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CURSO FORMAÇÃO DE

mediadores de leitura

LEITURA E
Cultura
Tadeu Feitosa

Gra
tui
to!

4
FASCÍCULO
QUANDO O NADA DÁ
LUGAR AO ALGO
Uma das coisas que mais impressionam o visual. Nós codificamos o mundo pelos
os estudiosos é por que os seres huma- sinais, pelos signos comunicantes. Logo, o
nos são tão iguais quanto à constituição mundo é um livro que precisa ser lido, en-
física e tão diferentes quanto aos modos tendido, decodificado, comunicado, infor-
de se comportarem. Você discorda? Pois mado, noticiado.
veja: todos eles pensam, sonham, choram Este módulo, portanto, demonstrará
e riem. Até aí nenhuma novidade, não é? que é na cultura e pela cultura que nós
Pois bem, são iguais na forma, mas com- inventamos o mundo, que nós o escreve-
pletamente diferentes quanto aos sonhos, mos, o construímos simbolicamente. Ora,
às sensações, aos comportamentos, aos se inventamos o mundo pela cultura, é
valores, aos sentimentos e sentidos. E sa- claro que é por ela e com os olhos dessa
bem por quê? Porque os seres humanos cultura, que lemos o mundo e seus misté-
são diferentes em cultura. rios. Assim, além de a leitura ser um con-
Neste fascículo vamos fazer uma via- dicionamento cultural, a cultura também
gem sobre essa coisa chamada cultura. é uma leitura, uma interpretação, um pro-
Vamos saber por que criamos, atualiza- cesso de entendimento.
mos e reformulamos nossas culturas; o Em outras palavras, aqui, relacionare-
motivo de darmos sentidos e significações mos leitura e cultura, a fim de ampliar-
aos nossos cotidianos e tradições; as mui- mos o nosso entendimento sobre o que
tas formas de representarmos o mundo à vem a ser colocar o “algo” onde antes im-
nossa volta, a vida e os infinitos sentidos perava o “nada”.
que damos a isso. Vixe, quem disse que complicou? Calma
Após transitarmos pelo universo fantás- aí... Vamos ler o mundo da cultura?
tico e infinito da cultura, vamos perceber E se você ainda não se inscreveu em
que ela cria para nós um grande livro em nosso curso, ainda pode fazê-lo. E se está
branco, que preenchemos de gestos, vo- inscrito e está gostando, não deixe de com-
zes, sons, letras, palavras, frases e sentidos partilhar com seus colegas e amigos:
vários, todos diversos, diferentes quanto
às simbologias que inventamos para en- ava.fdr.org.br
tender o mundo e nos entender dentro
dele. Sim, o mundo é um livro em perma-
nente escritura, gestualidade, sonoridade.
No mundo escrevemos e inscrevemos o
oral, o verbal (e também o não verbal) e

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1.
MAS, AFINAL, O QUE É
CULTURA?
Essa pergunta atravessa o mundo esse modelo seria útil para explicar coisas
e inquietou muitas gerações com as que não são biológicas, como a arte de
respostas pouco ou nada precisas pensar, de criar, de inventar, como fazem os
sobre a cultura humana. Tanto os humanos? A resposta é NÃO! Contudo, foi
cientistas como as pessoas em assim que desenharam os primeiros mode-
geral sempre se preocuparam los de cultura humana. Então, ao pensar a
em entender o porquê de nossas cultura na perspectiva de um processo de
ações, valores, regras, músicas, evolução, tornou-se necessário julgar ser
crenças, mitos, modos de falar, de um grupo cultural ou uma cultura supe-
andar, de vestir, de preparar os ali- rior (ou mais evoluída) à outra. Se pudés-
mentos e tantas outras coisas são semos desenhar, era como se uma “escada”
tão diferentes de pessoa para pes- imaginária fosse erguida e seus degraus
soa e de lugar para lugar. separando em “altura” as culturas “maio-
Os primeiros cientistas a se ocu- res” das “menores”. Sem outros paradigmas
parem mais especificamente da para serem usados, na época, durante mui-
tarefa de entender isso foram os an- to tempo esse modelo foi aceito, mesmo
tropólogos. Claro que outros, antes que equivocado.
deles, também se preocuparam com A cultura, entendida como um processo
isso: os filósofos, por exemplo. Como de evolução, “degraus a serem atingidos”,
a ciência mais adiantada da época, e era a mesma coisa que dizer que as cultu-
mais próxima dos estudos humanos, ras se dividiam entre culturas inferiores
era a Biologia, os primeiros antro- e culturas superiores. E aí o problema
pólogos tomaram de empréstimo maior: quem poderia, em nome de tantas
desta ciência a Teoria da Evolu- culturas diferentes, de tantas gentes e po-
ção como modelo de explicação, vos diversos definir, sem cair em erro, o grau
cometendo o primeiro e definiti- das culturas alheias? Mais do que depressa,
vo equívoco, pois que ela serviria países como a França, Alemanha e Inglater-
para seres vivos e suas formas ra chamaram para si essa tarefa ingrata de
milenares de mudança, de evo- classificar essas culturas, a partir do olhar
lução das espécies. Mas será que das suas e de seus interesses, é claro.

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PARA ALÉM
DO TEXTO Assim, o que vale não é a colocação de
cada cultura num degrau acima ou abaixo,
A Teoria da Evolução tem como mas o que é comum a todas as culturas:
principal articulador o naturalista o ato ou efeito de dar sentidos às coisas dos
britânico Charles Darwin (1809-1882), seus mundos particulares.
autor de Origem das Espécies, obra Ao escrever este fascículo, me lembro
que revolucionou o mundo da ciência de uma situação interessante. No final de
e, pelo que vemos, da cultura tam- um semestre em que eu ministrei uma aula
bém. Ela defende que as espécies sobre cultura, era a última e nós já estáva-
atuais descendem de outras espécies mos nos despedindo, uma aluna saltou da
que sofreram modificações ao longo cadeira e atirou-me sem dó: “Professor, a
do tempo, transmitindo novas carac- disciplina foi massa! Mas eu preciso que o
terísticas aos seus descendentes. senhor resuma objetivamente: para o se-
nhor, o que é mesmo a cultura?”

A história é bem longa, mas para resu-


mir, inventaram o conceito de civilização e
também o de cultura. As três nações não se
entenderam muito bem quanto a uma con-
ceituação mais clara. E sabe por que isso
aconteceu? Ora, porque mesmo elas eram
absolutamente diferentes em suas cul-

PUXANDO
turas, em seus entendimentos de mundo,
em representarem suas vidas e seus mun-

PROSA
dos, a partir de seus pontos de vista.
EURECA! Agora eu entendi: se as três na-
ções eram diferentes em cultura, fica claro
que todas as outras nações, todos os outros
povos, todas as outras gentes, as diversas Você já parou para pensar na cultura
etnias, como elas três, também têm as suas ou culturas que há nos espaços em que
próprias culturas, um “jeito de ser e fazer você habita? De que modo a cultura
distinto”, e nenhuma é inferior ou superior à está presente na mediação da leitura?
outra. Todas constroem o algo para pôr no
lugar do nada.

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Quase engasgado, ruborizado e achan-
do que aquele semestre não tinha valido
de nada para aquela aluna nem para mim,
olhei para baixo e algum ser soberano me
deu uma resposta pronta, que eu jamais
CURIOSIDADE
teria concebido: “A cultura é o processo
através do qual o homem inventou o
A vaia do Cearense: Desde o
algo onde antes imperava o nada.”
século XIX, por meio de narrativas
Os alunos, com toda a sua ju-
ficcionais, relatos orais e mesmo
ventude, responderam com uma
por meio de revistas e jornais, a
vaia absolutamente cultural, com
irreverência e o comportamento
o sotaque e dicção da moleca-
rebelde do cearense vêm sendo
gem cearense. Estão percebendo
gestados simbolicamente sob o
o grau de cultura local daquela
epíteto de “Ceará-Moleque”. Entre
vaia? É uma vaia com sotaque.
os elementos mais tradicionais
Ou seja, a representação de vaia
encontrados, fala-se da singularidade
dada pelo cearense e bem dife-
da vaia do cearense, que inclusive
rente da vaia “tradicional”. Isso é
teve a ousadia de, em 1942, vaiar
cultura. Não a vaia, apenas, mas,
o próprio Sol. Há diversos livros
principalmente o modo como essa
memorialísticos que apresentam
vaia e todas as coisas são construí-
verdadeiros tratados sobre o tema,
das, inventadas, criadas, transmiti-
apresentando vaias específicas para
das, memorizadas com as marcas de
cada momento. No seu estado, você
uma cultura específica. Assim como o
conhece algum elemento, costume ou
bayanihan filipino (costume de carregar
comportamento típico que seja, como
uma casa de um local para outro), o Mai-
a vaia cearense, destacado?
Nene na Indonésia (cerimônia de limpeza
de corpos, desenterrando mortos), a Ashura
(autoflagelação) entre os muçulmanos xii-
tas, entre outros.

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2.
ENTRE NÃO
CONHECER, CRIAR
E SABER: O ALGO
NO LUGAR NO NADA

Tenho apenas duas mãos e o


sentimento do mundo.
Carlos Drummond de Andrade

O nada é não saber, não conhecer, não


entender, não sinalizar. São exemplos de
nada: o desconhecimento, a desinforma-
ção, a falta de memória. Onde existe um
vácuo, uma vacância, um “mistério” a ser
revelado, entendido, decodificado. O nada
é instável ao ser humano. Deixa-o insegu-
ro, sem norte, sem indicação do que fazer
e para onde ir. Isso causa uma adversidade
e impulsiona o ser humano a saber, a in-
ventar, a criar.
É aí que entra a capacidade inventiva
do ser humano. Instável, ele vai lá e inven-
ta, cria, faz acontecer. E de onde vem essa
força inventiva? Ora, da sua espetacular
habilidade de pensar, imaginar; da sua ca-
pacidade perceptiva, intelectiva, cognitiva.
É a cultura que nomeia o mundo e
suas coisas.

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Nomear é criar sentidos culturais para
as coisas do mundo.
Logo, isso não é próprio apenas das cul-
turas “superiores” ou “inferiores” (que nem
existem). É próprio de todas as culturas.
Não há diferenças entre quem cria mais ou
menos, porque a criação é uma condição
de todos os humanos.
Assim, a cultura (ou o “algo” do qual falei PUXANDO
anteriormente) é uma espécie de processo
de “nomeação”. E existem infinitas formas PROSA
de nomear, você sabia?
• Pelo gesto: a mímica, os sinais do
corpo, do olhar, do andar, das ex- A cultura é o processo de
pressões corporais, faciais etc. criação desse “algo”: a invenção, a
• Pela voz: os grunhidos (perceba o inventividade, a criação simbólica, o
exemplo do choro dos bebês), cânti- sentido criado pelos seres humanos
cos, falas, declamações, cantorias etc. e que vão dar vida simbólica e real ao
• Pela palavra: escrita, anunciada, que antes não existia, porque nada
noticiada, cantada, publicizada, dis- se sabia. Na cultura humana, o “algo”
cursada, etc. está nos gestos, nos sons, na visão
• Pelos signos não verbais: a roupa e em todos os sentidos humanos.
e a moda; a religião e seus rituais; o São exemplos desse algo: o choro, o
vestuário e suas significações e sen- silêncio, o olhar e tudo mais que gere
tidos; a maquiagem e suas represen- sentido, sensação, significado, leituras.
tações; a culinária e a história dos
povos, nações e etnias etc.

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3.
O QUE TECE
A CULTURA:
AS SUAS MARCAS E AS
POSSIBILIDADES DE
LEITURA DO MUNDO
De posse desse caleidoscópio cultural,
podemos agora trazer alguns teóricos e
cientistas modernos para dialogarem
conosco sobre o que já se sabe sobre
a cultura e suas formas de expressão.
A cultura é uma fábrica espetacular
de criação de sentidos. Para Clifford
Geertz (1987), ela tece significações e
sentidos, criando o que ele chama de
“teias de significação”. Olha que baca-
na! Os sentidos e as significações vão
se entrelaçando, criando vínculos com
os “nós” simbólicos de cada amarração
da teia. Esses “nós” ratificam os signi-
ficados e os põem em interação com os
outros, criando um mapa de sentidos que
vão se alterando conforme os contextos.

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PARA ALÉM
DO TEXTO
mória e tradição de um povo, o imaginário
Você pode saber mais sobre de tanto representar um sentido, confirma e
essa temática na obra: A interpre- valida esse sentido no imaginário coletivo.
tação das culturas, Clifford Geertz. Para esse cientista, o imaginário é mais real
Rio de Janeiro: LTC, 1989. do que o real, porque faz parte da memó-
ria de um povo e não se perde, sendo con-
tinuamente renovado, adaptando-se aos
mais diversos contextos.
Lembra-se da expressão “contar um
conto e aumentar um ponto”? Pois isso tem

DESAFIO
a ver com o imaginário, sabia? Ele se pro-
longa nas narrativas de um povo, na sua
memória e tradição. Mas entender isso e o
que liga a cultura à leitura requer conhe-
É por isso que os gestos, as palavras, os cer alguns conceitos que trataremos aqui.
comportamentos e seus respectivos senti- Em primeiro lugar, precisamos saber Será que existe uma cultura
dos sempre vão depender dos contextos. que não existe cultura sem um tempo e superior a outra? Por que os
Lembra-se do que falamos a respeito do um espaço que a defina. Um dos princi- portugueses quando invadiram as
choro dos bebês? Há o choro de fome, de pais espaços da cultura e também uma terras brasileiras tentaram mudar
medo, de dor, de zanga, o manhoso. Todos de suas marcas fortes é o cotidiano. É os hábitos e costumes, inclusive as
carregados de sentido e que precisam ser nas relações com o outro que os huma- crenças indígenas?
lidos, interpretados. nos constroem seus significados e senti- Por que os brancos durante muito
Pois sim. Há uma relação bem clara en- do. Tecer sentidos coletivos fortalece o tempo, e ainda hoje, veem com
tre o imaginário e seus sentidos. O antro- ser humano, sua vida e as relações so- desconfiança os rituais da Umbanda?
pólogo François Laplantine (1997) traz uma cioculturais necessárias para se orienta- Pesquise costumes e hábitos de
excelente reflexão sobre o que é esse imagi- rem no mundo. As vivências e experiên- outros países e povos e reflita sobre a
nário. Para ele, trata-se de um processo hu- cias humanas são tecidas, inventadas e sua cultura e o espaço que as define.
mano de criação de imagens, de modelos reinventadas nos seus cotidianos, onde
criados pela mente humana. Transmitido se constroem seus códigos culturais, seus
de geração a geração e utilizado como me- símbolos e simbolismos.

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Para o pensador Michel de Certeau atualizada e está em constante movimento.
(1994), os cotidianos são inventados e se Tradição é também um processo de trans-
erguem e se modificam segundo essas missão de cultura para as gerações futu-
invenções. Na verdade, segundo o pensa- ras. Ela é uma narrativa sobre os povos, as
dor, são táticas, estratégias e artimanhas gentes e suas culturas. Mas, prestem aten-
criadas para dar sentido às coisas naquele ção: nunca se diga que tradição é algo
espaço e tempo. Mesmo sabendo que so- do passado. Não é mesmo! Tradição não
bre os cotidianos culturais existem impo- é algo velho, como um quadro amarelado
sições simbólicas (por regras, ordenações, pelo tempo. Tradição é continuidade, mo-
convenções, disciplinamentos etc.), as vimento, dinamismo. A tradição caminha
práticas dos sujeitos den- dialogando com o novo, com as marcas da
tro de cada cotidiano são contemporaneidade, sem perder suas ma-
resolvidas por táticas e trizes fundantes.
invenções bem próprias Junto a essas marcas, apresentamos a
do sotaque e dicção cul- senhora Memória, marca indispensável da
tural de cada grupo. cultura. Como os demais, a memória tam-
Ligada à cultura e ao bém tem os seus sentidos. Temos a me-
cotidiano, temos a Tradi- mória individual, que recebe dos nossos
ção. É ela que difunde os sentidos humanos os sinais representati-
sentidos de todas as cul- vos do mundo e das coisas. Filósofos como
turas. Os autores também Henri Bergson (1999) trabalharam muito
dizem que, como o coti- bem essa questão e vale a pena a leitura.
diano, a tradição também Temos também a memória coletiva que,
é inventada. A tradição para Maurice Halbwachs (1990), são as me-
é o resultado de seus mórias partilhadas coletivamente, quando
sentidos. O antropólo- nos juntamos para inventar, redimensionar
go Paul Connerton (1993) e criar táticas e estratégias para o imaginá-
vai mais longe. Para ele, rio, o cotidiano e as tradições, só que em
a tradição é inventada e conjunto, levando em conta os contextos
recordada pelo viés da sociais dessas criações. Assim, a memória
memória. Entretan- constrói a nossa marca sociocultural, sendo
to, ela é também um patrimônio de toda cultura.

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O Patrimônio é um bem cultural de
todas as produções de sentido que a
cultura deu e fez para nós. Ele é coirmão

PARA
dos pilares anteriores citados acima. Como
os demais, os patrimônios também têm

REFLETIR
seus sentidos. Assim, todas as coisas mate-
riais ou imateriais que nos chegam do pas-
sado vem carregado de sentidos desse pas-
sado. É preciso ler e entender esse passado
e as marcas deixadas por ele se nos apre-
Mas você pode nos perguntar: sentam como bens materiais e também
o que é o patrimônio e o que ele simbólicos daquelas culturas. Dos utensí-
tem a ver com a cultura? lios ancestrais mais simples àqueles que
receberam da técnica um aprimoramento,
como as edificações, tudo se configura em
um bem cultural, bem simbólico, num patri-
mônio. Temos o Patrimônio Material e o
Patrimônio Imaterial. Os patrimônios são
excelentes fontes de informação e leitura.
PARA ALÉM
DO TEXTO
Por meio deles podemos entender culturas,
decodificar tradições, revelar memórias e
entender imaginários culturais dos mais di-
versos povos. Há uma ligação afetiva e sim-
bólica dos sujeitos com seus monumentos. Segundo artigo 216 da
Portanto, lê-los nos faz descobrir os misté- Constituição Federal, configuram
rios simbólicos de onde eles provêm. patrimônio “as formas de expressão;
Por fim, mas absolutamente misturada os modos de criar; as criações
aos outros pilares aqui citados, temos a his- científicas, artísticas e tecnológicas;
tória, que narra, que estuda, que interpreta, as obras, objetos, documentos,
que dá ciência aos fatos, que estabelece re- edificações e demais espaços
lações entre isso tudo e, por excelência, faz destinados às manifestações
a leitura do tempo, das pessoas, das suas artístico-culturais; além de
relações, das suas trajetórias. conjuntos urbanos e sítios de valor
E também a história recebe da cultu- histórico, paisagístico, artístico,
ra as suas influências. Não por acaso, os arqueológico, paleontológico,
historiadores pertencem – via de regra – a ecológico e científico.”
paradigmas investigativos que sofrem as in-
fluências dos culturais contextos históricos
onde nasceram.

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A CULTURA E OS
SEUS PILARES

Semiose é um conceito usado


pela Semiótica (ciência que estudo
dos signos e sinais da linguagem,
o seu comportamento no universo
e nas relações humanas, sociais,
Observe na figura, que os círculos menores assim o são apenas no desenho e por um culturais etc.). É o processo
recurso didático, mas a grandeza do que cada um deles representa é igual à cultura e à lei- através do qual cada signo, sinal
tura. Tente não simplificar o quadro e suas relações. Antes, leia de modo complexo, como ou linguagem interpretada gera
também o é a cultura. Aliás, a fim de ratificar essa complexidade cultural e leitora, é bom um novo signo, um novo sinal,
manter isso sempre em mente: a cultura no singular é sempre plural! Do mesmo modo, uma nova interpretação. Isso
os fenômenos que demonstramos aqui como “pilares da Cultura”. Não há a cultura, mas acontece porque as linguagens
as culturas. De igual modo, costumamos falar – e é o mais correto – dos imaginários, dos são dinâmicas. Seus sentidos não
cotidianos, das tradições, memórias, patrimônios e histórias de um povo, de um grupo, de ficam aprisionados nas leis da
uma etnia etc. escrita, por exemplo. Esses sentidos
Do mesmo modo, também são complexas, dinâmicas, plurais e diversas as práticas mudam, se renovam, ganham outras
leitoras culturais. Voltando ao quadro acima, também as direções estão demonstradas interpretações. Esse processo infinito
de modo que você, leitor(a), escolha a que melhor lhe convier, porque tudo aqui está, como de novas possibilidades de leitura
dizem os jovens, “junto e misturado”. Assim, esse é mais do que um “caminhar da cultura”. e interpretação do mundo, nós
É, na verdade, a “teia de significações” de que nos fala Clifford Geertz. Cada pilar tem suas denominamos de Semiose.
teias e elas vão interagindo numa “semiose ilimitada”.

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4.
CULTURA E LEITURA:
As significações mapeiam o mundo para
nós. E sabe como mapeiam? Criando um li-
vro imaginário sobre o mundo e suas repre-
UMA NÃO EXISTE SEM sentações. Lemos o mundo com os olhos
da cultura. No lugar das letras, que podem
A OUTRA proporcionar escrita e leitura, a cultura nos
Sim, porque cultura é um processo de lei- dá os signos (sinais) que lhe compõem
tura de mundo. Da mesma forma, a lei- como marcos para lermos o mundo.
tura é a decodificação dos sentidos que São exemplos de signos culturais poten-
a cultura criou, transmitiu, ritualizou e cializadores de leitura:
foi assimilada pelos seres humanos, cada a) a culinária, que constrói e define o
qual dentro da sua cultura específica. sabor de uma cultura, os rituais de
preparo das comidas e bebidas e o
que elas simbolizam;
b) o vestuário, com seus modelos,
cores, formas e adereços, além do
modo de se vestir e do que as vesti-
mentas representam;
c) as crenças, os mitos e as religiosida-
des, que moldam as condutas huma-
nas dentro de cada cultura;
d) os valores de cada cultura, que de-
fine a moral e a ética de cada povo;
e) as narrativas míticas, que constroem
os imaginários de cada povo;
f) a música, que representa a sonorida-
de, poética e musicalidade de cada
povo, etnia etc.
Tudo isso e muitos outros mais empres-
tam a nós possibilidades de leitura. E é
pelo processo de leitura que entendemos
os signos de uma cultura.
Esses complexos processos de leitura
também ensejam processos de práticas
leitoras. Não entendeu? Ora, ninguém per-
manece igual após ler algo sobre alguma
coisa. O “algo” lido nos tira do “nada” e nos
modifica. Mas não modifica por um proces-
so mágico, mas sim pela dinâmica de mu-
dança que a prática leitora – aquilo que
apreendemos com a leitura – provoca em
nós e na nossa vida.

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Se a cultura borda significados e significações, são o nosso afeto Trata-se, como já dissemos, da natureza humana de dar sentido
e a nossa sensibilidade, diante da leitura (apreensão, admiração, ao mundo e às suas coisas. Assim, na cultura, como na leitura, não
afeto etc.), que provocam mudanças comportamentais. Essas podemos ter leituras iguais, mesmo que o texto seja o mesmo. O que
mudanças, esse entusiasmo pela descoberta, são resultantes diferencia uma leitura da outra é o sotaque cultural dessa leitura de
dessa prática leitora. cada indivíduo. Assim, tanto os contextos culturais alteram as leituras e
É por isso que Leitura e Cultura são inseparáveis e as práticas leitoras, como o tempo, o momento dessa leitura altera o(a)
indissociáveis. As duas criam e representam um mundo de coisas leitor(a) e sua prática leitora. Leia um livro na sua infância e veja o que
para nós. Se Deus criou o mundo, foi a Cultura que o transformou, ele lhe diz. Volte a ele na adolescência e verá que nem você nem o livro
escrevendo um mundo para ser lido, interpretado e provocar são os mesmos. Espere com sabedoria e perceba, em sua maturidade,
práticas leitoras fantásticas, eternas e dinâmicas, porque a cada que embora seja o mesmo livro, o tempo atualizará sempre a sua
nova leitura, novos horizontes surgem. leitura, transformando-a e lhe dando novas oportunidades de novos
Pela Leitura e pela Cultura estamos o tempo todo, do nascer entendimentos. Esse processo de continuidade criativa dos sentidos e
ao morrer, ensinando e praticando as leituras de mundo. Isso lhe dos efeitos deles sobre nós é o que chamamos de cultura.
parece confuso? Pois não é. Tudo o que os nossos sentidos detectam Com os olhos da cultura podemos ler um quadro, um filme, uma
são formas de leitura. Mas o que é a leitura. Calma, não vou repetir o passeata. Podemos ler a vida. Ler a morte e reinventá-la como vida. Se a
que os outros fascículos explicarão com maior detalhamento. Aqui cultura é o algo onde antes imperava o nada, a leitura é o que imortaliza
nos interessa apenas apresentá-lo a Leitura Cultural do Mundo. o algo, afastando-nos do nada. Isso é leitura e leitura é cultura.

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PARA ALÉM
DO TEXTO
Assista ao vídeo “A leitura e
a cultura no desenvolvimento
cerebral”, com a neurocientista
Suzana Herculano-Houzel. ACESSE:
https://www.youtube.com/ REFERÊNCIAS
watch?v=dLWiwD_YhUM BERGSON, Henry. Matéria e memória: ensaio
sobre a relação do corpo com o espírito. 3.ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano.
Petrópolis: Vozes, 1994.
Assim, as práticas leitoras têm ligação CONNERTON, Paul. Como as sociedades re-
com a cultura, mas não são reféns dela. Sim,
porque as leituras se prolongam nos leitores,
nas suas experiências, vivências e manifesta-
DESAFIO cordam. Oeiras: Celta Editora, 1993.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma his-
tória dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
ções culturais. Se as escritas têm o sotaque
cultural do seu autor, as leituras ganham as GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas.
Procure um livro que você leu
diversidades culturais dos seus leitores. As- Rio de Janeiro: LTC, 1989
durante a infância e a adolescência,
sim, além de estarmos diante de uma “se- de preferência, algum que lhe marcou, LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito
miose ilimitada”, estamos também diante de seja por qualquer motivo. Procure-o, antropológico. 26 reimp. Rio de Janeiro: Zahar,
uma complexa diversidade cultural. leia-o novamente e se perceba nessa 2008.
Por fim, mas – como a Leitura e a Cultu- leitura, se encontre, procure aquele(a) HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva.
ra – sem nunca acabar, essas duas magias leitor(a) do passado. Quais as suas São Paulo: Vértice, 1990.
com as quais o ser humano lida desde o impressões hoje a respeito dessa
sempre, jamais morrerão, porque estarão HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-mo-
leitura? A obra ainda lhe causa alguma
sempre no nosso imaginário, cotidiano, dernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.
impressão? Você consegue encontrar-
tradição, memória, patrimônio, história e, se ou identificar-se com aquele(a) LAPLANTINE, François, TRINDADE, Liana. O que
principalmente, na nossa mente e nos nos- pequeno(a)/jovem leitor(a)? Como foi é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1997.
sos sentidos, sensações e sentimentos, cujo para você essa experiência? Até o final
conjunto gera esse patrimônio humano, de nosso curso, gostaríamos de saber.
que, quanto mais o estimulamos, mais cria-
ção mágico-mítica ele produzirá. Assim é a
Cultura. Assim é a Leitura.

CURSO FORMAÇÃO DE mediadores de leitura 63


Luiz Tadeu Feitosa (Autor)
É professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC) desde 1992. Docente do Programa
de Pós-graduação em Ciência da Informação e do Departamento de Ciências da Informação,
mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
doutor em Sociologia pela UFC. Atualmente faz pesquisa de pós-doutorado no Centro de
Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), Universidade do Minho, em Braga, Portugal.

Rafael Limaverde (ilustrador)


É ilustrador, chargista e cartunista (premiado internacionalmente) e xilogravurista. Formado
em Artes Visuais pelo Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Ceará (IFCE).
Escreve e possui livros ilustrados nas principais editoras do Ceará e em editoras paulistas.

Este fascículo é parte integrante do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura
de Fortaleza, sob o nº 05/2018.
Todos os direitos desta edição reservados à: EXPEDIENTE: FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) João Dummar Neto Presidente André Avelino de
Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Raymundo Netto Gestor de Projetos Emanuela Fernandes
Analista de Projetos Tainá Aquino Estagiária UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Viviane Pereira
Fundação Demócrito Rocha Gerente Pedagógica Luciola Vitorino Analista Pedagógica CURSO FORMAÇÃO DE MEDIADORES DE LEITURA
Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora Raymundo Netto Coordenador Geral e Editorial Lidia Eugenia Cavalcante Coordenadora de Conteúdo
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