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A obra do sociólogo Pierre Bourdieu: uma irradiação

incontestável

Ione Ribeiro Valle


Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo

Como todas as grandes produções científicas, a obra do sociólo-


go Pierre Bourdieu (1930-2002) foi elaborada em torno de uma
intuição e construída a partir de idéias-força, formuladas, desen-
volvidas, reformuladas, retomadas na maioria de suas publicações
– uma intuição fundadora que procura articular alguns conceitos
maiores, colocados no centro de sua análise da estrutura do
mundo social e das relações sociais. Pierre Bourdieu, que desejou
transformar a sociologia numa ciência total capaz de restituir a
unidade fundamental da prática humana, atribui-lhe uma função
crítica, que implica o desvelamento dos mecanismos educacio-
nais, culturais, sociais e simbólicos de dominação.
Neste trabalho, tentaremos resgatar o caminho sociometodológico
proposto e percorrido por Pierre Bourdieu, por meio da elaboração
de uma espécie de cartografia de sua obra e da descrição das
principais etapas de sua trajetória intelectual e profissional,
enfatizando seus engajamentos políticos e sociais. Procuraremos
também explicitar o conteúdo de algumas de suas principais obras,
sua contribuição para a compreensão das práticas de diferentes
campos sociais, destacando seus limites e as críticas que suscita-
ram. Por último, debruçaremo-nos sobre o aporte da obra de
Bourdieu no Brasil, ressaltando sua contribuição ao desenvolvimen-
to de uma importante vertente crítica no campo da Sociologia da
Educação, e examinaremos principalmente a presença da reflexão
do autor na emergência de uma perspectiva microssociológica no
campo da pesquisa educacional brasileira.

Palavras-chave

Pierre Bourdieu – Sociologia da Educação – Pesquisa educacional –


Práticas sociais.

Correspondência:
Ione Ribeiro Valle
Rua Duarte Schütel, 233, ap. 601-I
88015-640 – Florianópolis – SC
e-mail: ionevalle@ced.ufsc.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 117-134, jan./abr. 2007 117
The work of the sociologist Pierre Bourdieu: an
undisputable irradiation

Ione Ribeiro Valle


Universidade Federal de Santa Catarina

Abstract

As every great scientific production, the work of sociologist Pierre


Bourdieu (1930-2002) was created around an intuition, and built
from strength-ideas formulated, developed, reformulated, and
resumed in most of his publications – a founding intuition that
seeks to articulate bigger concepts placed at the center of his
analysis of the structure of the social world and social relations.
Pierre Bourdieu, who wished to transform sociology in a total
science capable of restoring the fundamental unity of human
practice, attributed to his field a critical function that implies
unveiling educational, cultural, social, and symbolic mechanisms
of domination.
In the present work we shall attempt to retrace the social-
methodological path proposed and followed by Pierre Bourdieu
through the sketching of a sort of cartography of his work, and
the description of the main chapters of his intellectual and
professional trajectory, emphasizing his social and political
commitments. We shall also try to clarify the content of some of
his main works, and his contribution to the understanding of the
practices in different social fields, highlighting its limits and the
criticism it has raised. Lastly, we look into the legacy of Bourdieu’s
work in Brazil, focusing on his contribution to the development of
an important critical movement in the field of the sociology of
education, and we examine intently the presence of his reflection
in the emergence of a micro-sociological perspective in the field
of educational research in Brazil.

Keywords

Pierre Bourdieu – Sociology of education – Educational research –


Social practices.

Contact:
Ione Ribeiro Valle
Rua Duarte Schütel, 233, ap. 601-I
88015-640 – Florianópolis – SC
e-mail: ionevalle@ced.ufsc.br

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Como todas as grandes obras, a sociolo- Ele considera que essa disciplina possui uma
gia de Pierre Bourdieu (1930-2002) cresceu em função crítica fundamental, que consiste em
torno de uma intuição, uma idéia-força, que ele desvelar os processos de funcionamento soci-
desenvolveu, repetiu, reformulou e aplicou em al, especialmente os de dominação. Ele se pro-
diferentes problemáticas, retomando-a na maio- põe então, como objetivo último, a transformar
ria de suas mais de 300 publicações, traduzidas a sociologia numa ‘ciência total’, capaz de res-
para diversas línguas1 . Essa intuição fundadora tituir a unidade essencial da prática humana. Sua
pode ser resumida em uma fórmula única: ‘as obra pode ser lida de múltiplas formas: como
idéias puras não existem’. Caracterizada por uma uma análise dos mecanismos de dominação das
abertura sem precedentes da pesquisa socioló- sociedades modernas, como uma teoria das prá-
gica, sua produção teórica abriu horizonte para ticas sociais ou, ainda, como uma análise da
inúmeras outras abordagens científicas (no cam- produção das idéias e dos sistemas simbólicos.
po psicológico, antropológico, etnológico, cien- Pierre Bourdieu desenvolve uma aborda-
tífico, literário, econômico, cultural). gem singular dos fatos sociais, que se institui
Em virtude do caráter inovador e multi- como um pólo na paisagem sociológica con-
disciplinar, o pensamento sociológico de Pierre temporânea e impulsiona o surgimento de uma
Bourdieu tem influenciado estudos sobre arte, nova orientação teórica. Preocupado com o es-
comunicação, linguagem, religião, política e tudo da realidade – possível desde que seja
educação. Segundo Thompson (2001), sua obra ultrapassada – e tendo por fim a ‘objetividade
constitui um esforço excepcional para oferecer social’, ele constrói novos conceitos de interpre-
à análise do mundo social um quadro teórico co- tação, tentando superar a tendência ao isolamen-
erente, de interesse e de alcance comparável aos to disciplinar e à redução dos processos sociais
trabalhos de pensadores contemporâneos, que a estados estáticos, característicos da pesquisa
desenvolveram concepções muito diferentes. de base positivista. A sociologia é considerada
Intelectual crítico, instigante, capaz de como uma profissão ( un métier), o sociólogo
pensar de forma articulada teoria e práticas deve apreender os instrumentos metodológicos
sociais, Pierre Bourdieu exerce influência não para analisar racionalmente os fenômenos so-
somente sobre os pensadores franceses, mas ciais que observa (Bourdieu, 1999).
sobre os intelectuais de vários países, perten- A fórmula inaugurada por Bourdieu exige
centes a outras disciplinas das ciências huma- do pesquisador certo desligamento ou distancia-
nas e sociais, como o confirma sobretudo sua mento emocional do objeto e lhe impõe um im-
notoriedade no estrangeiro. Considerado por portante desafio: separar as representações imedi-
Ortiz (1994) como ‘autor de uma obra se não atas e os prejulgamentos espontâneos do saber
acabada pelo menos plenamente desenvolvida’, científico. A eficiência dessa fórmula, que parte do
ele funda – com ou contra pesquisadores de princípio de que as práticas sociais resultam de
sua geração – uma nova maneira de fazer so- uma cadeia complexa de ações (nem sempre cons-
ciologia e institui uma perspectiva teórico-crí- cientes) de longa duração, supõe primeiramente a
tica radical e original. revisão das categorias científicas mais habituais e
dos recortes teórico-metodológicos mais tradicio-
Uma experiência fundadora nais. Em seguida, a reaproximação de objetos di-
versos e de especializações disciplinares distintas.
Enquanto muitos de seus colegas pensa-
1. A vasta obra de Pierre Bourdieu compreende mais de 40 títulos, além
dores evocavam uma sociologia em estado de de algumas publicações importantes, como a Revue Actes de la Recherche
crise, Pierre Bourdieu reconhece sua importân- en Sciences Sociales (que se define como revista-manifesto e visa a cons-
trução de um novo pensamento sociológico) e a coleção Raisons d’Agir
cia e acredita que ela pode ser elevada a um (palavra de ordem que salienta a necessidade de ter razões para agir, ra-
alto grau de cientificidade e de objetividade. zões racionais, elaboradas, construídas).

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A problemática teórica proposta por Pierre o neoliberalismo, por tecer críticas profundas a
Bourdieu constitui-se num esforço sistemático intelectuais, ‘experts’, jornalistas, ‘ensaístas de
para transpor uma série de contraposições e de corte’ que, pela difusão dos mecanismos de
antinomias, que embaraçam as ciências sociais mundialização, participam da edificação de um
desde seu início: indivíduo contra sociedade, mundo dominado pela ideologia neoliberal. Figu-
ação contra estrutura, liberdade contra necessida- ra carismática, Bourdieu é considerado um dos
de. Sua abordagem metodológica, denominada de principais cientistas do mundo, permanecendo
conhecimento praxiológico, busca superar um di- objeto de uma verdadeira adoração por parte de
lema clássico do pensamento sociológico, ali- estudantes e pesquisadores das ciências humanas.
cerçado nas discordâncias entre duas perspectivas Segundo Lahire (2002), Bourdieu deixa
de investigação empírica, consideradas inconciliá- como legado intelectual um verdadeiro ‘tesouro
veis: o subjetivismo (pressupõe a possibilidade de sociológico’, que reúne esquemas interpretativos
apreensão imediata da existência vivida do outro múltiplos, extraídos do conjunto do patrimônio
e entende que essa apreensão se constitui num internacional de ciências humanas e sociais. Sua
modo mais ou menos apropriado de conhecimento reflexão transgrediu as fronteiras que separam
do mundo social) e o objetivismo (pressupõe uma (tanto no âmbito das instituições quanto das
ruptura com a experiência imediata, o que impli- representações) o campo da psicologia do cam-
ca colocar entre parênteses a primeira experiência po da sociologia, a esfera mental (ou psíquica) da
do mundo social e elucidar as estruturas e os prin- esfera social, o individual do coletivo.
cípios, inacessíveis a toda apreensão imediata, so- Em virtude da complexidade e da ampli-
bre os quais repousa essa experiência). tude da obra de Bourdieu, Lahire propõe uma
Pretendendo contornar essas oposições, espécie de ‘fidelidade crítica’, capaz de assegu-
Bourdieu desenvolve sua teoria da prática, que rar uma adequada apropriação dessa preciosa
visa ultrapassar o objetivismo sem cair no subje- herança, que consiste na aplicação ‘infinita’ de
tivismo, levando em consideração a primeira con- sua teoria em novos campos. Essa aplicação
dição à cientificidade da pesquisa sociológica, testemunha a continuidade de suas interrogações
qual seja: a ruptura com a experiência imediata. e de sua vontade permanente de testar seus
O autor reconhece que essa ruptura não é fácil, conceitos em análises de inúmeros objetos e de
pois os pesquisadores em ciências sociais partici- múltiplos campos sociais. Lahire ressalta ainda
pam diretamente de um determinado mundo que seu esforço teórico poderá ser ‘(mal)tratado’
social (grupo ou classe), estando envolvidos por se predominar a ignorância e o desdém de um
uma determinada linguagem, por conceitos e lado e a adoração ingênua de outro.
valores comuns da vida cotidiana. Para Lahire (2002), Bourdieu era um
Apesar de rejeitar a ‘etiquetagem’ e não pedagogo extraordinário que, além de aportar
possuir nenhuma simpatia pelo que considerava um saber teórico que insistia na importância da
como uma espécie de ‘maneirismo intelectual’, seu relação prática com a teoria e de rejeitar “a
nome aparece freqüentemente associado à abor- arrogância do sociólogo que recusa sujar as
dagem holística ou ao estruturalismo genético. mãos na cozinha da empiria” (Bourdieu, 1979,
Todo pensamento de Bourdieu vai consistir em p. 598), ensinou-nos o modo de aplicação do
‘desnaturalizar o mundo social’, propondo-se a que dizia. Ele fez um apelo à mobilização das
desvelar as regras do jogo intelectual, dos cientistas, mais sofisticadas ferramentas teóricas, visando
dos pensadores, dos políticos, dos educadores. apreender os objetos concretos ou socialmen-
Sociólogo polêmico, cuja obra suscitou te considerados como menores, além de evocar
distintas apropriações, apesar de seu desejo de permanentemente uma ascese do trabalho cien-
construir um fio condutor único, Pierre Bourdieu tífico e exigir seriedade e rigor na construção
tornou-se uma figura emblemática na luta contra do objeto e da pesquisa.

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Deve-se, portanto, evitar a utilização impostos aos jovens das classes desfavorecidas
simplificada – e simplista – de seus conceitos para levar adiante seus estudos. Beneficiário de
e de sua terminologia, dando a impressão de uma bolsa de estudos, o jovem bearnês (cujo
que nada se faz a não ser pôr a máquina de sotaque provocava riso entre os colegas) reali-
produzir textos para funcionar. Parece gozar de zou seus estudos, primeiramente, no Liceu de
amplo consenso a idéia de que o melhor tribu- Pau (que marcou sua memória pela experiência
to que se pode prestar a Pierre Bourdieu con- vivida num ‘edifício fechado, com corredores
siste em buscar inspiração na sua herança te- desertos e com ecos assustadores, onde se
órico-empírica, de forma rigorosa e crítica. debatia para afastar a fatalidade de suas ori-
gens’), freqüentou em seguida o prestigioso
Uma trajetória original Liceu Louis Le Grand em Paris e, finalmente, a
reputada Escola Normal Superior, destinada à
Da origem ‘modesta’ à posição ‘dominante’ formação da elite intelectual francesa.
Ainda que tenha conseguido galgar os
A trajetória de um cientista, como de todo mais altos degraus da hierarquia escolar e cien-
agente social, é caracterizada pelo conjunto de tífica, Bourdieu nunca se mostrou à vontade no
propriedades ligado à sua posição no espaço so- interior da intelectualidade francesa e confessou
cial. A análise da trajetória de um autor não se com freqüência ter tido muitas dificuldades para
reduz portanto a um exercício de estilo, sobretu- se desembaraçar de seu ‘sentimento de ilegitimi-
do em se tratando de Pierre Bourdieu, mas requer dade’. Seu pensamento e a maneira de se expres-
a utilização dos mesmos princípios científicos sar passavam permanentemente por um esforço
aplicáveis a um outro estudo sociológico. Os ele- de autocontrole, uma luta contra si mesmo e
mentos biográficos permitem levar em considera- contra seu meio de procedência, explicitando uma
ção as propriedades objetivas do autor, pois suas enorme distância entre o mundo de origem e o
construções epistemológicas, assim como suas mundo intelectual, que valoriza o dom da fala, o
tomadas de posição – dogmáticas ou caricaturais espírito ágil e as tiradas fáceis. Ele revelou, em
–, provêm de uma mesma origem. Esta pode for- várias oportunidades, não gostar do que havia de
necer elementos fundamentais para explicar as intelectual nele, seja em relação à autoridade da
práticas produzidas no decorrer da história indivi- qual estava investido, conseqüência da lógica da
dual e coletiva. consagração escolar, seja em relação à necessida-
As raízes do pensamento de Pierre Bourdieu de de falar com autoridade, o que sempre foi um
podem ser encontradas numa dolorosa, mas rica e grande dilema para ele. Além disso, Bourdieu ad-
diversificada experiência existencial, reconhecida mitia enfrentar uma espécie de ‘vergonha social’,
pelo próprio autor. O distanciamento em relação que lhe parecia análoga ao sentimento experi-
ao mundo intelectual e o fato de ser constante- mentado pelos homossexuais no interior de uma
mente lembrado de seu ‘estrangeirismo’ lhe permi- ordem instituída que os exclui. Para ele, a vergo-
tiram ‘ver o que outros não vêem’ e o incitaram a nha endurece os caracteres e provoca uma von-
sentir o que outros não sentem: os códigos implí- tade imensa de compreender e de denunciar.
citos, as rotinas, os fundamentos que governam o
mundo das idéias e orientam as práticas cotidianas. Da filosofia à antropologia
Nascido em 1º de agosto de 1930 numa
pequena cidade francesa (Denguin), situada na Para compreender a trajetória universitária
Região do Béarn (Departamento dos Pirineus- e profissional de Pierre Bourdieu e principalmente
Atlânticos), onde seu pai ocupava o posto de sua conversão da filosofia para a sociologia, é
funcionário da agência de correios, Bourdieu se necessário observar a configuração do campo
confrontou muito cedo com os obstáculos intelectual durante os anos de sua formação.

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Nos anos 1950, o campo filosófico apre- terem suas gêneses em refutações semelhantes,
sentava-se dominado pelo existencialismo. No e se impõem rapidamente aos intelectuais fran-
entanto, após a Segunda Grande Guerra, a re- ceses dos anos 1960.
ferência existencialista – sobretudo sob a for- Pierre Bourdieu se formou no meio pari-
ma sartriana – deixava progressivamente insa- siense dos anos 50 e início dos anos 60 do sé-
tisfeitos os jovens filósofos, em particular os culo XX e pertence, portanto, à geração (repre-
egressos da Escola Normal Superior. Rejeitar a sentada principalmente por Lévi-Strauss, Althusser
história (ou a cultura) dessa instituição parecia e Foucault) que se constitui contra o existen-
fundamental à maioria desses jovens, na medida cialismo dominante no campo intelectual e se
em que a filosofia, como especialidade predo- opõe à filosofia sem sujeito, ao subjetivismo, ao
minante, parecia-lhes puramente ascética e objetivismo, ao humanismo existencialista, ao
desprovida de uma verdadeira função teórica. personalismo anti-humanista. Ele soube aliar o ri-
Além disso, a conjuntura universitária se mos- gor do método científico com a criatividade do
trava totalmente favorável ao questionamento artista e se consagrou ao trabalho incansável da
dos modelos acadêmicos em vigor. A ampliação pesquisa, no qual investiu uma libido sciendi sem
de vagas para enquadrar um público crescen- fim nem fundo. O resultado desse engajamento é
te, as novas oportunidades geradas por progra- a produção de uma cultura teórica incomparável,
mas especiais (de bolsas de estudo por exem- que combina autores cuja tradição canônica pro-
plo), a diversificação dos modelos de seleção, curou opor, adaptando-os e retrabalhando-os
o desenvolvimento do ensino das disciplinas conforme as necessidades concretas das análises
das áreas humanas e sociais, assim como o sociais, a saber: Durkheim e Weber, Marx e Mauss,
reforço das instituições de pesquisa e de eru- Cassirer e Wittgenstein, Husserl e Lévi-Strauss,
dição, que marcaram as mudanças no sistema Bachelard e Panofsky, por exemplo.
de ensino francês, favoreceram o aparecimen- É nesse contexto que Pierre Bourdieu se
to de novos estilos intelectuais, distintos da distancia da filosofia para abordar um vasto
tradição racionalista e histórica. campo das ciências sociais. Sua formação filo-
As transformações do Ensino Superior sófica está marcada por uma dupla herança: a
produzem claramente suas conseqüências nos história das ciências (tendo como referência
anos 1960. O acesso a uma posição universitá- Gaston Bachelard e George Canguilhem) e a
ria se torna menos dependente das imposições fenomenologia (segundo a versão de Husserl e
características da ‘ordem de sucessão’, que Merleau-Ponty), que entrou em crise no final
garantia a reprodução da identidade dos deten- dos anos 1950. Bourdieu, assim como Foucault
tores de postos por meio da seleção dos can- (que apesar de suas poucas confidências reve-
didatos à sua sucessão. Essa conjuntura gerou la um mal-estar em relação à norma, à cerimô-
uma nova atmosfera intelectual, que aparente- nia, à representação, à tagarelice, à cena oficial)
mente parecia facilitar e valorizar a criatividade e Derrida, testemunha essa crise e a necessida-
e a originalidade. Em virtude disso, muitos fi- de emergente de inventar algo diferente, de
lósofos sentiram necessidade de romper com a investir numa outra direção.
imagem de amadorismo e verbalismo, associa- No entanto, Bourdieu se mostra igual-
da ao existencialismo em declínio, e compreen- mente atraído pela perspectiva desenvolvida por
deram que a ciência não podia mais permane- Lévi-Strauss. Ele acompanha de perto a evolu-
cer longe dos problemas sociais e políticos, ção da sua obra e acaba adotando certos as-
reduzindo-se a uma simples manipulação ins- pectos de seu método, principalmente no que
trumental. Essa conjuntura abre espaço para o concerne à importância concedida à análise
estruturalismo e a epistemologia, movimentos das relações e das oposições, presente em seus
intelectuais que evoluem paralelamente, por primeiros estudos etnográficos. Originária da

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filosofia, a etnologia permitia uma reconversão desvelando a maneira pela qual se efetivava a
legítima, graças à sua posição estrutural, po- relação entre dominantes e dominados.
dendo funcionar como uma ligação intermedi- Sua abordagem também não se identifica
ária entre filosofia e sociologia. com o tipo tradicional de análise marxista que
A obra de Weber também inspirou Pierre considera os fenômenos políticos como simples
Bourdieu, que se interessou pela maneira em manifestação dos processos socioeconômicos ou
que os grupos aparecem nos diferentes campos das relações e oposições entre as classes. As
e lutam pelo poder e para ampliar sua influên- análises marxistas vêem o mundo social como um
cia. Segundo Kalinovski (2003), não se trata de espaço unidimensional, onde tudo é orientado e
explicitar a forma de apropriação da obra de conduzido, direta ou indiretamente, em função do
Weber por Bourdieu, mas de evocar, segundo modo de produção econômica e das contradições
modalidades distintas, a reação contrária à ins- dele geradas. Para Bourdieu, o mundo social é um
tituição ou às instituições universitárias e ao espaço multidimensional, que não pode ser redu-
papel social dos intelectuais em geral. Bourdieu zido a um determinismo econômico de classe,
atribuiu, freqüentemente, à sua origem e à sua pois se apresenta diferenciado em campos relati-
estadia na Algéria tanto a decisão de se afas- vamente autônomos, no interior dos quais os in-
tar da filosofia para fazer sociologia, quanto divíduos ocupam posições determinadas. Segundo
sua crítica à postura escolástica, considerada Thompson (2001), ele emprega de maneira distin-
como tributária de uma posição em relação ao ta a noção de classe em relação aos marxistas
mundo acadêmico. O que surpreende na sua obra tradicionais, não a definindo como simples opo-
é o contraste exacerbado entre a monumentalidade sição entre proletários e não-proletários, mas
erudita que se afirma, as distinções sutis que ele como conjuntos de agentes que ocupam posições
opera entre os fenômenos ou doutrinas que pare- análogas no espaço social, possuem quantidades
cem inacessíveis aos não-eruditos e o caráter aber- similares de capital, oportunidades semelhantes
tamente político de suas definições concernentes de sucesso e disposições muito próximas.
ao sistema de domesticação das massas, caracte- Para Pinto (2003), a exemplo do que fi-
rístico das sociedades dominadas por intelectuais. zeram Derrida e Foucault, Bourdieu expõe uma
Enquanto Bourdieu se mostra altamente provoca- maneira de sair da via ortodoxa universitária e
dor em relação a esse grupo social, que se bene- intelectual e propõe uma nova relação com a
ficia economicamente, Weber refere-se ao uso es- cultura, com a filosofia, portadoras de autorida-
pecífico que é feito do poder intelectual. Longe de de, mas também de censura intelectual. O que os
descrever essa sociedade dominada pelos intelec- aproxima é o esforço de desconstruir certos
tuais como uma sociedade esclarecida, Weber in- pressupostos intelectuais ou, mais precisamente,
siste no fato de que, para se perpetuar, esse poder de replicar a autoridade intelectual como forma
permanece monopólio de um único grupo social de autoridade social. Bourdieu é o que assume
excludente dos demais. Os intelectuais são vistos melhor a produção de um discurso sobre si,
por essas perspectivas como preocupados, antes respondendo a três exigências: uma ética, que
de tudo, em manter privilégios que lhes garan- implicou testar em si mesmo a pertinência dos
tam o acesso à dominação social. Weber vê jus- instrumentos de análise; uma socioanalítica,
tamente na autonomia dos intelectuais a condi- que procurou compreender o que as tomadas
ção de eficácia máxima de sua heteronomia, o de posição devem às pulsações sociais; uma
que permite oferecer ao soberano, mas também político-intelectual, que consistiu em incitar,
aos grupos sociais mais favorecidos, os serviços pela virtude do exemplo, os pesquisadores a
de legitimação que apresentam a melhor atua- fazerem mais do que ‘contar histórias’.
ção. Bourdieu reconstituiu o sistema de Weber A obra de Pierre Bourdieu, que ele sem-
analisando o princípio gerador desse sistema e pre considerou como resultado de um esforço

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coletivo, contribuiu para reaproximar sociologia coletivas não têm sentido em si mesmas, mas
e história. Para tanto, ele procurou incitar a somente numa estrutura racional e hierárquica,
sociologia a integrar a história nas suas abor- que não cessa de se modificar e de se deslocar:
dagens, por entender que a oposição entre ‘Ainda que os conteúdos mudem, a diferença,
passado e presente é arbitrária e por acreditar isto é, a hierarquia e a dominação continuam
que a história se inscreve no corpo sob a for- intactas’. Ele parte da idéia de que as pessoas
ma de habitus, manifestando-se tanto no esta- emitem juízos de valor – como, por exemplo,
do objetivo (máquinas, monumentos, livros, ‘detesto música sertaneja’ – para se diferenciar dos
teorias) quanto no estado incorporado (sob a que ocupam posições hierarquicamente inferiores.
forma de dispositivos).
Bourdieu expõe, com um constrangimen- O espírito científico colocado a nu ou a
to nem sempre contido e freqüentemente assu- inscrição social das idéias
mido, um ponto de vista intelectual crítico.
Segundo ele, os intelectuais não estão mais na A característica principal da teoria social de
vanguarda, como se pensava antes, pois não se Pierre Bourdieu consiste na sua não-inscrição nas
mostram preparados para intervir no mundo correntes sociológicas tradicionais. Ele se situa,
atual, nem por formação nem por disposição. como pudemos ver, num contexto em que o
Eles colaboram passivamente com as forças pensamento científico se fundamenta em múlti-
econômicas e políticas dominantes, parecendo plas abordagens e não mais por uma disciplina
controlados por uma espécie de ‘aristocratismo unificada e empenha-se em combinar diferentes
profissional’, que os desvia das questões trivi- perspectivas teóricas no campo conceptual. Uma
ais da vida cotidiana e das realidades sociais e outra característica de sua obra é o fato de que
econômicas. Ele reconhece, no entanto, que a perspectiva crítica se apresenta muito desenvol-
está cada vez mais difícil acumular competên- vida, estando marcada por uma profunda convic-
cias múltiplas (econômicas, sociológicas, histó- ção política resultante de uma constatação cien-
ricas, políticas), indispensáveis à compreensão tífica: não se pode mais explicar o mundo social
do mundo e à antecipação das conseqüências a partir de antigos e rígidos modelos teóricos.
futuras. O intelectual crítico que o mundo de A construção teórica de Bourdieu é pre-
hoje requer deve ser coletivo e profissional. cedida por uma sucessão de críticas explícitas,
São portanto os filósofos, símbolos do endereçadas principalmente ao estruturalismo
‘pensamento puro e da inteligência arrogante’, (rejeitado em sua forma extrema em razão da
os primeiros alvos de Pierre Bourdieu. A maio- redução objetivista, que nega a prática dos
ria dos seus livros faz uma crítica profunda à agentes e retém as imposições estruturais); ao
chamada ‘razão pura’. Enquanto a filosofia ale- interacionismo (recusado por considerar que os
mã tentava explicar o sentido do belo, do bom agentes não são portadores de nenhuma deter-
ou do mau gosto pessoal por um julgamento minação social e por omitir a gênese social); ao
transcendental e subjetivo, ele procura mostrar subjetivismo (rejeitado por forjar o mito de um
que o gosto é uma construção social e que está sujeito sem história e sem determinantes); à
ligado à posição ocupada num determinado fenomenologia (por vê-la como exclusivamen-
campo, sendo revelador de maior ou menor te descritiva, constituindo-se somente numa
prestígio. Bourdieu se apóia numa análise dos etapa da pesquisa).
julgamentos estéticos para construir uma teo- Pierre Bourdieu não se inscreve igualmen-
ria social que repousa sobre a idéia de que os te nos diferentes pólos sociológicos da França
indivíduos e os grupos existem somente numa contemporânea e desenvolve uma crítica impor-
relação de distinção entre si. As entidades lin- tante aos pressupostos teóricos ou aos métodos
güísticas, as propriedades sociais, individuais ou de investigação utilizados por esses pólos:

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1. O individualismo metodológico de Raymond para a fenomenologia, que descreve as condu-
Boudon, apoiado sobretudo no pensamento de tas como sendo orientadas na direção de deter-
Tocqueville e de Weber, é criticado por sua visão minados fins. Ele recorre também à noção de
redutora dos atores sociais. Esse paradigma expli- estratégia, utilizada pela sociologia interacionista
ca um fenômeno social qualquer como resultado (principalmente por Goffman), visando restituir
de um conjunto de comportamentos individuais uma margem de invenção e de improvisação nos
e, portanto, produto da agregação das ações in- agentes. Ademais, Bourdieu transpõe para a
dividuais, além de postular que a lógica dessas sociologia a noção chomskyana de ‘competên-
ações deve ser procurada na racionalidade dos cia generadora’. No entanto, diferentemente de
atores, no sentido análogo àquele empregado Chomsky que a considera como inata, ele a
pelos economistas neoliberais. concebe como geradora das condutas, sendo
2. A abordagem estratégica de Michel Crozier, portanto adquirida. Produto da aprendizagem,
que tem por objetivo principal a análise das os esquemas de percepção e de ação concebem
relações de poder nas organizações, mostran- as condutas sob a forma de disposições.
do que os atores – racionais, mas portadores Contra a maioria dos sociólogos de seu
de uma racionalidade limitada – dispõem de tempo, Pierre Bourdieu propõe o que chama de
uma margem de liberdade que é o fundamento estruturalismo construtivista. Por estruturalismo,
do poder, a qual interfere na maximização dos quer dizer que existe no mundo social, e não
resultados da empresa ou da administração. somente nos sistemas simbólicos, linguagens,
3. A sociologia da ação, de Alain Touraine, mitos, estruturas objetivas, independentes da
centrada na análise dos movimentos sociais e consciência ou da vontade dos agentes, capa-
seu papel decisivo na mudança social. zes de orientar ou de impor suas práticas ou
4. A sociologia política também é objeto de suas representações. Por construtivismo, enten-
suas crítica por perpetuar a ideologia da de- de que há uma gênese social tanto nos esque-
mocracia, ensinada nas instituições com a fi- mas de percepção, de pensamento e de ação,
nalidade de formar os quadros de pessoal do quanto nas estruturas sociais.
Estado, ignorando os limites e dissimulando
as conseqüências das ações efetivadas em Representante de uma nova
nome do ideal democrático. Nesse sentido, ‘abordagem sociológica’
todos os campos da sociologia podem contri-
buir para a legitimação da ordem existente, Aplicação científica da sociologia: uma
fornecendo argumentos utilizados pelos do- ciência libertadora
minantes para manterem sua dominação.
Bourdieu expõe as grandes linhas de
Segundo Sapiro (2003), Bourdieu reteve uma abordagem distintiva do fenômeno políti-
de sua formação filosófica a desconfiança em co, cujas implicações metodológicas estão bem
relação às explicações mecanicistas, de base presentes: é superficial analisar os discursos e
behaviorista, que procura os fundamentos fisi- as ideologias políticas enfatizando os enunci-
ológicos do comportamento ou fundamentada ados, sem considerar a constituição do campo
na análise estruturalista, que reduz as condu- político e a relação entre esse campo e o espa-
tas a simples execução mecânica de uma regra. ço social mais amplo, o qual abrange as posi-
Contrapondo-se à visão mecanicista do estru- ções e os processos sociais. Ele chama a aten-
turalismo e do marxismo, que faz dos agentes ção para a exigência de fundar toda análise do
simples suportes das estruturas ou executores discurso político na construção do campo, no
de regras e de uma função específica, Bourdieu interior do qual esse discurso é produzido e
reintroduz a ‘concepção finalista’, importante recebido, e observar as organizações distintivas,

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 117-134, jan./abr. 2007 125
seus esquemas de produção e de percepção e decorre de uma ‘objetividade interiorizada’,
as relações mantidas com o espaço social no pressupondo ‘esquemas generativos’, que ori-
seu conjunto. entam e determinam a escolha estética. Na
Os avanços científicos mais marcantes, medida em que os sistemas de classificação são
impulsionados por Pierre Bourdieu, podem ser engendrados pelas condições sociais e que a
observados em diferentes domínios: nos traba- estrutura objetiva de distribuição dos bens
lhos sociológicos da cultura, incluindo a soci- materiais e simbólicos se dá de forma desigual,
ologia das instituições escolares e universitári- toda escolha tende a reproduzir as relações de
as, numa sociologia da arte que se desenvolveu dominação, certos estereótipos e as posições
desde os anos 1960, nos estudos referentes ao ocupadas num determinado campo.
consumo cultural, numa sociologia da educa- A tomada de consciência em relação ao
ção, dos bens simbólicos, dos grupos sociais, papel reprodutor do sistema escolar é muito
das classes de idade. recente. A tradição libertária do movimento
Segundo Thompson (2001), os estudos operário (em sua vertente marxista) conserva
de Bourdieu procuram mostrar que a linguagem uma grande veneração pela educação e pela
é um fenômeno sociohistórico e que as trocas cultura. Veneração considerada legítima por
lingüísticas compõem as atividades práticas e Bourdieu, mas que infelizmente introduz uma
possuem, portanto, uma dimensão sociohistórica. espécie de reverência simplória (relativamente
A elaboração de manuais de gramática, de dici- consensual entre os intelectuais e artistas), fa-
onários e de um corpo de textos exemplificando zendo esquecer que a ciência e a arte são
o uso correto da cultura escrita é a manifesta- universais, mas que existem pessoas, grupos ou
ção visível desse processo de normalização pro- classes que têm o monopólio do universal. A
gressiva. Enfatizando os aspectos institucionais obra de Bourdieu torna-se, portanto, funda-
do uso da linguagem e explorando-os com uma mental para o desenvolvimento de uma ‘soci-
inteligência sociológica aguda, Bourdieu define ologia da educação crítica’, capaz de romper
os aspectos fundamentais das condições sociais com o ciclo do ‘otimismo pedagógico’, ainda
de seu uso, ainda ausentes na literatura sobre os predominante no sistema educacional, sobretu-
atos da linguagem. do nos discursos oficiais.
Reconstituindo com cuidado o campo Todo o sistema escolar está construído
lingüístico e estudando de perto certas estratégi- para identificar e reificar a inteligência, valorizar
as dos indivíduos face às circunstâncias formais ou o dom e a vocação: inteligentes, dotados e
oficiais, Bourdieu observa que as classes superio- vocacionados têm acesso à ciência e à cultura e
res estão dotadas de um habitus lingüístico que serão bem-sucedidos na escola e fora dela; os
lhes permite enfrentar com mais tranqüilidade tais demais devem acomodar-se nas habilitações sem
circunstâncias. As classes inferiores, cujas condições prestígio, ocupar as funções inferiores e conten-
de existência estão menos propícias à aquisição de tar-se com as posições subalternas (adequadas
um habitus que coincida com os mercados ofici- para os que não conseguiram chegar aos níveis
ais, além de valorizar pouco esses produtos lin- mais elevados da pirâmide escolar). Segundo
güísticos, se mostram bem menos preparadas para Bourdieu, a escola e a família lembram repetida-
encarar essas situações. mente que é necessário obter títulos escolares
Pierre Bourdieu não negligencia o fato para não ficar desempregado ou para preencher
de que os indivíduos estão predispostos, em os cargos mais prestigiados e melhor remunera-
virtude do habitus, a agir de certa maneira, a dos, o que não é totalmente falso, mas esse fato
perseguir determinados objetivos, a cultivar não pode implicar uma justificação da ordem
certas preferências. O gosto, por exemplo, não estabelecida. De maneira talvez mais decisiva, em
é visto apenas como fruto da subjetividade, mas razão da implantação de um sistema educativo

126 Ione R. VALLE. A obra do sociológo Pierre Bourdieu:...


estandardizado e independente das variações mesmo, quadros conceituais, que revelam a
regionais e com a unificação de um mercado de submissão a uma demanda social, que poderá
trabalho onde as posições administrativas depen- ser fictícia. Nesse caso, o sociólogo se torna
dem do nível de instrução, a escola acaba apare- prisioneiro das expectativas, dos conflitos ide-
cendo como o principal meio de acesso ao mer- ológicos, de investimentos sobre pesquisas que
cado de trabalho, principalmente nas regiões servem para designar, nomear, normalizar o
pouco desenvolvidas e menos industrializadas. mundo social e impor seus pontos de vista.
No entanto, o sistema escolar produz Essa preocupação com a autonomia da
sofrimentos terríveis, profundos, não reconhe- reflexão sociológica e a exigência de objetivida-
cidos porque são admitidos e legitimados: uns de científica não significa um desinteresse ou
se sentem infelizes porque não obtiveram da uma indiferença em relação às questões sociais;
escola aquilo que esperavam ou, se tiveram ao contrário, conduz à afirmação da vocação
sucesso na sua escolaridade, é a sociedade ou política da sociologia, colocando-a a serviço dos
o mercado de trabalho que os decepciona; dominados. Nesse sentido, os trabalhos de Pierre
outros porque são excluídos ou fracassam na Bourdieu aparecem como eminentemente políti-
escola, atribuindo a si mesmos a responsabili- cos e conduzem à redefinição da ação política, do
dade por seu percurso escolar. A escola está sentido do político e do uso político da sociolo-
revestida de uma aparência meritocrática, total- gia. Trata-se portanto de sair da concepção –
mente dissimulada pela ação pedagógica, pela ainda corrente e talvez predominante – de ciên-
autoridade pedagógica, pelo trabalho pedagógi- cia neutra e de ideologia política, permitindo uma
co e pelo sistema de ensino, geradores portan- apropriação política do trabalho sociológico: ‘a
to da violência simbólica. Bourdieu procura sociologia deve possibilitar o desvelamento das
demonstrar como se dá a adesão dos agentes estratégias de dominação’.
sociais à ordem estabelecida e como o sistema Descrevendo o campo social como espa-
de ensino está implicado nessa adesão, nessa ço de conflito, onde os agentes dominantes
cumplicidade impensada, pré-reflexiva, incorpo- procuram reproduzir suas condições de domi-
rada pelas formas de seleção e classificação, nação, o sociólogo se impõe uma dupla tare-
sancionadas e reproduzidas pela escola. fa: realizar um trabalho científico com fortes
implicações políticas e se confrontar com todos
Crítica à dissociação entre trabalho os agentes sociais que, conscientemente ou
sociológico e engajamento pessoal não, concorrem para a manutenção da ordem
existente, a saber: os intelectuais, os jornalistas,
Durante muito tempo Pierre Bourdieu evi- os funcionários das instituições públicas.
tou a postura de intelectual militante nos mol- Assim, ainda que a sociologia tenha por
des de Sartre (intelectual ‘total’, que se apresenta finalidade primeira o conhecimento e não a
em todas as frentes, mas dispõe apenas das ação, pode fornecer instrumentos de compre-
armas da especulação filosófica). Segundo ensão do mundo social e preparar os agentes
Bourdieu, a sociologia deve evitar a tentação do para lutar contra as várias formas de domina-
profetismo, que implica a pretensão em encon- ção. É função da sociologia contribuir para uma
trar soluções para os problemas sociais, impos- ação efetiva de emancipação, por meio do es-
tas do exterior (como a delinqüência, o fracas- tudo das representações do mundo social e da
so escolar, os conflitos organizacionais). elucidação do caráter arbitrário de certos es-
Com a profissionalização da sociologia, quemas de pensamento, difundidos e reprodu-
os sociólogos se tornaram dependentes dos zidos historicamente. O papel do sociólogo é
que encomendam estudos sociológicos: o ris- divulgar o que está vendo, percebendo, cons-
co consiste em impor problemáticas ou, até tatando, pensando, comprovando pelos estudos,

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 117-134, jan./abr. 2007 127
realizados com o apoio do aparelho estatístico tido, a sociologia pode tornar-se um contrapoder
disponível. É fundamental que as constatações e favorecer a democracia, pois ela opõe uma
decorrentes dos discursos científicos produzi- contraviolência simbólica ao poder simbólico.
dos sejam traduzidas numa linguagem menos
científica, tornando-se acessíveis a todos. Um engajamento individual militante
Essa nova vocação da sociologia está
baseada numa definição particular da atividade Bourdieu se engaja intensamente nas te-
política: os campos são espaços de produção orias políticas normativas, mas não procura for-
simbólica, nos quais os agentes encontram-se mular programas políticos. No entanto, suas
em luta permanente para infundir as categori- revelações implacáveis da natureza do poder e
as de (di)visão do mundo social. Essa luta sim- dos privilégios, dissimulados sob formas variadas
bólica visa à produção de sentidos comuns e e sutis, e a atenção dispensada ao caráter teó-
revela a posição específica do Estado, que dis- rico-prático dos agentes que constroem o mun-
põe do monopólio da dominação legítima e, do social dão às suas obras uma carga crítica
dessa forma, procura inculcar uma definição implícita. Para ele, a sociologia, mesmo a mais
legítima do mundo social. Em conseqüência, crítica, é lida principalmente pelos dominantes,
ele detém também o monopólio da violência que se servem dela para fazer uma espécie de
simbólica, que permite assegurar a dominação demagogia racional, sendo utilizada como ins-
dos dominantes, efetivando-a pelo emprego de trumento não apenas de justificação, mas sobre-
instrumentos legítimos, que se tornam eficazes tudo de arranjo das técnicas de dominação.
porque repousam sobre a negação e dissimula- Como toda grande obra, o pensamento de
ção da dominação. Pierre Bourdieu oferece elementos essenciais para
Bourdieu nomeia não apenas os responsá- pensar o mundo social. Como vimos, a sociolo-
veis pela eficiência dos mecanismos de reprodu- gia não pertence a Pierre Bourdieu, mas sua obra
ção social, mas também os que considera como pertence à tradição sociológica. Propondo-se a
cegos: primeiramente os homens políticos, que ‘pensar a política sem pensar politicamente’,
não sabem intervir na sociedade e contribuem Bourdieu procurou demonstrar que, longe de se
para transformá-la no pior; em seguida, a mídia, opor, as ciências sociais e o militantismo podem
que acaba por descrever ou colocar em cena constituir duas faces de um mesmo projeto, pois
menos a realidade social do que seu olhar mise- analisar e criticar a realidade social permite con-
rável sobre ela. Os políticos não estão preparados tribuir para sua transformação.
para discutir os problemas sociais e quando o As modalidades de intervenção política
fazem é tarde demais: tudo se decide nos basti- de Pierre Bourdieu se modificam consideravel-
dores das comissões e dos comitês, longe dos mente desde o início de 1990. Ao engajamento
cidadãos. A mídia, assim como o fazem outros científico, vem juntar-se um militantismo pessoal,
grupos dominantes, tenta impor sua representa- que conduz à multiplicação das formas de ação
ção subjetiva como representação coletiva. – inicialmente como testemunha não apenas do
Pierre Bourdieu lembra que ‘o que a his- sofrimento social, mas também do sofrimento
tória faz, a história pode desfazer’. Assim, expon- individual (freqüentemente imperceptível, resul-
do aos agentes sociais os efeitos da dominação, tante do desequilíbrio das relações entre os in-
a sociologia fornece argumentos mobilizáveis na divíduos). Ele põe em evidência a ‘miséria de
ação política. A descrição das relações sociais condições’ (sofrimentos horizontais, de condi-
não se reduz à simples demonstração científica, ção, próprios de uma classe ou grupo) e a ‘mi-
mas se constitui num instrumento de libertação séria de posições’ (sofrimentos verticais que, no
dos dominados, contribuindo para que possam interior de uma mesma categoria, grupo ou clas-
apoderar-se de seu próprio destino. Nesse sen- se, atingem os indivíduos situados nos níveis

128 Ione R. VALLE. A obra do sociológo Pierre Bourdieu:...


mais baixos da hierarquia ou num lugar que não dos os sinais do que Durkheim chamou de
corresponde às suas expectativas). anomia. Ele não se refere a essas políticas como
A fronteira social entre ‘miséria de situ- se tratasse de um processo natural, pois elas fo-
ação’ e ‘miséria de posição’, desenvolvida na ram engendradas por pesquisadores e tanto sua
obra Miséria do mundo (Bourdieu, 1993), é produção quanto sua difusão foram mantidas
ínfima: no mundo social, existem sofrimentos em segredo. A principal questão para Bourdieu
que não são levados a sério. Eles podem desen- é saber se os que antecipam as conseqüências
cadear outros sofrimentos e interferir de forma funestas da mundialização, apoiados num saber
inesperada no plano político. Essa obra, que científico, devem também permanecer silencio-
pode ser lida como um ato político (no senti- sos. Ele não permaneceu.
do dado por Durkheim aos procedimentos so- Para Bourdieu, a produção científica, so-
ciológicos na sua totalidade: constituir um bretudo em ciências sociais, experimenta uma
saber ‘reflexivo’ que permita à sociedade inter- dicotomia que lhe parece totalmente nociva: os
vir nela mesma), é fruto de uma coleta de re- que se consagram ao trabalho científico, com
latos de vida, sob a forma de entrevistas, estan- o apoio de métodos sábios, visando seus cole-
do mais próxima da literatura ou do jornalismo gas eruditos, e os que produzem saberes e se
que de uma análise científica. Seu objetivo é engajam na lutas sociais: ‘para se tornar um sá-
aprofundar os conceitos e testar a coerência bio engajado, legitimamente engajado, é neces-
dos instrumentos da sociologia crítica: ‘o que sário engajar um saber’. O pesquisador não é
o mundo social fez, o mundo social, armado profeta nem mestre do pensamento. Ele deve
desse saber, pode desfazer’. escutar, pesquisar, inventar, elaborar conteúdos
Nessa obra, os sofrimentos silenciosos, e meios de ação para poder colaborar com os
individuais e conseqüentemente sociais, alguns órgãos que se dão por missão – ‘cada vez mais
mais agudos, outros novos, que em geral a mi- molemente’ – resistir ao discurso neoliberal,
séria impede de exprimir, é que têm a palavra. A sustentado em expressões de liberdade e de re-
aposta é oferecer à sociologia uma ‘capacidade’ laxamento. Ele deve colocar a serviço de todos,
que as outras ciências humanas não têm: ‘expri- numa linguagem simples, as difíceis aquisições
mir e tornar visíveis as misérias de posição’, não da pesquisa, pois freqüentemente é em nome
apenas os sofrimentos horizontais, mas também da ciência que se oprime: é hora de acender os
os sofrimentos verticais. A intenção dos pesqui- ‘contrafogos’ para resistir à investida neoliberal.
sadores (coordenados por Bourdieu) foi fazer o
que faz todo (bom) jornalista: ver, escutar, ob- O papel reprodutor dos meios de
servar diretamente e, então, formular questões- comunicação
hipóteses, baseadas num conhecimento teórico
e prático da pessoa interrogada e das condições A mídia também passa a ser alvo das
sociais, das quais ela é o resultado. críticas de Bourdieu. A imprensa é considerada
Em seguida, Bourdieu mostra uma forte como um microcosmo, que tem leis próprias e
tendência a passar da reflexão à ação. Reclaman- abriga relações de força específicas. Esse espa-
do por uma sociologia mais ativa, vai às ruas e ço está dominado por forças que vão no sen-
protesta contra as ameaças, cada vez maiores, da tido contrário ao desvelamento dos mecanis-
política de mundialização, que se torna seu prin- mos de reprodução. É no interior desse universo
cipal cavalo-de-batalha. Ele está convencido de de poder simbólico que precisamos agir e com-
que há uma correlação entre as políticas neo- preender por que é importante desconfiar das
liberais e as taxas crescentes de delinqüência, aparências, das evidências, do senso comum,
entre as políticas neoliberais e as taxas de de tudo o que é apresentado como natural
criminalidade, entre as políticas neoliberais e to- pelos meios de comunicação.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 117-134, jan./abr. 2007 129
Se a polícia e a justiça são o braço visí- Críticas e mal-entendidos a propósito da
vel da repressão simbólica, os intelectuais e jor- teoria de Pierre Bourdieu
nalistas são freqüentemente sua cabeça. São
eles que ‘fazem de conta que pensam’ e pas- No entanto, a teoria social de Pierre
sam seu tempo a atuar na manutenção da or- Bourdieu é objeto de críticas contundentes e
dem moral e simbólica, substituindo a função bem ácidas, tanto de seus aliados quanto de
ideológica e carismática tradicionalmente seus detratores. Para Brito (2002), seu trabalho
exercida pelos padres. Seus silêncios, suas “despertou paixões e ódios [na comunidade
omissões, suas abstenções são tão significativos científica e midiática], mas nunca deixou nin-
quanto suas ações. Mesmo se dizendo de es- guém indiferente” (p. 5). Sua reflexão socioló-
querda, eles vivem como liberais e contribuem gica contribuiu para desestabilizar certas práti-
de maneira efetiva para a perpetuação e repro- cas intelectuais relativamente cristalizadas. Ele
dução da ordem. foi permanentemente atacado pelo seu caráter
Ora, os que posam de jornalistas-filóso- considerado como atrabiliário e por recusar a
fos são apenas porta-vozes da autoridade confrontação de suas teorias com a de outros
estabelecida que, por falta de reflexão, precipi- sociólogos de seu tempo: sempre se negou a
tação ou conformismo, estão sempre de acor- responder a questões que, segundo seu ponto
do e demonstram se sentir muito bem nessa de vista, não eram as suas. Entretanto, as críti-
espécie de ‘altéia moral’, que envolve um pro- cas que parecem mais relevantes dizem respeito
fundo sentimentalismo. Eles aparecem como aos aspectos conceituais – e pontuais – de sua
‘intelectuais proletaróides’ (para usar a categoria teoria e a certos mal-entendidos.
de Weber), dissimulando a ligação entre ação e Segundo Lahire (2002), a teoria dos
interesse, entre as práticas dos agentes e os campos – que deveria chamar-se teoria dos
objetivos que perseguem, mais ou menos cons- campos do poder – não pode constituir uma
cientemente. Cabe ao sociólogo compreender teoria geral e universal, mas representa uma
não somente o que se diz na mídia, mas sobre- teoria regional do mundo social. Essa teoria
tudo o que não se diz, pois em virtude de suas empenha muita energia para iluminar os gran-
posições, esses profissionais podem negar a des palcos em que ocorrem os desafios do
hierarquia, em vez de procurar rompê-la. poder, mas pouca para compreender os que
As críticas exacerbadas de Bourdieu so- sobem nesses palcos para instalar os cenários,
bre a ‘ditadura da mídia’ o tornam, paradoxal- fabricar os equipamentos, varrer o chão e os
mente, um ícone midiático. As recorrentes bastidores, fotocopiar documentos, digitar tex-
manifestações contra esse universo de poder tos. Nesse sentido, essa teoria mostra pouco
simbólico – que se constitui num verdadeiro interesse pela vida dos agentes fora-do-palco
míssil antimíssil ou numa mídia antimídia –, ou fora-do-campo, que lutam no interior do
assim como sua concepção de que é no inte- campo. Essa configuração dos campos exclui
rior desse espaço simbólico que se deve agir, também as populações sem atividade profissi-
desencadearam uma interminável tempestade onal, principalmente as que comportam certo
nos jornais, impelindo a divulgação de seu tra- prestígio (capital simbólico) e podem, portan-
balho científico e o sucesso espetacular de sua to, organizar-se em espaços de concorrências e
teoria social. Ele defendeu a utilização do po- de lutas para a reafirmação desse prestígio
tencial do inimigo e, parafraseando Marx, pro- específico, podendo se inscrever em múltiplos
pôs que ‘o dominante deva ser dominado por quadros sociais, privados ou públicos, duráveis
sua dominação’: deve-se lutar para a transfor- ou efêmeros.
mação democrática de dentro das instituições A teoria dos campos representa, segundo
antidemocráticas. Lahire (2002), uma maneira de responder a uma

130 Ione R. VALLE. A obra do sociológo Pierre Bourdieu:...


série de problemas científicos, mas pode tornar- e o habitus incorporado pelos pais) são transmi-
se um obstáculo ao conhecimento do mundo tidos aos filhos.
social, tanto por não considerar as incessantes Segundo Casanova (2003), a reflexão de
passagens operadas pelos agentes (entre os Bourdieu oferece elementos para compreender
campos nos quais são produtores ou simples- a questão da ‘internacionalidade’ como garan-
mente consumidores-expectadores e as múltiplas tia, recurso e arma na luta pela autonomia dos
situações que não podem ser referidas a um intelectuais. Ele coloca em xeque a teoria da
único campo), quanto por desconsiderar a situ- autonomia relativa, presente na idéia de intelec-
ação dos que se definem socialmente (e se cons- tual coletivo, e salienta que o ‘jogo’ científico
tituem mentalmente) como estando fora de toda é relativamente arriscado: não é fácil enunciar
atividade de um determinado campo. sem eufemismos e sem precauções. Seu traba-
Segundo Sapiro (2003), o conceito de lho constitui um exemplo inédito e autônomo
habitus vem designar o sistema de disposições de construção da autonomia. Casanova consi-
não somente corporais mas também cognitivas, dera que um dos principais mal-entendidos a
de estruturas estruturantes porque estruturadas, propósito de Bourdieu e de sua imagem pública
comuns a um grupo social, que vive em condi- é o fato de que ele concebe – e representa –
ções análogas de existência (classe social ou clas- o papel de intelectual e de sábio inspirando-se
se de idade), socializado num mesmo sistema mais na postura do artista de vanguarda do
escolar e pertencente a uma mesma geração ou que no modelo acadêmico tradicional. Numa das
grupo profissional. Essas estruturas, incorporadas conferências que proferiu (muito profética, o que
sob a forma de disposições (corporais, mentais ou não era comum), Bourdieu se refere aos ‘muros
cognitivas), explicam as resistências às mudanças. mentais’, ressaltando que o estrangeiro aparece
O habitus atribui uma dimensão inventiva a essas geralmente como o lugar da liberdade, da dissidên-
disposições e permite, segundo os quadros ou as cia, da ruptura e que é na luta pela unificação do
condições objetivas nas quais são formadas e campo intelectual mundial, e pela remoção de
reativadas, situar-se no mundo social, ajustar-se todos os obstáculos à circulação internacional dos
às suas transformações e projetar-se no futuro. procedimentos culturais e de seus produtos, que os
A propósito da apropriação da herança intelectuais podem melhor contribuir com o pro-
econômica e cultural, diversos estudos salientam gresso da liberdade e da razão.
que ela é fruto de um processo emocionalmen- Na opinião de alguns pesquisadores,
te complexo e de resultados incertos (há sempre Bourdieu sempre teve dificuldades para pensar o
a possibilidade de dilapidação da herança), de sujeito reflexivo, ainda que muitas vezes tenha
identificação e de afastamento em relação aos evocado a possibilidade de sair dos determinismos
valores e costumes da família, pois as famílias e e avançar na direção de um conhecimento soci-
os indivíduos não se reduzem à sua posição de ológico dos processos sociais. O que mais escan-
classe. O pertencimento a uma classe social, tra- dalizou a intelectualidade foi o fato de que um
duzido na forma de um habitus de classe que sábio intervenha tão ativamente no campo polí-
pode se opor ao habitus familiar, pode indicar tico, sobretudo no plano da militância. Segundo
certas disposições mais gerais, que tenderiam a Matonti (2003), a sociologia marxista ficou forta-
ser compartilhadas pelos membros da classe, mas lecida com as contribuições teóricas de Bourdieu.
dificilmente seriam incorporadas na sua totalida- A sociologia científica é sem dúvida percebida
de. Lahire (1999) ressalta que é necessário estu- como uma ameaça aos poderes constituídos,
dar a dinâmica interna de cada família, as rela- porque propõe uma alternativa completamente
ções de interdependência social e afetiva entre credível em termos de explicação do mundo so-
seus membros, para entender o grau e o modo cial e, notadamente, dos mecanismos de domina-
como os recursos disponíveis (os vários capitais ção e de reprodução.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 117-134, jan./abr. 2007 131
Carles (2001), motivado pela luta incansá- Bourdieu são incidentais e esporádicas: se nos
vel de Pierre Bourdieu contra o ‘credo neoliberal’ anos 1960 seu trabalho “causaria certo impac-
e desejando contemplar seu pensamento ‘em to, embora restrito, na produção sociológica e
movimento’ (o que se tornou possível pela reali- antropológica universitária, passaria, entretan-
zação do filme A sociologia é um esporte de to, relativamente desapercebido no campo edu-
combate), salienta o fato de que ele não cessou cacional brasileiro, que não responderia com
de denunciar seus efeitos perversos. Opondo-se à maior entusiasmo à chegada de um sociólogo
ordem dominante, Bourdieu procurou retraçar as que, mesmo na França e na Europa, era tido
características de um método sociológico único. como difícil e não oferecia muitas armas para
Para Carles, uma de suas qualidades era a pers- as lutas acadêmicas da época, voltadas em
picácia de seu conhecimento (que permitia des- geral à militância política” (p. 3-4). Os anos
confiar das aparências, das evidências, do senso 1980 se tornariam decisivos na apropriação
comum e de tudo o que era apresentado como dos trabalhos de Pierre Bourdieu, principalmente
natural pela mídia) e sua capacidade de utilizar as A reprodução (obra publicada no Brasil em
potencialidades dos ‘inimigos’ para difundir suas 1975). Desde a publicação, essa obra geraria
teses (a mídia vista como instrumento de difusão controvérsias políticas no campo educacional,
do pensamento dominante). por estar ‘aprisionada na dicotomia muito em
voga da reprodução x transformação (que na
Aporte da obra de Pierre passagem dos anos 80 para os anos 90 do
Bourdieu para a sociologia da século XX seria transmutada na dicotomia re-
educação brasileira produção x resistência)’. A partir de 1990, a
contribuição da teoria de Bourdieu passa a ser
Bourdieu (e seus colaboradores) constrói mais efetiva, evidenciando novas apropriações
sua reflexão teórico-crítica a partir da análise do conceituais tópicas e do modo de trabalho.
sistema educacional francês, justamente na se- Para Saviani (1987), Bourdieu foi reco-
gunda metade dos anos 1960, quando o Estado nhecido como um autor crítico por levar adian-
alardeava o sucesso das políticas de democratiza- te uma importante obra denunciadora, porém
ção do ensino. Desde então, ele não deixaria de politicamente desmobilizadora. Se sua teoria
aprofundar e afinar seus questionamentos e de oferece elementos para a crítica da função
revelar (com dados incontestáveis) a persistên- reprodutora, desempenhada pela escola na
cia de desigualdades profundas no que sociedade capitalista, não fornece instrumentos
concerne ao acesso, à permanência, às diferen- para a ação. Assim, a obra de Bourdieu foi
ças entre percursos escolares, conforme as clas- destinada a um lugar da análise educacional
ses sociais, o sexo, a origem socioprofissional, caracterizado pelo rótulo de ‘reprodutivista’ ou
o local de moradia. Les Héritiers (1964) e La ‘crítico-reprodutivista’.
Reproduction2 (1970), obras produzidas junta- Segundo Pereira, Catani e Catani (2001),
mente com Passeron, desencadearam um pro- as conseqüências desse viés reprodutivista, que
cesso de críticas sobre as políticas oficiais de caracterizaram a leitura de uma obra de compre-
Educação. Recebidas com euforia no campo ci- ensão difícil, podem ser observadas na pouca
entífico-educacional, essas obras foram rapida- atenção ao arcabouço conceitual; na desconsi-
mente descartadas sob a alegação de que pro- deração de um dos fundamentos da obra, o da
vocavam um grande pessimismo e muitas in- existência das mediações e das autonomias re-
certezas em torno da Educação, conduzindo os lativas entre os campos; no deslocamento da
agentes educacionais ao imobilismo.
Segundo Pereira, Catani e Catani (2001), 2. Obra quase sempre classificada como fonte principal da concepção
até meados de 1970, as referências a Pierre ‘reprodutivista’.

132 Ione R. VALLE. A obra do sociológo Pierre Bourdieu:...


perspectiva sociológica para uma perspectiva noções e conceitos, demonstrando uma preocupa-
‘sócio-lógica’; na criação de expectativas em ção central com o modus operandi de sua teoria.
torno de propostas pedagógicas, isto é, na au- Enfim, a obra de Pierre Bourdieu nos re-
sência de um discurso doutrinal sobre a Educa- mete a novos desafios: torna-se necessário in-
ção, o que levou a interpretá-la como uma ‘te- ventar não somente idéias, mas novas formas de
oria da educação’ sem propostas. intervenção e de ação. Não existem mais deu-
Com base num estudo realizado nos mais ses, profetas nem mestres pensadores. É neces-
importantes periódicos brasileiros especializados sário inventar modos de organização nos quais
em Educação3 , Pereira, Catani e Catani (2001) se inventem idéias. É necessário servir-se do
examinam as leituras da obra de Pierre Bourdieu no conhecimento do mundo social para inventar
campo educacional e indicam que sua recepção modos de organização, que permitam a inven-
foi diversificada. Os pesquisadores registram três ção coletiva de uma visão nova e realista de
formas de apropriação de seu trabalho: uma economia e de sociedade: não existe democra-
incidental, caracterizada por referências rápidas, cia efetiva sem um verdadeiro poder contra-
geralmente arroladas na bibliografia, mas não crítico. O intelectual é um desses poderes, e de
mencionadas no corpo do texto; outra conceitual primeira grandeza.
tópica, caracterizada por uma utilização não siste-
mática de citações e de conceitos, visando refor-
çar argumentos ou resultados obtidos e desenvol-
vidos num quadro terminológico, que nem sempre 3. O estudo abrangeu 20 revistas (editadas entre 1971 e 1999) e um
conjunto de 336 artigos publicados nesses periódicos, dos quais foram
é o do autor; e uma apropriação do modo de tra- analisados 272 artigos (somente os de autores brasileiros), que fazem
balho, caracterizada pelo emprego sistemático de referência ao sociólogo.

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Recebido em 07.02.06
Modificado em 21.08.06
Aprovado em 01.09.06

Ione Ribeiro Valle é doutora em Ciências da Educação pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Sorbonne,
Universidade René Descartes – Paris V – e professora da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – Centro de
Ciências da Educação – CED.

134 Ione R. VALLE. A obra do sociológo Pierre Bourdieu:...

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