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Palavras-chave
Correspondência:
Ione Ribeiro Valle
Rua Duarte Schütel, 233, ap. 601-I
88015-640 – Florianópolis – SC
e-mail: ionevalle@ced.ufsc.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 117-134, jan./abr. 2007 117
The work of the sociologist Pierre Bourdieu: an
undisputable irradiation
Abstract
Keywords
Contact:
Ione Ribeiro Valle
Rua Duarte Schütel, 233, ap. 601-I
88015-640 – Florianópolis – SC
e-mail: ionevalle@ced.ufsc.br
118 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 117-134, jan./abr. 2007
Como todas as grandes obras, a sociolo- Ele considera que essa disciplina possui uma
gia de Pierre Bourdieu (1930-2002) cresceu em função crítica fundamental, que consiste em
torno de uma intuição, uma idéia-força, que ele desvelar os processos de funcionamento soci-
desenvolveu, repetiu, reformulou e aplicou em al, especialmente os de dominação. Ele se pro-
diferentes problemáticas, retomando-a na maio- põe então, como objetivo último, a transformar
ria de suas mais de 300 publicações, traduzidas a sociologia numa ‘ciência total’, capaz de res-
para diversas línguas1 . Essa intuição fundadora tituir a unidade essencial da prática humana. Sua
pode ser resumida em uma fórmula única: ‘as obra pode ser lida de múltiplas formas: como
idéias puras não existem’. Caracterizada por uma uma análise dos mecanismos de dominação das
abertura sem precedentes da pesquisa socioló- sociedades modernas, como uma teoria das prá-
gica, sua produção teórica abriu horizonte para ticas sociais ou, ainda, como uma análise da
inúmeras outras abordagens científicas (no cam- produção das idéias e dos sistemas simbólicos.
po psicológico, antropológico, etnológico, cien- Pierre Bourdieu desenvolve uma aborda-
tífico, literário, econômico, cultural). gem singular dos fatos sociais, que se institui
Em virtude do caráter inovador e multi- como um pólo na paisagem sociológica con-
disciplinar, o pensamento sociológico de Pierre temporânea e impulsiona o surgimento de uma
Bourdieu tem influenciado estudos sobre arte, nova orientação teórica. Preocupado com o es-
comunicação, linguagem, religião, política e tudo da realidade – possível desde que seja
educação. Segundo Thompson (2001), sua obra ultrapassada – e tendo por fim a ‘objetividade
constitui um esforço excepcional para oferecer social’, ele constrói novos conceitos de interpre-
à análise do mundo social um quadro teórico co- tação, tentando superar a tendência ao isolamen-
erente, de interesse e de alcance comparável aos to disciplinar e à redução dos processos sociais
trabalhos de pensadores contemporâneos, que a estados estáticos, característicos da pesquisa
desenvolveram concepções muito diferentes. de base positivista. A sociologia é considerada
Intelectual crítico, instigante, capaz de como uma profissão ( un métier), o sociólogo
pensar de forma articulada teoria e práticas deve apreender os instrumentos metodológicos
sociais, Pierre Bourdieu exerce influência não para analisar racionalmente os fenômenos so-
somente sobre os pensadores franceses, mas ciais que observa (Bourdieu, 1999).
sobre os intelectuais de vários países, perten- A fórmula inaugurada por Bourdieu exige
centes a outras disciplinas das ciências huma- do pesquisador certo desligamento ou distancia-
nas e sociais, como o confirma sobretudo sua mento emocional do objeto e lhe impõe um im-
notoriedade no estrangeiro. Considerado por portante desafio: separar as representações imedi-
Ortiz (1994) como ‘autor de uma obra se não atas e os prejulgamentos espontâneos do saber
acabada pelo menos plenamente desenvolvida’, científico. A eficiência dessa fórmula, que parte do
ele funda – com ou contra pesquisadores de princípio de que as práticas sociais resultam de
sua geração – uma nova maneira de fazer so- uma cadeia complexa de ações (nem sempre cons-
ciologia e institui uma perspectiva teórico-crí- cientes) de longa duração, supõe primeiramente a
tica radical e original. revisão das categorias científicas mais habituais e
dos recortes teórico-metodológicos mais tradicio-
Uma experiência fundadora nais. Em seguida, a reaproximação de objetos di-
versos e de especializações disciplinares distintas.
Enquanto muitos de seus colegas pensa-
1. A vasta obra de Pierre Bourdieu compreende mais de 40 títulos, além
dores evocavam uma sociologia em estado de de algumas publicações importantes, como a Revue Actes de la Recherche
crise, Pierre Bourdieu reconhece sua importân- en Sciences Sociales (que se define como revista-manifesto e visa a cons-
trução de um novo pensamento sociológico) e a coleção Raisons d’Agir
cia e acredita que ela pode ser elevada a um (palavra de ordem que salienta a necessidade de ter razões para agir, ra-
alto grau de cientificidade e de objetividade. zões racionais, elaboradas, construídas).
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A problemática teórica proposta por Pierre o neoliberalismo, por tecer críticas profundas a
Bourdieu constitui-se num esforço sistemático intelectuais, ‘experts’, jornalistas, ‘ensaístas de
para transpor uma série de contraposições e de corte’ que, pela difusão dos mecanismos de
antinomias, que embaraçam as ciências sociais mundialização, participam da edificação de um
desde seu início: indivíduo contra sociedade, mundo dominado pela ideologia neoliberal. Figu-
ação contra estrutura, liberdade contra necessida- ra carismática, Bourdieu é considerado um dos
de. Sua abordagem metodológica, denominada de principais cientistas do mundo, permanecendo
conhecimento praxiológico, busca superar um di- objeto de uma verdadeira adoração por parte de
lema clássico do pensamento sociológico, ali- estudantes e pesquisadores das ciências humanas.
cerçado nas discordâncias entre duas perspectivas Segundo Lahire (2002), Bourdieu deixa
de investigação empírica, consideradas inconciliá- como legado intelectual um verdadeiro ‘tesouro
veis: o subjetivismo (pressupõe a possibilidade de sociológico’, que reúne esquemas interpretativos
apreensão imediata da existência vivida do outro múltiplos, extraídos do conjunto do patrimônio
e entende que essa apreensão se constitui num internacional de ciências humanas e sociais. Sua
modo mais ou menos apropriado de conhecimento reflexão transgrediu as fronteiras que separam
do mundo social) e o objetivismo (pressupõe uma (tanto no âmbito das instituições quanto das
ruptura com a experiência imediata, o que impli- representações) o campo da psicologia do cam-
ca colocar entre parênteses a primeira experiência po da sociologia, a esfera mental (ou psíquica) da
do mundo social e elucidar as estruturas e os prin- esfera social, o individual do coletivo.
cípios, inacessíveis a toda apreensão imediata, so- Em virtude da complexidade e da ampli-
bre os quais repousa essa experiência). tude da obra de Bourdieu, Lahire propõe uma
Pretendendo contornar essas oposições, espécie de ‘fidelidade crítica’, capaz de assegu-
Bourdieu desenvolve sua teoria da prática, que rar uma adequada apropriação dessa preciosa
visa ultrapassar o objetivismo sem cair no subje- herança, que consiste na aplicação ‘infinita’ de
tivismo, levando em consideração a primeira con- sua teoria em novos campos. Essa aplicação
dição à cientificidade da pesquisa sociológica, testemunha a continuidade de suas interrogações
qual seja: a ruptura com a experiência imediata. e de sua vontade permanente de testar seus
O autor reconhece que essa ruptura não é fácil, conceitos em análises de inúmeros objetos e de
pois os pesquisadores em ciências sociais partici- múltiplos campos sociais. Lahire ressalta ainda
pam diretamente de um determinado mundo que seu esforço teórico poderá ser ‘(mal)tratado’
social (grupo ou classe), estando envolvidos por se predominar a ignorância e o desdém de um
uma determinada linguagem, por conceitos e lado e a adoração ingênua de outro.
valores comuns da vida cotidiana. Para Lahire (2002), Bourdieu era um
Apesar de rejeitar a ‘etiquetagem’ e não pedagogo extraordinário que, além de aportar
possuir nenhuma simpatia pelo que considerava um saber teórico que insistia na importância da
como uma espécie de ‘maneirismo intelectual’, seu relação prática com a teoria e de rejeitar “a
nome aparece freqüentemente associado à abor- arrogância do sociólogo que recusa sujar as
dagem holística ou ao estruturalismo genético. mãos na cozinha da empiria” (Bourdieu, 1979,
Todo pensamento de Bourdieu vai consistir em p. 598), ensinou-nos o modo de aplicação do
‘desnaturalizar o mundo social’, propondo-se a que dizia. Ele fez um apelo à mobilização das
desvelar as regras do jogo intelectual, dos cientistas, mais sofisticadas ferramentas teóricas, visando
dos pensadores, dos políticos, dos educadores. apreender os objetos concretos ou socialmen-
Sociólogo polêmico, cuja obra suscitou te considerados como menores, além de evocar
distintas apropriações, apesar de seu desejo de permanentemente uma ascese do trabalho cien-
construir um fio condutor único, Pierre Bourdieu tífico e exigir seriedade e rigor na construção
tornou-se uma figura emblemática na luta contra do objeto e da pesquisa.
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Nos anos 1950, o campo filosófico apre- terem suas gêneses em refutações semelhantes,
sentava-se dominado pelo existencialismo. No e se impõem rapidamente aos intelectuais fran-
entanto, após a Segunda Grande Guerra, a re- ceses dos anos 1960.
ferência existencialista – sobretudo sob a for- Pierre Bourdieu se formou no meio pari-
ma sartriana – deixava progressivamente insa- siense dos anos 50 e início dos anos 60 do sé-
tisfeitos os jovens filósofos, em particular os culo XX e pertence, portanto, à geração (repre-
egressos da Escola Normal Superior. Rejeitar a sentada principalmente por Lévi-Strauss, Althusser
história (ou a cultura) dessa instituição parecia e Foucault) que se constitui contra o existen-
fundamental à maioria desses jovens, na medida cialismo dominante no campo intelectual e se
em que a filosofia, como especialidade predo- opõe à filosofia sem sujeito, ao subjetivismo, ao
minante, parecia-lhes puramente ascética e objetivismo, ao humanismo existencialista, ao
desprovida de uma verdadeira função teórica. personalismo anti-humanista. Ele soube aliar o ri-
Além disso, a conjuntura universitária se mos- gor do método científico com a criatividade do
trava totalmente favorável ao questionamento artista e se consagrou ao trabalho incansável da
dos modelos acadêmicos em vigor. A ampliação pesquisa, no qual investiu uma libido sciendi sem
de vagas para enquadrar um público crescen- fim nem fundo. O resultado desse engajamento é
te, as novas oportunidades geradas por progra- a produção de uma cultura teórica incomparável,
mas especiais (de bolsas de estudo por exem- que combina autores cuja tradição canônica pro-
plo), a diversificação dos modelos de seleção, curou opor, adaptando-os e retrabalhando-os
o desenvolvimento do ensino das disciplinas conforme as necessidades concretas das análises
das áreas humanas e sociais, assim como o sociais, a saber: Durkheim e Weber, Marx e Mauss,
reforço das instituições de pesquisa e de eru- Cassirer e Wittgenstein, Husserl e Lévi-Strauss,
dição, que marcaram as mudanças no sistema Bachelard e Panofsky, por exemplo.
de ensino francês, favoreceram o aparecimen- É nesse contexto que Pierre Bourdieu se
to de novos estilos intelectuais, distintos da distancia da filosofia para abordar um vasto
tradição racionalista e histórica. campo das ciências sociais. Sua formação filo-
As transformações do Ensino Superior sófica está marcada por uma dupla herança: a
produzem claramente suas conseqüências nos história das ciências (tendo como referência
anos 1960. O acesso a uma posição universitá- Gaston Bachelard e George Canguilhem) e a
ria se torna menos dependente das imposições fenomenologia (segundo a versão de Husserl e
características da ‘ordem de sucessão’, que Merleau-Ponty), que entrou em crise no final
garantia a reprodução da identidade dos deten- dos anos 1950. Bourdieu, assim como Foucault
tores de postos por meio da seleção dos can- (que apesar de suas poucas confidências reve-
didatos à sua sucessão. Essa conjuntura gerou la um mal-estar em relação à norma, à cerimô-
uma nova atmosfera intelectual, que aparente- nia, à representação, à tagarelice, à cena oficial)
mente parecia facilitar e valorizar a criatividade e Derrida, testemunha essa crise e a necessida-
e a originalidade. Em virtude disso, muitos fi- de emergente de inventar algo diferente, de
lósofos sentiram necessidade de romper com a investir numa outra direção.
imagem de amadorismo e verbalismo, associa- No entanto, Bourdieu se mostra igual-
da ao existencialismo em declínio, e compreen- mente atraído pela perspectiva desenvolvida por
deram que a ciência não podia mais permane- Lévi-Strauss. Ele acompanha de perto a evolu-
cer longe dos problemas sociais e políticos, ção da sua obra e acaba adotando certos as-
reduzindo-se a uma simples manipulação ins- pectos de seu método, principalmente no que
trumental. Essa conjuntura abre espaço para o concerne à importância concedida à análise
estruturalismo e a epistemologia, movimentos das relações e das oposições, presente em seus
intelectuais que evoluem paralelamente, por primeiros estudos etnográficos. Originária da
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coletivo, contribuiu para reaproximar sociologia coletivas não têm sentido em si mesmas, mas
e história. Para tanto, ele procurou incitar a somente numa estrutura racional e hierárquica,
sociologia a integrar a história nas suas abor- que não cessa de se modificar e de se deslocar:
dagens, por entender que a oposição entre ‘Ainda que os conteúdos mudem, a diferença,
passado e presente é arbitrária e por acreditar isto é, a hierarquia e a dominação continuam
que a história se inscreve no corpo sob a for- intactas’. Ele parte da idéia de que as pessoas
ma de habitus, manifestando-se tanto no esta- emitem juízos de valor – como, por exemplo,
do objetivo (máquinas, monumentos, livros, ‘detesto música sertaneja’ – para se diferenciar dos
teorias) quanto no estado incorporado (sob a que ocupam posições hierarquicamente inferiores.
forma de dispositivos).
Bourdieu expõe, com um constrangimen- O espírito científico colocado a nu ou a
to nem sempre contido e freqüentemente assu- inscrição social das idéias
mido, um ponto de vista intelectual crítico.
Segundo ele, os intelectuais não estão mais na A característica principal da teoria social de
vanguarda, como se pensava antes, pois não se Pierre Bourdieu consiste na sua não-inscrição nas
mostram preparados para intervir no mundo correntes sociológicas tradicionais. Ele se situa,
atual, nem por formação nem por disposição. como pudemos ver, num contexto em que o
Eles colaboram passivamente com as forças pensamento científico se fundamenta em múlti-
econômicas e políticas dominantes, parecendo plas abordagens e não mais por uma disciplina
controlados por uma espécie de ‘aristocratismo unificada e empenha-se em combinar diferentes
profissional’, que os desvia das questões trivi- perspectivas teóricas no campo conceptual. Uma
ais da vida cotidiana e das realidades sociais e outra característica de sua obra é o fato de que
econômicas. Ele reconhece, no entanto, que a perspectiva crítica se apresenta muito desenvol-
está cada vez mais difícil acumular competên- vida, estando marcada por uma profunda convic-
cias múltiplas (econômicas, sociológicas, histó- ção política resultante de uma constatação cien-
ricas, políticas), indispensáveis à compreensão tífica: não se pode mais explicar o mundo social
do mundo e à antecipação das conseqüências a partir de antigos e rígidos modelos teóricos.
futuras. O intelectual crítico que o mundo de A construção teórica de Bourdieu é pre-
hoje requer deve ser coletivo e profissional. cedida por uma sucessão de críticas explícitas,
São portanto os filósofos, símbolos do endereçadas principalmente ao estruturalismo
‘pensamento puro e da inteligência arrogante’, (rejeitado em sua forma extrema em razão da
os primeiros alvos de Pierre Bourdieu. A maio- redução objetivista, que nega a prática dos
ria dos seus livros faz uma crítica profunda à agentes e retém as imposições estruturais); ao
chamada ‘razão pura’. Enquanto a filosofia ale- interacionismo (recusado por considerar que os
mã tentava explicar o sentido do belo, do bom agentes não são portadores de nenhuma deter-
ou do mau gosto pessoal por um julgamento minação social e por omitir a gênese social); ao
transcendental e subjetivo, ele procura mostrar subjetivismo (rejeitado por forjar o mito de um
que o gosto é uma construção social e que está sujeito sem história e sem determinantes); à
ligado à posição ocupada num determinado fenomenologia (por vê-la como exclusivamen-
campo, sendo revelador de maior ou menor te descritiva, constituindo-se somente numa
prestígio. Bourdieu se apóia numa análise dos etapa da pesquisa).
julgamentos estéticos para construir uma teo- Pierre Bourdieu não se inscreve igualmen-
ria social que repousa sobre a idéia de que os te nos diferentes pólos sociológicos da França
indivíduos e os grupos existem somente numa contemporânea e desenvolve uma crítica impor-
relação de distinção entre si. As entidades lin- tante aos pressupostos teóricos ou aos métodos
güísticas, as propriedades sociais, individuais ou de investigação utilizados por esses pólos:
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seus esquemas de produção e de percepção e decorre de uma ‘objetividade interiorizada’,
as relações mantidas com o espaço social no pressupondo ‘esquemas generativos’, que ori-
seu conjunto. entam e determinam a escolha estética. Na
Os avanços científicos mais marcantes, medida em que os sistemas de classificação são
impulsionados por Pierre Bourdieu, podem ser engendrados pelas condições sociais e que a
observados em diferentes domínios: nos traba- estrutura objetiva de distribuição dos bens
lhos sociológicos da cultura, incluindo a soci- materiais e simbólicos se dá de forma desigual,
ologia das instituições escolares e universitári- toda escolha tende a reproduzir as relações de
as, numa sociologia da arte que se desenvolveu dominação, certos estereótipos e as posições
desde os anos 1960, nos estudos referentes ao ocupadas num determinado campo.
consumo cultural, numa sociologia da educa- A tomada de consciência em relação ao
ção, dos bens simbólicos, dos grupos sociais, papel reprodutor do sistema escolar é muito
das classes de idade. recente. A tradição libertária do movimento
Segundo Thompson (2001), os estudos operário (em sua vertente marxista) conserva
de Bourdieu procuram mostrar que a linguagem uma grande veneração pela educação e pela
é um fenômeno sociohistórico e que as trocas cultura. Veneração considerada legítima por
lingüísticas compõem as atividades práticas e Bourdieu, mas que infelizmente introduz uma
possuem, portanto, uma dimensão sociohistórica. espécie de reverência simplória (relativamente
A elaboração de manuais de gramática, de dici- consensual entre os intelectuais e artistas), fa-
onários e de um corpo de textos exemplificando zendo esquecer que a ciência e a arte são
o uso correto da cultura escrita é a manifesta- universais, mas que existem pessoas, grupos ou
ção visível desse processo de normalização pro- classes que têm o monopólio do universal. A
gressiva. Enfatizando os aspectos institucionais obra de Bourdieu torna-se, portanto, funda-
do uso da linguagem e explorando-os com uma mental para o desenvolvimento de uma ‘soci-
inteligência sociológica aguda, Bourdieu define ologia da educação crítica’, capaz de romper
os aspectos fundamentais das condições sociais com o ciclo do ‘otimismo pedagógico’, ainda
de seu uso, ainda ausentes na literatura sobre os predominante no sistema educacional, sobretu-
atos da linguagem. do nos discursos oficiais.
Reconstituindo com cuidado o campo Todo o sistema escolar está construído
lingüístico e estudando de perto certas estratégi- para identificar e reificar a inteligência, valorizar
as dos indivíduos face às circunstâncias formais ou o dom e a vocação: inteligentes, dotados e
oficiais, Bourdieu observa que as classes superio- vocacionados têm acesso à ciência e à cultura e
res estão dotadas de um habitus lingüístico que serão bem-sucedidos na escola e fora dela; os
lhes permite enfrentar com mais tranqüilidade tais demais devem acomodar-se nas habilitações sem
circunstâncias. As classes inferiores, cujas condições prestígio, ocupar as funções inferiores e conten-
de existência estão menos propícias à aquisição de tar-se com as posições subalternas (adequadas
um habitus que coincida com os mercados ofici- para os que não conseguiram chegar aos níveis
ais, além de valorizar pouco esses produtos lin- mais elevados da pirâmide escolar). Segundo
güísticos, se mostram bem menos preparadas para Bourdieu, a escola e a família lembram repetida-
encarar essas situações. mente que é necessário obter títulos escolares
Pierre Bourdieu não negligencia o fato para não ficar desempregado ou para preencher
de que os indivíduos estão predispostos, em os cargos mais prestigiados e melhor remunera-
virtude do habitus, a agir de certa maneira, a dos, o que não é totalmente falso, mas esse fato
perseguir determinados objetivos, a cultivar não pode implicar uma justificação da ordem
certas preferências. O gosto, por exemplo, não estabelecida. De maneira talvez mais decisiva, em
é visto apenas como fruto da subjetividade, mas razão da implantação de um sistema educativo
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realizados com o apoio do aparelho estatístico tido, a sociologia pode tornar-se um contrapoder
disponível. É fundamental que as constatações e favorecer a democracia, pois ela opõe uma
decorrentes dos discursos científicos produzi- contraviolência simbólica ao poder simbólico.
dos sejam traduzidas numa linguagem menos
científica, tornando-se acessíveis a todos. Um engajamento individual militante
Essa nova vocação da sociologia está
baseada numa definição particular da atividade Bourdieu se engaja intensamente nas te-
política: os campos são espaços de produção orias políticas normativas, mas não procura for-
simbólica, nos quais os agentes encontram-se mular programas políticos. No entanto, suas
em luta permanente para infundir as categori- revelações implacáveis da natureza do poder e
as de (di)visão do mundo social. Essa luta sim- dos privilégios, dissimulados sob formas variadas
bólica visa à produção de sentidos comuns e e sutis, e a atenção dispensada ao caráter teó-
revela a posição específica do Estado, que dis- rico-prático dos agentes que constroem o mun-
põe do monopólio da dominação legítima e, do social dão às suas obras uma carga crítica
dessa forma, procura inculcar uma definição implícita. Para ele, a sociologia, mesmo a mais
legítima do mundo social. Em conseqüência, crítica, é lida principalmente pelos dominantes,
ele detém também o monopólio da violência que se servem dela para fazer uma espécie de
simbólica, que permite assegurar a dominação demagogia racional, sendo utilizada como ins-
dos dominantes, efetivando-a pelo emprego de trumento não apenas de justificação, mas sobre-
instrumentos legítimos, que se tornam eficazes tudo de arranjo das técnicas de dominação.
porque repousam sobre a negação e dissimula- Como toda grande obra, o pensamento de
ção da dominação. Pierre Bourdieu oferece elementos essenciais para
Bourdieu nomeia não apenas os responsá- pensar o mundo social. Como vimos, a sociolo-
veis pela eficiência dos mecanismos de reprodu- gia não pertence a Pierre Bourdieu, mas sua obra
ção social, mas também os que considera como pertence à tradição sociológica. Propondo-se a
cegos: primeiramente os homens políticos, que ‘pensar a política sem pensar politicamente’,
não sabem intervir na sociedade e contribuem Bourdieu procurou demonstrar que, longe de se
para transformá-la no pior; em seguida, a mídia, opor, as ciências sociais e o militantismo podem
que acaba por descrever ou colocar em cena constituir duas faces de um mesmo projeto, pois
menos a realidade social do que seu olhar mise- analisar e criticar a realidade social permite con-
rável sobre ela. Os políticos não estão preparados tribuir para sua transformação.
para discutir os problemas sociais e quando o As modalidades de intervenção política
fazem é tarde demais: tudo se decide nos basti- de Pierre Bourdieu se modificam consideravel-
dores das comissões e dos comitês, longe dos mente desde o início de 1990. Ao engajamento
cidadãos. A mídia, assim como o fazem outros científico, vem juntar-se um militantismo pessoal,
grupos dominantes, tenta impor sua representa- que conduz à multiplicação das formas de ação
ção subjetiva como representação coletiva. – inicialmente como testemunha não apenas do
Pierre Bourdieu lembra que ‘o que a his- sofrimento social, mas também do sofrimento
tória faz, a história pode desfazer’. Assim, expon- individual (freqüentemente imperceptível, resul-
do aos agentes sociais os efeitos da dominação, tante do desequilíbrio das relações entre os in-
a sociologia fornece argumentos mobilizáveis na divíduos). Ele põe em evidência a ‘miséria de
ação política. A descrição das relações sociais condições’ (sofrimentos horizontais, de condi-
não se reduz à simples demonstração científica, ção, próprios de uma classe ou grupo) e a ‘mi-
mas se constitui num instrumento de libertação séria de posições’ (sofrimentos verticais que, no
dos dominados, contribuindo para que possam interior de uma mesma categoria, grupo ou clas-
apoderar-se de seu próprio destino. Nesse sen- se, atingem os indivíduos situados nos níveis
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Se a polícia e a justiça são o braço visí- Críticas e mal-entendidos a propósito da
vel da repressão simbólica, os intelectuais e jor- teoria de Pierre Bourdieu
nalistas são freqüentemente sua cabeça. São
eles que ‘fazem de conta que pensam’ e pas- No entanto, a teoria social de Pierre
sam seu tempo a atuar na manutenção da or- Bourdieu é objeto de críticas contundentes e
dem moral e simbólica, substituindo a função bem ácidas, tanto de seus aliados quanto de
ideológica e carismática tradicionalmente seus detratores. Para Brito (2002), seu trabalho
exercida pelos padres. Seus silêncios, suas “despertou paixões e ódios [na comunidade
omissões, suas abstenções são tão significativos científica e midiática], mas nunca deixou nin-
quanto suas ações. Mesmo se dizendo de es- guém indiferente” (p. 5). Sua reflexão socioló-
querda, eles vivem como liberais e contribuem gica contribuiu para desestabilizar certas práti-
de maneira efetiva para a perpetuação e repro- cas intelectuais relativamente cristalizadas. Ele
dução da ordem. foi permanentemente atacado pelo seu caráter
Ora, os que posam de jornalistas-filóso- considerado como atrabiliário e por recusar a
fos são apenas porta-vozes da autoridade confrontação de suas teorias com a de outros
estabelecida que, por falta de reflexão, precipi- sociólogos de seu tempo: sempre se negou a
tação ou conformismo, estão sempre de acor- responder a questões que, segundo seu ponto
do e demonstram se sentir muito bem nessa de vista, não eram as suas. Entretanto, as críti-
espécie de ‘altéia moral’, que envolve um pro- cas que parecem mais relevantes dizem respeito
fundo sentimentalismo. Eles aparecem como aos aspectos conceituais – e pontuais – de sua
‘intelectuais proletaróides’ (para usar a categoria teoria e a certos mal-entendidos.
de Weber), dissimulando a ligação entre ação e Segundo Lahire (2002), a teoria dos
interesse, entre as práticas dos agentes e os campos – que deveria chamar-se teoria dos
objetivos que perseguem, mais ou menos cons- campos do poder – não pode constituir uma
cientemente. Cabe ao sociólogo compreender teoria geral e universal, mas representa uma
não somente o que se diz na mídia, mas sobre- teoria regional do mundo social. Essa teoria
tudo o que não se diz, pois em virtude de suas empenha muita energia para iluminar os gran-
posições, esses profissionais podem negar a des palcos em que ocorrem os desafios do
hierarquia, em vez de procurar rompê-la. poder, mas pouca para compreender os que
As críticas exacerbadas de Bourdieu so- sobem nesses palcos para instalar os cenários,
bre a ‘ditadura da mídia’ o tornam, paradoxal- fabricar os equipamentos, varrer o chão e os
mente, um ícone midiático. As recorrentes bastidores, fotocopiar documentos, digitar tex-
manifestações contra esse universo de poder tos. Nesse sentido, essa teoria mostra pouco
simbólico – que se constitui num verdadeiro interesse pela vida dos agentes fora-do-palco
míssil antimíssil ou numa mídia antimídia –, ou fora-do-campo, que lutam no interior do
assim como sua concepção de que é no inte- campo. Essa configuração dos campos exclui
rior desse espaço simbólico que se deve agir, também as populações sem atividade profissi-
desencadearam uma interminável tempestade onal, principalmente as que comportam certo
nos jornais, impelindo a divulgação de seu tra- prestígio (capital simbólico) e podem, portan-
balho científico e o sucesso espetacular de sua to, organizar-se em espaços de concorrências e
teoria social. Ele defendeu a utilização do po- de lutas para a reafirmação desse prestígio
tencial do inimigo e, parafraseando Marx, pro- específico, podendo se inscrever em múltiplos
pôs que ‘o dominante deva ser dominado por quadros sociais, privados ou públicos, duráveis
sua dominação’: deve-se lutar para a transfor- ou efêmeros.
mação democrática de dentro das instituições A teoria dos campos representa, segundo
antidemocráticas. Lahire (2002), uma maneira de responder a uma
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Carles (2001), motivado pela luta incansá- Bourdieu são incidentais e esporádicas: se nos
vel de Pierre Bourdieu contra o ‘credo neoliberal’ anos 1960 seu trabalho “causaria certo impac-
e desejando contemplar seu pensamento ‘em to, embora restrito, na produção sociológica e
movimento’ (o que se tornou possível pela reali- antropológica universitária, passaria, entretan-
zação do filme A sociologia é um esporte de to, relativamente desapercebido no campo edu-
combate), salienta o fato de que ele não cessou cacional brasileiro, que não responderia com
de denunciar seus efeitos perversos. Opondo-se à maior entusiasmo à chegada de um sociólogo
ordem dominante, Bourdieu procurou retraçar as que, mesmo na França e na Europa, era tido
características de um método sociológico único. como difícil e não oferecia muitas armas para
Para Carles, uma de suas qualidades era a pers- as lutas acadêmicas da época, voltadas em
picácia de seu conhecimento (que permitia des- geral à militância política” (p. 3-4). Os anos
confiar das aparências, das evidências, do senso 1980 se tornariam decisivos na apropriação
comum e de tudo o que era apresentado como dos trabalhos de Pierre Bourdieu, principalmente
natural pela mídia) e sua capacidade de utilizar as A reprodução (obra publicada no Brasil em
potencialidades dos ‘inimigos’ para difundir suas 1975). Desde a publicação, essa obra geraria
teses (a mídia vista como instrumento de difusão controvérsias políticas no campo educacional,
do pensamento dominante). por estar ‘aprisionada na dicotomia muito em
voga da reprodução x transformação (que na
Aporte da obra de Pierre passagem dos anos 80 para os anos 90 do
Bourdieu para a sociologia da século XX seria transmutada na dicotomia re-
educação brasileira produção x resistência)’. A partir de 1990, a
contribuição da teoria de Bourdieu passa a ser
Bourdieu (e seus colaboradores) constrói mais efetiva, evidenciando novas apropriações
sua reflexão teórico-crítica a partir da análise do conceituais tópicas e do modo de trabalho.
sistema educacional francês, justamente na se- Para Saviani (1987), Bourdieu foi reco-
gunda metade dos anos 1960, quando o Estado nhecido como um autor crítico por levar adian-
alardeava o sucesso das políticas de democratiza- te uma importante obra denunciadora, porém
ção do ensino. Desde então, ele não deixaria de politicamente desmobilizadora. Se sua teoria
aprofundar e afinar seus questionamentos e de oferece elementos para a crítica da função
revelar (com dados incontestáveis) a persistên- reprodutora, desempenhada pela escola na
cia de desigualdades profundas no que sociedade capitalista, não fornece instrumentos
concerne ao acesso, à permanência, às diferen- para a ação. Assim, a obra de Bourdieu foi
ças entre percursos escolares, conforme as clas- destinada a um lugar da análise educacional
ses sociais, o sexo, a origem socioprofissional, caracterizado pelo rótulo de ‘reprodutivista’ ou
o local de moradia. Les Héritiers (1964) e La ‘crítico-reprodutivista’.
Reproduction2 (1970), obras produzidas junta- Segundo Pereira, Catani e Catani (2001),
mente com Passeron, desencadearam um pro- as conseqüências desse viés reprodutivista, que
cesso de críticas sobre as políticas oficiais de caracterizaram a leitura de uma obra de compre-
Educação. Recebidas com euforia no campo ci- ensão difícil, podem ser observadas na pouca
entífico-educacional, essas obras foram rapida- atenção ao arcabouço conceitual; na desconsi-
mente descartadas sob a alegação de que pro- deração de um dos fundamentos da obra, o da
vocavam um grande pessimismo e muitas in- existência das mediações e das autonomias re-
certezas em torno da Educação, conduzindo os lativas entre os campos; no deslocamento da
agentes educacionais ao imobilismo.
Segundo Pereira, Catani e Catani (2001), 2. Obra quase sempre classificada como fonte principal da concepção
até meados de 1970, as referências a Pierre ‘reprodutivista’.
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Ione Ribeiro Valle é doutora em Ciências da Educação pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Sorbonne,
Universidade René Descartes – Paris V – e professora da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – Centro de
Ciências da Educação – CED.