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All content following this page was uploaded by João Leite Ferreira-Neto on 01 November 2016.
* Doutor em Psicologia Clínica PUC-SP, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e
do Centro Universitário FUMEC.
Endereço: Prof. Aníbal de Matos, 442/102 Belo Horizonte – MG CEP: 30350-220e-mail:
jleite.bhe@terra.com.br
O tema processos de subjetivação e espaço urbano não pertence a uma disciplina
particular, mas convoca uma abordagem interdisciplinar ou mesmo transdisciplinar. Neste
artigo, porém, será abordado a partir da Psicologia, campo de formação do autor; não
obstante, não se pretende conferir-lhe uma perspectiva disciplinar.
Em primeiro lugar, uma constatação: existe uma distância histórica entre os estudos da
Psicologia e a temática urbana. Os processos psicológicos, seja qual for a formulação das
diferentes teorias psicológicas particulares, sempre foram investigados à margem dos
processos urbanos. Mesmo levando-se em consideração que as cidades foram tomadas como
objeto de investigação pelas ciências sociais não faz muito tempo, há que se reconhecer que a
Psicologia chegou tarde a esse debate. É importante levantar algumas hipóteses sobre as
possíveis razões desse fato.
Apoiada na História, essa Psicologia Social não poderia ser estudada pelo método
experimental. Portanto, sua Psicologia fisiológica e sua Psicologia Social se apresentam como
projetos diferenciados e, de certo modo, desconectados. Essa não era uma dificuldade
exclusiva de Wundt. Segundo Farr, na virada do século XIX, era freqüente o interesse entre os
exponentes das ciências humanas e sociais sobre a relação entre o individual e o social; no
entanto, "sabia-se o suficiente para separar os dois objetos de estudo, mas não o bastante para
demonstrar como eles estavam inter-relacionados".(Farr, 2000, p. 61)
Que modos de articulação entre a subjetividade e o social podem ser pensados para
além do truísmo sempre repetido de que ‘o homem é um ser social’? Para além da simples
constatação de que o indivíduo humano vive em sociedade e é por ela influenciado? Essa
formulação, já amplamente capturada pelo senso comum, toma o indivíduo como um
conjunto fechado em interação, em trocas, com o ambiente social que lhe é externo. Uma
perspectiva que tem por solo a oposição entre interno x externo, no qual a subjetividade é
entendida como interioridade. Essa concepção remonta ao início da Filosofia moderna (ainda
que suas origens sejam mais antigas) quando o sujeito foi definido por Descartes como ‘coisa
pensante’ (res cogitans) que habita a interioridade do corpo, estando separado de toda
exterioridade.
A primeira dessas versões, ainda que reconheça a relação necessária entre o social e o
subjetivo, ainda trabalha com a oposição entre exterioridade e interioridade, entendendo que
nossa subjetividade é formada com base nas influências sociais. Utiliza noções como
introjeção ou socialização e postula a existência de um espaço interior influenciado, ou
mesmo formado, pelo espaço social ou cultural. Nesse caso, o social (exterioridade) constitui
a subjetividade (interioridade), numa relação de causalidade. Esse modelo de pensamento
pode ser complexificado valendo-se de uma compreensão dialética desses processos, na
medida em que essa interioridade identitária constituída passa a operar como agente de
transformação da exterioridade social, num movimento contínuo e dialético. Em qualquer um
dos casos, o dualismo interno x externo é mantido.
Foucault, um dos autores que trabalha com base nessa perspectiva, dedicou os últimos
anos de sua vida à elaboração de uma genealogia do sujeito de desejo na Modernidade.
Sujeito de desejo entendido como uma configuração histórica de um modo de subjetivação
particular da Modernidade, e não como uma estrutura essencial do ser humano. Portanto, o
sujeito de desejo não é universal, mas uma construção histórica. Uma invenção particular e
contingente, da qual até podíamos prescindir. O propósito de suas pesquisas era de traçar uma
genealogia “dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos se
tornaram sujeitos” (id., 1995, p. 231). Sua pergunta era: como, no Ocidente, o indivíduo
moderno podia fazer a experiência dele mesmo conquanto sujeito de desejo? E, para isso,
"seria indispensável distinguir previamente a maneira pela qual, durante muitos séculos, o
homem ocidental fora levado a se reconhecer como sujeito de desejo" (id., 1984, p. 11). A
preocupação de Foucault não se detinha na análise do estado de coisas. Mais que isso, seu
alvo era apontar e expor a determinação eminentemente contingente de nossos modos atuais
de subjetivação e a possibilidade sempre presente de construção de novos processos de
subjetivação numa perspectiva ético-política. "Talvez, o objetivo hoje em dia não seja
descobrir o que somos, mas recusar o que somos [...]. Temos que promover novas formas de
subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários
séculos".(id., 1995, p. 239)
Seu ponto de partida para essa pesquisa foi a Antigüidade greco-romana. Ao voltar-se
para os gregos e romanos, seu interesse era menos o da pesquisa histórica da origem dos
processos de subjetivação e mais apresentação de uma alternativa ético-política para nossa
atualidade. Os gregos inventaram, em política, a relação entre homens livres que governam
homens livres, sendo para isso necessário que governassem a si mesmos, inventando também
uma subjetivação, na qual cada indivíduo se constitua a si mesmo como uma obra de arte (cf.
Deleuze, 1992, p. 140). Subjetivação como construção de uma estética da existência. Uma
subjetividade construída na relação com a cidade, a pólis, marcada, portanto, pela
exterioridade e distinta de nossa experiência de interioridade psicológica.
Importa lembrar que Foucault não quer demonstrar como a cidade grega determinou
modos de subjetivação ético-estéticos, mas como ela faz parte de suas condições de
emergência e funcionamento. Encontramos aqui uma abordagem dos processos de
subjetivação associados ao conjunto dos fluxos urbanos.
Mas podem também ser subjetivações constituídas por práticas de liberdade mediante
o constante descompromisso com as formas instituídas de experiência para a invenção de
novas formas de vida. Aqui os exemplos são mais delicados, uma vez que envolvem
processos instituintes que não se instituem de modo permanente. Numa perspectiva mais
geral, podemos mencionar o que ficou conhecido como Novos Movimentos Sociais, que
emergiram no Brasil, na segunda metade da década de 1970, identificando “novas formas de
opressão que extravasam as relações de produção” e estendendo a concepção de política para
o terreno da subjetividade (Santos, 1997). Movimentos de associações de bairro, de grupos
estudantis, de mulheres, das Comunidades Eclesiais de Base, de luta pela democracia e
direitos sociais básicos, entre outros, transformaram o modo de se fazer política na cidade e
no campo, afirmando uma maneira de subjetivação que liga prática política e vida cotidiana.
Não foi sem razão que os exemplos anteriormente discutidos foram da esfera da vida
coletiva. A estética da existência, desenvolvidas na Grécia e estudadas por Foucault (1984),
não deve ser entendida como uma ação do indivíduo sobre si mesmo desconectado de
processos coletivos. Afinal, o que estava em questão era o governo de si associado ao governo
da pólis. A construção contemporânea de novos modos de subjetivação de caráter libertário
passa, necessariamente, pela articulação com práticas inseridas no espaço urbano.
Por essa razão, cabe a nós, psicólogos, atentar para os riscos da psicologização de
fenômenos, que ainda sejam vividos na ‘interioridade’ íntima, e possuem uma etiologia
imanente aos processos acima descritos. Vemos na atualidade o crescimento dos chamados
transtornos alimentares (anorexia e bulimia), dos transtornos de ansiedade (pânico, fobia
social etc.) e da dependência de substâncias psicoativas (em especial as toxicomanias). Nesses
casos, a mudança do perfil epidemiológico das modalidades de sofrimento mental tem uma
associação evidente com os processos sociais e urbanos na contemporaneidade. Tomando
como exemplo o transtorno de pânico, a psicanalista Suely Rolnik o entende como um
analisador da problemática do nosso tempo, quando nos encontramos mais expostos a
movimentos de desestabilização ante as intensas e diversificadas mudanças que hoje
experimentamos no espaço urbano. O transtorno de pânico refletiria, então, a vivência de um
abalo que atinge a própria vida, mais intenso que o abalo egóico, experimentado pela histeria
no final do século XIX. É como se o próprio organismo pudesse perder sua organicidade e
enlouquecer levando à morte biológica (Rolnik, 1995). Por essa razão, tratar dos quadros de
pânico, cada vez mais freqüentes, tomando-os como vivência puramente intra-subjetiva,
desligada dos atuais processos urbanos, acarreta conseqüências clínicas, teóricas e políticas. A
individualização e interiorização do sintoma encarcera no domínio da psicopatologia uma
experiência patentemente psicossocial. Por essas razões, diante dos novos arranjos urbanos,
nós, psicólogos, somos convocados a construir outra prática clínica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
__________ (2003). Michel Foucault. Estratégia, poder – saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária.
SCHULTZ e SCHULTZ. ( 1996). História da Psicologia moderna. 8. ed. São Paulo: Cultrix.