo as teorias de Benjamin e de Lukács, Arrigucci
lembra que o romance da Era Moderna “não provém da tradição oral nem a
alimenta”. É observando a mescla singular entre formas literárias radicadas
em tipos de experiência e temporalidades distintas que o autor localiza a
chave da dialética entre gênero e História no livro.

(...) é como se assistíssemos ao ressurgimento do romance de dentro da


tradição épica ou de uma nebulosa poética primeira, indistinta matriz original
da poesia, rumo à individuação da forma do romance de aprendizagem ou
formação, com sua específica busca do sentido da experiência individual,
15
própria da sociedade burguesa.

15
Ibid., p. 20. Neste passo, Davi Arrigucci Jr. retoma algo de uma hipótese enunciada por Bento Prado
Jr. em 1968, no ensaio O destino decifrado: linguagem e existência em Guimarães Rosa. Ocupado com
o “probema do estilo” na obra do ficcionista, cujo núcleo, a seu ver, estaria no vínculo entre a
peculiariaridade da linguagem e do sertão rosianos (ver Capítulo 3.1, p. 115-118), Prado Jr. conclui que
a participação de elementos da novela de cavalaria na estrutura de Grande sertão: veredas indica uma
articulação da “idéia do mundo como livro” que dialoga com o “nascimento da literatura”: “(..) basta que
nos reportemos ao D. Quixote, momento de dissolução do ‘código’ da cavalaria e do nascimento do
mundo clássico, para contrapô-lo ao universo de Guimarães Rosa. Arriscaríamos a seguinte fórmula:
D. Quixote e os Heróis de Guimarães percorrem o mesmo espaço, mas em direções diferentes; a
experiência dos heróis de Guimarães Rosa é a da redescoberta e da reconstituição do horizonte que se
dissolvera nas andanças de D. Quixote”. Aludindo a As palavras e as coisas de Foucault, o ensaísta
procura mostrar que “Guimarães Rosa percorre um caminho inverso ao de Cervantes”. Se este sondou
“o limite onde se dissolve a epistéme do Renascimento, onde se abre o espaço da representação que
inaugura o pensamento clássico”, se D. Quixote, percorrendo “um mundo doravante mudo, em busca
dos signos e das semelhanças codificadas no universo da cavalaria e garantidos pela epistéme do
Renascimento (...) nada mais faz do que demonstrar que o velho parentesco entre a linguagem e o
mundo foi rompido e que o que era sabedoria transformou-se (...) em loucura e delírio”, os cavaleiros
de Guimarães Rosa “encontram a salvação na própria Physis, a loucura torna-se sabedoria e a calma
do universo da representação transforma-se em cegueira”, os “‘altos personagens’” do escritor mineiro
são “anti-Quixotes”. Nessa comparação, explicitamente pautada pelo livro de Foucault e que tem em
seu horizonte as especulações de Derrida a respeito da escrita literária, a obra de Rosa figura como
atualização do questionamento sobre o destino da literatura implícito no livro de Cervantes: “(...) na
modernidade da linguagem da literatura, é a velha experiência do parentesco entre o cosmo e os
signos que reaparece. Refazendo esse itinerário, acompanhando esse movimento que traz a nós, na
modernidade, essa forma de linguagem, a obra de Guimarães Rosa não é apenas uma grande obra:
obra exemplar, ela espelha e medita o próprio destino da literatura, ao qual nosso próprio destino está
essencialmente atado. Se sua obra é atravessada por uma longa interrogação que visa a existência
como um enigma a ser decifrado, essa longa interrogação volta-se sobre si mesma: não há qualquer
interlocutor localizável. Se ‘a vida também é para ser lida’ é porque o texto e o interlocutor se
identificam no sopro impessoal que silva por entre as folhas do Lógos em estado selvagem (selva

171
(...)
O problema que ora se coloca é, pois, compreender como se dá a
sutura entre as formas que vêm da tradição dos narradores anônimos da
épica oral sertaneja (presente desde sempre na literatura brasileira) e o
nascimento de uma forma da sociedade urbana moderna – o romance – que
renasce em pleno interior do Brasil, de dentro do arcaico que é o mar do
sertão, como se de repente, se refizesse em nosso meio a história de um
gênero decisivo para a modernidade, brotando de um outro tempo. A
questão é, pois, ainda entender a forma mesclada de um livro em que
diversas temporalidades narrativas se misturam, correspondendo ao mundo
16
misturado que é a nossa própria realidade.

O fio localizado para deslindar essa meada é a figura de Diadorim –


nisso Arrigucci concorda com tantos críticos que encaram a personagem
ambígua como chave para os mais diversos enigmas identificados em
Grande sertão: veredas. É ela que desempenha papel de catalisador na
mistura de formas. Sua imagem, no ensaio, está associada, como foi dito na
página anterior, à tendência lírica da elocução. O impulso lírico, por sua vez,
revigora, no momento da narração, a pungente presença da amada, fazendo
com que o narrador pela primeira vez estabeleça uma continuidade temporal
entre os fatos referidos em sua fala e comece, in media res (ao modo épico),
a narrativa da experiência vivida por uma cena que a lembrança de Diadorim
traz à tona. Riobaldo conta episódios da época em que integrava o bando de
Medeiro Vaz, depois assumido por Zé Bebelo. Essa seqüência (de
aproximadamente 60 páginas) ambienta o interlocutor no universo das
disputas entre bandos jagunços e culmina com a enunciação do
questionamento que mobiliza a narrativa (expressa em clave de “discurso
intelectual”, conforme os termos de Arrigucci). A passagem já foi citada à
torto e a direito, mas não custa lembrá-la para ressaltar sua importância com
relação ao peculiar processo de esclarecimento analisado em O mundo
misturado:

Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é


uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria

selvaggia) ou no traçado das picadas, no desenho das veredas que estruturam o Sertão sauvage,
salvage”. (Bento Prado Jr., O destino decifrado: linguagem e existência em Guimarães Rosa, op. cit., p.
198-200).
16
Ibid., p. 24.

172
entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer
tantos atos, dar corpo ao suceder. (...)
(...) Lhe falo do sertão. Do que não sei. (GSV, p. 83-84)

Posta essa questão que anuncia uma busca pelo sentido da existência
mediada pela experiência individual (à maneira do romance moderno),
finalmente a história do jagunço Riobaldo começa a ser contada do princípio
ao fim. Diadorim reaparece então como enigma em primeiro plano, quando
Riobaldo rememora a ocasião de sua infância em que se conheceram. O
episódio no qual as duas crianças atravessam o rio São Francisco em uma
canoa figura como momento inaugural da trajetória problemática do
protagonista de Grande sertão: veredas. Na leitura da Arrigucci, o
“desconcerto do encontro” experimentado pelo pequeno Riobaldo tem, por
um lado, os contornos de um “motivo básico, de reconhecida universalidade”,
que remete “à antiqüíssima tradição das narrativas de aventura, conforme se
vê pelo romance grego”. Por outro lado, “suscita o mito” – em consonância
com a mentalidade mítica do sertão, alude ao “motivo do encontro com a
criança divina”. E também configura-se como “um momento de individuação
do ser, suscita a pergunta que corresponde à singularização do herói de
romance, pois dá a dimensão da experiência individual que o diferencia e o
afasta da comunidade dos homens e das narrativas da tradição oral”. A
narração ganha a partir daí “a forma linear da biografia, típica do romance,
com que passa a relatar o processo de uma aprendizagem ou formação”.17
Mas continuam os encontros e desencontros com Diadorim, para esta
personagem continua a convergir a “surda esperança” (GSV, p. 165) de um
mundo harmônico, autojustificado, como no ideal vivido na pureza da infância
ou nos mitos das sociedades arcaicas: “Doçura do olhar dele me transformou
para os olhos de velhice da minha mãe. Então, eu vi as cores do mundo.
Como no tempo em que tudo era falante, ai, sei” (GSV, p. 127).
A partir da figura de Diadorim, Davi Arrigucci Jr. ainda identifica a
inscrição, na mescla que constitui Grande sertão: veredas, de duas outras
formas literárias tradicionais: a tragédia e a balada. A dimensão trágica
aparece no ensaio estreitamente vinculada à busca de “um toque de possível

17
Cf. Ibid., p. 26.

173
transcendência” (“surda esperança”) a que Riobaldo se lança movido pela
paixão por Diadorim. Em meio a tantos encontros, nos quais se reacende a
inevitabilidade do sentimento espontâneo, a relação amorosa entre dois
brabos é interdita por um “desencontro fatal” (o desconhecimento do
verdadeiro sexo de Diadorim), desencontro que “representa a medida do
impossível” no contexto da ética jagunça. A “demanda implacável do
impossível”, de satisfazer o desejo “inevitável como uma sina”, define os
rumos trilhados pelo protagonista desde seu ingresso na jagunçagem. Esse
viés trágico alcança a “altura dantesca do sublime” na cena em que o corpo
morto de Diadorim é apresentado nu aos olhos de Riobaldo. É o “ponto de
desenlace em que termina a estória romanesca” e o ápice doloroso do
impasse que mobiliza o narrador do romance moderno. Morta Diadorim,
esfacela-se qualquer idealização épica, qualquer possibilidade de sentido
comunitário que pudesse ser atribuído às ações violentas, à lógica da
vingança, à fidelidade a preceitos que são seguidos sem que se pergunte por
sua razão de ser. Resta apenas o mundo desencantado. Nesse ponto da vida
do jagunço Riobaldo, segundo Davi Arrigucci Jr., operou-se a transformação
de herói romanesco que em boa medida ele era (“personagem de uma busca
de vingança arrastado pela paixão”) em “ser definitivamente desgarrado da
transcendência, num mundo de repente já desencantado, que é o herói do
romance”.18

Compreende-se que com Diadorim se vai a poesia do sertão, que é a


mesma do coração de Riobaldo, a quem toca doravante só o prosaísmo do
mundo (...).
A perda definitiva de Diadorim significa a necessidade de reconciliação
do homem sem certezas que luta contra o medo, do herói problemático que
foi sempre Riobaldo, com a realidade concreta e social onde deve levar até
19
o fim dos seus dias.

Quanto à balada (forma que, conforme a definição de Arrigucci,


constitui-se tradicionalmente como “narrativa de um encontro fatal”), sua
importância é marcada no romance pelo papel que nele desempenha a
canção de Siruiz. Depois da morte da mãe, Riobaldo, recém-saído da

18
Ibid., p. 25.
19
Ibid. Itálico do autor.

174
infância, foi viver na fazenda São Gregório com o padrinho/pai Selorico
Mendes. Este proporciona ao filho bastardo o estudo elementar, mandando-o
para o arraial mais próximo, enche-lhe os ouvidos com histórias de “altas
artes de jagunços” (GSV, p. 94), glorificações de chefes de bandos que se
fizeram famosos, e o faz aprender a atirar. Nessa época, o jovem Riobaldo
tem seu primeiro contato efetivo com o universo dos jagunços. Selorico
Mendes o incumbe de conduzir os homens de Joca Ramiro, Hermógenes e
Ricardão a um refúgio em sua propriedade. No caminho, um dos jagunços
solicita: “Siruiz, cadê a moça virgem?”. Então, escuta-se (transcrita no livro) a
“toada toda estranha”. Riobaldo guarda para sempre aquelas “palavras
diversas” (GSV, p. 101) e o nome do jagunço que entoou a catinga, espécie
de aedo que, no escuro, ele não vê, mas cuja força de expressão reverbera
em sua vida – não só de modo imediato (instigando-o a compor poemas na
adolescência) como também, conforme a análise de Davi Arrigucci Jr., de
modo permanente e crucial.

O episódio da Fazenda São Gregório reúne os termos do tópico decisivo


no modo de ser e no destino de Riobaldo, juntando armas e letras, ao
mesmo tempo que articula esse motivo importante na caracterização do
personagem ao motivo da donzela guerreira, de larga história na tradição
épica popular da Península Ibérica e presente também na tradição literária
do regionalismo brasileiro.
(...) Do rimance ao romance, as temporalidades diversas se fundem: a
tradição desemboca no moderno.
(...) A canção de Siruiz, forma híbrida também ela de narração épica e
instantâneo lírico, contém cifrado [sic] em suas palavras enigmáticas o
destino de Riobaldo. Desse fundo obscuro da poesia oral vai desenrolar-se a
história de sua vida. O Grande sertão: veredas é o desdobrar-se dessa
balada.
(...)
Assim, este momento tão importante do encontro com as armas é
também o momento do encontro com a poesia e o enigma do destino
individual. O romance de formação que se acabará lendo junto com essa
aventura de jagunços nada mais será do que uma tentativa de esclarecer
esse enigma posto como tema na balada. Desse mythos primeiro, da
canção cifrada, o romance desenvolve o processo de uma aprendizagem,

175
uma tentativa de entendimento de um sentido secreto no desenrolar da
20
ação. O sentido da matéria vertente, que se quer esclarecer.

A conclusão de Davi Arrigucci Jr. a respeito da mistura de formas, da


“relação entre mito e esclarecimento” em Grande sertão: veredas principia
com a constatação de que o romance de Guimarães Rosa “parece repetir e
desenvolver em enredo narrativo o mesmo esquema da dialética do
esclarecimento que Adorno e Horkheimer apontaram já no interior da epopéia
homérica. ‘Desencantar o mundo é destruir o animismo’”.21 Não é outro o
propósito do narrador ex-jagunço, sertanejo com algum letramento que, no
passado, procurou o Demônio para fazer um pacto, que não tem certeza se
comprometeu-se ou não com o Mal e que, do início ao fim de sua fala,
procura negar a existência do Maligno e confirmar, com a corroboração do
interlocutor, a validade de sua hipótese: “Que o Diabo não existe. Pois não?
(...) Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem
humano. Travessia” (GSV, p. 538). Afirma-se, nas últimas palavras do livro,
apesar de toda hesitação – “Pois não?”, “se for” –, “a objetividade do mundo
desencantado” percorrido pelo “desterrado transcendental” que é o “herói
problemático e demoníaco do romance”, “homem moderno, descentrado e
sem volta a uma verdadeira casa”, sem perspectiva de uma transcendência
apaziguadora das inquietações.22 Pode-se objetar que, ao longo de todo o
livro, o narrador faz questão de expressar sua fé em Deus e mostra-se
participante de toda sorte de práticas religiosas populares no sertão de sua
época (da tradicional encomenda de preces a rezadeiras até a consideração
dos dogmas kardecistas incorporados à doutrina do compadre Quelemém).
Porém, mesmo essas manifestações de religiosidade são presididas por um
senso de esclarecimento. São, a rigor, menos crenças do que apostas –
válidas, até que se prove o contrário – na possibilidade de um sentido para a
existência. Sua presença no romance de Guimarães Rosa atende, ainda, à
necessidade de realismo na configuração ficcional de um universo mental
específico.

20
Ibid., p. 27-28. Itálicos e negritos do autor.
21
Ibid., p. 28. A frase de Adorno e Horkheimer citada por Arrigucci encontra-se à página 20 de Dialética
do esclarecimento.
22
Cf. Ibid., p. 29.

176
Resumindo os passos com que Davi Arrigucci Jr. procura caracterizar
a consonância ente a forma mesclada de Grande sertão: veredas e um
processo histórico-social brasileiro representado no sertão rosiano. O mundo
misturado parte da constatação de que um fator preside a organização de
diversos planos do romance – liguagem, persongens, contexto histórico,
visão de mundo do narrador e sua própria figura. É o princípio de mistura, a
mescla, que define o modo como aparecem relacionados termos que se
distinguem ou mesmo se opõem – por exemplo, na assimilação de materiais
lingüisticos heterogênos e referências de diversas fontes para a elaboração
de uma linguagem que alcança estatuto poético; na reunião de traços
heróicos e prosaicos para a constituição do conjunto dos chefes jagunços; na
convivência entre os níveis de realidade histórica no sertão atravessado pelo
jovem Riobaldo, onde se imbricam moderno e arcaico, com a penetração de
valores urbanos em meio ao modo de vida regido pela força da natureza, por
mandonismo e jaguncismo; na perspectiva do velho Riobaldo, que em seus
comentários ao longo do relato observa que “esse mundo é muito misturado”,
“tudo é e não é”; na condição do narrador que parece egresso do universo
épico da tradição oral mas tem inquietações sobre o sentido da vida próprias
da forma romanesca. A mistura parece, portanto, um elemento constitutivo da
estrutura da obra, e o que informa esse princípio, o “coração da mescla”, é a
combinação de modalidades narrativas orais com a do romance de formação.
De um lado, o quadro do narrador tradicional cuja sabedoria está enraizada
na experiência de uma comunidade e integra o nível histórico em que o mito
consubstancia o saber; de outro, o sujeito isolado “no espaço moderno do
trabalho e da cidade capitalista”, que já não dispõe do mito comunitário para
conferir sentido à experiência individual e que se faz herói (problemático) na
medida em que procura contrui-lo, esclarecê-lo, com o instrumental do logos.
É na maneira como se dá essa combinação, na “dialética entre gênero e
História”, que o ensaísta identifica a homologia entre a configuração estética
e um aspecto da trajetória do país. O tom é de paradoxo: o relato de uma
trajetória “em pleno interior do Brasil, de dentro do mais arcaico”, “traduz” um
“discurso intelectual” capaz de converter o mito em logos, movimento “do
mythos rumo ao diálogo esclaredor”. Esse seria o modo como a perspectiva
histórica da mudança em Grande sertão: veredas dá a ver a mistura de

177
modernização e ordem arcaica no país: “como se de repente se refizesse em
nosso meio a história de um gênero decisivo para a modernidade, brotando
de um outro tempo”. O ensaio de Arrigucci assinala que a conciliação entre
formas literárias no livro encena, em território brasileiro, a gênese de um tipo
de lógica implicada na busca moderna de justificação da ação individual. No
fim do texto, parece bem positivo o saldo da dialética do esclarecimento
dramatizada na mescla de formas em que a representação do sertão se faz
mundo percorrido por um herói problemático: da leitura do “grande livro”,
resta a imagem do homem humano, “esclarecido e reconciliado, na medida
do possível”.23
Esclarecido e reconciliado – não é uma boa rima, seria solução para
as tensões da sociedade brasileira às quais o autor alude? Uma questão
óbvia permanece em aberto quando se termina de ler O mundo misturado. A
formação pela qual passou o herói, o “aprender a viver”, o esclarecimento
individual, que o libertou das mistificações arcaizantes e resultou em seu
“aburguesamento” após as aventuras como jagunço, sem dúvida pode ser
lido como figuração que incorpora em si algo do processo histórico-social
moderno relacionado à vida urbana. Mas em que medida é possível
entender, por essa via de interpretação, a maneira com que o romance lida
com a singularidade de que se reveste esse processo no sertão e no Brasil?
A constatação de que o sertão rosiano é “lugar do atraso e do progresso
imbricados, do arcaico e do moderno enredados, onde o movimento do
tempo e das mudanças históricas compõe as mais peculiares
combinações”,24 não chega a se desdobrar numa análise que investigue se (e
como) comparecem na formulação literária certas peculiaridades nacionais –
por exemplo, a experiência da anomia lembrada por Antonio Candido, a
sobreposição entre poder privado e público comentada por Walnice Nogueira
Galvão, as “relações interpessoais e sociais que supõem a independência ou
a autonomia do indivíduo e sua dependência pessoal direta”, herança da
ordem escravocrata a qual remete, posteriormente, José Antônio Pasta Jr.25
É certo que o trabalho de Arrigucci apresenta muitas elucidações a propósito

23
Ibid.
24
Ibid., p. 17.
25
José Antonio Pasta Jr., O romance de Rosa: temas do Brasil e do Grande sertão, op. cit., p. 67.

178
da dinâmica de gêneros na constituição de Grande sertão: veredas e tem o
mérito de convocar para a abordagem do romance uma perspectiva de crítica
da modernidade das mais incisivas, que é a dialética do esclarecimento.
Porém, a incorporação de reflexões de Adorno e Horkheimer em seu estudo
se faz de tal forma que é praticamente elidida a dimensão negativa do
esclarecimento considerada pelos filósofos alemães – a qual que poderia
abrir um bom caminho para se passar do processo histórico-social mais geral
às especificidades da modernidade sertaneja e brasileira.
Seria digressão excessivamente longa apresentar aqui uma
explanação detalhada das proposições reunidas em Dialética do
esclarecimento. No mínimo, é preciso lembrar que o livro saiu em 1947, logo
após a derrocada do III Reich, e que a aporia representada por esse regime
em face dos ideais da civilização ocidental não constitui fato isolado no
histórico levado em conta pelos autores, cuja reflexão incide sobre
tendências problemáticas da ordem capitalista como um todo, na qual "a
própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica que
a tudo engloba. Ela é usada como um instrumento universal para a
fabricação de todos os demais instrumentos”.26 Embora, dado o caráter
dialético da argumentação de Adorno e Horkheimer, seja muito precária
como sinopse de idéias qualquer seleção de fragmentos – pois, ao extraí-los
do contexto, abstrai-se o andamento matizado da discussão –, o conjunto de
trechos reunidos abaixo serve para indicar uma possibilidade, ausente em O
mundo misturado, de abordagem de Grande sertão: veredas pelo viés
negativo que integra a dialética do esclarecimento:

O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para


dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a
menor consideração consigo mesmo, o esclarecimento eliminou com seu
cautério o último resto de sua própria autoconsciência. Só o pensamento
que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os
mitos. (p. 20)

O esclarecimento é totalitário. (p. 22)

26
Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos, p. 42. A
indicação das páginas em que se situam transcritos adiante é feita entre parênteses, após cada
citação.

179
O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera
objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a
alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento
comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens.
Este os conhece na medida em que pode manipulá-los. (p. 24)

(...) o esclarecimento sempre simpatizou, mesmo durante o período do


liberalismo, com a coerção social. (p. 27)

Quanto mais a maquinaria do pensamento subjuga o que existe, tanto mais


cegamente ela se contenta com essa reprodução. Desse modo, o
esclarecimento regride à mitologia da qual jamais soube escapar. (p. 39)

Quando afinal a autoconservação se automatiza, a razão é abandonada por


aqueles que assumiram sua herança a título de organizadores da produção
e agora a temem nos deserdados. A essência do esclarecimento é a
alternativa que torna inevitável a dominação. Os homens sempre tiveram de
escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu. Com
a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito é
aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece
a sementeira da nova barbárie. Forçado pela dominação, o trabalho humano
tendeu sempre a se afastar do mito, voltando a cair sob seu influxo, levado
pela mesma dominação. (p. 43)

Não são palavras que lembram as atitudes arbitrárias de Riobaldo


quando chefe do bando? Sua trajetória rumo ao esclarecimento comporta a
percepção de que a razão instrumentalizada serve à dominação – e ele se
vale disso em várias ocasiões. “Pontaria, o senhor concorde, é um talento
todo, na idéia.” (GSV, p. 139). Uma seqüência de dois episódios ilustra bem a
mira hábil com que o chefe jagunço direciona seu discurso esclarecido para o
exercício do poder: os encontros com Constâncio Alves e, em seguida, com o
“desgraçado do homenzinho-na-égua, com o cachorrinho dele” (GSV, p. 414-
424).
O primeiro, a princípio, foi bem-vindo. Constâncio Alves revela ser da
“primeira terra” de Riobaldo, aventando inclusive a hipótese de tê-lo
conhecido menino. A conversação se estende, aprazível. Até que o pretinho
Guirigó (garoto miserável que Riobaldo havia incorporado ao bando, como
um amuleto), chama: "– 'Iô chefe...'". Aí passam a mandar no protagonista os

180
seus "avessos": vontade de expropriar Constâncio Alves da soma vultosa que
carregava consigo, e mais vontade de matá-lo, "matar assassinado, por má
lei". Controla-se, porém, reconhece em seus impulsos a falta de "tento", a
orientação do demo, o governo de uma maldade sem razão que ele, no
entanto, não consegue alijar totalmente de si. “Tem então freio possível?
Teve, que teve. Aí resisti o primeiramente. Só orçava.” Clamou em seu íntimo
pela Virgem e conseguiu ter presença de espírito para encontrar um recurso.
"O conforme foi: que isto eu espiritei: que fazia a ele uma pergunta.
Respondesse mal, morresse; mas, de outro jeito, recebia perdão." Lança
mão, portanto, de uma estratégia lógica que pudesse legitimar para si próprio
sua ação, qualquer que fosse ela. Por que naquele momento afloraram os
"avessos" de Riobaldo, por que reinou o desgoverno da arbitrariedade? Por
que o prosear descomprometido deu lugar a um jogo retórico que só fez
organizar a violência da lei do mais forte? O narrador supõe que Guirigó, ao
chegar-se à sua orelha, tenha falado no capeta, e deixa sugerido que isso
acendeu nele “o doido afã”. Mas tem certeza apenas de que ouviu o
chamado: "– 'Iô chefe...'". Aí temos uma pista que ajuda a elucidar sua súbita
alteração. Constâncio Alves acabara de aventar a hipótese de ter conhecido
Riobaldo quando este era menino – leia-se: pobre, filho de mãe solteira,
integrante da plebe rural sertaneja. Dado o contexto, essa suposição a
respeito do passado inglório do chefe recém-empossado, enunciada por
alguém que tinha “dinheiro em caixa”, surge como uma chave para a tensão
que se instala no íntimo do personagem. Um jogo de oposições cruzadas
desencadeia no então chefe jagunço um desordenado impulso de violência
que lembra o conflito sempre subjacente à relação entre os que têm posses e
os que não têm nada. Contrastam-se a pobreza da infância de Riobaldo e a
condição presente, de detentor de algum poder. Por um lado, Constâncio
Alves, sem querer, evoca o passado de menino pobre; a fala de Guirigó
evoca o patamar alcançado na escala social. Por outro lado, aquele “sujeito
senhor” acolhido no acampamento (a quem o chefe trata com educação)
detém a riqueza que falta ao “menino pretozinho”, “o menino-de-infância”
(que atualiza a miséria passada). O que contém o impulso de violência física
a que essa tensão deu ensejo é um estratagema racional que reduz a
brutalidade mórbida a um ajuste de contas simbólico. Acaba que Constâncio

181
Alves, sem deixar de perceber o perigo que corria, dá a boa resposta,
partindo vivo, e o chefe jagunço não faz mais que requisitar seu dinheiro,
prontamente entregue. Mas isso não é suficiente para controlar o ímpeto
destrutivo que fora despertado. Será necessário um segundo exercício
retórico, ainda mais elaborado, para "pacificar" Riobaldo "e entreter o Outro".
Ao permitir que Constâncio Alves parta, o chefe promete aos comandados: "–
'Perdoei este; mas, o primeiro que se surgir, destas estradas, paga!’". Aí
surge um pobre sertanejo, montado numa égua e seguido por um
cachorrinho. A situação de Riobaldo é clara: ele tinha que matar, havia
empenhado palavra, era impossível recuar sem perder o respeito de seus
homens. Mas, a essa altura, "a vontade de matar tinha se acabado!".
Retornando de seus "avessos", ele percebe claramente a desrazão de tudo
aquilo em um parágrafo:

Como é que eu ia matar aquele sujeito, anunciado de pobre, e matar em


vez de um outro, sadio em bojo, e rico? Aquilo era justiça? Vai ver, ele nem
conhecesse o nhô Constâncio Alves, nem soubesse quem fosse. Era
justiça? Era possível? Eu pensei. O que era que Zé Bebelo, numa urgência
assim, no arco, inventava de fazer? Eu tinha preguiça de falar perguntas.
(GSV, p. 418)

Riobaldo pensa em Zé Bebelo, pensa e encontra novamente uma


forma racional de evitar a violência injustificável. Encontra "fortes idéias!" e,
"num entusiasmo daqueles mesmos de Zé Bebelo – a fala igual à de Zé
Bebelo", brada: "–'Rai'-a-puta-pô! Não tenho que matar este desgraçado,
porque minha palavra prenhada não foi com ele: quem eu vi, primeiro, e
avistei, foi esse cachorrinho!...'". É valendo-se, portanto, do caráter volátil das
palavras, do fato de que seus significados não lhes são imanentes, mas vão-
se delineando de acordo com os referentes que lhes são atribuídos, que
Riobaldo logra seu intento. E não pára por aí. Incapaz também de permitir o
sacrifício do animalzinho, transfere mais uma vez a pena: "por aí, eu também
já tinha aprendido – das sutilezas". Diz que primeiro vira a égua. Mas
também não a quer matar. E assim, ladino, ele encerra o episódio,
completando o magistral sofisma: "–'(...) Ah, mas égua não é gente, não é
pessoa que existe. E que? Ah, então, não é cabível que se mate a égua, por

182
tanto que a minha palavra decidida era de se matar um homem!" Todos o
aprovam, admiram-no pela "esperteza de toda solução" que achava:

– "Tal a tal, o Chefe tira mais finíssimas artimanhas do que o Zé Bebelo


próprio..." – um disse.
– "A fé, que determina com a mesma justiça que Medeiro Vaz..." – outro
falou, mais aduloso. (GSV, p. 424)

Se os diabólicos sofismas aos quais recorre nesses episódios,


"espertezas (...) cobradas da manha do Tentador", colaboram para reforçar a
autoridade do chefe junto ao grupo, também provocam uma cisão definitiva
em Riobaldo: "Contente, tanto, e descontente, comigo, era que eu estava".
As "finíssimas artimanhas" então exercitadas tornam patente a extensão de
sua “pontaria” para lidar com as palavras, com as idéias. Ao mesmo tempo, a
positividade atribuída à lógica racional fica irreversivelmente relativizada em
sua consciência. O domínio dessa potência do esclarecimento tanto contenta
quanto descontenta.
É significativo que, afora a morte de Diadorim, desfecho da trajetória
do jagunço Riobaldo, nenhum episódio de sua atuação como chefe do bando
seja comentado mais detidamente em O mundo misturado. O percurso do
protagonista rumo ao esclarecimento aparece no ensaio como trajetória
individual dignificada. Essa avaliação condiz com uma tendência flagrante na
recepção de Grande sertão: veredas, desde seu primeiro momento e até
hoje. Ressalta-se mais o lado exemplar, o componente edificante da
perspectiva pela qual é encarada a “matéria vertente” da experiência narrada
do que aquilo que há, nas atitudes do herói e do narrador, de contraditório
em relação aos valores esclarecidos que o ex-jagunço aprendeu a prezar
tanto. Na crítica de Grande sertão: veredas (e da obra de Guimarães Rosa
em geral), é rara a conclusão que não seja positiva com relação a isso, que
não deixe no leitor a sensação de que o relato constitui solução figurada para
as questões subjacentes ao texto ficcional. Em geral, esse resultado
interpretativo decorre do seguinte movimento: primeiro, procede-se à análise
de problemas graves com os quais o protagonista-narrador lida (nas
aventuras do passado e na reflexão presente); no final, afirma-se a validade
das alternativas encontradas nos dois estágios da existência de Riobaldo (a

183
vida de jagunço e o presente da narração). Como se o ponto de chegada – a
deslumbrante narrativa – justificasse, ou no mínimo tornasse menos
importantes, certas atitudes do narrador-protagonista que relativizam a
positividade atribuída ao conjunto.
Já vimos que Antonio Candido, no primeiro momento da recepção de
Grande sertão: veredas, elogia o “esforço comovedor” empenhado na
descoberta da “lógica das coisas e dos sentimentos”27 (CAPÍTULO 2, p. 66) e
que, no trecho de Jagunços mineiros que encaminha para o encerramento da
análise do romance de Rosa, registra uma observação que parece
precursora da conclusão contida no ensaio de Davi Arrigucci Jr.:

Com efeito, a experiência do mal, que o jagunço lúcido deste livro possui,
aguça o sentimento das complicações insolúveis do mundo, da
impossibilidade de esclarecê-las. Mas aguça ao mesmo tempo o desejo de
ver claro, de lutar contra a ambigüidade; e mesmo sem poder isolar em seu
28
lugar respectivo as forças opostas, este esforço é a dignidade da lucidez.

Também em trabalhos cronologicamente mais próximos de O mundo


misturado são elogiosas as avaliações do modo como o narrador-
protagonista encara as complicações de seu mundo. Um exemplo: em O
logos e o mythos no universo narrativo de Grande sertão: veredas, ensaio
publicado em 2002, Eduardo Coutinho vale-se da distinção formulada por
José Hildebrando Dacanal – mítico-sacral x lógico-racional (ver CAPÍTULO 2.2).
É só essa categorização o que recupera do trabalho do crítico predecessor,
não chega a discutir as hipóteses implicadas na terminologia que convoca
nem as que foram engendradas originalmente a partir dela. Em tal tomada
imediata e irrefletida da dicotomia enunciada por Dacanal, a noção de logos
é sinônimo de forma racional de apreensão do real – ou seja, ficam excluídas
da perspectiva de análise tanto as relações com a história do Brasil que
Dacanal indica quanto as dimensões implicadas na noção de esclarecimento
com a qual Davi Arrigucci Jr. opera. O ensaio de Coutinho procura
demonstrar tão-somente que o escritor mineiro relativiza programaticamente

27
Antonio Candido, O homem dos avessos, op. cit., p. 139.
28
Id., Jagunços mineiros: de Cláudio a Guimarães Rosa, op. cit., p. 176. Itálico meu.

184
o cunho hegemônico adquirido pelo racionalismo na tradição ocidental.29
Tanto o mito quanto a lógica racionalista apresentam-se no Grande sertão
“como uma entre as muitas possibilidades de se narrar o vivido e viver o
narrado”.

Nesse universo narrativo em que opostos como estes convivem em


constante tensão, não há mais lugar para as velhas dicotomias, e o “to be or
not to be” hamletiano, que por tanto tempo norteou a produção literária
ocidental, cede lugar a uma lógica mais flexível, marcada, quem sabe, pelo
signo do pluralismo ou da adição, onde a dúvida e a perquirição se erguem
30
soberanas (...).

No final das contas, e para não fugir à alusão à Shakespeare, fica tudo
bem no reino da Dinamarca, ou na república brasileira: as diversas
possibilidades de se encarar o real parecem harmonizadas na flexibilidade de
uma ótica que se dá o direito da dúvida e da perquirição infinitas. Assim
como, para Davi Arrigucci Jr., tem caráter positivo de solução o
esclarecimento alcançado por Riobaldo: confortadora reconciliação “possível”
do indivíduo com o mundo.

29
Cf. Eduardo Coutinho, O logos e o mythos no universo narrativo de Grande sertão: veredas. Scripta,
v. 5, nº 10. A hipótese enunciada neste ensaio parte da seguinte constatação: “(...) uma leitura
cuidadosa de sua obra deixa entrever que a investida do autor contra aquela a que em outro momento
designou de ‘megera cartesiana’ [na entrevista de 1965 a Günter Lorenz] não significa absolutamente o
abandono da racionalidade, mas antes uma crítica à sua tirania, à sua supremacia sobre as demais
formas de apreensão do real” (p. 113).
30
Ibid., p. 120.

185
5
GRANDE SERTÃO: FORMAÇÃO BRASILEIRA

Não é mera coincidência a publicação quase simultânea, em 2004, de


grandesertão.br: o romance de formação do Brasil (Willi Bolle, sobre Grande
sertão: veredas) e O Brasil de Rosa: mito e história no universo rosiano: o amor
e o poder (Luiz Roncari, sobre Sagarana, Corpo de baile e Grande sertão:
veredas). O aparecimento desses dois livros, assim como o de Lembranças do
Brasil: teoria, política, história e ficção em Grande sertão: veredas (Heloísa
Starling, 1999), reflete e consolida a retomada da discussão sobre a matéria
brasileira na literatura de Guimarães Rosa. A partir de meados da década de
1990, começaram a ressurgir em periódicos ensaios nessa linha dedicados a
Grande sertão: veredas – vários deles assinados por esses autores. Desde o
início dos anos 1970, quando Walnice Nogueira Galvão apresentou As formas
do falso, é a primeira vez que as relações entre aspectos da experiência
nacional e a ficção de Rosa são enfocadas em trabalhos de maior extensão e
ambição interpretativa. Isso, por si só, constitui um marco importante na história
da recepção do escritor que, desde os anos 1980, o conjunto da crítica tendeu a
valorizar mais pela excelência da criação poética ou pela habilidade com que
deixou figurada literariamente sua metafísica pessoal – raramente propondo-se
a discutir o significado que tais soluções estéticas e visão de mundo adquirem

186
em face das particularidades da vida brasileira, das condições objetivas com que
interagia a criação.
Bolle e Roncari são professores da FFLCH/USP e fazem questão de
assinalar, logo no início de seus livros, um vínculo com o pensamento crítico que
a influência de Antonio Candido cultivou naquela escola. As passagens abaixo
explicitam o compromisso com um princípio do método crítico de Candido – o
modo de aproximação ao texto literário no qual a perspectiva histórico-
sociológica se fundamenta na análise da forma estética. Diz Bolle:

A hipótese geral é que existe uma correspondência entre um problema


político e social – a falta de entendimento entre as classes – e a
configuração da obra. O problema externo é incorporado ao romance como
1
elemento de composição interno (...).

E Roncari:

O que procurei verificar foi como as circunstâncias contribuíram para


que os livros [Sagarana, Corpo de baile e Grande sertão: veredas] se
imbricassem temática e formalmente e compusessem uma linha de
desenvolvimento, pelo fato de o autor tratar nos três os mesmos tipos de
problemas apresentados pela história. (...) Como é esta uma investigação
realizada no campo dos estudos literários, tanto no da crítica como no da
história literária, eu não poderia me esquecer de que deveria encarar
também os problemas da forma, do modo de composição das obras e dos
2
seus valores estéticos.

Os dois se propõem a apresentar a visão da história nacional que estaria


embutida na articulação entre os diferentes elementos de composição do texto
literário. Fazem isso, também conforme à tradição de sua escola, investigando
nexos de continuidade entre a visão descrita e a que foi plasmada tanto por

1
Willi Bolle, grandesertão.br, p. 21. Itálicos do autor. Em nota a essa passagem, Bolle remete a Crítica
e Sociologia, ensaio teórico publicado em Literatura e Sociedade (1965), no qual Antonio Candido
explicita princípios básicos que seguiu em sua prática como crítico, postulando que a compreensão
efetiva da interação entre formulação literária e realidade histórica depende da “interpretação
dialeticamente íntegra”, que concilie as perspectivas sociológica e formal para que se verifique em que
medida os fatores sociais se fazem “agentes da estrutura” do texto ficcional (Cf. Antonio Candido, op.
cit., p. 5-16).
2
Luiz Roncari, O Brasil de Rosa, p. 14. Grifo do autor.

187
ficcionistas brasileiros que precederam Guimarães Rosa quanto em teses sobre
o Brasil formuladas por intelectuais influentes em nosso meio. Ou seja, a
representação do país que cada um procura evidenciar não aparece como fato
isolado, mas como fenômeno estético que integra um fluxo de reflexões sobre a
vida no país. Bolle prioriza “os principais ensaios de formação – os livros de
Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr.,
Celso Furtado, Raymundo Faoro, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Darcy
Ribeiro, que constituem o cânone dos retratos do Brasil”.3 Roncari leva em conta
“os modos como os grandes intérpretes do Brasil vêem e avaliam a nossa
formação político-social”, tentando mostrar “as proximidades da visão de
Guimarães principalmente com as de Alberto Torres, Alceu Amoroso Lima e
Oliveira Vianna, embora não estivessem ausentes dela as de Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Paulo Prado e outros”4 – “outros”
como Machado de Assis e Mário de Andrade, cujos heróis e procedimentos
narrativos são comparados com os de Guimarães Rosa em várias ocasiões. É
mérito comum aos dois livros o fato de trazerem para a discussão da obra de
Rosa um importante legado de considerações sobre o país e sua cultura.
Retomando problemas, hipóteses e juízos formulados por gerações anteriores,
Bolle e Roncari colaboram para a manutenção de uma continuidade no debate
sobre a literatura e a vida brasileiras, proporcionando a seus leitores a
possibilidade de encarar os textos comentados do ponto de vista do que há de
instigante, ou de significativo, ou de problemático, em esforços de compreensão
das nossas particularidades históricas que, equivocadas ou acertadas que
sejam, têm, no mínimo, grande peso na formação do modo como os brasileiros
vêm pensando o Brasil.
Antes de chegar às interseções e divergências existentes nas
interpretações que os dois críticos fazem a partir das diferentes constelações
intelectuais em que inscrevem a obra de Guimarães Rosa, vale ressaltar um
pressuposto que suas teses têm em comum e que, diferentemente das duas

3
Willi Bolle, op. cit., p. 9.
4
Luiz Roncari, op. cit., p. 21.

188
outras coincidências mencionadas acima, não deriva de alguma praxe uspiana:
ambos lêem essa ficção como trabalho de pensamento programaticamente
direcionado para os impasses de nossa história político-social. Em várias
passagens, Willi Bolle se refere à “proposta” ou ao “projeto” de Guimarães Rosa:

A proposta rosiana de os brasileiros reinventarem a sua língua de uma


forma emancipada constitui uma utopia educacional e política, que poderá
ser potenciada por meio das revolucionárias tecnologias da informação, que
ele intuiu.

O projeto de Guimarães Rosa implica uma utopia que não é só estética,


mas também educacional e política: reinventar o português do Brasil, em
5
forma de uma língua que sirva para o diálogo entre as classes.

Luiz Roncari também supõe que tenha havido intencionalidade por parte
do escritor no modo como se apresenta a matéria brasileira em suas narrativas:

Guimarães Rosa, sem se descurar dos nossos costumes privados, os da


vida familiar e amorosa, próprios do romance, procurou integrar a eles
também os da vida pública, o que deu a sua ficção também a dimensão de
uma representação do país, e muito mais realista do que se poderia supor.

Esse ensaio [Política e letras, de Alceu Amoroso Lima], além de fazer


uma radiografia da “civilização brasileira” (...), procura apontar a saída
quase milagrosa aos seus impasses: a harmonização das forças contrárias,
como modo de solução. Com isso, ele tem muito dos manifestos dos anos
20 (ele é de 1924), e Guimarães parece tê-lo assumido como diagnóstico e
aceito a sua proposta de solução, quase como uma missão a ser cumprida
6
pela sua obra.

Diálogo entre classes, harmonização de forças contrárias – conciliação.


Essa talvez seja a melhor designação para o que há em comum entre as
proposições para o Brasil que cada um dos dois autores encontrou no projeto
literário de Guimarães Rosa. O interessante, do ponto de vista da análise da
recepção crítica desse escritor, é que sua “proposta”, digamos, conciliatória é

5
Willi Bolle, op. cit., p. 10; p. 443. Itálicos meus.
6
Luiz Roncari, op. cit., p. 20; p. 23-24. Itálicos meus.

189
interpretada em termos que se opõem. O ensaio de Bolle aponta para a utopia
de uma transformação nacional pela via da educação, da “revolução de
linguagem”, da “reinvenção do português do Brasil”; nele, Grande sertão:
veredas ganha ares de “exemplo utópico”, solução figurada do “sério entrave
para a plena emancipação do país”: “a ausência de um verdadeiro diálogo entre
os donos do poder e o povo”.7 A tese de Roncari, ao contrário, não se projeta
nem para o presente nem para o futuro, atém-se aos períodos passados
correspondentes ao tempo da narração e da escrita, investigando a
alegorização, levada a cabo no contexto do desenvolvimentismo getulista, da
“história da vida político-institucional de nossa primeira experiência republicana e
numa perspectiva que poderíamos considerar conservadora” – sendo que “o
‘conservador’ aqui se manifestava não como uma defesa da ordem, mas como
uma crítica dela e por uma outra ordem, restauradora do pai tutelar ou da
autoridade que se havia perdido com a República”.8 No que diz respeito ao
andamento da crítica literária brasileira, é muito significativa a concomitância
entre essas duas interpretações ambiciosas e divergentes da visão do Brasil em
Grande sertão: veredas – uma ressaltando no romance um traço revolucionário-
utópico, a outra, vendo-o como conservador-harmonizador; e ambas refletindo
sobre sociedade e literatura nacionais, ambas em diálogo com um importante
legado de reflexão sobre o país e sua cultura. Mas, antes de chegar aos
pormenores das interpretações de Roncari e Bolle, é fundamental retroceder ao
ano de 1999, quando foi publicada a tese da cientista política Heloísa Starling,
muito atuante nos círculos rosianos de uma década para cá. Seu trabalho, como
O Brasil de Rosa, investe na leitura do romance de Guimarães Rosa sobretudo
como alegoria da vida política nacional e, como grandesertão.br, vê nessa ficção
um certo caráter de sugestão para o país. A confrontação entre os três livros
permitirá assinalar questões presentes no atual horizonte da crítica dedicada a
avaliar o Grande sertão em face da experiência político-social brasileira.

7
Cf. Willi Bolle, op. cit., p. 9; p. 17; p. 445.
8
Luiz Roncari, op. cit., p. 19. “Por conservador, quero entender uma visão centrada mais no conflito entre
civilização e costumes, ordem e desordem, no plano institucional e familiar (além do literário), levando em
conta a problematicidade da ordem, do que na oposição entre vencedores e vencidos, opressores e
oprimidos, chefes e jagunços” (p. 29).

190
5.1 – LEMBRANÇAS DO BRASIL

Como já foi dito a propósito de um artigo publicado por Heloísa Starling


em 1996 (ver CAPÍTULO 3, p. 109), na visão desta professora de História das
Idéias (Departamento de História-UFMG), a narrativa de Riobaldo não só
alegoriza problemas de base na formação do Brasil moderno como também
esboça uma expectativa esperançosa de superá-los. A seu ver, o “projeto
literário” de Guimarães Rosa, incluindo a “proposta de releitura intensa do país”,
sonda veredas que poderiam convergir para se “inventar um caminho próprio
para o moderno”.1 Argumentos referentes a esse e a outros pontos integrantes
da leitura desenvolvida na tese Lembranças do Brasil encontram-se
condensados em um outro ensaio (Imagens do Brasil: Diadorim, de 2001), e
será inicialmente por meio de trechos dessa exposição sintética que
discutiremos o juízo sobre o romance elaborado por Starling em seu trabalho de
maior fôlego.
O texto de 2001 começa assinalando a relevância da afinidade entre
narração (“uma atividade que articula a noção de experiência como objeto de
uma construção”) e rememoração (“a exigência, muito humana, de resguardar o
passado do esquecimento por intermédio da palavra”). Dado seu caráter
ficcional, a narrativa de Riobaldo, ao trazer à tona o passado, redescobre
“possibilidades ainda latentes de uma determinada realidade” e assim se
constitui num “convite à imaginação do possível”. O trabalho de memória levado
a cabo na literatura constitui exercício de imaginação; é esse exercício o nó da
articulação entre história, política e ficção que pauta a interpretação de Heloísa
Starling.

1
Heloísa. Starling, Outras conversas sobre os jeitos do Brasil, op. cit., p. 14-16.

191
Nesse convite à imaginação do possível (...) as fronteiras do fazer
literário recuperam um ponto essencial da articulação entre história,
política e ficção; e recuperam-no poeticamente, vale dizer, retomando
o princípio que orientava a tarefa do poeta grego arcaico: conferir
fama imortal às palavras e às façanhas humanas, transmitindo-a de
geração a geração e obtendo para isto, tal como ocorria com os
adivinhos e os profetas, acesso às partes do tempo inacessíveis aos
demais homens – o que existiu no passado, o que ainda não chegou
a existir.
Com efeito, a capacidade de tornar visível no mundo suas formas
potenciais, próprias do fazer literário, e a faculdade de atuar, de criar
nesse mesmo mundo novas formas mais satisfatórias de vida,
característica da política, estão interligadas (...).
(...)
Todas as vezes em que acontece esse esforço de rememoração,
uma história irrompe, por assim dizer, em algum ser humano (...) –
ratificada pelo poeta ou pelo historiador a narração da história se
integra à realidade dos homens, obtendo permanência e estabilidade.
(...) história, mito e poesia (...) ainda produzem as condições para um
esforço retrospectivo da imaginação criativa, baseada no trabalho da
memória, que tem o mundo como horizonte, as imagens como
técnica de deciframento e a linguagem como mediação.2

Daí se engendra um pressuposto implicado na análise das relações entre


o romance, a história e a política brasileiras: que é intencional no escritor a
configuração do texto literário como “tentativa de iluminar uma visão do Brasil”,
de redesenhar junto ao leitor “as trilhas da realidade histórica e da experiência
política nacional”: “A rigor, sua narrativa funciona quase como um esforço
metodológico voltado para libertar o passado do historicismo e apreender a
própria história na forma do fragmento”.3 Nos termos do ensaio Imagens do
Brasil:

2
Id., Imagens do Brasil: Diadorim. Revista Semear, nº 5.
3
Idem, Lembranças do Brasil, p. 24-25. Itálicos meus.

192
(...) Grande sertão: veredas traduz uma espécie de síntese desse
projeto literário fundado na heteronomia do mito, no impulso ficcional
de inscrever no cotidiano dos homens as possibilidades ainda
latentes de uma determinada realidade, convidando-os a imaginar
que as coisas no mundo poderiam ser diferentes do que realmente
são. 4

Em Lembranças do Brasil, a ficção também aparece como resgate do


passado capaz de, pelo efeito de esclarecimento dos problemas, sugerir
possibilidades de transformação no presente.

(...) o projeto literário de Guimarães Rosa aponta a maneira pela


qual, ao reconstruir o mundo pelas palavras, sua ficção reconstruiu o
Brasil para a política iluminando seus processos mais profundos: o
que falta, o que está à margem e o que é necessário se fazer
presente na realidade de um país que precisa, a todo custo,
encontrar o próprio caminho de passagem para o moderno. 5

Para Heloísa Starling, o “núcleo central do romance” corresponde ao


trabalho de recriação literária que resulta na apresentação do Sertão como um
“mapa alegórico” – expressão antes empregada por Willi Bolle (ver CAPÍTULO 4.1).
Aí estão figurados os “pontos de tensão e de ancoragem” entre a dinâmica das
relações sociais e de poder nas primeiras cinco décadas da vida republicana
brasileira e as tentativas de se transformar a comunidade sertaneja efetivamente
numa república, “vale dizer, numa forma de vida política duradoura, um espaço
de interação de homens capazes de deliberarem livremente e em conjunto sobre
questões que dizem respeito a um destino comum”.6 Ou seja, além de propósito
consciente do escritor, a visada sobre a experiência nacional constituiria aspecto
estruturador de sua obra – e nisso, a interpretação de Starling está de acordo
com as de Bolle e Roncari, sendo que cada um expõe hipóteses distintas para

4
Id., Imagens do Brasil: Diadorim, op. cit. Itálico meu.
5
Id., Lembranças do Brasil, p. 18. Itálico meu.
6
Cf. Id., Imagens do Brasil: Diadorim, op. cit.

193
explicar como se configura formalmente no romance a alegoria do histórico
social e político do país.
Em Imagens do Brasil, a chave indicada é a “utilização de determinados
recursos de reconfiguração, questionamento e ruptura característicos da
narrativa – como, por exemplo, os recursos de desconstrução, estranhamento,
deslocamento e choque”. Embora os mesmos termos apareçam na introdução
de Lembranças do Brasil para caracterizar os procedimentos narrativos, restam
como proposição genérica, pois a autora não se ocupa em mostrar a ocorrência
de desconstruções, estranhamentos, deslocamentos e choques na estrutura do
texto. Empenha-se, sim, em esmiuçar aspectos da experiência sociopolítica
alegorizados em Grande sertão: veredas, investindo naquele tipo de
aproximação ao romance mais corrente em sua fortuna crítica quando se trata
de relacioná-lo à história do país: o estabelecimento de correspondências entre,
de um lado, personagens, cenas e proposições do narrador e, de outro, as
características e/ou tendências políticas e sociais que o intérprete sublinha na
realidade brasileira. Daí as longas passagens, em Lembranças do Brasil,
dedicadas à descrição/decifração de episódios do livro, sempre com muitas
transcrições de trechos emblemáticos. Daí que a interpretação resulte menos na
explicação de como e porque se constrói nessa ficção uma visão do Brasil do
que numa explanação que pretende traduzir qual é a imagem que o escritor
tinha do país e em que ela colabora atualmente para o enfrentamento dos
problemas que abarca. Em grandesertão.br, Willi Bolle chama atenção para
essa limitação, criticando o trabalho de Heloísa Starling por aplicar teorias
políticas ao texto ficcional “de fora para dentro”, por operar com uma grade
teórica preestabelecida “sem estudar a instância mediadora”, sem dar “o devido
peso ao narrador e à forma da narração”.7
Nas palavras de Starling, o problema de fundo constatado pelo ficcionista
seria a “existência de um vazio original instituinte da história do Brasil”, inscrito
no mapa alegórico por meio de três perspectivas: “a da fundação de uma

7
Cf. Willi Bolle, grandesertão.br, p. 160-161. Em meio à contestação da interpretação de Heloísa, Bolle
defende sua própria metodologia, assinalando como vantagem de seu trabalho o fato de procurar “revelar a
teoria política intrínseca à forma do romance e a sua perspectiva narrativa”.

194
comunidade política; a da inserção dessa comunidade no cenário agudamente
contemporâneo de uma comunidade inconclusa; e (...) a perspectiva da
oportunidade de um povo, como o nosso, construir uma identidade comum”.8 A
maior parcela do esforço analítico em Lembranças do Brasil se concentra em
torno das “cenas de fundação” protagonizadas pelos chefes jagunços que
inspiram Riobaldo – Medeiro Vaz, Joca Ramiro e Zé Bebelo. Ao longo de mais
de cem páginas (os capítulos centrais do livro), a autora arregimenta caracteres
e falas de personagens, cenas e simbologias do enredo, além de reflexões do
narrador – os mais diversos tipos de signos que julga relacionados às figuras
enfocadas. Usando, como liga, as categorias da teoria política que elegeu para
abordar o romance, põe tudo isso em articulação na decifração do papel
alegórico dos personagens em questão. Vejamos rapidamente os termos
utilizados para descrever os aspectos da constituição do campo político que eles
encarnam.
Medeiro Vaz, num gesto radical, destrói seu legado familiar, abrindo mão
da vida privada para impor justiça no sertão. Sua presença na cena pública
inaugura a “possibilidade de convivência entre os homens” num espaço
politicamente organizado, “onde se obedece às leis em vez de aos homens”. No
sertão, “cenário fortemente hobbesiano”, ser cidadão significava a perspectiva
de acúmulo de riquezas e de autopreservação, e o âmbito político, destituído da
dimensão do interesse público, definia-se pelas “potentes chefias, expressando-
se basicamente por meio de interesses e antagonismos, partidarismo e ânsia de
domínio” que orientavam a ação dos bandos de jagunços. Rompendo com esse
estado de coisas, o gesto de Medeiro Vaz, “de fundação da vida política”,
permanece, no entanto, inconcluso, por solitário e silencioso. Se a lei que ele
instaura regula a violência no sertão, não chega a proporcionar aos homens a
liberdade de “distinguir-se” pela ação de proporções públicas.

Assim, foi Medeiro Vaz, e apenas ele, quem primeiro representou


o fenômeno político da visibilidade em um mundo de homens
inteiramente privados, muito embora jamais tenha conseguido, por

8
Heloísa Starling, Imagens do Brasil: Diadorim, op. cit.

195
meio de palavras, materializar e dar permanência, mesmo
provisoriamente, ao ato fundador. Dito de outro modo, faltou-lhe a
possibilidade de completar o gesto, fazendo aparecer, por meio da
reprodução das características originais do discurso e da ação, um
ponto de mobilização e convivência entre os moradores do Sertão,
orientado para além de suas condições de segurança e
9
sobrevivência ou de seus apetites e interesses particulares.

A “oportunidade perdida no gesto original de Medeiro Vaz” é retomada


por Joca Ramiro, que tem de lidar com “o dilema de um mundo, rigorosamente
moderno”. A autora define assim o traço de modernidade política no romance: “a
adesão à lei liberta os homens da opressão e os torna iguais, mas sacrifica sua
possibilidade de transcendência, isto é as condições para o exercício da
liberdade política”.10 O mundo “hobbesiano” dos proprietários ao qual o gesto de
Medeiro Vaz se contrapõe é descrito como a um só tempo arcaico, dado o
“caráter sagrado da privatividade”, e moderno, uma vez que a riqueza privada
constituía “condição de admissão na vida pública” e que se verificava a
transformação da “preocupação com a propriedade privada em preocupação
pública”. O problema político enfrentado por Joca Ramiro “é o da sobrevivência
e alargamento do espaço público, a partir de uma operação que suprime o juiz
mas reporta a justiça à existência desse espaço.” Sua grande diferença com
relação a Medeiro Vaz é que não abre mão das “feições não-privativas da esfera
privada, isto é, o espaço de constituição da individualidade humana”, condição
de existência para “os meios de que depende a ação” política baseada no
“reconhecimento do valor do indivíduo e na excelência de seu desempenho”, no
“viés ativo do cidadão, que se inscreve no espaço público e lhe dota de sentido”
– e não no individualismo que isola os integrantes da sociedade. Dotado de aura
messiânica, o pai de Diadorim se coloca na posição de mediador no “trânsito
entre o arcaico e o moderno”, entre as tradições de sua terra e o novo “mundo
pós-mítico de Zé Bebelo”. Por sua iniciativa, constitui-se “uma nova

9
Id., Lembranças do Brasil, p. 55.
10
Ibid., p. 73.

196
representação do poder” no sertão, manifesta no episódio emblemático e crucial
do julgamento do inimigo Zé Bebelo. Este gesto fundador, como o de Medeiro
Vaz, é marcada pelo signo do “inacabamento constitutivo”, pois ainda que Joca
Ramiro pareça reconhecer “uma condição original de igualdade entre os homens
que lhes confirmava as possibilidades de acesso ao exercício da política, bem
como lhes facultava algum controle sobre a definição do bem comum”, mantém-
se, naquela encenação de tribunal, a desigualdade, “a separação entre aquele
que conhece a origem humana da lei e, portanto, sabe desvelar os mecanismos
de sua produção, e os outros, os que devem obedecer e, por isso mesmo,
precisam entregar ao próprio Joca Ramiro o uso da força gerada por esse
momento e a responsabilidade de arcar com o seu peso”.11
O projeto reformista que Zé Bebelo traz para o sertão12 é o estágio
seguinte nesse histórico da formação política. Aí se trata de constituir “um novo
corpo coletivo, necessariamente popular, comum, centralizador, homogêneo e
totalizante – o projeto de construção de um ‘sertão nacional’”. A “compaixão
pelos deserdados” propalada nos discursos de Zé Bebelo intensifica o tom
redentor de sua confiança no progresso material. Se, por um lado, ao ser trazido
para o plano da vida pública, o “sentimento profundamente íntimo de aversão ao
sofrimento” dá margem à manipulação retórica, por outro lado inclui “a questão
nacional na agenda política”. Soma-se a isso um terceiro traço distintivo deste
projeto de modernização: a “predominância da motivação do ganho e do gosto
pelo bem-estar material sob qualquer outra fonte de motivação individual dos
homens”, traço essencialmente moderno.

(...) a solução política de Zé Bebelo para o Sertão é claramente


moderna: primeiro, por admitir a vocação privada do cidadão
conduzindo a sua mínima participação na esfera pública; segundo,
por substituir o envolvimento direto de cada membro da sociedade na
cena pública pela idéia de representação política; terceiro, pela
politização do interesse como condição central de motivação dos

11
Cf. Ibid., p. 91-129. Starling refere-se ao fato de que, no julgamento ocorrido na Fazenda Sempre-Verde,
a palavra final cabe ao supremo chefe jagunço.
12
Cf. Ibid., p. 131-143.

197
indivíduos à participação política; quarto, pela crença de que, quanto
maior o espaço disponível para a realização dos interesses pessoais,
maiores são as condições de liberdade existentes.13

As limitações dessa solução se anunciam na intermitência dos planos a


que Zé Bebelo se lança, “movimento persistente de deriva”, “processo
cumulativo de enganos”, sempre um “gesto escorregadio, profundamente
empenhado no esforço de construção do moderno apenas para se
desmaterializar em seguida”. No todo, mais um gesto de fundação da
comunidade política que não se completa.

(...) essa ênfase quase obsessiva na idéia de que a promoção do


crescimento econômico e a satisfação das necessidades materiais
eram suficientes para viabilizar a experiência política da construção
nacional, [sic] projetava sobre o Sertão, feito uma sombra perigosa,
seu avesso aético e dolorosamente injusto: a suposta possibilidade
de emancipação dos miseráveis graças ao impacto súbito de um ato
redentor que desfaz ou anula os efeitos igualitários da lei pelo não-
reconhecimento da legitimidade do outro como um seu semelhante. 14

É certo que podemos encontrar nessas formulações, na tentativa de


traduzir para termos conceituais o “mapa alegórico” da história política no Brasil,
uma série de fatores que remetem à experiência nacional. Por exemplo, aquilo
que, na introdução de Lembranças do Brasil, Heloísa Starling afirma que o
“projeto literário de Guimarães Rosa” tem a preocupação de evidenciar: “a raiz
autoritária, violenta ou paternalista, e o caráter fortemente manipulatório que
vem sustentando o processo de incorporação dos indivíduos ao sistema político
brasileiro – sobretudo nos contextos históricos particulares do nacional-
desenvolvimentismo e da democracia populista”.15 Ou aquela “idéia de
República” mencionada na conclusão do livro, subjacente à nossa “cena
republicana”: “regime da liberdade e da expansão da igualdade e consolidada

13
Ibid., p. 145-146.
14
Ibid., p. 158.
15
Ibid., p. 20.

198
sobre um mínimo de participação política e um máximo de exclusão popular”.16
Entretanto, ainda que a autora especifique o nacional-desenvolvimentismo e a
democracia populista como os “contextos históricos particulares” privilegiados
pelo escritor em sua abordagem do autoritarismo, da violência, do paternalismo
e da manipulação no sistema político do país, no corpo da tese não fica claro se,
e como, as condições objetivas implicadas nesses contextos têm implicações
também na ordem profunda da obra. Assim como não fica claro se, e como, tem
peso na configuração da forma singular de Grande sertão: veredas uma lógica
republicana pautada pela mínima participação política dos cidadãos e pela
máxima exclusão popular. A possibilidade de se identificar a distinção de classes
e a ação de uma classe sobre outra na representação da dinâmica política teria
a ver com aquele recurso à “inspiração do povo” para o qual Antonio Candido
chamou atenção ao comentar o efeito estilístico alcançado pelo escritor erudito
(ver CAPÍTULO 1.1)? Ou com o “louvor à instrução”, a “sonsice cabocla” e a
“faceirice” detectados na atitude do narrador por Walnice Nogueira Galvão (ver
CAPÍTULO 3.1)?
Em outras palavras: tanto Lembranças do Brasil quanto os ensaios que
sua autora tem dedicado a Grande sertão: veredas, sem dúvida, trazem para a
discussão sobre o livro de Guimarães Rosa impasses experimentados no país.
A limitação desses textos, do ponto de vista da crítica literária, é que tais
questões são postas e tratadas, como bem notou Willi Bolle, de fora para dentro.
A articulação dos elementos convocados para componentes do “mapa alegórico”
da vida política no Brasil é presidida por uma concepção pré-definida do que
seriam processos gerais, universais, na constituição de uma comunidade
política. E o alcance crítico fica ainda mais restringido porque a observação
analítica é direcionada não para a dinâmica interna da obra, para o que define
sua configuração como um todo, mas para as intenções subjetivas do escritor,
dos personagens e, eventualmente, do narrador. Desse modo, o trabalho
interpretativo que pretende esclarecer as relações entre ficção, de um lado, e de
outro, teoria política e história política brasileira acaba por converter a obra e a

16
Ibid., p. 177.

199
experiência que quer iluminar em alegorias de uma construção teórica. A
interpretação fica apenas a meio caminho de pôr em evidência algo da interação
entre criação ficcional e história nacional; o que se evidencia mais é o fato de os
paralelismos apontados entre uma e outra parecerem corroborar uma visão da
história e expectativas com relação ao país projetadas dela.
Num trabalho como o de Heloísa Starling, que trata diretamente das
relações entre obra, história e política, o peso das posições do intérprete fica
bem visível, especialmente nos trechos em que se explicitam proposições gerais
que, partindo da ficção, incidem sobre a vida do país. No caso, a possibilidade
de enunciarem-se tais propostas radica-se no pressuposto de que, na ficção de
Guimarães Rosa, a intenção de “releitura intensa” da experiência problemática
passada daria margem a alguma perspectiva de solução a ser implementada a
partir do presente: “(...) um projeto que cria, mas deixa em aberto, as
possibilidades de escrever em termos literários a nação, para permanecer
sempre articulando seu tecido de significantes e desdobrá-lo, de maneira quase
prismática, em novas alternativas de vida política”.17 Leia-se: a criação literária
de Rosa esboça, ou contém em gérmen, uma indicação do estágio que teria que
ser alcançado para resolver problemas de base na formação nacional: “(...) ao
reconstruir o mundo pelas palavras, sua ficção reconstruiu o Brasil para a
política iluminando seus processos mais profundos: o que falta, o que está à
margem e o que é necessário se fazer presente na realidade de um país que
precisa, a todo custo, encontrar o próprio caminho de passagem para o
moderno.”18 A autora atribui a Riobaldo convicção equivalente a esta que
identifica na intencionalidade do escritor. Na conclusão de Lembranças do Brasil
– onde o modo como o ex-jagunço narra sua história é apresentado como “um
gesto autoconsciente de fundação” – são essas as palavras que encerram a
interpretação (às quais se seguem apenas uma citação do romance, fechando o
livro): “(...) para o velho Riobaldo, fundar também é uma empresa da imaginação
que obriga os homens a buscarem no tempo as razões do esquecimento, os

17
Ibid., p. 18.
18
Ibid. Itálico meu.

200
débitos da própria história, restos do que não é mais porque não chegou a ser –
caminhos em meio às ruínas, ‘o beco para a liberdade se fazer’”.19 Note-se que
essas expectativas de que a narrativa possa interferir sobre o presente,
reputadas ao escritor e ao seu persongem-narrador, giram em torno de tópicos
encerrados no núcleo dos problemas que, segundo a autora, a alegorização
romanesca das tentativas de fundação da comunidade política no país
manifesta: a passagem eficaz para o moderno e o gozo pleno da liberdade. Um
terceiro tópico, que surge sobretudo nas decifrações da figura de Diadorim, é a
“busca de formas disjuntivas de representação de um povo, de uma nação, de
uma cultura”.20 São perspectivas promissoras em relação à dificuldades sociais,
políticas e culturais, que a intérprete afirma estarem esboçadas no livro e que
endossa, manifestando aquela tendência dos críticos a identificarem-se com o
romance de Guimarães Rosa e a avaliá-lo positivamente.

19
Ibid., p. 180. A expressão posta pela autora entre aspas foi extraído do romance.
20
A “perspectiva da oportunidade de um povo, como o nosso, construir uma identidade comum” ressurge
no ensaio Imagens do Brasil: Diadorim, onde a questão da formação de uma identidade nacional é tratada
do ponto de vista da “oposição entre formas de ordem social estruturalmente distintas mas de ocorrência
simultânea: comunidade/sociedade, rural/urbano, modernidade/tradição”. Se o sertão aparece no romance
“como domínio público degradado (...) onde aportam homens profundamente solitários”, distante da
ingerência do Estado e dos projetos de modernização, “é também uma imagem ao avesso (...) – o reflexo
instável e incerto da trajetória de um país que parece estar ao mesmo tempo mergulhado na modernidade e
emerso dela”. A narrativa de Riobaldo faz aflorar “uma espécie de risca terceira que coloca em causa os
limites entre os dois brasis” – o litorâneo, que tem acesso às “benesses da moderna civilização capitalista
ocidental” e parece ser “lugar de aparência e cópia reverberando uma cultura de elite alienada de si
mesma” e o interior, sem acesso às vantagens da modernidade e encarado historicamente como “Brasil
profundo, genuíno, mítico, cerne de uma pretensa identidade nacional”. Na trajetória da donzela guerreira
Diadorim, estariam alegorizados os impasses na constituição da imagem dessa nação “à procura de uma
identidade que, se de fato há, está à deriva”, em “tensão permanente entre o que se é o que se acredita
ser, entre a tentativa de simular que é alguém e a dolorosa redução à condição de ninguém”. E também
uma iniciativa positiva no sentido de lidar com esses impasses da melhor maneira possível, o que
configuraria, mais uma vez. uma sugestão para se operar com problemas do país: “(...) Diadorim passa a
dar conta das possibilidades de identificação e de deslocamento dos atributos e posições tidos como
masculinos. Assim, livre para se desenvolver como homem – isto é, como protagonista, como sujeito da
ação que se realiza publicamente – a Diadorim cabe, a partir de então, traduzir numa linguagem
potencialmente política os termos dessa transformação: de um lado, é evidente, trata-se de uma conquista
de direitos (...); de outro lado, porém, se é impossível roubar a feminilidade a Diadorim, essa
impossibilidade coloca em questão a própria identidade masculina como representação de um dispositivo
discursivo ou de uma categoria mobilizadora através da qual o mundo pluralista da política pode vir a ser
reduzido a uma fórmula homogênea. // Como conseqüência dessa interpenetração dos territórios masculino
e feminino, ao assumir seu destino Diadorim desloca o sentido daquilo que tem como medida a vida de
cada um, e aquilo que tem o mundo como medida – o doméstico e o social, o público e o privado, o
subjetivo e o intersubjetivo. Na realidade, trata-se de um deslocamento essencial para sugerir os termos de
uma igualdade que se funda no reconhecimento de uma mínima diferença – a única que separa homem e
mulher. E que, precisamente por ser mínima e aproximar demais os territórios, se não for reconhecida,
transforma o outro em alvo de discriminação e intolerância.” (Idem, Imagens do Brasil: Diadorim, op. cit.
Itálicos meus.)

201
5.2 – O BRASIL DE ROSA

Interessado na alegorização da “história da vida político-institucional


de nossa experiência republicana” em Grande sertão: veredas, Luiz Roncari,
em O Brasil de Rosa, procura demonstrar “as proximidades da visão de
Guimarães Rosa principalmente com as de Alberto Torres, Alceu Amoroso
Lima e Oliveira Vianna” – ou seja, com a “perspectiva do conservadorismo
crítico”. Nisso já se nota um contraste óbvio com a leitura de Heloísa Starling:
esta, em vez de enfatizar traços conservadores na obra do escritor, ressalta
nela sugestões para mudanças, ou, em seus termos, “deslocamentos”.
Revisão de uma tese de livre-docência apresentada em 2002, o livro
saiu em 2004, quando já estava bem avançada a formulação do presente
trabalho. Como só pude me dedicar a estudá-lo na reta final da redação, com
pouca margem de distanciamento em relação ao significado que essa visão
da obra de Rosa, em muitos pontos original e bastante complexa, pode
assumir no conjunto da recepção do autor, o que vai registrado aqui são
apenas impressões iniciais de leitura e uma sinopse dos pontos da
interpretação que mais interessam da perspectiva de nossa discussão.
Uma resenha de Fábio de Souza Andrade serve como resumo da tese
de Roncari, no qual destacam-se os seguintes aspectos do estudo:
1) as três obras de Guimarães Rosa analisadas (Sagarana, Corpo de
Baile e Grande sertão: veredas) são pensadas em conjunto como “retrato de
um país que, nos atropelos da vida pública e nos arranjos da vida privada,
experimentava, ao longo da Primeira República, uma modernização
conservadora”;
2) na tentativa de solucionar “a complexa equação da forma na ficção
rosiana”, o intérprete se detém em “cruzamentos entre os três pilares da

202
narrativa rosiana – o da atualidade da experiência, o mítico-simbólico e o
alegórico-histórico”;
3) no curso da análise de tal conjunção, Roncari “atribui peso
estrutural à apropriação que Guimarães faz da mitologia greco-romana” e
ressalta, para além do “mero realismo etnográfico”, a “camada significativa,
alegórica, em que a história aparece não mais como matéria vertente, mas
de maneira críptica, como enigmas a desvendar”;
4) os problemas críticos determinantes são a inscrição, na obra, de um
pensamento social do qual o escritor estaria impregnado – o dos “autores
que se ocupavam do embate entre ordem e desordem dos primeiros anos
republicanos no Brasil”, particularmente Oliveira Viana – e “a posição tensa
que, como narrador erudito, representante da alta cultura, e matuto por
origem e gosto, [Rosa] assumiu em relação ao universo popular que
expressava”;
5) a imagem alegórica que é relacionada aos processos sociais
identificados (“uma orfandade transitória – uma nação ainda guardando luto
envergonhado” pelo imperador deposto e “na expectativa” de que Getúlio
Vargas ocupasse a contento o vazio deixado pelo pai perdido) “sintetiza o
sentimento de indefinição que parecia acompanhar os conflitos que se
travavam no sertão, entre um poder local, costumeiro, cujo braço armado são
os jagunços, e um Estado remoto e centralizador, empenhado em submetê-lo
a um código escrito e universal pela força, se necessário”;
6) o conjunto de personagens que se apresentam como “figuras da
labilidade e da mobilidade”, como Lalino Salãthiel (A volta do marido pródigo
– Sagarana) e Lélio (A história de Lélio e Lina – No Urubuquaquá, no Pinhém
– Corpo de Baile), é encarado como recurso para o esclarecimento da forma
histórica manifesta na ficção;
7) constitui um entrave na construção da interpretação a insistência
em afirmar que é “intenção consciente do escritor a vontade de seguir
ideologicamente, para não dizer ilustrar os ensaístas que, ao seu modo,

203
também expressam pela trama do conceito as mesmas contradições
brasileiras”;
8) o quadro montado por Roncari, “rico em suas contradições”, parece
desmentir a hipótese de que o texto ficcional constitui eminentemente
figuração de determinadas proposições do pensamento social, sugere que as
“projeções” da vida brasileira plasmadas nos textos de Guimarães Rosa não
são tão “inequívocas”.1
Não são poucos nem pouco relevantes em nossa história os “assuntos
da vida brasileira”, os “fatos políticos e sociais” que Luiz Roncari identifica
“refratados” na figuração literária. Veja-se a lista apresentada na introdução
do livro:

(...) a miscigenação racial e o mulato; a estratificação e a hierarquia


social; a organização familiar; os problemas do arrivismo e da
ascensão social; a transição dos costumes senhoriais aos burgueses;
a crítica ao dinheiro como sangue corrosivo do capitalismo, corruptor
e dissolvente dos valores da tradição; a concepção das elites e as
suas funções civilizatórias e modernizadoras; o conflito social, não
apenas no âmbito da vida socioeconômica, mas também cultural; as
ambigüidades geradas pelo choque entre civilização e barbárie,
cultura e rusticidade, ordem e desordem; a insuficiência dos
costumes tradicionais e patriarcais; e as alternativas do processo de
modernização: imitação artificial do importado e ruptura com o velho
ou a assimilação do novo sob o controle da tradição. 2

Boa parte desses tópicos já havia sido identificada por críticos


predecessores (por exemplo, o problema do arrivismo), alguns vinham sendo
privilegiados por intérpretes da geração do autor de O Brasil de Rosa (é o
caso da tensão entre civilização e barbárie e das peculiaridades da
modernização à brasileira), outros (como a miscigenação racial) foram pouco
ou nada considerados ao longo desses sessenta anos da recepção do
1
Fábio de Souza Andrade, Retrato do Brasil: ficamos bem de Rosa. Folha de São Paulo, Ilustrada, 12
mar. 2005, p. E2.
2
Luiz Roncari, O Brasil de Rosa, p. 21.

204
prosador mineiro. Uma vez que, no estudo de 2004, o tratamento ficcional
conferido a tais assuntos é observado numa análise que correlaciona os três
livros publicados pelo escritor até 1956, para analisar as considerações sobre
Grande sertão: veredas teremos aqui que nos reportar às interpretações
propostas para os dois outros textos – mas isso só será feito na medida em
que os comentários sobre Sagarana e Corpo de baile forem imprescindíveis
para as formulações a respeito do romance. É o que acontece cp, as
decorrências específicas que tem para a ficção a questão da miscigenação
de raças no país, tão marcante em nosso pensamento social no início do XX.
Este é o primeiro ponto abordado por Roncari em sua construção da visão do
Brasil na literatura de Guimarães Rosa.
A primeira parte de O Brasil de Rosa sublinha a existência de uma
“corrente genealógica” na formação do herói rosiano que se estende de
Lalino Salãthiel a Riobaldo, passando por Lélio. O “aspecto racial” aparece aí
como ponto de partida, na obra do escritor, para a definição de traços
cruciais da experiência social brasileira na constituição dos protagonistas das
narrativas citadas. São eles: sobreposição entre ordem pública e ordem
privada, estratificação da sociedade no contexto do patriarcalismo, relação
com a idéia de trabalho em meio à herança escravocrata, entre outros. Para
ressaltar como fator formativo desses heróis (e revelador de fatores
constituintes da história nacional) a dinâmica entre o “não ser” e o “ser tão”,
os procedimentos do intérprete incluem, como em todo seu estudo,
decifração de símbolos articulados no texto, acompanhamento dos
movimentos do enredo, consideração de dados da realidade histórica (da
época em que se passam os eventos narrados como da época em que foram
criados) e investigação das relações entre a configuração ficcional, nossa
tradição literária e o ideário de determinados pensadores que procuraram
explicar o Brasil.
Dessa perspectiva, Lalino aparece filiado à linhagem dos “heróis
volúveis, de perfis baixos e traços satíricos ou picarescos”, tão importantes
em nossa ficção (“Leonardo, Brás Cubas, Dom Casmurro, João Miramar,

205
Serafim Ponte Grande e Macunaíma”), correspondendo à “primeira tentativa
do autor de representar um tipo característico, quer dizer, ‘brasileiro’, e as
suas experiências e condições de formação na nossa vida social e política”.3
É a partir da caracterização racial do protagonista do conto de Sagarana
como mulato que se exploram os elementos de “hibridez e ambigüidade” de
que se revestem suas ações e seu papel no entrecho – elementos que
reaparecem, modificados, em Riobaldo. Na maneira como narrador e demais
personagens de A volta do marido pródigo referem-se a Lalino, o intérprete
identifica uma confirmação dos estereótipos veiculados por aqui pelas teorias
raciais muito em voga poucas décadas antes da publicação do livro,
procurando provar, pela confrontação entre os termos do ficcionista e as
teorias sobre miscigenação de Oliveira Vianna, que as “os estereótipos
criados sobre os mestiços pela visão do preconceito da sociedade
escravista” encontram-se assimilados na constituição do “tipo da novela”.
Mais ainda: que “as racionalizações de Oliveira Vianna (...) serviram como
fundamentos para a construção da personagem ou esta foi criada como uma
comprovação ou exemplo prático” daquelas idéias, em especial daquilo que o
pensador formulou, em um capítulo de Populações meridionais do Brasil
como uma “‘lei antropológica’, que chamava de ‘seleção regressiva dos
atavismos étnicos’”.4 Além dessa referência ao pensamento sobre a
sociedade brasileira, a análise, nessa altura, ressalta e põe em articulação
entre si mais duas outras. Uma é a associação entre o termo “brasileiro” e a
designação de “um tipo racial específico do país, o mulato”, notada por
Gilberto Freyre e homóloga ao significado que a palavra “povo” num dado
momento adquiriu entre nós. Roncari lembra que, por povo, entende-se
“apenas os pobres e trabalhadores braçais”, o termo tem conotação mais

3
Ibid., p. 27-28. Itálicos meus.
4
Ibid., p. 30-32. Itálicos meus. “Aí, ele [Vianna] procurou demonstrar como, no cruzamento entre raças
muito distintas, os resultados adquiriram um caráter desgenerescente: ‘o elemento inferior é que se
reconstrói, de preferência, e absorve os elementos da raça superior’. Seria o caso dos mulatos no
Brasil, resultantes do cruzamento de negros e brancos. (...) ‘Os mestiços dessa espécie são
espantosos na sua desordem moral, na impulsividade de seus instintos, na instabilidade do seu
caráter’. (...) ‘Daí faltar aos nossos mestiços (...) esse senso de continuidade, essa energia do querer,
essa pertinácia da vontade, essa capacidade de espera (...)’.” A transcrição dos trechos de Oliveira
Vianna segue a notação de Roncari.

206
próxima do “plebs, seu oposto, do que propriamente do populus, que na
antiga Roma designava todas as ordens da cidade”. Tal noção de povo
distingue-se daquela que, no Império, referia-se ao homem livre e pobre, não
proprietário, “e veio a englobar, na Primeira República, (...) o ‘mulato vadio’, o
homem de ofício, o antigo negro-escravo e o novo trabalhador, o imigrante”.
A alusão a Freyre serve para assinalar que as palavras povo e brasileiro
revestiram-se, no senso comum da época em que se passam as histórias
dos três livros de Rosa, de “carga desqualificante”, “de gente mestiça e
pouco educada”. Outro conceito influente forjado em meio às tentativas de
interpretação da formação social brasileira elaboradas nas primeiras décadas
do século XX que é convocado na análise do herói de A volta do marido
pródigo é a noção de cordialidade. Luiz Roncari lembra que o arquetípico
homem cordial brasileiro – movido mais por “particularidades (afetos, laços
familiares, simpatia e amizade, enfim, pelo coração, fonte das emoções) do
que pela universalidade”, por idéias que “permitem ao indivíduo discernir e
levar em conta nas decisões os princípios morais e valores abstratos
comuns” – havia sido contemplado por Sérgio Buarque de Holanda com olhar
extremamente crítico. Este não disfarçava “uma censura sobre a confusão e,
algumas vezes, a não-distinção que se fazia aqui entre o público e o privado,
os negócios do Estado e os da família, o formal e o informal, a polidez e a
intimidade, o mérito e a simpatia”. Já quando Gilberto Freyre revê Sobrados
e mucambos, para a segunda edição, de 1951 (a primeira é de 1936), inclui
no livro um capítulo onde as apreciações críticas de Sérgio Buarque a
respeito da nota cordial nas relações interpessoais no país são retomadas
em tom apologético, “transformando a cordialidade num traço acentuado e
característico do brasileiro e, em particular, do mulato”. Para Freyre, tal
característica daquele tipo nacional havia sido desenvolvida em resposta a
condições específicas, definidas pelo histórico socioeconômico do país. É o
que se lê neste trecho de Sobrados e mucambos citado em O Brasil de
Rosa: “‘Essa simpatia do brasileiro (...) parece que é principalmente um
desenvolvimento ou uma especialização social. Terá se desenvolvido

207
principalmente (...) dentro das condições de ascensão através da vida livre e
não apenas nas senzalas e nos haréns dos engenhos; mas tendo por pontos
de partida essas senzalas e esses haréns’”.5
Passagens como essas constituem um tipo de contribuição muito raro
e valioso que o trabalho de Luiz Roncari aporta para a crítica de Grande
sertão: veredas. Além de trazer para o horizonte da reflexão a respeito da
obra de Guimarães Rosa um fluxo de idéias sobre o país acumulado ao
longo de gerações, ele também incide sobre o enraizamento em nossa
história dos problemas de que trata. Em alguns de seus passos analíticos,
para localizar elementos que conferem à forma ficcional caráter
representativo em relação a processos em curso durante a Primeira
República e o período getulista, acaba por lançar luz sobre vínculos entre tais
processos e a história do país anterior às épocas priorizadas, enfatizando o
peso de certas experiências ainda mais remotas – sobretudo a lógica do
escravismo e do patriarcalismo – na formação nacional e em nossa
expressão literária. Isso acontece na apresentação do protagonista de
Grande sertão: veredas construída a partir dos traços reconhecidos no tipo
encarnado por Lalino Salãthiel. O personagem principal de A volta do marido
pródigo seria o típico mulato “que, posteriormente, será apreciado e descrito
pela etnologia social de Gilberto Freyre”:

(...) um sujeito extremamente especializado na manipulação das


regras da cordialidade, com suas virtudes e vícios: de início, no plano
da vida privada, familiar e econômica, o que o habilitava a atuar,
depois, com máxima eficácia também no da vida pública. (...)
Lalino, por seu afinamento com o meio, conhece e domina como
ninguém as suas regras, praticando-as instintivamente, sem nunca
ter precisado aprendê-las, e manipula-as sempre em proveito próprio.
(...)
Lalino era um daqueles homens saídos do mundo do trabalho
livre, mas eventual. (...)

5
Ibid., p. 32-35.

208
Lalino, porém, destoava dos demais trabalhadores. Enquanto
estes se esforçavam para se ajustar às regras do trabalho,
cumprindo e dividindo entre eles as obrigações, o nosso herói, de
extração picaresca e malandra, procurava dribá-las e não tinha
nenhum escrúpulo em iludir o chefe e prejudicar os companheiros.
Assim era visto por eles, como “esperto”, “sabido” e “ladino” (...). O
seu individualismo e desajuste nas atividades coletivas revelavam
também a sua fragilidade de caráter, pois era obrigado
constantemente a mentir e enganar para justificar aos outros as suas
faltas. (...)
O que explica o tipo de comportamento de Lalino na novela é o
fato de ele ser “mulato”, o que se traduz no contexto em má formação
e relaxamento de costumes, que são entretanto compensados pela
simpatia e pelo conjunto de habilidades que possui: as artes do
entretenimento, como imaginar e narrar dramas teatrais e tocar
violão, o que o torna aceito e até admirado pelos que o circundam.
(...)
A simpatia era a virtude que tornava as suas piores qualidades
compreensíveis e assimiláveis, tanto para as demais personagens
quanto para o leitor. 6

O traço da cordialidade serve ao intérprete para evidenciar um certo


enfoque crítico, identificado na ficção, dirigido a hábitos mentais arraigados
em nossa sociedade (“crítica das perversões de nossa formação”, como diz o
autor na nota 18 do capítulo Lalino, Lélio, Riobaldo). Com um toque de
estoicismo comum às novelas do primeiro livro de Guimarães Rosa (ver nota
13 do mesmo capítulo), a simbologia de A volta do marido pródigo (em
especial a oposição entre os sapos no brejo e as estrelas no céu) põe em
cena uma visão metafísica do destino humano e a peculiaridade de certas
práticas que se observam no contexto brasileiro, parecendo solicitar ao leitor
um posicionamento menos tolerante. Se, “quando apreciamos a outra face

6
Ibid., p. 37-44. Itálico meu. A observação final de Roncari neste trecho poderia ser aplicada a Riobaldo,
que angaria a boa-vontade do leitor graças, em boa medida, à amabilidade com que trata o interlocutor em
seu relato ( Ver CAPÍTULO 3.1, p. 119-120).

209
da cordialidade, a bruta e violenta, parece que a compreendemos
impassíveis, como se estivéssemos cientes da pouca liberdade e baixa
consciência das ações humanas”, como alternativa, afirma Roncari, o “que se
pede na novela de Guimarães é que o leitor fixe o seu ponto de vista no alto”,
“que reveja as suas simpatias e as restabeleça a partir de valores menos
pessoais e emotivos”, voltando-se para “outros mais impessoais e
abstratos”.7
Em meio à análise da constituição e das ações do personagem de
Sagarana que figura na interpretação como pertencente à mesma cepa de
herói da qual provém Riobaldo, vai-se caracterizando a perspectiva pela qual
ganha expressão no texto a dinâmica política e social no meio rural da
Primeira República – sobretudo a interpenetração entre o público e o privado
que se verifica também, logo adiante, na configuração do protagonista de
Grande sertão: veredas. O mesmo contexto que surge com certa evidência
nas aventuras de Lalino Salãthiel reaparece, menos explícito, no romance de
1956. Na leitura de A volta do marido pródigo, Luiz Roncari parte da
constatação de que, no enredo, os arranjos com os quais Lalino cuidava de
sua vida particular (de trabalho e negócios a relações amorosas) acomodam-
se perfeitamente à atuação pública e política. Assim, chama atenção para a
“refração do sentido da ação política” no âmbito de “um sistema verticalizado
de mando e pressão”, integrado pela política dos Governadores e o
coronelismo. Em vez de atividade orientada pela obtenção do bem coletivo,
“a função política se voltava para a busca dos benefícios pessoais”. O enredo
demonstra bem como essa inversão de sentido traz para a esfera da vida
pública o mesmo “vale-tudo” no plano ético que rege a vida privada: assim
como se tolera, na narrativa, que o mulato Lalino venda a mulher, qualquer
transgressão é admissível no jogo dos interesses políticos – trapaças,
violências etc. “Ele [Lalino] transferia para a vida pública a mesma ética ou
falta de ética da vida privada: um vazio de normas limitadoras tanto das
ações quanto das emoções (...), assim como de valores norteadores do

7
Ibid., p. 44-45. Itálico meu.

210
juízo”. Detalhe importante, que não foge à percepção do crítico, é o
condicionamento desse “vale-tudo” à distinção entre classes: ele se instaura
como regra geral – comum à vida pública e à privada, feitas indistintas –
apenas para a classe popular à qual pertence o protagonista do conto. O
Major, o “coronel” Lalino a que serve, embora admita e até estimule o
desregramento de seu agregado, encara a “vida familiar organizada da casa-
grande” como universo à parte em relação àquele no âmbito do qual se
beneficiava da desmedida, da ausência prática de regras normatizadoras das
ação: “Quando lhe interessava, pensava dentro dos padrões permissíveis e
flexíveis da política coronelística (...). No entanto, quando não lhe
interessava, assumia a ética rigorosa e patriarcal da casa-grande”.8
Esses matizes da dinâmica entre ordem e desordem, vida pública e
vida privada são levados em conta na primeira abordagem de Grande sertão:
veredas em O Brasil de Rosa (segundo capítulo da Parte 1). Roncari
sublinha os pontos críticos que o interessam no momento em que a
interpretação faz a passagem de Lalino a Riobaldo. Os diferentes períodos
da história nacional implicados em sua visão da obra do escritor são então
evocados a partir de um movimento analítico no qual um conhecimento a
respeito do tempo em que transcorrem os enredos é aliado a uma percepção
a respeito da dissimulação da matéria histórica correspondente a esse
tempo. O fato objetivo levado em conta é a falta de estabilidade do sistema
coronelista na Primeira República, quando a situação sociopolítica geral era
muito tensa, “tanto devido às pressões decorrentes do crescimento urbano,
como às dos poderes públicos, municipais e estaduais, com quem os
domínios locais precisavam estabelecer uma política de compromisso”.

(...) Guimarães, que praticamente elidiu o termo “coronelismo” das


suas narrativas, como se escondesse uma chave importante para o
seu entendimento e nos divertisse com outras, mais brilhantes, mas
talvez não tão esclarecedoras, situa no centro mesmo desse sistema
as novelas e o romance Grande sertão. A tendência de um livro para

8
Cf. Ibid., p. 50-56.

211
outro é a de localizar a ação em espaços cada vez mais isolados, o
que cria no leitor a impressão de estabilidade e de que tudo ocorre
num passado já superado, a República Velha, com relação ao tempo
do autor, o do getulismo.9

Na sequência, o intérprete completa sua hipótese sobre a visão que tem o


escritor a respeito da dinâmica histórica:

(...) Guimarães Rosa narra sobre um passado próximo, o do


coronelismo da Primeira República, que está vivendo no tempo do
autor uma tentativa de superação. O caráter mais geral e marcante
desse período (e do herói Riobaldo, como veremos mais
adiante), para Guimarães, foi o de ter sido ele carente de Pai ou
um vazio entre dois grandes pais: Dom Pedro II, o tutor justo da
sociedade imperial, e Getúlio Vargas, o grande chefe e “pai dos
pobres”. Por que esses deslocamentos no espaço e no tempo e por
que Guimarães Rosa localizou quase todas as histórias nesse
período específico, quando as instituições republicanas se
mostravam instáveis e muitos viviam uma recaída nostálgica da velha
ordem imperial, são algumas das questões que tentarei, se não
responder, pelo menos levar em conta na continuidade do trabalho. 10

A análise da composição de Riobaldo começa pelo plano da vida


particular, conjugando relações familiares e amorosas, e com ênfase no
“vazio da falta do pai”, que o intérprete considera fonte dos “demônios
internos recalcados” que o personagem traz consigo, relacionados à sua
condição social. O fato de ser filho de mãe solteira “o vinculava não a um
troco familiar que lhe dava tradição e valores a serem perseguidos, mas à
camada dos pobres que proliferava na desordem do sertão”. A observação
dessa “carência” que impulsiona o indivíduo pretende trazer à luz aspectos
daquilo que, às suas costas, o impele à atuação num determinado sentido.11

9
Ibid., p. 58. Itálico do autor.
10
Ibid. Itálicos do autor, negrito meu.
11
Ibid., p. 61-63.

212
Assim é descrita a situação de Riobaldo em meio à sua trajetória ao lado de
Diadorim:

Ele só tinha carências e a necessidade de superá-las: a sua origem,


“escuro nascimento”, que não lhe dava raízes familiares nem
sobrenomes, só o reconhecemos pelo nome e apelidos; o destino
comum e nômade reservado aos homens pobres; a dependência da
proteção de padrinhos; a ausência de modelo paterno, que lhe
transmitisse a autoridade, capacidade de decisão e de mando para a
realização da sua ambição de chefia; a sua condição, que o levava a
procurar a mudança de classe pelo casamento; além da falta de
coragem. 12

A “dimensão mais ampla no Grande sertão: veredas”, “onde o périplo


do herói deixa de ser apenas o do indivíduo, para sintetizar e alegorizar
também o de um povo” afirma-se, segundo Roncari, a partir do segundo
encontro de Riobaldo com Diadorim, quando o protagonista ingressa no
bando de Hermógenes. O crítico ressalta que, nesta altura, o próprio
narrador parece passar por um “processo de tomada de consciência de si”,
revelando com bastante nitidez seu caráter hesitante, suas oscilações, os
dilemas com os quais se debatia, “inquietações entre o ser e o não ser, que o
levaram à pergunta: quem ele era?”.
Se, na análise do comportamento de Lalino Salãthiel, subjetividade,
caráter e formação pessoal aparecem diretamente relacionados a aspectos
objetivos do contexto em que o herói se insere, na abordagem de Grande
sertão: veredas, a vinculação entre as “carências” pessoais e os fatores que
informam a sociedade sertaneja são mais sutis – como adverte Roncari no
início do capítulo dedicado ao romance, Riobaldo é um sujeito bem mais
complexo. Empenhado em demonstrar sua hipótese de que as tensões
subjetivas manifestas no comportamento do protagonista de Grande sertão:
veredas se enraízam na estrutura da sociedade sertaneja e no “caráter mais

12
Ibid., p. 63.

213
geral e marcante” do período em que se passa a ação (“carente de Pai ou
um vazio entre dois grandes pais”), o autor, por vezes se cerca de
argumentos que conferem bastante ênfase a especulações a respeito da
relação entre motivações subjetivas e andamento do enredo, investindo
numa espécie de psicanálise do personagem. Vejamos dois exemplos. 1) A
explicação proposta para a atração mútua entre Riobaldo e Diadorim:
enquanto a ele faltava o pai, a ela faltava a mãe, “complementavam-se como
metades opostas”; a efetivação de seu amor seria por isso “menos o
resultado de uma escolha da vontade do que de uma condenação: a atração
pelo contrário”. 2) A razão da “redução quase ao estado de natureza” do
jagunço Riobaldo, incapaz de impor-se pelo mando, estaria radicada no
primeiro encontro com Diadorim e na morte da mãe – “dois afetos
assexuados, mas que sugerem sexualidades ameaçadoras (a prostituição da
mãe e o homossexualismo do jagunço, com a possibilidade do incesto entre
duas almas irmãs [...])”.13 Esse tipo de explicação para a atuação do herói
não chega a impedir o desenvolvimento de reflexões esclarecedoras a
propósito da constituição das personagens e do caráter representativo que
as relações entre elas assumem em face da experiência nacional, mas
denota uma certa tendência, observável em outras ocasiões no livro, a forçar
a nota para validar determinados caminhos na leitura.
Isso acontece, em especial, na codificação dos signos míticos do
texto, à qual o autor dedica boa parte de seus esforços. Riobaldo é
identificado a Apolo, Diadorim, a Ártemis e à Lua, Zé Bebelo, a Hermes, Joca
Ramiro, a Zeus. Mais do que correlações pontuais pautadas por paralelismos
entre caracteres, a disseminação de elementos mitológicos em Grande
sertão: veredas parece a Luiz Roncari uma chave para a estruturação da
visão de mundo clássica que tem o escritor, e da visão do Brasil que se
exprime em suas obras. Já na introdução do livro, aproximando as posições
de Guimarães Rosa às de Alceu Amoroso Lima, fica patente a convicção de
que o escritor mineiro estiliza classicamente a realidade, tanto no plano

13
Ibid., p. 61, p. 83.

214
estilístico quanto no temático.14 E esse viés clássico reaparece como fator
definidor da criação rosiana logo no início do capítulo sobre a formação de
Riobaldo, desta vez acompanhado de uma explicação sobre o modo de
inscrição do mito na narrativa e de uma alusão à perspectiva da história
implicada nela – passo da análise que parece validar as convicções
metafísicas do ficcionista.

O mito é historicizado, adquire as aparências do espaço e do tempo,


mas, ao se tornar novamente mythos, narrativa e poesia, no plano
literário, os elementos do tempo histórico relembram a dimensão
cósmica e divina, porém como sua versão cômica, aqui no sentido de
reduzida. De certo modo, reedita-se o intercâmbio que estabelece
a literatura clássica entre o terreno e o divino, só que agora como
se apenas as sombras dos deuses fossem projetadas na terra e nela
se refratassem, deformando-se, quando não se invertiam (...). Narrar
seria então contar de novo a luta do homem com o seu destino; mas
não o homem pensado no seu abandono num mundo desencantado,
na imanência da luta pela sobrevivência, cuja redução de horizontes
o autor não aceita como objeto de interesse e força literária. Essa
luta só ganha importância se puder ser vista também na sua
dimensão simbólica, no sentido quase religioso do termo, no que
revela também dos deuses aos homens ou as reverberações do
divino no humano. As entidades divinas precisam e devem estar
presentes de alguma forma, como sempre estiveram na grande

14
Ibid., p. 16. Em nota, na mesma página, é especificado o conceito de clássico considerado: “(...) o que
acontece particularmente no Grande sertão, atrás de uma aparência de fluxo desordenado está uma forma
muito bem arquitetada, assim como atrás de uma visão trágica temos uma sátira, atrás de Euclides da
Cunha nos deparamos com Machado de Assis (...), assim também atrás do barroco se esconde o clássico,
que não se opõe a ele, mas o compreende. Este modo de entendimento do clássico, como uma forma
integrativa de seu contrário, é dado por Alceu Amoroso Lima, no estudo A ida ao clássico (...): ‘(...) O
romantismo é a verdade parcial. O clássico é a verdade total, enquanto é acessível ao nosso entendimento.
O romantismo é a descida ao inconsciente: o clássico é a reascensão ao consciente./Ser clássico é
clarificar o espírito, é submeter a criação à crítica, é absorver o romantismo ambiente, o romantismo
profundo do nosso subconsciente, o romantismo das forças de dissolução, de anarquia, de hesitação, de
paixão e de exuberância, que andam esparsas no mundo exterior, e no nosso mundo íntimo, para
coordená-las e depurá-las e chegar à essência e à expressão. (...) O clássico é uma estética senhoril – o
romântico é uma estética servil.’ (...) Caso tratássemos também do estilo e da forma, poderíamos substituir
o tremo romântico pelo barroco, e essa idéia de um clássico como forma compreensiva e ordenadora das
tendências e forças contrárias seria perfeitamente adequada à literatura de Guimarães”. O estudo de Alceu
Amoroso Lima citado por Roncari integra o volume Estudos literários (Rio de Janeiro: Companhia Editora
Aguilar, 1966. v. 1. p. 924-5).

215
literatura. O desafio para Guimarães Rosa é como torná-las
numa presença/ausência, já que os deuses não podem mais ser
admitidos como uma convenção na literatura moderna. Sente-se que
ele tem em vista, por um lado, religar-se à grande literatura clássica,
principalmente à epopeia, e, por outro, integrar-se aos novos termos
da literatura moderna. A saída que encontra é a de fazer essa dupla
aproximação, como se a sombra de uns, dos deuses, se
transformassem nos brilhos simbólicos de outros, dos caídos, mas
que em graus diferentes resistem às suas sortes ou condenações, de
tal modo que a história do homem lembre ou parodie também a
própria história dos deuses, na sua versão reduzida, como de uma
comédia divina.15

A “dupla aproximação” entre personagens e deuses mencionada no


trecho fora exemplificada, poucas linhas antes, na descrição dos dois
movimentos que estabelecem a relação entre Riobaldo e Apolo:

(...) um primeiro, no qual Riobaldo traveste Apolo numa chave


paródica, com o tom humorístico muito latente, precisando ser
descoberto, já que acentua mais as fraquezas do que os atributos
divinos do deus, invertendo-os algumas vezes. Por exemplo, a
sabedoria do deus grego, que é fruto de uma conquista, em Riobaldo
se transforma numa qualidade herdade, em saberes intuídos e
habilidades inatas, como a sua pontaria, ‘de nascença’. (...) E um
segundo movimento, no qual Apolo/Sol é sugerido como o regente de
um destino que o imita também pelo inverso: uma travessia que vai
das atribulações do sertão ao bom estabelecimento fazendeiro e
doméstico com Otacília; da origem escura à boa ordem proprietária e
familiar; e da margem Oeste a Leste do São Francisco, contrariando
a trajetória do Sol, do Oriente ao Ocidente, da origem ao occido. 16

Roncari assinala que, depois da cena do pacto, aumenta a freqüência


da presença do signo do Sol e a identificação do protagonista com ele. Por
15
Ibid., p. 94-95. São meus os destaques em negrito.
16
Ibid., p. 94.

216
outro lado, o jagunço não deixa de ter também “baixas qualidades” que o
aproximam de figuras da classe de Lalino (“o medo, a indecisão, a ciclotimia
e a sensualidade”).17 A gradual aproximação com o deus grego integra-se a
essa outra face na totalização da experiência do herói, que se eleva à
condição de mando e chefia transpondo, “por uma espécie de milagre” (o
suposto pacto), “as barreiras das heranças e dos estratos, ainda que só às
meias, sem ter apagado de todo as marcas de origem.”18 É por meio da
identificação com Apolo que, no fim do primeiro capítulo dedicado ao
romance em O Brasil de Rosa, procura-se especificar o “movimento
subjacente” à trajetória narrada por Riobaldo:

E Riobaldo conclui a narrativa como se fosse o nascimento de um


novo dia, compondo assim a figura do uróboro, a serpente que morde
a própria cauda e reúne o início ao fim, como o ciclo do Sol que se
repete a cada dia, morrendo para renascer, “Auroras”, assim até o
infinito e nunca mudar. Esse movimento permanente e recorrente é
o que deve ser apreendido: “o que fui e vi”. Ele, um renascido na
história como o Sol no espaço, “o que fui”, e agraciado com um ponto
de vista solar (...), alto e no meio, entre os extremos dos extratos do
mando e dos cumpridores de ordens, “e vi”. É esse o movimento
subjacente que sintetiza e se sobrepõe aos fatos episódicos (...).19

A interpretação de Grande sertão: veredas prossegue no último


capítulo da Parte 2 e por toda a Parte 3 do livro, depois de trechos dedicados
às novelas São Marcos (Sagarana), Campo Geral e A história de Lélio e Lina
(Corpo de baile), nos quais são retomadas questões enunciadas na primeira
parte, dedicada à formação de Lalino e Riobaldo. A propósito da recepção do
romance de Rosa, interessa assinalar algumas formulações que surgem ao

17
Ibid., p. 94-95.
18
Ibid., p. 92.
19
Ibid., p. 102. O trecho destacado em negrito lembra as observações de José Antonio Pasta Jr. a respeito
da síntese sem superação em Grande sertão: veredas, da “má infinidade” de um processo formativo que se
fez pela supressão. Ver CAPÍTULO 5.3, p. 253.

217
longo dessas leituras intercaladas à sua análise, importantes para o
entendimento da perspectiva que conforma o juízo de Luiz Roncari.
A primeira delas corresponde à atitude aconselhada ao leitor/crítico.
Lembrando Bento Prado Jr. e José Antonio Pasta Jr., entre outros, Roncari
adverte: por mais que “a leitura de Guimarães Rosa apele para a empatia e a
encantação”, é preciso postura de desconfiança para decifrar o texto,
cuidado com a dimensão metafísica que integra as narrativas. Só assim se
pode enfrentar o desafio que elas representam, “porque a astúcia e a
estratégia literária do autor consistem na criação de enigmas e mistérios,
escrevendo de modo cifrado e misturando aos fatos da experiência uma
quantidade de elementos míticos e cabalísticos”. É necessária atenção
redobrada, reflexão distanciada, para “não sucumbir aos mistérios, cujos
significados, entretanto, também precisam ser compreendidos”.20 De fato, o
intérprete, em suas longas e minuciosas codificações da simbologia esotérica
entranhada nos textos sobre os quais se debruça, empenha-se na
compreensão dos mistérios que elas guardam. Por outro lado, não deixa de
encarar a realização literária como enigma, procurando elucidar a razão de
ser das relações entre “elementos míticos e cabalísticos” e “fatos da
experiência” que se estabelecem na articulação estética. O modo como faz
isso e as ilações que surgem dessa tentativa de esclarecimento da obra é o
que nos cabe observar aqui.
A segunda proposição relevante do ponto de vista do andamento da
recepção de Grande sertão: veredas diz respeito à inscrição de Guimarães
Rosa no sistema literário brasileiro, bem como ao seu diálogo com a cultura
clássica. Na passagem abaixo, resumem-se o campo de problemas com o

20
Ibid., p. 106-107. Itálico meu. Em 1968, Bento Prado Jr. reputou à obra de Rosa o caráter de enigma (ver
CAPÍTULO 3.1, p. 115-118). Pasta Jr. identificou, num ensaio de 1999, o duplo caráter de enigma e mistério da
escrita de Rosa como fator interno que tem reflexos na recepção de Grande sertão: veredas: “Tudo se
passa como se, por sua constituição mesma e pelo pacto que firma com seu leitor, esse livro transcendesse
a categoria estético-literária do enigma, que no entanto também é a sua, para tender àquela, mágico-
religiosa, do mistério. Como se sabe, enigmas pedem decifração, mistérios admitem unicamente culto e
celebração. O Grande sertão: veredas parece pedir ambas as coisas e, de modo menos ou mais sutil, não
é raro ver-se, diante dele, o ofício do crítico converter-se na celebração do oficiante (...)”. (O romance de
Rosa – temas do Grande sertão e do Brasil, op. cit., p. 61-62. Ver também INTRODUÇÃO, p. 26-28, e CAPÍTULO
5.3, p. 253).

218
qual o escritor se deparou e aquilo que parece a Roncari constituir o desafio
principal em sua criação.

A questão versava sobre a possibilidade e a validade dos contatos e


trocas culturais, principalmente, com as manifestações populares,
não-cultas, e de como fazê-lo. Enquanto o processo histórico
europeu criou condições de aproveitamento da cultura folclórica e
popular para o enriquecimento da alta cultura, desde os movimentos
contemporâneos até a contemporaneidade do século XX, ao mesmo
tempo que, com as revoluções burguesas e através de um sistema
educacional e cultural eficaz, difundiu a alta cultura entre as novas
camadas trabalhadoras, o processo social brasileiro, por nunca ter de
fato superado as suas estruturas coloniais, não possibilitou esses
dois movimentos e, aqui, eles se tornaram problemáticos (e ainda o
são). A pergunta que se apresentava era esta: até que ponto era
legítimo a alta literatura valorizar e absorver, como temas e formas,
os elementos da cultura popular, como as várias tendências do
modernismo tentaram fazer, principalmente com os da arte negra e
indígena, expressivas de um tipo particular de subjetividade e
religiosidade? Se essa volta e mergulho nas particularidades da
cultura popular fossem pertinentes, como salvar os temas e os
elementos da mitologia clássica, greco-romana, que tinham sido
desprezados pelos modernistas? Esse é o problema conceitual e
literário enfrentado pelo autor (...).21

Embora o contexto levado em conta nessa passagem seja aquele em


que foi escrito Sagarana, o “problema conceitual e literário” comentado
remete também ao Grande sertão. Primeiro, porque a situação em que
transcorre o relato de Riobaldo constitui uma dramatização de “possibilidade”
de “contato e troca” entre duas culturas (a alta e a popular). Segundo, porque
a “validade” de tais relações é mote para comentários do narrador (nas
digressões tanto sobre o valor do conhecimento letrado de seu interlocutor

21
Luiz Roncari, op. cit., p. 113. Problematiza-se aí aquela “inspiração do povo” que Antonio Candido
reconheceu como constituinte forte em Grande sertão: veredas (ver CAPÍTULO 1).

219
quanto sobre os limites de seu saber sertanejo). E também porque, do ponto
de vista do crítico, constitui uma solução intentada na ficção a harmonização
(não só no plano cultural) entre tradição reverenciada e manifestações de
outras experiências que, em face dessa tradição, apresentam-se como
problemas.
Terceira e última formulação de maior relevância para a presente
discussão que surge no intermezzo dedicado às novelas de Sagarana e
Corpo de baile: a teoria dos três amores atribuída a Guimarães Rosa pelo
intérprete. A seu ver, na lógica que organiza a interpenetração entre vida
privada e vida pública em Grande sertão: veredas tem papel decisivo a
dinâmica entre “três arquétipos fundamentais que regiam as várias
dimensões da experiência amorosa”, simbolizados pelas três “árvores
tutelares” que o narrador-protagonista de São Marcos descreve.22 Em A
história de Lélio e Lina, a temática amorosa monopoliza o andamento do
enredo – “Enquanto na novela ‘São Marcos’ a experiência amorosa é
contemplativa (...) e no Grande sertão, Riobaldo divide ou comparte a
experiência amorosa com as ambições de poder, glória e ascensão social, no
romance de Lélio e Lina, no Pinhém, o herói ocupa-se exclusivamente com a
busca amorosa”.23 É através dos amores de Lélio que se exprimem
processos históricos. Tais relações afetivas, que promovem “a passagem do

22
A passagem do texto de Roncari que apresenta de modo mais claro e sintético a teoria dos três amores
é aquela em que cada um deles é relacionado a cada uma das árvores em torno das quais se formavam
clareiras, que o protagonista-narrador de São Marcos encontra em meio à mata, num trecho do conto
considerado “importante para esclarecer como o autor procura combinar elementos místicos e naturais”: “A
primeira árvore representa o amor puramente carnal e fálico, masculino, (...) amor instintivo de satisfação
sexual (...) a procura da ereção incessante e que nada difere da sexualidade agressiva e animal. (...) // A
segunda árvore é feminina por excelência (...). Essa árvore representa o amor puramente humano,
desenvolvido como cultura e arte, voltado para satisfazer apenas os sentidos, os quais ele atiça e delicia
com o uso de todos os artifícios (...). A arte do amor já não seria mais animal, mas também não
transcenderia, não implicaria futuro nem imortalidade. (...) // A terceira árvore representa esta perspectiva
na própria physis: o amor gerador e fecundo, além do masculino e do feminino, borbulhante de doçura e
símbolos de geração, (...) a árvore geratriz da vida, a que contém em si o masculino e o feminino, é inteira e
possibilita a continuidade de tudo, por isso traz futuro, permanência e imortalidade (...).” (Ibid., p. 133-136).
O nexo que é a teoria dos três amores na leitura conjunta das três primeiras obras de Rosa fica explícito
um pouco adiante: “Não só as três árvores tutelares presidirão o destino de Lélio, como também a dança
cósmica da Terra, do Sol e da Lua ensaiará uma conjunção entre os dois últimos astros, nas atrações e
influências entre Lélio e Lina. Do mesmo modo, Grande sertão: veredas equivalerá a um desenvolvimento
sinfônico da estória do Pinhém [a de Lélio e Lina], porém em outro registro e outro acabamento” (Ibid., p.
150).
23
Ibid., p. 152-153.

220
homem volúvel e instável ao homem maduro, que escolheu conscientemente
o que quer e para onde ir”, que culminam na busca de transcendência junto a
Lina (“encontro dos impossíveis, do Sol com a Lua”), guardam o seguinte
aspecto simbólico:

(...) uma dança cósmica que se articula com uma base de profundo
realismo; esses dois planos [o transcendente e o material]
interiorizam as (im)possibilidades de uma sociedade histórica,
patriarcal e estratificada, no seu triste trânsito (tropical!) para o
mundo burguês. O que dá a impressão, a quem escreve sobre ele [o
romance, como prefere Roncari, protagonizado por Lélio], de que
está interpretando a história do Brasil, a passagem do Império para a
República, a aventura do homem cordial, o seu destino incerto e
duvidoso. 24

No caso de Grande sertão: veredas, o percurso do herói constitui busca


de superação que abarca tanto a vida privada e familiar como a vida pública. A
segunda instância é enfocada na Parte 3 de O Brasil de Rosa, que discutiremos
adiante. Para tratar, na Parte 2, dos afetos de Riobaldo e das expectativas que
este alimentou para sua vida particular, Roncari parte dos termos da teoria dos
três amores: “o carnal, de Nhorinhá, o aparente homossexual, erótico e
incestuoso, de Diadorim, e o elevado, de Otacília”. O herói é caracterizado como
sujeito sensual, “carente e impulsivo”, movido pelo coração, além de volúvel –

24
Ibid., p. 193. Para Luiz Roncari, o declínio da ordem vigente no Segundo Império, “em que a acumulação
de bens e riquezas não era a regra principal”, é um tema privilegiado pelo romance de 30 que Guimarães
Rosa trata de modo generalizado e estilizado em A história de Lélio e Lina. A República havia resultado em
“condenação dos homens à sucessão estafante dos trabalhos e dos dias” e em “estabelecimento de uma
humanização e familiarização permissivas e perigosas nas relações com a divindade, como a dos
modernistas” (p. 197). Segundo o crítico, foi devido a isso que, na figuração literária da década de 1930, a
ordem anterior revestiu-se de certa dignidade idealizada. O fato de, em São Bernardo, o “senhor patriarcal
arruinado” Ribeiro aparecer como alguém que “cumpria com sua mulher também uma função civilizatória
junto à população do lugar”, como “homem sábio, político”, que “usava o seu poder de polícia para realizar
a justiça”, expressa “uma visão corrente na época de que o patriarcado rural brasileiro, tanto no Norte
como no Sul, não estava imbuído de uma mentalidade capitalista e formava uma aristocracia respeitável
pela ‘beleza de seu idealismo cristão e das suas idéias morais’, talvez como compensação pelo caráter
perdulário e licencioso, e que só começou a ser substituído muito tardiamente, República adentro”. Com o
Oliveira Vianna dos anos 1950-1951, o crítico caracteriza esse “modo de ver (...) a passagem de uma
mentalidade ‘pré-capitalista’ para outra capitalista nos meios das oligarquias rurais brasileiras” como
percepção de “perda e decadência” (ver nota 93, p. 195-196).

221
em suma, de um macunaimismo “quase explícito”.25 No extremo, em sua vida
amorosa, vive o “impasse entre natureza e cultura”, entre os impulsos
irracionais, “tentações desordenadoras” Diadorim que despertava nele, e o
projeto de “uma vida de superação da ambigüidade e da mistura” junto a
Otacília.26 A associação de Diadorim a Ártemis é argumento na argumentação
segundo a qual a paixão por ela colocava em risco aquilo que Riobaldo havia
projetado para si e cuja via seria a escalada social pelo casamento: “ser um
sujeito livre, que se quer guiar pela própria vontade e superar a sua triste
condição de nascimento”. O herói tem sucesso nesse seu plano, ainda que,
apenas de “modo enviezado” tenha conseguido atravessar as “barreiras
impostas às suas ambições e, enfim, acomodar-se estadonho, chefe fazendeiro-
proprietário”. Nessas formulações, Roncari se vale dos termos da mitologia e do
pensamento aristotélico para desenvolver uma avaliação da trajetória de
acomodação do protagonista que tem vários pontos de contato com a leitura de
José Hildebrando Dacanal, não mencionado na bibliografia de O Brasil de
Rosa.27
Os três paradigmas amorosos vividos pelo protagonista de Grande
sertão: veredas estão relacionados a modelos recorrentes na literatura nacional,
“dominantes na sociedade patriarcal brasileira e praticados amplamente desde
os tempos coloniais”.28 Roncari atribui significação de dimensão brasileira aos
traços alegóricos que participam da composição dessas personagens femininas
tão marcantes na trajetória de Riobaldo. Na notação de suas “atitudes e cores –
o branco de Otacília, o verde de Diadorim e o vermelho de Nhorinhá”, que
alegorizam, respectivamente, a Fé, a Esperança e a Caridade,29 o crítico

25
Cf. Ibid., p. 204-207.
26
“Otacília (...) lhe abria um caminho de vida doméstica, familiar, ordenada, agregadora e integrativa na
sociedade através do casamento; porém, os ‘olhos verdes’ de Diadorim, ao contrário, embaçavam sua
vista, faziam-no perder a perspectiva do que seria o humano e civilizado, aproximando-o da animalização,
‘bestavam’, ao mesmo tempo que o impediam de aspirar ao celeste” (Ibid., p. 216-217).
27
Sobre a importância que Roncari atribui a Aristóteles na obra de Rosa, ver em seu livro, por exemplo, a
nota 14 da página 114 e a página 188. Sobre o estudo de José Hildebrando Dacanal, ver CAPÍTULO 2.2.
28
“Nhorinhá, a mulher da vida sexual (...), as prostitutas ou pobres sustentadas como amantes; Otacília, a
mulher da prole oficial e das alianças familiares (...); e Diadorim, o amor do quartel, o amor do amigo,
transgressivo, com traços tanto de homossexualismo como de misoginia, nascido da atração pela
superioridade máscula, social ou intelectual, e cultivado pelo convívio” (Ibid., p. 257).
29
Ibid., p. 256.

222
enxerga um modo singular de disseminar pelo texto algo do sistema de valores
vinculado às práticas sociais patriarcalistas.
Os correspondentes masculinos dessas representações seriam
“Hermógenes, Joca Ramiro e Zé Bebelo, que trazem nas suas fímbrias um
esboço alegórico da Violência, da Harmonia e da Justiça”.30 Na última parte de
O Brasil de Rosa, concentrada no episódio do julgamento de Zé Bebelo, o autor
estabelece vinculações entre tais personagens e a política na passagem do
Segundo Reinado à Primeira República – sempre tendo como fator de mediação
na interpretação a mitologia greco-romana. A seu ver, o tribunal montado para
julgar Zé Bebelo é o núcleo da alegorização da experiência político-institucional
brasileira no romance, contraparte pública dos direcionamentos observados
antes na vida privada, por meio das relações amorosas:

(...) o episódio do julgamento (...) é o ponto de inflexão de seu


desenvolvimento épico e o momento em que o verdadeiro tema
geral emerge das camadas subterrâneas, para ser encenado e
mostrado por inteiro ao leito: o embate entre civilização e barbárie,
ordem e desordem, instituição e costume, urbanidade e violência,
moderno e arcaico. (...)
O processo do tribunal surgiu, por um lado, como a oportunidade
de representar ao leitor, diretamente, as duas questões mais gerais
e decisivas em discussão no romance: primeiro, a da formação
do herói, como pode alguém se formar num universo social
estratificado e sem padrões civilizatórios minimamente fixados, o que
o levaria a um formar-se e deformar-se constante, num nunca se
acabar; e, segundo, a da estruturação do lugar, as possibilidades e
dificuldades de incorporação (Alceu Amoroso Lima diria assimilação)
das instituições modernas e civilizadas num mundo rústico. (...)
O que o julgamento parecia fundar era uma instituição que
incorporava o costume (e vice-versa), em vez de simplesmente
combatê-lo para erradicá-lo e substituí-lo por uma ordem artificial
vinda de fora. (...) Entretanto, como resultado da experiência do

30
Ibid., p. 257.

223
julgamento, tudo parecia revirar e o sertão tornava-se ainda mais
sertão. De alguma forma, o Brasil era ali também alegorizado,
como um enorme espaço periférico, dominado por relações
ásperas e arcaicas, experimentando as possibilidades de
civilização. 31

Não há grande novidade nos traços brasileiros identificados aí – já vimos


como conflitos do tipo civilização x barbárie ou arcaico x moderno são
freqüentes em interpretações que procuram revelar uma visão do país em
Grande sertão: veredas. Mas há uma singularidade digna de nota na leitura de
Roncari: o sentido que atribui à representação dos processos históricos
reconhecidos na figuração estética. Ao contrário da maioria dos intérpretes de
sua geração, não vê aí a sinalização de uma perspectiva, seja frustrada, seja
estimuladora de esperança, que comporte a possibilidade de transformação
democrática do país, a alternativa de um caminho para a emancipação que se
desvie do conservadorismo patriarcalista – ressalta, ao contrário, a
harmonização mantenedora dos parâmetros norteadores de práticas sociais e
políticas enraizadas, patrocinados por patriarcalismo e mandonismo, e apenas
ajustados aos novos termos da institucionalidade. Outro fator de distinção entre
o trabalho de Luiz Roncari e os de seus contemporâneos: a correlação entre
ficção e história enfoca não só processos históricos gerais nos movimentos do
romance – como, por exemplo, o caráter contraditório ou ambíguo da
modernização brasileira, tantas vezes assinalado. O autor de O Brasil de Rosa
reconhece sobretudo a figuração de fatos e personagens históricos bem
específicos – e é daí que parte para a reflexão sobre o mais geral. Exemplo
disso é o paralelismo que estabelece entre a aliança de Hermógenes e Ricardão
e as articulações políticas ocorridas durante a sucessão de Afonso Pena/Nilo
Peçanha: “Como o Ricardão, que estava por trás do Hermógenes, Pinheiro
Machado passou a manobrar o Marechal Hermes, depois que este saiu vitorioso
contra a campanha civilista de Rui Barbosa”.32 A partir da observação dos

31
Ibid., p. 263-265. Itálico do autor, negritos meus.
32
Ibid., p. 294-295.

224
caracteres dos chefes envolvidos no julgamento de Zé Bebelo, arma o seguinte
quadro:

A partir desse modo de ver e de reconhecer no Grande sertão


também uma teatralização de nossa vida político-institucional, o
momento mais emblemático da Primeira República em que esses
três paradigmas, representantes de três forças distintas, defrontam-
se como diferentes linhas de conduta é o dos anos 1909 a 1914 (que,
de certa forma, reeditam na República os três paradigmas políticos
de O ocaso do Império, de Oliveira Vianna). Nesse período, agudo,
apreciamos o embate entre o militarismo de Hermes da Fonseca (o
Hermógenes?) e o civilismo de Rui Barbosa (Zé Bebelo?); porém,
reinando sobre eles, como a resultante que assimilava a autoridade
e a ação militar de um e a civilidade e o reconhecimento dos limites
da lei de outro, ficava o Barão de Rio Branco, José da Silva Paranhos
Júnior, o “Juca Paranhos”, como era chamado pelos próximos (Joca
Ramiro?) (...). 33

São circunstâncias muito precisas da história política do país, que o


crítico convoca na argumentação em defesa de sua hipótese segundo a qual
o romancista “procurava encenar em sua literatura também a saga de um
povo e seus percalços na busca da contenção e superação da violência, e da
assimilação de regras de vida social e novos costumes políticos, com vistas à
instituição no país de uma civilização”. A análise da cena do tribunal permite-
lhe definir o caráter desse processo pelo qual passou o país. A “flexibilidade
da tradição e o seu processo de assimilação” em um novo costume – o fato
de a ordem patriarcal perpetuar-se mesmo com a instituição de uma
instância mais avançada do ponto de vista civilizatório, o fato de “o Pai-
Patriarca, cujo poder não era imposto, mas dado pelo carisma e pela
tradição” ser “aceito pelo conjunto” – dá o tom conservador do processo
nacional representado: “modernização conservadora, de institucionalização
de um aspecto da vida sob o patrocínio (ou a regência) dos espíritos e totens

33
Ibid., p. 293. Negritos meus.

225
arcaicos enraizados na história (...), a mudança no sentido de seu
revigoramento e fortalecimento”.34 Paralelamente, os comentários sobre o
episódio do julgamento servem de gancho para assinalar o ideário atribuído a
Guimarães Rosa, com ênfase para os espelhamentos com relação a Oliveira
Vianna. A passagem a seguir é exemplo disso.

Era a atitude de Joca Ramiro a verdadeira política, a que dava altura


ao seu condutor, e não era outra coisa que propunha também
Oliveira Vianna numa esfera nacional. Ele considerava a política
seguida por Dom Pedro II como a linha modernizadora mais bem-
sucedida que já se havia experimentado na vida pública brasileira:

[...] O nosso grande problema, como já disse alhures, não é acabar com as
oligarquias; é transformá-las – fazendo-as passarem da sua atual condição
de oligarquias broncas para uma nova condição – de oligarquias
esclarecidas. Estas oligarquias esclarecidas seriam então, realmente, a
expressão da única forma de democracia possível no Brasil; porque
realizada na sua forma genuína, isto é, no sentido ateniense – do governo
35
dos melhores.

As últimas palavras de O Brasil de Rosa (nota 50, p. 339) reafirmam,


com a noção de assimilação, de Alceu Amoroso Lima (ver CAPÍTULO 5, p.
189), a solução conservadora como traço fundamental da visão do país
engendrada na ficção de Guimarães Rosa: a harmonização dos contrários
para a construção da ordem. Esse ponto central no juízo de Luiz Roncari a
respeito de Grande sertão: veredas aporta alguns problemas raramente
postos em evidência. Como a valorização do caráter “senhoril” implicada na
definição do viés clássico da criação rosiana (ver acima, nota 14, p. 215) e o
que parece ser sua contraparte no campo sociopolítico, a salvaguarda de
algo dos valores tradicionais da oligarquia rural. Questões como essas
ficarão mais evidentes no confronto com o livro de Willi Bolle lançado no
mesmo ano de 2004 em que saiu O Brasil de Rosa.

34
Cf. Ibid., p. 293-303. Itálico do autor.
35
Ibid., p. 316-317. O trecho de Vianna citado foi extraído de Instituições políticas brasileiras. Os destaques
em negrito são de Roncari.

226
5.3 – GRANDESERTÃO.BR

A abertura do sétimo e último capítulo de grandesertão.br: o romance de


formação do Brasil resenha os principais tópicos da análise e o modo como vêm
articulados ao longo do livro de Willi Bolle:

Um narrador, contando a partir da margem do “grande caminho da


civilização brasileira” a complexíssima história de sua vida individual e de
sua gente (capítulo I); a construção de uma paisagem que é um mapa
alegórico do país (capítulo II); a visão de dentro de uma instituição, a
jagunçagem, que é representativa de uma sociedade vivendo entre a lei e o
crime (capítulo III); a discussão de um pacto, que simboliza uma ordem
econômica, social e política extremamente desigual (capítulo IV); a
rememoração de uma paixão amorosa que está intimamente ligada à
história coletiva dos sofrimentos e a um relato criptografado sobre o país
(capítulo V); a comparação deste romance com os principais retratos do
Brasil, notadamente os ensaios de formação, sob a perspectiva da “nação
dilacerada” (capítulo VI) – para completar a interpretação falta apenas uma
análise da representação do povo, o que será feito (no presente capítulo)
pelo prisma de suas falas e da invenção rosiana da linguagem. Toda essa
constelação de elementos constitutivos estudada ao longo deste ensaio
sustenta a tese de que Grande sertão: veredas é o romance de formação do
Brasil, idéia que será consolidada aqui através de uma reflexão sobre o
1
romance de formação enquanto romance social.

Como no caso de O Brasil de Rosa, de Luiz Roncari, por tratar-se de


estudo publicado muito recentemente, a apreciação de grandesertão.br ficará
aqui limitada à observação dos principais passos da argumentação, seguindo
percepções de uma primeira leitura.

1
Willi Bolle, grandesertão.br, p. 375. Itálicos do autor.

227
De saída, interessa assinalar uma característica em comum entre a
perspectiva de Bolle e a de Heloísa Starling em Lembranças do Brasil. Ainda
que, como o próprio autor de grandesertão.br faz questão de ressaltar, suas
análises divirjam em pontos importantes, encontramos exacerbada no livro de
2004 uma certa expectativa com relação ao potencial político da obra de Rosa
observável também no estudo publicado poucos anos antes (ver CAPÍTULO 5.1, p.
191-193, 200-201). Como a cientista política, Willi Bolle vê sugeridas na
articulação ficcional perspectivas positivas para problemas do país. Se em
Lembranças do Brasil isto é posto de modo genérico, em grandesertão.br ganha
a concretude de práticas (notadamente, as educacionais) que o crítico encara
como gérmen para se alcançar “um utópico ponto no futuro”. O penúltimo
parágrafo de seu texto deixa bem clara a confiança do autor em tal
possibilidade:

Grande Sertão: Veredas contém (...) a idéia de uma reescrita da


história do Brasil. Para tanto, os fragmentos da história malograda,
sofrida e oculta precisam ser resgatados, para que se possa a partir
deles montar uma nova história. Uma das formas dessa reescrita
seria a reinvenção do português do Brasil. Hoje em dia, podemos
pensar esse projeto também com a incorporação das imensas
possibilidades abertas pelas novas tecnologias de informação e
comunicação. As forças transformadoras da história, contudo, não se
resumem nos meios tecnológicos; mais importante ainda é o espírito
dos que ensinam e dos que aprendem, neste Brasil afora. De modo
exemplar, uma medica e educador, a dra. Calina Guimarães, em
Cordisburgo [cidade natal de Guimarães Rosa], criou a Associação
dos Miguilins: os meninos contadores que divulgam as “estórias” de
Guimarães Rosa no país inteiro, depois de se terem por assim dizer
alfabetizado no contato com sua obra. Com isso, abrem-se
perspectivas radicalmente novas para se aprender a língua do país,
podendo interagir com outros métodos experimentais, como por

228
exemplo, o de Paulo Freire. A esse conjunto de possibilidades alude
o titulo deste ensaio, como a um utópico ponto no futuro. 2

O que faremos aqui não é discutir os termos das convicções humanísticas


de Willi Bolle, mas acompanhar o modo como ele constrói uma leitura de Grande
sertão: veredas que culmina com a afirmação delas por intermédio do romance.
Melhor dizendo: como o crítico, ao mesmo tempo em que localiza na narrativa
um enorme inventário de problemas nacionais, termina por concluir que a obra
tem potencial de intervenção transformadora das circunstâncias que estão na
base dos problemas – em última instância, decorrentes da “falta de um autêntico
diálogo entre a classe dominante e as classes de baixo”.3
Como está dito na sinopse de grandesertão.br transcrita acima, o
movimento da interpretação começa com considerações nas quais se articulam
a matéria vertente da narrativa e a posição do narrador que conta “a partir da
margem do ‘grande caminho da civilização brasileira’ a complexíssima história
de sua vida individual e de sua gente”. Nessa caracterização da narrativa já se
anuncia um traço distintivo da abordagem em relação à maioria das leituras que
se dedicam a evidenciar a visão do Brasil existente em Grande sertão: veredas,
inclusive as de Heloísa Starling e Luiz Roncari: Willi Bolle procura conferir “o
devido peso ao narrador e à forma da narração”,4 conciliando tal viés de
observação da narrativa à tentativa de decifração de alegorias – que, como já
vimos (CAPÍTULO 3), tem sido o método privilegiado pelos intérpretes que
procuram estabelecer vinculações entre o Grande sertão e o Brasil.
A primeira providência do crítico para dar a ver o caráter representativo
do romance em relação à experiência brasileira é deixar bem clara a hipótese
geral da investigação: que a “dificuldade da formação de uma cidadania para

2
Ibid., p. 445-446.
3
Ibid., p. 446.
4
Essa expressão surge numa passagem em que Bolle critica o procedimento de Starling: “(...) a tese de
Heloísa (...) ‘aplica’, de fora para dentro, determinadas teorias políticas ao texto ficcional (...). (...) O que me
parece problemático no método de Heloísa é o procedimento de extrair do romance utópicos ‘gestos
fundadores’ a partir de uma grade teórica externa, preestabelecida, sem estudar a instância mediadora,
precisamente o narrador pactário, através do qual o romancista comunica o seu pensamento político.
Quando se dá o devido peso ao narrador e à forma da narração, descobre-se que os tais gestos
fundadores a rigor não fundam nada (...)” (Ibid., p. 160-161. Ver CAPÍTULO 5.1, p. 194, p. 198-199).

229
todos é expressa também através da forma de um texto difícil”, que “existe uma
correspondência entre um problema político e social – a falta de entendimento
entre classes – e a configuração da obra”.5 O retrato do Brasil que ele pretende
revelar parte de “uma análise da situação narrativa e do trabalho do narrador
(que são a modelização artística do referido problema externo)”.6
Valendo-se de um conceito de Goethe, começa por definir a contribuição
de Rosa à tradição dos retratos do Brasil, formada na primeira metade do século
XX, apresentando Grande sertão: veredas como “reescrita d’ Os Sertões”,
“processo aberto contra o modo como o autor de Os Sertões escreve a
história”.7 Nas confrontações com o livro de Euclides da Cunha, trabalhadas
sistematicamente ao longo do ensaio, pode-se observar uma traço importante no
ponto de visa de grandesertão.br, que se revela sobretudo nos anacronismos
que atravessam os comentários sobre a obra de 1902. Como este: “Quanto aos
sertanejos, que o escritor [Euclides] insiste em chamar de ‘jagunços’, as
passagens preconceituosas e discriminatórias são inúmeras”.8 Ora, a visão dos
sertanejos que Euclides da Cunha traz consigo quando vai fazer a reportagem
sobre a guerra de Canudos só é preconceituosa e discriminatória de um ponto
de vista posterior ao seu momento histórico – e em grande parte devemos
justamente à sua obra, com todos os problemas e contradições que a
constituem, o esclarecimento a respeito do preconceito que permite o
engajamento contra a discriminação. O que quero dizer é que a perspectiva
crítica que vai de Os sertões a Grande sertão: veredas parece operar com uma
lógica de duas medidas: com relação a Euclides, uma exigência rigorosa; com
relação a Guimarães Rosa, extrema boa-vontade. Um ganha a pecha de letrado
que “acaba legitimando – mais uma vez e definitivamente – o aniquilamento de
Canudos”, autor de uma obra-prima justificadora de “um inevitável crime
fundador, em nome da modernização do país”; o outro fica como visionário que
“desenvolveu um projeto que ultrapassa o horizonte da ‘obra literária’: a utopia

5
Ibid., p. 17, p. 21.
6
Ibid., p. 22.
7
Cf. Ibid., p. 23-35. Nesse trecho, o autor apresenta a noção goethiana de “reescrita” e a tradição de
retratos do Brasil a que se reporta.
8
Ibid., p. 37.

230
de uma língua emancipada, fazendo entrever amplas possibilidades históricas
de transformação”.9 Essa dicotomia manifesta, já nos passos iniciais da análise,
uma intencionalidade por parte do crítico: conferir a Grande sertão: veredas a
dimensão de ficção-solução – um dos papéis de Os sertões na estrutura da
interpretação é salientar esse caráter do romance de Rosa por oposição, já que
o livro de Euclides estaria mais para ficção-problema. Em síntese, o que me
parece revelador no modo como Willi Bolle investe na comparação entre as duas
visões do sertão – e do Brasil – é o fato de, ao tratar de Os sertões, ser muito
atento ao viés de legitimação do estado de coisas vigente que se expressa na
forma textual, ao passo que, diante de Grande sertão: veredas, mostra-se
sempre propenso a sublinhar as possibilidades de alteração dos rumos
norteadores de nossa história, que vê sugeridas na maneira como se arma na
narrativa a representação dos processos vividos. O traço de anacronismo na
abordagem de Os sertões chama atenção para isso. Toda ela converge para
“questões estruturais mal resolvidas no livro de Euclides – o modo de narrar, a
figura do narrador e o problema moral”.10 Mal resolvidas de que ponto de vista?
Daquele que aposta que essas questões manifestas no nível formal –
expressões de posicionamento, com relação a problemas sociais e políticos, de
escritor aliado ao status quo – ao serem “radicalmente reelaboradas” na escrita
de Rosa ganham forma que corresponde a uma espécie de solução, que em sua
sugestividade literária constituem passo positivo no sentido da formação do país.
Ainda no primeiro capítulo de seu livro, Bolle apresenta o narrador de
Grande sertão: veredas em termos que valorizam a reescritura da história a
partir da herança euclidiana, e conferindo posição central ao “problema da
heterogeneidade da ‘cultura brasileira’”:

9
Ibid., p. 38-45.
10
Ibid., p. 39. Tais problemas identificados no livro sobre Canudos encontram-se referidos no seguinte
parágrafo: “Por um lado, um ensaio científico, ou parcialmente científico, fortemente preconceituoso; por
outro lado, uma narrativa épica, em que os ‘jagunços’ são estilizados em heróis tragicamente extintos.
Elogiar essa dupla poética como uma qualidade estética é problemático, pois, em termos retóricos, ela
representa uma moral dúplice. (...) O narrador d’Os Sertões apresenta-se como sincero. Mas que
sinceridade é essa que denuncia nos soldados a prática da degola e não investiga o intelectual que os
conclamou para a guerra?” (Ibid., p. 38).

231
Na conversa entre o narrador sertanejo, o velho fazendeiro e ex-
jagunço Riobaldo, e seu visitante, um jovem doutor da cidade, são
tematizados as diferenças, os conflitos e os choques culturais, mas
também as interações, os diálogos e o trabalho de mediação. O
narrador rosiano se mantém disponível num estado de transição
entre as diferentes mentalidades e linguagens: a sertaneja e a
urbana, a coloquial e a erudita, a oral e a escrita. Sua liberdade de
trânsito, seu jogo entre aproximação e distanciamento, e sua ironia
se expressam de várias formas. 11

O que Bolle destaca em seguida é o recurso à ironia, que se verifica em


três fatores do texto: 1) tom da narrativa, 2) construção da situação narrativa e 3)
auto-ironia do narrador.12 Segundo o crítico, a forma estética que congrega tais
elementos forjados em matriz irônica contém em si uma sugestão para se lidar
com experiências graves do país; e o que ele ressalta são menos os possíveis
traços problemáticos dessa “proposta” encarnada no narrador de Grande sertão:

11
Ibid., p. 39-40. Itálico meu. O “trabalho de mediação” é uma preocupação decisiva na leitura de Willi
Bolle, como veremos adiante.
12
1) “Conforme o sentido etimológico de eironeia (‘fingida ignorância’), o narrador assume desde o início
uma atitude humilde (...). Por outro lado, ele tece reiterados elogios ao seu interlocutor (...). Essa situação
narrativa do ‘simples’ sertanejo perante o doutor da cidade pode ser interpretada, alegoricamente, como um
diálogo imaginário do romancista com os letrados que o precederam – antes de mais nada, com o próprio
autor d’Os Sertões – e os que virão depois. Através dos apelos feitos pelo narrador ao interlocutor (...) o
romancista solicita a colaboração ativa do leitor.”
2) “Um segundo elemento irônico está na construção da situação narrativa em forma de ‘um monólogo
inserto em situação dialógica’ [o trecho citado entre aspas remete a um artigo de Roberto Schwarz (ver
Capítulo 1.1)]. A ironia está no fato de o sertanejo ser dono absoluto da fala, enquanto o doutor da cidade
fica reduzido ao papel de mero ouvinte. Assim, a situação narrativa em Grande Sertão: Veredas configura-
se como o exato oposto do ensaio historiográfico de Euclides, em que o letrado enquanto representante da
elite modernizadora monopoliza o discurso. A inversão dos papéis costumeiros é um estratagema de
Guimarães Rosa para chamar a atenção sobre o desequilíbrio de falas entre as forças sociais. O seu
narrador sertanejo, note-se bem, não é nada ‘simples’, mas uma pessoa que conhece muito bem a
gramática e a retórica, uma figura altamente elaborada, um jagunço letrado. Sob a rude aparência
manifesta-se uma inteligência aguda, realizando o trabalho de mediação mais sutil já inventado entre a
cultura letrada e a cultura popular.”
3) “A terceira forma de ironia é a auto-ironia do narrador. Na base de sua fala está um constante
questionamento do próprio narrar (...). Estabelece-se assim uma instigante tensão entre o tempo narrado –
do jagunço Riobaldo enquanto personagem que vive a história – e o tempo da narração: o ex-jagunço e
atual fazendeiro Riobaldo que relata a história. Com esse narrador, que ensina a duvidar das próprias
certezas, a escutar e a aprender com a fala do homem do povo, e a examinar criticamente a feitura do
próprio discurso, Guimarães Rosa proporciona uma profunda reflexão sobre o modo de escrever a história”.
(Ibid., p. 40-41. É meu o destaque em negrito). Nesse passo, sem mencionar o estudo de Walnice
Nogueira Galvão, Bolle reflete sobre questões que já estavam no horizonte de As formas do falso: o
“recurso de louvar o preparo do outro”, a “sonsice cabocla que ‘esconde o leite’” e a “faceirice do bom
narrador” (ver CAPÍTULO 3.1, p. 120-121).

232
veredas do que o caráter e o potencial transformador (pela via da “conversa”
entre classes) atribuído ao resultado da narração.
Feitas essas considerações genéricas sobre o narrador e sobre algumas
características de seu relato, Bolle parte para a análise da “construção de uma
paisagem que é um mapa alegórico do país (capítulo II)”. Aí se arma uma
hipótese que, aparentemente secundária no conjunto da interpretação, dialoga
diretamente com a hipótese principal. A explanação rememora os esforços da
literatura brasileira para fazer o mapeamento do território nacional – tomando
por base formulações de Flora Süssekind (O Brasil não é longe daqui, 1990) – e
termina por concentrar-se no contraste entre “os pressupostos e procedimentos”
com os quais “Euclides da Cunha e Guimarães Rosa apresentam o sertão para
seus leitores”, de modo a “transformá-lo em representação do Brasil”.13 O sertão
rosiano aparece então como forma de pensamento alinhada com os termos pós-
modernos vigentes na época em que o crítico escreve:

Perder-ser no Grande Sertão é tão importante quanto acertar o


caminho. (...)
O sertão aparece aqui como labirinto, lugar por excelência do se
perder e do errar.
(...)
(...) os principais procedimentos de uso ficcional da geografia por
parte do romancista: as técnicas de fragmentação, desmontagem,
deslocamento, condensação e remontagem.
(...)
As errâncias do protagonista Riobaldo pelo labirinto do sertão e
sua reconstrução na memória do narrador desenham o mapa de uma
mente mítica, individual e coletiva, que é um retrato criptografado do
Brasil.
(...)

13
Cf. Ibid., p. 48-52.

233
A fragmentação, que é uma das características gerais do
discurso labiríntico, é em Grande Sertão: Veredas um procedimento
construtivo básico. 14

A mais evidente aproximação com a contemporaneidade em


grandesertão.br é a idéia de que a narração se articula como um hipertexto,
congregando diferentes discursos numa espécie de rede. Na opinião de Bolle,
Rosa seria um precursor da internet.

O labirinto é o hipertexto das eras arcaicas, sendo que


Guimarães Rosa, no limiar da era eletrônica, teve a intuição do meio
tecnológico novo. Ao escrever como o Sertão, de modo não-linear,
não-seqüencial, mas de forma associativa e transitória, ele construiu
(...) uma rede de redes temáticas, um hipertexto – que,
significativamente se encerra (encerra?) com o signo do infinito. A
errância do protagonista e a organização labiríntica do saber por
parte do narrador são viagens através de um espaço enciclopédico, o
Grande Sertão: Brasil, por meio de trilhas ou links, que são as
unidades de conexão do hipertexto. A especificidade do hipertexto
rosiano (...) está na narração-em-forma-de-rede. Com essa forma,
Guimarães Rosa antecipa o princípio estratégico que fundamenta a
construção da internet: uma rede, que evita um centro hierárquico
para propor rotas múltiplas de comunicação. Ao transitar por
intermédio do seu personagem-narrador por centenas de discursos
de outros personagens e outros autores, o romancista torna-se o
arquiteto de um espaço informacional. Uma tradução experimental do
título da obra para a atual língua universal seria Grande Sertão:
Network.
(...) Grande Sertão: Veredas é um website dedicado ao estudo dos
discursos sobre o Brasil15

Essa analogia interessa aqui por constituir expressão da confiança do


crítico no potencial de comunicação de conhecimentos sobre o Brasil que seria
14
Ibid., p. 65-84. Itálicos do autor. São meus os destaques em negrito.
15
Ibid., p. 88-89. Itálicos do autor.

234
inerente ao romance. E também no conseqüente potencial de esclarecimento do
leitor por meio dessa mídia que é a literatura.16 No caso de Grande sertão:
veredas, a singularidade do conhecimento e esclarecimento proporcionados
residiriam na diversidade das “redes temáticas” imbricadas na narração (nos
extremos, o discurso do poder e as falas do povo) e no fato de esses “códigos
culturais” distintos entrarem em diálogo, na articulação narrativa, graças ao
trabalho de mediação realizado pelo narrador. A seqüência do estudo contempla
esses três dados: discurso do poder, mediação e falas do povo.
A relação do protagonista-narrador com a retórica do poder é analisada
em dois capítulos sucessivos, dedicados ao sistema jagunço e ao significado do
pacto com o demônio. Mais uma vez, a interpretação tem por ponto de partida a
comparação com Euclides da Cunha: tanto em Grande sertão: veredas quanto
em Os sertões, a matéria histórica é a guerra no sertão, o que faz dos livros,
segundo Bolle, “retratos do Brasil sob o signo da violência e do crime”. Seguindo
a linha argumentativa já mencionada, o crítico apresenta a reescrita de 1956
como desmontagem inquestionavelmente válida da construção de 1902 – da
“versão tendenciosa e arbitrária” de Euclides a propósito de Canudos. A seu ver,
o precursor de Guimarães Rosa colaborou para lançar sobre os sertanejos
pobres o estigma da inferioridade, prestando serviço à legitimação da força de
perpetuação dos poderosos. O contraste com Os sertões serve para reafirmar o
potencial de esclarecimento de Grande sertão: veredas.

O romancista [Guimarães Rosa] move, por assim dizer, um processo


contra o ensaísta-historiógrafo [Euclides da Cunha], em nome da
autenticidade da língua e da verdade dos fatos. A história é narrada
de forma que o leitor compartilhe com o protagonista a iniciação ao

16
Willi Bolle, respondendo a perguntas ao fim da mesa-redonda “País de Rosa” – da qual participaram
também Luiz Roncari e Heloísa Starling (Seminário Internacional 50 anos de Grande sertão: veredas e
Corpo de baile - 15 de maio de 2006, Instituto de Estudos Brasileiros/Universidade de São Paulo) –,
ressaltou que o enfoque da literatura como mídia é fundamental em sua apreciação da coesão entre
proposta literário-formal e posicionamento político de Guimarães Rosa. Segundo ele, no “projeto” do
escritor, as duas instâncias fundem-se numa só, e o caráter de meio de comunicação que tem literatura é
condição para a intervenção intencional do autor no espaço público, com uma linguagem que é alternativa à
linguagem dos políticos. (Ver outros comentários sobre essa mesa-redonda na nota 1 da CONCLUSÃO, p.
256).

235
mundo jagunço, que é como a aprendizagem de uma língua, em que
se trata de aprender e reaprender o significado da palavra “jagunço”
no contexto político, social e econômico do Brasil. 17

Para explicitar a existência, no romance, de uma “reflexão crítica” sobre a


instituição da jagunçagem – fator central para a compreensão do fenômeno da
violência e do crime no país, assim como do funcionamento do sistema de poder
entre nós – a análise de Willi Bolle assume a forma de “resumo topográfico”.
Rastreando as andanças do jagunço Riobaldo, o intérprete procura mapear a
“paisagem política” atravessada, num percurso dividido em três estágios.
1) Numa fase introdutória (correspondente ao trecho inicial do romance –
até o momento em que o relato passa a seguir a cronologia dos fatos vividos), a
“informação específica sobre o fenômeno da jagunçagem” oferecida inclui a
apresentação do sertão como “espaço que serve de asilo ou couto aos
bandidos” e o esclarecimento do sentido de que se revestem as disputas entre
bandos: “O elemento básico (...) é a questão moral, ou seja, a luta do Bem
contra o Mal, sendo que, no universo ambíguo de Guimarães Rosa, o jagunço
pode servir tanto a uma quanto à outra causa”.18
2) Segue-se um processo de iniciação ao universo jagunço
(correspondente ao período em que Rioblado reside com Selorico Mendes até o
início da luta contra Hermógenes e Ricardão). Surge, então, um “quadro
romantizado” dos bandos, sobretudo nas histórias cheias de idealização que o
jovem protagonista ouve do padrinho. Contrasta-se com isso, na seqüência, o
contato efetivo que tem com a brutalidade da jagunçagem, seja do lado da
“situação” (o bando liderado por Zé Bebelo), seja do da “oposição”, seja em meio
à luta interna desencadeada pelo assassinato de Joca Ramiro.
3) Na última parte do enredo (período da chefia de Riobaldo), uma
sucessão de episódios remonta à gênese do sistema jagunço. Aí consolida-se a
17
Ibid., p. 92. Bolle procura mostrar que a “deturpação” do sentido da palavra jagunço “faz a balança do
juízo pender para o lado desfavorável aos canudenses”, numa inversão do sentido político da ação dos
sertanejos organizados sob a liderança de Antonio Conselheiro: “Jagunços passaram a ser, para ele
[Euclides], os habitantes de Canudos – que (...) não eram chefiados por mandões (...) e, em vez de
sustentar a política abusiva dos pontentados locais, desvencilharam-se deles em busca de um projeto
político alternativo” (Ibid., p. 93-97).
18
Cf. Ibid., p. 101-104.

236
desidealização da vida de jagunço, prevalecendo “uma visão de mundo
desencantada e prosaica, em que a instituição da jagunçagem é vista no seu
imbricamento com o problema social”. Primeiro, em cenas que antecipam a
tomada de poder por parte do protagonista, o jagunço aparece em sua condição
de integrante da plebe rural, mão-de-obra disponível. Depois, nas histórias dos
“miseráveis do campo” que o novo chefe convoca, e que perfazem “uma viagem
da miséria à jagunçagem e de volta da jagunçagem à miséria”.19 A brutalidade
internalizada pelo chefe Riobaldo, que age com autoritarismo e violência, é
condição para lhe assegurar a possibilidade de mando, pela qual optou com o
recurso ao diabo, como alternativa ao ciclo vicioso ao qual também estava até
então preso. Diante dessa ascensão social do protagonista, o crítico pergunta-se
se a história narrada é mesmo a da extinção de um jagunço, “de um ex-jagunço,
como nos quer fazer crer o narrador”, ou se, pelo contrário, ela não apresenta o
próprio modo como se engendra e se sustenta o sistema de poder em que se
insere o jagunço, determinante em nossa história.
Nesses passos, pode-se observar como a interpretação de Bolle vai, sem
muito alarde, da observação de circunstâncias próprias ao período histórico, e
ao universo específico da ação, à reflexão sobre a experiência nacional que
resulta na indicação de um certo caráter de permanência de determinados
processos. A análise da gênese do sistema jagunço caminha para a apreciação
de “suas projeções para o tempo presente”, que parece ser o que mais interessa
ao crítico. Tanto a passagem em que se dedica a esmiuçar a retórica desse
sistema quanto aquela que pretende esclarecer como ele “se reproduz e se
regenera com a incorporação de novos elementos” convergem para uma
avaliação do modo como o romance representa amplamente “o funcionamento
das estruturas de poder no país”.

O sistema jagunço, enquanto instituição situada ao mesmo tempo na


esfera da Lei e do Crime, deixa de ser um fenômeno regional e
datado, para tornar-se uma representação do funcionamento atual
das estruturas do país.

19
Ibid., p. 113.

237
(...) É por meio do enfoque da instituição jagunçagem como sistema
discursivo-retórico que o romance se torna uma refinada modalidade
ficcional da historiografia das estruturas.
(...)
Ao focalizar o sistema jagunço, Guimarães Rosa não retrata um
poder paralelo, mas o poder.
(...)
A jagunçagem é apenas uma instituição extrema, que lhe permite
falar, alegoricamente, do sistema político como um todo. 20

A estratégia empregada para apresentar o discurso da jagunçagem como


sistema discursivo-retórico de tamanha abrangência é “o enfoque da relação
entre o discurso da jagunçagem e o discurso mediador do narrador rosiano, que
faz parte dessa estrutura, ao mesmo tempo em que se distancia criticamente
dela”.21 Se, por um lado, Riobaldo comenta e contesta os discursos dos chefes
(chamando atenção para os interesses disfarçados em suas falas), por outro
lado ele mesmo, quando chefe, passa a ser um dos porta-vozes do sistema (e,
no momento da narração, busca justificar sua atitude). Na avaliação de Bolle,
isso incentiva o leitor a examinar criticamente o próprio discurso do narrador, o
que ocorre porque há, no romance, uma instância metanarrativa, situada “acima
dos interesses de Riobaldo como dono do poder”, operando sob forma de suas
observações autocríticas e das “montagens”, “comandadas pelo próprio
Guimarães Rosa”, as quais põem em contraste com a retórica dos poderosos
outros registros discursivos.22
Bolle procede da mesma maneira ao explicar a utilização do mito na
composição de Rosa. Sempre com o enfoque direcionado para a atitude do
narrador, primeiro, identifica os recursos com os quais a narrativa figura os
problemas (os elementos míticos são necessários à reprodução de um “discurso
20
Ibid., p. 117, p. 125, p. 194. Itálico do autor.
21
Ibid., p. 124. Itálico do autor. Com essa hipótese, Willi Bolle parece retomar algo das indicações de
Antonio Candido a respeito da importância da perspectiva do narrador (ver CAPÍTULO 3, p. 110), embora não
mencione o ensaio em que se encontram tais formulações. E, também sem remeter ao trabalho
predecessor, ao longo de sua explanação sobre as características da retórica jagunça, aponta como fator
crucial a dissimulação que, como vimos, estava no horizonte da reflexão de Walnice Nogueira Galvão em
As formas do falso (ver CAPÍTULO 3.1, p. 119).
22
Ibid., p. 124-134.

238
essencialmente mitificador e dissimulador”), depois defende que a configuração
em que entram tais recursos tem potencial de esclarecimento dos fatores que
estão na gênese do problema (aquele discurso é reproduzido “para que o
narrador possa revelar como a violência institucionalizada” o articula).23 “O grau
de reflexão e auto-reflexão do narrador de Grande Sertão: Veredas (...)
proporciona ao leitor um insight detalhado da máquina do poder e de seu
funcionamento”.24 A questão do mito é, aliás, um bom parâmetro para
observarmos o quanto a perspectiva de Bolle difere da de Luiz Roncari. Vimos
que, para este, a incorporação de referências míticas, sobretudo da tradição
greco-romana, está relacionada à elaboração de uma estética clássica
(“senhoril”) e à visão do Brasil pautada pelo conservadorismo crítico (ver
CAPÍTULO 5, p. 190, e CAPÍTULO 5.2, em especial p. 214-215). A leitura de Willi
Bolle também se propõe a considerar esse tipo de signo à luz da história do
país, mas suas conclusões e procedimentos analíticos são bastante divergentes
dos de Roncari. Enquanto este preocupa-se em elucidar a disseminação dos
mitos ao longo de todo o relato, o outro concentra-se no significado do pacto
com o Diabo na estruturação do romance. Roncari vê aí um evento que
simboliza e marca uma mutação do protagonista no contexto de uma ordem
social específica (a sociedade rural brasileira da Primeira República). Isso figura,
no conjunto da interpretação, como dado que confirma a hipótese de que o
escritor manifesta, em seu projeto literário, um ideário mobilizado por princípio
de harmonização ou assimilação – o qual desemboca na expectativa de
manutenção, ou de recuperação, de uma ordem calcada em parâmetros que, da
perspectiva de Bolle, servem à dominação. O autor de grandesertão.br enxerga
o pacto como alegoria do falso contrato social que funda o país e se reproduz
por sua história. O episódio, a seu ver, revela a “ordem político-social vigente”:
“a relação entre senhores e escravos, que pode ser considerada a lei fundadora
do Brasil”.25 Além disso, o trato com o demônio consta em sua análise como fato

23
Ibid., p. 139.
24
Ibid., p. 193.
25
Ibid., p. 173-174. Ver também as observações de Roberto Schwarz a respeito do uso do mito por
Guimarães Rosa (CAPÍTULO 1.1, p. 53-55).

239
do enredo que participa do engendramento do narrador pactário, estrutura
decisiva para o caráter esclarecedor – e para o potencial político transformador –
identificado no romance.
Uma primeira versão da leitura de Willi Bolle para o episódio e as
decorrências do pacto foi apresentada em 1998 (ver CAPÍTULO 3, p. 103-106). O
capítulo de grandesertão.br que revê essas considerações iniciais traz, de saída,
um acréscimo importante a elas, explicitando a questão da “confiabilidade do
narrador”: “Até que ponto se trata de um narrador confiável ou de uma
encenação da credibilidade? Qual é a razão de ser do narrador, que ora se
apresenta como integrante do sistema, ora como independente?”.26 Ressurge a
questão da dissimulação, tratada com um enfoque próximo do de Walnice
Nogueira Galvão (ver nota 21, acima). E, de novo, Euclides da Cunha é
convocado, agora para que seja conferido realce à constituição e à posição do
narrador de Grande sertão: veredas, que o crítico identifica como uma vantagem
do livro de 1956 em relação à obra precursora. Segundo Bolle, o autor de Os
sertões não foi capaz de “elaborar de modo sistemático e abrangente uma
reflexão sobre a posição do intelectual no campo intermediário entre o sistema
de poder e os excluídos.” Nesta frase se manifesta o que parece ser um
pressuposto importante na avaliação construída em grandesertão.br: o crítico se
mostra convicto de que o ofício do intelectual implica, por definição,
desempenhar a função de mediador cultural, e toda a sua interpretação do
romance de Guimarães Rosa converge justamente para a comprovação de que
o escritor, com seu romance, através sobretudo do narrador que cria, tem
sucesso em tal empreitada.
Para demostrar que a construção da credibilidade do narrador concilia
“estratégias da retórica do poder e auto-análises críticas”, misturando
“elementos de dissimulação, próprios de um agente do poder”, a “elementos de
confissão e de crítica” que visam não só à “expiação da culpa pessoal” mas

26
Ibid., p. 141-142.

240
também à “compreensão das estruturas sociais e políticas”,27 Bolle analisa dois
níveis do discurso de Riobaldo:
1) A prática do discurso do poder, exercitado na ocasião em que o
protagonista ocupou o posto de chefe de jagunços. No contato com Zé Bebelo,
Riobaldo havia assimilado a “arte de lutar com palavras”, o “know-how dos
donos do poder”, que inclui a capacidade de se amoldar às transformações da
situação política. A habilidade mais decisiva que o personagem desenvolve
então, e que colabora para sua promoção de raso jagunço a chefe do bando –
garantindo a inserção na classe dos proprietários – é a dissimulação,
“procedimento-chave no discurso do poder”. Ele é empregado para a tomada da
chefia, “preparada por um discurso duplo”, para o “recrutamento compulsório” de
mão-de-obra guerreira e para lidar com um “discurso de contestação”,
enunciado por alguns homens que decidem desertar do bando. Especialmente
nos dois últimos casos, Willi Bolle identifica uma função genérica que a
“camuflagem retórica” desempenha na estrutura de poder do país: “a retórica da
simulação é usada para fazer com que o sistema jagunço apareça como
instrumento por excelência para resolver os problemas sociais”, ou para encobri-
los. Em sua avaliação, com a “montagem” de “fragmentos do discurso do poder”
realizada por Guimarães Rosa, com a visão desses exercícios da “arte de
enganar o povo”, “o leitor acaba obtendo uma imagem da estrutura política e
social vigente”.28
2) A narração da história para o interlocutor. Com relação a esse nível da
narrativa, novamente o que fica ressaltado é uma espécie de superação que o
narrador rosiano representa em face do de Os sertões, e a perspectiva
esclarecedora que ele abre para o leitor. A argumentação é baseada na teoria
da retórica, meio utilizado para explicar a “construção da credibilidade por parte
do narrador”, que, na percepção do intérprete, conta com “três estratégias: a
humildade, a crítica dos desmandos do poder e a religiosidade”. Se o discurso
do chefe Riobaldo se caracteriza como dissimulado, demagógico – ars fallendi,

27
Ibid., p. 175.
28
Cf. Ibid., p. 174-181.

241
nos termos da retórica de Quintiliano lembrados por Bolle –, o do narrador
Riobaldo é dialético, conjugando a “arte da persuasão” (“primado dado à
construção da credibilidade”, manifestação de dono do poder) à “ciência de falar
bem” (“a busca da verdade e da justiça, que caracteriza o homem justo e bom”.
Diante desse “narrador dialético”, a “questão básica”, para Willli Bolle, é “como
avaliar essa auto-acusação e confissão do narrador pactário”.29 Eis sua
avaliação:

O fato de o narrador ser pactário é também um estratagema para


justificar que ele passe a trair o sistema dominante e a revelar seus
segredos. Em vez de denunciar ou legitimar, ele mostra como se
fabricam discursos de denúncia e de legitimação. (...) A capacidade
do narrador rosiano de tornar transparente a função diabólica da
linguagem é, no sentido original da palavra, uma qualidade luciférica.
Esboça-se assim uma afinidade eletiva entre a arte de narrar de
Guimarães Rosa e o satanismo de Baudelaire, o poeta no auge do
capitalismo, cuja posição foi caracterizada por Walter Benjamin
nestes termos:

[...] Era um agente secreto – um agente da insatisfação secreta de sua


30
classe com a sua própria dominação.

Tal atuação do narrador seria reflexo da experiência do próprio


Guimarães Rosa, reflexo da intencionalidade do projeto literário-político do
escritor-diplomata que

(...) serviu a governos tão diferentes como o de Getúlio Vargas,


Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart,
Castello Branco... O romancista que conhecia intimamente o
funcionamento da máquina do poder e todos os segredos da retórica,

29
Cf. Ibid., p. 184-188. Note-se que, ao comentar as estratégias de que o narrador se vale para a
construção da credibilidade, Bolle confere pouca ênfase ao fator dissimulação, implícito na estratégia
também tríplice que Walnice Nogueira Galvão apontou em As formas do falso (ver nota 21, acima).
30
Ibid., p. 194. Itálico meu. O trecho de Benjamin transcrito é do ensaio Paris do Segundo Império.

242
usou seus conhecimentos para contar, a partir dessa perspectiva de
dentro, criptograficamente, como se articula a política do país.31

Esse trecho de grandesertão.br afirma com maior empenho


argumentativo uma hipótese já enunciada por Bolle em seu ensaio de 1998: que
Guimarães Rosa lançou mão de seu conhecimento prático das estruturas de
poder para compor “um retrato do Brasil, falando em código cifrado dos
segredos do poder”.32 Claro que o que nos interessa aqui não é discutir um
suposto engajamento do autor, qualquer que seja ele, mas é importante, do
ponto de vista do andamento da crítica literária brasileira, ressaltar que tanto
Willi Bolle quanto Heloísa Starling e Luiz Roncari procuram associar o
posicionamento político que atribuem a Rosa à visão do Brasil que encontram
em sua obra. Nenhum dos três se limita a arregimentar apenas declarações do
ficcionista e fatos de sua vida para defender suas hipóteses (passam longe
daquela modalidade de interpretação que centra a explicação da obra na
biografia do artista), o que fazem é canalizar a atenção crítica para o fato de que
a representação da experiência brasileira numa obra como Grande sertão:
veredas é mobilizada e explicável pelo ideário de seu autor, qualquer que seja
ele. Como se a obra não pudesse – para usar um termo empregado por Willi
Bolle – trair o autor.
Voltando a grandesertão.br. Nas palavras de Bolle, Guimarães Rosa,
assumindo plenamente seu papel de intelectual, de mediador no discurso entre
classes, seria um “preceptor do Brasil”. Seu romance conduz ao conhecimento
de fatores determinantes na história do país: na fala do narrador pactário

31
Ibid., p. 177. O crítico convoca aí a biografia do autor como dado para respaldo de sua argumentação.
Numa resenha sobre grandesertão.br, o poeta-diplomata Felipe Fortuna questiona a visão de Bolle: “(...)
lamentável é comentar que Guimarães Rosa conhecia as ‘artimanhas da demagocia’ e das ‘declarações
engambeladoras’ por ser diplomata, com sua adaptabilidade ‘a serviço do poder’. A ignorância da biografia
explica tanta leviandade: Guimarães Rosa foi um digno cônsul brasileiro quando concedeu numerosos
vistos para judeus, contrariando algumas instruções governamentais, no momento em que a Alemanha
nazista fechava o cerco”. (Felipe Fortuna, Armadilha de Rosa. Época, nº 341). A contestação de Fortuna
chama atenção para o recurso à autoridade do autor na argumentação de Bolle. Mas o faz reafirmando o
mesmo recurso. Melhor dizendo: o resenhista não põe em questão o procedimento interpretativo que toma
os gestos efetuados pelo artista no espaço público em pé de igualdade com suas elaborações estéticas –
ao contrário, parte para discutir o sentido das ações de Guimarães Rosa como se essa polêmica fosse
crucial para o juízo a respeito de sua obra.
32
Willi Bolle, O pacto no Grande Sertão — Esoterismo ou lei fundadora?. Revista USP, nº 36, p. 44.

243
revelam-se as artimanhas dos donos do poder, enquanto a figura de Diadorim
funciona como medium para o retrato do povo. Observando as funções que essa
personagem desempenha na narrativa, o crítico afirma que ela é expressão da
“paixão artística” do escritor. Por meio da história de “uma paixão que questiona
radicalmente a identidade do protagonista, Guimarães Rosa desperta o leitor
para a compreensão da ‘história como história mundial do sofrimento’”.33

Na primeira parte, Diadorim foi para Riobaldo a figura iniciática que o


trouxe para o meio dos jagunços; na segunda parte, onde se aguçam
os problemas político-sociais, ele/ela se confunde cada vez mais com
esse meio, ao passo que Riobaldo, na medida em que avança na
carreira do poder, vai se afastando do povo.
(...)
A paixão amorosa de Riobaldo por Diadorim é o medium, através do
qual o romancista expressa seu amor pelo povo sertanejo. (...) essa
figura representa também a paixão do escritor pela língua e pela
invenção.
Diadorim é o medium artístico que faz com que a história da
paixão amorosa de Riobaldo por Diadorim não seja apenas um ato
de memória afetiva individual, mas também um retrato da sociedade,
através de um profundo mergulho na língua. (...) o trabalho de luto do
narrador pela pessoa amada faz com que se construa, através de
uma linguagem inovadora, um símile da vida, (...) com tristezas e
alegrias, a história do povo.34

Depois da apresentação de Diadorim como fator de mediação entre a


perspectiva dos donos do poder e a experiência do povo, o estudo de Willi Bolle
detém-se na representação do povo propriamente dita. Isso é feito em dois
movimentos sucessivos na análise. Primeiro, a comparação dos “meios da
ficção” com categorias conceituais da história social e política formuladas nos
33
Cf. Id., grandesertão.br, p. 227-230.
34
Ibid., p. 209, p. 224-225. Também nesse ponto, a visão de Willi Bolle contrasta com a de Luiz Roncari.
Embora ambos encarem Diadorim como parâmetro que desperta em Riobaldo a consciência de sua
condição social, Bolle procura identificá-la com o povo, enquanto, para Roncari, ela incorpora para o
protagonista-narrador tudo aquilo que lhe faltava quando criança e que ele procura obter (e obtém), ao
longo de sua trajetória, para desvencilhar-se dos percalços de filho da plebe rural (ver CAPÍTULO 5.2, p. 212).

244
ensaios de formação do Brasil. O objetivo aí é “captar a idéia ou invenção
subjacente à representação do povo e da nação” em Grande sertão: veredas, a
partir da hipótese de que o retrato do Brasil no romance tem seu centro no
problema da nação dilacerada pela falta de diálogo entre as classes sociais.
Seguindo uma indicação de Antonio Candido registrada em O homem dos
avessos, Bolle procura mostrar que “o dilaceramento do narrador e seu modo
despedaçado de narrar são a forma artístico-científica através da qual Grande
Sertão: Veredas expressa o dilaceramento da nação”.35 Vem então uma longa
série de confrontações entre aspectos da visão do Brasil que o intérprete
encontra no texto literário e formulações presentes nas obras de Sérgio Buarque
de Holanda, Caio Prado Jr., Celso Furtado etc. Vejamos rapidamente alguns
trechos, que ajudam a perceber a peculiaridade do conhecimento sobre o país
que o crítico identifica na ficção de Guimarães Rosa.
Na comparação com a “visão amainadora” de Gilberto Freyre sobre o
antagonismo entre senhor e escravo que perpassa a formação do Brasil, a
perspectiva de Rosa é apresentada como “mais radical”: “o antagonismo senhor
versus escravo é incorporado à sua obra discretamente, mas sem
harmonização”. Sem a idealização, presente em Freyre, de um sertão
antiescravocrata, onde a influência da escravidão seria apenas indireta e
remota, o romance tematiza a “servidão inconsciente” dos sertanejos a que se
refere Euclides, que é trazida para o nível da consciência. A “dupla identidade
social” de Riobaldo impele a perspectiva narrativa a um “constante vai-e-vem
entre as classes”, mantendo-se assim uma “meia distância em relação à classe
dominante” que constitui “recurso estratégico de Guimarães Rosa” para encenar
e explicitar o sistema jagunço, cuja função “consiste precisamente em mascarar
o antagonismo entre senhores e servos”. Tal “leitura a contrapelo” da dinâmica
social mostra o funcionamento da “ideologia desse encobrimento”. Na avaliação
de Bolle, o narrador rosiano estaria portanto livre do envolvimento afetivo e
ideológico que se percebe na postura de Gilberto Freyre: enquanto este “valoriza
a ação civilizatória dos senhores de terras e escravos como uma atitude de

35
Ibid., p. 261-264.

245
empatia, Guimarães Rosa mostra o funcionamento da ordem vigente através de
uma distância móvel. É a ótica do grande proprietário, sim, mas com uma
profunda inquietação social (...).36
Segundo Bolle, também com relação aos sertanejos pobres, a plebe rural,
o narrador guarda meia distância. Com isso se constrói no romance um
“conhecimento” a respeito do “contingente de ‘desclassificados, inúteis e
inadaptados’ trazidos para o primeiro plano por Caio Prado Jr.” em Formação do
Brasil contemporâneo, mais próximo daquele proporcionado pelos ensaios sobre
o Brasil com os quais Grande sertão: veredas é comparado. A sociabilidade
inarticulada politicamente, “forma de convívio rudimentar” (para o qual chamou
atenção Maria Sílvia de Carvalho Franco em seu estudo Homens livres na
ordem escravocrata, lembrado antes por Walnice Nogueira Galvão), a
“dispersão da população civil” aparece como homóloga à “forma dispersa de o
romance representar o povo e a mão-de-obra”. Assim, a “apresentação do
‘povo’” corresponde à realidade do andamento da economia nacional conforme a
descrição de Celso Furtado. Willi Bolle lembra que este, em Formação
econômica do Brasil, associa a desarticulação da população à economia de
subsistência, “um estágio ao qual o país sempre volta nos momentos de
recessão”. Neste momento, o autor de grandesertão.br destaca o primeiro ponto
de diferenciação entre a visão do país oferecida pelo romancista e a que se
infere do conjunto de ensaios mencionados na passagem: se Furtado “aposta no
‘desenvolvimento’, Guimarães Rosa retrata um país quase parado (...), focaliza
as estruturas rotineiras, quase imóveis, os problemas cronicamente não

36
Ibid., p. 281-290. Aqui também a avaliação de Bolle diverge da de Roncari. Não tanto com relação a
Gilberto Freyre, cuja visão menos crítica do que apologética da cordialidade o autor de O Brasil de Rosa
considera distinta da do escritor mineiro (Ver CAPÍTULO 5.2, p. 207-208). A divergência é de ordem bem mais
geral, e fica explicita numa contestação de Roncari aos artigos de Bolle publicados na segunda metade da
década de 1990 – tanto o ponto de vista que privilegia o conflito de classes sociais quanto a natureza da
visão do Brasil expressa na obra são refutados: “(...) a tensão dessa representação pode ter fundamentos
mais conservadores do que os sugeridos nos artigos. Por conservador, quero entender uma visão centrada
mais no conflito entre civilização e costumes, ordem e desordem, no plano institucional e familiar (além do
literário), levando em conta a problematicidade da ordem, do que na oposição entre vencedores e vencidos,
opressores e oprimidos, chefes e jagunços” (Luiz Roncari, O Brasil de Rosa, nota à p. 29). As divergências
entre as duas interpretações de Grande sertão: veredas culminam na diferença de sentido final que cada
um dos críticos encontra em Grande sertão: vereda. Enquanto Bolle destaca o desmascaramento de uma
ideologia sustentadora do sistema sócio-político, Roncari fala em “revigoramento e fortalecimento” da
tradição à qual ela se vincula. (Cf. op. cit, nota à p. 300. Ver também CAPÍTULO 5.2, p. 225-226).

246
resolvidos”. Apesar disso, no todo, a interpretação tende a ressaltar mais a
similaridade entre o Brasil de Rosa e o dos ensaístas. O principal ponto em
comum é a configuração do país como “empresa” (nos termos de Caio Prado e
Celso Furtado), “máquina de gastar gente” (expressão de Darcy Ribeiro) que se
constituiu desde a colonização: “De um lado, os poucos que dela se aproveitam,
de outro lado, o ‘material humano’ sendo queimado aos montes: bugre matando
bugre, escravo matando escravo, sertanejo matando sertanejo. É a história de
uma nação se dilacerando.”37

Ao descrever a empreitada de Riobaldo, desde a tomada da chefia


até a batalha final contra o Hermógenes, o romancista coloca em
cena todos os componentes característicos de uma exploração: o
recrutamento à força da mão-de-obra, a resistência dos moradores, a
demagogia para aliciá-los, o problema das deserções, a exploração
“bruta comercial” do ser humano, e o resultado final em termos do
gasto em vidas. 38

O crítico identifica no conhecimento proporcionado pela ficção uma


qualidade específica, radicado na dimensão sensível que a forma ficcional, ao
contrário do ensaísmo no campo das ciências econômica e sociais, pode
expressar: “(...) o drama da mão-de-obra é apresentado pelo romance de
Guimarães Rosa com uma concretude e intensidade humana que, dessa forma,
não se encontra nos ensaios sobre o Brasil”.39
A reflexão recai em seguida sobre uma questão que é central na
avaliação de Willi Bolle sobre Grande sertão: veredas: a postura do intelectual,
do letrado, diante das tensões sociais. A atitude manifesta na criação de
Guimarães Rosa é especificada por meio do contraste com formulações de
Sérgio Buarque de Holanda. O ponto de partida é a contestação do papel
desempenhado pela dicotomia urbano-rural na análise das estruturas políticas e
sociais brasileiras feita pelo autor de Raízes do Brasil, no qual são levados em

37
Cf. Ibid., p. 291-303.
38
Ibid., p. 301-302.
39
Ibid., p. 302. Itálico meu.

247
conta “pares antagônicos” tradicionalmente correlatos a ela (civilização x
barbárie, modernização x atraso). Conforme Bolle, a perspectiva configurada na
ficção de Rosa teria a vantagem de proporcionar uma “compreensão dialética”
das estruturas enfocadas por Sérgio Buarque, distinguindo-se da “visão dualista”
deste e mais próxima da interpretação do país intentada por Raymundo Faoro
em Os donos do poder (que assinala a importância, para a empresa colonial, da
aliança entre aristocracia latifundiária e burguesia citadina). O caráter dialético
da visão de Guimarães Rosa estaria expresso, no nível da estruturação do
romance, no fato de este se articular como “um diálogo entre um sertanejo
letrado e um doutor da cidade”, situação narrativa da qual provém a “diferença
qualitativa” de seu retrato do Brasil em relação ao de Sérgio Buarque de
Holanda. Este “faz questão de contrapor a ‘cultura das cidades’ à ‘civilização de
raízes rurais’” – segundo Bolle, inclusive para “distanciar-se claramente das
antigas estruturas patriarcais” – e caracteriza a primeira como epicentro
simbólico da democratização. Já o ficcionista põe em xeque tal imagem da
Cidade (tanto com a “ponta de ironia” que subjaz ao modo como Riobaldo se
dirige ao seu interlocutor, quanto com o enredo que permite constatar a
“presença do elemento arcaico na modernização”). O posicionamento com
relação ao papel social desempenhado pelos porta-vozes da cultura letrada é
fundamental em ambos os casos. Em Raízes do Brasil, a confiança na “vitória
da civilização urbana” é relativizada pela consciência de que nesta sobrevive “o
germe do velho regime patriarcal”, dada a permanência de fundamentos sociais
e econômicos que permitiram à elite formada na ordem escravocrata manter
seus privilégios. Essa elite constituída pelos bacharéis aparece no livro como
expressão acabada do conservadorismo senhorial contra o qual o autor se
posiciona. Nesse ponto, para Willi Bolle, Rosa se alinha a Sérgio Buarque de
Holanda: os dois “retratistas do Brasil têm em comum o objetivo de ‘exorcizar’ o
elemento arcaico no bacharelismo”. O que os distingue são os “procedimentos”
– ou seja, é a distinção entre fazeres que prepondera: enquanto o historiador
“apresenta o problema evolutivamente [...] (os bacharéis como descendentes
dos senhores rurais), [...)] o romancista constrói um quadro [...] em que as

248
estruturas presentes são escavadas até revelarem seus fundamentos na história
empírica e na história primeva”. Nessa “radiografia do letrado” fornecida pelo
narrador rosiano, o crítico identifica uma expressão de ampla abrangência
temporal, “expressão de toda uma cultura”, e “uma auto-reflexão da civilização
urbana sobre suas violentas contradições”, perpassada pela “expectativa de
uma redenção”: “Trata-se para ele [Rosa] de resgatar os fragmentos de uma
história da violência e dos sofrimentos para impedir que o presente repita
mecanicamente o passado”.40 Ou seja: reafirma-se neste passo da interpretação
de Grande sertão: veredas o compromisso do escritor com um projeto de
transformação da vida no país – que, em outras passagens, é caracterizado pelo
ensaísta como engajamento em prol da solução do problema que é a “falta de
diálogo entre classes”.
Willi Bolle leva adiante a comparação entre os conhecimentos
proporcionados pela leitura do romance e os que são veiculados nos ensaios
sobre o Brasil abordando o papel da aliança entre poder e crime na dinâmica
política brasileira. Mais uma vez, a “diferença qualitativa” que observa entre o
retrato romanesco e os “retratos ensaísticos” é definida por uma especificidade
da forma literária. A singularidade do conhecimento sobre o Brasil proporcionado
pelo romance tem seu epicentro em “um personagem-narrador que foi
empreiteiro do crime” e que, na narração, não se absolve, tornando sensível,
“em cada fibra do seu narrar”, algo da “presença latente da loucura no convívio
entre os homens e até na vida das nacionalidades” à qual alude uma epígrafe de
Raymundo Faoro citada em grandesertão.br.41
O movimento final do livro de Bolle começa na última parte do penúltimo
capítulo, quando é abordada mais diretamente a representação do “povo” em
Grande sertão: veredas. Primeiro, pondo-se à prova a hipótese de que o
romance se faz história criptografada do Brasil, alguns fragmentos da narrativa
são associados a marcos históricos nos quais ocorreu mudança de regime

40
Cf. Ibid., p. 306-320. Talvez fosse interessante se, prosseguindo na comparação com os
posicionamentos de Sérgio Buarque de Holanda, o investimento na possibilidade de uma “redenção”
localizado em Grande sertão: veredas fosse comparado com a convicção da perspectiva de uma
“revolução” existente em Raízes do Brasil.
41
Cf. Ibid., p. 332-334.

249
(proclamação da independência nacional, instituição da república, Revolução de
1930, implantação do Estado Novo, desenvolvimentismo pós-Estado Novo).
Esses períodos relacionados ao livro (os primeiros por serem referências na
memória do narrador-protagonista ou em sua trajetória, os dois últimos por
dizerem respeito ao momento em que a obra foi escrita) são convocados para
esclarecer o modo como a elaboração ficcional revê as transformações dos
conceitos de povo e nação ao longo da história do país. A conclusão é a
seguinte (uma síntese do valor de conhecimento sobre o Brasil que se configura
na estética de Guimarães Rosa reiterado em tantas passagens anteriores):

Os donos do poder jogam com a incongruência entre “povo” e


“nação”, ou seja, com a nação dilacerada, para administrar os
conflitos. A constituição do Estado democrático burguês é, no sentido
literal da palavra, uma ficção fundadora. Por isso mesmo, uma ficção
com alto potencial reflexivo, como Grande sertão: veredas, é
particularmente apta a revelar aquele caráter ficcional.42

Willi Bolle chega a essa afirmativa depois de comentar circunstâncias da


história do país a partir da perspectiva que constrói com base em trechos da fala
em que Riobaldo confronta Zé Bebelo para tomar deste a chefia do bando. As
frases registradas no relato funcionam como motes para a especulação do
crítico, procedimento que se repete no capítulo final (Representação do povo e
invenção da linguagem), quando trechos da narrativa que registram “falas do
povo” são interpretados à luz de dados da experiência brasileira – sempre
culminando por sublinhar o fato de que, em meio à fala do velho fazendeiro
Riobaldo se manifesta, sem distorção idealizadora ou ideológica, vozes da
classe dos sertanejos pobres, a que ele antes pertenceu, “falas sertanejas” que
permitem “montar um retrato do Brasil articulado pelo próprio povo”.43 Esse
encerramento da análise é acompanhado de uma explicitação da visão do
intérprete a respeito do potencial político contido na forma como se expressa
(graças, sobretudo à figura do narrador) a história do país em Grande sertão:
42
Ibid., p. 373. Itálico do autor.
43
Ibid., p. 438.

250
veredas. Uma visão muito enraizada no ideário do primeiro romantismo alemão,
em especial na definição goethiana de romance de formação e na especificação
do papel a ser cumprido pelo artista/intelectual.

É a figura do narrador que proporciona o salto qualitativo em Grande


Sertão: Veredas como romance de formação do indivíduo para o
romance de formação do país. Ao narrar a sua vida, ele convida o
leitor a organizar os fragmentos da história despedaçada e
criptografada do Brasil.
O que está em jogo em Grande Sertão: Veredas é a tensão entre
a busca existencial do protagonista-narrador (...) e as estruturas e
leis costumeiras de uma sociedade fortemente estratificada.
(...)
(...) o romance de Guimarães Rosa ajuda a resgatar o sentido
original de Bildungsroman [romance de formação]. Trata-se, sem
dúvida, também de um romance da formação do indivíduo, mas
dentro de um projeto mais arrojado: a construção de uma cultura
coletiva, incorporando as dimensões políticas da esfera pública, da
cidadania e dos conflitos sociais.
(...)
(...) Guimarães Rosa, numa atitude de observação participante,
desloca-se tão radicalmente para “dentro” da linguagem do povo, que
este acaba sendo para ele a personificação da língua. (...) o autor já
realizou em Grande Sertão: Veredas (...) uma representação do
povo, em que este é o dono das palavras.
(...) um narrador sertanejo (...), um mediador entre o mundo do sertão
e a cultura letrada. Com esse narrador, Guimarães Rosa deu um
“salto definitivo” com relação à tradicional atitude discriminatória dos
letrados brasileiros. (...) A invenção rosiana do narrador e de uma
nova linguagem corresponde assim plenamente ao verdadeiro
desafio do romance de formação: ser um laboratório para o diálogo
social.
(...)

251
[A propósito da experimentação com a linguagem:] Para todos eles
[“autores clássicos da filosofia alemã da linguagem”], assim como
para o nosso romancista, não se trata somente de questões
estritamente literárias ou estéticas, mas de um projeto de formação
social, com a inclusão das camadas populares.44

grandesertão.br arregimenta uma ampla gama de reflexões sobre o


Grande sertão: Brasil. Suas hipóteses específicas demandam sem dúvida uma
apreciação muito mais pormenorizada do que este conjunto de comentários
registrados aqui. Confio que tal discussão prossiga, com maior atenção aos
detalhes, em novos trabalhos sobre o romance de Rosa. No escopo deste
estudo focado nos movimentos da recepção de Grande sertão: veredas, o que
me parece mais importante assinalar – além das já mencionadas diferenças de
avaliação com relação à leitura do contemporâneo Luiz Roncari, que também
aporta à análise da narrativa um acúmulo crítico fértil para o debate sobre a
literatura e a formação do país – é um aspecto central na interpretação de Willi
Bolle que parece constituir um pressuposto em sua interpretação do “retrato do
Brasil” figurado na forma ficcional: a relação entre cultura letrada e cultura não-
letrada se faz de tal maneira que sinaliza, ainda hoje, uma perspectiva de
continuidade para a formação nacional. Bolle parece convicto de que, na
sofisticada configuração ficcional elaborada pelo erudito Guimarães Rosa, as
“falas do povo” encontram-se integradas com o discurso do poder, numa,
digamos, harmonia dissonante (para lembrar a comparação com Bártok de que
Antonio Candido se vale ao descrever o método com o qual o escritor dá a
“impressão” de fazer literatura a partir do “povo” – ver CAPÍTULO 1, p. 42). Quanto
a isso, o autor de grandesertão.br mostra-se de acordo com o dado que Bento
Prado Jr. enfatizou na obra de Rosa em 1968, mobilizado pela possibilidade
levantada por Derrida – “méditer (...) la possibilité de la differénce comme
écriture”: “O romance ou a novela seriam o espaço de contato entre dois
mundos, sertão e cidade, encontro marcado entre dois homens diferentes, o

44
Ibid., p. 378, p. 382, p. 397-399, p. 402.

252
letrado e o iletrado”.45 É certo que Willi Bolle contesta os preconceitos embutidos
na dicotomia sertão x cidade, e por isso mesmo esta recebe menos ênfase no
conjunto de sua leitura. O que sobressai é a afirmação de que Grande sertão:
veredas constitui tentativa (“laboratório”) para a realização de um “diálogo entre
classes”, levado a cabo sob forma de um narrador capaz de mediar o conflito
entre os “donos do poder” e o “povo” – por dar voz a um e a outro.
São subjacentes a tal avaliação tanto uma considerável confiança na
possibilidade de intervenção da literatura na ordem político-social quanto a
expectativa de que o Brasil ainda venha a se formar. E é significativo que, no
texto de Willi Bolle, o termo formação tenha sentido retrospectivo quando se
refere aos estudos sobre o país, às investigações focadas em repercussões,
verificáveis no século XX, da dinâmica passada de processos constitutivos da
esfera política, da ordem social, da economia brasileiras. O mesmo termo ganha
caráter de projeto para o futuro quando se trata da contribuição da criação
rosiana para a construção daquele ideal de nação democrática e emancipada
que estava no horizonte dos ensaios de formação com os quais o crítico
contrasta a visão do Brasil em Grande sertão: veredas. O otimismo das
expectativas com as quais grandesertão.br acena – diálogo de classes
conduzindo à efetiva formação da nação – não tem nada do tom de impasse
com o qual José Antônio Pasta Jr. caracteriza o “regime peculiar ao livro – o da
formação como supressão”. Enquanto Willi Bolle embasa-se na percepção de
que o “povo” está integrado como dono de voz na literatura do erudito
Guimarães Rosa, Pasta vê nela a expressão de uma “contradição insolúvel e
central que singulariza o Brasil”. Não se trata, para Pasta, do óbvio fosso que
separa os donos do poder das classes populares, mas do fato de que, aqui “a
alteridade – ou a autonomia – do outro seja ao mesmo tempo reconhecida e
negada, pressuposta e inconcebível”. Enquanto Bolle aposta no diálogo como
perspectiva de uma síntese final para a formação brasileira, caminho para a
superação de problemas que perpassam nossa história, Pasta refere-se às

45
Bento Prado Jr., O destino decifrado: linguagem e experiência em Guimarães Rosa, Alguns ensaios, p.
174. O trecho de Jacques Derrida citado antes do trecho transcrito foi extraído da epígrafe de O destino
decifrado. Sobre o ensaio de Bento Prado Jr., ver CAPÍTULO 3.1, p. 115-118.

253
tensões que marcam nossa experiência como algo que “não conhece superação
ou síntese, mas apenas o entrematar-se dos princípios em oposição e, assim, o
conflito sempre renascente”. Seu ensaio, escrito em 1998, parece antecipar um
reparo à avaliação do romance enunciada em grandesertão.br: “Nos seus meios
de caminho, travessias, limiares, passagens, não é raro que o filósofo encontre a
autêntica mediação, onde não há senão o puro limite; que o crítico literário
encontre a síntese que supera e transforma, onde vige a má infinidade”.46

46
José Antônio Pasta Jr., O romance de Rosa – temas do Grande sertão e do Brasil, op. cit., p. 67-69. Ver
também INTRODUÇÃO, p. 26-28.

254
CONCLUSÃO

Visto hoje, o conjunto de críticas que, ao longo dos últimos cinqüenta


anos, assinalou em Grande sertão: veredas alguma visão do Brasil parece
perpassado por duas questões gerais, pelas quais cada intérprete demonstra
maior ou maior interesse.
A primeira incide sobre o modo como as peculiaridades de um país em
grande déficit de desenvolvimento com relação aos centros de alta cultura
ocidental ganham expressão numa forma que se articula com as
inescapáveis referências provenientes de tal centro. A possibilidade de
conciliar a apresentação da vida da nação com os termos da tradição estética
universal é uma inquietação, como mostrou Antonio Candido em Formação
da literatura brasileira – publicado três anos depois do romance – que tinha
firme permanência na história da literatura nacional. E a parcela da crítica
que analisamos aqui parece tê-la incorporado, consciente ou
inconscientemente, como questão de grande relevância. Das apreciações
iniciais aos ensaios mais recentes, configurou-se uma espécie de estratégia
comum para se explicar a singularidade formal do romance e sua
universalidade estética: a observação da obra sob o prisma da conjunção
entre o diálogo com a tradição literária (inclusive a brasileira, popular e
erudita) e os temas do Brasil. Chegamos aos dias atuais com uma enorme
gama de especulações e elucidações sobre como se articulam imagens da
experiência nacional numa figuração que incorpora traços da tradição épica,
da mitologia, da novela de cavalaria, do romance de formação etc.

255
Especulações e elucidações que se estendem sobre o porquê da
incorporação de tais ordens de referência ou modalidades ficcionais,
atribuindo também à sua presença caráter significativo em relação à
experiência histórica à qual o livro se vincula.
A segunda questão geral pode ser resumida na seguinte pergunta: se
a obra literária de alguma maneira é uma representação ou alegoria da vida
no Brasil, como se incorpora a ela a experiência e a expressão da enorme
massa de não-letrados que vive aqui? A preocupação com a conexão entre
cultura letrada e a realidade da maioria pobre do país – evidenciada no
Modernismo, presente em realizações como Vidas secas, de Graciliano
Ramos – também se anuncia desde os primórdios da recepção do romance
de Guimarães Rosa. Já em 1957, Candido observou que o relato proferido
por Riobaldo provoca em nós a impressão de ter nascido da “inspiração do
povo”; em 1968, Bento Prado Jr. comentou a relação entre analfabetismo e
escrita na obra do escritor mineiro; Walnice Nogueira Galvão celebrizou-se
com a noção de “jagunço letrado”, cunhada em estudo de 1972; no ano
seguinte, José Hildebrando Dacanal levou em conta a ordem global para
assinalar o peso que tem em Grande sertão: veredas uma visão de mundo
distinta daquela que corresponde à “estrutura consciencial” vigente no centro
do capitalismo. E, agora, Willi Bolle defende a tese de que, mais do que
inspiração, o povo brasileiro comparece com voz manifesta no romance, e de
modo não idealizado ou ideologizado.
Ainda que a enorme quantidade de discordâncias interpretativas
relacionadas a cada um dos dois tópicos talvez não difira muito, as
divergências a respeito da segunda delas têm potencial mais esclarecedor
com relação ao andamento da crítica literária brasileira. A própria distância
existente entre a percepção de uma impressão (Candido) e a convicção de
uma manifestação (Bolle) é bom ponto de partida para se notar um impasse
que paira no ar: como definir a perspectiva de avaliação da experiência do
país a que convida a visão do Brasil proporcionada pela ficção de Rosa? A
questão que emerge não se direciona aos contornos de tal imagem,
representação ou alegoria, que têm variado entre o específico (por exemplo,
o período entre a Primeira República e a década de 1950 enfocado por Luiz
Roncari) e o mais amplo (a trajetória que desemboca nos problemas

256
contemporâneos, sobre a qual refletem Heloísa Starling, Willi Bolle e outros).
As diferenças entre as significações propostas para o romance convergem
para um núcleo do debate onde se confrontam hipóteses ou convicções
referentes ao sentido político de que se reveste a forma como o romance
apresenta o país – geralmente anunciado como unívoco. A comparação entre
os estudos comentados no CAPÍTULO 5 ajuda a observar isso.
Luiz Roncari ressalta no “projeto” de Guimarães Rosa um impulso de
conservadorismo crítico. Subjacente à versão literária da vida política na
Primeira República estaria a defesa do apaziguamento dos conflitos sociais
pela via da harmonização. Tal alternativa patrocinada por algo como uma
oligarquia esclarecida garantiria a “civilização”, dependente da consistência
da ordem social. Heloísa Starling encara o romance como síntese de uma
sucessão de projetos frustrados de fundação da ordem político-social que
resultaram numa cena republicana sustentada por “um mínimo de
participação política e um máximo de exclusão popular”. Para ela, o que
ganha forma no depoimento de Riobaldo é um histórico de tentativas, sempre
interrompidas, de se erigir a emancipação democrática – e, com a visitação
das ruínas de tal projeto, funda-se simbolicamente uma nova possibilidade de
realização do ideal. Willi Bolle, um pouco na linha de Starling, encontra no
retrato do Brasil elaborado pelo escritor os traços de uma formação nacional
ainda por se completar. A seu ver, as tensões graves da vida social e política
recebem, no conjunto dos elementos que compõem a construção ficcional,
um tratamento que funciona como experimento de “diálogo entre classes”.
Articulando o “discurso do poder” às “falas do povo”, o romance constitui-se
como utopia e exemplo da mediação necessária para resolver os conflitos
sociais, promover a inclusão e alcançar o patamar efetivo de nação.1

1
O contraste entre as avaliações de Roncari, Starling e Bolle ficou flagrante durante a sessão de
perguntas que encerrou a mesa-redonda “País de Rosa” (Seminário Internacional 50 anos de Grande
sertão: veredas e Corpo de baile - 15 de maio de 2006, Instituto de Estudos Brasileiros/Universidade de
São Paulo). Roncari chamou atenção para o fato de que a visão de Guimarães Rosa é de elite, de
adepto da modernização conservadora, que pretendia a assimilação dos recursos da modernidade sob
a tutela da tradição patriarcal. O que, a seu ver, denota um problema de formação do país, um
processo formativo incompleto, manifesto, por exemplo, no fato de o jagunço Riobaldo não ter-se
formado para ascender a chefe, lançando mão de um recurso arcaico, regressivo, o pacto (isso porque,
sem a referência paterna, Riobaldo não aprende a mandar, em circunstâncias onde ou se manda ou se
recebem ordens para qualquer tipo de trabalho). Já Starling assinalou o fato de que, na relação entre
história e ficção, esta tem valor complementar ao do pensamento no campo das ciências sociais, por
ser capaz de trazer à tona o que há de latente na experiência. No caso de Grande sertão: veredas, a
força das possibilidades que a criação estética indica para o âmbito da política tem seu epicentro no
trabalho com a linguagem que incorpora a expressão dos excluídos. E Bolle reafirmou o potencial

257
Parece que o sentido político atribuído à visão do Brasil em Grande
sertão: veredas oscila entre duas tendências: 1) conclui-se que o romance
expressa eminentemente a força das condições objetivas e do ideário
propulsores do encaminhamento que a história seguiu; quanto aos problemas
advindos desse percurso que são trazidos à tona na elaboração literária, a
proposta de solução implícita nela corresponderia à tentativa de conciliar a
manutenção da tradição formada à exigência de avanço na construção de
uma ordem “civilizada”;2 2) o mais comum, porém, é que o inventário dos
problemas figurados na ficção conduza à conclusão de que a figuração
ficcional tem o potencial de funcionar como fator de propulsão para um bom
caminho de formação brasileira ainda em curso no presente, oferecendo
sugestões originais de solução para questões sociais e políticas vindas de
muito tempo, alternativas que rompem com as injunções que atravancaram o
processo passado de constituição da nação emancipada.
Roberto Schwarz, mais de quarenta anos depois de ter afirmado que a
história “quase não tem lugar” no livro de Guimarães Rosa, chamou atenção
para o fato de que a possibilidade de se estabelecerem vinculações entre a
vida no Brasil e o Grande sertão depende da capacidade do crítico de
enxergar virtualidades nacionais na obra e de sua acuidade na investigação
dos fatores que respondem pela correlação entre formas estéticas e matéria
brasileira (ver CAPÍTULO 1.1). Sua fala parece ressoar a observação de Adorno
reproduzida como epígrafe desta tese: “Nada se deixa extrair pela
interpretação que já não tenha sido, ao mesmo tempo, introduzido pela
interpretação”.3 Diante das polêmicas atuais em torno da significação de
Grande sertão: veredas com relação à experiência vivida no Brasil e do
acúmulo crítico de que dispomos hoje para pensar tal dimensão simbólica ou
alegórica do texto, esse tipo de perspectiva a respeito da atividade crítica
merece especial atenção. Pelo movimento de investigação, a partir do
romance, de um feixe de relações brasileiras, cada crítico acaba indicando

libertário da forma de composição que engendra uma reflexão sobre a língua, realizada na fala de um
narrador que consegue manter certa autonomia com relação ao sistema de poder ao qual se integrou e
que, com isso, trai e denuncia o discurso dos donos do poder.
2
Nos termos empregados por Luiz Roncari no Seminário Internacional 50 anos de Grande sertão:
veredas e Corpo de baile (ver nota 1, acima), a questão em Guimarães Rosa seria a possibilidade de
realização do humano em meio às particularidades brasileiras.
3
Theodor Adorno, O ensaio como forma. In: Notas de literatura, p. 18.

258
uma espécie de “posicionamento” da obra com relação àquela realidade. E
isso, por sua vez, interfere no próprio encaminhamento da investigação – daí
a importância de se estar atento à construção do juízo em todos os seus
níveis. No caso de um livro tão repleto de ambigüidades e elementos
polissêmicos, no qual, segundo tantas evidências reunidas pelos intérpretes,
a mitificação tem papel tão estrutural, é preciso cuidado redobrado para
propor alguma definição cabal. Será mesmo unívoco o sentido político dessa
estética que dá a impressão de que se manifestam vozes populares no
artefato erudito?

259
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268
RESUMO

Ao longo de cinqüenta anos, formou-se na fortuna crítica de Grande sertão:


veredas um conjunto de estudos a respeito das relações entre a forma do
romance de Guimarães Rosa e a história sociopolítica brasileira. Mesmo
marcada pela descontinuidade que se fez regra em tantos âmbitos de debate
no Brasil, a reflexão nesse campo adquiriu considerável consistência. De
saída, no primeiro momento da recepção do livro, levou-se em conta o
problema das distinções regionais. Logo depois, entre a segunda metade da
década de 1960 e meados da seguinte, houve comentários que enfocaram
questões de grande abrangência, que estavam na ordem do dia: tensões
entre classes sociais, orquestração política numa república praticamente de
castas, condição de país de terceiro mundo. Após o recrudescimento desse
gênero de discussões que ocorreu no anos 1980, ensaios publicados a partir
de 1994 voltaram a convocar, como dado relevante para a interpretação do
texto literário, a possibilidade de correlação entre a experiência nacional e a
configuração ficcional criada. Aí, já pesava muito sobre o juízo crítico a aura
de obra-prima que se cristalizara em torno do relato de Riobaldo; e também a
orientação geral do pensamento que incidia sobre a dinâmica literatura-
sociedade era outra, genérica: questões universais da modernidade, ou pós-
modernidade. Mais recentemente, entre 1998 e 2004, a tentativa de
solucionar a equação Grande sertão: Brasil ganhou fôlego em análises que
procuraram articular conhecimentos acumulados a respeito da narrativa
(desde 1956) e de diversos planos da formação brasileira (desde pelo menos
a década de 1930). O estágio atual em que se encontra a crítica de Grande
sertão: veredas chama atenção para a necessidade de se pensar o peso que
têm, na especificação da homologia entre dados materiais e representação
literária, as inclinações do intérprete.

269
ABSTRACT

For the past 50 years, critique on the book The Devil to Pay in the Backlands
generated a group of studies on the relationship between the structure of the
novels written by Guimarães Rosa and Brazilian sociopolitical history. Even
characterized by the discontinuity that became the rule in so many Brazilian
circles of debate, the reflection in this field grew considerably consistent. In
the beginning, when the book was first released, it brought issues of regional
differences to the surface. Shortly thereafter, between the second half of the
1960s and the mid-1970s, there were comments that focused on widely
scoping issues relevant at the time: tensions between the social classes,
political orchestration in a republic practically divided into castes, conditions of
a third world country. After the recrudescence of this sort of discussion that
occurred in the 1980s, essays published from 1994 onwards once again
considered the possibility of a correlation between the national experience
and the created fictional setting as relevant data for interpreting literary text.
At that time, the masterpiece aura that had crystallized around Riobaldo’s
account already weighed heavily on the critics’ judgment. Furthermore, the
general orientation of thought that influenced the literature-society dynamics
was different, generic: universal issues of modernity or post-modernity. More
recently, between 1998 and 2004, attempts to solve the equation between
The Devil to Pay in the Backlands and Brazil gained momentum in analyses
that sought to articulate the knowledge accumulated on the narrative (since
1956) and on the different levels of Brazilian character formation (since at
least the 1930s). The current stage of criticism on The Devil to Pay in the
Backlands forces us to think about the weight that the interpreter’s inclinations
have on the specification of the homology between material data and literary
representation.

270

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