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Amor e Fidelidade
Johan Konings
Edições Loyola
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ISBN: 85-15-XXXXX-X
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2005
Sumário
5
3.2.3 Aspecto religioso ..........................................................
3.2.4 Aspecto cultural ...........................................................
3.2.5 Conclusão .....................................................................
3.3 Índole própria do Quarto Evangelho .....................................
3.3.1 Testemunho e fé ...........................................................
3.3.2 Iniciação e perseverança ..............................................
3.3.3 Evangelho místico e contemplativo ............................
3.3.4 Evangelho “espiritual” .................................................
3.3.5 Evangelho “teo-lógico” ................................................
3.3.6 Evangelho da cruz, e da glória do amar ....................
3.3.7 Cristologia ....................................................................
3.3.8 Escatologia ....................................................................
3.3.9 Pneumatologia ..............................................................
3.3.10Ensinamento moral.......................................................
3.4 A alternativa cristã segundo João ...........................................
3.4.1 A messianidade de Jesus e a nova comunidade ........
3.4.2 Contracultura, comunidade contrastante, resistência ......
3.4.3 Visibilidade cristã: o amor fraterno ............................
4. Recepção e efeito ..........................................................................
4.1 Canonicidade ...........................................................................
4.2 Best-seller dos gnósticos ........................................................
4.3 Evangelho intelectual e espiritual? ........................................
5. Nossa leitura ..................................................................................
5.1 Chaves .....................................................................................
5.2 Livro da Vida .........................................................................
5.3 Amor e fidelidade ..................................................................
5.4 Leitura que volta à origem e não tem fim ...........................
6
A OBRA DE JESUS E O CONFLITO COM O JUDAÍSMO (5,1–12,50) ....................
Jesus cura um aleijado em dia de sábado (5,1-47) .....................
O episódio dos pães (6,1-71) ........................................................
A festa das Tendas (7,1–8,59) ......................................................
O cego de nascença e o bom pastor (9,1–10,21) ........................
A festa da Dedicação (10,22-39) ..................................................
O episódio de Lázaro (10,40–11,54) ............................................
Os últimos dias da atividade pública (11,55–12,36) ...................
BALANÇO DOS “SINAIS” (12,37-50) .............................................................
7
Excursos
8
11,27 Ressurreição “no último dia” ou vida eterna já? .................................
12,3 Maria de Betânia, Maria Madalena e as três Marias ..........................
12,8 Honrar Jesus, sem esquecer os pobres (segundo Marcos e João) ......
12,26 A diaconia eclesial .................................................................................
12,34 O “en-altecimento” do Filho do Homem, a luz e a vida eterna ........
13,1 “Chegou a hora” ....................................................................................
13,19 O cumprimento das Escrituras e da palavra de Jesus, em João .........
13,23 O Discípulo Amado ...............................................................................
14,6 Caminho, verdade, vida .........................................................................
14,9 Ver Deus… em Jesus ............................................................................
14,14 Pedir no nome de Jesus ........................................................................
14,17 Espírito Santo — Paráclito ...................................................................
15,1 A vinha de Israel e a videira Jesus ......................................................
15,4 “Permanecer”: inabitação/imanência mútua .........................................
15,12 A fonte e o destino do amor segundo João .........................................
15,17 Amor afetivo e amor efetivo ................................................................
16,11 O processo com o mundo e com seu chefe ........................................
16,22 Alegria ....................................................................................................
16,23a “Aquele dia...” — hoje! ........................................................................
17,15 No mundo, não do mundo ....................................................................
17,19 Santidade ou amor? ...............................................................................
17,23 Unidade: para dentro ou para fora .......................................................
17,26 Era Jesus astronauta? .............................................................................
18,32 A pena capital ........................................................................................
18,38a A verdade e o testemunho de Jesus .....................................................
19,15 O Rei de Israel ......................................................................................
19,24 As Escrituras acerca do Justo perseguido ............................................
19,25 As mulheres junto à cruz ......................................................................
19,39 Os costumes funerários do judaísmo no tempo de Jesus ...................
20,10 As Escrituras anunciando a ressurreição ..............................................
20,23 Perdoar os pecados ................................................................................
20,31 Passar a crer ou continuar na fé? .........................................................
21,6 Pescadores de homens? .........................................................................
21,19 Pastoreio ou primado? ...........................................................................
9
10
Abreviaturas
aC antes de Cristo NT Novo Testamento
AT Antigo (ou Primeiro) Testamento p.ex. por exemplo
ca. cerca de par. paralelo a/e textos paralelos
cf. confira/conforme v.(vv.) versículo(s)
cap. capítulo(s) >Intr. ver Introdução (segue parágrafo)
dC depois de Cristo >com. ver comentário (segue referência)
lit. literalmente >exc. ver excurso (segue referência)
LXX Septuaginta, tradução grega do AT >Voc. ver Vocabulário (no fim)
Siglas Bíblicas
Ab Abdias Hb Hebreus Nm Números
Ag Ageu Is Isaías Os Oséias
Am Amós Jd Judas 1Pd 1 Pedro
Ap Apocalipse J1 Joel 2Pd 2 Pedro
At Atos dos Apóstolos Jn Jonas Pr Provérbios
Br Baruc Jo João Rm Romanos
Cl Colossenses 1Jo 1 João 1Rs 1 Reis
1Cor 1 Coríntios 2Jo 2 João 2Rs 2 Reis
2Cor 2 Coríntios 3Jo 3 João Rt Rute
1Cr 1 Crônicas Jó Jó Sb Sabedoria
2Cr 2 Crônicas Jr Jeremias Sf Sofonias
Ct Cântico dos Cânticos Js Josué Sl Salmos
Dn Daniel Jt Judite 1Sm 1 Samuel
Dt Deuteronômio Jz Juízes 2Sm 2 Samuel
Ecl Eclesiastes (Coélet) Lc Lucas Sr Sirácida (Eclesiástico)
Ef Efésios Lm Lamentações Tb Tobias
Esd Esdras Lv Levítico Tg Tiago
Est Ester 1Mc 1 Macabeus 1Tm 1 Timóteo
Ex Êxodo 2Mc 1 Macabeus 2Tm 2 Timóteo
Ez Ezequiel Mc Marcos 1Ts 1 Tessalonicenses
F1 Filipenses Ml Malaquias 2Ts 2 Tessalonicenses
Fm Filêmon Mq Miquéias Tt Tito
Gl Gálatas Mt Mateus Zc Zacarias
Gn Gênesis Na Naum
Hab Habacuc Ne Neemias
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
12
Prefácio à Segunda Edição
Natal de 2004
JOHAN KONINGS
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Introdução
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
2. ASPECTOS LITERÁRIOS
O acesso ao Quarto Evangelho começa por aquilo que está mais perto de
nós: o próprio texto. Só depois podemos considerar coisas menos seguras
como sejam o autor e seu ambiente. Muitas vezes só chegaremos a imaginar
o autor e seu ambiente a partir daquilo que o texto nos mostra, pois as
indicações externas são escassas. Convém, pois, neste momento, fazer uma
primeira leitura do Quarto Evangelho inteiro, se ainda não o fizemos — só
para conhecer o terreno.
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INTRODUÇÃO
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
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INTRODUÇÃO
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
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INTRODUÇÃO
estão no caminho da fé. Ora, alguns desses comentários fazem mais do que
esclarecer a narrativa. Têm valor teológico. Evocam a origem e o conhecimento
peculiar de Jesus, esclarecem a mensagem escondida que o texto veicula e
explicam expressões simbólicas ou de duplo sentido, incompreensíveis para “os
de fora”, revelam o sentido escondido das ações de Jesus etc. Assim, mostram
a solidariedade do autor com a comunidade fiel (p.ex. 2,22; 6,6; 12,16.33).
O Quarto Evangelho é um evangelho refletido e comentado pelo próprio
autor. Seus comentários induzem o leitor a superar o nível da narrativa, a
reconhecer sentidos mais profundos no texto, a perceber o simbolismo e
procurar um sentido de atualidade, em uma palavra, a interpretar o texto.
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
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INTRODUÇÃO
Mt Mc Lc Jo
prólogo 1,1-4 1,1-18
Ev. da Infância 1,1–2,22 1,5–2,50
vida pública (cf. At 10,37-43):
2 — As Cartas de João
As Cartas de João mostram muita semelhança temática com os discursos
de Jesus no Quarto Evangelho, especialmente Jo 15–16; como este trecho,
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
3 — O Apocalipse
O Apocalipse atribuído a João é muito diferente do Evangelho. Exata-
mente por isso nos impressionam certas semelhanças exclusivas, como a
figura do Cordeiro para representar Jesus e o nome de “palavra de Deus”
dado a este (Ap 19,13). O Evangelho de João e o Apocalipse situam-se no
mesmo ambiente eclesial, como insinua a tradição que refere o Evangelho de
João a Éfeso (Ásia Menor), região das sete Igrejas do Apocalipse (Ap 2–3).
Outras semelhanças são, em primeiro lugar, o tema do martírio e, mais
sutilmente, o das núpcias messiânicas (Ap 21–22, cf. Jo 2,1-10). Menos
exclusivo, mas de toda maneira significativo, é o tema do Espírito que fala
às Igrejas, papel que o Quarto Evangelho atribui ao Paráclito (cf. também “o
Deus do espírito dos profetas”, Ap 22,6). E as imagens grandiosas da luta
contra o Dragão/Satanás, no Apocalipse, não deixam de lembrar a veemência
do desmascaramento de Satanás em Jo 8,39-47.
A diferença entre o Evangelho de João e o Apocalipse está em primeiro
lugar na linguagem e no gênero literário (para o gênero apocalíptico, cf. os
comentários do Apocalipse). É bastante provável que os dois livros não tenham
sido escritos pelo mesmo escritor. Mas as meditações do Quarto Evangelho não
são inconciliáveis com os sonhos consignados no Apocalipse. Nem mesmo a
aparente diferença quanto à escatologia é tão grande assim. O Apocalipse usa,
por definição, imagens apocalípticas para falar do juízo e da vitória de Deus, do
Cordeiro e dos fiéis, e assegura aos fiéis que eles não conhecerão “a segunda
morte”. O Evangelho de João acentua que a opção por Jesus na fé é equivalente
ao Juízo e confere a “vida eterna” (“Já passaram da morte para a vida”, Jo 5,24).
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INTRODUÇÃO
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
autor destinatários
como supõe o quadro narrador ouvintes que acompanham
literário a narrativa de Jesus ano 30
como se dá na realidade teólogo, catequeta membros da comunidade
joanina ano 90, recebendo
reforço na fé
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INTRODUÇÃO
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
30
INTRODUÇÃO
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INTRODUÇÃO
2) Antes da destruição de Jerusalém (70 dC) pode ter havido uma primei-
ra redação escrita dessa pregação, que, além do anúncio de Jesus res-
suscitado como Messias e Senhor (o “querigma”), continha elementos
de iniciação cristã (catequese batismal) e de explicação das Escrituras
para os membros já integrados. Este evangelho já tinha as feições es-
pecíficas que o tornam diferente dos demais: os “sinais”, o simbolismo,
a cristologia da cruz e da glória, a escatologia “inaugurada”.
3) Depois da destruição do Templo (70 dC), que ensejou a restauração do
judaísmo (Jâmnia) nos anos 80-100, situar-se-ia a redação final da obra
como chegou até nós, acentuando a referência à comunidade e seu
conflito com o nascente judaísmo rabínico. À redação final parecem
pertencer certas releituras e complementos (Jo 3,16-21.31-36; 6,51-58;
12,37-50; os capítulos 15–16, talvez 17, e provavelmente, o Prólogo).
4) Alguns retoques e o cap. 21 pertencem a um acabamento dado no
momento em que o escrito foi posto em circulação entre as comuni-
dades pelo assim chamado “editor” do Evangelho de João. (O trecho
7,53–8,11, a perícope da adúltera, é ainda muito mais tardio; não está
nos manuscritos mais antigos; foi inserido no século IV; por isso, é
tratado à parte, no fim deste comentário.)
Como, todavia, o estilo é homogêneo, a distinção entre as fases 2 e 3 é
problemática. Também não é fácil referir o texto a determinados momentos
concretos da comunidade. João esfumou tais referências, apresentando um
relato da obra de Jesus. Certos estudiosos vêem uma oposição teológica e
eclesiológica entre a redação primeira (fase 2) e a redação final (fase 3), o
que faria do Quarto Evangelho uma veste mal-remendada em vez de uma
“veste sem costura” (alusão a 19,23). É uma opinião que merece considera-
ção. Mas, conforme a boa metodologia, partiremos sempre da análise do
texto como ele se apresenta atualmente, supondo sua coerência; lançaremos
mão de hipóteses de incoerência somente quando a coerência do texto se
mostrar insuficiente.
A intervenção do “editor” (fase 4) aparece com clareza no fim do cap.
21. Atualmente o Evangelho de João tem duas conclusões: 20,30-31, trecho
que, pelo conteúdo, deve ser atribuído à redação final do autor principal
(fase 3), e 21,24-25, fórmula nitidamente “editorial” (fase 4). Este “segundo
final” do Quarto Evangelho garante o testemunho daquele que escreveu o
evangelho, dando a impressão de que ele já morreu. A “edição” do Evange-
lho de João seria, portanto,póstuma.
Pelo que foi dito, podemos ver no Quarto Evangelho uma releitura da
pregação cristã, releitura que supera um vão de mais de meio século. Nesse
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
lapso de tempo aprofundou-se o sentido das palavras e dos fatos. Ora, o atual
Evangelho de João sobrepõe, muitas vezes, os diversos sentidos, como aliás já
acontece no AT. É um evangelho “ruminado” (cf. § 3.3.4). Os mesmos temas
são retomados em vários níveis de reflexão, situados em vários horizontes: o
da vida de Jesus, o da primeira pregação cristã, o das comunidades do fim do
século I. Deste modo, o Quarto Evangelho torna-se um exemplo daquilo que
a tradição e a pregação cristã sempre deverão ser: uma contínua releitura.
ca. 35: massacre dos ca. 35: perseguição da ca. 35: evangelização
samaritanos por comunidade cristã da Samaria e da Síria
Pilatos judeo-helenista conversão de Saulo
49: expulsão dos 49: Agripa II “inspetor” 48-49: “concílio” dos ca. 50: as “sentenças
judeus de Roma do Templo Apóstolos de Jesus” (Q)
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INTRODUÇÃO
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
Ora, a mão de João é mágica: transforma tudo que toca. Seu procedi-
mento na hora de redigir o texto modifica profundamente a letra e o teor das
tradições que utiliza. Por isso, o sentido que João quer dar a seu texto não
se encontra em primeiro lugar pela comparação com suas fontes — embora
útil, quando possível —, mas pela descoberta atenta da coerência do texto
que temos diante de nós. Para apreciar um tecido, vale mais ver a arte de sua
textura do que saber onde os fios foram comprados.
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INTRODUÇÃO
mundo
Império Romano
cultura helenista
“os judeus”
comunidade:
“no mundo,
não do mundo
Esse “mundo” (no sentido hostil) não se deixa identificar sem mais
com o sistema político (o poder absoluto do Império Romano servindo-se
da hegemonia local dos “judeus”), nem com o sistema econômico-social
(mercantilismo, concentração dos meios de produção e escravismo), nem
com o sistema cultural (cultura global do helenismo) ou religioso (a “re-
ligião lícita” do judaísmo no Império Romano). O “mundo” é tudo isso e
muito mais! É um polvo que, embora definitivamente reduzido à impotên-
cia, estende seus tentáculos pelo universo, no espaço e no tempo, até hoje.
É o domínio do opositor de Deus — o diábolos, o “chefe deste mundo”.
Devemos, pois, evitar uma hermenêutica unilateral, por exemplo, lendo
o Quarto Evangelho exclusivamente sob o ângulo do poder e tirando dele
uma mensagem que se refira apenas às instituições de poder. Importa fa-
zer também uma hermenêutica cultural, pensando na subjetividade no mun-
do de João e no nosso. Por isso, os aspectos considerados a seguir nada
têm de exaustivo, são antes exemplificações para apreendermos como a co-
munidade joanina se autopercebia e de que modo podemos assumir
o seu legado.
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
1 — Pobres e ricos
A narrativa do Quarto Evangelho não realça, geralmente, o mundo dos
pobres. Em vez de camponeses sofridos, como nos sinópticos, encontramos
João Batista, de família sacerdotal; uma família oferecendo ampla festa de
bodas em Caná; um fariseu e chefe dos judeus, Nicodemos; um funcionário
real em Cafarnaum, que se converte com “toda a sua casa”, isto é, família,
servos etc.; a família de Lázaro, que oferece um banquete a Jesus e recebe
visita dos judeus influentes de Jerusalém; e um discípulo predileto familia-
rizado com a casa do sumo sacerdote (18,15). Os discípulos são apresentados
como capazes de dar esmolas (13,29), e Judas não despreza a caixinha do
grupo (12,6). No fim aparecem José de Arimatéia e Maria de Mágdala,
personagens notoriamente abastados. Talvez o Evangelho de João reflita até
certo ponto a sociedade urbana helenista, com sua estrutura clientelista, na
qual cabia aos cidadãos influentes o cuidado dos pobres a eles ligados. A
participação desses cidadãos na comunidade (cf. também Tg 2,1ss; 4,13–
5,11) era, por um lado, edificante e benfazeja, mas, por outro, problemática:
facilmente se tornavam os donos do campo (p. ex. Diótrefes, na 3Jo). Exa-
tamente essas pessoas de prestígio eram as mais visadas pela concorrência
da Sinagoga, que procurava trazer os judeo-cristãos de volta para seu meio
(cf. Jo 12,42-43).
A pobreza e o uso do dinheiro não são a preocupação primordial de João.
Os únicos textos que mencionam o dinheiro são retomados tais quais da
tradição sinóptica (6,7 e 12,5) ou representam o estereótipo de que Judas era
ladrão (12,6 etc.) — talvez um indício de que João considera o amor ao
dinheiro como algo típico do traidor, dominado pelo diabo (13,2).
2 — Os excluídos
Por outro lado, o Quarto Evangelho é fortemente comunitário. Como as
sinagogas judaicas, a comunidade joanina certamente garantia proteção e pre-
vidência social para os pobres. A prática da esmola, herança do judaísmo, é
pressuposta em Jo 12,5-6; 13,29. E, se não aparece um ensinamento específico
e concreto em relação aos pobres, tanto mais pronunciado é o ensinamento
geral do amor fraterno a exemplo do Senhor. Insistindo no serviço mútuo
38
INTRODUÇÃO
3 — O “povão”
Se João não acentua a pobreza econômica, ele não esconde sua simpatia
para com os desprezados. No cap. 7, os policiais do Templo, por não terem
aprisionado Jesus e, pelo contrário, testemunhado a força excepcional de sua
palavra, são malditos pelos fariseus por não conhecerem a Lei. Eles são
tratados como o am ha-árets (o “povo da terra”, termo que, depois do exílio,
designava o povão que não conhecia a restauração da Lei efetuada por Esdras).
Mas são testemunhas de Jesus!
Coisa semelhante acontece a outras personagens que estão longe do grupo
dominante: o aleijado de Bezata (cap. 5) e sobretudo o cego de nascença,
implicado num interrogatório sobre a observância do sábado, enquanto tes-
temunha que Jesus é profeta (cap. 9). Também a samaritana é apresentada
como alguém à margem da sociedade: mulher e samaritana (4,9), porém
testemunha de Jesus. Enfim, em 12,19, os fariseus mostram desprezo pelas
multidões que prestigiam Jesus.
A todas essas pessoas é oferecido o dom de Deus em Jesus e, logicamente,
a acolhida em sua comunidade.
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
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INTRODUÇÃO
2 — O Império Romano
O Quarto Evangelho não exibe interesse especial pelo Império Romano
(à diferença, p.ex., dos escritos lucanos). Todavia, a maneira como é tratado
o processo de Jesus perante Pilatos (18,28–19,22) esbanja tanta ironia a
respeito do governador romano e sua autoridade que se deve concluir que,
no mínimo, João não busca a simpatia dos romanos. João apresenta Pilatos
como fantoche nas mãos dos “judeus” ou como cínico em relação a eles e
a Jesus; sua declaração da inocência de Jesus nada significa (>com. 19,38).
João está longe de Lucas, que vê no Império Romano uma proteção e veí-
culo para a expansão do evangelho.
por causa de seu brilho (Jo 7,1-10). Neste sentido, deve-se entender o lugar
programático da purificação do Templo logo no início do Quarto Evangelho
(2,13-21): João deixa claro que o Templo (e o que ele representa) “já era”.
A perspectiva jerosolimitana de João é irônica.
42
INTRODUÇÃO
3 — Comunidade perseguida
As comunidades joaninas são ao mesmo tempo missionárias e perseguidas.
Ameaçadas pelo “mundo”, dão testemunho de Jesus. Esse “mundo” é concre-
tizado em dois círculos concêntricos: um mais amplo, a sociedade do Império
Romano, e um mais restrito, representado pelo termo “os judeus” (§ 3.2, intr.).
Assim, as comunidades do Quarto Evangelho dão a impressão de constituir
um grupo em autodefesa, quase um gueto na sociedade daquele tempo.
Um indício freqüentemente citado para situar o Quarto Evangelho no seu
contexto sócio-histórico é a referência à expulsão dos cristãos da sinagoga
(9,22 e 12,42; cf. também 16,2). No nível da história contemporânea de Jesus,
esse tema é certamente um anacronismo. Os outros evangelhos não deixam
transparecer decisão alguma neste sentido da parte das autoridades judaicas
durante a vida de Jesus; pois neste momento, o grupo de seus seguidores era
ainda insignificante. Mas, bem cedo, pouco depois da morte de Jesus, já ocor-
reram perseguições no âmbito das sinagogas judaicas, como mostram as narra-
tivas sobre Estêvão e Paulo em At 6–7 e At 9 (veja também Mc 13,9-13 par.).
João testemunha que tornar-se cristão ou continuar a sê-lo era problemá-
tico nas comunidades que ele representa, e veremos que isso tem implica-
ções notáveis para a interpretação do texto. Continua aberta a questão se esse
conflito com a sinagoga deve ser localizado no fim do primeiro século,
quando do sínodo rabínico de Jâmnia e quando da inserção, na oração ma-
tinal dos judeus, da “bênção contra os hereges” (a birkat ha-minim, ca. 85
dC), ou já em décadas anteriores.
4 — Os “judeus”
Qual é o significado da expressão “os judeus” usada por João? Este
termo aparece com freqüência para indicar os opositores de Jesus e de seus
seguidores. Ora, Jesus e seus discípulos eram judeus. Portanto, quando usado
por João com conotação adversativa, esse termo não indica os judeus em
geral. Indica um grupo especial no ambiente judaico: o grupo oposto a Jesus
e a seus discípulos e, de modo especial, os líderes ou autoridades desse grupo.
Neste sentido específico, grafamos geralmente “os judeus” entre aspas.
A maneira joanina de falar em “os judeus” só faz sentido se já houve
uma ruptura entre os (judeo-)cristãos e esses judeus “anticristãos”. Os evange-
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
lhos sinópticos nunca falam assim. Nos escritos paulinos, o termo “judeu”
pode ter (1) o sentido estritamente religioso, que indica os judeus enquanto
adeptos da Lei de Moisés (mesmo se participam da comunidade cristã, como
é o caso dos “judaizantes” na comunidade); ou (2) o sentido étnico, indican-
do a “etnia” judaica, dispersa pelo mundo, e da qual o próprio Paulo faz
parte. Lucas usa o termo nos mesmos sentidos que Paulo, mas nos Atos,
quando da morte de Tiago Maior por iniciativa do rei Herodes Agripa (42
dC), o termo “os judeus” aparece num sentido comparável ao do Quarto
Evangelho (At 12,3), revelando o distanciamento entre a comunidade
(judeo-)cristã e os judeus não-cristãos.
Focalizando o Quarto Evangelho mais de perto, percebemos que “os
judeus” no sentido adversativo são um grupo que tem peso político e social
e até certo poder de decisão. Embora situados principalmente em Jerusalém
(Jo 1,19 etc.), encontram-se também na Galiléia como opositores de Jesus
(Jo 6,41.52). São aqueles que não aderiram a Jesus, nem quando da vida
dele, nem, sobretudo, no tempo da pregação apostólica. São judeus conscien-
tes, avessos aos que reconheciam Jesus como Messias e lhe davam o título
de “Filho de Deus”. Ora, não se esqueça de que, étnica e culturalmente,
muitos cristãos — também nas comunidades joaninas — eram judeus! “Os
judeus” são, portanto, irmãos dos cristãos, com a diferença de não aceitarem
a messianidade e missão divina de Jesus. O próprio Evangelho de João pode
ser chamado o mais judaico de todos, dada a profunda influência da tradição
bíblica neste escrito.
O Prólogo estabelece um paralelismo entre o mundo e o povo eleito: “(A
Palavra) estava no mundo..., mas o mundo não a reconheceu; ela veio para
o que era seu (= Israel), mas os seus não a acolheram” (Jo 1,10-11). Estas
frases, porém, não são válidas de modo absoluto, pois João continua: “A
quantos porém a acolheram...” (1,13), incluindo bom número de judeus. João
trata “os judeus” com animosidade profética. Não, porém, por serem judeus
no sentido étnico. Nas Cartas, certos “cristãos” são criticados com o mesmo
rigor (cf. 1Jo 2,19! também 4,3; 4,8; 2Jo 9; 3Jo 9-10).
Em suma, ao usar o termo “os judeus” em sentido hostil, João aponta o
grupo judaico dominante quer no tempo de Jesus, quer no tempo das comu-
nidades joaninas (constituídas de judeus e não-judeus). O problema é que
João não distingue esses dois momentos e projeta anacronicamente a situa-
ção ulterior sobre a narrativa do ministério de Jesus. Funde em um só o
horizonte do ano 30 e o do ano 90. De toda maneira, não há razão para
deduzir, do uso desse termo, que o Evangelho de João seja antijudaico. A
impressão de antijudaísmo poderia ser evitada se tivéssemos outro termo
44
INTRODUÇÃO
para expressar tudo o que João quer dizer por judeu (no tempo de Jesus: o
povo judeu, os habitantes da Judéia, as autoridades judaicas; e meio século
mais tarde, o novo judaísmo, enquanto oposto aos cristãos).
Acusar João de anti-semitismo seria um anacronismo. Mas quando se
instituiu o regime de cristandade, os cristãos deixaram aos judeus só um
lugar marginal na sociedade; na Idade Média, os cristãos, proibidos de co-
brar juros entre si, faziam isso por intermédio dos judeus. Foi então que as
expressões de João se tornaram lenha na fogueira do antijudaísmo.
Uma pergunta final. João diz que os judeus não entenderam Jesus (e seus
seguidores): pensam que Jesus se faz igual a Deus etc. (5,18 e.o.). Mas será
que João entendeu bem os judeus? O judaísmo rabínico restituiu ao povo o
encontro com Deus, não mais no Templo (destruído em 70 dC), mas na Torá.
João vê a “Morada” de Deus em Jesus ressuscitado unido à sua comunidade
(2,22; 14,23). Uma coisa exclui a outra? Serão tão diferentes? Não renova
Jesus o antigo mandamento do amor fraterno em nome da paternidade do Pai
(1,34-35; cf. 1Jo 2,7-11)? São questões a ser retomadas em forma de diálogo,
depois de dois milênios de inimizade. E coisa semelhante vale para a relação
da comunidade cristã com outros caminhos de salvação. O caso do judaísmo
é emblemático.
5 — João Batista
O Quarto Evangelho demonstra um interesse muito grande pela figura de
João Batista e por seus discípulos. Já no Prólogo encontramos dois parênte-
ses que explicam que João não era a “luz”, mas deu testemunho dela (1,6-
8) e de sua preexistência (1,15). A narrativa propriamente inicia-se por um
elaborado testemunho do Batista (1,19-36), resultando no encaminhamento
de seus discípulos para Jesus (1,35-36). O Batista e os discípulos voltam à
cena, para outro testemunho (referindo-se ao primeiro), em 3,22-30. Em
5,33-35, Jesus mesmo aponta o testemunho de João como lâmpada passageira
que anunciava a luz verdadeira. Em 10,40-42 desponta ainda uma vez, discre-
tamente, a ratificação do povo a respeito do testemunho de João Batista. O
ritmo e tamanho das referências vai decrescendo ao longo do Evangelho,
ilustrando a palavra do Batista em 3,30: “Ele deve crescer, eu, decrescer”.
O que o evangelista quer com esse testemunho do Batista? Em At 18,24–
19,7 ficamos sabendo que ainda pela metade do século I existiam, na diáspora
de Éfeso, discípulos de João Batista, “joanitas”. Será que João busca apro-
ximar esses “joanitas” da comunidade cristã? Não temos certeza de que a
comunidade “joanita” ainda existia no fim do século. Será que a comunidade
do Batista desapareceu, e seu lugar foi assumido pela de Jesus? Isso é pro-
45
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
6 — Samaritanos e gregos
Os samaritanos, habitantes da Palestina central, têm raízes no antigo “reino
do Norte”, que se separou de Judá depois de Salomão (1Rs 12). A oposição
irreconciliável entre judeus e samaritanos (Jo 4,9!) parece ser de data mais
recente, especialmente depois da construção do Templo samaritano do Garizim,
no século IV, e sua destruição, em 128 aC, pelo rei judeu João Hircano (cf.
4,19). Contudo, mesmo se entre os dois existe ódio, há muito que os une. São
do mesmo sangue, “filhos de Israel”. Os samaritanos celebram a Páscoa,
memorial do Êxodo. Lêem a parte principal da Bíblia, os Livros de Moisés,
o qual é para eles o protótipo do profeta que deve vir ao mundo (cf. Jo 4,25).
Têm sua diáspora, os samaritanos dispersos pelo mundo, possuindo até uma
tradução própria da Torá em grego. Jo 11,52 parece aludir à promessa messiâ-
nica da nova união entre judeus e samaritanos (cf. também 10,16).
É difícil saber quem são “os gregos” de que fala Jo 7,35; 12,20. Serão
gentios (não-judeus achegados ao judaísmo, como os “tementes a Deus” e os
“prosélitos” mencionados nos Atos dos Apóstolos)? Ou serão judeus helenistas
da diáspora, aparentemente menos agressivos contra o grupo cristão que os
judeus de Jerusalém no ano 30 e os de Jâmnia nos anos 80? Voltaremos a
essa questão no comentário a Jo 7,35.
7 — João e o culto
Alguns comentadores vêem no Evangelho de João um evangelho “sacer-
dotal”. Não apenas certos trechos (p.ex., cap. 17) mostram estilo e vocabu-
lário sacerdotais, como o misterioso Discípulo Amado parece conhecer bem
o ambiente sacerdotal em Jerusalém. A isso se acrescenta o interesse, embora
ambíguo, que João demonstra pelo Templo (o próprio evangelho parece
introduzir o leitor/ouvinte num espaço sagrado). Finalmente, o nome de
João, atribuído ao autor, é um nome freqüente nas famílias sacerdotais do
tempo dos Macabeus e de Jesus.
46
INTRODUÇÃO
Tais indícios, por interessantes que sejam, devem ser interpretados com
cuidado. Em nenhum lugar transparece uma atitude conivente com o sistema
do Templo. Aliás, João distancia-se das instituições judaicas em geral: fala
em “festa dos judeus” (2,13; 5,1; 6,4; 7,2; 11,55), “vossa Lei” (8,17; 10,34;
cf. “Lei deles”, 15,25). Onde a linguagem de João parece sugerir um novo
culto (>com. 4,22-24), esse se situa na linha do culto “espiritual” ou “racio-
nal” das cartas do Novo Testamento (Rm 12,1; Hb 13,15; 1Pd 2,5). E, se
Jo 17,19 (como Hb) vê na prática de Jesus, fiel até a morte, uma “consagra-
ção”, isso não deve ser entendido no sentido do culto antigo, mas sim como
realidade nova, que torna supérfluo o culto antigo. João substitui os grandes
símbolos do sistema religioso de Israel pela pessoa de Jesus Cristo.
47
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
proposto por Jesus (Mt 5,21-48). Mateus não rompe com o judaísmo, mas
compara e compete. Reconhece que o Jesus terreno foi um mestre para as
ovelhas perdidas de Israel (Mt 10,6; 15,24), embora depois de sua ressurreição
“todas as nações” devam ser acolhidas como discípulos seus (28,19).
João, numa situação semelhante à de Mateus, rompe tão radicalmente
com o judaísmo dominante quanto Paulo. Deixa Jesus falar aos escribas e
fariseus em termos de “vossa Lei” etc. Sobretudo, relata com ironia a desis-
tência dos “judeus” da aliança e da expectativa messiânica, quando dizem:
“Não temos outro rei senão César” (19,15).
48
INTRODUÇÃO
49
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
3.2.5 Conclusão
O Quarto Evangelho se ambienta numa comunidade de tipo judeo-cristão
helenista, comparável sob certos aspectos às de Tiago e de Mateus, porém,
vivendo em conflito aberto com o judaísmo dominante do último quartel do
século I (Jâmnia) e em crescente distanciamento de outras esferas do “mun-
do” (o Império Romano, a cultura helenista). Não obstante, assume decidi-
damente sua missão “no mundo”, no testemunho da fé e da caridade a partir
da experiência de Jesus de Nazaré.
50
INTRODUÇÃO
3.3.1 Testemunho e fé
O Quarto Evangelho quer ser lido ou escutado como o testemunho apos-
tólico de que Jesus é o Messias e Filho de Deus, para que na firmeza dessa
fé o ouvinte tenha “vida” (20,31).
Esse testemunho fala diversas vezes da missão e, sobretudo, apresenta
Jesus como o grande Enviado do Pai. Talvez os fiéis da comunidade joanina
se reconhecessem na figura do Enviado. Nessas comunidades ainda existiam
os missionários itinerantes que, pelo que se supõe, marcaram o início do
cristianismo; textos como Jo 13,20 e, sobretudo, 3Jo 5-8 confirmam isso.
Que anunciavam esses missionários? O Quarto Evangelho pouco fala do
Reino de Deus, conteúdo primordial do anúncio missionário. Provavelmente,
como na missão de Paulo, não o “Reino”, mas Jesus mesmo era o centro do
anúncio dos missionários joaninos. João menciona o “Reino” apenas num
caso muito específico, quando ele reproduz a linguagem da expectativa ju-
daica (Jo 3,3.5). Não parece afinado com o “reino de Deus” no sentido da
esperança judaica daquele tempo. Prega, sim, a messianidade e o papel sal-
vífico daquele “de quem falam a Lei e os Profetas” (1,45), embora sugira
também em relação a isso correções fundamentais (>com. 6,14; 12,34). Por
outro lado, a discussão com a sinagoga rabínica faz pensar que, no tempo da
redação final do Evangelho, a própria comunidade joanina já estivesse orga-
nizada como sinagoga alternativa e a vida itinerante era antes exceção que
regra. Também isso transparece nas cartas joaninas. Seguir Jesus não é ne-
cessariamente sair pela rua afora; seguimento parece antes significar a con-
fissão de fé, até o martírio (= testemunho) de sangue.
51
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
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INTRODUÇÃO
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
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INTRODUÇÃO
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
3.3.7 Cristologia
No afã de fazer transparecer nesse Jesus de Nazaré o agir de Deus, João
no-lo apresenta com todos os “títulos” da cristologia, mas nenhum é tão
significativo e abrangente quanto o de “Filho”. A messianidade e a divindade
de Jesus devem ser entendidas a partir de seu amor filial, sua “paixão” por
fazer o que o Pai deseja e por revelar o que o Pai lhe dá a conhecer. “Eu e
o Pai somos um” (10,30), “Quem me vê, vê o Pai” (14,9), “O Pai é maior
do que eu” (14,28): nessas três frases resume-se a cristologia joanina.
Nossa busca e nosso agir serão orientados pelo que vemos de Deus em
Jesus (14,9). Nos dias de hoje, quando todos os tipos de religião e de filosofia
de vida se vendem nos supermercados, tal “cristocentrismo” parece até sectá-
rio, mas talvez leve as pessoas estressadas e estraçalhadas, as comunidades
desfeitas e desmontadas a reencontrar um ponto de integração. Não adianta
colher um pouco de todas as religiões: quem quer tudo não ganha nada, mas
quem se apaixona por algo ou alguém que faz viver, viverá de verdade.
Não se trata, porém, de fazer de Jesus um “outro Deus”, como incriminam
os “judeus” no Evangelho segundo João (5,18; 10,33), porque não entendem o
“mistério do Filho”. Jesus é um com Deus enquanto Filho (por isso, o dogma
da Trindade mais tarde distinguirá as “pessoas” divinas). A “divindade” de Jesus
se manifesta a nós no seu amor e obediência filiais. Deus é maior que Jesus.
Assim, o “cristocentrismo” não exclui a abertura para com todos aque-
les que buscam Deus por outros caminhos. O que importa é termos a certeza
de que o Deus verdadeiro manifesta seu rosto em Jesus de Nazaré.
É no quadro deste cristocentrismo que se compreendem os sinais narra-
dos no Quarto Evangelho. Não são “provas” de sua divindade, mas sinais
pelos quais Deus manifesta que está com ele (Jo 3,2) e realiza nele as suas
obras (14,11). Portanto, seu valor não consiste em terem acontecido tais
quais, mas em deixar-nos descobrir o Pai que está presente em Jesus.
Temos, em João, uma cristologia ao mesmo tempo narrativa e simbólica:
Se Jesus é “o relato do Deus Invisível”, a narrativa é fundamental. Ora, essa
narrativa é banhada nos símbolos que assinalam o lado indizível da obra de
Jesus: luz, vida, alimento…
3.3.8 Escatologia
Cristologia e escatologia são inseparáveis, pois o Cristo/Messias deve inau-
gurar o tempo do Fim, o reinado de Deus no mundo, tempo de paz e de
plenitude (shalom) — depois de vencidos os inimigos. Mas porque tais repre-
sentações não expressavam bem a missão de Jesus, João evita falar em “reino
56
INTRODUÇÃO
de Deus” (>com. 3,3.5; >exc. 19,15). Substitui praticamente esse conceito por
“vida eterna”: a vida que vivemos na opção de fé assumida diante da palavra
e da prática de Jesus é o exercício da vontade de Deus, desde já — ou seja,
aquilo que o “reinado de Deus”, profundamente, significa.
Quem crê em Jesus vive aquilo que condiz com Deus, o que é definiti-
vamente válido, enquanto for fiel. “Quem ouve minha palavra e crê naquele
que me enviou tem a vida eterna e não vai a juízo, mas já passou da morte
para a vida” (Jo 5,24).
“Vida eterna” deve ser entendido não como um prolongamento matema-
ticamente infinito desta vida — não valeria a pena! —, mas como vida do
momento novo que vem substituir este tempo desgastado, “este mundo”. É
um salto qualitativo, que começa já, na fé em Cristo e no seguimento de sua
prática. E porque a morte/ressurreição de Cristo foi a manifestação clara
desta vida de Deus que, no dom da vida, supera a morte, chamamos essa
“escatologia-já” de “existência pascal”.
Outra imagem escatológica é a “nova Aliança”, evocada no coração da
tradição evangélica, nas palavras eucarísticas de Jesus (Lc 22,20; 1Cor 11,25;
cf. Mt 26,28; Mc 14,24). Mais adiante remetemos a textos que anunciam a
renovação de Israel e da Aliança pela conversão e pelo ensinamento de Deus
no “coração (novo)” dos que dão ouvido a Jesus (cf. Jr 33,31-33; Ez 36; Is
54,13 etc..). A observância do “mandamento”, condição-base da Aliança, é
um tema forte dos caps. 13–17. Apesar disso, o termo “Aliança” falta por
completo em João. Tem-se a impressão de que João nos transmite o conteú-
do da nova Aliança em outra embalagem, talvez para não criar a ilusão de
uma mera renovação do tempo antigo — assim como evita o termo “Reino
de Deus”, preferindo falar em “vida eterna” (cf. supra).
3.3.9 Pneumatologia
João dá um grande lugar ao Espírito Santo, dom escatológico por excelên-
cia. João Batista diz que o Espírito Santo desceu sobre Jesus e permaneceu,
pois ele é quem batiza com o Espírito Santo. Esse dom do Espírito vem
propriamente quando Jesus, glorificado na morte de cruz (cf. 7,39!), volta ao
Pai e nos confia o campo do mundo para nós realizemos “obras maiores” do
que ele realizou (14,12). Naquele momento, no tempo de nossa existência
pascal, ele rogará ao Pai para que nos envie o “Espírito da verdade”, chamado
também o Paráclito (14,16-17; >exc. 14,17), para ser nosso auxílio na missão
no mundo e nosso defensor no processo com o mundo (16,7-11), guiando-nos
na plena verdade de cada momento histórico (16,13). Ressuscitado, Jesus dá,
no dia da Páscoa, aos discípulos o dom do Espírito Santo (20,19-23).
57
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
Embora a “carne” não salve (Jo 6,63), o Jesus de João não despreza
a carne; pelo contrário, nela “encarna” as primícias da vida nova que ele
torna acessível para nós. O caso mais claro é a ressurreição de Lázaro.
Depois da bela confissão de fé na “vida eterna já” pronunciada por Marta
(11,25-27), Jesus não acha supérfluo ressuscitar Lázaro materialmente. As-
sim também, no episódio da multiplicação dos pães, apesar de o pão material
não produzir por si a vida da eternidade, Jesus alimenta de fato cinco mil
pessoas com cinco pães e dois peixes. Por sua materialidade, os sinais mostram
que a salvação trazida por Jesus não despreza a materialidade. Isso nos deve
libertar definitivamente da leitura “espiritualizante” do Evangelho de João.
Como bom judeu, João sabe que “espírito” significa nova criação (3,3-5; cf.
Gn 1,2; Sl 104,29-30), sopro de Deus tomando forma material em vida nova.
Muitas vezes, em João, o termo “(este) mundo” tem sentido negativo (re-
cusa Jesus e Deus, tem o diabo por chefe). Olhando a partir do Jesus do Quarto
Evangelho, será que existe uma alternativa histórica em face “deste mundo”?
A fraternidade? Mas não uma fraternidade qualquer, como as haburot dos fariseus,
que João situa no lado do “mundo”. Para João, a comunidade alternativa é a
fraternidade radicada na fé em Jesus, o Cristo, vencedor do príncipe do mal.
59
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
João recusa, nesse mundo renitente, é sua rejeição de Jesus e de sua comu-
nidade. Em função disso, que valor tem para ele o cotidiano dessa cultura?
Imaginemos concretamente as comunidades joaninas, vivendo em torno
das cidades da Síria e da Ásia Menor, comunidades compostas de pequenos
negociantes, artesãos, agricultores autônomos ou arrendatários, escravos liber-
tos e até algumas pessoas de status superior — antigos líderes farisaicos,
sacerdotes, funcionários imperiais etc. Essas pessoas tinham até certo ponto
acesso à cultura do mundo helenístico, ao qual o judaísmo estava acostumado
desde o tempo de Alexandre (do século IV aC em diante). No ambiente do
Quarto Evangelho deve ter sido normal a instrução escolar não só para ler a
Torá, mas também para lidar com o comércio, a administração e a cultura
greco-romana. A interpenetração da cultura judaica com a oriental e a grega já
se tinha revelado no Sirácida (século II aC) e sobretudo na Sabedoria de Salomão
(sé-culo I aC), escritos conhecidos no âmbito de João. O próprio judaísmo
abrigava muitas maneiras de compreender o mundo e não ficava alheio ao
platonismo médio. Isso era possível porque o judaísmo não é um sistema
filosófico, mas a observância de tradições morais e rituais prescritas pela Torá,
interpretadas em diversos sentidos, geralmente simbólicos. Salvaguardado o
respeito pela Torá, o judaísmo daquele tempo permitia muitas mundividências.
Esse ambiente cultural era aceitável para João e sua comunidade? Sim,
na medida em que fosse capaz de abrigar o apelo absoluto de Jesus como
Palavra de Deus e abrisse espaço para a comunidade que confessava a mis-
são divina de Jesus.
O Evangelho de João participa da cultura de seu tempo. Sua linguagem
é um bom grego médio (koiné), ele lança mão dos recursos literários que se
aprendiam nas escolas helenísticas: narrativa, retórica, dramática, poesia.
Usa termos “da moda” na cultura helenista, p.ex. logos, ainda que o conteú-
do não seja tão grego assim (>com. 1,1). Ora, João “está no mundo, mas não
é do mundo”. Mantém distância, pois a missão divina de Jesus era entendida
pelos judeus da sinagoga como divinização indevida de Jesus (Jo 5,18 etc.)
e, pelos pagãos, como alienação em relação à festiva religiosidade mediter-
rânea, praticada em torno de eventos religioso-civis, atribuindo caráter divi-
no às “instâncias reguladoras” da produção, do mercado e da política, os
deuses de diversas “especializações”, Eros, Fortuna e até o próprio Impera-
dor. Imagina-se que fiéis que proclamam a glória da cruz não se misturem
com essas festanças. Mas também a vertente judaica causa problemas. A
comunidade joanina abrira-se aos não-judeus e, no fim do século, estava
sendo expulsa ou até perseguida pelo judaísmo restaurador de Jâmnia. Os
cristãos eram tão estranhos no mundo quanto o próprio Enviado do Pai, que
60
INTRODUÇÃO
4. RECEPÇÃO E EFEITO
4.1 Canonicidade
O Quarto Evangelho cedo foi aceito na Igreja, como mostram duas tes-
temunhas do fim do século II dC: o “Cânon de Muratori”, documento da
Igreja de Roma, provavelmente dirigido contra o sectarismo de Marcião; e
Sto. Ireneu de Lião, que defende João contra a interpretação gnóstica.
61
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
62
INTRODUÇÃO
5. NOSSA LEITURA
5.1 Chaves
1 — O olhar de João
João é simbolizado pela águia (um dos quatro seres vivos de Ez 1,5-21
e Ap 4,7), porque levanta vôo alto e sobreolha o panorama com um olhar
abrangente. Será verdade? Não olha João quase que exclusivamente para sua
comunidade? A comparação com a águia sugeriu a muitos o alto vôo filo-
sófico do Prólogo. Prefiro interpretar a imagem de outra maneira: João vê ao
mesmo tempo o passado — o tempo de Jesus — e o presente — o tempo
da comunidade.
João apresenta os gestos e as palavras de Jesus sobre um duplo pano de
fundo, o do ano 30, tempo histórico de Jesus, e o do ano 90, tempo da
comunidade; une, de modo sugestivo, como duas imagens sobrepostas, o
horizonte do ano 30 e o do ano 90. Com isso, mostra a atualidade, na
comunidade, daquilo que aconteceu a Jesus: “Se o mundo vos odeia, sabei
63
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
que primeiro odiou a mim (15,18)”. Ele nos ensina a ler e a ver Jesus no
tempo da comunidade atual. Deixa Jesus — o “Jesus eclesial” — falar como
se ele vivesse no tempo da comunidade. Assim, dá-nos um exemplo de
leitura atualizada. O que aconteceu a Jesus e seus discípulos aconteceu à
comunidade meio século mais tarde, e ainda hoje.
2 — A memória de Jesus
O Quarto Evangelho guarda a memória de Jesus. Ainda que seletivamen-
te, escreve a narrativa daquilo que Jesus fez (20,30), para os que devem crer
sem ter visto (20,29). Jesus é “o relato de Deus” (1,18). Não se pode ser
cristão sem dar crédito ao modo de agir de Jesus de Nazaré, homem sem
prestígio (1,46!), porém profeta confirmado por sinais (3,2; 20,30), dirigin-
do-se aos discípulos do Batista (1,38), a um fariseu proeminente (3,1), aos
samaritanos (4,4-42), a um funcionário do rei (4,46-54), a um enfermo su-
persticioso (5,1-14), aos galileus (6,1-15), a um mendigo cego (9,1-41), à
minicomunidade de Betânia (11,1-41)...
Ao descrever essa atividade confirmada por sinais, João carrega nas
tintas, como faz qualquer bom pintor. Projeta, por assim dizer, uma auréola
em torno da cabeça de Jesus, um halo em torno de seus gestos. Mas isso não
desfaz a realidade do fato: o retratado é o próprio Jesus, que superou o
sistema do Templo (2,13-21), para que também o leitor supere as estruturas
caducas do seu tempo. Que se revelou aos “sincretistas” samaritanos, a ponto
de ser com eles identificado (8,48), para que os cristãos não tenham medo
de ir aos “sincretistas” de hoje. Que proferiu suas últimas palavras públicas
na presença de “gregos” (12,20-36), em sinal de que ele quer atrair todos a
si (12,32). Que morreu na cruz (12,33) e se tornou um desafio para que nós
também demos a vida pelos irmãos (1Jo 3,16).
Sem a memória da práxis de Jesus, nossa fé é vazia, paira no ar, não
atinge o chão.
64
INTRODUÇÃO
4 — A presença do Espírito-intérprete
Enquanto vivia, Jesus podia explicar e aplicar suas palavras de viva voz
para a circunstância de seus discípulos. Não precisava dizer tudo (16,4).
Depois de sua despedida, é preciso que suas palavras sejam interpretadas à
luz da nova realidade. Quem faz isso é aquele que conduz a comunidade na
verdade de cada novo momento, a verdade plenificada, atualizada: o Paráclito,
o Espírito da Verdade (16,13). Na ausência física de Jesus, ele faz a mesma
coisa que Jesus quando presente: põe os seus em contato com a Verdade do
Pai, o projeto de Deus a respeito do mundo e de todos nós. Ele é o “outro
Paráclito” (14,16), aquele que toma o lugar de Jesus na revelação de Deus
e de sua vontade. Ele é “a diferença entre Jesus e o Pai”: ele preenche o
espaço que sobrou entre Jesus-carne, limitado no tempo e no espaço, e o Pai,
Deus em sua transcendência. Por isso se chama “espírito”. Pois “o Espírito
de Deus enche o universo” (Sb 1,7).
O Apocalipse nos mostra “o Espírito da profecia” nas comunidades joaninas.
As cartas às sete Igrejas (Ap 2–3) são “o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap
2,7 etc.). Também hoje o Espírito fala às Igrejas. João nos ensina a ver a Igreja
como realidade pneumática, conduzida pelo Espírito que Jesus nos deixou.
Ora, qual é esse Espírito? 1Jo estabelece critérios para ver se é realmente o
espírito de Cristo que fala às Igrejas: “De Deus é todo espírito que professa
a fé em Jesus Cristo que veio na carne” (1Jo 4,2). O que o Espírito produz
não são os sentimentos subjetivos e muito menos a afirmação pessoal, mas a
confissão do Jesus que “veio em carne”, aquele que o evangelho nos dá
a conhecer, não aquele que nossa filosofia ou fantasia inventam!
João escreveu seu evangelho para aqueles que crêem sem ter sido teste-
munhas oculares (Jo 20,29 + 30-31) e transmite às gerações posteriores
aquele que por sua vida “conta” quem é Deus (Jo 1,18). A fidelidade a este
Cristo, encontrado no testemunho do NT e na prática de seu mandamento
transmitida na comunidade, é o critério para saber se é o Pneuma, o Espírito
da Verdade, que fala à Igreja e nos conduz na plena verdade (Jo 16,13).
65
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
6 — Comunhão e diálogo
João parece fechado na perspectiva da comunidade, pouco ecumênico,
irônico para com os de fora. Mostra abertura para os discípulos do Batista
e os samaritanos, desde que reconheçam Jesus, mas não abre brecha alguma
para os mestres judaicos, e as outras religiões nem entraram no seu horizon-
te. Que devemos pensar disso?
“Eu sou a porta”, diz o Jesus joanino, com exclusivismo chocante (Jo
10,7.9). João escreve para os membros de sua comunidade (e de outras,
afins, 10,16), para confirmá-las na certeza de que o rosto de Deus, Pai de
Jesus, se manifesta no amor do Filho, testemunhado pelos “que viram” (Jo
19,35; 20,30-31; 1Jo 1,1-4). Não escreve para dialogar com outros caminhos
pelos quais se espalharam “as sementes da Palavra” — termo adotado pelo
Concílio Vaticano II. Escreve para fortalecer os fiéis contra a apostasia e
para que a comunidade continue vivendo o amor que Jesus lhe ensinou,
enxergando nele o rosto do Pai e mostrando este rosto ao mundo por sua
prática “monitorada” pelo Paráclito.
João prioriza as relações de fraternidade, participação e comunhão dentro
da comunidade. Se estas não são levadas a sério, não podemos seriamente
entrar em diálogo com o mundo, pois é por nosso amor fraterno que o
mundo nos reconhece (Jo 13,35). Por outro lado, o diálogo com o mundo
fora de nossas comunidades nos ajuda a valorar o que Jesus nos legou. No
próprio Evangelho de João constatamos atitudes diferenciadas: abertura para
66
INTRODUÇÃO
7 — Simbolismo e sacramentos
O símbolo é a parte visível da realidade invisível, torna presente o que não
se vê. O Evangelho de João está cheio de símbolos. Jesus providencia vinho
para revelar a hora das núpcias messiânicas. Cura um aleijado para revelar o
dom da vida que supera o desânimo e o pecado. Providencia pão para revelar
que ele é o alimento de Deus que nos faz viver, sobretudo pelo dom da própria
vida. Jesus abre os olhos do cego porque é a luz do mundo. Ressuscita Lázaro
porque é a ressurreição e a vida. Lava os pés dos apóstolos porque é o Servo
de Deus que dá sua vida por todos. Aparece a Madalena como um operário
porque está presente na comunidade dos irmãos.
Os olhos vêem a aparência, o coração vê o que está escondido. O sentido
dos símbolos em João só é percebido com os olhos da fé. Mas a fé é
comunitária. Por isso, certos símbolos vão fazer parte da vida da comunida-
de. É o caso do pão, que faz reconhecer em Jesus o dom do conhecimento
do Pai e o dom da vida — especialmente quando aquele que é Pão dá a
própria vida para que o mundo tenha vida (Jo 6,51). O pão repartido é o lado
visível desse mistério: é o sacramento da Eucaristia. Coisa semelhante se
produz quando a água de Siloé restabelece aquele que não enxergava, e
assim o inclui na comunidade dos que crêem, enquanto a sinagoga o exclui
(Jo 9,1-41): Siloé é o Enviado (9,7), o banho no “Enviado” simboliza o
batismo em Cristo, chamado de “iluminação” pelos primeiros cristãos: abre
os olhos da fé e inclui na comunidade.
Assim, em diversos lugares o Quarto Evangelho evoca os sinais sagra-
dos da comunidade, os sacramentos. Faz parte deste evangelho “iniciático”
introduzir ou confirmar o leitor no espaço sagrado que leva o nome de
Cristo, na prática da comunidade fraterna e nos seus sinais sagrados, prin-
cipalmente o batismo (Jo 3,1-21; 9,1-41; e cf. 4,4-27) e a Eucaristia (Jo 6,1-
58), e talvez o perdão dos pecados (20,19-23). Ora, João respeita o caráter
simbólico. Assim como nos sinais milagrosos o acento não está no fato
material, mas no sentido que ele revela, assim também as alusões aos sa-
67
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
cramentos não são prescrições rituais, mas evocações simbólicas que deixam
transparecer o sentido do sacramento. Assim, quando, no cap. 6, desenvolve
os diversos sentidos do pão da vida, João parece estar sugerindo: “Eis o que
vivemos quando comemos e bebemos pão e vinho na Eucaristia”; e no cap.
9: “Eis o que acontece quando pelo batismo alguém é acolhido na comuni-
dade de Jesus”.
68
INTRODUÇÃO
10 — Escatologia já
Em Jesus nos confrontamos com a palavra decisiva sobre nossa vida.
“Quem crê não vai a julgamento, mas já passou da morte para a vida” (Jo
5,24). Para João, o julgamento é agora, diante da palavra de Jesus, melhor,
diante de Jesus-Palavra. A hora do enaltecimento de Jesus como Juiz/Filho do
Homem é a hora de sua atuação histórica, a hora de sua morte na cruz. Diante
desse Juiz cada pessoa com ele confrontada opta pela vida ou pela morte. Por
isso, a hora de Jesus é a hora em que o Chefe deste mundo é expulso (13,31),
como nas visões do Apocalipse Satanás é expulso do âmbito de Deus.
Se em Jesus o Pai está conosco, a plenitude já chegou até nós. Quem
pela fé está unido a Jesus recebe do Pai a vida de qualidade divina, que as
vicissitudes deste mundo não podem desfazer — a vida do âmbito de Deus,
a vida que permanece, a “vida da eternidade”, salto qualitativo para outro
nível. Podemos dar este salto desde já, unindo-nos a Jesus, seguindo os seus
passos, participando de sua comunhão na comunidade da fé. Para João, a
vida eterna começa aqui. E quem não consegue vivê-la aqui dificilmente
agüentará uma eternidade com Jesus.
69
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
70
INTRODUÇÃO
71
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
É uma “leitura sem fim”. E assim podemos dizer, a respeito das sempre
renovadas leituras do Evangelho de João, o que o editor diz a respeito das
coisas que Jesus fez (Jo 21,25):
72
ENTRADA
(1,1-18)
73
ENTRADA
74
1,1-18
— vem como luz ao mundo, rejeitada pelo — a PALAVRA torna-se carne, mora no
mundo e pelos “seus” (9-11) meio de nós, “graça e verdade” de Deus (14)
75
ENTRADA
Palavra ou Verbo?
Traduzimos o termo grego logos por “Palavra”, de preferência a “Verbo”,
utilizado em outras traduções. “Verbo” lembra as especulações filosóficas gre-
gas sobre o Verbo divino, mas o pano de fundo do pensamento joanino não é
a filosofia grega do Logos, nem a teologia patrística dos séculos IV-V, desen-
volvida em diálogo com o pensamento grego, mas a palavra de Deus criadora,
profética e sapiencial evocada no AT. Deus criou por sua palavra e dirigiu sua
palavra, não seu “verbo”, aos profetas e a nós. A Lei, especialmente os Dez
Mandamentos, eram “palavras” (debarim) de Deus. Jesus é a Palavra única.
O v. 2 é o resumo do v. 1; repetindo mais uma vez o verbo “era”, retoma
1ab (no princípio, junto de Deus). Assim, “a Palavra era Deus” (1c) encon-
tra-se no centro dos vv. 1-2. Se o AT falava na preexistência da sabedoria
junto de Deus (>com. v. 3), nunca chegou a chamá-la de “Deus”. Aí está a
76
1,1-18
Este texto conheceu uma releitura em Sr 24,3: “Eu saí da boca do Altíssimo
[…]”. Ora, como anteriormente já tinha falado o Terceiro Isaías, a Palavra
não sai da boca de Deus sem produzir aquilo para que foi enviada, tanto no
coração da humanidade como na criação (Is 55,10-11, texto que se aplica à
visão joanina de Jesus que sai do Pai e a ele volta depois de ter cumprido
sua obra; cf. 13,3; 16,28).
Por sua Palavra, Deus chamou tudo à existência (cf. Sl 33,6.9 e, próximo
do Quarto Evangelho, Sb 9,1: “fizeste o universo por tua palavra e por tua
sabedoria criaste o ser humano”). A primeira coisa que Deus, pela Palavra,
chama à existência é a luz. Deus disse: “Que a luz seja”, e veio a ser a luz
que vence as trevas do caos inicial (Gn 1,1-3)2.
2. Há duas maneiras de dividir os vv. 3-4 (a numeração dos versículos não importa, pois não
faz parte do original). Em tradução literal:
(A) 3Tudo veio a ser por meio dela, e fora dela veio a ser coisa nenhuma que foi feita. /4Nela
estava a vida, e a vida era a luz dos homens.
(B) 3Tudo veio a ser por meio dela, e fora dela veio a ser coisa nenhuma. /[Quanto a]o que
foi feito, 4nisso [ela] era vida, e a vida era a luz dos homens.
Embora a primeira maneira (A; cf. a Vulgata etc.) seja a mais aceita, a segunda (B; cf. Greek
New Testament etc.) corresponde melhor ao ritmo poético e tem sabor bem semítico. Seja como for,
nas duas maneiras de ler, o sentido é que a Palavra é a vida naquilo que por Deus foi criado.
77
ENTRADA
3. O verbo que traduzimos por “deter” (impedir, subjugar, seqüestrar, prevalecer), no sentido
de uma atitude agressiva, outros o traduzem por uma atitude acolhedora (“as trevas não compre-
enderam/acolheram a luz”); este, porém, não é o sentido óbvio do verbo. Nos outros usos em João
o verbo tem o sentido de “dominar/deter/impedir” (12,35, mesmíssima imagem e vocabulário; cf.
também a variante textual em 6,17). Sb 7,29-30 ensina que as trevas não prevalecem sobre a luz.
4. Prefira-se, no v. 9, a tradução “[a luz verdadeira] que, ao vir ao mundo, ilumina todo
homem”, à outra, “[…] que ilumina todo homem que vem ao mundo”. João costuma falar em Jesus
que vem ao mundo como luz (3,19-21; 8,12; 9,3-5; 12,46).
78
1,1-18
Ela, a Luz, estava no mundo (v. 10), mas “o mundo” (no sentido negativo) 10-11
não a reconheceu como luz enviada por Deus. Depois, a câmera focaliza
o zoom na parcela mais “interessante” do mundo: “o que era seu” (v. 11), o
quinhão de Deus no mundo, o povo eleito — aqueles de quem Deus diz: “Eles
serão meu povo, e eu, o Deus deles” (fórmula da Aliança com Israel, Ex 19,5).
A estes dirigiu-se a Palavra na Lei, mas foram “duros de cerviz” (cf. Dt 9,6.13
etc.; a crítica profética) e não observaram a Aliança (Ex 32). Também “os
seus” não acolheram a Palavra que ilumina a vida (cf. Sl 119,105; 19,8-9). Não
se converteram à pregação do Batista (cf. Lc 7,30 par. Mt 21,32). O não-
conhecer do mundo (v. 10) e o não-acolher dos “seus” (v. 11) constituem um
paralelismo, mas há também um crescendo: o segundo caso é mais grave!
Cabe aqui lembrar um pensamento oriental: a sabedoria de Deus veio à
terra, mas não foi acolhida pelos homens; por isso, doravante, a sabedoria
não se encontra na terra, mas no céu… Em Sr 24,1-12 temos uma releitura
judaica desse mito: a Sabedoria, que “sai da boca do Altíssimo” (cf. Pr. 8,22-
30; >com. v. 3), depois de percorrer todo o universo, encontra morada de-
finitiva no povo de Israel, em Sião (Sr 24,8). Mas, segundo João, nem no
“mundo”, nem junto aos “seus” a Palavra encontrou acolhida!
Foi junto a outras pessoas que a Palavra encontrou acolhida, e a essas 12-13
deu a capacidade (lit. “poder, competência”) de se tornarem “filhos de Deus”
(tekna, termo que em 8,37-39 contrapõe a filiação moral à descendência
biológica, sperma). O ser humano não se promove a filho de Deus pelo mero
fato de acolher a Palavra na fé, nem pela iniciação nos “mistérios” (>Voc.)
ou pela busca da gnose ou experiências religiosas em geral. Quem age é a
Palavra de Deus, que dá a capacidade para o novo nascimento (cf. 3,5), não
de ordem humana (“sangue” = o princípio vital biológico; “carne” = a na-
tureza humana limitada, o ser-para-a-morte dos filósofos; “querer do varão”
= a procriação física), mas de Deus. “Foram gerados de Deus”, como diz 1Jo
2,29 a respeito da comunidade dos fiéis de Jesus (cf. ainda 1Jo 3,1.2.10; 5,2;
Rm 8,14.16.17.19.21; 9,7.8; Gl 3,26; 4,6; e a adoção como filhos: Gl 4,5; Ef
1,5; para o termo “filh(inh)os”, >com. 13,33)5.
Embora constituindo o pivô central, os vv. 12-13 não são o ponto alto do
Prólogo, pois este focaliza não tanto o novo nascimento dos fiéis, e sim o pro-
tagonista que torna possível esse novo nascimento. Como mostra a Primeira Carta
5. A filiação divina é tema de diversas cartas paulinas e encontra-se também nos textos
intertestamentários, como Jubileus 1,24-25: “Serei o seu pai, e eles serão os meus filhos; todos
serão chamados filhos do Deus vivo”, cf. Ez 36,26-28 e a idéia da nova Aliança. — A antiga
Vulgata lia no v. 13 o singular: “[no nome dele] que foi gerado” (= Jesus); mas a Nova Vulgata
abandona essa leitura, que é uma correção dogmática.
79
ENTRADA
de João (1Jo 3,18 e.o..), havia quem se considerasse “iluminado”, seguro da vida
eterna, sem nenhuma verificação na prática da vida. Por isso, o Prólogo, escrito
na mesma época, focaliza a prática de Jesus. Sem isso, o Prólogo não seria
completo. Até aqui, João cantou a origem e a “equivalência divina” de Jesus (cf.
v. 1); nos versos seguintes, articula isso com a sua prática histórica (v. 14). Do
mesmo modo, o novo nascimento, a “geração divina” do fiel (vv. 12-13) deve ser
articulada com uma atuação histórica, “em obras e em verdade” (cf. 1Jo 3,1.18).
14a Depois da dobradiça (vv. 12-13, a “geração divina” dos fiéis) apresenta-
se, no v. 14, o segundo painel do díptico. Só agora é citado novamente o título
do Logos: “A Palavra”, que se encontra também no início do primeiro painel
(v. 1). Ali, o Prólogo falou da Palavra como existindo junto de Deus desde a
eternidade. Mas essa Palavra “preexistente” junto de Deus não era congelada
ou petrificada. Pelo contrário, para realizar sua missão, ela “se fez/tornou (lit.:
veio a ser) carne”, existência humana, limitada e mortal (>com. 1,13; 6,63).
v. 1 v. 14
a Palavra ên, “era” [existia, estava]…: A Palavra egéneto, “veio a ser”:
tempo da duração, da permanência. tempo do acontecer pontual (como a criação
“veio a ser”, egéneto, v.3).
80
1,1-18
A Palavra “estabeleceu morada” entre nós. Em primeiro lugar, quem é esse 14b-d
“nós”? A comunidade joanina como tal? Em 20,30-31, essa é tratada como
“vós”. O “nós” (também em 3,11; 4,22) parece antes indicar aqueles que trans-
mitem o testemunho à comunidade (o “nós apostólico”; cf. também 1Jo 1,1-4).
O verbo “estabeleceu morada” (eskénosen) significa, literalmente: “ar-
mou tenda entre nós”. No AT, Deus se manifestava a Israel, no deserto, na
“Tenda do Encontro” (Ex 26; Nm 7,89 etc.). Mais tarde, a Tenda tornou-se
o templo de Jerusalém. Os judeus chamavam a Tenda/o Templo de “mora-
da”, em hebraico, shekiná, uma das hipóstases de Deus (>com. 1,1). O termo
grego é até parecido (skene). Daí nossa tradução: “estabeleceu morada”. Na
Tenda (Templo, Morada) do AT, Deus morava no meio de seu povo, tornava-
se presente, deixava-se encontrar (“da Tenda”, Deus fala com Moisés, Lv
1,1; no Templo, Isaías contempla a glória do Senhor, Is 6,1-4; cf. Jo 12,41).
Para nós, o lugar onde Deus mora e nós o encontramos é, por excelência, a
Palavra de Deus feita carne (cf. Jo 2,22) — sem esquecer que também aquele
que observa seu mandamento é habitação do Pai e do Filho (14,23).
Os grandes santos do antigo Israel desejavam — e ao mesmo tempo temi-
am — ver a glória de Deus (>exc. 14,8), a manifestação esplendorosa de sua
presença. Moisés, desesperado com a infidelidade do povo, quis ver se Deus
estava ainda com eles, quis “ver a sua face” (= presença: Ex 33,18ss, cf.
33,11). Mas Moisés não pôde ver Deus diretamente, pôde vê-lo apenas de
costas (Ex 33,22-23). Naquela ocasião, Deus se revelou a Moisés como “cheio
de bondade e fidelidade“ (Ex 34,5-6; cf. Sl 61,8; 98,7). “Ora”, diz o evan-
gelista, falando pela comunidade, “nós contemplamos a sua glória”. Mas
nosso olhar não pode parar no enlevo de contemplar essa glória, como fazem
certos pseudognósticos, pseudomísticos. Jesus não tem essa glória de si
mesmo: a glória cabe a Deus! Como Filho “unigênito” (>com. 3,16), incom-
parável e imensamente querido, ele recebe do Pai essa glória — “plena/pleno
(a expressão pode qualificar Deus, Jesus ou a glória) de graça e de verdade”.
81
ENTRADA
Esta é a primeira vez que João pronuncia o nome daquele em quem Deus
nos mostra que ele “é amor” (cf. 1Jo 4,8). Até aqui, no estilo enigmático que
lhe é próprio, João levou o leitor a “descobrir o que já sabia”. O anonimato
provisório teve o efeito de acentuar mais a realidade divina da Palavra e da
glória; a referência de identificação era sempre o Pai. Agora vem o desen-
lace: esse dom do Pai é Jesus, proclamado Cristo ou Messias.
O termo “por meio de” denota mediação. No AT, Moisés era o mediador por
excelência. No NT, ele é substituído, nessa função, por Jesus. A graça e a
verdade vieram a ser, tornaram-se realidade presente, pela mediação de Jesus,
assim como, segundo o v. 3, a criação veio a ser por ele. Realiza-se a manifes-
tação eficaz de Deus na história: a prática de Jesus é a manifestação verdadeira
e decisiva do Deus da “graça (amor) e verdade (fidelidade)” de Ex 34,5-6.
82
1,1-18
83
O LIVRO DOS SINAIS
(1,19–12,50)
84
1,19–12,50
OS PRIMÓRDIOS (1,19–4,54)
Num primeiro ciclo geográfico, desenvolvido em diversos cenários, os
caps. 1–4 mostram os primórdios da atuação pública de Jesus e propiciam ao
leitor/ouvinte contato inicial com os grandes temas da comunidade: o batis-
mo, o novo nascimento, a água viva, a palavra vivificadora de Jesus. Os
personagens que se apresentam são abertos à mensagem, são candidatos para
o seguimento de Jesus. O episódio final (o funcionário de Cafarnaum) des-
creve uma “conversão em regra”. Quanto ao processo da fé, esta parte repre-
senta a primeira iniciação no mistério de Cristo.
85
O LIVRO DOS SINAIS
29
II — Na manhã seguinte, João viu que Jesus vinha a seu encontro e
disse: “Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo.
30
É dele que eu falei: ‘Depois de mim vem um homem que passou
adiante de mim, porque era antes de mim’! 31Eu também não o
conhecia, mas para que ele fosse manifestado a Israel é que eu vim,
batizando com água”.
32
João ainda testemunhou: “Eu vi o Espírito descer do céu, como
pomba, e permanecer sobre ele. 33Pois eu não o conhecia, mas aque-
le que me enviou a batizar com água disse-me: ‘Aquele sobre quem
vires o Espírito descer e permanecer, é ele quem batiza com Espírito
Santo’. 34Eu vi, e por isso dou testemunho: este é o Filho de Deus!”
III — 35Na manhã seguinte, João estava lá, de novo, com dois dos seus
discípulos. 36Vendo Jesus a caminhar, disse: “Eis o Cordeiro de
Deus”! 37Os dois discípulos ouviram essa declaração de João e
passaram a seguir Jesus. 38Jesus voltou-se para trás e, vendo que
eles o seguiam, perguntou-lhes: “Que procurais?” Eles responde-
ram: “Rabi (que quer dizer Mestre), onde permaneces?” 39Ele res-
pondeu: “Vinde e vede”! Foram, viram onde ele permanecia e per-
maneceram com ele aquele dia.
Era por volta da hora décima. 40André, irmão de Simão Pedro, era
um dos dois que tinham ouvido a declaração de João e seguido
Jesus. 41Ele encontrou primeiro o próprio irmão, Simão, e lhe falou:
“Encontramos o Cristo!” (que quer dizer Messias). 42Então, condu-
ziu-o até Jesus. Jesus, fixando o olhar nele, disse-lhe: “Tu és Simão,
filho de João. Tu te chamarás Cefas!” (que quer dizer Pedro).
86
1,19-52
43
IV — Na manhã seguinte, ele quis partir para a Galiléia e encontrou
Filipe. Jesus disse a este: “Segue-me”! (44Filipe era de Betsaida, a
cidade de André e de Pedro.) 45Filipe encontrou-se com Natanael e
disse-lhe: “Encontramos Jesus, o filho de José, de Nazaré, aquele
sobre quem escreveram Moisés, na Lei, e os Profetas”. 46Natanael
perguntou: “De Nazaré pode sair alguma coisa boa?” Filipe res-
pondeu: “Vem e vê”!
47
Jesus viu Natanael vindo-lhe ao encontro e disse a respeito dele:
“Eis, verdadeiramente, um israelita em quem não há falsidade!”
48Natanael disse-lhe: “De onde me conheces?” Jesus respondeu:
v. 29-28 João não é “a luz” (cf. vv. 6-8), não é figura messiânica, mas voz (vv. 21-23)
v. 29-34 Jesus, Cordeiro de Deus, o ulterior que é primeiro (vv. 29-30)
v. 35-42 Jesus à frente de João: os discípulos de João vão a ele: “Encontramos o
Messias” (v. 41)
v. 43-51 “…para que fosse manifestado a Israel” (v. 47-49; cf. v. 31)
87
O LIVRO DOS SINAIS
○
Dia Dia Dia No
○
seguinte seguinte seguinte terceiro dia
○
○
○
○
○
○
○
1,19 1,29 1,35 1,40 1,43 1,45 2,1
○
○
○
○
○
judeus/fari-
○
seus
○
○
○
○
○
João Batista ➝ ➝
○
○
○
○
○
○
(anuncia) Jesus ➝ ➝ ➝ ➝ ➝
○
○
○
○
○
○
discíp. ➝
○
○
de JB: ➝ ➝ ➝ nova
○
○
○
○
André + comunidade
○
○
anônimo
○
○
○
○
○
Simão ➝ ➝ ➝
○
Pedro
○
○
○
○
○
Filipe ➝ ➝
○
○
○
○
○
➝
○
Natanael
○
○
○
88
1,19-52
89
O LIVRO DOS SINAIS
26-27 João Batista responde: “Eu batizo com água...”. A resposta parece incom-
pleta, deixa-nos em suspense. Em vez de anunciar, como Mc 1,8 par., aquele
que batiza com Espírito Santo (isto segue em 1,33), o Batista aponta: “Entre
vós está alguém que vós não conheceis: aquele que vem depois de mim
(>com. v. 30), e do qual eu não sou digno de desamarrar as correias da
90
1,19-52
6. Existe outra Betânia, perto de Jerusalém: Jo 11,1.19; 12,1. Alguns manuscritos antigos, no
intuito de distinguir as duas localidades, houveram por bem “corrigir” o texto e escreveram Betabara
(lugar da travessia) ou Betarabá (lugar do Mar Morto).
91
O LIVRO DOS SINAIS
92
1,19-52
na realidade, é desde a eternidade (cf. 1,1). João parece ser o primeiro, mas
Jesus o é... (ver 8,58)7.
Anteriormente, nem o próprio Batista conhecia o enviado de Deus (afi- 31
nal, ele não fazia parte da comunidade dos iniciados!). O Batista andava
pregando a conversão sem saber que Jesus era o Messias esperado (cf. o
texto de Q em Mt 11,2s par. Lc 7,18s). Mas ele tornou-se testemunha da
revelação de Jesus a Israel. O importante não era o batismo que administra-
va, mas o encontro com Jesus que o batismo proporcionou: o batismo de
João serviu de ocasião para que Deus manifestasse seu Filho a Israel (“fosse
manifestado” = passivo teológico). Esta é uma parte da resposta à pergunta
dos “judeus” no dia anterior (1,25). E há mais.
(B) O Batista chegou a conhecer Jesus por um sinal de Deus: “Sobre 32-34
quem vires o Espírito descer e permanecer, é ele quem batiza com Espírito
Santo”. O Espírito de Deus “permanece” sobre Jesus, diz o Batista: não se
trata de um dom passageiro (como o Espírito dado aos profetas em Nm
11,25): Jesus é quem derrama o Espírito Santo sobre nós, quando leva a
termo a sua obra (cf. 7,39). Segundo o v. 34, João Batista é testemunha de
tudo isso e, por isso, proclama: “Este é o Filho de Deus” (cf. 20,31; cf.
também a tradição sinóptica, Mc 1,11 par). E seu testemunho continua válido
(os verbos “testemunhar” e “proclamar” estão no tempo perfeito: ação con-
sumada, com efeito no presente).
7. Com base em textos judaicos é possível ver no “desligar a correia da sandália” e no tema
da precedência do “homem” (lit. aner, “varão”) uma alusão ao levirato (a acolhida da esposa de
um parente falecido; cf. Dt 25,5-10; Mc 12,18-27 e par.) e às núpcias messiânicas, tema que parece
estar no pano de fundo em Jo 2,1-11 e também em Jo 3,29-30, onde igualmente é focalizado o
papel do Batista. Se esse simbolismo for válido, significaria que não João, mas Jesus tem o direito
do levirato em relação a Israel.
93
O LIVRO DOS SINAIS
rece, seja aquele que, na “hora” de Jesus, reaparece como discípulo que entende
e crê, sendo também a testemunha da morte (cf. 13,23; 19,35; 20,9); neste caso,
sua presença em 1,35-36 significaria que ele foi testemunha desde o início. Mas
em vista do que segue, preferimos pensar que João vai desdobrando seus perso-
nagens: o primeiro dos discípulos, André, vai chamar Pedro. E no v. 43 é mostrado
o outro, que ficou anônimo em 1,35-39: Filipe (que sempre acompanha André no
Quarto Evangelho): chamado por Jesus, ele chama por sua vez Natanael.
Embora a narrativa tenha algumas semelhanças com a de Mc 1,16-20 par., é
preciso lê-la em sua particular configuração joanina. O primeiro traço caracterís-
tico é exatamente o fato de os primeiros seguidores de Jesus serem discípulos de
João Batista. Portanto, quem quer apelar a João Batista para diminuir Jesus (>Intr.
§ 3.2.3:5) deve saber que ele mesmo dirigiu seus discípulos pa-
ra Jesus. O discipulado do Batista é doravante o seguimento de Jesus (cf. também
3,22-30). Assim, os discípulos do Batista “seguem” Jesus — maneira bíblica
de dizer “tornar-se discípulo”; e Jesus será chamado rabbi, “mestre” (v. 38).
O segundo traço típico é o caráter sapiencial desta cena. Já vimos no
Prólogo que o Quarto Evangelho vê em Jesus a Sabedoria (Palavra) de Deus.
Em 1,38-41.43-45, João usa a terminologia “procurar–encontrar”, que é tí-
pica do tema da Sabedoria. Antes que os dois discípulos perguntem algo,
Jesus toma a iniciativa, assim como no AT a Sabedoria se antecipa aos que
a procuram (Sb 6,13[14]). “Que procurais?”, pergunta Jesus. Eles respon-
dem: “Rabi, […] onde permaneces (= moras)?” O verbo “permanecer” é
muito importante para o Quarto Evangelho (>com. 15,4). Querem permane-
cer com ele como discípulos, assim como os membros da comunidade de-
vem “permanecer” unidos a Jesus. Então, Jesus os convida: “Vinde ver”,
convite que recebe seu sentido profundo em 17,24: “…estejam comigo…
contemplem minha glória”. Eles aceitam, e “permanecem” com ele: perten-
cem à sua comunidade. (Para os que não entendem a língua dos judeus ou
não estão acostumados a certos termos aramaicos em uso na comunidade
joanina, João acrescenta ao termo “rabi” a tradução: “mestre”.)
A busca dos discípulos, como também sua exclamação, “encontramos”,
(vv. 41.45) representa uma profissão de fé no Messias esperado. Embora
tenha de ser corrigida — pois Jesus é tão “inesperado” quanto esperado —
, sua associação à busca da Sabedoria significa uma avaliação positiva. Não
é por uma parte dos “judeus” ter resistido a Jesus que se deve menosprezar
a expectativa de Israel (cf. adiante o israelita autêntico, Natanael). A expec-
tativa de Israel é valiosa como preparação para o encontro com a Palavra de
Deus que veio morar entre nós. E isso vale para todas as expectativas e
buscas de Deus, em todas as culturas.
94
1,19-52
(B) Para introduzir o segundo momento do dia, João faz uma pequena 39c-42
transição: é “a décima hora”, quatro horas da tarde. Passado o calor do meio-
dia, antes do pôr do sol, um dos dois discípulos, André, sai para avisar seu
irmão, Simão (conhecido pelos leitores como Pedro): “Encontramos o Messias”.
João diz messias, na língua dos judeus, certamente para acentuar a realização da
expectativa de Israel (em parêntese, traduz para os leitores de fala grega: khristós
— em português, “ungido”). Como no dia anterior, a apresentação inicial (“Cor-
deiro de Deus”, v. 36) recebe no segundo momento sua especificação (o Cristo,
v. 41), constituindo-se uma inclusão em torno do buscar e encontrar.
Messias/Cristo/Filho de Deus
O Evangelho de João pretende antes de tudo ensinar que Jesus é o Messias,
em grego, o Cristo (20,30-31). O termo hebraico-aramaico messias significa
“ungido” e evoca em primeiro lugar o rei ungido de Israel (p.ex. 1Sm
2,10.35; 12,3.5; 16,6; 24,6.10; Sl 2,2; Lm 4,20), mais especificamente Davi
(2Sm 12,7) e o descendente ideal de Davi, no qual repousa a promessa da
presença salvadora de Deus — promessa de proteção e de paz, shalom, dom
messiânico por excelência. Também reis não-israelitas são chamados ungidos
(Hazael, rei da Síria, 1Rs 19,15) e podem tornar-se instrumentos do plano de
Deus (Siro, rei da Pérsia, Is 45,1). Ungidos são também os sacerdotes (p.ex.
Ex 40,13; Nm 3,3), o profeta Eliseu (19,16); o profeta que anuncia a restau-
ração do povo, em Is 61,1, se diz ungido com o Espírito de Deus.
O termo Messias ganhou, pois, um sentido amplo. Messias é cada pessoa que
exerce a missão divina de salvar o povo e de trazer a paz. Os samaritanos,
que não tinham muito amor à casa de Davi e não almejavam um descendente
dele como salvador, colocavam sua esperança messiânica em “aquele que
devia vir/voltar”, Moisés, o profeta por excelência (cf. Jo 4,25.29). Nos livros
pós-exílicos, sobretudo do gênero profético-apocalíptico, a noção é muito
ampla (cf. os dois ungidos de Zc 4,14; o “messias suprimido” de Dn 9,25-
26…), tão ampla que nem mais precisa referir-se a uma pessoa individual. O
Messias pode ser um sujeito coletivo. Pode ser fundido com outras figuras,
especialmente com a do Filho do Homem (cf. Dn 7,13-14). Na interpretação
deste texto, o povo dos santos do Altíssimo parece exercer função messiânica
(Dn 7,22.27). Os escritos de Qumran parecem revelar a esperança de dois
messias, um régio e um sacerdotal. Talvez o Quarto Evangelho conheça a
tradição a respeito de um rei-profeta messiânico (cf. Jo 6,14-15).
Nos evangelhos, muito próximo de Cristo/Messias está o título “Filho de
Deus” (Mc 1,1; Jo 20,30-31; cf. infra, 1,49), certamente com base em 2Sm
7,14 e Sl 2,2.7 (cf. Mc 1,11), mas João aprofunda, como veremos, no
evangelho inteiro as dimensões da filiação de Jesus em relação a Deus, Pai
de Jesus e nosso Pai.
95
O LIVRO DOS SINAIS
Jesus, o nazareno
Para a informação do leitor mencionamos aqui as diversas tentativas de
explicar o apelido de Jesus, “o nazareno”; aliás, seria melhor escrever o
“nazoreu”, pois nem todos concordam que o termo seja derivado da cida-
96
1,19-52
(B) Na segunda parte da narrativa, Jesus toma novamente a iniciativa (cf. 47-49
v. 38). Como mostrou a Simão, Jesus mostra também a Natanael que o
conhece: “Eis, verdadeiramente, um israelita em quem não há falsidade!” No
fim do evangelho vamos ver quem são então os israelitas falsificados: os que
entregam Jesus como “rei dos judeus” (não “de Israel”!), afirmando não
terem outro rei senão o Imperador de Roma (>com. 19,15; cf. também 8,44s).
Natanael estranha que Jesus o conheça. Por isso, Jesus lhe dá um mi-
núsculo sinal de seu conhecimento profético (cf. 4,16-19): “Antes que
Filipe te chamasse, quando estavas debaixo da figueira, eu te vi”. “Debaixo
da figueira” não indica o lugar onde Filipe encontrou Natanael; o que Jesus
diz é que o conheceu quando se encontrava debaixo da figueira antes que
Filipe o chamasse. Será que a figueira, árvore predileta em Israel, tem
alguma conotação simbólica — lugar do bem-estar de Israel, “sombra e
água fresca”? Talvez um lugar quieto para o estudo da Escritura? (Filipe
apresentara Jesus a Natanael como o anunciado pelas Escrituras.) Ou será
uma alusão à imagem de Os 9,10 (Jo 15,1 corresponde à seqüência deste
texto, Os 10,1)? O simbolismo nos escapa, mas não o conhecimento de
Jesus. Pode até ser mais que o conhecimento profético: o conhecimento
“antes dos tempos” (cf. Sl 139). De toda maneira, Natanael reconhece em
Jesus o Messias, usando qualificações equivalentes: “Rabi, tu és o Filho de
Deus, tu és o Rei de Israel!” (>com. 19,15). O israelita sem falsidade não
entrega Jesus ao poder romano (como fazem “os judeus” em 18,30), mas o
reconhece como rei messiânico e Filho de Deus (cf. 20,31).
Jesus aceita a adesão de Natanael, mas acrescenta uma precisão. Natanael 50-51
acredita porque Jesus lhe deu a entender que o viu no secreto (v. 38, cf. Sl 139).
Ora, ele vai fazer a experiência de coisas bem maiores. Ele e todos os que crêem
97
O LIVRO DOS SINAIS
98
2,1-11
99
O LIVRO DOS SINAIS
*
1-2 “E no terceiro dia” celebram-se “núpcias” em Caná da Galiléia. Tradu-
zimos “núpcias”, porque pensamos nas núpcias messiânicas (cf. vv. 10-11).
Na comunidade joanina é conhecida a idéia das “núpcias do Cordeiro” (cf.
Ap 19,7.9); e “Cordeiro” (1,29) é o primeiro título dado a Jesus na “semana
inaugural”, que aqui chega à sua conclusão (1,19–2,11). Imaginação demais?
Não esqueçamos que a Bíblia é a história de um caso amoroso entre Deus
e o povo…
O “terceiro dia” não deve ser entendido apenas como elemento narrativo,
mas como indício de simbolismo. Na Bíblia “o terceiro dia” não deve ser
entendido matematicamente; geralmente indica um breve lapso de tempo, às
vezes relacionado com o (pronto) agir divino (Gn 22,4; 31,2; 34,25; 40,20).
Não convém, pois, perguntar como Jesus podia viajar da região do Jordão até
Caná nesse parco tempo! Foi no “terceiro dia” que Deus entregou a Torá
(Lei, ou melhor, Instrução) ao povo (19,11.15.16). É no terceiro dia também
que Deus socorre o povo (Os 6,2! cf. Lc 13,32; Mt 16,21 par.) e que Jesus
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2,1-11
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O LIVRO DOS SINAIS
102
2,1-11
Faraó (o termo bíblico para as “dez pragas” do Egito é “sinais”; cf. Ex 4.8.9
etc.). O “sinal” não recebe seu sentido de si mesmo, mas daquilo que “assi-
nala”. O sinal de trânsito não tem seu sentido em si (p.ex., suas cores bonitas),
mas no perigo que assinala. O sinal de Caná não aponta para um fornecimento
espetacular de vinho, mas para a missão messiânica de Jesus, a qual ele
assinala. Com uma conotação especial: Jesus mesmo está no centro da Aliança
entre Deus e o povo — embora João não use esse termo (>Voc.).
É o início dos sinais, não a plenitude. Em 2,4 Jesus disse que “sua hora”
ainda não tinha chegado. Sua hora será a da plenitude, do amor consumado,
quando disser: “Está consumado” (19,30; lit.: “plenificado”; >com. 13,1).
Portanto, a manifestação de sua glória é, aqui, apenas inicial. Se, pois, os
discípulos crêem nele, é também de modo inicial. A fé por causa de um sinal
é apenas um primeiro passo. Contudo, neste início dos “sinais” (>exc. 5,36),
João ainda não insiste na precariedade da fé que busca sinais (cf. 2,23-25;
4,48) e no perigo de só ver a materialidade, sem ver o que é assinalado (cf.
6,26). Antes, envolve no discreto simbolismo o candidato à fé, que vislum-
bra, num primeiro contato, o mistério, a manifestação da glória. Ainda não
é a hora de fazer o discernimento crítico que virá depois.
103
O LIVRO DOS SINAIS
salém. 14No (pátio do) Templo, ele encontrou os que vendiam bois,
ovelhas e pombas, e os cambistas nas suas bancas. 15Ele fez um
chicote com cordas e a todos expulsou do Templo, juntamente com
os bois e as ovelhas; ele jogou no chão o dinheiro dos cambistas e
derrubou suas bancas, 16e aos vendedores de pombas disse: “Tirai
isso daqui. Não façais da casa de meu Pai um mercado”! 17Os
discípulos se recordaram do que está na Escritura: “O zelo por tua
casa há de me devorar”.
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2,12-22
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O LIVRO DOS SINAIS
Em Caná, Jesus deu novo destino às talhas da purificação judaica. Agora faz
coisa semelhante com o culto do Templo de Jerusalém.
13-16 Terminados os dias de Cafarnaum, Jesus sobe a Jerusalém para a romaria
da Páscoa (em 6,4, porém, parece que não sobe a Jerusalém para a Páscoa).
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2,12-22
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O LIVRO DOS SINAIS
situa a cena três anos antes, no início do evangelho; mas essa cronologia
pode não ser histórica: é provável que João atribuiu ao gesto de Jesus um
significado fundamental, que devia marcar o evangelho todo. A colocação
no início é programática. Para João, o Templo é o símbolo e a síntese do
sistema religioso que “já era”. Em Jesus manifesta-se a presença da novi-
dade radical, o “novo céu e nova terra” e a nova Jerusalém de que fala o
Apocalipse (Ap 21,1.2.5; cf. 2Pd 3,13). Neste sentido, o gesto do Templo
vem completar o sinal de Caná (Jo 2,1-11), porque este simboliza as núpcias
messiânicas de Deus com sua comunidade no tempo final, ou seja, exata-
mente aquilo que a nova Jerusalém de Ap 21,5 sugere: a esposa (a comu-
nidade) preparada para o Esposo (Cristo). Também em Mc o “novo” é
apresentado no início do evangelho, mediante as palavras sobre o jejum dos
convidados às núpcias e sobre o vinho (Mc 2,18-22).
Para João, Jesus é desde o início o “lugar santíssimo” de Deus (em 11,48, por
ironia, os sumos sacerdotes e os fariseus estão ainda preocupados com o “lugar
santo”, coitados!). Jesus toma o lugar do sistema religioso. É ele o centro da
novidade escatológica, que se manifestará em sua glorificação na cruz. A atua-
ção de Jesus é a santidade de Deus presente no meio de nós. Enquanto os
sinópticos vêem o gesto de Jesus como gesto “ético” (indignação diante dos
abusos, como em Mc 11,15-17), João o vê antes como gesto “religioso” (sinal
do novo lugar santo de Deus em Jesus Cristo). Contudo, seria errado opor
essas duas perspectivas, pois Jesus é santo exatamente porque ele é ético (cf.
a ética baseada no “Sede santos porque eu sou santo”, Lv 19,2).
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2,23–3,21
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O LIVRO DOS SINAIS
o que pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para que
suas ações não sejam denunciadas. 21Mas quem pratica a verdade se
aproxima da luz, para que suas ações sejam manifestadas, já que são
praticadas em Deus.
Uma nova situação de tempo e lugar abre um novo episódio, ainda em
Jerusalém, durante a festa da Páscoa, alguns dias depois do episódio anterior
(cf. 2,13). Trata-se de um diálogo com um judeu importante, Nicodemos. Os
outros evangelhos não mencionam esse personagem. Encontramos neste
episódio pouca coisa que lembre a tradição evangélica geral. É a única vez
que João menciona o “reino de Deus” — visto como expectativa de um
judeu. Em Mc 10,15 e Mt 18,3, a participação do reino de Deus está ligada
a tornar-se como criança. O desenvolvimento joanino pode ter nisso seu
ponto de partida.
Dividimos o episódio como segue (existem outras propostas):
I. o entusiasmo geral pelos “sinais” de Jesus em Jerusalém (2,23-25);
II. o foco um personagem no cenário geral: Nicodemos e as coisas do
céu (3,1-15);
III. um comentário teológico sobre o dom de Deus (3,16-21).
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2,23–3,21
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O LIVRO DOS SINAIS
114
2,23–3,21
Quem nasce do Espírito passa por uma transformação radical: “O que 6-8
nasce da carne é carne, o que nasce do Espírito é espírito!” Carne significa a
realidade humana, limitada e mortal. Quem apenas nasce da “carne” continua
sendo um mero ser humano, fechado no seu egoísmo. Quem nasce do Espírito
transforma-se em pessoa impulsionada por Deus. Isso se expressa na água do
batismo cristão, mas a água ritual do batismo não basta; o Espírito é que deve
ser derramado sobre nós e dentro de nosso coração, levando-nos a um modo
de viver que nós mesmos desconhecíamos. Então é que se nasce, não “de
novo”, como entendeu Nicodemos mas “do alto”! Ora, isso é perigoso!
Quando sopra o Espírito, o “sopro de Deus”, a gente o ouve soprar, mas não
sabe “de onde” (>com. 2,9) vem, nem para onde vai. Pode levar a gente para
bem longe!
Se lemos João num duplo quadro temporal — o de Jesus e o da comu-
nidade — Nicodemos deve ser visto à luz da separação entre os cristãos e
a sinagoga judaica nos anos 90. Nascer da água e do Espírito significa para
ele aderir à comunidade de Jesus, deixar de ser fariseu e dignitário judeu,
cortar os laços com os seus... É muita coisa para alguém que, medroso,
procura Jesus durante a noite. Vai ficar sem nada, despojado qual criança
recém-nascida. Por isso, os que se assemelham a Nicodemos escondem sua
fé (Jo 12,42). Podemos aplicar isso a nós mesmos. Também para nós, hoje,
receber o Espírito simbolizado pela água do batismo significa uma radical
mudança de vida; devemos optar, por exemplo, por dedicar-nos aos exclu-
ídos da sociedade em vez de querer estar na crista da onda. “Assim se dá
também com todo o que nasceu do Espírito”!
Quem não conhece a experiência da comunidade de Jesus não entende 9-12
isso. Nicodemos pergunta: “Como é possível isso?” Com fina ironia, Jesus
lhe pergunta se acaso ele não é “mestre em Israel”, professor de religião para
os judeus! E usando o plural, como que representando a comunidade cristã,
continua: “Nós falamos do que compreendemos e damos testemunho do que
vimos”. Os cristãos viram o Pai em Jesus (1,14; 14,9; 1Jo 1,1-3), mas os
judeus representados por Nicodemos não aceitam esse testemunho. Não
adianta falar-lhes das coisas “do céu” (= de Deus), se nem entendem as
coisas da terra (= aquilo que se pode ver com os próprios olhos, inclusive
em Jesus; ou aquilo que falam os mestres da terra, daqui em baixo). Mc
115
O LIVRO DOS SINAIS
4,11-12 diz que os ouvintes não entendiam o sentido das parábolas, imagens
tomadas da terra para explicar o Reinado de Deus: é a ininteligência, a
“dureza do coração” (= paquidermia mental) apontada por Is 46,12; Ez 2,4;
Sl 95,8. Ora, apesar da inutilidade para os mestres cegos, mas tendo em vista
os verdadeiros destinatários do evangelho, os iniciandos e iniciados da co-
munidade cristã, João deixa Jesus falar de coisas que não são dessa terra,
mas “do céu”, do âmbito de Deus. Jesus vai explicar como Deus age (cf. as
parábolas do Reino nos sinópticos).
13-15 Talvez aludindo aos temas apocalíptico-sapienciais (os reveladores celes-
tes, como Henoc etc., ou a procura extraterrestre da sabedoria de Deus, a que
aludem textos como Pr 30,1-6; Br 3,15.29-31; Sb 9,16-18, sem esquecer Dt
30,11-14), João leva à tona o tema do Filho do Homem (>com. 1,51). Este,
e só ele, pode falar coisas do céu, pois ele pertence ao “céu”, a Deus. Ele
desce de junto de Deus, da sua intimidade (cf. 1,1.18; cf. 17,5). Ele subiu ao
céu definitivamente (tempo perfeito, com efeito no presente).
Mas, se esse Filho do Homem é Jesus, o crucificado, como se pode dizer
que ele é do alto? Exatamente porque sua cruz é o seu “en-altecimento”. As
“coisas do céu” que Jesus dá a conhecer não são outras coisas senão o
próprio enaltecimento, que mostra o agir de Deus. Jesus vai ser “en-altecido”
em sinal de salvação, como a serpente de bronze levantada num estandarte
por Moisés (Nm 21,8), prefigurando o estandarte da cruz (“enaltecimento”,
>exc. 12,34). Os que olhavam para a serpente levantada por Moisés eram
curados (Nm 21,9; Sb 16,5-6 destacam o agir salvífico de Deus nesse epi-
sódio). Os que dirigem com fé o olhar para Jesus enaltecido na cruz (19,37)
têm “vida eterna” (>exc. 11,27).
No seu enaltecimento, Jesus revela-se sabedoria que desce de junto de
Deus (cf. 1Cor 2,6-9). O lugar do Filho do Homem é o âmbito de Deus, o céu,
a glória (cf. Jo 17,5; 6,62; cf. Dn 7,13-14); daí, ele desce; mas a descida do
Filho do Homem e sua subida pertencem a uma mesma realidade “do céu”. A
revelação trazida por esse revelador é o escândalo da cruz, aquilo que acontece
à sua própria pessoa. Só se assimilar esse escandaloso “enaltecimento” de
Jesus (cf. 6,62!), Nicodemos poderá realmente nascer do alto e participar da
“vida eterna” — novo nome do “reino de Deus” (cf. vv. 3.5).
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2,23–3,21
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3,22-36
Mais uma vez a expressão “depois disso” (cf. 2,12) abre um novo epi-
sódio. O momento temporal não é especificado, mas a geografia é precisa:
a região (= o interior) da Judéia. Os personagens são João Batista e seus
discípulos, Jesus e seus discípulos, e um “judeu”. Não há texto paralelo nos
outros evangelhos, mas no v. 24 aparece uma alusão que supõe conhecida a
tradição sinóptica a respeito de João Batista.
A partir do v. 31, como no v. 16 acima, quem toma a palavra parece ser
o próprio evangelista, tecendo um comentário teológico às palavras do Ba-
tista e do próprio Jesus.
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O LIVRO DOS SINAIS
Na mesma época, João Batista exerce sua atividade batismal a certa distân-
cia, em Enon, perto de Salim (na Samaria? na Decápole?). Aí há muita água,
pois João é aquele que batiza com água (1,26.33). Isso, antes de ser jogado
no cárcere por Herodes Antipas (o evangelista supõe que o leitor conheça a
história contada nos sinópticos, Mc 6,17-29 par.).
25-26 A história narra um novo testemunho de João Batista no quadro de uma
discussão com o judaísmo, portanto, no mesmo quadro da “catequese” ini-
ciada no diálogo com Nicodemos. Os discípulos de João (representando um
grupo minoritário dentro do judaísmo) e algum “judeu” (adepto do judaísmo
dominante) se envolvem numa discussão sobre “purificação” (equivalente a
“batismo”, na terminologia judaica). Talvez interpretassem a atividade batismal
de Jesus como sinal de missão escatológica, messiânica. Os profetas falam
do batismo ou purificação com “espírito” (cf. Jl 3,1; Is 32,15; 44,3; Ez
39,29) e mesmo com fogo (cf. Is 1,25; 4,4 etc.). Mt 3,8 par. mostra que isso
se esperava também para o tempo do Messias. Quem batiza legitimamente,
Jesus ou João? Qual dos dois é o enviado escatológico (cf. Jo 1,19-27)? Em
qual deles acreditar? João começou a batizar primeiro, mas Jesus está ga-
nhando muitos adeptos: todos vão a ele (cf. 12,19).
27-30 João responde que sua missão não lhe pertence como propriedade pes-
soal. É dom de Deus. E lembra que ele mesmo se apresentou como sendo
apenas o mensageiro do Messias; os próprios entrevistadores foram testemu-
nhas disso (cf. 1,19-18). João não é o esposo escatológico (cf. 2,10). Ele é
apenas o amigo do esposo, e sua alegria se realiza quando percebe a “voz”
do esposo que recebe a sua amada (cf. o texto escatológico de Jr 33,10-11).
João é como a lua, que perde seu brilho quando o sol cresce na abóbada
celeste (v. 30).
O foco desta história não é, portanto, comparar o batismo de João com
o de Jesus. Decerto, Jesus não apenas se deixou batizar pelo Batista, mas
também partilhou com ele o rico simbolismo do batismo (como recebeu
discípulos dele, cf. 1,35-36). Contudo, a questão aqui não é a comparação
dos dois batismos, para ver qual vale mais. A questão é que João e seu
batismo pertencem ao passado, conforme o testemunho do próprio João.
Chegou agora aquele que é do alto e que tem o Espírito sem medida.
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3,22-36
(vv. 31, cf. 3,13). Está acima de todos. Os outros podem falar coisas huma-
nas, Jesus tem palavras divinas; “dá testemunho daquilo que viu” junto de
Deus (1,18). Ele conhece Deus por dentro, mas sua mensagem não é aceita
(ver 1,10-11). Contudo, os que a recebem ratificam (“selam”), por sua fé,
que Deus fala a verdade. Jesus, o Enviado de Deus, fala as palavras de Deus.
No judaísmo, o enviado (de uma sinagoga para outra, ou do Sinédrio para
uma comunidade) tinha valor de instituição. Representava plenamente quem
o enviou, mais ou menos como um embaixador. Um bom embaixador não
fala arbitrariamente, mas transmite a mensagem do governo que representa.
E a atitude tomada em relação a um embaixador é ratificada como concernindo
ao governo que o envia. Receber a mensagem de um “enviado” é firmar com
um selo o que ela contém. Quem aceita o testemunho do enviado que é Jesus
confirma com selo “que Deus é verdadeiro”, veraz (v. 33b); ratifica que
nesse testemunho se revela o Deus verdadeiro e fiel.
O enviado, Jesus, não fala suas próprias palavras, mas as de Deus. Deus 34
fala por meio dele. “Pois não é de modo comedido que ele dá o Espírito”,
acrescenta o v. 34b. Isso pode significar (1) que Deus, sem medida, confiou
a Jesus o Espírito (para que falasse a palavra de Deus, ou para que comu-
nicasse o Espírito aos fiéis); ou (2) que Jesus não usa medida para comunicar
o Espírito (da parte de Deus). Dá no mesmo!8
Por amá-lo e ter nele seu agrado (cf. Mc 1,11 par.), Deus deu a Je- 35-36
sus plena representatividade como enviado (v. 35). E quem, na fé, adere a Jesus
— quem “crê no Filho” — tem vida que supera o âmbito da carne, do tempo
e do espaço: vida “da eternidade” (>com. a 11,25). Participa da comunhão de
vida com Deus mesmo, pois já está vivendo conforme o desejo de Deus. Essa
comunhão é a realidade última e definitiva de nossa vida. Quem, ao contrário,
diante da mensagem de Jesus só mostra rejeição, desse não se pode dizer, como
é dito do crente, que “não vai a juízo e já passou da morte para a vida” (5,24).
Pelo contrário, o juízo (a “ira”) continua pairando sobre ele.
8. Mas inclinamo-nos pela primeira interpretação: Jesus é qualitativamente superior aos pro-
fetas do AT, pois sobre esses o Espírito descia “comedidamente” (cf. Nm 11,25: “não continua-
ram”), enquanto Jesus tem o Espírito ilimitadamente (“permaneceu sobre ele”, Jo 1,32).
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“Era preciso que ele passasse pela Samaria”: a expressão “era preciso” 4
é típica para indicar o plano do Pai na atuação de Jesus (cf. Mc 8,31 par.).
Jesus passa através da Samaria por causa de sua missão, não por necessidade
do trajeto, pois poderia seguir pela outra margem do Jordão (como parece ser
o caso em Mc 10,1: “além do Jordão”, passando por fora da Samaria). João
insiste que Jesus, embora judeu (4,9.22!), não evita os samaritanos; ele até
chegará a ser identificado com os samaritanos (8,48).
Assim, chega perto da cidade de Sicar, onde fica o sítio que o patriarca 5-6
Jacó deu a seu filho José e que serviu de cemitério para as famílias dos
patriarcas (Gn 33,19; 48,22; Js 24,32). Sendo perto do meio-dia (lit.: “a hora
sexta”), com o sol a pino, Jesus descansa à beira do poço, que o evangelista
chama a “fonte de Jacó”. Os dois termos, “fonte” e “poço” alternam, como
em Gn 24 (poço de Nacar), que parece ter influenciado bastante Jo 4. Mas
a dupla terminologia pode ser intencional, pois se trata de um poço não de
água parada, mas com uma mina de água corrente no fundo: daí a confusão
em torno da “água viva”, v. 10. O poço de Jacó remete especificamente a Gn
29,1-14: foi aí que Jacó encontrou seu grande amor, Raquel. E o ouvinte
certamente se lembrará do louvor ao poço de Moisés no deserto, Nm 21,16-
18 (quanto ao simbolismo da água, >com. v. 14-15).
Chega uma mulher da cidade vizinha, Sicar, para tirar água do poço. Ela 7-9
é três vezes o oposto do “catecúmeno” anterior, Nicodemos (3,1). Este era
homem, chefe dos judeus, fariseu; ela é mulher, samaritana e de vida pouco
exemplar (cf. v. 18). E se Nicodemos veio de noite (3,2), a samaritana vem
em pleno dia (a “hora sexta”, meio-dia).
Jesus lhe pede de beber. Como os discípulos foram à cidade comprar
alimentos, Jesus e a mulher ficam a sós, e ela admira que um homem judeu
peça de beber a uma mulher samaritana; pois judeus e samaritanos evitavam
qualquer coisa em comum, e homem que se preze evita falar a sós com uma
mulher que não é a sua — ainda mais uma mulher com esse currículo! Jesus
rompe duas barreiras, a religiosa e a social-sexista. Faz pensar em Gl 3,28:
“Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher”: a dis-
criminação dessas categorias desaparece na hora do Messias.
Com a resposta de Jesus no v. 10, inicia-se um “diálogo de revelação”, 10-15
semelhante ao diálogo com Nicodemos, “iniciático” e inacessível aos não-
iniciados. O leitor, devidamente catequizado, sabe de que se trata, mas a
samaritana não. No nível da narrativa, Jesus fala à mulher, mas no nível da
comunidade é o “Jesus eclesial” que se dirige aos que precisam ser iniciados
no seu mistério. À observação da mulher, Jesus responde, misteriosamente:
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são “adorar Deus em espírito e verdade” não significa, pois, um culto “me-
ramente espiritual”, nas nuvens, mas implica a vida conforme à verdade que
Deus manifesta em Jesus, a prática do amor fraterno, como bem explica 1Jo
3,17; 4,7. (O mesmo se diga do culto “racional” de Rm 12,1 ou “espiritual”
de 1Pd 2,5. Observou-se que o “em espírito e verdade” em João significa,
quanto ao conteúdo, a mesmo coisa que o “em Cristo” de Paulo.)
25-26 Embora não entenda tudo isso, a mulher se candidata a participar desse
culto verdadeiro. Diz que está esperando o Messias (= Cristo), que deve vir ao
mundo e que será um Profeta que fará conhecer (lit. “anunciará”) todas as
coisas, esperadas e inesperadas. João resume aqui muito bem a forma samaritana
da expectativa messiânica: os samaritanos não esperavam um messias descen-
dente de Davi, já que se separaram da casa de Davi (1Rs 12,16), mas um
profeta como foram suas figuras mais queridas, Moisés e Elias. Interpretavam
Dt 18,15 (“um profeta como eu”) como anúncio de um Messias-Profeta. Dian-
te dessa confissão de esperança messiânica da mulher, Jesus declara: “Sou eu,
que estou falando contigo”. (Falar é próprio do profeta.)
Nisto se esconde uma lição para nós. A esperança não precisa ter exata-
mente a mesma forma em todos os povos, e certamente não a forma da
esperança concebida por nossa cultura ocidental. Jesus corresponde ao dese-
jo mais profundo da humanidade em todas as suas formas.
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4,1-42
10. Esta interpretação corresponde melhor ao triplo paralelismo do v. 37b (lit.: [A] outro é
quem semeia [B] e outro quem ceifa) — 38a ([A] eu enviei-vos a ceifar [B] e vós não vos
cansastes) — 38b ([A] outros se cansaram e [B] vós entrastes no cansaço deles).
129
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4,43-54
131
O LIVRO DOS SINAIS
sua própria terra” (v. 44). Ainda que a interpretação dessa observação seja
problemática, ela dá a entender que o negócio de Jesus não é fazer sucesso11.
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5,1–12,50
ser lido como uma simples cura, tampouco como Jo 2,5-10 se referia a um
simples fornecimento de vinho! (>com. 2,11).
O homem insiste em querer levar Jesus consigo. Mas Jesus acha desne- 49-53
cessária tal complicação. “Podes ir, teu filho vive!” O homem acredita e vai.
No meio do caminho, seus empregados vêm ao seu encontro para lhe comu-
nicar que seu filhinho vive. Ele verifica que a melhora começou exatamente
na hora em que Jesus disse: “Teu filho vive” (João repete o termo pela
terceira vez). Então ele adere à fé em Jesus, e toda a sua casa (= família e
criadagem) com ele. É um modelo de conversão cristã dos primeiros tempos.
Assim se deu o segundo sinal de Jesus, quando voltou da Judéia à Ga- 54
liléia. A formulação de 4,54 (“segundo sinal… novamente”) evoca 2,11,
acentuando assim o peso da Galiléia, mais especificamente de Caná, que
provavelmente foi um centro da comunidade joanina.
133
O LIVRO DOS SINAIS
aquele que enseja um conflito e, portanto, uma opção, como se verá clara-
mente no fim do cap. 6.
Todos os episódios culminam agora em conflitos, de crescente veemên-
cia, com aqueles que João chama “os judeus”. Quanto à resposta do leitor/
ouvinte, percebe-se que este é levado à profissão explícita da fé no nome de
Jesus, não obstante as pressões contrárias exercidas sobre ele. O ponto cul-
minante desta parte é o desejo de crer dos “gregos” em contraste com a
incredulidade dos “judeus” (12,20-36.37-50).
134
5,1-47
fazer. O que o Pai faz, o Filho faz também. 20O Pai ama o Filho e lhe
mostra tudo o que ele mesmo faz. E lhe mostrará obras maiores ainda,
de modo que ficareis admirados. 21Assim como o Pai ressuscita os
mortos e lhes dá a vida, o Filho também dá a vida a quem ele quer.
22
Na verdade, o Pai não julga ninguém, mas deu ao Filho o poder de
julgar, 23para que todos honrem o Filho assim como honram o Pai.
Quem não honra o Filho, também não honra o Pai que o enviou.
24
Amém, amém, vos digo: quem escuta a minha palavra e crê naquele
que me enviou possui a vida eterna e não vai a juízo, mas passou da
morte para a vida. 25Amém, amém, vos digo: vem a hora, e é agora,
em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a ouvirem
viverão. 26Pois assim como o Pai possui a vida em si mesmo, do
mesmo modo concedeu ao Filho possuir a vida em si mesmo. 27Além
disso, deu-lhe o poder de julgar, pois ele é o Filho do Homem. 28Não
fiqueis admirados com isso, pois vem a hora em que todos os que
estão nos túmulos ouvirão sua voz, 29e sairão. Aqueles que fizeram o
bem ressuscitarão para a vida; aqueles que praticaram o mal, para a
condenação. 30Eu não posso fazer nada por mim mesmo. Julgo segun-
do o que eu escuto, e o meu julgamento é justo, porque procuro fazer
não a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou.
31
IV — “Se eu dou testemunho em causa própria, o meu testemunho não
é verdadeiro. 32Um outro é quem dá testemunho em minha causa, e
eu sei que o testemunho que ele dá a meu favor é verdadeiro. 33Vós
mandastes perguntar a João, e ele deu testemunho a favor da verda-
de. 34Ora, eu não recebo testemunho da parte de uma pessoa huma-
na, mas eu digo isso para a vossa salvação. 35João era a lâmpada
que iluminava com sua chama ardente. Vós, com prazer, por um
tempo vos alegrastes com a sua luz.
36
“Mas eu tenho um testemunho maior que o de João: as obras que
o Pai me deu para que as leve a termo. Estas obras que faço dão
testemunho em meu favor, pois mostram que o Pai me enviou. 37Sim,
o Pai que me enviou dá testemunho a meu favor. Mas vós nunca
ouvistes a sua voz, nem vistes a sua face, 38e não tendes a sua
palavra permanecendo em vós, pois não acreditais naquele que ele
enviou. 39Examinais as Escrituras, pensando ter nelas a vida eterna,
e são elas que dão testemunho de mim. 40Vós, porém, não quereis vir
a mim para terdes a vida!
41
“Eu não recebo glória que venha dos homens. 42Pelo contrário, eu
vos conheço: não tendes em vós mesmos o amor de Deus. 43Eu vim
135
O LIVRO DOS SINAIS
136
5,1-47
Um desses doentes está ali há 38 anos (o tempo que os hebreus passaram 5-9b
esperando no deserto antes de entrar na terra prometida, segundo Dt 2,14).
Jesus lhe pergunta se quer ficar curado. O homem nem sequer diz “sim”.
Responde somente que não tem quem o ajude a descer na água por primeiro,
quando ela se põe a borbulhar. (A crença popular atribuía força especial ao
primeiro borbulhar da água, alimentada por uma fonte subterrânea — como
explica o acréscimo dos vv. 3b-4).
Será que o homem espera que Jesus o ajude? Não se sabe. De toda
maneira, Jesus toma a iniciativa — como sempre no Evangelho de João —
e lhe diz: “Levanta-te, pega tua maca e anda”. O homem obedece: está
curado! Sinal de que o tempo messiânico, anunciado pelos profetas, se cum-
priu: “Firmai os joelhos debilitados” (Is 35,3).
talvez tenha havido quatro galerias em redor e uma no meio, portanto cinco. Mas os cinco pórticos
ou galerias podem também se referir aos banhos terapêuticos que foram encontrados em redor,
inclusive com vestígios de cultos pagãos (ao deus Asclépio/Esculápio). Ainda que datem de uma
época ulterior (depois da destruição da cidade em 135 dC), esses banhos parecem confirmar a
exatidão essencial da informação de Jo 5,2.
137
O LIVRO DOS SINAIS
e aos irmãos (cf. 9,39-41) — assim como a cura pode se tornar símbolo
do perdão (5,14), sinal da obra de Deus (9,3c). Se a debilidade foi sinal do
pecado, a cura é sinal de libertação do pecado. “Não peques mais”: pior que
pecar é voltar a pecar. Quem é curado por Jesus não pode mais voltar àquilo
que manteve os hebreus e o aleijado afastados da libertação durante 38 anos
(cf. v. 5)! Mas é exatamente o que vai acontecer…
Como os discípulos, Nicodemos, a samaritana... o homem que foi curado
não entende as dimensões profundas da atuação de Jesus. Aparentemente
sem maldade, mas também sem compromisso com Jesus, o homem (pressio-
nado? cf. 9,13-23) vai contar às autoridades judaicas que foi Jesus quem o
curou. Depois de aguardar seus 38 anos, como Israel no deserto (>com. v. 5),
em vez de entrar na liberdade da Terra Prometida, entra numa nova escra-
vidão, a da Lei seqüestrada pelas autoridades. O leitor poderá depois com-
parar o comportamento do ex-aleijado com o testemunho valente do ex-cego,
no cap. 9, e espelhar nisso seu próprio crescimento na fé (as duas narrativas
de cura têm muito em comum).
Tal volta à não-liberdade, hoje em dia, ocorre menos em relação à religião
(que era dominante no tempo de João), mais em relação aos setores comerciais
e “culturais”. A pessoa se livra de uma dependência e se entrega a outra, mais
recentemente propagada pela mídia… É difícil ser livre (>com. 8,32).
15-18 Em conseqüência da declaração do ex-aleijado, os “judeus” começam a
importunar Jesus por ter mandado o homem carregar um peso em dia de
sábado. Jesus se defende (a forma peculiar do verbo “responder” que Jesus
usa nos vv. 17 e 19 tem esse sentido): “Meu Pai trabalha sempre (lit.: até
agora) e eu também trabalho”. Deus santificou o sétimo dia da criação, o
sábado (Gn 2,2-3). Descansou, mas não se aposentou! Não deixou de cuidar
de seus filhos. Também Jesus cuida dos filhos de Deus no sábado: faz como
o Pai (isso será desenvolvido nos vv. 19-21). Transparece aqui o mesmo
tema de Mc 2,28: o Filho do Homem é senhor até do sábado; mas João vai
falar de outras competências do Filho do Homem (v. 27).
Quando Jesus chama Deus de Pai, os “judeus” acham que com isso ele
se torna igual a Deus (v. 18). Por isso, começam a persegui-lo com ódio
mortal. Indevidamente. Jesus não se declarou igual a Deus; são os “judeus”
que interpretam assim o fato de ele chamar a Deus de Pai. Podemos suspei-
tar que se trata de uma discussão viva no tempo do evangelista: sinagoga
acusando os cristãos de colocar Jesus no mesmo nível de Deus. (Sobre a
acusação de Jesus igualar-se ao Pai, >com. 10,30.)
Se no AT o rei e os justos são chamados de “filhos de Deus”, eles podem
considerar Deus como Pai. O povo eleito chama Deus de “nosso Pai” (Is 63,14;
138
5,1-47
64,7; cf. Tb 13,4). No AT, o Livro da Sabedoria conta que o justo é perseguido
pelos ímpios porque chama Deus de Pai (Sb 2,10-22). Assim, os perseguidores
em Jo 5,18 tornam-se iguais aos “ímpios” que perseguem o justo de Sb 2 por
chamar Deus de Pai! Ironia: os “judeus” (= o judaísmo dominante no tempo de
João) não admitiam o Livro da Sabedoria entre as Sagradas Escrituras (é
deuterocanônico). Portanto, não se podiam reconhecer no texto de Sb 2. Mas os
cristãos conheciam esse texto e o aceitavam como Sagrada Escritura...
139
O LIVRO DOS SINAIS
ouvido à minha palavra e, assim, mostra sua fé naquele que me enviou, tem
a vida eterna e não vai a juízo. Ele passou da morte para a vida” (v. 24).
Morte e vida têm aqui o sentido do “dualismo joanino” (>Intr. § 2.1.6): a
morte é o lado da carne, daquilo que passa, a vida é o lado de Deus, do
Espírito, daquilo que vence e permanece. Quem não se une a Deus pela fé
em Jesus permanece no lado da morte. Quem acredita em Jesus está desde
já no lado da vida, e com a morte física sua opção se torna definitiva; ele
não vai a juízo. O juízo não está mais à sua frente, pois sua vida já está
decidida pelo opção por Jesus, melhor, por Deus em Jesus.
25-27 Com um novo “amém, amém”, Jesus anuncia que, de fato, o julgamento
vindouro já está presente (>Intr. § 3.3.8; 5.1:10): “Vem a hora — e é agora
— em que os mortos vão ouvir a voz do filho de Deus e os que lhe prestarem
ouvido terão a vida” (v. 25). A expressão “é agora” exclui que Jesus esteja
apenas anunciando o julgamento como próximo, como imaginavam muitos
dos primeiros cristãos (cf. 1Ts 4,13-18). O “agora” tem o sentido forte: desde
já (>com. 11,25-27). Quando aderimos a Jesus, possuímos desde agora a
vida definitiva, que nos une a Deus — enquanto formos fiéis, naturalmente
(pois ninguém pode jogar-se na rede com o pretexto de que “a ressurreição
já aconteceu”, cf. 2Tm 2,18). Deus é o criador da vida, ele tem a vida em
si mesmo e dá ao filho o poder de “dar vida” (no sentido de comunhão com
o Deus da vida) e de julgar aqueles que não se abrem para a vida que vem
de Deus.
No v. 27, João passa do termo “Filho”, que evoca em primeiro lugar o
amor do Pai e a união com ele, para “Filho do Homem”: o Filho tem poder
de julgar, pois ele é o “Filho do Homem” (cf. 1,51), aquele que vem de Deus
para derrotar as forças do mal no mundo (cf. Dn 7,13-14). Convém combinar
essas frases com as de 3,16-21: o Filho não veio para julgar, mas para salvar;
todavia, quem se fecha na incredulidade assina seu próprio julgamento (cf.
também 12,47-48).
28-29 Isso não deve causar admiração ou ofensa, acrescenta Jesus, pois a hora
virá em que todos os que estão nos túmulos ouvirão a voz do Filho do
Homem, e os que fizeram o bem vão sair para a ressurreição da vida, mas
para os que fizeram o mal, a ressurreição levará à condenação. Isso é uma
citação livre do texto de Dn 12,2, dando a entender que o julgamento que
Deus deve realizar no dia do Juízo agora é atribuição do Filho do Homem
— identificado, no v. 27, com Jesus. Essa atribuição pode justificar-se a
partir de outro texto de Daniel, 7,13-14, segundo o qual os plenos poderes
de Deus (“soberania, glória e realeza”) são atribuídos ao Filho do Homem
(João combina portanto Dn 7,13-14 com 12,1-3).
140
5,1-47
Jesus encerra esta parte da “defesa” com o tema do início: como Filho, 30
ele não age por conta própria, mas transmite o juízo que “ouve” do Pai; não
faz o que ele quer, mas o que o Pai quer (>com. v. 19).
141
O LIVRO DOS SINAIS
brilhou por tempo determinado (v. 35), e isso não é desprezível (cf. Elias,
segundo Sr 48,1), mas não era “a Luz” (cf. 1,6-8.9).
36 Jesus tem um testemunho a seu favor que pesa muito mais que o de João:
as obras que o Pai lhe deu a realizar. Deus mesmo está por trás daquilo que
Jesus faz (cf. vv. 17 e 19-20). Suas obras e toda sua atuação atestam que
Deus foi quem o enviou; os sinais que Jesus faz não são façanhas para ter
sucesso; são um atestado de Deus a seu favor.
“As obras que o Pai me deu para que as leve a termo”: não se trata de
façanhas em vista do sucesso próprio, nem de obras para cumprir exigências
do sistema religioso, mas das obras que o Pai lhe confia, de pai para filho,
para que as “leve a termo”, tanto do ponto de vista pessoal (o dom da vida
por amor até o fim: 13,1; 19,28-30), como do ponto de vista do Pai (a
realização escatológica, acabamento da obra do Pai). Aliás, as duas perspec-
tivas coincidem (cf. 10,30; >exc. 5,30). As obras de Deus que Jesus completa
em si e no projeto escatológico não são outras senão as da justiça e do amor
fraterno, que Jesus exibe em sua prática e que qualquer judeu conhece pela
Lei e pelos Profetas. É neste sentido, e não por algum texto tomado ao pé
da letra, que a Escritura testemunha a favor de Jesus (cf. v. 39).
37-40 Sim, Deus enviou Jesus. O Pai testemunha a favor dele. Os mestres dos
judeus não ouviram a voz de Deus, não viram o Deus invisível (à diferença
do Unigênito no seio do Pai; cf. 1,18). Será que João está desprezando o que
Ex 19 e 24 escrevem sobre Moisés e os anciãos? De toda maneira, por mais
sábios que sejam, os mestres dos judeus não têm a palavra de Deus “moran-
do” (ou “permanecendo”) no âmbito deles... (alusão à “morada”, shekiná?).
Dizer isso é um desaforo. Os rabinos acham que a “Lei”, cujos livros eles
ciosamente conservam, é a palavra de Deus presente no meio deles. Jesus
nega isso. Pois eles não dão crédito àquele que Deus enviou e que é a
142
5,1-47
Palavra de Deus em pessoa, o único que faz conhecer Deus de maneira segura.
Os rabinos perscrutam as Escrituras, quer para encontrar regras concretas para
a vida prática, a moral, os ritos (a halaká), quer para conhecer melhor as
profecias a respeito do Messias. Foram os rabinos que, na época do Quarto
Evangelho, reconheceram assim o Messias em Bar-Kokbá, “Filho da Estrela”,
que tragicamente pereceu no segundo levante judaico (132-135 dC). É sobre-
tudo (mas não só!) neste sentido que João considera inútil o trabalho deles:
“Nós [já] encontramos aquele de quem escreveram Moisés, na Lei, e os pro-
fetas” (1,45). Que os rabinos estudem quanto quiserem a Lei, as Escrituras...
precisamente elas dão testemunho de Jesus! O problema é que não procuram
na Escritura as obras de amor e de justiça que Jesus faz e ensina (>com. v. 36).
Eles não querem “ir a Jesus” (= crer) para possuírem a vida!
Jesus repete que ele não depende de testemunhos meramente humanos a 41-44
seu respeito (cf. v. 34). Ele sabe muito bem que o meramente humano não está
à altura de sua missão (cf. 2,25). Muito menos os que o acusam: eles não têm
amor a Deus no coração; e se fossem a favor de Jesus, seria preciso desconfiar
de Jesus! Jesus veio no nome de Deus, seu Pai, e eles não o receberam (cf.
1,10-11). Mas quando alguém vem em seu próprio nome, procurando proveito
próprio, então lhe dão crédito. Como se explica isso? Eles vivem à base da
ambição e da competição, procurando sucesso e reconhecimento da parte de seus
similares, e por isso não têm abertura para receber a glória que vem de Deus,
ou seja, aquilo que é comunicado pelo Único que possui a “glória” como justa
propriedade sua (cf. 1,14). Só a Deus pertence a glória! (João faz aqui um jogo
de palavras com a dupla conotação de “glória”; na semântica hebraica, glória
significa substância, o verdadeiro ser de alguém; no sentido grego, significa
apenas o brilho, que pode ser falso.)
Essa crítica da ambição e da competição ultrapassa a perspectiva da
briga da comunidade de João com a Sinagoga. É algo universalmente huma-
no, pois seria ingênuo pensar que só os rabinos de Jâmnia procuravam re-
ceber glória uns dos outros…
Jesus sabe que suas palavras são uma acusação. Mas não é ele que a 45-47
profere. O próprio Moisés, do qual os mestres se gabam (cf. Mt 23,2), acusa-
os diante de Deus (segundo Dt 31,26-27, o livro da Lei acusa a incredulidade
de Israel diante de Deus). Se acreditassem em Moisés, acreditariam também
em Jesus. Mas se eles não acreditam naquilo que eles consideram Sagrada
Escritura, aquilo que Moisés escreveu, como acreditarão nas simples pala-
vras que Jesus fala?
O retrato que o Jesus joanino pinta dos mestres judaicos provavelmente
não valia para todos, nem mesmo no tempo do Quarto Evangelho. Por outro
143
O LIVRO DOS SINAIS
lado, tem alguma atualidade para nossa realidade hoje. No obsessivo apego às
Escrituras, aos rolos que conservam e perscrutam, esses mestres se comportam
como os que querem provar as suas opiniões com textos da Bíblia, manipu-
lados de qualquer jeito, enquanto ficam surdos àquilo que Deus lhes fala por
meio do que é óbvio, o clamor dos pobres, dos pequenos e dos excluídos…
O centro deste capítulo não são os mestres judeus, mas Jesus. Ele
mostra um sinal da parte de Deus, um sinal de vida, sinal de que ele
é o dom da vida e que diante dele se decide a vida verdadeira, a vida
que não está exposta ao juízo e já passou da morte.
À diferença do homem curado na piscina de Bezata, que mal percebeu
o que lhe ocorreu, e que sumiu desde o momento em que Jesus se
tornou objeto de censura, os membros da comunidade cristã são con-
vidados a acompanhar a defesa de Jesus, os testemunhos a seu favor.
O testemunho principal é a própria prática de Jesus, na qual trans-
parece o Pai que lhe designa suas obras.
É o que temos a responder quando somos criticados pelo valor “di-
vino” que atribuímos a Jesus, quando ficamos envolvidos no conflito
com o mundo. Tomamos partido por Jesus, que chama a Deus seu Pai.
Visamos à “referência última” por meio de Jesus. E teremos de jus-
tificar isso diante do mundo pela própria obra de Jesus, rememorada
e continuada por nós. Mas para que isso seja possível, devemos apren-
der ainda muita coisa, como veremos nos capítulos seguintes.
144
6,1-71
32
Jesus respondeu: “Amém, amém, vos digo: não foi Moisés quem
vos deu o pão do céu. É meu Pai quem vos dá o verdadeiro pão do
céu. 33Pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao
mundo”. 34Eles então pediram: “Senhor, dá-nos sempre desse pão!”
35
Jesus lhes disse: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá
mais fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede. 36Contudo, eu
vos disse que me vistes, mas não credes. 37Todo aquele que o Pai me
dá, virá a mim, e quem vem a mim não lançarei fora, 38porque desci
do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que
me enviou.
“39E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca
nenhum daqueles que ele me deu, mas os ressuscite no último dia.
40
Esta é a vontade do meu Pai: quem vê o Filho e nele crê tenha vida
eterna. E eu o ressuscitarei no último dia”.
41
Então, os judeus começaram a murmurar contra Jesus, porque
disse: “Eu sou o pão que desceu do céu”. 42Diziam: “Este não é
Jesus, o filho de José? Não conhecemos nós o seu pai e sua mãe?
Como pode, então, dizer que desceu do céu?”
43Jesus respondeu: “Não murmureis entre vós. 44Ninguém pode vir a
146
6,1-71
147
O LIVRO DOS SINAIS
148
6,1-71
Mc Mt Lc Jo
A transição 6,32-33 14,12-14 9,10-11 6,1-4
1º sinal dos pães 6,34-44 14,15-21 9,12-17 6,5-15
Jesus anda sobre 6,45-52 14,22-33 6,16-21
o lago (+ acresc. ce-
na de Pedro)
Genesaré 6,53-56 14,34-36 6,22-24
(Cafarnaum)
B dicussões 7,1-30 15,1-28
149
O LIVRO DOS SINAIS
150
6,1-71
151
O LIVRO DOS SINAIS
Jesus, desde o início, pensa em realizar o sinal do pão (6,5-6). Jesus mesmo
distribui o pão, não os discípulos (6,11). Em 7,1-13, recusa o convite de
seus irmãos, mas sobe a Jerusalém de acordo com seu próprio plano (que
é o do Pai). Nos caps. 9 e 11, afasta as intervenções dos discípulos, para
depois realizar os sinais (ao cego e a Lázaro) conforme seu próprio projeto.
Mais fortemente, porém, essa soberania de Jesus no agir aparece na história
da Paixão. Judas nem precisa beijar Jesus para o entregar, Jesus mesmo se
entrega, e os guardas caem de costas (18,4-11). Diante do sumo sacerdote,
fala com autoridade (18,21-23), diante de Pilatos, afirma sua realeza, em-
bora “não deste mundo” (18,36). Na cruz, exclama soberanamente: “Está
consumado” (19,28.30).
O efeito dessa concentração é que o Jesus joanino aparece no palco como
que coroado com uma auréola. Mas não nos enganemos: isso não diminui
em nada sua humanidade: ele é carne. Apenas nos faz meditar mais profun-
damente como Deus está presente e age nessa existência humana.
Para completar: o Evangelho de João não é, em última análise, cristocêntrico
e sim teocêntrico (>Intr. § 5.1:3). “O Pai é maior do que eu” (14,28). Jesus
está a serviço do Pai, não procura sua própria glória (8,50). O cristocentrismo
narrativo é um meio para expressar o teocentrismo da visão de João: com
Cristo no centro da cena olhamos para o Pai, que nele transparece: “Quem
me vê, vê o Pai” (14,9).
12-13 Quando terminam de comer, Jesus manda recolher o que sobrou: doze
cestos cheios de restos dos cinco pães e dois peixinhos (cf. Mc 6,43 par.).
Doze é o número das tribos do antigo povo de Israel e também dos apóstolos
do novo povo de Deus, a Igreja: o novo povo de Deus é alimentado no
deserto, sinal do dom messiânico de Deus. A abundância dos restos recolhi-
dos (lit.: o que “ultrapassou”) é um típico traço escatológico (cf. Is 25,6; Am
9,13 etc.; cf. a abundância de vinho em Caná). João acrescenta mais um
traço simbólico/escatológico à narrativa: Jesus não quer que algo se perca;
o sentido deste simbolismo aparece no v. 39 (cf. também 17,12; 18,9).
Se João viu aqui a substituição da Páscoa “dos judeus” (cf. v. 4), vale a
pena observar as diferenças em comparação com a Páscoa do Êxodo: nada
de comer às pressas, pão ázimo etc. Abundância messiânica, isso sim, à
maneira de Is 25,6 (inclusive, no “monte”, cf. Jo 6,3). E no decorrer do
capítulo vai ficar claro que é isso que se celebra na Eucaristia cristã (v. 23
e 51-58).
14-15 O povo ainda não entende o sentido profundo dos sinais (>com. v. 2).
“Ao ver o sinal” que Jesus acaba de realizar, o povo conclui — com certa
razão — que Jesus é “o profeta que deve vir ao mundo”, o novo Moisés ou
alguma outra figura messiânica. O povo tira, porém, conseqüências práticas
152
6,1-71
equivocadas. Querem segurá-lo para proclamá-lo rei, Messias. Mas que sig-
nifica isso? Em que tipo de Messias pensam? Será que só pensam no seu
dom material, a solução para a fome? Isso seria um erro. Já no Deuteronô-
mio, o dom do maná (que constitui o tema do diálogo na segunda parte do
episódio) era visto como um ensinamento de Deus (Dt 8,3, aludindo ao
ensinamento do repouso sabático por ocasião do dom do maná, Ex 16,22-
30). A missão de Jesus não é fazer o que podem fazer os padeiros — desde
que haja justiça social. É outra, mais radical — e que está na base da justiça
social, como explicaremos na consideração final deste capítulo.
Querem fazê-lo rei, salvador da pátria, para resolver todos os proble-
mas… Ora, o reinado de Jesus não é deste mundo (>com. 18,36). Por isso,
retira-se na montanha, sozinho, perto de Deus. Deste modo, introduz-se na
narrativa uma ruptura que — como em 2,4; 4,48 — faz o leitor refletir sobre
seu sentido profundo e verdadeiro.
Os discípulos aguardam Jesus à beira do lago. Como ele não aparece, 16-21
entram no barco e iniciam a travessia rumo a Cafarnaum. Já estão envolvidos
nas trevas, e “a luz” ainda não veio (v. 17b, cf. 1,5). O lago está sendo
agitado pelo vento noturno. Remam até o meio (lit.: “vinte e cinco ou trinta
estádios”, uns cinco quilômetros). De repente, enxergam Jesus passeando
sobre as ondas. Ficam assustados.
Então Jesus se dá a conhecer: “Não tenham medo, sou eu”. Linguagem
da manifestação de Deus, da teofania. É um convite a superar o “medo
sagrado” que acompanha as manifestações de Deus (cf. Ex 19,16; Dt 18,16).
Também o termo “sou eu” evoca a atmosfera da teofania. Mesmo se o
primeiro sentido da expressão é identificar a pessoa de Jesus, é inevitável a
associação com o nome de Deus, YHWH (“Aquele que é”, “Eu Sou”, Ex
3,14). Deus revelou-se a Moisés como aquele que não tem nome próprio,
como têm os outros deuses, ou melhor, cujo nome é inefável. Identificou-se
como aquele que, com sua presença, acompanha seu povo: “Eu sou/estou
(contigo)” (Ex 3,12; >exc. 8,28). Assim é Jesus para seus discípulos de
ontem e de hoje. Todavia, só os iniciados entendem isso.
Com muita alegria, os discípulos recebem Jesus no barco, que, de modo
surpreendente, atinge logo a margem para onde estavam se dirigindo com
tanta dificuldade (cf. Sl 107,23-32).
153
O LIVRO DOS SINAIS
154
6,1-71
Deus. Jesus lhes ensina a se esforçarem pelo pão que “permanece para a vida
da era eterna” (>com. 6,40) e que o Filho do Homem lhes dará, pois ele leva
o selo, o atestado de autenticidade e autoridade conferido por Deus (v. 27).
O “sinal” do pão é a garantia dessa autoridade que ele recebe do Pai.
Perguntam o que devem fazer para agradar a Deus. Jesus responde que 28-30
“a obra de Deus” (= o que eles devem fazer para agradar a Deus) é que
acreditem naquele que Ele enviou. (Alguns interpretam o v. 29 de modo
diferente: a “obra que Deus faz” é que eles acreditem.)
Embora não percebam o alcance de tudo isso, os interlocutores entendem 31
acertadamente que Jesus se refere à sua própria missão. Por isso, pedem a
Jesus um sinal de sua autoridade para legitimar sua missão (cf. 1Cor 1,22):
“Que sinal fazes tu? Os nossos antepassados comeram o maná no deserto,
como está escrito na Bíblia: Deu-lhes pão do céu a comer” (Sl 78,24; Ex
16,15…). Querem ver (um sinal) para crer (>exc. 6,36). Apesar de terem
presenciado, no dia anterior, um sinal que fala por si, pedem uma prova de
autoridade! Não entenderam o significado do sinal do pão.
Jesus tenta mostrar a diferença entre o que eles têm em mente e o dom 32-34
que ele oferece:
Moisés não deu (no passado) pão do céu aos seus antepassados; o maná,
outrora, foi no máximo uma prefiguração. Agora, no presente, “meu Pai dá
o verdadeiro pão do céu”. Não é um alimento qualquer, mas “o” pão do céu.
Não é do passado, mas acontece hoje (“dá”). Não é mediado por Moisés,
mas vem de Deus mesmo. Este pão é “aquele que desce do céu e dá vida ao
mundo”. “Ao mundo”, não só a eles, os israelitas.
Duros de compreensão, continuam pensando em pão material e pedem
que possam ter sempre esse pão (mal-entendido semelhante ao da samarita-
na, a respeito da água, em 4,15; e ao dos discípulos a respeito do alimento,
em 4,33).
Na primeira de suas autoproclamações simbólicas/figurativas (>exc. abai- 35
xo), Jesus revela: “O pão da vida sou eu! Quem vem a mim não terá mais
fome e quem crê em mim não terá mais sede”. Quem conhece a Bíblia
reconhece aqui textos em que pão (e bebida) simbolizam o ensinamento e a
155
O LIVRO DOS SINAIS
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6,1-71
Jesus sabe e acusa que muitos deles não acolhem sua revelação. “Eu vos 36
disse: vós me vistes (= eu estive presente a vós), mas não credes!” O “eu vos
disse” é genérico, refere-se ao anúncio de Jesus em geral; “me” refere-se à
atuação de Jesus, suas palavras, os sinais que ele realiza, sem que surtam
efeito de fé nos interlocutores (cf. vv. 22 e 30: é como se nem tivessem visto
o sinal do pão). Não existe laço necessário entre ver e crer. Jo 6,36 inscreve-
se na dialética do “ver e crer” segundo o Quarto Evangelho.
157
O LIVRO DOS SINAIS
37-39 Apesar da dureza do v. 36, Jesus não fica parado no problema da incre-
dulidade. Ele deseja acolher a todos, na fé. “Todo (lit. “tudo”, um aramaísmo)
o que o Pai me dá virá a mim, e quem vem a mim não lançarei fora.” As
últimas palavras mostram o contraste entre a prática de Jesus e a prática dos
“judeus” para com os que crêem nele (“lançar fora”, cf. 9,34; cf. 9,22).
Acolhendo os que lhe são confiados, Jesus cumpre a missão que o Pai lhe
confiou: “Eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade
daquele que me enviou. E a vontade daquele que me enviou é esta: que eu
não perca nenhum (lit. “nada”, aramaísmo) daqueles que ele me deu, mas os
ressuscite no último dia” (cf. v. 12).
40 No v. 40, então, a vontade do Pai é definida como segue: “que qualquer
um que vê o Filho e nele crê tenha [a] vida [da era] eterna”. O “ver” (>exc.
6,36) significa aqui: ter genuína experiência de Jesus. Muitas pessoas ouvem
falar de Jesus numa maneira que não as atinge, porque mal impostada. Dessas
pessoas não se pode cobrar tal fé. Mas o leitor joanino é o membro da
comunidade. Para ele, o ver (= ter contato mediante o testemunho apostóli-
co) se torna um convite a crer (a permanecer firme na fé).
O termo “vida eterna” deveria ser traduzido como “vida do éon”, ou seja,
da era vindoura, eterna. Não se trata de um prolongamento eterno, infinito, da
vida temporal, mas de uma vida que pertence a outro âmbito, ao “século dos
séculos”, o “século vindouro” (>exc. 11,27), em oposição a “este sécu-
lo/mundo”, que com a vinda do Cristo já começou a ruir (cf. 13,31; 16,33).
A repetição insistente “eu o ressuscitarei no último dia”, nos vv. 39.40.44.54,
identifica esse dom da vida [da era] eterna com aquilo que na linguagem
apocalíptica é representado pela ressurreição no “último dia” (= o dia do
juízo, cf. Dn 12,1-3). Veja também Jo 5,28-29.
41-43 Os judeus “murmuram” porque Jesus se chama a si mesmo “o pão que
desceu do céu”. Não é ele o filho de José (cf. Mc 6,2b-3 par.)? Não conhe-
cem seu pai e sua mãe? Jesus censura seus murmúrios: para os hebreus no
deserto tal murmurar teve conseqüências trágicas (Ex 16,2.7; Nm 14,2.27...).
Não pensem que suas cabeças, se não se livrarem dos preconceitos, sejam
capazes de compreender quem ele é. Só o verdadeiro fiel pode entender que
a origem humana de Jesus não contradiz sua origem e missão divinas. Não
adianta explicar isso a quem não crê.
44-45 No v. 44, muda o tom. Jesus esquece a situação (os resmungos) e inicia
um monólogo de revelação. Ninguém pode ir a Jesus (= crer nele, aderir a
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ele) se o Pai não o atrai, ou, positivamente, se alguém crê nele, é porque o
Pai o atrai (então, no fim, Jesus o ressuscitará; cf. v. 39-40).
Será que só pode ser salvo quem Deus, arbitrariamente, escolhe e atrai a
Jesus? Vejamos o contexto: João discute com pessoas muito piedosas, que
pensam que por sua piedade merecem as graças de Deus. A essa atitude opõe-
se como alternativa concreta o crer em Jesus, por gratuita atração de Deus. Os
que são atraídos por Deus e aderem a Jesus, esses estão no caminho da sal-
vação. Mas não os piedosos “que têm Deus no bolso”. Novamente, João está
falando para os de dentro, para fortalecê-los na fé em Jesus, que é graça
recebida de Deus.
Quando acontece essa graça — a saber, na comunidade cristã —, realiza-
se a palavra da Escritura: “Todos se tornarão discípulos de Deus”. Esta frase
cita Is 54,13, texto de teor escatológico, evocando a restauração do povo, de
Jerusalém e da Aliança (a continuação deste texto, Is 55,1-3, já foi lembrada,
há pouco, em Jo 6,36). Na mesma linha da instrução por Deus podemos
lembrar Jr 31,33-34 (a nova Aliança da Lei inscrita no coração) e Ez 26,26-
27 (o novo “coração” = conhecimento de Deus). Quem escuta Deus e dele
aprende vai a Jesus.
Ora, o ser “discípulo de Deus” se realiza por meio do Revelador. Nin- 46
guém (senão ele) viu Deus (cf. 1,18). Só Jesus, que vem de junto do Pai, é
que viu o Pai e pode dá-lo a conhecer (cf. 3,14). O conhecimento que se
adquire sendo discípulo de Deus, por mediação de Jesus, não é um conhe-
cimento teórico, porém, prático. Instrução, ensinamento na Bíblia é normal-
mente coisa prática: o caminho da vida. Conhecer o Pai por intermédio de
Jesus implica seguir os passos de Jesus, seu caminho e procedimento. “Eu
sou o caminho, a verdade e a vida” (cf. 14,6-9).
Com o solene “amém, amém”, Jesus inicia a conclusão de sua fala. Anun- 47-50
cia: o que nele crê tem vida [da era] eterna (cf. 3,15.16.36). Neste sentido, ele
é o Pão da Vida. E, dando uma resposta cabal ao desafio que os judeus
formularam no início da conversa (v. 31), acrescenta: “Os vossos pais come-
ram o maná no deserto e, no entanto, morreram”. Pois o que os pais comeram
não foi o verdadeiro “pão da vida”, não lhes garantiu a “vida” — no sentido
em que Jesus a entende. Jesus é o “pão que desce do céu para que não morra
quem dele comer”.
Uma consideração final: até aqui foi dito que o Pai dá o pão que desce
do céu, e esse pão é Jesus. Jesus é o ensinamento/sabedoria de Deus (cf.
1Cor 1,24). Não aquilo que ele transmite por palavras, mas todo o seu viver
é ensinamento de Deus para nós. A Torá (= Instrução) é Jesus! (cf. 1,1: A
Palavra é Jesus).
159
O LIVRO DOS SINAIS
51 O sermão poderia terminar aqui. Mas o tema é tão rico que o evangelista
não resiste a aprofundá-lo mais ainda. O v. 51 reassume o assunto, que
parecia encerrado, mediante uma nova autoproclamação de Jesus como pão.
Mas há uma diferença. Em vez de se autoproclamar “o pão da vida”, como
em 6,35.48, Jesus diz: “Eu sou o pão vivo que desce do céu”. Ele não apenas
dá a vida, ele é o “pão vivo”, ele tem a vida em si mesmo (cf. 1,4; 5,26; e
a imagem da “água viva”, 4,10.11; 7,38). Quem comer “deste pão” — Jesus
aponta aqui para si mesmo — viverá “para a eternidade”. Este termo pode-
se traduzir no sentido fraco: “(viverá) para sempre”; ou no sentido acentua-
do, conforme nossas observações acima: “para a era eterna”, a vida do âmbito
de Deus (>com. vv. 39-40). Essa “vida da era eterna” não é um prolonga-
mento da vida material, resultado da procriação, da alimentação, do nome,
da fama; tampouco um “descanso eterno”. É uma vida nova, que se inicia
quando se adere a Jesus e se vive como ele, em doação da própria vida (cf.
1Jo 3,16-18).
Jesus não é apenas aquele que encarna o dom sapiencial, o “pão da
vida”, como ensinamento vital de Deus (6,35-50). Ele mesmo é o pão “ao
vivo” (6,51a). Ele “vive” o dom de Deus, a doação da vida. E quem adere
a ele tem a vida do novo éon (6,51b). Jesus explicita que ele é o pão vivo
porque dá sua própria “carne”, termo que não deixa nenhuma dúvida sobre
o caráter material e histórico dessa “vida”, que é o dom de Deus e a autodoação
do Filho (6,51c). Jesus não transmite meramente uma vida no sentido de
ensinamento, ele põe em jogo seu existir carnal para ser o dom de Deus:
assim, ele nos ensina a vida verdadeira e a dá também. Em 6,51 não se trata
apenas do pão da sabedoria que o Pai dá, por meio do ensinamento de Jesus,
mas do pão que Jesus dá: sua “carne”, a vida humana da qual ele vai
despojar-se para que o mundo tenha vida. É uma perspectiva mais específica
que a perspectiva “sapiencial” dos vv. 35-50. Antes, o pão do qual Jesus
falava significava sua mensagem a respeito do Pai. Agora é focalizado seu
ato central, o dom de sua vida (carne e sangue) na cruz. Exatamente no
momento da cruz, Jesus será mais do que nunca mensagem e palavra do Pai.
Esse dom da própria vida é o que se comemora na refeição eucarística
da comunidade; isso é lembrado sobretudo pelos termos “minha carne para
a vida do mundo”. João reproduz aqui com leves diferenças a fórmula eu-
carística “meu corpo para vós” (1Cor 11,24; cf. Lc 22,19), baseada no texto
do Servo Sofredor Is 53,4-8 e lembrada também nos anúncios da Paixão:
“para dar sua vida em resgate para muitos” (Mc 10,45 par.). As diferenças
são típicas da teologia do Quarto Evangelho: “corpo” vira “carne”, pois João
insiste em chamar a existência de Jesus “carne” (1,14; cf. 1Jo 4,2); “para
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e beber) de Jesus, que doa sua vida humana (a carne) e derrama sua força
vital (o sangue derramado desde a cruz). A refeição da comunidade faz
participar do modo de viver de Jesus. Ela significa e provoca este modo de
viver. Os que participam eficazmente da comunidade que celebra a eucaristia
do corpo e sangue de Jesus têm a vida da era eterna e terão parte na ressur-
reição do último dia, anunciada pelos profetas.
55-58 “Minha carne é verdadeiro alimento e meu sangue é verdadeira bebida”
(v. 55). Devemos entender esse “verdadeiro” como sinônimo de “material”
(realismo do rito) ou no sentido teológico que o termo geralmente tem em
Jo (aquilo que vem de Deus e participa de sua autenticidade; cf. 8,26)?
Inclinamo-nos pelo sentido “joanino”, e interpretamos assim: a práxis huma-
na de Jesus e seu sangue derramado são alimento e bebida verdadeiros,
portadores da “graça e verdade”, do amor fiel de Deus. Isso não impede que
o texto realce também a participação material do gesto eucarístico, expressa
pelo termo “mastigar”, que evoca a participação e o vínculo com a comuni-
dade celebrante (os vv. 60-66 aludem ao fenômeno do afastamento da comu-
nidade). Quem mastiga esse verdadeiro alimento e bebe essa verdadeira
bebida — o fiel que participa do gesto eucarístico e da vida da comunidade
cristã — tem comunhão com Cristo: “Ele permanece em mim e eu nele”
(v. 56, que parece transpor para a Eucaristia o que 17,23 diz da união na fé
e na caridade). Jesus tem em si a vida, pelo poder do Pai que o enviou; por
isso, o fiel terá essa vida, viverá por meio de Jesus (o tempo futuro pode
referir-se aqui tanto à ressurreição como à existência cristã no mundo). Essa
comunicação da vida, do Pai para o Filho e do Filho para os seus, é muito
semelhante à comunicação do amor descrita em 15,9-17.
A fala de Jesus termina, no v. 58, num eco dos versículos 48-51: “Este
é o pão que desceu do céu. Não é como aquele que vossos pais comeram —
e no entanto morreram. Quem mastiga este pão viverá para a eternidade” (=
“para a era de Deus”, cf. acima, vv. 39-40).
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40
Tendo ouvido essas palavras, alguns da multidão afirmavam: 41“Ver-
dadeiramente, ele é o profeta!”. Outros diziam: “Ele é o Cristo!”;
mas outros discordavam: “O Cristo pode vir da Galiléia? 42Não diz
a Escritura que o Cristo será da descendência de Davi e virá de
Belém, o povoado de Davi?” 43Daí surgiu divisão na multidão por
causa dele.
44
Alguns queriam prendê-lo, mas ninguém lhe pôs as mãos. 45Os
guardas então voltaram aos sumos sacerdotes e aos fariseus, que
lhes perguntavam: “Por que não o trouxestes?” 46Responderam: “Nin-
guém nunca falou como este homem”. 47Os fariseus disseram-lhes:
“Vós também vos deixastes iludir? 48Acaso alguém dos chefes ou dos
fariseus acreditou nele? 49Mas essa gente que não conhece a Lei…
são uns malditos!” 50Nicodemos, porém, aquele que tinha ido a Jesus
anteriormente, observou, embora sendo um dentre eles: 51“Será que
a nossa Lei julga alguém antes de ouvir ou saber o que ele fez?”
52
Eles responderam: “Tu também és da Galiléia? Examina, e verás
que da Galiléia não surge profeta”. [7,53–8,11]
IV — 8 12Jesus falou ainda aos judeus: “Eu sou a luz do mundo. Quem me
segue não caminhará nas trevas, mas terá a luz da vida”.
13
Os fariseus então disseram: “O teu testemunho não vale como ver-
dadeiro, porque dás testemunho de ti mesmo”. 14Jesus respondeu:
“Embora eu dê testemunho de mim mesmo, o meu testemunho é ver-
dadeiro, porque eu sei de onde venho e para onde vou. Mas vós não
sabeis de onde venho, nem para onde eu vou. 15Vós julgais segundo
a carne; eu não julgo ninguém, 16e se eu julgo, o meu julgamento é
verdadeiro, porque eu não estou só, mas o Pai que me enviou está
comigo. 17Na vossa Lei está escrito que o testemunho de duas pessoas
vale como verdadeiro. 18Ora, eu dou testemunho de mim mesmo, e
também o Pai, que me enviou, dá testemunho de mim”. 19Eles, então,
perguntaram: “Onde está o teu Pai?” Jesus respondeu: “Vós não
conheceis nem a mim, nem a meu Pai. Se me conhecêsseis, conheceríeis
também o meu Pai”. 20Ele falou essas coisas enquanto ensinava no
templo, junto à sala do tesouro. Ninguém o prendeu, porque sua hora
ainda não tinha chegado.
21
V — Jesus lhes disse ainda: “Eu vou embora, e vós me procurareis; mas
morrereis no vosso pecado. Para onde eu vou, vós não podeis ir”.
22
Os judeus, então, comentavam: “Acaso ele irá se matar? Pois ele
diz: ‘Para onde eu vou, vós não podeis ir’”. 23Ele continuou a falar:
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“Vós sois daqui de baixo; eu sou do alto. Vós sois deste mundo; eu
não sou deste mundo. 24Eu vos disse que morrereis nos vossos peca-
dos. Se não acreditais que ‘eu sou’, morrereis nos vossos pecados”.
25
Eles lhe perguntaram: “Quem és tu, então?” Jesus respondeu: “A
princípio, isto mesmo que vos estou falando. 26Tenho muitas coisas
a dizer a vosso respeito, e a julgar também. Mas aquele que me
enviou é verdadeiro, e o que ouvi dele é o que eu falo ao mundo”.
27
Eles, porém, não compreenderam que estava lhes falando do Pai.
28
Por isso, Jesus continuou: “Quando tiverdes elevado o Filho do
Homem, então sabereis que ‘eu sou’, e que nada faço por mim mesmo,
mas falo apenas aquilo que o Pai me ensinou. 29Aquele que me
enviou está comigo. Ele não me deixou sozinho, porque eu sempre
faço o que é do seu agrado”.
VI — 30Como falasse estas coisas, muitos passaram a crer nele. 31Jesus,
então, disse aos judeus que tinham passado a crer nele: “Se perma-
necerdes em minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos;
32
e conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres”. 33Eles
responderam: “Nós somos descendentes de Abraão e nunca fomos
escravos de ninguém. Como podes dizer: ‘Vós vos tornareis livres’?”
34
Jesus respondeu: “Amém, amém, vos digo: todo aquele que comete
o pecado é escravo do pecado. 35O escravo não permanece para sem-
pre na casa. O filho sim, ele permanece na casa para sempre. 36Se,
pois, o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres. 37Bem sei
que sois descendentes de Abraão. No entanto, procurais matar-me,
porque minha palavra não encontra espaço em vós. 38Eu comunico o
que eu vi junto do Pai; e vós, o que ouvistes do Pai, fazei-o”.
39
Eles responderam: “Nosso pai é Abraão”. Jesus, então, lhes disse:
“Se sois filhos de Abraão, deveríeis praticar as obras de Abraão!
40
Agora, no entanto, procurais matar-me, porque vos falei a verdade
que ouvi de Deus. Isto Abraão não fez. 41Vós fazeis as obras do vos-
so pai”. Eles disseram então a Jesus: “Nós não nascemos do adul-
tério. Só temos um pai: Deus”. 42Jesus respondeu: “Se Deus fosse
vosso pai, certamente me amaríeis, pois eu saí da parte de Deus
para vir aqui. Eu não vim por conta própria; foi ele quem me enviou.
43
Por que não entendeis o que eu declaro? É porque não sois capa-
zes de escutar a minha palavra. 44O vosso pai é o diabo, e quereis
cumprir os desejos do vosso pai. Ele era assassino desde o começo
e não se mantinha na verdade, porque nele não há verdade. Quando
ele fala mentira, fala o que é próprio dele, pois ele é mentiroso e pai
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7,1–8,59
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Os irmãos de Jesus
Os “irmãos de Jesus” são um grupo conhecido no NT (Mc 3,32-35 e par.; 6,3
e par.; Jo 7,3.5.10; At 1,14; especialmente Tiago, o irmão do Senhor: Gl 1,19).
Segundo Mc 6,3, eles se chamam Tiago, Joses (Mt 13,55 diz José), Judas
e Simão. Estes textos mostram que, pelo menos inicialmente, os irmãos do
Senhor não acreditaram nele. Tanto mais ficamos surpresos ao ver um deles,
Tiago, como chefe da comunidade de Jerusalém (At 12,17; Gl 1,19; 2,9.12;
21,8; cf. Tg 1,1 e Jd 1). Mc, todavia, na história da paixão e ressurreição
(15,40.47; 16,1), menciona três vezes Maria, a mãe desses irmãos de Jesus
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Os irmãos provocam Jesus porque não acreditam nele. Querem ver faça- 5-6
nhas (cf. 2,23-24; 4,48); não têm confiança no trabalho silencioso que ele
está fazendo, lá no interior da Galiléia. Jesus os desmascara: “Ainda não
chegou o momento oportuno (kairós) para mim. Para vós, ao contrário, o
momento é sempre oportuno”.
Estas palavras de Jesus marcam, como as de 2,4 e 4,48, porém com
muito mais agressividade, uma ruptura entre o que o mundo espera dele e o
que ele vai fazer. É verdade que, depois, Jesus subirá a Jerusalém, porém,
não por pressão do clã e sim por iniciativa própria, evidentemente de acordo
com seu Pai celeste (como em todos os gestos de Jesus). A ruptura dos vv.
6-8 mostra que sua subida não se inscreve no projeto que seus irmãos lhe
apresentam (de mostrar suas façanhas ao mundo). Jesus vai “subir” em vir-
tude de uma outra lógica (cf. 20,17).
Nos vv. 7-8, Jesus acentua sua diferença em relação ao “mundo”, ao qual 7-9
pertencem tanto “os judeus” quanto os “irmãos”. Contra estes, o mundo não
tem nada, pois são da mesma esfera; a Jesus, pelo contrário, o mundo o
recusa, porque dá testemunho contra seu modo de agir, que é mau. Se eles
sobem para a festa, é porque, na opinião de Jesus, estão mancomunados com
“o mundo”. O fato de serem seus parentes não faz desaparecer o abismo
entre a lógica de Jesus e a dos irmãos. Isso é importante para os leitores de
João, que são parentes dos judeus da Sinagoga, os quais rejeitam Jesus. Ora,
entre os semitas, os laços familiares são muito fortes… Os leitores judeo-
cristãos do tempo de João reconhecem aqui as tensões nas suas próprias
famílias. Também hoje tais rupturas são às vezes necessárias.
Notamos aqui a quase-sinonímia de “o mundo”, no v. 7, e “os judeus”,
para os quais a festa das Tendas é a festa por excelência (cf. v. 2: “a” festa
dos judeus). Eles sobem à festa porque isso cabe nos seus interesses. Jesus
não participa disso. “Meu tempo oportuno (kairós) ainda não se completou”
(mesma terminologia de Mc 1,15!). Jesus não segue o ritmo do mundo; seu
tempo é determinado por Deus.
Dito isso, Jesus permanece na Galiléia.
Todavia, depois que seus parentes subiram, e marcando assim sua distân- 10-13
cia em relação ao projeto deles (como em 2,4; 4,48 em relação à mãe e ao
funcionário real), também Jesus sobe a Jerusalém. A diferença com o projeto
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Jesus explica que seu ensinamento não é invenção própria, mas vem 16-19
daquele que o enviou. Ele teve o melhor professor que se pode imaginar…
Se alguém está disposto a fazer a vontade deste, saberá se Jesus fala por si
mesmo ou se seu ensinamento vem de Deus. A prática do ensinamento de
Jesus mostra seu teor divino, sua origem no projeto do Pai. Jesus não é
daqueles que falam em nome próprio e procuram a glória própria. Ele pro-
cura a glória de quem o enviou. Não há nele injustiça (falta de retidão para
com Deus), ou pior, algo que mereça a morte (pois querem matá-lo). E por
falar em falta de justiça e retidão, Jesus passa a acusar os mestres judaicos
de não respeitaram a Lei de Moisés. A prova disso é que eles querem matá-
lo, contrariamente ao “não matarás” do Decálogo (Ex 20,13).
Condenando Jesus ao ostracismo, a turma apinhada em torno dele excla- 20
ma: “Tens um demônio”, o que é, no mínimo, uma declaração de loucura (cf.
10,20; >Voc. Demônio). Jesus não é digno de conversa. “Quem está queren-
do matar-te?” De fato, ainda não houve tentativa aberta de matá-lo, mas
Jesus sabe que eles não lhe perdoam a cura do aleijado em dia de sábado,
nem aquilo que lhes falou naquela ocasião (cf. 5,10-18).
Jesus opõe à sua única cura sabática (v. 21; cf. 5,9c-18) o fato de os rabinos 21-24
transgredirem com freqüência o repouso sabático (cf. semelhantes réplicas de
Jesus em Mt 12,11; Lc 13,15; 14,14; nenhuma dessas, porém, opõe ao repouso
sabático outro mandamento da Lei, como acontece aqui). Embora sem formação
acadêmica (cf. v. 15), Jesus profere um raciocínio “do menos importante ao
mais importante”, no melhor estilo rabínico: se se pode fazer coisa menos
importante no sábado, a fortiori será permitido fazer o mais importante. Na sua
tradição não-escrita, os rabinos julgam que a circuncisão, prescrita para o oitavo
dia do nascimento, supera a proibição de trabalhar no sábado. Moisés lhes deu
a circuncisão — que vem dos patriarcas — e eles a aplicam mesmo no dia de
sábado. Ora, Jesus faz algo muito maior que a circuncisão, pelo menos para o
olhar irônico de João, pois a circuncisão só atinge uma parte do corpo, e Jesus
curou um homem inteiro. “Se, pois, alguém pode receber a circuncisão num dia
de sábado, para não faltar com a Lei de Moisés, por que estais indignados
comigo por ter curado um homem inteiro em dia de sábado?” Os mestres
judaicos não aprenderam a lição que Deus deu a Samuel: não julgar pela apa-
rência, mas segundo a vontade de Deus (1Sm 16,7; cf. Is 11,3).
Ora, se procuram matá-lo, como Jesus pode ensinar em público, no 25-29
Templo? Será que os chefes reconheceram que ele é o Messias? Impossível!
Eles conhecem a origem de Jesus: Nazaré, de onde não se espera grande
coisa (cf. 1,46; seus discípulos são chamados, pejorativamente, de “nazoreus”).
Segundo muitos mestres judaicos, o Messias terá uma origem desconhecida!
175
O LIVRO DOS SINAIS
Mas em 9,29, isto mesmo — o fato de não conhecerem sua origem — torna-
se uma razão para não crerem em Jesus! Ora, se dizem saber “de onde” Jesus
é, será que o sabem mesmo (>com. 2,9)?
Quando então Jesus exclama (v. 28): “Sim, vós me conheceis e sabeis de
onde eu sou!”, isso é uma ironia, pois na realidade não sabem. E continua:
“Ora, eu não vim por conta própria; aquele que me enviou é verdadeiro, mas
vós não o conheceis [outra tradução: aquele que verdadeiramente me enviou
é que vós não conheceis]. Eu o conheço, porque venho dele e foi ele quem
me enviou!” Eles vivem no engano, ao passo que Jesus está na verdade,
consciente e irrestritamente a serviço daquele que é “verdadeiro”, daquele
que lhe concede conhecimento entranhado de seu mistério (cf. 1,18 e tam-
bém o lógion joanino nos sinópticos, Mt 11,26s par. Lc 10,22s).
30-31 Essa provocação é um desacato à autoridade dos mestres. As autoridades
(que no tempo de João são os rabis) querem prender Jesus, mas não o fazem.
Por que não? João não aponta as razões psicológicas ou estratégicas que os
fazem desistir de prender Jesus; ele indica a razão teológica: a “hora” de
Jesus ainda não chegou (cf. 2,4; 13,1; e acima, vv. 6.8). Também as autori-
dades se inserem, sem querer, no jogo de Deus (cf. 11,49-52).
Ora, na multidão há muitos que passam a crer nele. Uma das razões que
apresentam para crer é esta: “Quando vier o Messias, fará sinais maiores (ou:
mais numerosos) do que este faz?” Todavia, tal crer não é fidedigno, não
merece crédito (cf. 2,23-24; Nicodemos, 3,2).
32-36 Os fariseus ouvem esses comentários e unem-se aos sumos sacerdotes para
mandar a polícia do Templo prender Jesus (uma tentativa mais decidida que a
do v. 30). Enquanto os guardas tentam fazer isso, ressoa a palavra de Jesus: “Por
pouco tempo ainda estou convosco; depois vou para aquele que me enviou. Vós
me procurareis e não me encontrareis. E lá onde eu estarei, vós não podeis ir”.
João gosta de insistir que Jesus em breve voltará para a glória do Pai; o tema
é tratado diversas vezes, com matizes surpreendentes, que explicaremos no seu
contexto (8,21; 13,33.36; 17,24; cf. também o “pouco tempo” em 12,35; 13,33;
14,19; 16,16). Aparece aqui a raiz sapiencial (que já estava presente no v. 28):
Pr 1 Jo 7
1 28
Por sobre o tumulto ela grita, junto às portas Enquanto pois ensinava no templo, Jesus ex-
na cidade, exclama… clamou: “Sim, vós me conheceis e sabeis de
onde eu sou…”
28 33
“…chamar-me-ão, e não responderei, pro- “Por pouco tempo ainda estou convosco;
curar-me-ão e não me encontrarão, 29 porque depois vou para aquele que me enviou. 34Vós
odiaram o conhecimento e não preferiram o me procurareis e não me encontrareis. E lá onde
temor do SENHOR”. eu estarei, vós não podeis ir”.
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13. O copista medieval que pôs números nos versículos (e muitas traduções ainda hoje)
interpretam a sintaxe dos vv.37-38 assim: “(37) Se alguém tem sede, venha a mim e beba. (38)
Quem crê em mim — como diz a Escritura —, do seu interior correrão rios de água viva”. A fonte
da água estaria naquele que crê; cf., p.ex., Pr 18,4; 20,5; Is 58,11. Mas essa interpretação baseia-
se numa analogia duvidosa com 4,14 (aí, a água, doada por Jesus, jorra no crente, mas não sai
dele). Além disso, o v. 39 contradiz tal interpretação, pois relaciona a água com o dom do Espírito
por Jesus.
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também as excede. (Em compensação, houve até rabino achando que Deus
devia obedecer ao Talmud!)
A origem do Messias
Para informação, algumas opiniões do judaísmo antigo sobre a origem do
Messias (nenhuma delas tem importância para João):
No v. 27, vimos alusões ao Messias de origem desconhecida, o libertador
escondido. Na imaginação apocalíptica contemporânea do NT encontrava-
se a idéia de que ele estivesse escondido (“no deserto”, Mt 24,26! cf. Ap
12,6.14), para “revelar-se” (= apokal¥ptesthai). Pensava-se também que Elias
devia revelá-lo ao mundo (cf. Ml 3,1.23-24; Mc 9,11 par.). Para despistar
essas imaginações, João Batista declara (no Quarto Evangelho) que ele não
é Elias (1,21), embora revele Jesus a Israel como Cordeiro e Filho de Deus
(1,31). Em 7,45-52, a questão é outra: ele deve ser da estirpe de Davi,
portanto nascer em Belém. Há ainda muitas outras coisas que naquele tem-
po se imaginavam a respeito do Messias, mas isso não interessa aqui.
O que interessa a João é opor a todas essas especulações o fato bruto do
Messias cristão: (1) ele não vive escondido (João usa com insistência o
advérbio “abertamente”, parresíai, a respeito de Jesus, menos no caso da
publicidade que seus irmãos lhe aconselham); (2) nem corresponde à ima-
ginação do descendente davídico de Belém, pois ele é o filho de José de
Nazaré (1,45; 6,42), na Galiléia, duas indicações de origem que não susci-
tam entusiasmo (1,46; 7,52).
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validade formal, Jesus mostra a verdade real). Jesus se distingue dos mestres
judeus porque não julga ninguém (à maneira deles). Tampouco veio pa-
ra julgar (cf. 3,17; 12,47). Ora, mesmo se julga — pois sua presença é
julgamento (3,19; 12,48), e Deus lhe confiou o julgamento (5,22; cf. 9,39)
—, seu julgamento é válido, porque não é só ele quem julga, mas o Pai que
o enviou está com ele. Assim se unem a favor de Jesus seu próprio testemu-
nho e o do Pai. Ora, conforme a Lei, o testemunho de duas pessoas é
válido... (cf. v. 13). Assim completa-se aqui a discussão do testemunho le-
vantada em 5,31-47 (>Voc. Testemunhar).
Depois que Jesus apontou a ratificação de seu testemunho pelo Pai, 19
perguntam, grosseiramente: “Onde está esse teu Pai?” Soa então a palavra mis-
teriosa de Jesus: “Vós não conheceis nem a mim, nem a meu Pai. Se me co-
nhecêsseis, conheceríeis também o meu Pai”. O sentido destas palavras fi-
cará claro para os que estão unidos a Jesus, na ceia da despedida (cf. 14,7-9).
Essa discussão se deu no depósito das doações — o “tesouro” —, no 20
pátio do Templo (v. 20; cf. Mc 12,41-44), observa o evangelista, retroativa-
mente (como em 1,28; 6,59…). Será ironia? Conhecem o tesouro do Templo,
mas não o Pai, nem seu Enviado… (cf. Mt 6,21).
Os chefes tentam novamente prender Jesus, mas não têm êxito, porque,
em conformidade com o plano de Deus, “sua hora (= de Jesus) ainda não
chegou” (cf. 7,30).
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O LIVRO DOS SINAIS
tempo de Jesus e de João. O sistema religioso judaico tinha por foco prin-
cipal a reconciliação com Deus. Inclusive, a festa das Tendas, aqui em pauta,
se celebrava cinco dias depois do dia da Reconciliação, o Yom Kippur (Nm
29,7-11). Dizer aos “judeus” que “morrerão no seu pecado” é declarar inútil
seu sistema religioso, e é isso que o Evangelho de João faz em todas as suas
páginas. É uma advertência profética para não confiarem em sua segurança
adquirida (cf. Jr 7,4, a respeito do Templo), mas não é uma declaração de
condenação eterna.
Retomando o tema da Palavra-Sabedoria que já não se deixa encontrar
(cf. 7,33-34), Jesus explica por que os judeus não podem chegar aonde ele
estiver: “Vós sois daqui de baixo; eu sou do alto. Vós sois deste mundo; eu
não sou deste mundo”. Jesus e seus adversários pertencem a dois âmbitos
opostos (dualismo, >Intr. § 2.1.6). Esse modo de falar tem raiz na apocalíp-
tica judaica, que opõe “este mundo” (presente e mau) ao “mundo (ou século)
vindouro” (messiânico, santo). Não se trata da localização na esfera de cima
ou na de baixo, neste ou noutro mundo, mas de origem e pertença, portanto,
de liberdade ou de dependência (cf. v. 31-38). Jesus nada tem a ver com
“este mundo”, e os seus tampouco (cf. 17,16), mas o sistema do Templo (e
da Sinagoga), sim. Jesus e os que lhe são fiéis pertencem ao mundo novo
que Deus destinou para vencer o presente mundo de iniqüidade; enquanto os
adversários pertencem (continuam ligados) a “este mundo”.
24 Como num extremo apelo à conversão, Jesus repete que eles vão morrer
nos seus pecados (v. 24, cf. v. 21): ficarão sem aquilo que o judeu mais
procura na sua religião: a reconciliação com Deus.
Isso, se não acreditarem quando ele diz: “Eu (o) sou”. Pela forma gra-
matical não se sabe se é preciso subentender um predicado nesta frase. Ela
inicia uma tríplice repetição (vv. 24.28.58), e só no fim vamos perceber com
maior clareza o que ela sugere.
25 Jesus é o que, ou quem, para falar desse jeito? “Isto mesmo que vos
estou falando!”, diz Jesus. O modelo desse modo de falar, que chamamos de
“autocredenciamento”, é o diálogo da vocação de Moisés, Ex 3,11-14. Quan-
do Moisés pergunta quem deve mencionar como seu “mandante” para falar
aos filhos de Israel, YHWH não cita nome nem título, mas simplesmente
aponta sua presença: “Eu estou contigo” (v. 12). “Eu sou o que estou […]
Falarás: Eu sou me enviou a vós” (em hebr., ser = estar). Não precisa de
nome. Basta que revele sua presença para Israel, por meio de Moisés, seu
enviado. Também Jesus não dá outra explicação a não ser o que ele diz e faz.
Não há palavras para expressar o que ou quem Jesus é. Só vendo. É o que
é, o que faz, o que diz.
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mais uma vez seu uníssono com o Pai. Agora, o que eles precisam saber é dito
com clareza: Jesus é o Filho do Homem enviado por Deus, aquele que executa
o projeto de Deus e realiza a vitória sobre os poderes deste mundo.
Mas no fim do capítulo (8,58) veremos que “eu [o] sou” não deve ser
entendido apenas como resposta à pergunta pelo Messias ou Filho do Ho-
mem. Há muito mais por trás dessa expressão.
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O LIVRO DOS SINAIS
seria mais para Israel nem rei, nem autoridade divina. Esse “resgate da mão
do Faraó” é expresso na fórmula da Aliança: “Eu serei seu Deus, e eles, meu
povo”: o povo passou a ser vassalo de um novo soberano, no lugar de
Faraó: YHWH. Liberdade é ser liberto, por Deus, dos senhores deste mun-
do, para ter nele o único Senhor (Ex 19,5-6; Dt 6,4…).
Não é liberdade vazia, mas liberdade responsável diante do verdadeiro Senhor.
É ter e viver um compromisso que realmente realize nossa vocação e nosso
status de eleitos de Deus. É para essa liberdade que Cristo nos libertou (Gl
5,1). Paulo chega a ponto de definir essa liberdade como “ser escravo
(douléuein) uns dos outros pelo amor fraterno” (Gl 5,13). Tal é a liberdade
dos filhos de Deus: sermos tão filhos e, portanto, obedientes ao desejo
entranhado do amor paterno, que não haja outro dono no mundo que possa
mandar em nossa vida. (O termo latino “liberdade” corresponde a liberi,
“filhos”, não à ausência de laços ou de limites.)
37-38 Aludindo ao exemplo de Isaac, filho legítimo, e Ismael, filho da escrava,
Jesus denuncia: “Bem sei que sois descendentes físicos (sperma) de Abraão.
No entanto, procurais matar-me, porque minha palavra não encontra espaço
em vós. Eu declaro o que eu vi junto do Pai; vós, pois, o que ouvistes do
Pai, fazei-o”. Jesus exige que esses crentes recalcitrantes coloquem em prá-
tica o que ele viu junto do Pai e lhes comunicou15.
39-41a Assim como nos vv. 26b-27, os judeus não entendem que ele lhes fala
do Pai que é Deus. “Nosso pai é Abraão!”, respondem eles. E Jesus observa:
“Se sois filhos de Abraão (e segundo o AT, eles o são!), deveríeis praticar as
obras de Abraão”. Nos vv. 33 e 37 eram chamados de sperma, descendência
física de Abraão, sem valor salvífico. Aqui lhes é lembrada a filiação verda-
deira, salvífica (tekna, “filhos”!, como em 1,12). Se fossem filhos de Abraão,
deveriam praticar a justiça que este praticou. Mas eles procuram matar Jesus,
homem que lhes comunica o que ouviu de Deus (matar: cf. 5,18; 7,1 etc.;
inclua-se aqui a perseguição à comunidade: cf. 15,18). Abraão, conhecido
por sua generosidade, não fazia tal coisa! E Jesus, modificando ironicamente
o v. 38, acrescenta: “Vós fazeis o que ouvistes de vosso pai”. Se não fazem
o que Jesus lhes comunicou da parte do Pai que é Deus (v. 38), nem aquilo
que o pai Abraão praticava (v. 39), quem será então o tal de “vosso pai” cujo
desejo eles executam?
41b-43 Os judeus da Sinagoga, ainda mais no tempo em que se está recompondo
o judaísmo, não agüentam crítica quanto à sua origem. “Não somos filhos da
15. No v. 38, Jesus fala somente do seu Pai, Deus, exigindo que os ouvintes façam sua
vontade. Infelizmente, alguns manuscritos e muitas traduções escrevem aqui “(eu…) meu Pai, (…
vós…) vosso pai”, antecipando indevidamente a oposição do v. 44: “Eu falo do que vi junto do meu
Pai, e vós fazeis o que ouvistes do vosso pai”.
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16. A acusação de ter nascido da prostituição pode ter um outro alvo: segundo os Atos de
Pilatos 2,3 (livro apócrifo) e Orígenes, Contra Celso, 1,28, os judeus acusam o próprio Jesus de
ter nascido da prostituição ou coisa semelhante.
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Aos olhos dos “judeus”, que pensam em termos da carne, Jesus deve “ter
um demônio” (cf. v. 48), está delirando, mesmo — e provavelmente pensam
a mesma coisa dos seus seguidores. Abraão e os profetas morreram, e Jesus
promete que quem acredita nele não vai morrer. Será acaso maior que Abraão
e os profetas? Quem ele se considera ser?
54-56 Jesus não precisa esconder-se em falsa modéstia, pois não está satisfa-
zendo a própria vaidade. Quem dá glória a Jesus é seu Pai, aquele que os
judeus dizem ser “nosso Deus” (Jesus cita verbalmente a maneira de rezar
dos judeus: “nosso Deus”, Sl 20,8; 40,4 etc.; alusão à Aliança do povo de
Israel: Dt 7,6; cf. Sl 33,12 etc.). Todavia, diz Jesus, eles não conhecem Deus,
não têm experiência dele. Ele mesmo o conhece. Se dissesse o contrário,
seria igual a eles: um mentiroso (cf. v. 44). Mas ele conhece Deus e não pode
esconder o que dele sabe. Ele é encarregado da palavra de Deus. Por isso,
proclama, com majestosa simplicidade: “Vosso pai Abraão rejubilou-se por
ver o meu dia; e ele viu e alegrou-se”.
Quando? Como João acha que Isaías na sua visão inicial (pré-)viu Jesus
(>com. Jo 12,41), podemos supor que ele atribui semelhante pré-visão de
Jesus ao patriarca Abraão; a tradição judaica interpretou Gn 15,18 como uma
pré-visão geral que Abraão teve da história de seus descendentes (Talmud:
Gn rabba 44,22). Certo é que os judeus imaginavam Abraão numa espécie
de beatitude celestial (cf. Lc 16,22-31), em que ele poderia ver o “dia” de
seu descendente, o Messias. Jesus não deve ser contraposto a Abraão; nele
se realiza o que Abraão esperava.
57-58 Os adversários, invertendo os sujeitos, respondem: “Ainda não tens cin-
qüenta anos, e viste Abraão?!” (alguns bons manuscritos lêem: “Abraão te
viu?”). Então, Jesus se revela plenamente: “Antes que Abraão viesse a ser,
EU SOU” (cf. a oposição entre “ser” e “vir a ser” no Prólogo, Jo 1,1-2 e 1,14).
“Eu sou” (terceiro uso neste contexto, depois de 8,24.28) é a frase com
que Deus mesmo se dá a conhecer (Ex 3,14; >exc. 8,25). Jesus pronuncia a
presença de Deus em sua pessoa, e esta é a última palavra da discussão.
Se levamos a sério os vv. 30-31, os que ouviram de Jesus as tremendas
críticas de 8,31-59 são judeus que tinham abraçado a fé em Jesus. Qual foi
mesmo o erro deles? Que deram mais importância a seu pai Abraão que a
Jesus. “Acaso és maior que o nosso pai Abraão?”, perguntam a Jesus. E Jesus
dá a entender que ele é, de fato, maior que Abraão. Também a samaritana em
4,12 perguntou se Jesus era maior que o patriarca Jacó, e os judeus do cap. 6
queriam saber se Jesus era capaz de fazer o que fez Moisés (6,31). Ora, Jesus
é simplesmente incomparável. Ele é a Palavra de Deus em pessoa, ele é o que
Deus é (cf. 1,1). “Antes que Abraão viesse a ser, EU SOU”. Como Deus.
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O que eles não podiam entender no início da conversa (“eu [o] sou”) fica
agora claro, não apenas como manifestação ou revelação, mas também como
julgamento (cf. v. 26). Os que não aceitam que Jesus é o Messias e Filho do
Homem (primeiro sentido de “eu [o] sou”) se defrontam agora com aquele
que sempre, antes de Abraão e antes de todos os tempos, é “o Presente”: “Eu
sou/estou aí”.
O ensinamento de Jesus, por enquanto, terminou. Para os que crêem fica 59
claro o que está em jogo: a adesão firme a Jesus, sem tergiversar. Também
para “os judeus”, as coisas ficam claras: Jesus blasfemou! Pegam em pedras
para apedrejá-lo, de acordo com o castigo que a Lei prescreve para quem
blasfema (Lv 24,16). Mas Jesus sai do Templo e se esconde, assim como ele
veio: “às escondidas” (cf. 7,10).
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lhe então: “Vai lavar-te na piscina de Siloé” (que quer dizer: Envia-
do). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando.
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VIII — 10 1 “Amém, amém, vos digo: quem não entra no pátio das ovelhas
pela porta, mas sobe por outro lugar, esse é ladrão e bandido.
2
Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas. 3Para este o por-
teiro abre, as ovelhas escutam a sua voz, ele chama a cada uma
pelo nome e as leva para fora. 4E depois de fazer sair todas as que
são suas, ele caminha à sua frente e as ovelhas o seguem, por-
que conhecem sua voz. 5A um estranho, porém, não seguem, porque
não conhecem a sua voz”.
6
Jesus contou-lhes essa parábola, mas eles não entenderam o que
ele queria dizer.
7
Jesus disse então: “Amém, amém, vos digo: eu sou a porta das
ovelhas. 8Todos aqueles que vieram antes de mim são ladrões e
bandidos, mas as ovelhas não os escutaram. 9Eu sou a porta. Quem
entrar por mim será salvo; poderá entrar e sair, e encontrará pas-
tagem. 10O ladrão vem só para roubar, matar e destruir. Eu vim
para que tenham vida, e a tenham em abundância.
194
9,1–10,21
11
“Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas.
12
O assalariado, que não é pastor e a quem as ovelhas não perten-
cem, vê o lobo chegar e foge; e o lobo as ataca e as dispersa. 13Por
ser apenas assalariado, ele não se importa com as ovelhas. 14Eu sou
o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem, 15as-
sim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida
pelas ovelhas. 16Tenho também outras ovelhas, que não são deste
pátio; também a essas devo conduzir, e elas escutarão a minha voz,
e haverá um só rebanho e um só pastor. 17É por isso que o Pai me
ama: porque dou a minha vida. E assim, eu a recebo de novo. 18Nin-
guém tira a minha vida, mas eu a dou por própria vontade. Eu tenho
poder de dá-la, como tenho poder de recebê-la de novo. Tal é o
encargo que recebi do meu Pai”.
19
Essas palavras causaram nova divisão entre os judeus. 20Muitos
deles diziam: “Ele tem um demônio, perdeu o juízo. Por que o
escutais?” 21Outros diziam: “Estas palavras não são de alguém que
tem um demônio. Acaso um demônio pode abrir os olhos aos cegos?”
Em 9,1, João sugere uma leve mudança de cenário: depois de se ter
retirado do Templo, Jesus anda pelos arredores. João não indica o tempo
exato do acontecimento; só podemos dizer que se situa entre a festa das
Tendas (7,2) e a Dedicação do Templo (10,22). Os grandes temas do conflito
em Jerusalém, encetado no cap. 5, continuam presentes (Filho do Homem,
Filho de Deus, Messias). No cap. 9 encontram-se os mesmos símbolos da
festa das Tendas (água, 7,37; luz, 8,12). Por outro lado, o tema da messia-
nidade, levantado em 10,1-21, será desenvolvido no episódio seguinte, na
festa da Dedicação, 10,22-39. O ritmo dos diversos momentos temporais
parece marcar o gradativo crescimento da oposição contra Jesus durante sua
estada decisiva em Jerusalém.
Neste episódio podemos distinguir:
A. (I-VII) a história do cego propriamente (cap. 9):
I. o sinal como tal (Jesus, os discípulos, o cego) (9,1-7);
II. as diversas reações: os vizinhos (9,8-12);
III. 1a inquisição das autoridades (9,13-17);
IV. 2a inquisição das autoridades (9,18-23);
V. 3a inquisição das autoridades (9,24-34);
VI. o reencontro de Jesus com o cego e a profissão de fé (9,35-38);
VII. os cegos que não querem ver: as autoridades (9,39-41).
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196
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neguem os fatos (v. 19), buscam provocar uma renegação sob jura-
mento (v. 24), partem para a ignorância e insultam e expulsam aquele
que foi curado por Jesus (v. 34).
Nos versículos finais do cap. 9, João reúne o cego e “os judeus” com
Jesus, visualizando o efeito oposto do sinal e da palavra de Jesus, que, qual
espada de dois gumes, sanciona o “julgamento” que cada qual provoca por
sua atitude de fé ou de incredulidade.
O trecho 10,1-18 (a parábola do pastor) mostra inicialmente alguma afi-
nidade com os textos sinópticos (a ovelha perdida, Mt 18,12-13 = Lc 15,3-7)
e reparte com esses a atmosfera campestre que está ausente dos outros textos
de João. Respira-se o ar da tradição evangélica mais ampla. O próprio texto
fala, inclusive, de outras comunidades (10,16). Contudo, este trecho, tradi-
cionalmente chamado “a parábola do bom pastor”, não é uma parábola como
a maioria das parábolas sinópticas — cenas provocando repentina apreensão
(insight), p.ex., do Reino de Deus. Jo 10,1-5 é antes uma cena da vida que
depois é explicada alegoricamente, em diversos sentidos, que se completam
mutuamente.
I. O sinal (9,1-7)
Na situação de clandestinidade que marca o fim do episódio anterior, 9,1-3
Jesus circula fora do Templo. Encontra um homem cego desde o nascimento,
mendigando na porta do Templo (cf. v. 8; a tradição judaica relegava os
cegos e os coxos para a porta do Templo; não podiam entrar, e para justificar
isso citava-se até a palavra irônica de Davi sobre os cegos e coxos, 2Sm 5,8).
Jesus está acompanhado dos “discípulos”. Quais? Os Doze (cap. 6) ou os
discípulos pouco confiáveis de Jerusalém (cf. 7,3)? Não importa. Os discí-
pulos representam aqui o leitor, que deve aprender a lição.
Perguntam se a doença é por culpa do próprio cego ou dos pais. Pergunta
estúpida! Como poderia alguém ter culpa antes de nascer? Talvez por causa
do karma e da reencarnação, como ensinam o hinduísmo, o espiritismo etc.?
Ou pela explicação de alguns rabinos antigos que achavam que a criança
poderia pecar no útero. Ou talvez os discípulos tivessem um entendimento
errado do Sl 51,7 (“eu já era pecador quando minha mãe me concebeu”).
Quanto aos pais, existia a idéia de que os pecados se vingam nos filhos (cf.
Ex 20,5; mas esse texto apenas opõe o castigo limitado da infidelidade à
misericórdia infinita — mil gerações — do Deus da Aliança). Todavia, já os
profetas recusaram a ligação do sofrimento ao pecado dos pais (cf. Jr 31,29-
30 e Ez 18,1-4): não se dirá mais que os filhos têm dentes podres porque os
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pais comeram uvas verdes! Também Jesus rejeita totalmente esse tipo de
preconceito. Mais: recusa-se a atribuir doença e sofrimento ao pecado (como
faziam os “amigos” de Jó). A cegueira física do pobre mendigo não é con-
seqüência de pecado algum. É um acidente da natureza, que nada tem a ver
com pecado (cf. Lc 13,2). Não o porquê, mas o para quê da enfermidade
importa. Ela vai servir para mostrar Deus em ação: “as obras do Pai”, que
se manifestam na atuação de Jesus (v. 3). (Em 9,39.40-41, porém, a cegueira
vai ser interpretada — como a doença em 5,14 — num sentido simbólico,
aplicado a outro tipo de cego: os que vêem fisicamente, mas não querem ver
espiritualmente. O pecado não é a causa da doença física, mas a cegueira
pode simbolizar o pecado de “cegueira espiritual”.)
4-5 “É preciso (expressão do plano divino, >com. 4,3) que façamos as obras
daquele que me enviou”. O plural “façamos” inclui os discípulos, portanto,
os fiéis; quem fala é o “Jesus eclesial”. Por enquanto, é o seu “dia” (= a vida
pública). Logo virá a noite da traição e da morte, quando não mais poderá
realizar essa obra no mundo (cf. 12,35-36). “Enquanto estou no mundo sou
a luz do mundo” (cf. 8,12; 1,5.9; 12,46). É isso que ele vai mostrar.
6-7 Ele faz com saliva um pouco de lama e, com esta, unta os olhos do cego
(cf. Mc 8,23). Depois, manda-o lavar-se no reservatório de Siloé. O cego faz
o que Jesus mandou, e volta curado.
Essa breve evocação do sinal nem chega a ser uma descrição, mas está
cheia de referências simbólicas. Jesus manda o homem a Siloé, o reservatório
das águas salvíficas, de onde pouco antes tinha saído a procissão de luz e água
da festa das Tendas; >com. 7,2.37). Numa de suas notas características (v. 7b),
o autor traduz o nome do reservatório, que recebe por um túnel subterrâneo a
água “enviada” da fonte do Gion, salvadora em tempo de assédio e purifica-
dora em tempo de paz: “Siloé, que quer dizer Enviado” (cf. “enviar”, 9,4). A
cura da cegueira é um ato de Deus a ser realizado por aquele que “enviou”,
o Cristo-Ungido (enviar, ungir e abrir os olhos aos cegos são temas de Is 61,1
segundo a LXX; e cf. talvez a “profecia” do Shilô, Gn 49,10).
Ora, para o leitor iniciado, esta cena é uma evocação do batismo (e
crisma): o batismo no nome de Cristo e a vida cristã eram chamados, na
Igreja dos primeiros tempos, de fôtismós, “iluminação” (por Cristo; cf. Ef
5,8-14). Também o diálogo da profissão de fé nos vv. 35-36 aponta na
direção da liturgia batismal. Neste sentido, pode-se ver um simbolismo no
fato de que Jesus não apenas cospe no olho, como em Mc 8,23, mas faz
barro, como Deus na criação de Adão e Eva: o batismo é nova criação. E
com esse barro, o Cristo-Ungido “ungiu” os olhos do cego (vv. 6 e 11:
epékhrisen, da mesma raiz que khristós, “ungido”).
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ça: isso é uma característica do tempo messiânico (cf. Is 35,5; 42,7; cf. LXX
Is 61,1). Implicitamente, o cego dá a entender que Jesus é o Messias.
34 O resultado é que os líderes judaicos chamam o cego de nascença de
“pecador de nascença” (cf. Sl 51,5). Relacionam sua cegueira com o pecado,
exatamente aquilo que Jesus tinha negado (cf. 9,2-3). Ora, se não se pode
inferir da cegueira física o pecado anterior, o contrário é possível, no nível
simbólico, espiritual, como mostra a cena VII: o pecado se manifesta na
cegueira espiritual.
Os fariseus expulsam o homem da comunidade sinagogal (cf. 9,22).
Cego, curado, interrogado, testemunha, mestre... agora ele participa plena-
mente da sorte de Jesus (cf. 15,18); excluído, está onde está seu Mestre (cf.
12,26). De fato, logo mais ele o encontrará!
17. Alguns dos mais antigos manuscritos omitem esta resposta. A expressão “Senhor” é usada
com muita freqüência em João como apóstrofe normal, mas aqui, como resposta a uma pergunta
“confessional”, e, visto o gesto de adoração, parece representar o sentido que tem na LXX: repre-
sentação do nome sagrado de Deus.
202
9,1–10,21
“tirado” pelo Cordeiro (cf. 1,29). Pelo contrário, é confirmado (>com. 8,21.24).
Não é o cego quem nasceu no pecado (dos pais), como eles disseram (v. 34;
cf. v. 2); eles é que se tornaram cegos por causa de seu próprio pecado (cf.
Jr 31,29-30; Lc 13,3). E como não reconhecem seu pecado, permanecem no
pecado, que é serem cegos para a luz do Cristo. Os piores cegos são os que
não querem ver.
O cego vê e crê (>exc. 6,36; >com. 20,8-9). Seu ver é símbolo do crer:
vê a luz do mundo, que é o Cristo (cf. 9,5). Os fariseus vêem fisicamente,
mas não abrem sua inteligência para ver a luz que é Cristo (cf. Is 6,9; Jo
12,40). Por isso, não crêem.
Em que consiste a cegueira dos fariseus, a mancha de pecado que per-
manece? Essencialmente na auto-suficiência apegada ao sistema do qual eles
são os donos. Vale a pena compará-los com o colega deles, Nicodemos. A
este, Jesus sugeriu um novo nascimento (3,3), e o simbolismo de água e
Espírito (3,5) nos fez entender que se tratava de mudar de adesão, de aderir
à comunidade dos excluídos que — naquele tempo — era a comunidade
cristã. Seria uma revolução total em sua vida. Os fariseus do cap. 9 fazem
exatamente o contrário. Confrontados com alguém que renasce da água (Siloé)
e do espírito de unção que repousa sobre o Enviado, o Cristo recriador,
fecham os olhos: não querem saber daquilo que questiona seu sistema de
poder e de pretenso saber.
203
O LIVRO DOS SINAIS
b) explicação
1) Eu sou a porta — antes de mim vieram bandidos (vv. 7-8)
2) Eu sou a porta (dos pastores e das ovelhas) — quem passa por
mim encontra pastagem ➝ vida em abundância (vv. 9-10)
2 — O pastor exemplar (vv. 11-18)
a) Eu sou o pastor exemplar e empenho a vida pelas ovelhas; o as-
salariado foge e deixa o rebanho dispersar-se (vv. 11-13)
b) Eu sou o pastor exemplar e empenho a vida pelas ovelhas, e reúno
as ovelhas também de outros lugares (vv. 14-16)
c) O sentido profundo de empenhar (dar) a vida (vv. 17-18)
• 10,19-21, ao descrever a divisão entre os judeus, faz a inclusão
com o início do cap. 9.
10,1 Como não se menciona novo cenário, devemos imaginar que Jesus con-
tinua a falar aos fariseus, mas o tema da cegueira não é mais mencionado.
10,1-18 parece uma homilia já cunhada na pregação e inserida aqui para
realçar o contraste entre Jesus e os líderes judaicos, que aflorou no fim do
cap. 9. Jesus aprofunda a crítica aos fariseus mediante um “fato da vida”,
uma cena campestre. A proclamação solene com “amém, amém” mostra que
aí, nos vv. 1-2a, está o tema principal de 10,1-10: uma advertência contra os
líderes que não entram pela porta, e uma recomendação dos verdadeiros
pastores, os que entram pela porta (depois será dito quem é essa porta). Um
tema bem eclesial, portanto.
Na Palestina antiga, os rebanhos das diversas famílias passavam a noite
num curral ou pátio comum (cf. a reunião dos ovinos em Mt 25,31-46).
Adotamos a tradução “pátio” porque faz pensar em outros pátios: o Templo,
o pátio do sumo sacerdote (18,15). De manhã, cada pastor chama o seu
rebanho e o conduz para a pastagem. Ora, quando alguém entra no pátio das
ovelhas, não pelo portão, mas por outro lugar, provavelmente é ladrão. “E
bandido”, acrescenta João. Este termo (bandido, salteador, bandoleiro) é usado
pelo historiador contemporâneo do NT, Flávio Josefo, para designar os re-
volucionários, e também pelos evangelhos, para descrever Barrabás (Jo 18,40),
os que são crucificados com Jesus (Mt 27,38 par.) e até o próprio Jesus no
momento da prisão (Mt 26,55 par.; cf. ainda Mt 21,13 par.). No v. 8 veremos
a quem esse termo pode referir-se no presente contexto.
2-5 Quanto ao pastor das ovelhas, esse entra pelo portão. O porteiro lhe abre
o portão, as ovelhas reconhecem sua voz quando as chama pelo nome (pois
as ovelhas têm nome, como se fossem filhos; cf. 2Sm 12,3). Depois, o pastor
as conduz para fora e elas o seguem, com plena confiança, pois conhecem
204
9,1–10,21
sua voz. Mas a um estranho não seguem; pelo contrário, fogem dele, porque
não conhecem sua voz... O v. 5 volta assim ao assunto inicial, os maus
líderes (cf. v. 1), destacando sua inconfiabilidade. O detalhe das ovelhas que
fogem dos estranhos, por não reconhecerem sua voz, pode aludir ao fato de
o cego ter mais confiança em Jesus e sua comunidade do que nos fariseus.
Os ouvintes (= os fariseus, mencionados em 9,40, ou um público indefinido) 6
não entendem o que Jesus está querendo dizer. Agora Jesus vai explicar o que
estava visando ao descrever essa cena pastoril. Ora, a julgar pelo conteúdo, e
também em vista do caráter iniciático do Quarto Evangelho, a explicação parece
dirigir-se muito antes aos candidatos à fé do que aos chefes dos judeus.
A primeira explicação soa: “Eu sou a porta!”, ou melhor: “A porta sou 7-8
eu”. Numa autoproclamação figurativa (>exc. 6,35), Jesus se apresenta como
a passagem obrigatória (cf. 14,6). Há quem pretenda ir às ovelhas sem passar
pela porta que é Jesus: trata-se de falsos pastores, ou seja, “ladrões e ban-
didos” (cf. v. 1). As ovelhas não os escutam. Não é estranho Jesus identifi-
car-se com “a porta”: no judaísmo a porta já era imagem da congregação dos
fiéis, e é provavelmente como imagem pastoril que se deve entender a pa-
rábola sinóptica da porta estreita (Lc 13,24 par. Mt 6,6).
Se Jesus é a porta, quem são “os que vieram antes de mim”. os “ladrões
e bandidos” a que Jesus se refere? Certamente não os profetas ou João Ba-
tista! Talvez sejam os líderes catastróficos de épocas anteriores, especialmente
os reis hasmoneus e herodianos (leia-se a história dos últimos séculos do
judaísmo antigo conforme Flávio Josefo), e também os líderes sacerdotais e
farisaicos daqueles anos. Outra possibilidade é que se trate de líderes mais
próximos da redação do evangelho no fim do século I — os fanáticos da
recém-acabada Guerra Judaica (66-73 dC) ou os líderes do judaísmo restaura-
do. Mas estes atuaram depois de Jesus. Por que então a expressão “os que
vieram antes de mim”? Talvez porque queriam desviar o rebanho para
reconstituir a comunidade judaica com base nas instituições e tradições anti-
gas, que a presença e atuação de Jesus abolira. Queriam continuar no nível do
judaísmo sem Jesus, levar o rebanho para coisas do passado, sem vida, por-
tanto, para a morte. Ora, visto que João escreve não para os de fora, mas para
os de dentro, podemos entender isso também como advertência contra aqueles
que, mesmo dentro da comunidade cristã, pretendem orientá-la sem ter Jesus
como ponto de referência (cf. 2Jo 7-10; 1Jo 2,18-20). Sejam quais forem “os
que vieram antes de mim”, pastores que não passam por Jesus só causam ruína
e destruição no rebanho. Apresentando-se com um projeto que não passa por
Jesus, seguem sua própria ambição e levam o povo à ruína. O importante em
tudo isso é que os que uma vez se tornaram crentes compreendam a exclusi-
205
O LIVRO DOS SINAIS
vidade da salvação que eles encontram em Jesus. Por isso, a explicação termi-
nará, no v. 10, no ponto positivo: “para que tenham vida em abundância”.
9-10 O v. 9 retoma a exclamação “Eu sou a porta” (sem repetir o adjunto “das
ovelhas”; cf. v. 7). Os pastores que “entram e saem” por ela encontram
“pastagem”, para pastorear e alimentar suas ovelhas, proporcionando-lhes o
dom de Deus. A expressão “entrar e sair” tem um sentido amplo, chegando
a significar simplesmente “freqüentar, conviver”. No AT, o termo é usado
principalmente em relação a líderes (Josué, em Nm 27,16-17, com conotação
pastoril e guerreira; cf. o próprio Jesus, em At 1,21).
Excluindo os ladrões, que só entram para roubar e matar (v. 10a; cf. v.
1), Jesus diz que ele veio para que as ovelhas tenham vida, e a tenham em
abundância. Com esta idéia (v. 10b), Jesus passa da figura da “porta obriga-
tória” para a figura do “pastor exemplar” (v. 11).
11-13 “Eu sou o bom pastor”. Esta nova autoproclamação figurativa (cf. v. 7 e
>exc. 6,35) parece ser na realidade uma nova parábola: o pastor por excelência
empenha sua vida para defender as ovelhas, ao contrário do simples assalariado,
que foge quando se apresenta um animal de rapina. (Por influência da tradução
latina, nossas traduções falam no “bom pastor”, certamente em oposição aos
maus pastores mencionados em Ez 34 e outros textos bíblicos; mas o termo
original grego não significa “bom” ou “bondoso”, e sim, “belo, nobre, valente,
adequado, acertado, exemplar, excelente”; cf. o vinho “melhor” de Jo 2,10.)
Tendo falado, anteriormente (vv. 1-10), de outros — bandidos ou pastores
—, neste novo desenvolvimento do discurso (v. 11-18), Jesus se apresenta a si
mesmo como protótipo do pastor. Ele é o pastor exemplar, aquele que empenha
sua vida pelas ovelhas. Esta sua qualidade se contrapõe não tanto aos “assaltan-
tes” dos vv. 7-10, mas antes a pessoas que parecem pastores e não o são. Jesus
não é como os pastores contratados por salário, que não se importam com as
ovelhas, porque não lhes pertencem em propriedade. Um assalariado foge quan-
do aparece uma fera; ele deixa as ovelhas sem proteção diante daquele que as
rouba e “dispersa” (termo tomado de Zc 13,7 — a dispersão das ovelhas depois
da morte do pastor, imagem aplicada a Jesus e os seus em Mc 14,27 par. e
interpretada por João em relação à comunidade depois de Jesus). O pastor-
proprietário, pelo contrário, nada é sem as suas ovelhas.
O Pastor e o Messias
É impossível ler Jo 10,11 sem lembrar-se das profecias que apresentam o
Messias como pastor. A Bíblia nasceu num povo enraizado na vida pastoril.
Deus é pastor (Gn 49,24; Sl 23; 78,52-53; 95,7 etc.). Os patriarcas são
pastores. Moisés (Ex 3,1), Davi (1Sm 16), Amós (Am 1,1) são chamados
206
9,1–10,21
Recordando o ponto de partida (“Eu sou o bom pastor”, cf. v. 11), Jesus 14-15
introduz um novo tema: “Eu conheço minhas ovelhas e elas me conhecem,
assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu empenho minha vida
(lit.: dou/ponho minha alma) pelas ovelhas (do Pai!)”. Esperava-se, para o
tempo do Fim, o verdadeiro pastor de Israel, imaginado como novo Davi (Ez
34,23-34 menciona expressamente o novo Davi como pastor escatológico).
Ora, o primeiro Davi jogava sua vida contra urso e leão para cuidar do
rebanho, por amor a seu pai Jessé (1Sm 17,34-35). Entre Jesus e os seus
existe uma comunhão que deita suas raízes na comunhão de Jesus com o Pai.
Por causa dessa comunhão, ele põe sua vida em jogo por suas ovelhas
(vv. 17-18). Essa comunhão é uma comunhão de vida. Por isso, o melhor
comentário a essas palavras encontra-se na segunda parte do evangelho, em
outra grande “parábola” de Jesus: a da videira (Jo 15,1-17).
Jesus realiza a unidade escatológica do rebanho de que fala Ez 34 e 37. 16
“Tenho ainda outras ovelhas que não são deste pátio”. No nível da narrativa,
207
O LIVRO DOS SINAIS
Jesus está falando a pessoas que vêm do judaísmo (do “pátio” do Templo).
A digressão para “outras ovelhas” pode ser um aceno aos que, mais tarde,
surgirão em primeiro lugar dentre os samaritanos (>com. 4,35-36.39-42; a
reunificação escatológica anunciada por Ezequiel fala expressamente em reunir
Judá e Samaria: Ez 37,15-28), mas também dentre os pagãos greco-romanos,
os bárbaros etc. Talvez o evangelista tenha percebido na sua própria comu-
nidade alguma dificuldade a esse respeito; por isso, deixa Jesus falar assim
de antemão, “antes que aconteça” (cf. 14,29). A todos esses, Jesus os deve
conduzir e fazer deles “um só rebanho, com um só pastor” (cf. Ez 37,24,
texto messiânico). Atualizando para nós hoje: todos os que escutam a voz do
único verdadeiro pastor constituem o mesmo rebanho, pouco importa que
venham do catolicismo tradicional, dos crentes, do candomblé, do agnos-
ticismo..., desde que escutem a voz de Jesus Messias. O pastor-modelo não se
ocupa somente com os que vêm de perto, os de casa, o grupo estabelecido.
Não basta ocupar-se com os que moram em torno da igreja matriz…
17-18 Como conclusão final dos dois desenvolvimentos anteriores (vv. 11-13 e
v. 14-15), Jesus aprofunda o mistério do amor do pastor bom e fiel. A fonte
desse amor é o Pai (cf. v. 15). Este ama Jesus, e Jesus ama os que são do
Pai, a ponto de empenhar sua vida por eles. (O esquema Pai–Filho–os seus
encontra-se também em 6,32.51; 15,9-17; >exc. 15,12.)
Jesus dá a sua vida e por isso pode retomá-la. (A tradução “eu dou a minha
vida para que eu a receba de volta” é muito ruim! Dá a impressão de que Jesus
fez um bom negócio! “Para que” (hina), no grego de João, deve muitas vezes
ser traduzido por “de sorte que”.) Jesus pode retomar a vida de que ele dispõe,
pois ninguém a tira dele contra sua vontade. Ele empenha sua vida porque quer
(>com. 3,16), soberanamente (>exc. 6,11), assim como ele pode retomá-la
(pois ele tem poder sobre a vida: cf. 5,26). É o que acontece na ressurreição.
Esse é o mandato (lit. “mandamento”), o encargo que recebeu do Pai.
Tal amor nada tem de sentimental. Mas só poderemos desdobrar sua ori-
gem e suas dimensões quando chegarmos ao coração do mistério no qual o
Evangelho de João nos introduz, na hora da despedida de Jesus (cf. 15,1-17).
19-21 Os “judeus” começam novamente a discutir por causa das palavras de
Jesus. Muitos acham que ele está delirando (“tem um demônio”, cf. 7,20;
8,48). Outros, porém, lembram que ele abriu os olhos a um cego de nascen-
ça, coisa que faz parte do tempo messiânico (>com. 9,32-33) e que um
demônio certamente não faria.
Com essas palavras, João emoldura a unidade literária de 9,1–10,21 e
encerra os dias da festa das Tendas, em que Jesus se apresentou como água
208
9,1–10,21
209
O LIVRO DOS SINAIS
210
10,22-39
*
Celebra-se a festa da Dedicação do Templo — aliás, da “renovação” ou 22-23
reconsagração do Templo, profanado pelo rei pagão Antíoco e reconquistado
por Judas Macabeu, em 164 aC (ver 1Mc 4,52-59). É chamada também
“Tendas do inverno”, cf. 2Mc 1,9. É uma festa com grande carga naciona-
lista revolucionária. Protegendo-se contra o mau tempo do inverno, Jesus
anda ensinando na principal galeria do pátio do Templo, o “pórtico de
Salomão”.
“Até quando nos deixarás em suspense (lit.: tomarás nosso alento)”, 24-27
perguntam-lhe os judeus. Já que falou do Messias-pastor (10,11-18), que
diga abertamente se é o Messias! Que faça a revolução logo! Pois entre
os judeus (da Judéia) reinava muito a expectativa de um Messias guerreiro
211
O LIVRO DOS SINAIS
212
10,22-39
18. Dependendo de umas pequenas diferenças nos antigos manuscritos, o v.29 pode ser tra-
duzido, no mínimo, de duas maneiras: (1) “… meu Pai que me (as) deu é maior que tudo (ou:
todos)”; (2) “…meu Pai, o que ele me deu é maior (= mais importante) que tudo”. A segunda leitura
é mais provável, pois é mais difícil (em grego) e melhor atestada nos antigos manuscritos; além
disso, contém a antecipação do sujeito, típica de João.
213
O LIVRO DOS SINAIS
co, mas isso não interessa a João; só quer legitimar o uso do predicado
“deus” para Jesus, se for o caso (não aqui, mas em Jo 1,1.18!). Também
Moisés é chamado “deus” em Ex 7,1. Então, por que acusar de blasfêmia e
apedrejar aquele que Deus “consagrou e enviou ao mundo”, quando ele diz
ser “Filho de Deus”? A prática, não a discussão sobre palavras, mostra quem
Jesus é e em que sentido pode ser chamado “Deus” ou “Filho de Deus”. Mas
é preciso aprofundar o sentido dos termos usados por Jesus.
“Aquele que o Pai consagrou…” Como a consagração se faz pela unção,
esta expressão significa em primeiro lugar o “ungido”, o Messias ou Cristo.
Colateralmente, esta terminologia pode aludir à festa da Dedicação (= recon-
sagração) do Templo. Na primeira Páscoa, Jesus suplantou o Templo (2,13-
21); na segunda, ele substituiu a celebração em Jerusalém pelo dom do pão,
símbolo de sua própria pessoa, lá na Galiléia (6,4-13). Na festa das Tendas,
ele assumiu para si os símbolos da festa: água (7,37) e luz (8,12). Na mesma
linha, ele se põe agora no lugar do Templo consagrado (já não se precisa de
uma nova guerrilha de macabeus ou zelotes para salvar a referência central
do judaísmo).
“Aquele que o Pai consagrou e enviou ao mundo.” A construção lembra
Is 61,1: Jesus consagrado com o Espírito de Deus para trazer a verdadeira
libertação (>com. 9,7). Mas não é um office-boy. Na Antiguidade oriental
e no judaísmo, muitas vezes, o enviado era equivalente àquele que o en-
viava; o tratamento dado ao enviado valia como tratamento dado a quem
o enviou. Conhecemos isso ainda hoje no caso dos embaixadores: um
insulto a um embaixador é um insulto à nação que o enviou. Neste sentido,
Jesus e o Pai são um.
Não seria blasfêmia dizer que Jesus é “deus” (cf. Jo 1,1.18). Pois quando
dizemos que Jesus é Deus, não atribuímos a Jesus um predicado cujo con-
teúdo seria conhecido de antemão (ninguém viu Deus, Jo 1,18), mas damos
um rosto a Deus. Não dizemos que Jesus tem as atribuições de Deus, que
nem sequer conhecemos; dizemos que Deus é como Jesus e se dá a conhecer
no modo de agir de Jesus. Ora, seria blasfêmia dizer que Jesus se faz Deus,
como acusam os adversários (5,18; 10,33). Pois Jesus não se faz Deus, mas
é Filho obediente que recebe sua missão e a cumpre.
37-38 É neste sentido que Jesus e o Pai são um (cf. v. 30). Jesus faz as obras
do Pai. Ele é Deus agindo no meio de nós. Se não fosse assim, suas obras
não mostrariam a presença de Deus e os ouvintes não deveriam acreditar
nele. Ora, se não querem acreditar na sua afirmação de ser o Filho de Deus,
que acreditem nas suas obras, pois ele faz as obras de Deus! Então vão
“conhecer e saber” (João repete o mesmo verbo no tempo pontual e no
214
10,22-39
tempo da continuidade) que o Pai está realizando a sua obra em Jesus (cf.
14,11-12). Esta frase foi usada num sentido apologético: os milagres de
Jesus provariam sua divindade. Mas não é isso que João quer dizer. Tudo o
que Jesus faz é manifestação de Deus, no seu enviado; o enviado é “um”
com quem o envia. Não se trata apenas de citar os milagres de Jesus como
argumento para sua divindade — aliás, o Jesus de João não confiaria muito
em tal apologética (cf. 2,23-24!). Trata-se de ver Deus em Jesus (cf. 14,9).
A cena termina numa nova tentativa de apedrejar Jesus (cf. v. 31; 8,59), 39
castigo segundo a Lei para casos de idolatria, blasfêmia e assemelhados
(Dt 17,5-7). Ao mesmo tempo prepara o episódio seguinte, que se inicia com
um auto-exílio de Jesus.
Resumindo: Entre os dois temas das discussões de 10,22-39 (a messiani-
dade de Jesus e sua “igualdade” a Deus) existe uma relação de reciprocidade:
1) Jesus é Messias, não à maneira de um novo Davi, mas à maneira de
alguém que executa a vontade do Pai em perfeita unidade com este
(“vontade do Pai” é sinônimo de “reinado de Deus”, como mostra o
paralelismo no Pai-nosso, Mt 6,10). Se a teologia atual diz que Jesus
é a autobasiléia, ou seja, o reinado de Deus em pessoa, João, que
evita o termo “reinado de Deus” (cf. 3,3.5), pode dizer que Jesus é a
vontade do Pai em pessoa: “Eu e o Pai somos um”.
2) Jesus é um com o Pai, não no sentido de uma identidade de pessoa,
nem no sentido de uma igualdade de ordem, mas no sentido de repre-
sentá-lo de modo equivalente em relação a nós, por ser seu Enviado
e, deste modo, seu Consagrado (= Ungido, Cristo, Messias).
215
O LIVRO DOS SINAIS
216
10,40–11,54
17
III — Quando Jesus chegou, encontrou Lázaro já sepultado, havia quatro
dias. 18Betânia ficava a uns três quilômetros de Jerusalém. 19Muitos
dentre os judeus tinham ido consolar Marta e Maria pela morte do
irmão. 20Logo que Marta soube que Jesus tinha chegado, foi ao
encontro dele. Maria ficou sentada, em casa. 21Marta, então, disse
a Jesus: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria
morrido. 22Mesmo assim, eu sei que o que pedires a Deus, ele te
concederá”. 23Jesus respondeu: “Teu irmão ressuscitará”. 24Marta
disse: “Eu sei que ele ressuscitará, na ressurreição do último dia”.
25
Jesus disse então: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em
mim, ainda que tenha morrido, viverá. 26E todo aquele que vive e crê
em mim, não morrerá jamais. Crês nisto?” 27Ela respondeu: “Sim,
Senhor, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus,
aquele que deve vir ao mundo”.
28
IV — Tendo dito isso, ela foi chamar Maria, sua irmã, falando em voz
baixa: “O Mestre está aí e te chama”. 29Quando Maria ouviu isso,
levantou-se depressa e foi ao encontro de Jesus. 30Jesus ainda estava
fora do povoado, no mesmo lugar onde Marta o tinha encontrado.
31Os judeus que estavam com Maria na casa consolando-a, viram
que ela se levantou depressa e saiu; e foram atrás dela, pensando que
fosse ao túmulo para chorar. 32Maria foi para o lugar onde estava
Jesus. Quando o viu, caiu de joelhos diante dele e disse-lhe: “Se-
nhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não teria morrido”. 33Quan-
do Jesus a viu chorar, e os que estavam com ela, ficou interiormente
comovido e perturbou-se. 34Ele perguntou: “Onde o pusestes?” Res-
ponderam: “Vem ver, Senhor!” 35Jesus verteu lágrimas. 36Os judeus
então disseram: “Vede como ele o amava!” 37Alguns deles, porém,
diziam: “Este, que abriu os olhos ao cego, não podia também ter
feito com que Lázaro não morresse?”
38
V — De novo, Jesus ficou interiormente comovido. Chegou ao túmulo.
Era uma gruta fechada com uma pedra. 39Jesus disse: “Tirai a pe-
dra!” Marta, a irmã do morto, disse-lhe: “Senhor, já cheira mal. Ele
está morto há quatro dias”. 40Jesus respondeu: “Não te disse que, se
creres, verás a glória de Deus?” 41Tiraram então a pedra. E Jesus,
levantando os olhos para o alto, disse: “Pai, eu te dou graças por-
que me ouviste! 42Eu sei que sempre me ouves, mas digo isto por
causa da multidão em torno de mim, para que creia que tu me
enviaste”. 43Tendo dito isso, exclamou com voz forte: “Lázaro, vem
217
O LIVRO DOS SINAIS
para fora!” 44O morto saiu. Ele tinha as mãos e os pés amarrados
com faixas e um lenço em volta do rosto. Jesus, então, disse-lhes:
“Desamarrai-o e deixai-o ir!”
45
VI — Muitos judeus que tinham ido à casa de Maria e viram o que Jesus
fez, creram nele. 46Alguns, porém, foram contar aos fariseus o que
Jesus tinha feito. 47Os sumos sacerdotes e os fariseus, então, reuni-
ram o sinédrio e discutiam: “Que vamos fazer? Este homem realiza
muitos sinais. 48Se deixarmos que ele continue assim, todos vão
acreditar nele; os romanos virão e destruirão o nosso Lugar Santo
e a nossa nação”. 49Um deles, chamado Caifás, sumo sacerdote
naquele ano, disse: “Vós não entendeis nada! 50Não percebeis que
é melhor um só morrer pelo povo do que perecer a nação inteira?”
51
Caifás não falou isso por si mesmo. Sendo sumo sacerdote naquele
ano, profetizou que Jesus iria morrer pela nação; 52e não só pela
nação, mas também para reunir os filhos de Deus dispersos. 53A
partir deste dia, decidiram matar Jesus.
54
Por isso, Jesus não andava mais em público no meio dos judeus.
Ele foi para uma região perto do deserto, para uma cidade chamada
Efraim. Lá ele permaneceu com os seus discípulos.
218
10,40–11,54
o último “sinal” da vida pública de Jesus (11,3.6: onde está Jesus quando
recebe a notícia, onde demora mais dois dias etc.).
Na ressurreição de Lázaro distinguimos seis cenas, ligadas entre si por
múltiplas referências e constituindo certa simetria (os diálogos com Marta e
Maria constituem o centro):
219
O LIVRO DOS SINAIS
220
10,40–11,54
O v. 6 reassume o nexo com o v. 4: tendo dito que a doença servirá para 6-7
a manifestação da glória de Deus, Jesus demora-se ainda dois dias na região
além do Jordão. Como sempre em João, quem decide o momento de agir é
Jesus (cf. 2,4; 7,10; >exc. 6,11); depois dos dois dias, ele decide: “Vamos
atravessar novamente (ou: de volta) para a Judéia”.
Os discípulos lembram que há pouco os judeus queriam apedrejá-lo. 8-10
“Não são doze as horas do dia?”, responde Jesus. “Quem caminha durante
o dia não tropeça, pois vê a luz deste mundo.” Jesus é a luz do mundo (8,12;
9,5) e, enquanto é “dia”, enquanto é possível trabalhar, ele se empenha nas
obras do Pai (cf. 9,3). Quer completar as doze horas, levar o trabalho a
termo. A noite de sua “hora” (cf. 13,30) — quando levará a obra a termo
221
O LIVRO DOS SINAIS
(19,30) — ainda não chegou (cf. 7,30; 8,20), mas está próxima. Entretanto,
ainda que para Jesus essa hora seja gloriosa (13,31), “quem caminha de noite
tropeça, porque não tem a luz”. Sem Jesus, o caminho não é seguro.
11-15 Jesus acrescenta: “Nosso amigo Lázaro dorme, mas eu vou despertá-
lo”.“Se dorme”, opinam os discípulos, “não há problema, ele vai ficar bom.”
Eles não entenderam que Jesus falou do sono da morte (cf. Dn 12,2). Então,
Jesus declara abertamente: “Lázaro morreu, e eu me alegro por não ter
estado lá, pois assim podereis crer!” E acrescenta: “Mas vamos até ele”.
19. “Com ele” poderia também referir-se a Lázaro; neste caso, ser amigo de Jesus, como
Lázaro, significa ser despertado da morte, por Jesus, como sabem os iniciados cristãos; cf. Ef 5,14.
Tomé estaria expressando a solidariedade eclesial no mistério que se realiza em Lázaro, significan-
do o batismo.
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10,40–11,54
20. Em uns poucos manuscritos falta “e a vida”, mas isso não justifica que se excluam estas
palavras do texto como faz a Bíblia de Jerusalém.
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O LIVRO DOS SINAIS
21. “Quem vive e crê em mim” pode ter dois sentidos: (1) Quem durante sua vida (física) crê
em mim (= quem crê em mim enquanto vive biologicamente) não morrerá no nível da “eternidade”
(= no sentido “espiritual” de morrer = ser separado de Deus e de Jesus). (2) Quem vive (espiritu-
almente) e crê em mim (= porque crê em mim) não morrerá jamais (espiritualmente). O primeiro
sentido é mais paradoxal e é provavelmente o que João tem em vista (cf. também 5,24).
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10,40–11,54
ressurreição não é apenas uma volta à vida para receber recompensa ou cas-
tigo no dia do Juízo, mas a participação desde já na vida em união com Deus,
que Jesus inaugura e proporciona e que se torna realidade pela adesão à sua
pessoa e prática. Por isso, não devemos deixar-nos enganar pela expressão
“vida eterna”, imaginando a eternidade como um mero além, uma pós-vida
(muitas vezes pensada como continuação infinita da vida atual). “Vida eterna”
significa um salto qualitativo, participação em uma vida de outra qualidade,
e, para quem crê em Jesus (e age em conformidade com esse crer), essa
participação começa já. É a vida da nova criação, do éon eterno, do “século
dos séculos” — um superlativo semítico que significa a era por excelência,
que deve suplantar a atual era iníqua. É a vida do âmbito de Deus, vivida na
fé, desde já (>com. 6,39-40). É “o definitivo de Deus” em nossa vida.
225
O LIVRO DOS SINAIS
Mas alguns observam: “Este, que abriu os olhos ao cego, não podia tam-
bém ter feito com que Lázaro não morresse?” No nível da narrativa, os cora-
ções se dividem em torno da atuação de Jesus, como sempre (p.ex., 10,19-21).
Entretanto, no nível do leitor, a aproximação que João assim opera entre a cura
do cego (Jo 9) e o que acontece a Lázaro (Jo 11) tem um efeito muito suges-
tivo, como bem entendeu a liturgia cristã, que desde cedo usou estes dois
textos, juntamente com o da “água viva” (Jo 4), para a preparação do batismo.
(atualmente: 3o, 4o e 5o domingos da Quaresma do ano A)
226
10,40–11,54
que tu me enviaste”. Jesus sabe que Deus o atende, mas reza assim em voz
alta para que o povo saiba que ele age como enviado do Pai. Será isso
verdadeira oração, ou antes, teatro? As palavras “Eu sei que sempre me
ouves…” são na realidade um comentário do evangelista, formulado como
proclamação de revelação na boca de Jesus. Exprimem a peculiaridade da
oração de Jesus. Sua oração ocorre numa unidade tão íntima com o Pai que
não há distância entre o que ele pede e o que Deus concede. Aliás, nem é
um pedido, é uma ação de graças por esta união que se manifesta na obra
que lhe é dado realizar (cf. Mt 11,25-27 par.). Esta maneira de apresentar a
oração de Jesus faz o leitor se lembrar do v. 4: Jesus realiza sua obra para
a glória do Pai.
Então, Jesus grita com voz forte: “Lázaro, vem para fora!” O leitor se 43
lembra de 5,28-29: “Vem a hora em que todos os que estão nos túmulos
ouvirão sua voz”. Em João existe uma relação dialética entre a escatologia
“espiritual”, presente na fé em Jesus, e a escatologia “material”, a da ressur-
reição final, no último dia (>exc. v. 27). A escatologia final é o símbolo, a
escatologia presente é a realidade. Mas o símbolo (>Voc.) não pode ser
dispensado. Por isso mesmo, Jesus o faz acontecer antecipadamente, para
que saibamos que o que ele significa já está presente.
O grito de Jesus lembra ainda outros textos: 10,3: “As ovelhas escutam
sua voz, ele chama a cada uma pelo nome e as leva para fora”; 10,10: “Eu
vim para que tenham vida em abundância”; 10,27: “As ovelhas escutam
minha voz, eu as conheço e elas me seguem”. Esses textos ressoam na mente
do leitor como expressões da vida que Jesus proporciona àqueles que ele
ama e que o escutam, seus fiéis.
Ao grito de Jesus, Lázaro sai, sem demora, com os membros e o rosto 44
ainda envolvidos nas faixas mortuárias. Jesus ordena: “Livrai-o dessas faixas
e deixai-o ir”. Ressuscitado, vivendo por Cristo, Lázaro precisa enxergar,
caminhar, continuar o caminho da fé e do amor, ajudado pela comunidade.
Pensamos aqui também na ressurreição de Jesus; quando ele ressuscitar, não
haverá mais nenhum “laço da morte” envolvendo-o (cf. 20,6-7).
Outra observação retrospectiva. Se, em vez de contar esse “milagre” tão
material, João tivesse terminado a história de Lázaro no v. 27, com a bela
profissão de fé de Marta, teríamos menos problemas científicos … Não quer
Jesus ensinar que a ressurreição e a vida é ele (v. 25)? A narrativa da res-
surreição material de Lázaro não era necessária. Não ensina Jesus a descon-
fiar de sinais milagrosos (2,23-25; 4,48)? Mas ele não os dispensa! Não
deixa de alimentar materialmente a multidão para se revelar como pão da
vida. Não deixa de restituir a vida corporal a Lázaro para confirmar a visão
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O LIVRO DOS SINAIS
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10,40–11,54
bem (hyper) de sua gente. Ora, Jesus morreu de fato em prol (hyper) da
“nação”, porém, não só dela, mas “para reunir todos os filhos de Deus
dispersos”. Contra sua intenção, Caifás profetiza que Jesus é o Salvador
universal. Contraste significativo: enquanto no v. 47 os adversários “se re-
únem” em conselho para livrar-se de Jesus, em 11,52, este vai “reunir” os
filhos de Deus desde sua dispersão. Na expressão “reunir todos os filhos de
Deus dispersos”, João interpreta a visão do pastor escatológico, de Ez 34–
36, num sentido mais amplo que o messianismo judaico. As ovelhas disper-
sas não são apenas as de Israel (como em Mt 10,6!). O termo “dispersos”
evoca a diáspora, mas para João isso já não é um assunto meramente judaico
(também Tg 1,1; 1Pd 1,1 se dirigem aos cristãos como “diáspora”; >com. Jo
7,35). Os “filhos de Deus” são os que não nasceram da “carne”, os que
“crêem no seu nome”, i.é, em Jesus (Jo 1,12-13: não se é filho de Deus na
base de critérios da carne, p. ex., por pertencer a alguma nação; cf. ainda 1Jo
3,1.2.10). No comentário a 10,16 explicitamos quem são essas outras ove-
lhas que Jesus “reúne”.
Para não cairmos no globalismo pós-moderno, convém observar que
“reunir os filhos de Deus dispersos” não é o mesmo que arrebanhar a huma-
nidade. A universalidade da fé cristã é condicionada pela adesão a Cristo
e a seu Pai. At 10,35 anuncia que “em todos os povos os que fazem a
vontade de Deus serão salvos”. Ora, para João, a vontade do Pai é que se
creia naquele que ele enviou (6,29).
Naquele dia, as autoridades “decidem” (ou “planejam”) matar Jesus. 53-54
Nisso consiste o “progresso” realizado desde 8,59; 10,31.39, quando “que-
riam”, mas não “decidiram” (cf. ainda 5,18; e 7,30; 8,20: “sua hora ainda
não tinha chegado”). Aguardando a “hora” (cf. 12,23), Jesus se retira, com
os discípulos, para a cidadezinha chamada Efraim, numa região deserta ao
norte de Jerusalém (talvez Efraim = Ofra de Js 19,49-50, o que poderia ligar
Jesus a Josué). Assim, voltamos à situação de antes do episódio de Betânia
(10,40-42), mas a tensão dramática ficou muito mais forte.
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a cabeça de Jesus com óleo regou seus pés com suas lágrimas, os enxu-
gou com os cabelos e, depois, os perfumou. O fariseu que a censura é,
inesperadamente, chamado de Simão (Lc 7,40), como o dono da casa de
Betânia conforme Mc 14,3, Simão o Leproso. João não apresenta uma
pecadora, mas, ao identificar a an,ônima como Maria de Betânia, cria
confusão: deixa Maria ungir os pés de Jesus com perfume e enxugá-los
com os cabelos, passando o perfume para estes… Não devemos, pois,
condenar a religiosidade popular por ter confundido a Maria de Betânia,
de João, com a pecadora de Lucas.
4) As três Marias são as três Marias que seguiram Jesus e se tornaram a
constelação das Três Marias… Uma delas é mencionada em Lc 8,1-3,
Maria de Mágdala. Nos relatos da cruz conseguimos encontrar mais
duas: Maria, a mãe de Tiago (ao lado da Madalena: cf. Mt 27,56 = Mc
15,40) e Maria de Cleofas (Jo 19,25).
Conclusão: historicamente, Maria de Betânia não é Maria Madalena, nem
a pecadora, nem pertence às três Marias, mas não faz mal uni-las numa
única contemplação…
235
O LIVRO DOS SINAIS
(1) “Deixai-a, que ela o guarde para o dia de minha sepultura”; (2) “Deixai-
a; ela o guardou para o dia de minha sepultura”. E guardar significa “con-
servar” (o bálsamo; cf. 2,10, o vinho) ou “cumprir” (o embalsamento; cf.
“guardar a palavra/os mandamentos”, 8,51.52.55 etc.). João quer dizer que
Maria deve guardar o bálsamo para o sepultamento futuro? Ou que ela
guardou o bálsamo (ou cumpriu o embalsamento) como que antecipando o
rito de sepultura? A primeira hipótese parece improvável: nada dá a impressão
de que Maria deixou sobrar algo para uso ulterior; aliás, em João, não são as
mulheres que vão embalsamar Jesus, como nos sinópticos (Mc 16,1 par.),
mas José de Arimatéia (Jo 19,38-42). O segundo sentido (próximo do sentido
tradicional, Mc 14,8) é bem mais provável. De qualquer modo, a despesa é
legitimada pela sepultura de Jesus.
Jesus continua: “Os pobres, sempre os tendes convosco. A mim, no
entanto, nem sempre tereis”. Contrariamente ao que alguns entendem, Jesus
não rejeita a preocupação com os pobres; pelo contrário, ele lembra a palavra
de Dt 15,7.11, que ordena preocupar-se com os pobres sempre. Eles estão no
âmbito da comunidade (“convosco”), como estavam no âmbito do povo de
Israel (“teu pobre, na tua terra”, Dt 15,11). Jesus não diz, como alguns dentre
nós, que já se fez bastante para os pobres… Entretanto, mudando a ordem
dos elementos em relação à tradição sinóptica, ele põe o acento final no
momento único que se vai realizar em breve: sua morte e seu sepultamento.
236
11,55–12,36
manente do israelita por seus irmãos pobres). Se Jesus cita este texto, é
sinal de que ele não despreza a obrigação social, para priorizar o culto!
3) Mc 14,7c: “A mim nem sempre tereis”; é uma situação única.
4) Mc 14,8: Sem querer, essa mulher (que quis realizar uma unção messiâ-
nica), na realidade, “antecipou meu embalsamamento para a sepultura”.
5) Mc 14,9: Por isso, juntamente com o Evangelho será proclamado tam-
bém o gesto dela, “para que se conserve sua memória”.
Em comparação com Mc 14,6-8 par., Jo 12,7-8 adapta a resposta de Jesus,
de modo que o acento cai em “a mim nem sempre tereis”, ou seja, no
momento da ausência de Jesus que se aproxima. E a frase final de Mc
(14,9), que focaliza a mulher anônima, é omitida em João: assim, o acento
está exclusivamente na memória de Jesus.
Mc 14,6-9 Jo 12,7-8
deixai-a… ela fez uma boa obra… deixai-a que o guarda para…
(cf. abaixo) minha sepultura
os pobres sempre tendes… e sempre os pobres sempre tendes
podeis ajudá-los…
a mim nem sempre tereis a mim nem sempre tereis
ela antecipou meu embalsamento (cf. acima)
para a sepultura
onde for anunciada a Boa Nova... (omite)
para que se conserve sua memória
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O LIVRO DOS SINAIS
239
O LIVRO DOS SINAIS
(cf. 14,3). Nesse sentido, João cita primeiro a palavra de Jesus sobre “salvar
sua vida”, que lembra fortemente os textos sinópticos (Jo 12,25, cf. Mc 8,35
par. Mt 16,25 par. Lc 9,23; e cf. Mt 10,39 par. Lc 9,24; 17,33). Traduzido
literalmente, o texto de Jo 12,25 diz: “Quem ama sua alma perde-a, e quem
odeia sua alma neste mundo guarda-a para a vida eterna”. Acostumados a
ouvir que devemos “salvar nossa alma”, estranhamos aqui a palavra ordenando
“odiar nossa alma” neste mundo. É que “alma” significa a vida física e psi-
cológica, biológica e material. E “odiar” (>Voc.) é uma expressão bem semí-
tica para dizer o contrário de preferir (cf. Rm 9,13!). A frase significa, portan-
to: quem se apega à sua vida perde-a; mas quem não faz conta de sua vida
neste mundo, há de guardá-la para a vida [da era] eterna. De toda maneira,
façamos um exame de consciência para ver se nosso “salvar a alma” não tem
o sentido de “safar-se sozinho”... o que seria muito contrário a Jo 12,24-25!
A seguir, João cita a palavra de Jesus sobre o seguimento (cf. Mc 8,34
par. Mt 16,24), transformada porém pelo tema da “diaconia” (cf. Mc 10,45 par.
Mt 20,28). A transformação merece atenção. Nas palavras sinópticas, trata-
se de seguir Jesus, o Filho do Homem, que não veio para ser servido, e sim,
para servir e dar sua vida por muitos. Já em João trata-se de servir a Jesus:
“Se alguém quer me servir, siga-me, e onde eu estiver, estará também aquele
que me serve. Se alguém me serve, meu Pai o honrará”. Contradição? Não.
O Jesus joanino é o Jesus eclesial; ele entende “servir” (diakonein) segundo
o uso lingüístico da comunidade; sobretudo o termo diákonos em 12,26
(como em 2,5.9) aponta nesse sentido. Jesus não fala do serviço a ele como
indivíduo privado, mas do serviço eclesial na comunidade que ele reuniu.
(Também Marta em 12,2 exerce a diaconia.) O sentido de Jo 12,26 deve ser
situado no contexto da Igreja no fim do século I, quando o serviço do amor
fraterno já começa a esmorecer.
A diaconia eclesial
A diaconia eclesial tem, no NT, um sentido muito amplo, e não, em primeiro
lugar, litúrgico, como hoje. É em primeiro lugar a diaconia do apostolado,
da palavra, do anúncio (veja, p.ex., At 1,17; 6,4; Rm 11,13); pode significar
a diversidade dos serviços na Igreja (1Cor 12,5 etc.); especialmente, o ser-
viço caritativo (At 6,1) e também da mesa (At 6,2). Paulo considera diaconia
organizar a coleta pelos pobres da comunidade de Jerusalém (Rm 15,25.31
etc.), mas também seu empenho pela pregação do evangelho da Nova Alian-
ça e do Espírito (p. ex., 2Cor 3,7-9).
Nos evangelhos sinópticos, a terminologia da diaconia é bastante freqüente,
sobretudo em Lucas. Mc menciona, no início e no fim, a diaconia prestada
a Jesus (1,13.31; 15,41) e no meio a diaconia de Jesus e dos discípulos
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241
O LIVRO DOS SINAIS
242
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243
O LIVRO DOS SINAIS
Quem caminha nas trevas não sabe para onde vai (cf. 1Jo 2,11). Enquanto
tendes a luz, crede na luz, para que vos torneis filhos da luz”, i.é, pessoas
que “são da luz”, que andam na luz que a Palavra de Deus projeta sobre
nosso caminho, nossa prática de vida (cf. 1Jo 1,5-6; >Voc. Luz). E, com estas
palavras, Jesus se esconde (cf. 8,59)... A luz se foi.
I — 37Apesar
de ter feito, à vista deles, tantos sinais, não creram nele,
38
de modo que se cumpriu a palavra do profeta Isaías, que diz:
“Senhor, quem acreditou na nossa mensagem?
E o braço forte do Senhor, a quem se revelou?”
244
12,37-50
39
Eles não podiam crer, conforme diz outra vez Isaías:
40
“Cegou-lhes os olhos
e endureceu-lhes o coração,
Assim, não vêem com seus olhos,
nem compreendem com seu coração,
nem se convertem
para que eu os cure”.
41
Isaías disse isso porque viu a glória de Cristo e profetizou a seu
respeito.
42
No entanto, mesmo entre os chefes, muitos passaram a crer nele.
Mas não o confessavam, por causa dos fariseus, para não serem
expulsos da sinagoga. 43Preferiram a glória da parte dos homens à
glória de Deus.
II — 44Quanto a Jesus, ele exclamou: “Quem crê em mim, não é em mim
que crê, mas naquele que me enviou. 45Quem me vê, vê aquele que me
enviou. 46Eu vim ao mundo como luz, para que todo aquele que
crê em mim não permaneça nas trevas. 47Se alguém ouve as minhas
palavras e não as observa, não sou eu que o julgo, porque vim
não para julgar o mundo, mas para salvá-lo. 48Quem me rejeita e não
acolhe as minhas palavras já tem o seu juiz: a palavra que eu falei o
julgará no último dia. 49Porque eu não falei por conta própria, mas
o Pai que me enviou, ele é quem me ordenou o que devo dizer e falar.
50
E eu sei: o que ele ordena é vida eterna. Portanto, o que eu falo, eu
o falo de acordo com o que o Pai me mandou dizer”.
245
O LIVRO DOS SINAIS
II) A segunda parte (vv. 44-50) é uma longa citação que resume as pró-
prias palavras de Jesus. Prolongando o tema do v. 42 (cegueira), Jesus
proclama sua missão como luz do mundo e o significado decisivo de
sua palavra; os temas (vir, luz, palavra) remetem-nos ao Prólogo e
constituem com este uma inclusão da primeira parte do Evangelho de
João, o “Livro dos Sinais”. Nos vv. 44-50 encontramos, pois, diversas
referências a palavras anteriores de Jesus, sobretudo aos temas da luz,
da missão e do julgamento (cf. 3,17-21; 5,36; 8,12; 9,5 e semelhantes).
É característico de João citar palavras de Jesus ao lado dos argumentos
escriturísticos do AT (cf. 2,22; 18,9). Para João não só as antigas Escrituras,
mas a própria palavra de Jesus têm valor profético-autoritativo. Para a sina-
goga judaica, a referência vital era a Torá viva, a Escritura interpretada na
tradição oral (>Intr. § 2.2.1). Para João, Jesus mesmo é a Palavra viva. Jesus
é aquele que testemunha de si mesmo (8,18), além de receber o testemunho
da Escritura (5,46). Ele é “autocredenciado” (>com. 8,25). Se, antes do
Quarto Evangelho, a cristologia se baseava na Escritura antiga para provar
que Jesus tinha autoridade, João representa uma fase ulterior: o próprio Jesus
é autoridade, ao lado da Escritura, que encontra nele sua chave.
Jo 12,37-50 funciona, pois, como uma dobradiça entre o Livro dos Sinais
(1–12) e o Livro da Glória (13–20). Contém referências tanto à primeira
como à segunda parte do Evangelho de João.
Ora, essa incredulidade não deve causar espanto. Cabe no plano de Deus. O
profeta Isaías já sabia disso, quando no quarto cântico do Servo Sofredor
denunciou a incredulidade do povo (Is 53,1), ou quando, na hora da vocação
profética, teve de encarar a incompreensão do povo (Is 6,10). Segundo João,
com efeito, Isaías tinha Jesus diante dos olhos ao falar assim. Com nossa
cabeça moderna, perguntamos: “Será isso mesmo que Isaías quis dizer?” Os
antigos eram mais generosos na sua hermenêutica (interpretação das Escri-
turas) do que nós. Não se importavam muito com aquilo que Isaías original-
mente quis dizer, e sim com a validade da aplicação do texto. E, de fato, as
duas citações de Isaías são plenamente válidas.
Sobretudo a primeira citação (v. 38 = Is 53,1, na forma da LXX) merece 38
atenção, porque é própria de João (cf. ainda Rm 10,16), à diferença da
segunda, citada com freqüência no NT (cf. infra). É a frase inicial (depois
do proêmio 52,13-15) do quarto cântico do Servo, texto profético por exce-
lência para o anúncio cristão. Fala daquilo que ouvimos (a mensagem) e
vimos (o “braço forte”); cf. 1Jo 1,1-3. Podemos pensar que João não cita este
texto apenas por causa da alusão à incredulidade; e Paulo, não apenas por
causa da alusão ao “ouvir”. Para João e para Paulo, esse texto representava
o núcleo do anúncio cristão, o grande fato que Deus operou no seu filho
Jesus, glorificando-o apesar de sua rejeição pela humanidade. É exatamente
isso que se deve ouvir e contemplar na fé.
O segundo texto, Is 6,9-10, é tradicional na polêmica cristã contra a 39-41
incredulidade (Mc 4,12 = Mt 13,13 = Lc 8,10; Mc 8,17b-18 = Mt 13,14; At
28,26-27; cf. Rm 11,8 = Is 29,10). A novidade de João consiste em dizer que
Isaías estava contemplando Jesus na visão que ele teve quando essas pala-
vras lhe foram dirigidas (Is 6,1.5). Do seu ponto de vista, João pode dizer
isso porque Deus age em Jesus. Assim como, para o fiel, ver Jesus é ver o
Pai (14,9), para Isaías ver a glória do Pai é ver Jesus. (O texto de Is 6,1.5
diz que o profeta viu não apenas a glória, mas Deus mesmo; isso, porém, não
existe para João; cf. 1,18; 6,46; se o profeta diz que viu Deus, para João isso
se refere à visão da glória de Jesus!)
Para nós hoje, o difícil no texto de Is 6,9-10 é a idéia de que Deus
predestine certas pessoas à incredulidade. Na estrutura mental e lingüística
dos antigos semitas não há muita diferença entre “para que” e “de modo
que”, entre finalidade e conseqüência, fazer acontecer e permitir que acon-
teça. Quando João (como Dt 29,3-4) diz que Deus lhes cegou os olhos e
endureceu o coração (= mente), quer dizer que Deus permite isso respeitando
a liberdade humana. Deus fez seu plano de tal modo que isso possa acon-
tecer sem que o plano se desmanche; aliás, isso colabora para o plano de
247
O LIVRO DOS SINAIS
248
12,37-50
249
O LIVRO DA GLÓRIA
(13,1–20,31)
250
13,1–20,31
Sinópticos João
dois dias antes de Ázimos (4ª-f.?): seis dias antes da Páscoa (dom.?):
unção em Betânia (Mc 14,1.3 par. Mt) unção em Betânia (12,1)
5a feira: manhã e tarde = 14 nisan
1o dia de Ázimos (Mc 14,12 par.), imolação
do cordeiro e preparação da ceia
5a feira: noite = 15 nisan = Páscoa judaica 5a feira: noite = 14 nisan
ceia pascal de Jesus (Mc 14,17 par.), com a ceia (não pascal) de Jesus
instituição da Eucaristia
prisão; interrogatório perante o Sinédrio prisão e interrogatório perante Anás (e Caifás)
presidido por Caifás
6a feira: manhã: entrega a Pilatos (Mc 15,1 par.) 6a feira: manhã: perante Pilatos (18,28)
[só Lc 23,6: perante Herodes]
hora 3a: crucificação (Mc 15,24 par.)
hora 6a: trevas (Mc 15,33 par.) hora 6a: condenação à morte (19,14-16, hora
de imolar o cordeiro),
menção à preparação do sábado (cf. 18,28;
19.31.42)
hora 9a: morte (Mc 15,34 par.) morte (19,30)
entardecer: sepultamento (por causa da entardecer: sepultamento
preparação do sábado, Mc 15,42 par.)
6a feira: noite = 16 nisan 6a feira: noite = 15 nisan = Páscoa judaica
início do sábado (cf. Mc 15,42 par.) início do “sábado solene” = dia da Páscoa
(Jo 19,31)
sábado à noite/domingo = 17 nisan sábado à noite/domingo = 16 nisan
1o dia da semana — ressurreição 1o dia da semana — ressurreição
251
O LIVRO DA GLÓRIA
de Jesus com a festa judaica. A páscoa judaica “já era”. Não obstante, alguns
traços do relato joanino fazem pensar numa ceia pascal, p. ex., o bocado de
pão passado no molho (13,26), detalhe tão incrustado na tradição, que virou
indispensável para contar a história. João apresenta Jesus como o cordeiro
pascal imolado; daí sua apresentação que faz a morte de Jesus coincidir com
a matança dos cordeiros, antes da ceia pascal, na tarde do dia 14 de nisan.
Em suma, é difícil resolver a questão histórica, mas é certo que tanto a
cronologia sinóptica quanto a joanina sofreram influências da liturgia. Por razões
litúrgicas, a tradição de Mc pode ter identificado a ceia com a Páscoa judaica,
sugerindo o tema da Aliança etc.; e, por razões litúrgicas de outro tipo, João
pode ter dissociado a ceia de Jesus da Páscoa judaica (para marcar a diferença)
e associado a morte de Jesus, na tarde seguinte, ao sacrifício do cordeiro pascal.
E, se as igrejas de tradição sinóptica e paulina acentuam a Última Ceia como
paradigma da Eucaristia (Mc 14,18-25 par.; 1Cor 11,23-26), a comunidade joani-
na parece acentuar mais a multiplicação dos pães neste sentido (Jo 6,51-58).
252
13,1–17,26
Mt Mc Lc Jo
26,17-20 14,12-17 22,7-14 preparação da ceia
26,21-25 14,18-21 predição da traição cf. abaixo
(Mt/Mc) (e 13,2.11s.18s.)
26,21-25 14,22-25 22,15-20 refeição/eucaristia 13,2-3 (6,51-58)
22,21-23 predição da traição (Lc)
(20,28) (10-45) 22,34-40 serviço/lava-pés 13,4-20
cf. acima predição da traição (Jo) 13,21-30
despedida/mandamento 13,31-35
26,30-35 14,26-31 22,31-34 predição da negação de Pedro 13,36-38
253
O LIVRO DA GLÓRIA
254
13,1-30
255
O LIVRO DA GLÓRIA
I. Abertura (13,1)
13,1 Depois do grande parêntese 12,37-50, voltamos à narrativa. O evangelis-
ta retoma a linha do tempo: se, em 11,55, foi mencionada a proximidade da
Páscoa, agora estamos imediatamente antes da Páscoa. Conforme a maneira
judaica de contar os dias, a noite da quinta-feira já é o início da sexta-feira,
o “dia de preparação” (do sábado: cf. 19,14.31.42), portanto, 14 de nisan.
Conforme Jo 19,31, neste ano, o sábado coincide com a festa da Páscoa (15
de nisan), que começará na sexta-feira à noite. Portanto, a ceia de que fala
João 13,2 não é a ceia pascal dos judeus, que será celebrada um dia mais
tarde, depois da morte de Jesus (cf. 18,28). Os outros evangelhos contam que
Jesus celebrou com os discípulos a ceia pascal (ver Mc 14,12 par.). Para
João, não se trata da ceia pascal, mas da ceia de despedida de Jesus.
A frase de 13,1 é muito solene. É a abertura do conjunto 13–20, anun-
ciando a chegada da “hora” que vinha sendo preparada, passo a passo, na
parte anterior (2,4; 7,6; 7,30; 8,20; 9,3-5; 12,23), e que agora se realiza (cf.
17,1). Este início aponta, no horizonte, o fim da missão de Jesus, que é
manifestar o amor do Pai (“amou-os até o fim”, cf. sobretudo 19,28-30, com
o repetido uso do tema “fim”) aos “seus que estavam no mundo” (cf. 17,9.11).
É a hora de “passar deste mundo para o Pai” (cf. 13,3; 16,4-5.28; 17,4-5; e
também “subir para junto do Pai”, 20,17).
Jesus amou-os até o fim (13,1), assim soa a solene abertura da “hora”
de Jesus, seu “enaltecimento” na glória do Pai, mediante a manifestação de
seu amor até o fim, quando ele é elevado ao alto da cruz. A manifestação
de seu amor aos “seus”, que o Pai lhe deu (10,29; 17,9), chega ao ponto
256
13,1-30
culminante. A expressão “até o fim”, que pode significar “até o último mo-
mento” ou “até a plenitude”, prepara a exclamação de Jesus na cruz: “Está
consumado” (lit. “finalizado”; 19,30; cf. 19,28).
“Chegou a hora”
A primeira parte do Evangelho de João preparou a “hora” de Jesus, narran-
do diversas atividades e de modo especial os “sinais”, ou seja, os milagres
pelos quais Jesus se deu a conhecer como o Enviado de Deus, suas creden-
ciais. Os sinais são importantes, pois mostram “de onde” Jesus é, e que
“Deus está com ele” (>com. 2,9; 3,2). Colocam a gente diante da opção pró
ou contra Jesus (cf. 6,59-71). Mas são provisórios: ainda não são sua obra
principal. Em 2,4, Jesus avisou que “ainda não chegou sua hora”, para que
o início dos sinais (2,11) não fosse confundido com sua obra principal,
que será realizada apenas na “hora”, isto é, agora, a partir do cap. 13.
Podemos dizer assim: na primeira parte do evangelho, Jesus mostra, nos
sinais realizados perante o grande público, as suas credenciais proféticas.
Quando, porém, na segunda parte, “chega a hora”, ele não mostra mais as
credenciais, mas o próprio rosto de Deus, que é amor. Dá sua vida por amor.
Assim como Jesus age, amando até o fim, assim é Deus... Por isso, a “hora”
é o momento da glória, da manifestação de Deus, glória de Deus e de Jesus
mesmo (cf. 1,14), pois os dois atuam como “um só” (>com. 10,30). Em 7,30
e 8,20 foi dito que não prenderam Jesus porque sua “hora” ainda não tinha
chegado (cf. 7,45; 8,59; 10,31.39). Agora, sim, a hora chegou, a hora de
levar tudo “até o fim”, como Jesus confirmará no momento da morte: “Tudo
está ‘finalizado’” (19,30).
257
O LIVRO DA GLÓRIA
mãos e de que ele está no caminho de volta para o Pai, assim como ele saiu
de junto do Pai (v. 3, cf. 1,1.18; cf. 16,28; >exc. 17,26). O mensageiro de
Deus está a caminho para prestar contas de sua missão.
Com essa consciência intensa, Jesus se levanta da mesa. Ele “depõe” seu
manto e, com este, sua imagem de mestre, que ele reassumirá, com a devida
explicação, nos vv. 12-13. (Há quem relacione o verbo “depor” no v. 4 com
“depor a alma/vida” em 10,11.15.17, e cf. 13,37.30; 15,13.) Jesus “cinge”
uma toalha à cintura (cf. o sentido simbólico de “cingir-se” em 21,18; cf. o
dono da casa que se cinge para servir seus servos fiéis, em Lc 12,37!). Estes
simbolismos são importantes para compreender o sentido soteriológico/sal-
vífico visado pelo gesto de Jesus (cf. acima, introdução a 13,1-30). Numa
“transfiguração às avessas”, Jesus depõe a imagem de senhor e assume a
“forma de servo” (cf. Fl 2,7; Jo 13,16).
5 Jesus derrama água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos
(nos vv. 5-14 ocorre 8 vezes o verbo niptein, “lavar”, num total de 13 vezes
no NT; cf. ainda Jo 9,7.11.15). João não diz que os discípulos sejam os Doze,
mas 13,18-30 o supõe. (João supõe conhecida a tradição geral da ceia do
Senhor, ainda que a conte de maneira diferente.) O gesto de Jesus vem fora
de hora: deveria ter acontecido antes de ir à mesa. Isso ressalta seu valor
expressivo: é um gesto profético.
Lavar os pés dos hóspedes que chegavam de viagem pelas estradas
poeirentas fazia parte da hospitalidade. Quem prestava esse serviço podiam
ser, com uma conotação de carinho, os filhos ou a esposa, ou, como mani-
festação de dedicação, o próprio anfitrião (cf. Lc 7,44), mas normalmente era
confiado a algum escravo. O gesto tinha uma conotação de humilhação tão
forte que certos rabinos proibiam que escravos judeus fossem obrigados a
prestar esse serviço a seus patrões.
6-7 Consciente disso, Pedro reclama: “Senhor (!), tu me lavas os pés?” Um
paralelo interessante encontra-se no romance José e Asenat (20,1-5), muito
popular naquele tempo: José protesta quando a noiva Asenat lhe quer pres-
tar esse serviço, mas ela responde: “Teus pés são meus pés… nenhum
outro vai lavar teus pés”. Pedro viu no gesto a humilhação; Jesus, porém,
a dedicação da própria vida. Pedro exprime que o gesto de Jesus é incom-
preensível, pelo menos para quem ainda não conhece suficientemente o
mistério do Filho de Deus. Jesus responde que ele não é capaz de compre-
ender agora; mais tarde, porém, compreenderá (ainda não é a hora de
compreender, mas logo ela chegará, cf. 16,29; cf. também 13,36-38). A
incompreensão dos discípulos provém de que Jesus só pode ser compreen-
dido à luz do “enaltecimento” e do dom do Espírito (cf. 2,22; 7,39; 12,6).
258
13,1-30
259
O LIVRO DA GLÓRIA
260
13,1-30
Todavia, Jesus não felicita aquele que vai entregá-lo. Anuncia o escân- 18-19
dalo (= pedra de tropeço) que é a traição (v. 18-19). Ora, este escândalo não
abala Jesus, que conhece aqueles que escolheu. A eleição não lhes tira a
liberdade de se opor a ele; o mesmo já disse Deus a respeito do povo eleito
(Dt 9,6…). O “escândalo” de Judas — primeiro passo do “escândalo da
cruz” (>com. 6,62) — não contradiz a lógica de Deus. Está na Escritura:
“Aquele que come do meu pão (= aquele que recebe meu benefício ou
sustento) levantou contra mim o calcanhar” (Sl 41,9; cf. Mc 14,18 par.; os
rabinos lembram aqui Davi e Aquitofel, 2Sm 15,12). Ainda hoje há os que
“comem o pão” da mesa do Senhor, traindo-o nos seus irmãos. Mas a lógica
do serviço é mais forte.
Jesus diz isso “desde agora”, para que eles, “quando acontecer (a hora 19-20
da traição)”, possam continuar acreditando firmemente que “eu [o] sou”.
Como interpretar esta observação? Há quem interprete que a realização da
predição da traição provará o conhecimento e ser divino de Jesus (“Eu sou”).
261
O LIVRO DA GLÓRIA
Isso é pouco. Jesus anuncia sua vitória na hora da traição. Aponta para a hora
de seu “enaltecimento”, manifestação de sua missão de Filho do Homem e
da presença, nele, de Deus mesmo (“eu o sou”, no sentido de 8,28 etc.).
Logo mais, quando Judas acionar o mecanismo da traição, Jesus proclamará
a glorificação do Filho do Homem (13,31).
O sentido é todavia mais amplo ainda. “Quando acontecer” não evoca
apenas a hora da cruz de Jesus, mas também a hora da aflição dos fiéis no
mundo, depois de Jesus (cf. 16,4), até hoje. Por isso, pensando no futuro
cheio de conflitos anunciado por Jesus, João recorda a palavra sobre a so-
lidariedade entre o Mestre e os discípulos que ele vai enviar. Com o solene
duplo “amém”, Jesus proclama: “Quem recebe aquele que eu envio, a mim
recebe; e quem me recebe recebe aquele que me enviou” (v. 20; cf. Mt
10,40; Lc 10,16). No contexto da Paixão de Jesus, João cita diversas vezes
palavras semelhantes ao Discurso Missionário de Mt 10 (12,26, cf. Mt 10,39;
12,25, cf. Mt 10,38; 12,44, cf. Mt 10,40; 13,16, cf. Mt 10,24-25; 13,20, cf.
Mt 10,40; 15,18–16, cf. Mt 10,17-25). Sem discutir se João usou Mt, pode-
mos dizer que ele inseriu o mesmo tema na parte do texto que mais subli-
nhava a união com Jesus no sofrimento. O caráter artificial dessas inserções
aparece claramente em 13,16.20, que não têm ligação direta com os temas
que precedem e seguem. Mas isso não lhes tira o valor: servem para atua-
lizar, no contexto da missão da Igreja, o que acontece a Jesus.
262
13,1-30
O Discípulo Amado
Cinco passagens do Quarto Evangelho mencionam o “Discípulo Amado”,
sempre com o verbo agapân, menos em 20,2, onde é usado filein (sobre o
uso desses verbos, >com. 15,12):
• 13,23: “o d. que Jesus amava” — recostado a seu lado;
• 19,26: “o d. que ele amava” estando ao pé da cruz;
• 20,2: “o outro d., o qual Jesus amava”, indo para o túmulo;
• 21,7: “aquele d. que Jesus amava” reconhece Jesus ressuscitado;
• 21,20: Pedro vê atrás de si “o d. que Jesus amava”.
Esta lista deve ser completada pelos casos seguintes:
• Jo 21,24 confirma que esse discípulo é a testemunha do evangelho;
• em 18,15-16 é mencionado um “outro discípulo”, conhecido do sumo
sacerdote; este tem boas chances de ser o mesmo “Discípulo Amado”;
• em 19,35 é mencionado “aquele que viu” como testemunha por excelên-
cia: será o “Discípulo Amado” ao pé da cruz, cf. 19,26?
Menos claro é o texto de Jo 1,37-42. Aí, dos dois discípulos que seguem
Jesus, só um é depois identificado (André); geralmente procura-se identifi-
car o outro, anônimo, com o Discípulo Amado, mas não há argumentos para
tanto. É preferível ver nele Filipe (>com. 1,35.43). Todos os outros lugares
onde aparece o Discípulo Amado se encontram na segunda parte de João e
o apresentam como aquele que conhece o mistério de Jesus. Ele é a teste-
munha por excelência. Por isso, embora reconhecendo a primazia de Pedro,
não precisa receber deste a sua autoridade. Ele pode ser considerado como
o apóstolo por trás do Evangelho de João.
Houve muitas tentativas de identificar o misterioso discípulo. A identifica-
ção com Lázaro é improvável. Não basta dizer que Jesus “amava” Lázaro,
pois o mesmo é dito a respeito de suas irmãs. Além disso, por que ficaria
envolto em mistério, a partir do cap. 13, alguém que foi nominalmente
apresentado no cap. 11? Tentou-se, também, identificar o discípulo com
João Marcos, que era habitante de Jerusalém e ao qual se atribui o Evan-
gelho de Marcos, mas não há indicações da tradição antiga neste sentido.
A tradição identifica o Discípulo Amado com o apóstolo João, filho de
Zebedeu, amplamente mencionado como personagem importante nos outros
evangelhos e nos Atos, mas curiosamente passado sob silêncio no Quarto
Evangelho. Todavia, além de complexa, essa questão é pouco importante
(>Intr. § 2.3.2 e >com. cap. 21).
A opinião mais razoável é reconhecer no Discípulo Amado a testemunha
por excelência. Ele sabe que Jesus não se abalou com a traição de Judas
(13,25-26), ele é a testemunha da cruz (19,35), ele pode com plena autori-
dade anunciar e interpretar a mensagem a respeito de Jesus (neste sentido
ele é também o símbolo de todo iniciado perfeito).
263
O LIVRO DA GLÓRIA
264
13,31–14,31
O “ADEUS” (13,31–14,31)
I — 31Depois que Judas saiu, Jesus disse: “Agora foi glorificado o Filho
do Homem, e Deus foi glorificado nele. 32Se Deus foi glorificado
nele, Deus também o glorificará em si mesmo, e o glorificará logo.
33
Filhinhos, por pouco tempo eu ainda estou convosco. Vós me
procurareis, e agora vos digo, como disse também aos judeus: ‘Para
onde eu vou, vós não podeis ir’. 34Eu vos dou um novo mandamento:
amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós
deveis amar-vos uns aos outros. 35Nisto todos conhecerão que sois
os meus discípulos: se vos amardes uns aos outros”.
36
Simão Pedro perguntou: “Senhor, para onde vais?” Jesus respon-
deu-lhe: “Para onde eu vou, não podes seguir-me agora; mais tarde
me seguirás”. 37Pedro disse: “Senhor, por que não posso seguir-te
agora? Eu darei minha vida por ti!” 38Jesus respondeu: “Darás tua
vida por mim? Amém, amém, eu te digo: não cantará um galo antes
que me tenhas negado três vezes.
II — 14 1 “Não se perturbe o vosso coração! Credes em Deus, crede
também em mim. 2Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se não
fosse assim, eu vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós. 3E
depois que eu tiver ido e preparado um lugar para vós, voltarei e vos
265
O LIVRO DA GLÓRIA
levarei para junto de mim, a fim de que, onde eu estiver, estejais vós
também. 4E para onde eu vou, conheceis o caminho”.
5
Tomé disse: “Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos
conhecer o caminho?” 6Jesus respondeu: “Eu sou o caminho, a
verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim. 7Se me
conhecestes, conhecereis também o meu Pai. Desde já o conheceis
e vistes”.
8Filipe disse: “Senhor, mostra-nos o Pai, isso nos basta”. 9Jesus
266
13,31–14,31
ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito. 27Deixo-
vos a paz, dou-vos a minha paz. Não é à maneira do mundo que eu
a dou. Não se perturbe, nem se atemorize o vosso coração. 28Ouvistes
o que eu vos disse: ‘Eu vou, mas voltarei a vós’. Se me amásseis,
ficaríeis alegres porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu.
29
“Disse-vos isso agora, antes que aconteça, para que, quando acon-
tecer, creiais. 30Já não falarei mais convosco, pois vem o chefe deste
mundo. Ele não pode nada contra mim. 31Mas é preciso que o mundo
saiba que eu amo o Pai e faço como o Pai mandou. Levantai-vos!
Vamos embora daqui!”
267
O LIVRO DA GLÓRIA
*
A saída de Judas (13,31) introduz um novo momento temporal e modi-
fica profundamente o cenário. Inicia-se um diálogo articulado por interven-
ções dos discípulos: Simão Pedro (13,36); Tomé (14,5), Filipe, (14,8), Judas
“não o Iscariote” (14,22). Assim fica claro que Jesus fala para “os seus”, os
iniciados, que recebem agora a última instrução. Que este diálogo é separado
do gesto simbólico (o lava-pés) pela saída de Judas Iscariote é significativo:
Judas optou pela traição, não pela participação no mistério de Jesus. Os
primeiros versículos, 13,31-32, oferecem a chave de leitura: a glorificação já
é efetiva. Jesus fala agora, abertamente, à luz da glorificação. Este é o
mistério que só os fiéis, embora fracos (13,38!), podem receber.
Não convém introduzir uma separação entre 13,31-38 e 14,1-31, como muitos
comentários fazem. O tema da partida e do caminho de Jesus (13,33.36-38) serve
de base para o início do cap. 14. Além disso, 13,31-33 e 14,30-31 emolduram
muito bem o conjunto. Por outro lado, notam-se algumas costuras no atual texto,
que parece ter sido completado na redação final (p. ex., a inserção de 13,34-35).
Difícil de subdividir, o discurso é polarizado pelo tema da fragilidade
dos discípulos, por um lado, e do “adeus” e da ausência do Senhor, por
outro. Para o diálogo inicial, João parece ter combinado a idéia da partida
de Jesus (13,33) com o conhecido tema da tradição da última ceia, a predição
da negação de Pedro (13,36-38, cf. Mc 14,26-31 e Jo 16,32). Depois começa
o quase-monólogo de Jesus, desenvolvido a partir de temas do Êxodo que
fazem parte da atmosfera pascal. Jesus prepara um lugar para os seus (cf. Dt
1,33), exorta-os a não ter medo (Dt 1,29 etc.). A Terra Prometida seria a
prefiguração dos bens escatológicos que, com a partida de Jesus, se tornam
próximos, a ponto de estarem presentes! A atmosfera do Êxodo se faz sentir
268
13,31–14,31
22. As primeiras palavras do v. 32, que reassumem o fim do v. anterior (“se Deus foi glori-
ficado nele”), faltam nos melhores manuscritos. Com ou sem elas, o sentido é o mesmo.
269
O LIVRO DA GLÓRIA
“Por pouco tempo (cf. o “logo” do v. 32) eu ainda estou convosco. Vós
me procurareis, e agora vos digo, como eu disse também aos judeus: ‘Para
onde eu vou, vós não podeis ir’”. Jesus disse aos “judeus” (a comunidade
adversária) que não podem chegar aonde ele vai (7,33-34; cf. também 8,21).
Agora ele diz a mesma coisa à sua comunidade. É uma provocação retórica,
pois veremos que, logo mais, ele vai dizer-lhes aonde vai e aonde eles o
poderão seguir (14,1-6), mas não agora... (os vv. 36-38 aprofundam esse
detalhe; cf. infra). Mais tarde os fiéis estarão onde está Jesus (14,3), à dife-
rença dos incrédulos, que nunca chegarão aí (8,21).
34-35 Entretanto, Jesus lhes deixa, para o tempo que deverão passar sem sua
presença física, uma “orientação” — pois é este o sentido do hebraico torá,
geralmente traduzido como “mandamento”: “Eu vos dou um novo manda-
mento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós
deveis amar-vos uns aos outros”. Este tema é aprofundado em 15,9-17 (veja
ali). Aqui basta observar o termo “novo”. O mandamento do amor não
é novo, pois é antigo (Lv 19,18.35), contudo novo em Cristo e em nós
(1Jo 2,7-8): “novo” significa aqui o contexto novo, escatológico, do manda-
mento, agora que Jesus mostra “até o fim” o que é amar (Jo 13,1) e nos
convida a seguir seu exemplo, na presença da salvação que nele tem seu
fundamento.
36-38 O tema do v. 33 continua no v. 36. Pedro fica intrigado. Quer saber
aonde Jesus irá, que ele não possa segui-lo. Como no lava-pés, Jesus respon-
de: “mais tarde” (cf. 13,7). E como no lava-pés, Pedro se faz de valente. Ele
porá em jogo sua vida (lit. “pôr/dar a alma”, cf. 10,11.15.18) por Jesus!
“Darás tua vida por mim?”, responde Jesus. “Amém, amém, eu te digo: não
cantará um galo antes que me tenhas negado três vezes”.
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13,31–14,31
271
O LIVRO DA GLÓRIA
podia enfrentar com fé a entrada na Terra Prometida, apesar das lutas que o
esperavam (Dt 7,17-21; Js 1,6-9). Essas exortações de Moisés não visavam
tanto ao caminho geográfico, mas à prática da palavra de Deus. Tendo acom-
panhado Jesus, conhecemos sua prática: essa é que nos leva ao Pai, tanto por
aquilo que ele faz como por nossa participação e seguimento. Aos Onze, o ca-
minho já percorrido com Jesus mostrava o caminho a percorrer; a nós o
mostra a memória de Jesus, transmitida pelas testemunhas (em primeiro
lugar, o evangelista).
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13,31–14,31
ainda pode ser chamado “o caminho”. Então Jo 14,6 deve ser lido numa
dimensão comunitária: Jesus é o caminho da verdade e da vida, não tanto
por causa de uma adesão mística individual a ele, mas antes por causa da
fidelidade a ele em sua comunidade — finalidade principal da mensagem do
Quarto Evangelho.
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O LIVRO DA GLÓRIA
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13,31–14,31
“Não vos deixarei órfãos”: o vocabulário combina bem com o termo 18-20
“filhinhos” de 13,33 (relação discípulo-mestre: Eliseu chamava Elias de “pai”
na hora do arrebatamento, 2Rs 2,12)! “Eu venho (ou virei) a vós”. Em 14,3
estava “venho/virei novamente e vos levarei comigo”; será que aqui se repete
a mesma idéia ou se exprime um sentido novo? E a frase “Ainda um pouco
de tempo e o mundo não mais me verá; mas vós me vereis, porque eu vivo,
e vós vivereis” se refere ao reencontro na parusia? O pouco tempo em que
o mundo não mais verá Jesus, pelo contexto do “adeus”, deve ser o momento
da morte, do afastamento de Jesus deste mundo. Onde e quando é que os
seus o verão? “Eu vivo e vós vivereis.” Jesus é ressuscitado, entra na vida
gloriosa de Deus, e quem acredita nele participa da mesma vida. A vida da
ressurreição é vida na presença de Jesus, mesmo na ausência. Mas quando?
Quem nele crê já passou da morte para a vida (cf. 5,24). Quando diz que nos
levará consigo, Jesus está falando da vida no além (no “céu”), no aconteci-
mento da morte individual, na parusia…? “Naquele dia sabereis que eu estou
no meu Pai, e vós em mim, e eu em vós”: este é o lugar que Jesus nos
prepara (cf. 14,3). Para conhecê-lo, não precisamos esperar o fim dos tem-
pos. Estamos com Jesus desde a sua ressurreição — quer dizer, desde já, se
temos fé nele. João reinterpreta o tradicional termo escatológico “naquele
dia” (cf. Mc 13,32) no sentido da escatologia presente, a vida da comunidade
já repleta de alegria pela presença, na fé e no amor, de Jesus e do Pai (cf.
ainda Jo 16,23.26). Para quem vive na fé, “aquele dia” é hoje! (>exc. 16,23a).
Para os Onze, antes do enaltecimento, Jesus fala no tempo futuro, mas para
os leitores, o que ele anuncia se dá no tempo presente.
Isso, se tivermos fé… e amor. “Aquele que acolhe os meus mandamentos 21
e os guarda é que me ama, e o que me ama será amado por meu Pai, e eu
também hei de amá-lo e me mostrarei a ele.” O reencontro com o Cristo
glorioso acontece em virtude da prática do amor fraterno que ele nos ensina.
Judas — Tadeu, “não o Iscariote” — pergunta como é possível que os 22-24
discípulos hão de ver Jesus, mas o mundo não. Ele responde que a diferença
entre os fiéis e o “mundo” (no sentido de quem rejeita a oferta de Jesus) está
no fato de “guardar” (>Voc.) ou não a palavra de Jesus. Subentenda-se: fiel
mesmo é só quem guarda a palavra. A respeito deste, Jesus declara: “Se
279
O LIVRO DA GLÓRIA
alguém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai o amará, e nós viremos
e faremos nele a nossa morada”. Manifesta-se aqui um sentido novo da
morada que Jesus ia preparar: em 14,3, parecia ir preparar para os fiéis
uma morada no céu, agora fica claro que a inabitação de Jesus e do Pai no
meio de nós começa aqui e agora, na medida em que observamos o manda-
mento de Jesus — mandamento do amor fraterno. A “morada” está em nós
mesmos/entre nós, se estamos unidos a Jesus e ao Pai na fidelidade e na
prática do mandamento. É o cumprimento das profecias que anunciam a
morada de Deus no meio de seu povo (cf. Zc 2,14[10]) — porém, num
sentido novo (cf. 2,21; 4,21-24).
Mas isso não vale para todos. Quem não adere a Jesus não observa a sua
palavra, que vem do Pai e o manifesta. Quem não a acolhe não é capaz de
conhecer a manifestação de Jesus e do Pai, que querem morar no interior
daqueles que guardam (= põem em prática) a palavra, o mandamento.
25-26 Se tal é o sentido daquilo que Jesus disse antes de deixar o mundo, os
discípulos só poderão entendê-lo depois de seu enaltecimento na cruz e na
glória, graças ao Espírito de Deus: “O Paráclito (= Defensor), o Espírito
Santo (= de Deus), que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo
e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito”. Jesus enuncia aqui o sentido
novo do Espírito Santo conforme a experiência da comunidade joanina (>com.
14,15-17).
27 Então ressoa uma palavra com gosto de plenitude: shalom, “paz” (>Voc.).
Não é uma mera saudação final. Com muita insistência, Jesus proclama:
“Deixo-vos a paz. Dou-vos a minha paz”. A despedida de Jesus abre o sinal
para caminhar rumo à terra da promessa. Jesus entrega aos seus o que os
antigos israelitas esperavam encontrar na Terra Prometida: a paz. É o que se
esperava do Messias (p. ex., na interpretação messiânica do Emanuel, Is
9,6.7; também: Lc 2,14; 19,38). Mas a paz que os fiéis encontram na “terra
prometida” da mútua imanência deles com Jesus e com o Pai, no Espírito
Santo (>exc. 15,4), é incomparavelmente superior. É superior ao que corri-
queiramente se imaginava como paz messiânica, pensada em termos de bem-
estar para Israel. É superior, sobretudo, à paz que “o mundo” está oferecen-
do, o mundo do Império Romano, “pacificador” que sufoca os povos para
mantê-los submissos à “paz romana”. Jesus dá a paz “não à maneira do
mundo” (v. 27).
28-29 “Ouvistes o que eu vos disse: ‘Eu vou, e voltarei a vós’ (vv. 2-3). Se me
amásseis (no sentido mais verdadeiro), ficaríeis alegres porque vou para o
Pai, pois o Pai é maior do que eu” (maior = superior, mais importante).
A frase poderia ser dirigida aos fiéis que, anos depois da morte de Jesus,
280
13,31–14,31
lamentam sua ausência e a esta atribuem os conflitos pelos quais estão pas-
sando. Ora, já no v. 12 Jesus havia anunciado que, na sua ausência, quem
nele acreditasse faria “obras maiores” que ele. Agora aparece o sentido mais
profundo dessa avaliação positiva do tempo da ausência: pela volta de Jesus
ao Pai (seu “enaltecimento”), os fiéis têm acesso a quem é maior do que ele!
Isto não apenas expressa a condição “submissa” de Jesus a Deus, como Filho
e Enviado. Expressa também o que Deus significa para nós. É uma dessas
frases em que o Quarto Evangelho se mostra verdadeiramente “teo-lógico”
(>Intr. § 3.3.5). O centro do Quarto Evangelho não é Jesus. É Deus! Jesus
é o mediador. Quando ele consuma sua obra, seu discípulo se encontra mais
próximo de Deus mesmo. No aprofundamento do “segundo discurso” isso
ficará mais claro (cf. 16,27). Ora, esse sentido positivo da ausência de Jesus
seria inconcebível se Jesus não o tivesse de alguma maneira anunciado.
“Disse-vos isso agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, creiais.”
Quando acontecer o quê? Sua ausência? Sim, mas essa ausência tem causa:
acontece por causa da morte que lhe é infligida, seu fim, que aos olhos do
mundo e dos próprios discípulos parecerá um escândalo (cf. 6,62). Então é
que deverão crer. Mas a ausência de Jesus e a aflição diante dos interesses
do mundo acompanham a comunidade através dos tempos: o paradoxo da fé
continua. Basta-nos a sua palavra: “Eu vo-lo disse”.
Se 14,30-31 constitui, como pensam os estudiosos, o final original do 30-31
“adeus”, o evangelista concebeu, originalmente, estas frases como as últimas
palavras de Jesus neste mundo. O dominador deste mundo está chegando (cf.
Mc 14,41-42; Lc 22,53; para João, quem age em Judas é Satanás). Assim
como a entrada de Israel na Terra Prometida, a caminhada da comunidade de
Jesus exige que se enfrentem obstáculos e opressão. O dominador deste
mundo está aí, as forças que querem destruir a comunhão e fraternidade que
Jesus implantou estão aí. Todavia, ele já está vencido (cf. 12,31), ele nada
pode contra Jesus. “Mas é preciso que o mundo saiba que eu amo o Pai e
faço como o Pai mandou. Levantai-vos! Vamos embora daqui!” É verdade
que as forças do mundo não têm poder sobre Jesus, mas o enfrentamento
deve acontecer; e revelará que Jesus ama o Pai, cumprindo a sua missão. A
esta luz é que devemos entender o enfrentamento, ainda atual, da comuni-
dade com o “mundo”. Não há para o “mundo” perspectiva de vitória neste
confronto, mas isso não quer dizer que ele seja insignificante. Deve ser
assumido por nós, para mostrar de que lado estamos. Neste enfrentamento,
Jesus toma a dianteira: “Vamos!”23.
23. A continuação normal de 14,31 seria 18,1, mas num rearranjo do texto foram acrescenta-
dos os capítulos 15–17, que aprofundam e atualizam o cap. 14.
281
O LIVRO DA GLÓRIA
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15,1-17
283
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15,1-17
O Pai-agricultor não é apenas o dono da vinha, como no AT. Ele mesmo 2-3
trabalha (cf. 5,17), cuida da vinha, para que produza os frutos que ele espera.
Ele poda a vinha: corta fora os ramos secos e limpa os sadios para que
produzam mais. A nota explicativa do v. 3 sugere que a limpeza é feita pela
palavra que Jesus pronuncia (>com. 13,10). Quem a acata fica mais puro,
mais unido a Jesus e mais produtivo em termos daquilo que Deus espera (no
AT, “puro” pode ser sinônimo de “santo”, dedicado a Deus; cf. 11,55).
Jesus é o tronco. Os ramos devem permanecer unidos ao tronco para que 4
produzam frutos. É necessário “permanecer (>Voc.) em Jesus”, para produzir
o fruto que Deus espera. (Jesus fala aqui como se ele e a comunidade fossem
uma coisa só: o Jesus eclesial). A exortação do v. 4 visa fortalecer a comu-
nidade que, no fim do primeiro século cristão, sob a pressão da concorrência
e das perseguições, periga cair na apostasia e desistir da fé. Há gente na
comunidade que gostaria de abandonar a profissão de fé em Jesus (cf. 1Jo
2,19-24; 4,1-3; 2Jo 7). Esses não têm mais ligação com o tronco; devem ser
cortados fora.
Se Jesus é o tronco, os fiéis são os ramos. Ramos cortados do tronco não 5-6
produzem nada. São jogados fora e queimados (com termos semelhantes, a
tradição sinóptica exortava a produzir bons frutos: Mc 9,43 par.; Mt 25,41;
e especialmente Mt 3,10 par.). Quem são esses ramos mortos? Aqueles que
não crêem verdadeiramente em Jesus, nem amam seus irmãos. Segundo 1Jo
4,2, a profissão de fé em Jesus encarnado é o critério do discernimento dos
285
O LIVRO DA GLÓRIA
espíritos: isso mostra que havia na comunidade pessoas que não estavam
ligados a Cristo pela fé e pela caridade, que é a expressão prática da fé (cf.
1Jo 3,23). Quem pertence aparentemente ao grupo cristão, mas não mantém
ligação com Jesus é um membro morto. Só atrapalha.
Pode-se perguntar como podia haver, naquelas primeiras comunidades,
supostamente fervorosas, pessoas que não estivessem em comunhão com
Cristo e seus irmãos (as cartas de João, sobretudo 3Jo, revelam claramente
tal situação; cf. também Mt 24,12). Por que tais pessoas continuavam na
comunidade, atrapalhando-lhe a vida, como os ramos secos na videira? Pro-
vavelmente porque a comunidade era, ao mesmo tempo, uma proteção social
ou até um campo de influência e de poder, exatamente como em nossa
cristandade tradicional24.
7-8 Ora, se permanecermos em comunhão com Jesus e “suas palavras per-
manecerem em nós”, receberemos tudo o que em seu nome convém pedir.
João usa de modo surpreendente o termo “permanecer” — equivalente a
“morar” — para expressar a presença das palavras de Jesus em nossa vida
(>exc. 15,4). Isso, porque suas palavras são equivalentes à sua pessoa. Se
queremos saber se Cristo está em nós, cabe verificar se suas palavras desem-
penham um papel efetivo (e afetivo) em nossa vida. Daqueles que não crêem
é dito que a palavra de Jesus “não cabe neles” (8,37), que eles não têm “a
palavra de Deus permanecendo (morando) neles” (5,38)…
Num belo simbolismo, Dt 11,18 mandava atar a Palavra de Deus à mão
e sobre a testa, entre os olhos. Era uma maneira de ter a Palavra presente.
Mas em nós a Palavra deve permanecer, morar, de modo muito mais intenso
ainda. Então receberemos tudo o que for preciso para viver conforme a
Palavra. Pois Deus gosta de nos ver produzir muito fruto, pelo que mostra-
mos ser verdadeiros discípulos de Jesus. Trata-se dos frutos do amor fraterno
(cf. vv. 16-17), em virtude do qual somos reconhecidos como discípulos de
Jesus (cf. 13,15.35).
9-10 A partir do v. 9 começa a interpretação da “produtividade” que a ima-
gem da videira e dos ramos evoca. A linguagem deixa a alegoria no segundo
plano e acentua o compromisso prático, fundamentado no amor (afetivo e
efetivo) e expresso pelo tema do mandamento. Esta é de fato a linguagem da
Aliança, comparável à do Deuteronômio. Como, provavelmente, Jo 13–17
24. Como as conversões implicavam a “casa” inteira, a família com todos os parentes afins,
empregados e escravos (cf. Jo 4,53; At 11,14; 16,14-15.31), a comunidade se tornava um conjunto
sociológico amplo, que exercia muitas funções, não só religiosas. As comunidades cristãs, como as
sinagogas judaicas, eram atentas às necessidades materiais, sociais e administrativas de seus mem-
bros. Isso era bom, mas havia pessoas para quem o importante era só isso, e não aquilo que Jesus
ensinou por palavra e exemplo.
286
15,1-17
287
O LIVRO DA GLÓRIA
como-e-porque FONTE
o Pai me amou
MISSÃO
como-e-porque
쑺
eu vos amei
MANDAMENTO
쑺
Jesus não manda amar a Deus. Embora João certamente suponha que quei-
ramos amar a Deus (cf. 1Jo 4,20 etc.), não encontramos no Quarto Evan-
gelho uma injunção que, explicitamente, mande amar a Deus; o Evangelho
de João menciona só o mandamento de amar os irmãos. De fato, o amor é
um presente. Ora, um presente não se devolve, mas reparte-se com os ou-
tros. É amando os irmãos que mostramos nossa gratidão pelo amor do Pai
que se manifesta a nós em Jesus. E assim levamos esse amor ao seu destino.
Tornamo-nos “aliados” de Deus e de Jesus, na expansão de seu amor.
A mesma “lógica” realiza-se na missão: como o Pai enviou o Filho, ele nos
envia, confiando-nos o Espírito. O Espírito permanecia sobre Jesus, o Cor-
deiro que tira o pecado do mundo, e a partir da ressurreição Jesus nos
comunica esse Espírito, para que nós tiremos o pecado do mundo (20,19-
23). Em 6,57 é dito que, como o Pai dá a vida, aquele que se alimenta de
Cristo viverá. Não será lógico, então, que ele comunique essa vida? Lendo
a Primeira Carta de João, parece que sim. 1Jo 3,16-18 sintetiza esse dina-
mismo do amor do Pai e do Filho atuante em nós. O Deus-Amor se mani-
festa no dom que Jesus faz de sua vida pelos irmãos, e por isso os irmãos
devem repartir os dons da vida uns com os outros, não da boca para fora,
mas em atos e em verdade. Na mesma linha nos fala 1Jo 4,7-12: só pondo
em prática o amor conhecemos verdadeiramente o Deus-amor, que enviou
seu filho único ao mundo, para que por ele tenhamos a vida. O amor se
manifesta, portanto, no fato de Deus ter-nos amado primeiro, enviando seu
288
15,1-17
Quanto ao exemplo e prova de amor que Jesus nos dá, “ninguém tem 13-15
amor maior do que aquele que dá (depõe/se despoja de) a vida por seus
amigos”. Tal é o amor com que Cristo nos amou (cf. 10,17-18). Parece difícil
amar segundo o exemplo de Cristo. É, contudo, o que nos propõe 1Jo 3,16:
se Jesus deu sua vida por nós, devemos nós também dar a vida pelos irmãos.
Certamente não se trata de copiar materialmente o comportamento de Jesus,
mas de viver um amor fraterno que procure ter a qualidade e a intensidade
do amor que levou Jesus a dar sua vida. Há muitas maneiras de dar a vida
pelos irmãos: morrendo por eles ou vivendo por eles (cf. Fl 1,21). Lembre-
mos aqui a relação de indicativo e imperativo reconhecida em 13,2-11/12-17
(cf. a introdução a 13,1-30; >com. 13,12-17): é preciso acolher primeiro o
gesto de amor de Cristo para poder encarná-lo na vida de maneira original
e própria.
Aos que ele ama até a morte, Jesus chama de “amigos” — com a condi-
ção de que observem a prática que ele propõe, pois a amizade, união de
coração de duas pessoas, tem suas condições. Os amigos de Jesus não são
meros objetos de sua afeição; são sujeitos e parceiros, que livremente mantêm
um pacto, uma aliança com ele. Não chama seus amigos — que representam
a comunidade de então e de hoje — de servos ou empregados, que executam
um trabalho sem saber o que o dono está projetando. Jesus nos coloca na
condição de parceiros, comunicando-nos seu próprio projeto: aquilo que o Pai
lhe disse. Seu exemplo põe em xeque nossa prática e nossa estrutura eclesial:
promove a participação fraterna ou apenas o comando de cima para baixo?
Em 12,26 estava: “Se alguém quiser servir-me…”. Aqui: “Já não vos
chamo servos…”. Há uma diferença nos termos. Em 12,26 trata-se de
diakonein, pôr-se a serviço; em 15,15, o termo é dóuloi, escravos. Jesus não
é de se deixar servir (15,15; cf. Mc 10,45), mas seus seguidores desejam
estar a seu serviço e da comunidade que ele incorpora (12,26). Decerto,
Jesus veio para servir (Mc 10,45), mas nós, de nosso ponto de vista, somos
chamados a “servir Jesus” (>com. 12,26), enquanto do ponto de vista do
amor de Deus em Jesus não somos escravos, mas amigos (15,15).
O que Jesus fala aos “amigos“ que estão reclinados à mesa da ceia
concerne também a nós? Os amigos de Jesus somos nós, ou apenas os
apóstolos e seus sucessores, os bispos, a hierarquia? Na atmosfera do Quarto
Evangelho não é possível separar os fiéis e os apóstolos (termo que João
289
O LIVRO DA GLÓRIA
290
15,1-17
291
O LIVRO DA GLÓRIA
II — “Eu não vos disse isso desde o começo, porque eu estava convosco.
5
Agora, eu vou para aquele que me enviou, e nenhum de vós me
pergunta: ‘Para onde vais?’ 6Mas, porque vos disse isto, os vossos
corações se encheram de tristeza. 7No entanto, eu vos digo a verda-
de: é bom para vós que eu vá. Se eu não for, o Defensor não virá
a vós. Mas, se eu for, eu o enviarei a vós. 8Quando ele vier, será
o acusador do mundo: mostrará onde está o pecado, a justiça e o
julgamento. 9O pecado: eles não acreditaram em mim. 10A justiça:
eu vou para o Pai, de modo que não mais me vereis. 11E o julgamen-
to: o chefe deste mundo já está condenado.
12
“Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas não sois capazes de
compreender agora. 13Mas quando ele vier, o Espírito da Verdade,
292
15,18–16,33
vos conduzirá em toda a verdade. Ele não falará por si mesmo, mas
dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará o que está por vir. 14Ele
me glorificará, porque receberá do que é meu para vo-lo anunciar.
15
Tudo o que o Pai tem é meu. Por isso, eu vos disse que ele receberá
do que é meu para vo-lo anunciar.
16
III — “Um pouco de tempo, e não mais me vereis; e mais um pouco, e
me vereis de novo”. 17Alguns dos seus discípulos comentavam : “Que
significa isto que ele está dizendo: ‘Um pouco de tempo e não mais
me vereis; e mais um pouco e me vereis de novo’ e ‘Eu vou para
junto do Pai’?” 18Diziam ainda: “O que é esse ‘pouco’? Não enten-
demos o que ele quer dizer”. 19Jesus entendeu que eles queriam
fazer perguntas; então falou: “Estais discutindo porque eu disse:
‘Um pouco de tempo, e não me vereis; mais um pouco, e me vereis
de novo’? 20Amém, amém, eu vos digo: chorareis e lamentareis, mas
o mundo se alegrará. Ficareis tristes, mas a vossa tristeza se trans-
formará em alegria. 21A mulher, quando vai dar à luz, fica angustia-
da, porque chegou a sua hora. Mas depois que a criança nasceu, já
não se lembra mais das dores, na alegria de alguém ter vindo ao
mundo. 22Também vós agora sentis tristeza. Mas eu vos verei nova-
mente, e o vosso coração se alegrará, e ninguém poderá tirar a
vossa alegria. 23Naquele dia, não me perguntareis mais nada.
“Amém, amém, eu vos digo: se pedirdes ao Pai alguma coisa em
meu nome, ele vos dará. 24Até agora, não pedistes nada em meu
nome. Pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja completa.
25
“Eu falei estas coisas por meio de figuras. Vem a hora em que não
mais vos falarei em figuras, mas vos falarei claramente do Pai. 26Na-
quele dia pedireis em meu nome. Eu não pedirei mais ao Pai por vós.
27
O próprio Pai vos ama, porque vós me amastes e acreditastes que
saí de junto de Deus. 28Eu saí do Pai e vim ao mundo. De novo,
deixo o mundo e vou para o Pai”. 29Os seus discípulos disseram:
“Agora, sim, falas claramente, e não em figuras. 30Agora vemos que
conheces tudo e não precisas que ninguém te faça perguntas. Por
isso acreditamos que saíste de junto de Deus!” 31Jesus respondeu:
“Credes agora? 32Eis que vem a hora, e já chegou, em que vos
dispersareis, cada um para seu lado, e me deixareis só. Mas eu não
estou só. O Pai está sempre comigo. 33Isto é o que vos digo, para
que, em mim, tenhais a paz. No mundo tereis aflições. Mas tende
coragem! Eu venci o mundo”.
293
O LIVRO DA GLÓRIA
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15,18–16,33
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15,18–16,33
andava com eles pelos caminhos da Galiléia e da Judéia, aquilo que ele aponta
agora ainda não se havia concretizado. As coisas que não foram ditas desde o
começo estão se tornando reais na existência da comunidade depois de Cristo
e recebem uma chave de leitura a partir do “enaltecimento” de Jesus. No texto,
Jesus entrega essa chave na despedida; na realidade, ela nos vem com o
Espírito da Verdade que Jesus envia desde seu enaltecimento. A partir da hora
da elevação na cruz e na glória, que é também a da rejeição pelo mundo,
compreende-se o significado daquilo que ele não falou desde o começo.
A frase tem ainda um outro sentido: enquanto Jesus estava na terra, ele era
porta-voz dos seus. Na sua ausência, eles é que têm de testemunhar, embora não
sejam só eles, mas o Espírito de Jesus que fala por intermédio deles (cf. Mt
10,19-20 par; Jo 14,16). Por isso, Jesus vai explicar, a seguir, o papel do Paráclito.
Entretanto, na hora da despedida, os discípulos ainda não estão conscien- 5-6
tes da importância do afastamento de Jesus. Nem perguntam: “Para onde
vais?” (João prescinde da pergunta de Pedro em 13,36). Estão apenas imen-
samente tristes.
Ora, é bom que Jesus vá (v. 7; cf. 14,28). Se ele não saísse do mundo, 7
o Espírito não poderia ensinar-lhes o sentido de sua obra, levada a termo na
morte por amor. A partir de sua glória, endossada pelo Pai, Jesus poderá
enviar o Paráclito-defensor (cf. 7,39: >com. 14,16), mas é exatamente essa
“glória do amar”, sua morte por amor, que o afasta deste mundo. Jesus e o
“outro Paráclito” não podem estar presentes ao mesmo tempo; o Paráclito
é a presença de Jesus ausente (>exc. 14,17).
Observamos aqui uma mudança de linguagem. Enquanto em 14,26 o Pai
é quem envia o Paráclito, agora é Jesus mesmo que o envia. A fé da Igreja
percebeu essa “dupla proveniência” do Paráclito; por isso, o Credo niceno-
constantinopolitano reza: “que provém do Pai e do Filho”. Falando em ter-
mos teológicos gerais, podemos de fato dizer: o Pai e o Filho têm tudo em
comum (cf. v. 15).
Tentemos penetrar o significado desta mudança terminológica de modo
concreto. Quando se olha para Jesus como pessoa humana, “carne”, reconhe-
ce-se nele o Espírito de Deus que o impulsiona, assim como anteriormente
impelia os profetas. Ora, o Espírito de Deus não desaparece com Jesus, mas
o Pai continua a enviá-lo para que permaneça com os fiéis (cf. 14,26).
Quando, porém, se pensa a partir do senhorio de Jesus, manifestado pelo
“enaltecimento”, é mais fácil atribuir a Jesus mesmo o envio do Espírito (que
vem do Pai). Então, esse Espírito não é visto apenas como o Espírito de
Deus conhecido no AT, mas como o Espírito que continua especificamente
297
O LIVRO DA GLÓRIA
a obra de Jesus-Senhor. Por isso, João insiste que este Espírito recebe e ouve
o que pertence à obra de Jesus. Assim como Jesus recebeu sua mensagem do
Pai e transmitiu a nós, assim o Paráclito recebe de Jesus aquilo que este
iniciou, para transmiti-lo a nós (cf. vv. 13-14).
8-11 Quando vier este Espírito, ele se transformará de defensor dos fiéis em
acusador do mundo. Mostrará de que lado se situam o pecado, a justiça e o
julgamento (no caso, a condenação):
• mostrará em que consiste o pecado (= quem é culpado): os represen-
tantes do “mundo” não acreditaram em Jesus;
• mostrará em que consiste a justiça (= quem é justo): pelo próprio gesto
inimigo do mundo (a crucificação), Jesus vai ao Pai para ser glorifica-
do, de modo que ele está fora do alcance dos olhos físicos, vivendo na
glória invisível do Pai (cf. 17,5). Mas isso não desfaz o que foi dito em
14,21-23 (sua inabitação nos fiéis);
• mostrará em que sentido acontece o julgamento, ou seja, quem é o
condenado neste processo: o chefe deste mundo já está condenado
(cf. 12,31).
298
15,18–16,33
25. Os melhores manuscritos trazem: “(vos conduzirá) em toda a verdade”; a leitura costumei-
ra, “…à verdade toda (plena)”, procura facilitar a compreensão.
299
O LIVRO DA GLÓRIA
Alegria
Segundo a imagem dos vv. 21-22, para quem na fé e no amor adere a
Jesus, esse dia será um dia de alegria. A alegria, futura e antecipada no
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15,18–16,33
O v. 23a anuncia: “Naquele dia não me perguntareis mais nada”. Será o 23a
tempo da transparência, da abertura completa. Jesus comunica aos seus a alegria
do entendimento e da “palavra aberta” na presença de Deus (a parresia, vv.
25.29). A incerteza está chegando ao fim. Isso, quanto ao futuro, o reencontro.
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O LIVRO DA GLÓRIA
que Cristo nos ensinou? Melhor assim, pois se nos sentíssemos satisfeitos
com a oferta do “mundo”, seria preciso fazer um exame de consciência.
A alegria cristã é para o “hoje” que não é do mundo! E é participação da
plena alegria.
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15,18–16,33
303
O LIVRO DA GLÓRIA
3. A vitória
Jesus venceu o mundo. Mas assim como a paz que ele dá é diferente
da que o mundo proporciona, também sua vitória sobre o mundo é
diferente, não à maneira do “mundo”, não à maneira das cruzadas ou
da conquista da América pelos cristãos da Espanha e de Portugal,
com bênçãos papais. É a vitória do “enaltecido” na cruz, a vitória do
amor que se confirma quando é esmagado, da flor sem defesa.
304
17,1-26
305
O LIVRO DA GLÓRIA
Em 16,26, Jesus disse que não precisará pedir a Deus por nós, porque
Deus nos ama. Mas em 14,16 vimos uma outra maneira de imaginar o
Senhor glorioso, intercedendo pelos seus, que permanecem no mundo. É
deste Jesus “orante” que João nos apresenta agora uma imagem, um ícone
envolvido de mistério. João parece ver Jesus por dentro, e nesta visão de fé
ele apresenta aquilo que, invisível aos nossos olhos, se realiza quando Jesus
entra na glória: o diálogo entre Jesus e o Pai.
O âmbito do mistério é expresso pelo paradoxo: “no mundo, mas não deste
mundo”. Jesus ora ainda no mundo, mas numa ótica que já não é a deste mundo,
e sim a da glória de Deus. Jesus ora para que esta glória seja também a situação
dos seus, que eles também sejam envolvidos neste mistério. Pois este Jesus
orante está intimamente unido aos fiéis. Percebe-se que ele reza ao seu Pai como
sendo nosso Pai, como explicitará no dia da Ressurreição (20,17). Não é por
nada que este capítulo foi chamado o “Pai-nosso” do Quarto Evangelho!
Como em 11,41-42 e 12,27-28, também aqui a oração de Jesus revela a
um determinado público sua comunhão com o Pai. Aqui, porém, o público
está preparado para participar dessa comunhão, enquanto nos dois casos
anteriores a revelação na prece servia para provocar a fé. Aqui, a união de
Jesus com os seus chega a um ponto que só poderá ser aperfeiçoado — nos
discípulos — quando reconhecerem a glória de Jesus no dia da Páscoa.
Pela terminologia e relativa independência em relação ao que precede
(compare, p. ex., 16,26 com 17,9), como também pela estrutura poética sólida
e acabada, podemos supor que esta prece, antes de ser incluída no evangelho,
se cristalizou na liturgia da comunidade joanina (cf. Intr. a 13–17).
306
17,1-26
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O LIVRO DA GLÓRIA
possuía junto de Deus antes da criação do mundo (cf. 1,14; Pr 8,23; Sb 7,25
etc.) é manifestada definitivamente na “hora” do amor até o fim. O projeto
da Palavra, do “relato vivo” de Deus, chega à sua realização. Sua trajetória
“na carne” se fecha. O lugar de Jesus é na glória de Deus (cf. 1,1-2.18).
Jesus mostrou o amor — que é a glória — de Deus na prática de sua vida
e morte. Agora Deus vai mostrar que sua glória — a glória do amor até o
fim — é a glória de Jesus, desde sempre e para sempre.
6-7 Jesus manifestou “o nome” de Deus. O nome significa a pessoa, seu ser,
sua presença, seu agir. Talvez haja aqui uma alusão a 8,24.28.58 (“Eu sou”),
se é que estes textos aludem ao nome de YHWH. Em Is 52,6, a manifestação
do nome de Deus e o reconhecimento (cf. Jo 17,7) do “Eu sou/estou” é
plenitude escatológica (>exc. 8,25). Jesus manifestou a presença de Deus às
pessoas que este lhe deu, pois em Jesus puderam ver Deus (cf. 1,18; 14,9).
Pertenciam a Deus, e Deus as deu a Jesus, e elas guardaram a palavra de
Deus. “Agora”, quando Jesus alcança o termo de sua missão, reconhecem a
origem divina dessa missão.
8 O v. 8 explica: Jesus é o porta-voz de Deus, o novo Moisés (cf. Dt 18,18:
Deus colocou suas palavras na sua boca). Jesus deu aos seus as palavras
que Deus lhe confiou e eles as acolheram e reconheceram que Jesus veio
realmente de Deus, ou seja, que “Deus o enviou” (Jesus mesmo parece estar
pronunciando aqui a confissão de fé da Igreja!).
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17,1-26
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O LIVRO DA GLÓRIA
lemos fica claro que João não aconselha a fuga do mundo aos seus leitores.
Mundo (>Voc.) tem diversos sentidos, principalmente: (1) âmbito destina-
tário da salvação; (2) âmbito que recusa a salvação oferecida. No primeiro
sentido, o lugar de Jesus e dos seus é naturalmente no mundo, ao qual eles
devem apresentar a salvação, “tirando o pecado do mundo” (1,29; 20,19-
23). No segundo sentido, eles não podem pertencer ao mundo, não podem
estar em seu poder, ser-lhe submissos.
Será que essa visão tem sentido concreto hoje? Sim. O cristão tem de tornar
presente a salvação que reconhece em Jesus, e que consiste em crer nele e
guardar sua palavra, essencialmente: o amor fraterno, com tudo o que isso
implica em termos de justiça, de criação de estruturas sociais justas, de
responsabilidade social, profissional, ecológica etc. Esta é sua missão na
sociedade. A sociedade não é um mal; é uma chance para o evangelho.
Mas o cristão não deve pertencer ao mundo ou ao poder que o domina. Sem
a orientação para o Pai que se manifesta em Jesus, o mundo torna-se egoís-
ta, cruel, pecaminoso. Quem tem uma missão da parte de Deus e de Cristo
não se pode deixar dirigir por um mundo que vai na direção oposta. Para
o bem do mundo, tem de ser contrário a tal “mundo”. Ora, isso não se
realiza fugindo do mundo, mas vivendo a “diferença cristã”, o contraste
com “o mundo”, enquanto se está presente no mundo (>Intr. § 3.2; 3.4).
16-18 Os discípulos não pertencem ao mundo, assim como Jesus não pertence
ao mundo. Sua pertinência é outra: Jesus pede ao Pai que os “consagre
(santifique) na verdade”.
“Consagrar (santificar)” é fazer pertencer a Deus — o Sacro, o Santo.
Implica certa separação, ser reservado para o Santo. Jesus fala assim de si
mesmo em 10,36: o Pai o reservou para ser seu Santo (cf. 6,69) e o enviou
ao mundo. O povo eleito, Israel, era assim dedicado à santidade de Deus
(“Sede santos porque Eu sou santo”, Lv 19,1). É o que hoje chamamos uma
realidade “sacramental”: significa a graça de Deus e a torna presente. A
Igreja é o sacramento de Deus no mundo, o espaço no qual se manifesta a
santidade de Deus, transformando-o.
“Consagra-os na verdade”: “a verdade” é a manifestação de Deus, de seu
amor e fidelidade, em sua palavra, que vem por meio de Jesus. Jesus pede
sejam eles consagrados em virtude dessa verdade, ou seja, da missão assumida
por ele e continuada pelos seus: “Como tu me enviaste ao mundo, eu também
os enviei ao mundo” — o mundo destinatário da salvação. Cf. 15,9: amor.
19 “E por eles eu me consagro (= dedico-me ao Santo, fazendo a consagração
de minha vida) para que sejam consagrados (santificados) na verdade” (lit. “em
verdade”, o grego dispensa aqui o artigo definido; hebr. be’emet). Nesta frase,
que mereceu para o cap. 17 o título de “oração sacerdotal”, a expressão
310
17,1-26
“por eles” (hyper) lembra outras expressões do dom da vida em prol dos outros:
6,51 (“pela vida do mundo”), 10,11 (“pelas ovelhas”), 11,51 (“pela nação”),
15,13 (“pelos amigos”). Compare-se também Rm 8,32 e, sobretudo, as palavras
eucarísticas de Mc 14,24 par.; 1Cor 11,24. Para que os fiéis pertençam à ver-
dade, que é Deus manifestando-se no amor, Jesus se torna oblação dedicada à
verdade e à fidelidade de Deus. Dedicando-se à santidade de Deus, Jesus envol-
ve os seus nesta mesma santidade. Ora, eles têm de viver essa consagração no
mundo, pelo testemunho de sua palavra e prática.
Santidade ou amor?
Tendemos a entender a santidade de Deus como distante — o ser “total-
mente outro” — e seu amor como próximo, até familiar e aconchegante.
João, assíduo ouvinte da Torá, conhecia “a Lei da Santidade” de Lv 17–26,
que combina inseparavelmente a santidade de Deus (Lv 19,1) com o amor
fraterno (p.ex. Lv 19,18) e as demais práticas de “justiça” (pois, biblicamen-
te, o amor fraterno é uma forma de “justiça”).
A santidade de Deus significa sua alteridade, sua qualidade de ser supremo
e único, superior a nosso poder e nossa manipulação. “Só Deus é grande”
era o lema do profeta de Canudos, Antônio Conselheiro. Ora, em muitas
formas de religião, a santidade parece contaminada pela magia: como se
tem medo dos poderes misteriosos, procura-se manipulá-los. Não assim na
tradição judaica e cristã. Nesta, Deus é separado porque seu amor está fora
do alcance de qualquer manipulação ou corrupção. Ele é “totalmente outro”
por seu amor incomparável e soberano. Sua santidade identifica-se com seu
amor, que se torna um convite constante ao nosso amor, o qual encontra seu
destinatário em nossos irmãos (cf. 1Jo 4,21).
22
Eu lhes dei a glória que tu me deste,
21(Para)n
que todos sejam um, para que eles sejam um,
como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti. como nós somos um: 23eu neles, e tu
em mim,
(Para) que eles estejam em nós, para que sejam perfeitamente unidos,
a fim de que o mundo creia que tu me para que o mundo conheça que tu me
enviaste. enviaste
e os amaste como amaste a mim.
n
“que” = “para que”
311
O LIVRO DA GLÓRIA
Que todos eles constituam na sua vida e atuação uma só realidade (o grego
usa o neutro hen), segundo o modelo da realidade única constituída por Jesus
e o Pai (cf. 10,30; o “como” dos vv. 21b e 23c significa “como e porque”,
como em 15,9.12). Jesus deseja também que o mundo acredite que ele é o
Enviado do Pai. Pois agora ele já não está no mundo para fazer sinais e
milagres que levem à fé. Agora o sinal por excelência indicando a origem
divina da mensagem de Jesus consiste no amor, que se torna visível na união
fraterna dos cristãos. Jesus confiou aos fiéis a glória, a participação no amor
que Deus lhe tinha confiado, para que vivessem em unidade, como ele e o Pai:
“Eu neles, e tu em mim, para que sejam perfeitamente unidos (por Deus), e
o mundo conheça (= tenha experiência de) que tu me enviaste e os amaste
como amaste a mim” (cf. 14,23: o Pai amará quem guarda a palavra de Jesus).
Esse reconhecimento pelo mundo não está em contradição com o v. 9?
No presente trecho, “mundo” é visto como destinatário da salvação, como
em 3,16 e 17,18. Diante da manifestação de Deus em Jesus, o mundo deve
decidir que mundo ele quer ser.
Nos vv. 22-23 percebe-se uma mudança notável: o vv. 22 começa com
o tema da glória e termina com o do amor. Essa articulação vale para a
oração inteira: a partir do vv. 23 aparece 3 vezes o termo “amar”, que antes
não apareceu. A oração do cap. 17, que começou como um pedido de glória,
termina no vv. 26b pedindo o amor. A glória está no amor.
312
17,1-26
são “um”, no neutro, poderia traduzir o hebraico yahad, neste sentido (cf.
Sl 133,1). Então se verificaria o que mais tarde a teologia captou em frases
famosas, como “Vede como eles se amam” (Luciano de Samosata) ou
“Onde reinam a caridade e o amor, Deus aí está” (antífona gregoriana da
Quinta-feira Santa).
Certo é que as comunidades, tanto para dentro como para fora, devem ser
imagens da unidade de Jesus e o Pai e do amor que a partir deles chega até
nós. É por isso que Jesus reza (17,23).
24
Nos últimos versículos, Jesus exprime seu grande desejo de estar unido ao
Pai e aos seus. Introduzido pelo verbo “eu quero”, o v. 24 poderia ser chamado
“a última vontade de Jesus: “Pai, quero que aqueles que me deste estejam
onde eu estou (cf. 14,2), para que possam contemplar minha glória, que é teu
dom, porque me amaste (= me amas desde) antes da fundação do mundo”.
A glória de Deus consiste no amar (“Deus é amor”, 1Jo 4,8.16). Antes
da fundação do mundo, ou seja, no tempo eterno de Deus, essa realidade
existia entre o Pai e o Filho. Com a vinda do Filho ao mundo, ela se tornou
manifesta para o mundo e, nesta manifestação do amor, Deus mesmo se deu
a conhecer (cf. 14,9; 1,18).
Jesus reza para que estejam com ele os que o Pai lhe deu. O estar com
Jesus já foi mencionado em 12,26 e 14,3. Jo 14,23 sugeriu que o estar com
Jesus se realiza quando ele e o Pai fazem sua morada naquele que com eles
comunga pelo amor, observando o mandamento de Jesus. Aqui, o tema re-
cebe toda sua amplidão: essa inabitação tem por meta última o estar com
Jesus na sua glória, mas começa no serviço da caridade em fidelidade a ele
dentro da história. Este dinamismo, que a partir daquilo que já somos cresce
para a plenitude de nossa vocação, se exprime muito bem em 1Jo 3,2.
“Pai justo (= que fazes tudo bom e justo), o mundo não te reconheceu, 25-26
mas eu te reconheci e estes reconheceram que tu me enviaste. Eu lhes dei
a conhecer o teu nome…”. A obra de Jesus manifestou a presença e a “iden-
tidade” de Deus, seu modo de ser. “E o darei a conhecer ainda.” A obra
de Jesus continua, inclusive pela presença do Paráclito. Assim (“para que”
= de modo que), “o amor com o qual me amaste estará neles, e eu mesmo
estarei neles”: Jesus não apenas mostrou o amor de Deus; ele o implantou
nos seus, para que permanecesse presente e ativo no mundo.
Se comparamos estas palavras com o início da oração, vemos que a
linguagem de Jesus passou por uma modificação sutil, mas significativa.
Os v. 1-5 evocavam sua união com o Pai e com os seus na glória; nos
vv. 24-26, passa-se da unidade na glória para a unidade no amor. A glória
de Deus é a manifestação do amor. Hoje, essa manifestação se realiza na
313
O LIVRO DA GLÓRIA
glória
glória
glória do amar
história (carne)
314
18,1–19,42
Jesus entrega sua obra às mãos do Pai e, com sua obra, aqueles que
acolheram sua manifestação do Pai na glória do amar. Confia-lhe,
inclusive, os fiéis dos tempos vindouros (17,20; cf. 20,29).
A união com Deus, com Jesus e entre nós, em que estamos envolvidos,
supera o tempo. Por isso mesmo, ela se configura em cada tempo de
maneira nova. Quem ama sabe como deve continuamente adequar a
expressão, a obra do amor a novas circunstâncias. O amor coroado
pela glória é o motor da incansável novidade da comunidade. No dia
em que se contentar em ser mera guardiã de formas e práticas tradi-
cionais, a comunidade estará morta.
E a unidade entre nós? Que seja como entre Jesus e o Pai. Unidade
de amor, pela livre doação de cada um. Não uniformidade imposta. À
direita, direito canônico igual para todos, à esquerda, ideologia igual
para todos: não é isso que Jesus quer dizer quando reza: “Que sejam
um como nós somos um”. O vínculo da unidade não é o vínculo da
uniformidade, mas da dedicação de cada um a seu irmão, levando em
consideração a coerência do corpo todo.
315
O LIVRO DA GLÓRIA
316
18,1-27
317
O LIVRO DA GLÓRIA
falou, um dos guardas que ali estavam deu uma bofetada em Jesus,
dizendo: “É assim que respondes ao sumo sacerdote?” 23Jesus respon-
deu-lhe: “Se falei mal, mostra em que falei mal; e se falei corretamente,
por que me bates?” 24Anás, então, mandou-o, amarrado, a Caifás.
25
Simão Pedro continuava lá, aquecendo-se. Disseram-lhe: “Não és
tu, também, um dos discípulos dele?” Pedro negou: “Não”. 26Então
um dos servos do sumo sacerdote, parente daquele a quem Pedro
tinha cortado a orelha, disse: “Será que não te vi no jardim com
ele?” 27Pedro negou de novo, e na mesma hora um galo cantou.
A narrativa da prisão e do comparecimento diante das autoridades judai-
cas é construída em duas seqüências, num total de sete cenas, que têm Jesus
como protagonista, enquanto se revezam como coadjuvantes os discípulos
(disc.) e os “judeus” (jud.).
318
18,1-27
Mt Mc Lc Jo
22,66-71 acusação de
blasfêmia (Lc)
319
O LIVRO DA GLÓRIA
tar, pois na cidade não havia lugar por causa da multidão dos peregrinos.
Judas, que está tramando a traição, conhece o lugar, porque Jesus costuma-
va encontrar-se ali com seus discípulos. Segundo Mc 11,12.19, Jesus pernoi-
tava naqueles dias fora da cidade, em Betânia, atrás do monte das Oliveiras;
segundo Lc 21,37, no próprio monte das Oliveiras.
Ao dirigir-se ao jardim das oliveiras, Judas leva consigo a “coorte”, um
batalhão do exército romano! Será esse batalhão um exagero “majestático”
(Judas representa o “chefe deste mundo” cf. 13,27; 19,11), ou talvez uma
maneira de sugerir a luta da luz contra as trevas? Além disso, leva guardas
(lit. “súditos”) dos sumos sacerdotes e dos fariseus — estes, apresentados
aqui como autoridades, o que não corresponde ao tempo de Jesus, e sim ao
da comunidade joanina (cf. 1,19.24).
A presença do batalhão do exército romano — que inclusive vai levar
Jesus a um obscuro sumo sacerdote aposentado e não ao governador roma-
no (18,13) — é própria da narrativa joanina e anuncia a “confusão” entre
o poder judaico e o romano que se manifesta ao longo da narrativa toda
(cf., p.ex., 19,16!). Para João, é tudo a mesma coisa: são fantoches nas
mãos do “chefe deste mundo”. Com tanto soldado, a cena do Quarto Evan-
gelho pode levar a imaginar-se a prisão de Jesus como uma maciça caça
a um Jesus “zelote” acompanhado de revolucionários subversivos. Mas a
encenação joanina é teológica, não histórica (a descrição sinóptica não
sugere nada disso).
Jesus, “sabendo tudo o que vai acontecer” (expressão de sua união com
a vontade do Pai, cf. 13,1-3), sai ao encontro deles e pergunta a quem estão
procurando. Respondem: “A Jesus, o nazareno” (a tradução “Jesus de Naza-
ré” esconde o teor depreciativo do termo “nazareno”, que indicava também
os cristãos; cf. 1,45-46; >exc. 9,23). Jesus (e o cristão perseguido como ele?)
responde: “Sou eu”. Nesta altura, João realça ironicamente a presença de
Judas (v. 5c), o traidor, que fica sobrando: a declaração de Jesus não lhe dá
chance para entregá-lo traiçoeiramente (cf. 10,17-18). João nem fala do beijo
da traição. Não são Judas e seu inspirador, o “chefe deste mundo”, que
decidem o jogo. Jesus mesmo tem as rédeas na mão (>exc. 6,11). O “eu (o)
sou” (>exc. 8,25) de Jesus ressoa com tanta majestade que os soldados
recuam e caem no chão. Pois essas palavras são as da manifestação de Deus
(Ex 3,14; >com. Jo 6,18; 8,58). Os soldados caem por terra (cf. Sl 27,2;
35,4): não apenas “o chefe deste mundo” nada pode contra Jesus (cf. 14,30);
sem querer, os próprios soldados atestam a majestade soberana de Jesus.
Jesus lhes pergunta outra vez a quem estão procurando, e novamente res-
pondem: “Jesus, o nazareno”. “Já lhes disse que sou eu”, responde Jesus (cf.
320
18,1-27
26. Os sinópticos falam em “orelha”, Lc 22,50 em “orelha direita”, mas não em “lóbulo da
orelha”. O sumo sacerdote era ungido com sangue “no lóbulo da orelha direita” (Ex 29,20; Lv
8,23). Será que no servo ficou ferido e desqualificado o seu amo, o sumo sacerdote?
321
O LIVRO DA GLÓRIA
da comunidade judaica. Mais uma vez, João se mostra a par dos assuntos
sacerdotais (>Intr. § 3.2.3:1).
Enquanto Mc 14,53 fala de um interrogatório formal diante do sumo
sacerdote, sem especificar o nome (assim também Lc), Mt 26,57 precisa que
Caifás preside o ato, mas João descreve um diálogo bastante informal com
a eminência parda Anás. Por outro lado, em 18,24 menciona que Jesus é
conduzido a Caifás, mas não descreve o interrogatório ali. Isso é uma técnica
homilética: para expressar livremente sua interpretação dos fatos, sem estar
ligado ao já tradicional roteiro, João cria uma cena extra, em detrimento da
conhecida cena da condenação pelo sumo sacerdote (Caifás), da qual ele
guarda apenas a relação com a negação de Pedro (cf. vv. 19-23). É possível
também que ele tenha evitado a cena da condenação para sugerir que as
autoridades judaicas não conseguiram declarar Jesus culpado (cf. v. 23),
como também não Pilatos (cf. 18,38; 19.4.6).
15-16 O confronto entre Jesus e as autoridades judaicas é emoldurado pela ne-
gação de Pedro (vv. 15-18 e 25-27). Simão Pedro acompanha Jesus (conforme
os sinópticos, “de longe”, Mc 14,54 par.). João menciona, além de Pedro, um
outro discípulo — provavelmente o Discípulo Amado (>exc. 13,23) —, conhe-
cido do sumo sacerdote. Tomando a dianteira (como em 20,4 e 21,7), ele entra,
com Jesus e os guardas, no pátio do sumo sacerdote. Pedro fica fora. Será que
a oposição dentro-fora tem sentido simbólico? Pois o entrar do “outro discípu-
lo” realiza a frase: “Onde eu estiver, estará aquele que me serve” (12,26). Ele
estará também ao pé da cruz. Agora, o “outro discípulo”, fazendo-se de inter-
mediário (como em 13,23s), fala com a atendente da porta (he th¥roros) e faz
Pedro entrar. Os dois serão testemunhas daquilo que vai seguir (cf. vv. 21).
17-18 Reaparece a “menina da porta” (he paidiske he th¥roros) — os termos
sugerem ironia! A menina diz a Pedro: “Não pertences tu também aos discí-
pulos desse homem?” O “também” significa que Jesus já é conhecido como
líder de um grupo de galileus. “Não”, responde Pedro. Segunda negação.
Estão lá também os servos (dóuloi) e os guardas (hyperétai, “súditos”),
aquecendo-se em torno de uma fogueira (é fim de inverno). Pedro junta-se
discretamente a eles, aparentemente para se aquecer, na realidade, porém,
para desaparecer num grupo que nada tem a ver com Jesus.
19-21 O sumo sacerdote Anás faz perguntas a Jesus a respeito de seus discípulos
e de sua doutrina. Jesus responde: “Eu sempre falei abertamente (= com parresia)
ao mundo (= em público, cf. 7,26), ensinei na sinagoga (cf. 6,59) e no Templo
(cf. 10,22-23), onde todos os judeus se reúnem” (cf. o encontro com os judeus
no Templo, em 10,22-23, quando os judeus provocaram Jesus para dizer aber-
tamente, com parresia, se ele era o Messias). Portanto, as palavras de Jesus
322
18,1-27
não significam apenas que ele não organizou reuniões clandestinas. Ele falou
explicitamente ao povo de Israel. Ao mesmo tempo, essas palavras lembram
a proclamação de Deus em Is 45,19: “Eu não falei em segredo”.
“Por que me interrogas? Pergunta aos que ouviram o que eu falei”. Jesus
remete aos discípulos-testemunhas, pois dois dentre eles estão aí presentes,
embora um deles, Pedro, certamente não esteja em boas condições… “Eles
sabem o que eu disse” (ao contrário das autoridades judaicas, que não que-
rem nem podem ouvir: 8,43).
Por causa dessas palavras francas, um funcionário do sumo sacerdote lhe 22-23
dá uma bofetada: “É assim que respondes ao sumo sacerdote?” Jesus retruca:
“Se falei algo errado, mostra em que falei mal. Mas se falei corretamente,
por que me bates?” O evangelista não relata como a discussão continua; o
importante está dito: não há o que incriminar a Jesus, nem no tempo de Jesus
e de Anás, nem no tempo da discussão entre o judaísmo e a comunidade
cristã, nem hoje. O desafio “Mostra em que eu falei mal” continua aberto.
Anás manda então Jesus algemado ao sumo sacerdote Caifás, que é 24
mencionado apenas em João (11,49; 18,13.14.24.28), no relato da Paixão de
Mt (Mt 26,3.57), e em Lc 3,2 e At 4,6. A menção de Caifás tem peso,
porque, sumo sacerdote em função, ele encaminhará Jesus ao poder romano
(18,28). Neste versículo, João volta ao roteiro sinóptico, que situa diante de
Caifás (Mt 26,57) o interrogatório no qual se enquadra, segundo a tradição,
a negação de Pedro.
A câmera se volta novamente para os discípulos, focalizando Pedro que 25-27
continua se aquecendo (cf. v. 18). Está aí como que plantado. Perguntam-lhe
novamente se ele também não é um dos discípulos do Nazareno. Ele nega.
Mas um servo do sumo sacerdote, parente daquele que teve a orelha ferida
por Pedro, observa: “Não te vi no jardim com ele?” Pedro nega de novo, e logo
um galo canta, conforme a palavra de 13,38. Em toda esta seqüência (vv. 15-27),
João mostra como Pedro deu razão ao que Jesus lhe falou em 13,36-38: não
foi capaz de segui-lo “agora”; pelo contrário, negou conhecê-lo.
323
O LIVRO DA GLÓRIA
“Tu és o rei dos judeus?” 34Jesus respondeu: “Estás dizendo isto por
ti mesmo, ou outros te disseram isso a respeito de mim?” 35Pilatos
respondeu: “Acaso sou eu judeu? Teu povo e os sumos sacerdotes te
entregaram a mim. Que fizeste?” 36Jesus respondeu: “Minha realeza
não é deste mundo. Se minha realeza fosse deste mundo, os meus
guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas
minha realeza não é daqui”. 37Pilatos disse: “Então, tu és rei?”
Jesus respondeu: “Tu dizes que eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo
para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da
verdade escuta a minha voz”. 38Pilatos lhe disse: “A verdade, que é?”
Dito isso, saiu ao encontro dos judeus e declarou: “Eu não encontro
nele nenhuma culpa. 39Ora, existe entre vós um costume de que, por
324
18,28–19,16A
325
O LIVRO DA GLÓRIA
13–20). Para cada negociação com os judeus, que não podem entrar, Pilatos
tem de sair do pretório. Daí o contínuo vaivém.
Os diálogos entre Pilatos e Jesus giram sucessivamente em torno dos
títulos atribuídos a Jesus: (1) Jesus é “rei dos judeus”, ou seja, Messias; (2)
Jesus é Filho de Deus. Estes são os dois títulos que o Quarto Evangelho deseja
esclarecer (20,30-31; cf. também Mc 1,1). O “desenlace” articula a proclama-
ção dos judeus dizendo que César é o rei deles com a crucificação de Jesus
como “rei dos judeus”. Outro eixo significativo é constituído pelo verbo “en-
tregar” (5 vezes): no início, os judeus entregam Jesus; no fim, Pilatos entrega
Jesus; no meio há uma palavra de Jesus sobre “aquele que entregou” (19,11).
I. “Rei dos judeus” (18,28–19,3) II. “Filho de Deus”, condenado como rei dos
judeus (19,4-16a)
326
18,28–19,16A
Mt 27,3-10
mulher de Pilatos
Lc 23,6-16
Herodes
327
O LIVRO DA GLÓRIA
Pilatos quer tirar o corpo fora: “Tomai-o vós mesmos e julgai-o segundo
a vossa lei”. Os chefes alegam que não lhes é permitido matar alguém. Men-
tira! Eles podiam aplicar a pena de morte, por apedrejamento, em caso de
“desacato religioso”, blasfêmia, e de fato tentaram (cf. 8,59; 10,31ss.; 11,8).
Mas agora desejam uma morte mais infame, para desmoralizar Jesus aos olhos
do povo; quem morre pendurado no madeiro é um maldito (Dt 21,23). Na
sobreposição do ano 30 ao ano 90, isso tem por resultado que Jesus morrerá
como condenado pelo Império Romano, o qual confere legitimidade à Sina-
goga, mas já não aos cristãos que são expulsos dela… No nível da narrativa,
os chefes judaicos colaboram, por sua maquinação, para que Jesus morra do
modo como ele mesmo tinha profetizado: uma morte que seja “en-altecimento”
(12,32-33; cf. 3,14). Realiza-se a “profecia” do próprio Jesus (>com. 18,9): o
que os chefes judaicos maquinaram é na realidade a execução do plano de Deus.
A pena capital
Para informação do leitor, convém dizer que não se sabe com certeza que
competência tinham as autoridades judaicas para aplicar a pena de morte
(por apedrejamento). Naquele tempo, as normas romanas mudavam segun-
do as circunstâncias. É provável que tinham o direito de executar alguém
por razões religiosas. Ou, pelo menos, linchamentos religiosos (apedreja-
mento) eram tolerados pelas autoridades romanas. Os evangelhos sinópticos
não deixam claro por que Jesus foi entregue aos romanos depois que o
Sinédrio pronunciou a pena de morte. João cita uma razão: os judeus não
tinham jurisdição capital (um texto rabínico menciona que por aquela época
tal jurisdição lhes tinha sido tirada pelos romanos). Mas João mesmo não
dá muita importância a essa explicação; o que lhe interessa é que Jesus
morreu “enaltecido”, pela crucificação, que só podia ser autorizada pelo
poder romano.
Historicamente, Jesus foi morto, crucificado, com base na jurisdição roma-
na, por “razão de Estado” (subversão). A implicação das autoridades judai-
cas provavelmente teve pouco peso, mas foi incrementada pela tradição
cristã, que também “teologizou” a maneira cruel, porém rotineira, da exe-
cução romana. Por um lado, a leitura cristã dos fatos estava inclinada a ver
na morte de Jesus a “rejeição da pedra angular pelos construtores”, a rejei-
ção do profeta por seu próprio povo (cf. Mc 12,1-12 par.). Por outro lado,
o fato da crucificação devia ter um sentido teológico, corresponder ao plano
de Deus. Assim, para Paulo, a crucificação, equiparada ao “pendurar no
madeiro” de Dt 21,23, significa o fim do regime da Lei (Gl 3,13). Para João,
realiza o “enaltecimento” do Filho do Homem (cf. 12,32-33 etc.). Nesta
ótica cristã, o poder romano intervém como instrumento, está aí “como
Pilatos no Credo” (cf. infra, 19,11).
328
18,28–19,16A
Pilatos entra novamente no pretório. Chama Jesus e pergunta, com uma 33-34
expressão que cabe bem na boca de um pagão (cf. infra): “Tu és o rei dos
judeus?” A pergunta não é inócua: em At 17,7, os cristãos são acusados
diante dos romanos por pretenderem que “há outro rei, Jesus”. Jesus respon-
de perguntando se Pilatos diz isso por si mesmo ou se outros lhe falaram a
seu respeito. Pois ele sabe que Pilatos é apenas um fantoche.
O título “rei dos judeus” soa estereofônico. Por um lado, é equivalente
de “rei de Israel”, profissão de fé messiânica na boca do “verdadeiro israelita”
Natanael (1,49; 12,13; cf. 6,14; >exc. 19,15). Por outro lado, “rei dos judeus”
é o título com o qual a suprema autoridade de Israel/Judá se apresenta no
foro internacional (entre as “nações”) desde os reis hasmoneus (>Voc.),
no século II aC. É, pois, um título para uso pagão. Na boca de Pilatos, revela
desprezo e desconfiança para com o povo judeu que espera o Messias. O
pagão Pilatos não chama o Messias de “rei de Israel”, mas “rei dos judeus”
(cf. 19,19-22).
Jesus não responde se ele é rei ou não. Não entra no jogo de Pilatos, que
entende por “rei” uma figura política, nem no dos seus inspiradores judeus,
que evocaram uma figura político-escatológica. Jesus vai falar de outra coi-
sa: a origem de sua realeza e de sua missão.
Pilatos revela quem foi seu inspirador: “Acaso sou judeu?” E, chamando 35-36
os judeus de “nação” (como eles chamavam as nações pagãs) e não de
“povo” (>com. 11,49-51), continua: “Tua nação e os sumos sacerdotes te
entregaram a mim! Que fizeste?” Jesus retruca: “Minha realeza (>Voc. Rei-
no) não é deste mundo. Se minha realeza fosse deste mundo, os meus súditos
(mesmo termo que indica os guardas dos “judeus”, 7,32.45s; 18,3.12.22;
19,2) lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus”. Nesta altura do
relato transparece a tendência de João a piorar a imagem das lideranças
judaicas — sem desculpar Pilatos. Que Messias é esse que tem medo de cair
nas mãos de sua própria “nação”? Ou que “nação” é essa? E Jesus continua:
“Ora, minha realeza não é daqui”. Evoca a distinção inelutável dos dois
poderes opostos, o de cá de baixo e o de lá de cima (cf. 8,23).
A realeza de Jesus “não é deste mundo”. Não pertence a este âmbito, que
deve desaparecer diante do “éon vindouro”, a realidade escatológica. Jesus
situa seu reino no âmbito escatológico. A própria expressão “meu reino” já
sugere isso, pois pressupõe o “enaltecimento” de Jesus, sua glorificação.
Compreende-se agora melhor por que, em Jo, Jesus não se dedica ao anúncio
do “reino de Deus”, que o povo identificava com as próprias aspirações
nacionais. Sua realeza está do outro lado do divisor das águas. Jesus declara,
pois, que sua realeza não depende do poder deste mundo, mas de Deus.
329
O LIVRO DA GLÓRIA
A autoridade que ele exerce pertence a Deus, e o que ele faz é execução da
vontade do Pai.
37-38a Pilatos, porém, não entende os harmônicos transcendentes da resposta de
Jesus. Só pensa na política do Império. “Então, tu és rei?”, pergunta. “Tu
dizes que eu sou rei”, responde Jesus. Sem desmentir a formulação de Pilatos
(pois contém parte de verdade), Jesus lhe contrapõe a própria definição de
sua missão: “Eu vim ao mundo para dar testemunho da verdade. Todo aquele
que é da verdade escuta minha voz”.
330
18,28–19,16A
anistia por ocasião das festas. Propõe soltar aquele que é chamado de “rei
dos judeus”. Proposta cínica: pretende satisfazer o pedido de anistia soltando
aquele que os interessados acabam de entregar! Evidentemente não aceitam
a proposta. Gritam: “Não este, mas Barrabás”.
João encerra o episódio com uma observação lacônica, que diz tudo:
“Barrabás era um bandido”. Trocaram o “rei dos judeus” por um “bandido”.
Segundo Mc 15,7 e Lc 23,19, Barrabás era um subversivo que cometeu
homicídio. Talvez fosse o que os sociólogos chamam um líder do “banditismo
social”, um cangaceiro. João o chama de lêistes, termo usado tanto para
designar bandidos como para guerrilheiros (cf. o historiador judeu Flávio
Josefo). Os outros lugares onde João usa o termo são 10,1.8, indicando os
que ameaçam o rebanho. Será que associa Barrabás aos líderes que, no seu
tempo, ameaçam a comunidade em nome do nacionalismo judaico?
Pilatos leva Jesus para mandar torturá-lo. Método primitivo de investi- 19,1-3
gação policial? Antes, primeiro passo para a pena capital (nos sinópticos, a
tortura precede imediatamente a crucificação; cf. Mc 15,16-20). Pilatos já
optou, o resto é conversa fiada.
João une, numa única cena, a flagelação (Mc 15,15 par.) e o escárnio (Mc
15,17-20a). Os soldados trançam uma coroa de espinhos, que colocam na
cabeça de Jesus; além de instrumento de tortura, é uma paródia do diadema
real. Vestem-lhe um manto de púrpura como usam os magistrados (ou um
manto de soldado, de cor escarlate). Aproximam-se dele e dizem: “Salve, rei
dos judeus” (cf. com. 18,33), reminiscência da preterida interrogação no Sinédrio
(cf. Mc 14,65 par.). E batem nele. Sem o querer, porém, os soldados dizem a
verdade (cf. 19,19-22): mais uma profecia involuntária (cf. 11,49-51).
Esta cena, narrada secamente, sem diálogo, mostra o cinismo do gover-
nador. Não é aquele funcionário escrupuloso como são certos magistrados
romanos descritos por Lucas (At 18,12-16). Não convém interpretar esta
cena (e as seguintes) como prova do humanismo de Pilatos, como se quises-
se salvar Jesus da condenação. No máximo, está querendo livrar-se de um
caso melindroso a qualquer preço.
Com Jesus tão maltratado assim, seria lógico ir diretamente à crucifica-
ção, mas João cria um suspense, para aprofundar mais o conflito entre a
missão de Jesus e o que “o mundo” (Pilatos) tem na cabeça.
331
O LIVRO DA GLÓRIA
332
18,28–19,16A
27. Alguns comentadores traduzem como se Pilatos mandasse Jesus ocupar o pódio, como se
Jesus fosse o juiz de verdade; mas tal tradução não se impõe.
333
O LIVRO DA GLÓRIA
15 Pilatos diz aos judeus: “Eis o vosso rei” (cf. v. 4: “eis”; v. 5: “eis o ho-
mem”). Respondem: “Fora! Leva-o para ser crucificado!” — “Vou crucificar
vosso rei?”, pergunta Pilatos. “Não temos outro rei senão César!”, respon-
dem os chefes do povo eleito de Deus (cf. 1,11). As autoridades judaicas
negam a Aliança e as esperanças do povo que aguarda o Messias, o “rei de
Israel” (como o “israelita verdadeiro”, Natanael da Galiléia, intitulou Jesus,
1,49). As autoridades abandonam o cerne da esperança de Israel, desistem do
Messias. Mas esta esperança abandonada é, na realidade, preenchida por
aquele que é o verdadeiro “rei de Israel” (cf. infra, vv. 19-22, e 1,49).
O Rei de Israel
Há três sentidos em que um judeu piedoso pode falar do “rei de Israel”:
1. YHWH, o SENHOR. Este sentido é freqüente nos Salmos, sobretudo os
salmos da realeza de YHWH (Sl 47; 93; 96–99; cf. Jz 8,23). A história
bíblica que mais inculca essa noção na cabeça do israelita é a de Samuel,
quando lhe pedem um rei. “O Senhor disse a Samuel: ‘Escuta a voz do
povo… Não é a ti que rejeitam, mas a mim; não querem mais que eu seja
rei sobre eles’” (1Sm 8,7).
2. Os reis do povo eleito, que, apesar do episódio de 1Sm 8, são eleitos por
Deus (Dt 17,15) e por ele abençoados (cf. 1Sm 9,15–10,1; 1Sm 16,1-13).
Na realidade, o judaísmo (especialmente Crônicas) considera como tais
só os reis de Israel e Judá unidos (Saul, Davi, Salomão) ou, depois, os
reis de Judá só, sobretudo Josias. 2Sm 7,11-16 narra como Deus estabe-
leceu o reinado davídico como instituição permanente em Judá. O rei
davídico é considerado por Deus como seu filho (Sl 2,7).
3. Com base na promessa de um reinado permanente, o judaísmo pós-exílico
espera um novo rei davídico para, no tempo final, no Dia do Senhor, esta-
belecer o “reinado de Deus” (“para Israel”, como dizem os discípulos em
At 1,6). Trata-se do Messias. É neste sentido que Pilatos, ironicamente,
atribui a Jesus o título de “rei dos judeus”. Como no sentido anterior, tam-
bém neste sentido “rei de Israel” podia ser equivalente de “filho de Deus”.
Com esta retomada do tema do “rei” (cf. 18,33), o drama vai para o
desenlace. Apesar de toda a discussão, Pilatos “condenará” Jesus sem moti-
vo, simplesmente porque não pode permitir que alguém se arrogue o título
de “rei” e porque ele não quer perder a amizade de César. A discussão não
significou nada em vista dos interesses práticos… Sem que João o cite,
pensamos no Sl 69,5: “os que me odeiam sem motivo, são poderosos, esses
destruidores, que me querem mal por mentira” (>exc. 19,24).
16a Pilatos “lhes” entrega Jesus para ser crucificado, o que é uma forma de
oficializar a condenação (Jo 19,16b, cf. Mc 15,15 par.). Entrega, mas a
334
19,16B-42
quem? Pelo que parece, às autoridades judaicas. Mas Pilatos fornece também
os soldados para a execução. Portanto, não abdicou de sua jurisdição, como
alguns pensam. Pilatos é quem manda. Aparentemente, pelo menos…
335
O LIVRO DA GLÓRIA
Jesus de noite; ele trouxe uns trinta quilos de perfume feito de mirra
e de aloés. 40Eles pegaram o corpo de Jesus e o envolveram, com os
perfumes, em faixas de linho, do modo como os judeus costumam
sepultar. 41No lugar onde Jesus foi crucificado havia um jardim e, no
jardim, um túmulo novo, onde ninguém tinha sido ainda sepultado.
42
Por ser dia de preparação para os judeus, e como o túmulo estava
perto, foi lá que eles colocaram Jesus.
336
19,16B-42
Com base nas indicações de tempo e lugar podemos distinguir sete ce-
nas, agrupadas em 3x2 mais 1:
I. “Levaram então Jesus…” (v. 16b):
16b-17: a “via crucis”
18-22: o letreiro da cruz
II. “Depois que crucificaram Jesus…” (v. 23):
23-24: os soldados e o sorteio das vestes;
25-27: Maria e o Discípulo Amado ao pé da cruz.
III. “Depois disso…” (v. 28):
28-30: Jesus morre e entrega o espírito;
31-37: Jesus é traspassado; testemunhos.
IV. “Depois disso…” (v. 38):
38-42: A sepultura.
Enquanto Pilatos e os chefes dos judeus desaparecem para o segundo
plano, João mostra, num díptico, os personagens ao pé da cruz. Por um lado,
os soldados dividem a roupa de Jesus — cumprindo o plano de Deus expres-
so nas Escrituras. Do outro lado, Jesus executa soberanamente seu testamen-
to: do alto da cruz, constitui sua comunidade (o lugar próprio da comunidade
é ao pé da cruz; cf. 12,26).
Na cena da morte, Jesus declara consumada sua obra e “entrega o espí-
rito”. Completa-a a cena do lado traspassado. A pedido dos chefes judaicos,
Pilatos autoriza que se quebrem as pernas dos crucificados, para que possam
ser retirados da cruz antes do grande sábado. Mas como Jesus já está morto,
não lhe quebram as pernas, e sim abrem-lhe o lado, cumprindo-se assim
duplamente as Escrituras.
A última cena é a sepultura. Os discípulos José e Nicodemos levam Jesus
e o põem na sepultura nova, o que se tornará um tema estruturante no cap.
20. O corpo de Jesus passa do aparente poder dos judeus para a comunidade
dos fiéis.
337
O LIVRO DA GLÓRIA
so. Pode significar que (os soldados) o levam embora. Mas como em 18,28
os que “conduzem” Jesus a Pilatos parecem ser principalmente “os judeus”
(não podem entrar em casa de pagão!), também aqui o sujeito pode ser o
mesmo. E em vez de usar o verbo “conduzir” (usado pelos sinópticos, Mc
15,20 par.), João usa o mesmo verbo que em 1,11, no sentido de “os seus não
o receberam”. Aqui “recebem”-no, porém não no sentido da fé, mas num
sentido bem contrário! Ironia joanina?
Jesus carrega a trave da cruz, literalmente, “para si” ou “por si”: mesmo
neste instante ele continua soberano (>exc. 6,11). Normalmente os condena-
dos estavam tão enfraquecidos que precisavam de ajuda (cf. Mc 15,21, Si-
mão de Cirene). O Jesus joanino, porém, é aquele que entrega livremente a
sua vida (cf. 10,17-18; >exc. 6,11).
Jesus sobe para o lugar de execução, um pequeno morro, fora dos muros
da cidade, conhecido como Caveira, em hebraico/aramaico Gólgota (e nas
línguas latinas: Calvário). Lá é pregado na cruz, entre dois outros condena-
dos, de acordo com a tradição sinóptica, sem que João lhes dedique interesse
peculiar (cf. Mc 15,20.27 par.).
19-22 João agora focaliza aquilo que acontece no segundo plano da narrativa,
mas ocupa o primeiro plano na teologia. Numa nota retrospectiva (flashback),
conta que Pilatos mandara escrever um titulus, ou seja, um letreiro com a
razão da execução: “Jesus, o nazoreu, Rei dos Judeus”. Foi também com
esse título, “rei dos judeus”, que os soldados caçoaram de Jesus (cf. 19,3),
a partir de então revestido com o manto purpúreo e coroado com espinhos.
Ironia: em Mc 15,26 o letreiro é chamado “inscrição da culpa” (= motivo de
condenação). Ora, João mostrou tanto no interrogatório judaico como no de
Pilatos que motivo de condenação não houve. Em vez de motivo de conde-
nação, chama o letreiro de titlos (do latim titulus), protocolo de publicação
para o mundo! E (só João, à diferença dos sinópticos) completa: o letreiro
podia ser lido por muita gente — pois o Gólgota ficava pertinho do muro da
cidade — e estava escrito em três línguas: hebraico/aramaico (língua dos
judeus); grego (língua mundial dos soldados e dos negociantes) e latim (lín-
gua administrativa do Império Romano). Isso significa que todo mundo podia
ler o título: a messianidade de Jesus é proclamada em todas as línguas
necessárias… A teologia cristã bem cedo transformará neste sentido o Sl
96,10: “O Senhor reina do madeiro” (Justino, Tertuliano, tradição latina).
Não tendo jurisdição própria nesta crucificação (cf. supra, v. 16a), os
sumos sacerdotes “dos judeus” (ironia com o título que eles vão criticar)
protestam junto a Pilatos: “Não escrevas: ‘O Rei dos Judeus’, e sim ‘Ele
disse: Eu sou o Rei dos Judeus’!” — “O que escrevi, escrevi” (= “eu deixo
338
19,16B-42
Pelos termos “por um lado… por outro…”, João opõe aos soldados um 25
outro grupo que se encontra ao pé da cruz, o grupo das mulheres: “sua mãe,
a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas(,) e Maria Madalena”: três ou quatro,
conforme se interpreta “Maria de Cléofas” como aposto a “a irmã de sua
mãe” ou como outra personagem.
339
O LIVRO DA GLÓRIA
55 40 49 25
Grande número de Estavam ali também Todos os conhecidos Junto à cruz de Je-
mulheres estava ali, algumas mulheres olhan- de Jesus, bem como as sus estavam de pé sua
olhando de longe. Elas do de longe; entre elas mulheres que o acom- mãe e a irmã de sua
haviam acompanhado Maria Madalena, Maria, panhavam desde a Ga- mãe, Maria de Cléo-
Jesus desde a Galiléia, mãe de Tiago Menor e liléia*, ficaram à distân- fas(,) e Maria Mada-
prestando-lhe serviços. de Joses, e Salomé. cia, olhando essas coi- lena. 26Jesus, ao ver
56 41
Entre elas estavam Quando ele estava na sas. sua mãe e, ao lado
Maria Madalena, Maria, Galiléia, estas o seguiam dela, o discípulo que
mãe de Tiago e de e lhe prestavam serviços. ele amava, disse …
José, e a mãe dos fi- Estavam ali também (*Maria Madalena, Joa-
lhos de Zebedeu. muitas outras mulheres na, Suzana e outras [cf.
que com ele subiram a Lc 8,3]. Cf. Lc 24,10: Ma-
Jerusalém. ria Madalena, Maria
mãe de Tiago e Joana.)
26-27 Jesus enxerga as duas pessoas que na vida lhe foram mais próximas, a
mãe e o Discípulo Amado (que não foi mencionado no v. 25). Diz à mãe:
“Mulher (tratamento neutro; cf. 2,4), eis o teu filho”, e ao discípulo: “Eis
a tua mãe”. O sentido do gesto depende do sentido que se dá a “eis” (gr.
ide): simplesmente indicativo (“este/esta é…”) ou indutivo (“recebe…”).
No sentido indicativo, Jesus indicaria que seu lugar no mundo agora é
ocupado pelo Discípulo Amado (e pela comunidade que ele representa). O
discípulo está junto à mãe; e esta encontra seu filho na comunidade.
A comunidade é como se fosse Jesus continuando a atuar na terra. Enten-
dendo-se “eis” no sentido indutivo, Jesus estaria fazendo um gesto
testamental: estaria confiando o Discípulo à mãe e vice-versa. É muito co-
mum moribundos expressarem disposições sobre a sepultura (cf. Gn 49,28-31),
340
19,16B-42
confiarem um ente querido a outra pessoa para cuidar dele ou dela, e outras
disposições análogas28.
Neste sentido, pode-se dizer que 19,25-27 é uma cena de revelação.
Jesus revela quem é agora o portador do plano do Pai: o Discípulo Amado,
que é posto em referência à “mãe”: “A partir daquela hora” (a hora de
Jesus?), o discípulo toma a mãe de Jesus consigo (lit.: “para o que é seu”,
talvez a comunidade, cf. At 1,14; 12,12: a mãe de Jesus na comunidade de
Jerusalém; cf. “o que era seu” em 1,11).
Assim, a mãe de Jesus está no início (2,1-5) e na conclusão (19,25-27)
da obra de Jesus. Devemos ver isso na perspectiva ampla do evangelho todo.
O papel histórico-salvífico da “mãe” é introduzir Jesus no mundo, inseri-lo
na humanidade. Agora seu lugar não fica vazio, mas é ocupado pelo Discí-
pulo, representante dos discípulos que devem realizar obras maiores do que
as realizadas por ele na sua limitação histórica (cf. 14,12). Na hora da
“finalização” da obra de Jesus (v. 30) e da entrega da obra, não só ao Pai, mas
também aos seus, o ponto de referência é novamente, e mais do que nunca, a
“mãe”, aquela que marcou o primeiro sinal da glória de Jesus (2,1-5)29.
28. Conforme Ex 20,12, os filhos devem cuidar dos pais: Jesus estabeleceria, pois, o Discípulo
Amado como seu representante/procurador — só varões podem agir com força legal.
29. Em torno desta cena surgiram muitas interpretações simbólicas. Retenhamos duas: (1)
Maria, Mãe da Igreja; (2) Maria, novo Povo de Deus. — Quanto a (1): se o discípulo representa
a comunidade, o fato de ele ser confiado como filho à mãe pode conotar que Maria exerce junto
à comunidade um papel semelhante ao que exerceu junto a Jesus. Para nós, esse papel parece
consistir em ela ter dado Jesus ao mundo. Ela deu ao mundo não somente Jesus, mas também a
comunidade de seus discípulos e irmãos (como serão chamados a partir da glorificação, cf. 20,17),
da qual ela faz parte (cf. At 1,14). Mas importa observar que o texto é antes de mais nada
cristológico: fala em primeiro lugar de Jesus e da continuação de sua missão. — Quanto a (2): o
sentido de “novo Povo de Deus” ou “nova Sião” é sugerido pela apóstrofe “mulher”, aqui e em 2,4.
Segundo este simbolismo, em 2,4, a “mulher” representando Israel provoca o primeiro sinal mes-
siânico; e aqui, na hora da glória, transparece a imagem da Jerusalém gloriosa, a Esposa dos textos
escatológicos. O fato de este simbolismo se encontrar em Ap 12–14 fala em seu favor, embora aí
a referência à mãe de Jesus não seja explícita; a Mulher é o povo que dá à luz o Messias.
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O LIVRO DA GLÓRIA
panos de linho (ver adiante, 20,1). Além da quantidade principesca dos aro-
mas, chama a atenção o fato de não se tratar propriamente de bálsamo para
mortos, e sim de perfumes para vivos, para o “filho do rei”, como mostram,
por exemplo, Ct 3,6 e Sl 45,9. O enterro acontece segundo o costume dos
judeus (v. 40b). João transforma o sepultamento com as cores do simbolismo
messiânico-nupcial (cf. 2,1-11; 12,1-8). Jesus é aquele que vive…
344
19,16B-42
pode basear-se no caráter informal desse enterro, descrito com traços bastan-
te contraditórios (improvisação versus aromas régios). Enquanto segundo
Mc 15,47 as mulheres que seguiram Jesus são testemunhas do sepultamento
(“observaram onde o puseram”), João não menciona isso. A frase de Maria:
“não sei onde o puseram” vai tornar-se o refrão da história que culminará na
manifestação do Ressuscitado.
Voltando o olhar para trás, vemos que 19,40-42 (“tomaram... jardim…
puseram Jesus”) marca o ponto final de um trajeto iniciado na primeira
seqüência (18,1: “saiu... para um jardim”; 18,12: “tomaram consigo Jesus...
conduziram...”), lembrando ainda o início da terceira seqüência (19,16b:
“tomaram consigo Jesus”). O texto de 19,41-42 (“jardim... ali puseram Je-
sus”) parece assim indicar o ponto de chegada da movimentação da qual
Jesus, aparentemente, foi o objeto. É seu repouso, seu sábado… No capítulo
seguinte, porém, esse lugar de repouso se transformará em cenário de nova
manifestação de vida.
345
O LIVRO DA GLÓRIA
ícones da comunidade, que não fica abalada, pois nela veio ao mundo
e por ela será proclamado no mundo aquele que amou até o fim,
dando um rosto a Deus, que ninguém jamais viu. Esta é a realidade
profunda da perseguição e da exclusão hoje. Quem está ao pé da cruz,
não pertence ao “mundo”, e, está nele, é como testemunha da vida
nova, que vence o mundo.
B. A Ressurreição (20,1-29)
Para João, morte e ressurreição não são realidades estanques, mas dois
aspectos inseparáveis da mesma realidade, a glorificação de Jesus. A bre-
víssima transição temporal em 20,1 reforça a impressão de unidade narrati-
va. João não apenas conserva a unidade que o relato da Paixão e Ressurrei-
ção já possuía na tradição (cf. os sinópticos), mas a reforça mediante a dupla
narrativa de Jesus mostrando suas chagas (20,19-29): o ressuscitado é exa-
tamente aquele que foi morto.
Os relatos pascais de João se dividem em dois dípticos, cada qual com-
posto de duas cenas.
• 20,1-18: comporta as narrativas entrelaçadas da visita ao sepulcro vazio
e a aparição a Maria Madalena, que é a personagem de ligação das
duas cenas.
• 20,19-29: comporta as duas aparições, em dois domingos sucessivos,
aos Onze sem e com Tomé.
Nos dois dípticos, a segunda cena focaliza de modo especial um perso-
nagem implicado na primeira. O primeiro díptico tem como quadro o “jar-
dim” onde Jesus foi sepultado, o segundo, o local de reunião da comunidade,
lembrando o lugar da ceia. Assim, o cap. 20 retoma de forma cruzada os
grandes cenários dos capítulos 18–19 e 13–17, respectivamente.
A tradição assumida por João. Nos diversos relatos reconhecem-se
motivos da tradição sinóptica, ao lado de elaborações próprias do quarto
evangelista:
• no início (20,1), Maria Madalena é descrita como uma das mulheres do
relato de Mc 16,1-2, e fala inclusive na 1ª pessoa do plural (v. 2), mas
depois, a reelaboração joanina faz com que as outras mulheres não
sejam mencionadas;
• Maria correndo aos apóstolos (20,2) lembra o “correr” das mulheres
em Mt 28,8;
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túmulo novo, tirou o corpo: “Se foste tu que o levaste, dize-me onde o
colocaste, e eu irei buscá-lo” (para garantir-lhe sepultura digna). Não reco-
nhece o Senhor, que não depende de manipulações humanas, mas se desloca
livremente para ir ao encontro daqueles que ama. Embora cheia de amor,
está ainda na fase do mal-entendido. A mera ocorrência da ressurreição não
basta para o conhecimento do mistério que está acontecendo. Jesus ainda não
subiu para dar o Espírito da Verdade.
Então, Jesus toma a iniciativa (>exc. 6,11) para romper o círculo da não- 16
compreensão. Esta ruptura manifesta a irrupção do tempo pascal, o tempo da
alegria que se contrapõe ao chorar (cf. 16,20.22). Jesus já não chama Maria
anonimamente de “mulher”, mas pronuncia seu nome, na língua de ambos:
“Mariame” (João conserva o aramaico no texto grego!): “O pastor chama as
ovelhas pelo nome e elas lhe reconhecem a voz...” (Jo 10,3.27). Inversão da
cena de Lázaro: aí Jesus, ainda com vida “terrena”, chama pelo nome aquele
que morreu; aqui, ao entrar na glória, aquele que morreu chama pelo nome
aquela que ainda não conhece o mistério do Senhor ressuscitado.
Agora, Maria exclama, na mesma língua: “Rabbûni” (“meu grande
Mestre”, “meu Mestre querido”). Em João, os discípulos chamam Jesus de
rabbi, “meu Mestre”. Em Jo 1,38 os discípulos seguem Jesus, que lhes
pergunta: “Que procurais?”, e eles respondem “Mestre (rabbi)…”. Temos,
assim, uma inclusão entre o início do evangelho e o fim pascal; a busca de
Jesus chega ao desenlace (>com. v. 14b).
O v. 17 pode ser comparado com a cena de Mt 28,9-10 (que provavelmen- 17
te serviu de modelo). Mt 28,9-10 transforma a estranha notícia final de Mc
16,8, que encerra a narrativa dizendo que as mulheres fugiram do túmulo sem
falar nada para ninguém (16,9-20 é acréscimo ulterior), Narra uma aparição de
Jesus às mulheres em que Jesus pessoalmente repete a ordem, dada pelo anjo
no sepulcro, de fazer os discípulos voltarem à Galiléia (cf. Mt 28,7). Jo 20,17
conta que Maria, em respeitosa afeição, se joga aos pés de Jesus, abraçando-
os, como as mulheres em Mt 28,9-10. Mas as palavras em que Jesus exprime
a mensagem a transmitir aos discípulos são diferentes: “Não me segures, pois
ainda não voltei para o Pai. Vai antes dizer aos meus irmãos que estou subindo
ao meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (vv. 17-18). Maria percebe
a aparição ainda na ótica de antes da morte e ressurreição de Jesus: venera-o
como dantes, como o “grande Mestre” presente junto dela na terra. Jesus
recusa esse “segurar”, mediante o simbolismo “cima/baixo”, costumeiro no
Quarto Evangelho. O ressuscitado se manifesta no âmbito aqui “de baixo”,
porém não para inscrever-se novamente neste âmbito, mas para mostrar que é
plenamente “de cima”. Por isso, não pode ser segurado.
351
O LIVRO DA GLÓRIA
As aparições são sinais (veja 20,30) destinados para aqui embaixo; são,
portanto, passíveis de mal-entendido, como a primeira reação de Maria de
fato demonstra. Como os demais “sinais”, as aparições pascais pertencem à
esfera das manifestações de Jesus-Palavra feita carne, à história terrena,
fundamental e fundante, porém passageira. Aquele que aparece não perma-
nece para sempre, como também não foi permanente sua “vinda em carne”.
E para a comunidade futura, as aparições, como a vida terrena, deixam de
ser objeto de constatação direta (20,29). Transformam-se em tradição da fé
(20,31). O “aparecente” desaparece: não está, sem mais, na mesma condição
do Senhor glorioso. “É bom para vós que eu vá embora, porque, se não for,
o Paráclito não virá a vós” (Jo 16,7). Jesus deve percorrer seu trajeto até o
fim, até sua acolhida na glória que ele tinha junto ao Pai antes da criação do
mundo (cf. Jo 17,5). Só então seu “enaltecimento” ficará completo. Objeti-
vamente, Jesus já foi “enaltecido” na cruz (12,32-33!), mas subjetivamente
deve-se realizar para os discípulos também o outro lado da moeda: a exaltação
na glória. A partir daí é que o Espírito de Jesus e do Pai pode tomar o lugar
do Jesus terrestre, o Paráclito pode vir sobre os fiéis para comunicar-lhes os
dons de Deus. É o que João vai contar logo mais (Jo 20,19-23). Talvez esteja
sugerindo que Maria entendeu mal o “pouco tempo” (cf. 14,18-19) em que
não mais se verá Jesus antes de vê-lo de novo, como se a aparição já fosse
a presença definitiva, enquanto, na realidade, Jesus ainda não subiu!
A aparição do Ressuscitado não é idêntica à sua glorificação; é o sinal
desta. O diálogo de Jesus com Madalena é uma cena didática, que mostra a
distinção entre ressurreição e “enaltecimento”. A fonte do dom escatológico
do Espírito é o enaltecimento (7,39), não a aparição do Ressuscitado. Al-
guém pode se apegar ao Jesus da ressurreição e esquecer o Jesus do
enaltecimento! Maria não deve “segurá-lo”. A ressurreição não é uma manei-
ra para Jesus continuar entre nós como dantes. Se fosse só isso, não preci-
sava ter morrido. A ressurreição é “sinal” de que Jesus, em virtude de sua
irrevogável morte por amor fiel, é agora o Senhor que vive: participa da
glória de Deus e derrama sobre nós os dons de Deus: a paz, o Espírito, a
remissão do pecado (cf. 20,19-23). Querer segurar o Ressuscitado seria como
ficar olhando o sinal verde só porque é bonito, em vez de avançar; seria
olhar para o dedo e não para aquilo que ele aponta.
Em vez de segurar Jesus, Maria deve anunciar à comunidade que Jesus
“sobe” à glória do Pai. O verbo “subir” faz pensar não só na trajetória de
Jesus (descida-subida, cf. 3,13; >exc. 17,26), mas também na entronização
(subir ao trono). Pela primeira vez no Evangelho de João, Jesus chama a
comunidade de “meus irmãos” e ao Pai ele chama “meu Pai e vosso Pai, meu
352
20,1-18
30. Pode-se ver aqui uma oposição irônica aos “irmãos” carnais de Jesus em 7,3.5.10, aos
quais Jesus diz que, naquele momento, ele não “sobe”.
353
O LIVRO DA GLÓRIA
No cenáculo (20,19-29)
19
I — Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, os discípulos esta-
vam reunidos, com as portas fechadas por medo dos judeus. Jesus
entrou e pôs-se no meio deles. Disse: “A paz esteja convosco”. 20Dito
isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos, então, se alegra-
ram por verem o Senhor. 21Jesus disse, de novo: “A paz esteja convos-
co. Como o Pai me enviou também eu vos envio”. 22Então, soprou
sobre eles e falou: “Recebei o Espírito Santo. 23Se perdoardes os
pecados de alguns, serão perdoados; se os retiverdes, ficarão retidos”.
24
II — Tomé, chamado Gêmeo (Dídimo), que era um dos Doze, não estava
com eles quando Jesus veio. 25Os outros díscipulos contaram-lhe:
“Vimos o Senhor!” Mas Tomé disse: “Se eu não vir a marca dos
pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos,
se eu não puser a mão no seu lado, não acreditarei”.
26
Oito dias depois, os discípulos encontravam-se reunidos na casa, e
Tomé estava com eles. Estando as portas fechadas, Jesus entrou, pôs-
se no meio deles e disse: “A paz esteja convosco”. 27Depois disse a
Tomé: “Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua
mão e coloca-a no meu lado. Não sejas incrédulo, mas crê!” 28Tomé
respondeu: “Meu Senhor e meu Deus!” 29Jesus lhe disse: “Creste
porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem ter visto!”
354
20,19-29
355
O LIVRO DA GLÓRIA
Mt 28,19). Jesus prometeu aos discípulos que fariam obras até maiores do
que ele (14,12). Mandou-os “ir e produzir fruto” (15,16). E no seu “testa-
mento”, confiou-lhes a missão ao mundo que o Pai lhe tinha confiado (17,18).
A missão de Jesus estava fundamentada na incumbência do Pai; a deles, na
incumbência de Jesus, que constitui com o Pai uma unidade. A missão é
portanto a mesma (v. 21).
Na despedida, Jesus tinha falado da missão dos discípulos (cf. 15,16).
Agora chegou o momento: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”.
Com um gesto que lembra a ação de Deus na criação, Jesus sopra (lit.:
“insufla”) sobre eles (cf. Gn 2,7), comunicando-lhes “espírito” (sem o artigo)
da parte de Deus: “Recebei (o) Espírito Santo!” Não é um simples carisma
que recebem, algo que vem acrescentar-se à sua vida. É sopro divino, vida
nova que recebem, como sugere a proximidade da imagem do “soprar/insu-
flar” com Gn 2,7 (cf. Sb 15,11) e Ez 37,3-5. É uma nova criação (cf. Sl
104,30). Sua vida tem outra força que antes.
“Se perdoardes os pecados de alguns, serão perdoados; se os retiverdes,
ficarão retidos”: o Espírito é dado à comunidade para que ela continue fa-
zendo o que João Batista anunciou como missão de Jesus, sobre o qual o
Espírito permanece e que o derrama (batiza com o Espírito: 1,31-33). Essa
missão é: tirar o pecado do mundo (20,23, formando inclusão literária com
1,29.36). A primeira qualificação de Jesus em João era: o “Cordeiro que tira
o pecado do mundo” (1,29). Agora, ele dá seu Espírito aos discípulos para
que, ocupando seu lugar no mundo, participem dessa missão. E isso, com
garantia divina. “[os pecados] … serão perdoados [ou]… serão mantidos” (o
uso da voz passiva é “teológico”: significa que o agente é Deus). Pelo con-
texto, João parece pensar na prática intra-eclesial do perdão (cf. Mt 18,18;
> exc. embaixo), mas nada impede que ampliemos a perspectiva dessa mis-
são — tirar o pecado do mundo. Assim como as obras realizadas por Jesus
eram a obra do seu Pai (14,10), assim também a obra dos discípulos. Quando
tiram o pecado do mundo, Deus endossa a obra deles. E o Mediador disso
é o Espírito.
Para essa missão é necessária a assistência do Espírito. A promessa do
Espírito se realiza já, pois faz parte da comunhão entre o Senhor glorioso e
os seus que estão no mundo. É agora o tempo do conhecimento “plenificado”
da verdade (16,13, e cf. 7,39) — plenificado no tempo da Igreja e com
relação à sua situação. Inaugura-se a presença do “Espírito da Verdade”
(14,17), que ensina tudo (14,26) e dá testemunho de Jesus (15,26), o Espírito
que expõe o mundo à luz verdadeira (16,7-11). O que Jesus, ao comentar a
inimizade do mundo, prometeu na véspera da cruz realiza-se agora.
356
20,19-29
Perdoar os pecados
Entenda-se bem o “poder” conferido no v. 23. Não significa que a comunidade
pode decidir arbitrariamente se um pecado será “demitido” ou “segurado”.
Trata-se de uma obra de Deus que a comunidade realiza, assim como Jesus
realizou a obra de seu Pai (cf. supra). Deus respalda a obra da comunidade.
O pecado que a comunidade, guiada pelo Espírito, perdoa, Deus o perdoa;
e o pecado cuja permanência ela deve denunciar, Deus o continua acusando.
Ou seja, a obra santificadora da comunidade se identifica com a do seu Senhor,
que está na glória de Deus. O dom do Espírito é visto como continuação da
obra de Cristo pelos seus (cf. 16,15). Será que João pensou aqui somente na
comunidade em geral ou também num ministério específico do perdão dos
pecados? A resposta a esta pergunta exige um exame mais amplo das institui-
ções eclesiais no Quarto Evangelho (>Intr. § 5.1:7). De toda maneira, compre-
endemos hoje melhor que a atuação ministerial na Igreja — se é essa que João
visa — é a atuação da Igreja como comunidade, por meio de seus ministros.
A comparação com Mt 16,19 (“Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo
o que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que desligares na terra será
desligado nos céus”) e 18,9 (“Em verdade vos digo, tudo o que ligardes na
terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no
céu”) nos leva a uma imagem usada também no Apocalipse de João: as
chaves (cf. Ap 3,7-8: “Assim fala o Santo, o Verdadeiro, que tem a chave de
Davi, aquele que abre e ninguém fecha, e que fecha e ninguém abre: ‘Conhe-
ço a tua conduta. Vê, eu abri à tua frente uma porta e ninguém a poderá
fechar’”). Esta imagem é geralmente entendida como apontando o poder de
jurisdição na Igreja, mas isso é uma interpretação estreita demais, ligada à
teologia altamente jurídica da Idade Média. Na realidade, refere-se à comu-
nidade salvífica que é a nova Jerusalém do Apocalipse. O poder das chaves
da cidade de Davi significa a administração da casa de Davi (cf. Is 22,22). O
contraste entre duas ações opostas (abrir/fechar) é uma maneira semítica para
significar a totalidade de sua atuação. A prática da comunidade que, na força
do Espírito vivificador, reconcilia seus membros com Deus (ou eventualmente
os coloca diante da permanência de sua culpa) é endossada por Deus. Melhor;
é a prática do Reinado de Deus (para falar numa terminologia à qual estamos
acostumados, mas que João não usa). Em 1Jo 1,7-9; 2,12 o perdão do pecado
por (causa de) Cristo aparece como um ponto central na vida eclesial. Jo
20,22-23 coloca a base para isso. E talvez haja no v. 23 uma alusão aos
pecados que não levam à morte e aos que levam à morte, cf. 1Jo 5,16-17.
O que o Ressuscitado comunica à comunidade é a capacidade de incluir
efetivamente os que se entregam à obra do amor que a Ressurreição “endos-
sa” (o “enaltecimento”), como também o discernimento daqueles que não
comungam com essa obra.
357
O LIVRO DA GLÓRIA
358
20,19-29
359
O LIVRO DA GLÓRIA
e apalpado (1Jo 1,1-3). Tudo isso se refere ao privilégio recebido pelas teste-
munhas da primeira hora, pertencendo ou não ao círculo dos Doze — privi-
légio para este momento fundador, mas não para os missionários dos tempos
posteriores. Este “ver” é ad hoc, não ad aeternitatem. Serve para sua missão
de anunciar a ressurreição e de formular a fé pascal, como Tomé faz de modo
exemplar. Mas a bem-aventurança é para os que crerão sem este privilégio!
A fineza literária de João se mostra, mais uma vez, num detalhe que
poucos perceberam: não diz que Tomé de fato chegou a apalpar Jesus, embora
convidado para tal. Isso combina perfeitamente com a lógica do “não segu-
rar” (cf. v. 17). A visão do ressuscitado é mero sinal. Basta ver o sinal
enquanto sinal — e é a isto que Jesus atribui a fé de Tomé. Apalpar seria
apegar-se ao sinal. Antes que censurar, o v. 29a aprova quem crê pelo sinal
que vê, mas essa aprovação pertence ao tempo do Jesus terreno e já foi
anunciada no início do evangelho, no caso de Natanael. Quando crê por ter
visto, Tomé não difere essencialmente de Natanael (1,50)! Agora, porém,
começa o tempo dos que não viram e contudo creram. Isto, sim, pertence ao
tempo do dom escatológico, é bem-aventurança.
A fé não é dada somente às testemunhas oculares da pregação, morte e
ressurreição de Jesus — especialmente o Discípulo Amado. “Ver e crer” (cf.
20,9) não é privilégio, mas missão. As gerações seguintes deverão acreditar
pela palavra dos que foram testemunhas desde o início (cf. 17,20; 15,27). E
é por isso que o evangelista escreveu seu evangelho (20,30-31). Em vez de
exigir um contato palpável para crer, Tomé deveria ter acreditado na palavra
dos transmissores autorizados, as testemunhas oculares da primeira aparição:
os outros discípulos. A cena dos vv. 24-29 descreve a sucessão das gerações:
começa com a geração das testemunhas oculares, que precisam de sinais pal-
páveis para transmiti-los às gerações que devem crer sem ter visto (v. 29b).
Para consolo dos que devem crer sem ter visto, citamos um texto rabínico
a respeito dos prosélitos (= convertidos do paganismo ao judaísmo): “O
prosélito vale mais para Deus do que todos os israelitas que estavam presen-
tes no Sinai. Pois estes, se não tivessem testemunhado trovão, chamas, luz,
tremor da montanha e som da trombeta, não teriam aceitado as normas de
Deus. Mas o prosélito, que viu nada disso, vem, entrega-se a Deus e aceita
as normas de Deus. Há alguém que seja mais valioso que tal homem?” (Rabi
Simeão ben Lakish). E o texto de 1Pd 1,8-9: “Sem terdes visto o Senhor, vós
o amais. Sem o verdes ainda, credes nele. Isto será para vós fonte de alegria
inefável e gloriosa, pois obtereis aquilo em que acreditais: a vossa salvação”.
(A Epístola apócrifa de Tiago, 3,13ss., encontrada em Nag-Hammadi, vai
mais longe: “Ai dos que (só) viram o Filho do Homem. Bem-aventurados
360
20,19-29
serão os que não o viram, não falaram com ele, não ouviram nada dele”; isso
já é teologia gnóstica, dispensando até o testemunho sobre a obra terrena de
Jesus… Não é este extremo que João propõe, como veremos em 20,30-31!)
361
O LIVRO DA GLÓRIA
362
20,30-31
terem visto. Eis a nova Escritura de nossa fé. E, reatando com o prólogo de
seu evangelho, João conclui: aqueles que por esta nova Escritura acreditam em
seu nome (= de Jesus) recebem a vida que nasce de Deus (cf. 1,12-13).
*
Jo 20,30-31 fala de “sinais”, termo que não ocorre desde o epílogo do 30-31
“livro dos sinais”, 12,37-43. Serão somente os da vida pública, do “livro dos
sinais” (Jo 1–12); ou será que a ressurreição deve ser considerada como o
sinal por excelência (em 2,18-21, o pedido de um sinal é respondido com
uma referência à ressurreição)? Pouco importa, todos eles são apenas rela-
tivos (cf. 20,29). Por isso basta uma seleção representativa31.
O termo “sinal” não indica aqui em primeiro lugar alguns gestos de
Jesus, mas sim o modo como é vista a obra de Jesus. O evangelista recon-
sidera toda a obra de Jesus, inclusive as aparições pascais, no seu aspecto
de sinais. Explica qual é o sentido verdadeiro da obra, da vida, morte e
ressurreição de Jesus vistas como sinais: levar à fé em Jesus Messias e Filho
de Deus. Vimos, nos doze primeiros capítulos, que a visão dos sinais não
levava a isso, mas, pelo contrário, a percepções deformadas (p. ex., 6,14-16)
ou, no máximo, provisórias. Agora, depois do “enaltecimento”, a compreen-
são da obra de Jesus em termos de “sinais” pode ser corrigida.
A expressão “muitos outros sinais” engancha naquilo que acaba de ser
narrado: o episódio de Tomé e as aparições pascais. Implicitamente, também
estas são interpretados como “sinais”, com a costumeira ambivalência que
João coloca neste termo. Os sinais servem para credenciar a palavra de Jesus
como quem fala em nome de Deus. Neste sentido, os sinais têm valor pro-
visório; são livres e não podem ser urgidos como condição para crer. Mas
eles são também símbolos do dom de Deus que Jesus é. Neste sentido, a
manifestação de Jesus como Senhor que vive pode ser vista como sinal. Em
que sentido a memória escrita dos sinais de Jesus, ou seja, de sua obra vista
como manifestação de sua missão e valor divinos, será alimento de fé (20,31)
para os leitores, que acabam de ser felicitados por crerem sem ver (20,29)?
No sentido de serem símbolos daquilo que Jesus é e sempre será para os que,
na fé, se entregaram a ele. Tanto a vida histórica de Jesus como a ressurrei-
ção não causam mecanicamente a fé (12,37!), mas lhe oferecem o inesgotá-
vel conteúdo da manifestação de vida divina. Os sinais, toda a vida de Jesus
31. Houve quem visse em 20,30-31 a continuação original de 12,37-43. Seria o encerramento
de um documento anterior ao evangelho, narrando somente os sinais de Jesus, sem a história da
Paixão: a “fonte (ou documento) dos sinais (semeia)”. Mas o estilo de 20,30-31 é o mesmo do autor
que se reconhece no evangelho todo e refere-se ao escrito todo.
363
O LIVRO DA GLÓRIA
O que João colocou por escrito — a narrativa de Jesus — serve para que
continuemos na fé de que Jesus é o Messias enviado por Deus e o Filho dele,
no sentido intenso e exclusivo deste termo que o evangelho veio iluminar.
Não se trata da fé intelectual num dogma teórico, mas de uma atitude de
adesão vital. A vida e história de Jesus mostra Deus que se manifesta.
À luz do evangelho todo, crer que Jesus é o Messias e o Filho de Deus
significa fixar o olhar em Jesus de Nazaré para ver como Deus é e o que ele
espera de nós. E então importa lembrar o que vimos em Jesus: a alegria da
festa nupcial com a abundância do melhor vinho, as curas de diversos tipos,
a partilha do pão, a ressurreição do amado... sinais de vida, manifestação da
glória do Deus vivo.
“Para que, crendo, tenhais vida em seu nome.” “Crendo” pode ser
traduzido também por “nesta fé”, sugerindo a fidelidade permanente (cf.
“creiais”, em v. 31a). O abraçar a fé é renascer, receber vida (cf. Nicode-
mos, ou 1,12-13). O permanecer nela é ter vida! “Em seu nome”, i.é, em
virtude de sua pessoa, à qual estamos unidos formalmente pela profissão
de fé e pelo batismo em seu nome, mas sobretudo, de fato, pela vida digna
de seu nome.
364
20,30-31
365
EPÍLOGO: A HISTÓRIA CONTINUA
(21)
366
21,1-23
13
Jesus aproximou-se, tomou o pão e deu a eles. E fez a mesma coisa
com o peixe. 14Esta foi a terceira vez que Jesus, ressuscitado dos
mortos, apareceu aos discípulos.
II — 15Depois de comerem, Jesus perguntou a Simão Pedro: “Simão, filho
de João, tu me amas mais do que estes?” Pedro respondeu: “Sim,
Senhor, tu sabes que sou teu amigo”. Jesus lhe disse: “Cuida dos
meus cordeiros”. 16E disse-lhe, pela segunda vez: “Simão, filho de
João, tu me amas?”. Pedro respondeu: “Sim, Senhor, tu sabes que
sou teu amigo”. Jesus lhe disse: “Apascenta as minhas ovelhas”.
17
Pela terceira vez, perguntou a Pedro: “Simão, filho de João, tu és
meu amigo?” Pedro ficou triste, porque lhe perguntou pela terceira
vez se era seu amigo. E respondeu: “Senhor, tu sabes tudo; tu sabes
que eu sou teu amigo”. Jesus disse-lhe: “Cuida das minhas ovelhas.
18Amém, amém, eu te digo: quando eras jovem, tu mesmo amarravas
teu cinto e andavas por onde querias; quando, porém, fores velho,
estenderás as mãos, e outro te porá o cinto e te levará para onde não
queres ir”. (19Disse isso para dar a entender com que morte Pedro
iria glorificar a Deus.) E acrescentou: “Segue-me”.
20
III — Voltando-se, Pedro viu que também o seguia o discípulo que Jesus
mais amava, aquele que na ceia se tinha inclinado sobre seu peito
e perguntado: “Senhor, quem é o traidor?” 21Quando Pedro viu
aquele discípulo, perguntou a Jesus: “E este, Senhor?” 22Jesus res-
pondeu: “Se eu quero que ele permaneça até que eu venha, que te
importa? Tu, segue-me”. 23Por isso, divulgou-se entre os irmãos que
aquele discípulo não morreria. Ora, Jesus não tinha dito que ele não
morreria, mas: “Se eu quero que ele permaneça até que eu venha,
que te importa?”
367
EPÍLOGO: A HISTÓRIA CONTINUA
32. O número de sete discípulos pode também ser uma reminiscência histórica. Vimos que Jo
1–20 raramente se refere aos Doze: só na multiplicação dos pães e na história da Paixão, textos
fortemente marcados pela tradição principal da Igreja primeva. Mas a configuração da liderança na
Igreja primeva pode ter conhecido outros momentos, em que talvez houve um grupo de sete — em
parte os mesmos dos que, na tradição dominante, são conhecidos como os Doze. Será que Jo 21
conserva um traço de tal tradição?
368
21,1-23
Jesus. “Não”, respondem eles. Então Jesus diz: “Lançai a rede pelo lado
direito da barca, e encontrareis peixe”. Assim fazem, mas não conseguem
retirar a rede por causa do grande número de peixes (segundo Lc 5,7, eles
têm de chamar um segundo barco).
Pescadores de homens?
Lc 5,1-11 interpreta a pesca milagrosa como um sinal ilustrativo da palavra
de Jesus que convidava os primeiros discípulos a serem pescadores de homens
(Mc 1,19 = Mt 4,19 = Lc 5,10). Será que Jo 21 desconhece esse sentido,
ou o supõe tão conhecido que não acha necessário explicitá-lo? Pensamos
que este é o caso. Sendo assim, a pesca milagrosa é um símbolo da multidão
dos fiéis, indicada como “rebanho” nos vv. 15-17. A situação pós-pascal do
milagre em João é então especialmente significativa, porque a missão cristã
começou de fato depois da Páscoa.
A história se presta a um rico simbolismo. No primeiro momento, a noite,
o Senhor está ausente e a pesca não rende. Com (e como) a luz do dia, ele
se torna presente e a labuta dos pescadores tem rendimento abundante: a
pesca escatológica.
A pesca pós-pascal é a chave para compreender o cap. 21: descreve concre-
tamente como se realiza no tempo da Igreja o que Jesus, na sua Hora,
instaurou. Lembram-se os principais nomes, a presença do Senhor no meio
da comunidade, a “atração” de novos discípulos, a celebração da refeição do
Senhor, os carismas de liderança e de testemunho…
369
EPÍLOGO: A HISTÓRIA CONTINUA
do grande número dos peixes a rede não se rompe (na pesca milagrosa de
Lc 5,6, antes da ressurreição, as redes quase romperam). Quererá dizer que
na presença do ressuscitado o grande número não faz “rachar” a comunida-
de? (Poderá rachar por outras razões.)
12-13 Jesus os convida para a refeição (lit. “desjejum”). Ninguém tem a cora-
gem de perguntar quem ele é. Sabem que é o Senhor. Não precisam verificar.
Jesus se aproxima, toma o pão e lhes dá, e o peixe igualmente. Celebra com
eles “a refeição do Senhor”. A ausência do vinho não importa. Há indícios
de que a refeição do Senhor, nos primeiros tempos, era celebrada em alguns
ambientes com peixe. Devemos aproximar esta refeição à multiplicação dos
pães, igualmente com pão e peixe, interpretada, por João, à luz da Eucaristia.
14 Esta é a terceira vez que Jesus se manifesta aos discípulos depois da
ressurreição dos mortos (aparentemente são consideradas somente as apari-
ções de 20,19 e 20,26, não a aparição a Maria Madalena). Pode ser que ele
só pensa no grupo dos apóstolos. Ou então, que ele considera as aparições
de maneira jurídica, como testemunhos da ressurreição, e neste caso o tes-
temunho de uma mulher não tem valor perante a Lei. O termo “Jesus ma-
nifestou-se”, usado em 21,1.14, pode sugerir esta conotação jurídica.
370
21,1-23
Pela terceira vez, Jesus pergunta: “Simão, filho de João, és meu amigo?”
Pedro fica triste. Talvez se lembre de sua tripla negação. Responde: “Senhor,
tu sabes tudo. Sabes que sou teu amigo!” Então, Jesus diz: “Cuida das
minhas ovelhas”. E com o solene duplo “amém” acrescenta: “Quando eras
ainda novo, tu mesmo amarravas teu cinto e andavas onde querias. Mas
quando fores idoso, estenderás as mãos, e outro te porá o cinto e te levará
para onde não queres ir”. Diz isso para significar com que espécie de morte
Pedro vai glorificar a Deus (assim como, em 12,32, Jesus anunciou o modo
de sua morte, que seria a glorificação de Deus, cf. 13,31). Pedro será segui-
dor até na glorificação de Deus pela morte (“estender as mãos” e “amarrar”
podem até sugerir a morte na cruz, conforme a tradição sobre o martírio de
Pedro). Por isso, Jesus pode agora dizer definitivamente: “Segue-me”. Se as três
afirmações de amizade contrabalançam a tripla negação de Pedro, esta resposta
de Jesus vem completar a predição “mais tarde me seguirás” (13,36-38).
Pastoreio ou primado?
Na realidade, olhando a partir do v. 19, a vocação de Pedro parece ser mais
para o seguimento (pastoreio, apostolado) do que para o primado. A imagem
do pastor em vv. 15-17 pode ser aplicada a qualquer apóstolo. A única razão
para atribuir a estas frases o sentido de primado, precedência, é a pergunta
“mais do que estes (me amam)” no vv. 15. Ora, além da dificuldade gramatical
apontada acima, devemos admitir que, de toda maneira, Pedro não ama mais
do que o Discípulo Amado. É possível que estes versículos nem sequer tratem
da primazia universal de Pedro, mas apenas de sua vocação ao apostolado.
Todavia, o acento posto em Pedro no resto do Quarto Evangelho e na
literatura do NT em geral faz pensar que esta “reabilitação” de Pedro no
apostolado implique sua posição de destaque. Sobretudo quando se sabe que
o cap. 21 de João deve ter sido concebido por volta de 90-100 dC.
Olhando agora para trás percebemos que a história talvez não fale tanto
da “concorrência” entre Pedro e o Discípulo Amado (e suas respectivas
jurisdições). O foco central da narrativa parece, antes, ser a morte do Dis-
cípulo Amado. Ainda que João tenha acentuado, no evangelho, a “escatologia
já inaugurada”, relativizando a perspectiva temporal, temos razões para su-
por que a comunidade durante bom tempo se esticou na espera de uma
parusia em curto prazo (cf. as discussões sobre o “pouco de tempo” em
16,16-19). Assim como Paulo pensou que viveria até a volta do Senhor (1Ts
4,15), também a respeito do Discípulo Amado acreditou-se que ele ficaria até
a volta do Senhor. A presente narração relativiza a importância dessa crença
e reforça, pela ordem dada a Pedro no v. 23, a importância de seguir Jesus.
Ora, tanto Pedro quanto o Discípulo Amado morreram, desapareceram desta
terra. O rebanho continua.
372
21,24-25
373
A PERÍCOPE DA MULHER ADÚLTERA
(7,53–8,11)
374
7,53—8,11
são deste trecho avulso da tradição apostólica no cânon das Escrituras. Tal-
vez as circunstâncias históricas expliquem esse desejo: a Igreja acabava de
sair das catacumbas e começou a abrir-se amplamente, acolhendo inclusive
de volta pecadores e apóstatas. Contra isso surgiu a reação do montanismo
(Tertuliano), exigindo maior rigorismo. O trecho da mulher adúltera poderia
servir de resposta a essa atitude rigorista, ainda mais porque o adultério é a
imagem bíblica da infidelidade religiosa.
Este trecho é um minievangelho. Contém o cerne do evangelho. É uma
amostra de pregação que nos coloca no coração da mensagem cristã. A
“intuição evangélica” é aqui articulada a partir de um ponto peculiar da Lei
judaica, a pena de morte para o adultério (que, na realidade, nem sempre era
aplicada). A atitude de Jesus, que mostra a vontade de Deus, está acima da
letra da Lei. Neste sentido, lembra os escritos paulinos. Aliás, não é por nada
que há quem pense que o autor talvez tenha sido Lucas, o “evangelista de
Paulo”, o que pode ser defendido a partir de indicações estilísticas.
A presença deste trecho no cânon ajuda-nos a compreender que os “Evan-
gelhos” canônicos são compostos de unidades narrativas nascidas na prega-
ção, as quais, quanto ao espírito, contêm em si o Evangelho todo. (Foi neste
sentido que chamamos também Jo 6 de minievangelho.)
Como certas histórias e parábolas sinópticas, o trecho parece ensinar
diversas lições, entre as quais destacamos duas: (1) a incompetência dos
humanos, pecadores, para condenar alguém à morte (v. 9); (2) a missão de
Jesus não é condenar, mas salvar (v. 11).
Jesus é apresentado como rabino convidado a dirimir um “caso”. Como
rabino, está sentado para ensinar. Como escriba, escreve, mas escreve na
areia, coisa que não permanece fixada. Como juiz — ou será como profeta?
— levanta-se para o veredicto. Este, porém, não diz respeito à mulher, e sim
a todos: “Quem for sem pecado lance a primeira pedra”. Conscientiza os
ouvintes a respeito da universalidade do pecado. Aí termina sua função de
juiz. Volta a sentar-se, a escrever na areia e encaminha a mulher, liberta da
letra da Lei, para uma existência nova, livre do pecado e baseada na graça
(cf. Rm 7,7 etc., a Lei serviu para denunciar, não para salvar).
*
Depois do ensinamento de Jesus no Templo, todos vão embora para casa. 7,53–8,5
Jesus vai para o Monte das Oliveiras, onde ele costuma passar a noite (cf.
Lc 21.37; 22,39). De madrugada, Jesus volta ao Templo, e todo o povo se
reúne ao redor dele. Sentando-se, em atitude de mestre, começa a ensiná-los.
Os escribas e os fariseus trazem uma mulher apanhada em adultério. Co-
375
A PERÍCOPE DA MULHER ADÚLTERA
locando-a no meio, dizem a Jesus: “Mestre, esta mulher foi flagrada come-
tendo adultério. Moisés, na Lei, manda apedrejar tais mulheres. Que dizes
tu?” O acento cai no contraste entre Jesus e a Lei de Moisés. No nível da
narrativa, pensa-se na Lei segundo a interpretação dos escribas. Mas no
tempo em que o trecho foi escrito, a “Lei” pode ter um colorido “eclesial”:
a tendência de certos cristãos de voltarem à Lei.
6-8 Eles perguntam isso para experimentar Jesus e ter motivo para acusá-lo.
Mas Jesus, inclinando-se, começa a rabiscar no chão, com o dedo. O sentido
deste gesto nos escapa, mas parece sugerir algo que se escreve na poeira, na
areia, portanto, de modo passageiro.
7-9a Como insistem em perguntar, Jesus ergue-se — atitude de juiz ou antes,
de profeta — e diz: “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira
pedra!” Inclinando-se de novo, Jesus senta-se e continua a escrever no chão.
Eles, depois do que ouviram, saem um a um, a começar pelos mais velhos,
que na imaginação popular possuem a maior autoridade. A menção dos mais
velhos lembra Dn 13,61 (os anciãos que tentam seduzir Suzana ao adultério).
9b-11 Jesus fica sozinho com a mulher que se encontrava no meio deles. Ele
se levanta e diz: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” Ela
responde: “Ninguém, Senhor!” Jesus, então, lhe diz: “Eu também não te
condeno. Vai, e de agora em diante não peques mais” (cf. Jo 5,14). Isto é
linguagem de profeta: “Será que Deus deseja a morte do ímpio? Não alcan-
çará ele a vida, se se converter de seus maus caminhos?” (Ez 18,23; 33,11).
O não mais pecar é sinal de vida nova. Jesus não veio para condenar, mas
para salvar (cf. Jo 3,17).
A lição serve para duas frentes. Aos rigoristas, Jesus mostra que o ho-
mem pecador não tem autoridade para arrogar-se o juízo, certamente não se
este puser em jogo a vida do outro. Aos laxistas, ensina que o pecado não
deve ser tolerado, mas curado, pela pedagogia da misericórdia — deixando
o juízo a Deus (cf. Sl 50,6 etc.), mas orientando o pecador.
Este trecho tem grande popularidade no nosso meio. Corrige a imagem
sisuda da Igreja, ou mesmo de Deus (castigador!), mostrando a bondade
humana, a misericórdia de Cristo. E quantas “adúlteras” há entre nós, con-
forme o Direito Canônico! É evidente que essas pessoas são destinatárias do
amor misericordioso de Deus. Mas há uma diferença. Essas “adúlteras” de
nossas periferias geralmente nem são pecadoras: é “ajuntada”, é moça que
“foi casada” com um beberrão e brigão que a abandonou deixando só filhos
e dívidas, é prostituta induzida à profissão desde criança ou sem outro meio
de sobreviver. A “irregularidade” de tais mulheres em nosso meio não é
necessariamente culpa — ao menos não culpa delas — e, portanto, não é
376
7,53—8,11
pecado delas (mas conseqüência do pecado social). Ora, nada mostra que a
adúltera do evangelho seja mera vítima de pecado social. Pode até ter sido,
mas o narrador não olha para isso; ele pensa numa pessoa culpada, uma
pecadora de verdade, e é dela o pecado que Jesus perdoa, embora os outros
tenham o seu também.
Constatado que se trata de pecado pessoal mesmo, vemos que Jesus não
a condena. Deixa de lado todo moralismo. Constata o pecado, sim, mas à
maneira de um médico, para poder tratá-lo. Pois pecado não é coisa muito
boa, é coisa de que a gente precisa ser curado. “Vai, e de agora em diante
não peques mais”… Não arrumes mais essa infelicidade que te deprime e te
torna uma excluída. Jesus não abona o pecado, mas cura a pecadora. O
adultério ou qualquer falta contra a lealdade — pois o adultério de verdade
é isso — continua um mal, e o empenho de nossa comunidade deve ser
no sentido de libertar as pessoas daquilo que lhes faz mal, no físico ou no
moral. O perdão implica que todos os irmãos e irmãs se empenhem para
mudar o que leva as pessoas à deriva, não só a infidelidade pessoal, como
também os abusos sociais, a hipocrisia institucional, a dupla moral, a sem-
vergonhice comercializada.
Enfim, Jesus conscientiza os que se arvoram em juízes de que eles tam-
bém têm seu pecado. Ninguém tem coragem para atirar a primeira pedra.
Talvez seja esta a lição principal. Todos nós temos nosso pecado e precisa-
mos do profeta enviado por Deus para nos perdoar e nos reconciliar, a fim
de seguirmos o rumo que ele mostra.
377
EPÍLOGO DO COMENTADOR
Duas perguntas presidiram a este comentário: que quis João dizer aos
seus destinatários e que sentido tem isso para nós, hoje?
1. A mensagem de ontem
“Estes sinais estão escritos para que creiais...” (Jo 20,31)
No fim do percurso, pensamos que João quis consolidar os leitores/ou-
vintes — a “comunidade joanina” — na certeza de sua fé, que confessa Jesus
como sendo o Messias, o enviado escatológico de Deus, o Filho do Homem,
plenipotenciário humano de Deus com poder de julgar e vivificar, como
referente de nossa opção de fé. E como sendo o Filho de Deus, no qual o Pai
deposita todo o seu bem-querer, porque, na livre doação da própria vida, o
Filho realiza a vontade e o projeto do Pai, revelando-o como Deus de amor e
fidelidade. Ele é, assim, Deus levado à fala, Palavra de Deus que nos interpela
e nos garante a vida do éon vindouro, vida vivida desde já e jamais aniquilada
no vazio da morte (a “segunda morte” de que fala Ap 20,14; 21,8).
Tal mensagem é dirigida a judeus-cristãos que, no fim do primeiro sécu-
lo, se encontram diante da escolha entre a sinagoga do nascente judaísmo
formativo-rabínico, que deles cobra a adesão à sua tradição judaica, e a
comunidade cristã, que encontra, no amor com o qual Cristo os une entre
eles e ao Pai, tudo o que a judaísmo tinha a oferecer e muito mais.
Costuma-se chamar este evangelho de cristocêntrico. Este adjetivo, po-
rém, não é totalmente exato. Melhor seria dizer que o Quarto Evangelho é
cristo-teocêntrico. Se ele concentra de modo quase monótono a atenção em
Jesus, o alvo último dessa atenção, porém, não é Jesus, mas o Pai, que se
manifesta nele quando dá livremente sua vida por amor até o fim. Assim
como, para os antigos israelitas, Moisés, a Lei e o Templo foram mediações
378
EPÍLOGO DO COMENTADOR
379
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
380
EPÍLOGO DO COMENTADOR
381
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
tráfico de influência junto ao Deus provedor. Tudo isso pouco tem de cristão.
Vamos jogar fora tudo isso? Melhor, transformar e ressignificar, pois não
seria muito cristão afastar ou discriminar as pessoas que foram “catequi-
zadas”(?) assim.
O que o Quarto Evangelho nos convida a fazer é conscientizar a todos
os batizados acerca da opção por Jesus. Cada um que se chama cristão deve
se perguntar se ele optou realmente por Jesus de Nazaré, que foi fiel à sua
palavra e aos seus ouvintes até dar a vida por eles. Quem responde com um
honesto “sim” a essa pergunta, ainda que talvez confunda São Jorge com
algum orixá, pode ser discípulo desse Jesus.
O que nos deve inspirar hoje, ao ler o Quarto Evangelho, é a simplici-
dade da primazia do amor. Nada de hierarquias, práticas rituais, sacrifícios
de expiação, dízimos, devoções, esmiuçados preceitos morais. Estes não são
negados, mas não ocupam o primeiro plano. O Templo, morada de Deus, é
substituído por Cristo; a Torá, Palavra de Deus, é ele mesmo. A verdadeira
vinha, rica em frutos de caridade que fazem a alegria do Pai, é a irmandade
em torno de Jesus. Propondo-nos a revelação de Deus no amor do Crucifi-
cado — que nesse amor mesmo é glorificado —, João nos ensina a voltar
sempre a esta questão fundamental: como amo melhor o meu irmão, a minha
irmã? E a fazê-lo, “não só com palavras e de boca, mas com ações e de
verdade” (1Jo 3,18).
382
VOCABULÁRIO HISTÓRICO E EXEGÉTICO
Alegoria >Metáfora
Alma
Para o povo bíblico, a alma era o princípio vital do ser humano, imagi-
nada como localizada dentro do corpo, insuflada por Deus — daí chamar-se
nèfesh (= garganta) ou neshamâ (= respiração). É a vida como obra de Deus
na criatura humana. Não é vista como uma parte ao lado do corpo, mas como
a pessoa na sua vida biopsicológica (“minh’alma” = eu), especialmente
consciência, vontade, memória, intelecto etc. Por isso, a ressurreição é pen-
sada como ressurreição de corpo e alma (alma separada do corpo é coisa da
filosofia grega). >Corpo; Carne; Espírito.
Amar
Nosso ambiente cultural dá ao verbo “amar” um sentido de preferência
sentimental, se não erótico. Tal sentido não é o de João. Para o amor sen-
timental e passional, o grego tem um termo próprio (erân, erôs), que João
nunca usa. João usa quase sempre o verbo agapân, raro no grego comum e
preferido pela Bíblia para traduzir o hebraico ahêb, que poderíamos definir
como: “preferir, aderir a, ser solidário com, optar por”. É o amor da Aliança
(Dt 6,5; 7,7-8) e da solidariedade cristã (cf. o amor de Jesus pela família de
Betânia, 11,5 etc., e pelo “Discípulo Amado”, >exc. 13,23). João usa algu-
mas vezes o termo filein (amor de amizade; filos = “amigo”), quiçá para
variar com agapân (>exc. 15,17).
Carne
Tem em Jo, como na Bíblia em geral, normalmente, o sentido de exis-
tência humana histórica, limitada, precária e dependente, para bem ou para
mal, quer a serviço de Deus (>1,14), quer oposta a ele. Geralmente não
383
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
César
Nome próprio do primeiro autocrata romano, Júlio César (100-44 aC).
Depois, o nome virou título dado aos imperadores ulteriores, de onde passou
para os soberanos dos impérios do Ocidente germânico (Kaiser) e da Rússia
(czar). No tempo de Jesus, o imperador era Tibério. O 666 do Apocalipse
seria o nome de César Nero traduzido em números.
Conhecer (saber)
Em João, o sentido está próximo ao do AT: conhecer por experiência, por
convivência, por intimidade (p. ex. relação sexual). Conhecer Deus significa
ter experiência (da presença) de Deus. Implica muitas vezes um laço moral
(reconhecer, respeitar). “Não conhecer” pode significar “não querer conhe-
cer” (má fé). — Além disso, João pode insistir no conhecer em resposta à
mentalidade helenista, muito amiga de conhecimento elitista, quer intelec-
tualista, quer esotérico. O verdadeiro conhecimento é conhecer o amor de
Deus em Jesus (7,17) e praticar sua palavra, especialmente quanto ao amor
fraterno. Cf. 17,2.
Coração
O coração representa as faculdades mentais e sensitivas do ser humano:
intelecto, vontade, sensibilidade etc., mais ou menos o que nós queremos
dizer com “mente”. Assim, quando Jo 13,2 diz que o diabo “pôs no coração”
(de Judas?) trair Jesus, trata-se antes de tudo de uma questão mental: con-
ceber o plano. Também o medo do “coração” em 14,1 refere-se não tanto ao
sentimento, mas ao pensamento, ou seja, à percepção da realidade dos dis-
cípulos e da comunidade na ausência de Jesus (cf. 14,27; 16,6.22).
Corpo
Para o pensamento bíblico, o corpo é antes de tudo o ser humano todo. Às
vezes é sinônimo de carne, no sentido de existência humana. >Alma; Carne.
Demônio(s)/Diabo
“Acaso um demônio pode abrir os olhos aos cegos?” (Jo 10,21). Na
cosmovisão do século I, a grande maioria das pessoas acreditava na atividade
384
VOCABULÁRIO HISTÓRICO E EXEGÉTICO
de seres “espirituais” chamados demônios, o que não quer dizer que fossem
necessariamente agentes do inferno. Pelo contrário, no mundo grego, o dáimôn
é o autor das boas inspirações (Sócrates e Platão falam nesse sentido). O
neutro to damónion refere-se antes a algo incontrolável do que a algo ruim.
É neste sentido que em Jo 10,20-21 aparecem justapostas as duas expressões:
“Ele tem um demônio, perdeu o juízo” (máinetai, lit. “está delirando”).
O Evangelho de João não narra expulsões de demônios. (1) Elas não são
sinais claros da missão de Jesus (em Mc 3,22 par., os escribas atribuem tais
expulsões ao chefe dos demônios); mesmo quanto a outros “milagres”, João
é desconfiado (2,23-25). (2) Para João a verdadeira luta de Jesus é contra o
grande antagonista de Deus, o Satanás (13,27) ou diábolos, “diabo” (6,70;
8,44; 13,2), o “príncipe (chefe) deste mundo” (12,31; 14:30; 16,11).
“Tens um demônio” (Jo 7,20) é uma acusação grave, não tanto por
razões teológicas (a palavra “demônio” ainda não tinha todo o peso que a
teologia medieval lhe atribuiria), mas por razões sociais: o endemoninhado
(doente mental, epiléptico…) era excluído da convivência, não tinha lugar na
sociedade. Nesse sentido, “és um samaritano” (veja 8,48) é quase sinônimo
de “tens um demônio”. Tratado como endemoninhado Jesus sofre as conse-
qüências da “ideologia demonista”: é excluído.
O diabo. Os “demônios” cuja expulsão é narrada nos evangelhos não são
esse protagonista pessoal do mal que João chama “o diabo” (do grego diábolos,
“perturbador”) ou “Satanás” (do verbo hebraico satan, “impedir, acusar, sedu-
zir”). Mas existe certa ligação. Em Mc 3,22 par. supõe-se que o Satanás/Beelzebu
“governa” os demônios, e em Jo 8,48.52 a acusação de que Jesus tem um
demônio é uma resposta à crítica de Jesus dizendo que eles têm o diabo por pai
(8,44). Os “demônios” não são o Satanás, mas podem simbolizá-lo.
Que o diabo/Satanás atua em Judas (13,2.27) não é uma maneira de
condenar Judas, mas de mostrar que o verdadeiro antagonista de Jesus não
é nem Judas, nem os judeus, nem ser humano algum, mas o “chefe deste
mundo”.
Diabo >Demônio
Enaltecer/Enaltecimento (exaltação/elevação)
João (3,14; 8,28; 13,21.34) usa com intencional ambigüidade o verbo grego
hypsóô (“levantar/colocar no alto”), para expressar o mistério da cruz: a ele-
vação física de Jesus na cruz é ao mesmo tempo seu en-altecimento na glória
de Deus (“enaltecer” aparece diversas vezes em conexão com “glória/glorifi-
car”). Isso se dá ao mesmo tempo, e não sucessivamente, pois a glória de Deus
385
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
Éon
Período do mundo, conforme os conceitos antigos; era. O universo era
concebido como comportando diversos éons. João recorre à imaginação do
judaísmo apocalíptico, que opõe “este mundo/éon”, dominado pelos poderes
humanos, corruptos e sangüinários, ao “mundo vindouro/novo éon”, no qual
tudo será conforme ao projeto de Deus. É neste sentido que João fala em
“vida do éon”, que geralmente traduzimos por “vida eterna”, mas o acento
está na pertença à vontade de Deus mais do que no aspecto matemático; a
“vida do éon” (de Deus) é questão de qualidade transcendente mais do que
de quantidade (prolongamento infinito).
Escatologia
Pensamento acerca da realidade última (grego éschaton), o tempo do
Fim. João acentua que o tempo do Fim — a vida que tem validade definitiva
— já começou desde que Jesus, na realidade pascal, nos fez a oferta da fé:
diante de Jesus morto e ressuscitado decidimos se vamos viver a “escatologia-
já” (>Intr. § 3.3.8). Por isso ele é a “ressurreição e a vida” (>exc. 11,27).
Espírito
1) Sentido geral na Bíblia. Espírito significa sopro ou vento. Não é um
“princípio imaterial” como na filosofia grega, a não ser no Livro da Sabe-
doria (século I aC).
2) Espírito de Deus. Para a imaginação bíblica, o Espírito é antes de tudo
o “sopro de Deus”, ou seja, a força misteriosa com que Deus realiza suas
obras (o vento, a criação, a infusão da alma no ser vivo etc.). Dizer que Deus
é Espírito (Jo 4,24) é dizer que ele está acima das limitações humanas, a
>carne. Em João, o Espírito de Deus enquanto dom aos fiéis para continuar
a obra de Jesus neles é chamado “o Paráclito” (= auxílio, apoio, defensor,
advogado, assistente judicial no “processo” com o [chefe deste] mundo)
(>com. Jo 14,15-17; >exc. 15,17).
3) Espírito humano. Como resultado da ação de Deus, o ser humano tem
em si o espírito de Deus, seja como seu princípio vital em geral, sinônimo
de alma, seja como inspiração especial, como no caso da inspiração profé-
386
VOCABULÁRIO HISTÓRICO E EXEGÉTICO
tica. “Meu espírito” signifca, como “minha alma” ou “meu corpo”, a pessoa
inteira. >Alma.
Essênios >Qumran
Exaltação >Enaltecer
Fariseus
Grupo de judeus piedosos (leigos) conhecidos por terem participado da
guerra de libertação dos macabeus (c. 165 aC) e, depois, se terem separado
dos sucessores destes, os reis hasmoneus — que usurparam o sacerdócio.
Reunindo sobretudo os escribas e dirigentes das sinagogas, tinham grande
prestígio junto ao povo comum, especialmente na Galiléia. Mas o centro de
estudos deles era em Jerusalém.
Filho (de Deus/do Homem)
O qualificativo que melhor caracteriza Jesus no Quarto Evangelho é
“Filho”, que significa Filho de Deus. Com esse qualificativo João evoca a
relação incomparável que existe entre Jesus e Deus, sobretudo no sentido da
união da obra de Jesus e da vontade/desejo de Deus. Essa relação é única.
Mesmo depois da ressurreição, embora chamando os discípulos de “meus
irmãos”, Jesus distingue entre sua própria filiação divina e a deles: “Meu Pai
e vosso Pai” (>com. 20,17).
Jesus é filho porque realiza cem por cento a vontade do Pai. Isso aparece
sobretudo em Jo 5,19-30. Ora, neste texto, João faz um jogo de palavras: de
“Filho de Deus” passa para “Filho do Homem” (também em 1,49.51). O
Filho do Homem evoca a figura do enviado celeste de Deus que recebe plena
autoridade para dominar os poderes deste mundo (Dn 7,13-14), portanto
também o poder de julgar (é neste sentido que o livro de Henoc, contempo-
râneo do NT, apresenta o Filho do Homem). Assim, quando João quer acen-
tuar a união de Jesus com Deus, fala em “Filho (de Deus)”, quando acentua
sua missão, em “Filho do Homem” (>exc. 1,51).
A isso está ligada a representação do Filho do Homem como “enaltecido”,
assim como o foi o Servo de Deus segundo Is 52,13. Por ser enaltecido, pode
exercer a missão “do alto”. A manifestação de que o âmbito desse Filho do
Homem é “no alto”, junto de Deus, segundo João, é a elevação de Jesus na
cruz, suprema manifestação da glória de Deus (>Enaltecer; >com. 3,14-15;
>exc. 12,34).
Flávio Josefo
Historiador judeu (37-100 dC), de família sacerdotal, conhecedor das
diversas tendências do judaísmo, comandante da Galiléia no início da >Guerra
387
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
Judaica, preso pelos romanos (ano 67), dos quais se tornou homem de con-
fiança e a partir daí diplomata em favor do judaísmo, que ele descreveu
apologeticamente nos livros Antiguidades Judaicas e Guerra Judaica.
Glória/Glorificar
“Glória” inclui um aspecto de poder (o termo hebr. kabod significa “peso,
substância”) e um aspecto de manifestação (a tradução grega, doxa = “bri-
lho”, acentua sobretudo este aspecto; na filosofia de Platão e Aristóteles,
doxa tem uma conotação negativa, “falso brilho, aparência”, que pode estar
presente em algumas frases irônicas de João: 5,44; 12,43). Diversas vezes
João usa o termo no sentido de honra, fama etc., atribuída pelos homens
(p.ex. 5,41).
No sentido teológico (a glória de Deus e de Jesus), devemos mencionar
em primeiro lugar 1,14 e o cap. 17. Significa a realidade divina. Segundo
1,14, contemplamos na existência histórica de Jesus (“carne”) a glória que
ele reparte com Deus como filho Unigênito, a glória do Deus de “graça e
fidelidade” (= amor fiel). Isso se compreende melhor no cap. 17, quando
essa comunhão da glória é posta à luz do arremate da obra de Jesus, a
manifestação do amor de Deus pelo dom da vida até o fim. Na oração de Jo
17, trata-se especialmente da manifestação do poder de Deus que age em
Jesus e lhe confere a vitória (cf. também 12,23.28; 13,31.32). Neste sentido,
“glorificação” é termo fixo em João para falar do >enaltecimento de Jesus.
Guardar
1) Conservar: o vinho, 2,11; o perfume, 12,7; os discípulos: 17,11.12.15.
2) (Lembrar e) pôr em prática: a(s) palavra(s) de Jesus, de Deus:
8,51.52.55; 14,23.24; 15,20; 16,7; o(s) mandamento(s): 14,15.21; 15,10.10;
o sábado: 9,16; talvez o rito do embalsamamento 12,7.
Guerra judaica
Em 66 dC a população de Jerusalém se revoltou contra os abusos do
procurador romano Géssio Floro. O sacerdote Eleazar (saduceu, que logo
mais seria morto) e os zelotes ocuparam o Templo, provocando o assédio da
cidade pelos tropas romanas, comandadas por Vespasiano. Entretanto seu
filho, o general Tito, combatia os zelotes de João de Giscala na Galiléia.
Como Vespasiano se tornara imperador em Roma, foi Tito quem em 70 dC
venceu Jerusalém e destruiu o Templo. Em 73, os últimos zelotes morreram
num suicídio coletivo, na fortaleza de Massada, a 50 km de Jerusalém. Antes
do assédio, a comunidade cristã tinha deixado a cidade e se refugiara em
Pela, na Transjordânia. No início do assédio, os fariseus (Yohanan ben Zakkai)
388
VOCABULÁRIO HISTÓRICO E EXEGÉTICO
389
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
Judeus
1) Habitantes da Judéia (raro: talvez 11,19…45; 11,54; 19,20).
2) O povo de etnia e religião judaica em geral (2.6.13; 5,1; 6,4; 7,1 etc.);
este sentido é geralmente neutro, objetivo, mas em 4,22 Jesus até se identi-
fica com os judeus como portadores da salvação.
3) A parte dominante/a liderança do judaísmo que se opõe a Jesus e à sua
comunidade (5,16.18; 9,22; 19,38 etc.). É o sentido que mais cai na vista,
mas não o único! Em algumas expressões, João parece falar das realidades
judaicas como se fossem assunto desses “judeus” e não de Jesus (“vossa
Lei”, 8,17; 10,34 etc.). João usa “o rei dos judeus“ num sentido irônico
(>com. 19,21), “o rei de Israel”, porém, como título aceitável para Jesus
(1,49). Talvez João pense na liderança judaica do fim do séc. I (>Jâmnia).
Lei >Torá
Liberdade/Libertar/Livre
João usa esses termos exclusivamente no trecho 8,31-37, em sentido ale-
górico (a eleutheria ou cidadania como descendentes de Abraão em oposição
à escravidão do pecado). De acordo com a cultura de seu tempo, João liga
liberdade a integração familiar. (Em latim, liberi significa “filhos” ou “livres”.
A liberdade não era pensada como soltar todas as raízes, mas como estar
enraizado com pleno direito na estrutura familiar e social, como cidadania.
Quem não tinha raízes ou foi desenraizado estava exposto a se tornar escravo.)
A verdadeira liberdade é a que se compromete, no caso, na solidariedade
com Jesus, na pertença a Deus, na fidelidade à Aliança (>exc. 8,36) e na
dedicação aos irmãos (Gl 5,13). (O conceito de libertação histórica não se
encontra em João, mas pode ser aprofundado à sua luz, no sentido de liber-
dade responsável.)
Luz
“A luz do mundo sou eu” (Jo 8,12; 9,3). Embora a Bíblia ofereça muito
material para descrever o sentido simbólico da luz, devemos, em última
análise, depreender o significado deste simbolismo de Jesus mesmo, da sua
prática de vida. Este sentido cristológico da luz acompanha o sentido bíblico
geral, da luz que ilumina o caminho (= o procedimento ético) do ser humano.
A Lei é luz que guia nossos passos (Sl 119,105; Sb 18,14; Sr 45,17). Os
rabinos interpretavam a “luz” da bênção de Nm 6,25 como a Lei. Conhecen-
do esse sentido, entendemos que Jo 1,3 diz que a luz que vem mediante a
Palavra era a vida dos homens: a Lei é o caso paradigmático disso, para um
judeu. Em termos bíblicos, a luz não serve para escapar deste mundo (para
390
VOCABULÁRIO HISTÓRICO E EXEGÉTICO
a “esfera da luz”, na gnose helenista), mas para neste mundo andar conforme
a palavra do Senhor e não tropeçar.
Devemos, portanto, descartar o sentido gnóstico (helenístico) da luz,
como âmbito etéreo, subtraído à opaca materialidade, onde os gnósticos,
libertos da matéria pelo conhecimento (gnose), encontram seu destino final.
Isso é importante para nosso contexto pastoral. As religiões espiritualistas
no Brasil e em outros países latino-americanos, como também certos grupos
esotéricos ou misticistas, cultivam o simbolismo da luz em sentido gnóstico.
O Evangelho de João não se presta para tal uso. É genuinamente bíbli-
co: “Caminhai enquanto tendes a luz, para que as trevas não vos detenham”
(12,35). Trata-se da luz diante de nossos pés, não da luz acima de nossa
cabeça. A expressão “filhos da luz” (Jo 12,36) deve ser entendida no sentido
bíblico; “filho” significa “quem pertence a…”. Filhos da luz são pessoas que
seguem a luz que Deus, em Jesus, projeta para seus passos.
(>com. 1,3; 8,12).
Mandamento >Torá
Metáfora (alegoria, parábola)
João não usa o termo grego parabolé, mas paroimia, que corresponde
praticamente ao nosso termo genérico “metáfora”, modo de falar figurativo.
Evoca-se uma coisa fácil de imaginar, para provocar a percepção de outra
coisa, mais difícil de perceber ou compreender. Nos evangelhos sinópticos, há
muitas “parábolas”, algumas bem breves: o Reino dos Céus é como uma
semente que brota sem a pessoa perceber como, e de repente o trigo está
pronto para a colheita (Mc 4,26-29) — lição para quem quer ver o Reino de
Deus acontecer com estardalhaço. Se entendemos por parábola, no sentido dos
sinópticos, uma “comparação narrativa”, constatamos que em João esse gênero
é raro. O texto que mais se aproxima disso é a cena do redil das ovelhas (Jo
10,1-5). Também em 5,19-20; 16,21 etc., pode-se descobrir algo deste gênero.
Já em 15,1-8, o elemento narrativo é mínimo: a linguagem figurativa tornou-
se alegoria: aos diversos componentes da imagem correspondem diversos
elementos daquilo que se quer evocar: a alegoria do corpo (comunidade =
corpo, nós = membros) em 1Cor 12,12-27. Assim também em Jo 15,1-8 (Pai
= agricultor, Jesus = tronco, fiéis = ramos, caridade fraterna = frutos).
A linguagem metafórica é ambígua: além de sobrepor dois sentidos, pro-
duz também dois efeitos opostos. Ela quer sugerir o que não é possível dizer
em termos diretos, “de acordo com a capacidade de entender” (Mc 4,33, fim
do sermão das parábolas), mas acontece também que “olhando quanto podem,
não vêem, escutando quanto podem, não entendem… (Mc 4,12). Na primeira
391
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
parte de João há os que não entendem (todos) e os que não querem entender
(os adversários de Jesus). Na segunda parte, os que crêem reconhecem que
agora Jesus fala abertamente e não mais em metáforas (16,25.26).
Mistagogia
Instrução dos mystói, ou seja, os já iniciados (às vezes chamados os
“perfeitos”) na comunidade cristã, geralmente por meio da homilia (>Ini-
ciação; Parênese; Mistério).
Mistério
Embora João não use o termo, o conceito está presente no pano de fundo,
em duas aceitações:
1) os cultos mistéricos da sociedade helenista, que iniciavam os candi-
datos em conhecimentos esotéricos, os iniciados sendo chamados de mystói;
o acento caía no “progresso” realizado pelo iniciando;
2) o mistério cristão, que é o paradoxo da morte e glorificação de Cristo
no “enaltecimento”, celebrado no culto da comunidade cristã; o acento está
na fé e na prática do mandamento do amor e do seguimento de Jesus.
Mundo
Segundo o contexto, pode significar
1) a criação, obra de Deus e de sua Palavra;
2) a humanidade, destinatária da salvação em Cristo (Jo 3,16);
3) a parcela incrédula da humanidade, oposta a Jesus e seus discípulos.
Neste último sentido, há duas nuances: (a) “o mundo” como oposto a Jesus e
aos seus, como entidade dominadora que usurpa o domínio que pertence a
Deus; o mundo do “chefe deste mundo”; (b) (linguagem apocalíptica:) “este
mundo” passageiro oposto ao “mundo novo” (novo >éon), que trará presente
o domínio de Deus; evidentemente, essas duas nuanças se misturam.
Em vista dos dois primeiros sentidos exclui-se que João seja considerado
como um dualista que rejeita o mundo. O termo mundo evoca universalida-
de, tanto para o bem (sentidos 1 e 2) como para o mal (sentido 3). Já por
isso não se pode identificar simplesmente “os judeus”, um caso particular,
com “o mundo”, que é universal.
392
VOCABULÁRIO HISTÓRICO E EXEGÉTICO
Parusia
A volta de Jesus em sua glória no tempo do Fim. O termo significava
originalmente a entrada festiva de um novo rei ou imperador nas cidades de
seu reinado, depois de sua posse. (A ascensão de Jesus ao céu era imaginada
como sua ida ao Pai para tomar posse do Reino.)
Paz
“Paz” (hebr. shalom, de shalam, “satisfazer”), na Bíblia, não significa
a interrupção da guerra, mas a felicidade completa, individual (quase sinô-
nimo de saúde) e comunitária (quando todos podem viver de maneira fe-
liz). É a realização do desejo que Deus inspira aos seres humanos; e porque
Deus o inspira, só ele pode realizá-lo satisfatoriamente, em primeiro lugar,
mediante o seu Messias. Esta é a paz que Jesus promete na hora de sua
despedida. Viver conforme o rumo que ele mostrou conduz à paz que Deus
sonhou para todos nós. A paz de Cristo é o dom que vem do seu
“enaltecimento” (>com. 20,19.21).
Pecado
Como João só menciona um único mandamento, o do amor fraterno,
não se encontra no seu evangelho nenhuma lista de pecados. Só fala de
pecado em geral (ora no singular, ora no plural). Vê o pecado na sua
dimensão meta-histórica, o “pecado do mundo” (= universal; 1,29), provo-
cado pelo “chefe deste mundo”. Esse pecado se manifesta de muitas ma-
neiras, em primeiro lugar na incredulidade do judaísmo dominante, com o
qual a comunidade se confronta diariamente (quase todos os usos do termo
“pecado” ocorrem nos textos dirigidos contra o judaísmo dominante: 8,21-
46; 9,41; 15,22–16,9). O verbo “pecar” só ocorre 3 vezes, em relação com
sinais de cura (>com. 5,14 e 9,3).
393
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
Permanecer
João sozinho usa mais vezes o verbo “permanecer” que os outros evange-
lhos e os Atos juntos, e isso em diversos sentidos, que por vezes se sobrepõem:
1) continuar, ficar: 1,32-33 (o Espírito de Deus em Jesus); 1,39b (os
discípulos); 2,12 (a família de Jesus); 3,36 (a ira); 4,40 (Jesus); 5,38 (a
palavra); 6,27 (o alimento); 7,9 (Jesus); 8,35 (o escravo, o filho); 9,41 (o
pecado); 10,40 (Jesus); 11,6 (Jesus); 12,24 (o grão de trigo); 34 (o Filho do
Homem); 46 (o crente); 15,9-10 (os discípulos, no amor); 15,16 (o fruto);
19,31 (os corpos, na cruz); 21,22-23 (o Discípulo Amado);
2) morar, residir: 1,38.39a (Jesus); 14,25 (Jesus no mundo);
3) imanência, inabitação, união (uma realidade está presente na outra):
1,32-33 (? cf. a); 5,38 (? cf. a); 6,56 (o crente e Jesus); 8,31 (a palavra);
14,10 (o Pai em Jesus); 17 (o Paráclito nos crentes); e sobretudo 15,4.5.6.7.9-
10, a parábola da vinha, onde o permanecer dos sarmentos no tronco = a
união dos fiéis com Jesus e deste com o Pai (>exc. 15,4). A imanência de
Deus/Jesus/Paráclito em ou entre os fiéis aponta para a presença, inabitação
ou morada de Deus/da Santidade junto ao povo, que, para João, se dá tam-
bém em Jesus (cf. 1,14). O sentido da imanência mútua pode estar presente
também sem o verbo “permanecer” (p. ex., 14,20; 17,23).
394
VOCABULÁRIO HISTÓRICO E EXEGÉTICO
Profeta/O Profeta
Os profetas (hebr. nabî, gr. profétes) são pessoas com um carisma reli-
gioso especial. Representam para o povo a voz da divindade, em oráculos,
bênçãos, adivinhações etc. Deviam reconhecer a presença de Deus, p. ex.
dizer quem era o abençoado de Deus, em que campo do combate Deus
estaria… No tempo dos juízes e dos reis existiam em Israel confrarias cha-
madas “os filhos dos profetas”, comparáveis a certas formas de vida religio-
sa na Idade Média e às irmandades de beatos no Brasil (caso de Antônio
Conselheiro). Para a teologia do Israel clássico, os profetas são os porta-
vozes e guardiães da Aliança com YHWH. Os principais profetas clássicos
(Elias, Eliseu, Oséias, Amós, Miquéias, Isaías, Jeremias, Ezequiel) atuam
junto ao povo e seus chefes, reivindicando a Aliança exclusiva com YHWH
e combatendo a “prostituição” aos deuses de Canaã ou dos impérios vizinhos
(os baalim), como também as injustiças no seio do povo, que resultam do
abandono do caminho de YHWH. Retrospectivamente, Moisés foi conside-
rado o Profeta por excelência, porque ele mediou a Israel o ensinamento de
Deus (hebr. torah). As “pragas” que ele provocou sobre o Egito chamam-se
na Bíblia “sinais” — sinais proféticos da presença atuante de Deus (cf. os
“sinais” de Jesus em João). O texto de Dt 18,15.18, que anunciava literal-
mente a continuidade dos profetas em Israel, para suplantar o sistema dos
adivinhos cananeus (às vezes chamados “profetas de Baal”), foi mais tarde
interpretado no sentido da volta de um Moisés redivivo (“um profeta como
eu”), como um dos personagens >escatológicos, ao lado do Messias/Cristo
ou até identificado com ele (sobretudo na Samaria, cf. Jo 4,19.29). Alguns
textos em João (1,21.25; 4,19; 6,14; 7,40) falam de “o Profeta” neste sentido.
Quiasmo
Estrutura literária em forma de X (grego khi), o primeiro elemento
correspondendo ao último, e os intermediários correspondendo entre si: A B
(C) B’ A’. Chamada também de simetria. >Inclusão.
Qumran
Lugar onde foram encontradas as ruínas de um mosteiro de monges que
viviam no deserto de Judá (c. 50 km de Jerusalém, na beira do Mar Morto).
Nas grutas em redor foi encontrada a biblioteca desses monges, escondida
por causa da >Guerra Judaica, que pôs fim à comunidade (c. de 65 dC). Os
manuscritos encontrados nos mostram como eram os escritos bíblicos e
extrabíblicos no tempo de Jesus. Comumente se pensa que os monges per-
tenciam ao grupo dos essênios, sacerdotes que por volta de 150 aC se sepa-
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
Rabi/Rabínico
Rabi significa “grande”, mas corresponde ao nosso termo “mestre”. No
texto grego de João, Jesus é chamado rabbî (em aramaico) 8 vezes (no resto do
NT: 4 vezes em Mt e 3 vezes em Mc). Além disso, João usa ainda 8 vezes o
termo grego didáskalos, usado com semelhante freqüência também pelos outros
evangelistas.
Podemos dizer que João acentua o termo rabbî, talvez por ser contem-
porâneo do incipiente “judaísmo rabínico”, o judaísmo dirigido pelos “mes-
tres”, depois do fim do judaísmo do Segundo Templo (70 dC), dirigido pelos
sumos sacerdotes. Esse judaísmo rabínico incipiente tem seu ponto de par-
tida no grupo de mestres farisaicos (Yohanan ben Zakkai) que saíram de
Jerusalém, com os rolos da Escritura, no início da >Guerra Judaica (66-73
dC), para constituir a escola de Jâmnia (>exc. 9,22), que orientou a
reconstituição do judaísmo por volta dos anos 80. Este “judaísmo formativo”
não era o judaísmo dirigido pelos rabis como o conhecemos hoje, mas, de
toda maneira, deitou-lhe as raízes.
Reino/Reinado/Realeza
Em Jo, o termo basiléia pode significar reino, reinado ou realeza. “Rei-
no” indica mais o âmbito geográfico, “reinado” o exercício concreto do
poder em determinado lapso de tempo, “realeza” o poder real como tal. Em
18,36, João não contrapõe um “reino” na terra a outro “reino” no céu, mas
diz que a autoridade régia de Jesus não vem de instâncias deste mundo e sim
de Deus, simbolicamente evocado pelo termo “do alto” (cf. 19,11). — Fora
disso, João usa 2 vezes “reino de Deus” para resumir a esperança suscitada
em Nicodemos pela atuação de Jesus (3,3.5), esperança que é negada pelas
autoridades judaicas diante de Pilatos (19,15; >exc.). Pilatos manda crucifi-
car Jesus como “rei dos judeus” (19,19-22). Ao contrário, desde o início
Natanael confessa Jesus como “rei de Israel” (1,49).
Saber >Conhecer
Sacerdote(s)
Desde a reforma do rei Josias (c. 620 aC), que concentrou o culto em
Jerusalém, os sacerdotes só podiam ministrar no Templo de Jerusalém. Fo-
ram eles que reconstruíram o Templo depois do exílio babilônico e consti-
396
VOCABULÁRIO HISTÓRICO E EXEGÉTICO
Servo
Indica qualquer pessoa que está a serviço de outra, desde um rei subal-
terno (vassalo) em relação ao soberano, até um operário em relação ao
empresário ou um escravo em relação ao amo. O contexto mostra de que
categoria de servo se trata. Muitas vezes, o servo, sobretudo de categoria
superior, representa seu senhor. Neste sentido, Moisés, o rei de Israel, e
mesmo Ciro, o rei persa que liberta os judeus, são servos do Senhor. Na
história da Paixão (Jo 18–19), os “servos” do sumo sacerdote são os guardas
do Templo, podendo exercer função elevada.
Shekiná
Lit. “morada”. Termo muito usado no judaísmo para falar da presença
atuante e salvadora de Deus. Onde é que Deus está e realiza sua atuação? No
tempo do Êxodo, este lugar da Presença era a Tenda, ou a nuvem que descia
sobre ela. Depois era o Templo. Mas podia também ser a presença numa
pessoa, no profeta, na comunidade. O termo chegou a designar o próprio
397
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
Deus. Para João, a morada de Deus por excelência é Jesus (>com. 1,14), mas
também sua comunidade (14,23).
Símbolo/Simbolismo
“Símbolo” era a metade de um contrato (às vezes simplesmente um vaso
ou uma cerâmica partida em dois), para ser completada na hora da verifica-
ção pelo ajuntamento da outra metade (em grego symbállein), como nosso
talão e canhoto. Daí: algo que significa uma outra realidade, que não se vê,
mas que de certa maneira faz parte (pela semelhança, lembrança ou seja lá
o que for). Símbolo não é, portanto, o contrário de realidade, mas antes, a
parte perceptível de uma realidade imperceptível. O Quarto Evangelho está
cheio de simbolismo. Os milagres ou sinais de Jesus simbolizam a realidade
que ele mesmo é (o dom de Deus). O Discípulo Amado simboliza o fiel
“perfeito”, plenamente integrado no mistério de Cristo (o que não exclui que
ele seja também uma pessoa real).
Sinal/Sinais
Em João, as ações notórias ou admiráveis de Jesus (os milagres, pelos
outros evangelistas chamados “forças, poderes”) são designadas pelo termo
“sinais” (gr. semeia). Este termo sugere que Jesus é um profeta, pois a
autoridade dos profetas era credenciada por Deus mediante os ”sinais” que
operavam. Assim, as “pragas” do Egito, no caso de Moisés, chamam-se
“sinais” — sinais de que Deus está ao lado dele (em Jo 3,2 Nicodemos fala
assim a respeito de Jesus).
Em João, contudo, o termo tem um sentido mais profundo. Os seis ou
sete sinais (conforme se contam, em 6,1-21, um ou dois) descritos por João
não apenas mostram que Deus está com ele, mas visualizam também simbo-
licamente o que Jesus significa: vinho das núpcias messiânicas, cura e vida,
alimento da vida divina, luz do mundo, ressurreição e vida… Não apenas
comprovam que Deus está por trás de Jesus; mostram Deus em Jesus. Por
isso, João caracteriza seu evangelho como uma seleção de “sinais” de Jesus,
representativos da manifestação de Deus nele (12,37; 20,30). (Quanto à teo-
ria de que João teria baseado seu evangelho numa suposta coleção de sinais
de Jesus, a tal “fonte dos Semeia”, além de não poder ser comprovada,
também não tem importância.)
Soteriologia
Doutrina da salvação (gr. soteria), no caso, em Cristo — daí ser insepa-
rável da cristologia. Em Jo 4,44 Jesus é chamado “salvador (soter) do mundo”.
398
VOCABULÁRIO HISTÓRICO E EXEGÉTICO
Testemunhar/Testemunho
Termo preferencial de João, sobretudo no sentido de dar testemunho a
favor de Jesus. Evoca a trajetória de Jesus e também da comunidade depois
dele como um conflito judicial, um processo com o mundo. Testemunham a
favor dele Deus, suas obras, a Escritura, João Batista, Jesus mesmo, seus
discípulos (>com. 15,26-27). Em grego martyrein. Nem sempre se trata do
“martírio” de sangue, mas este está muitas vezes conotado.
Torá
Termo hebraico geralmente traduzido como “Lei”, mas na realidade sig-
nificando “instrução” ou “mandamento”. Para o judaísmo, não tinha nada de
negativo ou de antipático, como para nós. Era sabedoria, caminho da vida (Sl
19; Sl 119). Significativamente, João fala às vezes com distância de “vossa
Lei”, “a Lei deles” (nomos, 8,17; 10,34; 15,25; 18,31), mas quando fala em
sentido valorativo assume como próprios os termos “escritura(s)” (grafé,
grafai) (= a Lei e os Profetas) ou, em se tratando de um preceito singular,
“mandamento” (entolé, com a conotação de instrução para a vida, geralmen-
te sinônimo de “palavra” de Deus ou de Jesus).
Vida
Significa ora a vida biopsicológica, ora a vida “eterna”. Entre as duas
existe relação de simbolismo (cf. sobretudo 4,46-54 e 11,1-44). A vida hu-
mana é valiosa aos olhos de Deus e de Jesus e, exatamente por isso, aponta
para um sentido transcendente, a “vida eterna”, ou melhor, “vida do éon”, da
“era vindoura”, como é chamado o âmbito de Deus. Ora, para João, o âmbito
de Deus está presente desde que se acolha na fé e se ponha em prática a
palavra de Jesus. Neste sentido, a vida eterna é uma presença já em nossa
vida de fiéis. A “vida em abundância” de Jo 10,10 abrange essa complexi-
dade: a prática de Jesus atende às exigências da vida humana digna e, por
meio disso, à maneira de um “sacramento”, traz presente uma participação
na vida divina.
Zelote
Originalmente designação de judeus tomados pelo zelo do Templo, a
ponto de entrar na resistência armada (tempo do macabeus). No tempo da
>Guerra Judaica (66-73 dC) constituíam um movimento político-militar mais
ou menos organizado (com os chefes João de Giscala e Simão bar Giora).
399
400
ORIENTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
Em português/espanhol
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Hoje, 4). — Breve comentário em linguagem simples. Ver grande comentário do
mesmo autor.
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COMBLIN, J. O enviado do Pai. Petrópolis: Vozes, 1975. — Breve, mas vai ao essencial.
401
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
402
EPÍLOGO DO COMENTADOR
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Em outro idioma
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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO — Amor e fidelidade
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Este livro foi composto nas famílias tipográficas
Times New Roman e Amerigo
e impresso em papel Offset 75g