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BIBLIOTECA DE FILOSOFIA DO INSTITUTO BRASILEIRO DE HUMANIDADES

Constantin NÓICA

As Seis Doenças
do Espírito Humano
Tradução
FERNANDO KLABIN E ELENA SBURLEA

INTRODUÇÃO E REVISÃO TÉCNICA

OLAVO DE CARVALHO

RECORD/D’AVILA
Fernando Klabin e Elena Sburlea ................................................ 1
Introdução e revisão técnica ........................................................ 1
Olavo de Carvalho ....................................................................... 1
INTRODUÇÃO .................................................................................. 5
I. O QUADRO DAS SEIS DOENÇAS ............................................. 7
[DOENÇAS PROVENIENTES DA CARÊNCIA] ......................................... 7
[1. Carência do individual] ......................................................... 7
[2. Carência do geral].................................................................. 8
[3. Carência de determinações] ................................................... 8
[DOENÇAS PROVENIENTES DA RECUSA] ............................................ 8
1. Dom Juan e a recusa do geral .................................................. 9
2. Tolstói e a recusa do individual ................................................ 9
3. Godot e a recusa das determinações ...................................... 10
AS SEIS DOENÇAS ............................................................................ 10
II. CATOLITE .................................................................................. 12
III. TODETITE ................................................................................ 17
IV. HORETITE................................................................................. 22
V. AHORETIA .................................................................................. 26
VI. ATODETIA ................................................................................. 32
VII. ACATOLIA ............................................................................... 38
VIII. O EQUILÍBRIO DO TEMPO E O ESPÍRITO ROMENO 42
AS SEIS
DOENÇA
S DO
ESPÍRITO

Causa imediata RECUSA C


A
R
Ê
N
C
I
A

Necessidade não DOENÇA EXEMPLO DOENÇA EXEMPLO


atendida 

Generalidade 1. Acatolia D. Juan 4. Catolite

Individualidade 2. Atodecia Tolstoi 5. Todetite

Determinações 3. Aorecia Godot 6. Horetite


INTRODUÇÃO

Olavo de Carvalho

“No desdeñéis la palabra,


poeta. El mundo es ruidoso
y mudo: sólo Dios habla.”

ANTONIO MACHADO

H á um humorismo sutil, meditativo e extravagante,


na idéia de nomear os mais sublimes padecimentos
do espírito com neologismos técnicos, de composição
grega, que parecem diretamente extraídos de um
tratado de patologia clínica. Pois é exatamente isso o que espera o leitor
nas páginas que se seguem. Constantin Noïca, o mais célebre dos
filósofos romenos, empreende aqui uma patologia do espírito, não no
sentido prático e clínico com que enfrentou matéria análoga o eminente
psiquiatra Viktor Frankl, mas num sentido analítico e descritivo que
subentende uma anatomia – uma esquemática estrutural – do espírito
humano, isto é, uma antropologia filosófica, e se prolonga, quase que
naturalmente, numa anatomia e patologia geral do ser: vale dizer,
numa metafísica geral. É muita coisa para um livro tão breve, dirão
alguns. Mais estranho ainda é que todo esse mundo de intuições
fundamentais possa caber na simplicidade esquemática da metáfora
médica que resume a sua fórmula: três necessidades espirituais básicas,
duas orientações possíveis no modo de atendê-las ou desatendê-las, seis
moléstias essenciais possíveis, resultando dessa multiplicação e
combinando-se em dosagens infinitamente variadas – como as seis
linhas de um hexagrama do I Ching – para produzir toda a trama
da nossa desgraça e da nossa redenção.
Tudo isso é, de fato, muito extravagante. Mais que extravagante: é
romeno. O leitor talvez não saiba o que é um romeno. É um
descendente de um antigo povo de camponeses orgulhosos e aristocráticos,
fortemente apegados à sua liberdade e à sua fé religiosa e constantemente
obrigados a suportar o jugo de invasores estrangeiros -- romanos, turcos,
russos, alemães – que forçavam para lhes impor uma fé estranha e
línguas estranhas. Sua língua traz as marcas das progressivas misturas.
É uma estrutura latina preenchida de sons eslavos, árabes, turcos e
germânicos. Sob o tacão do invasor sempre superior em número e em
armas, esse povo aprendeu a astúcia. É proverbial a habilidade romena
no comércio, na publicidade, no jornalismo – em tudo o que o homem
pode fazer sem outra arma que não a palavra. Mas, enquanto
desenvolvia as artes da adaptação a um mundo hostil, ele forçava, por
dentro, para conservar sua identidade, sua religião, seu estilo de viver.
A variedade alucinante das situações que atravessou não se reflete em
nada, por exemplo, na sua arquitetura, de evolução notavelmente con-
tínua ao longo dos séculos, com os mesmos adornos mitológicos e cristãos
das cabanas de pastores do século X a repetir-se nos palacetes da era
burguesa, sob uma casca de estilo francês fingidamente copiado para
agradar o visitante. No século XX, esse povo, como todos os demais do
Leste Europeu, contaminou-se a fundo nos dois maiores pecados da
nossa época: o nazismo e o comunismo. Contaminou-se à força, levado
por vizinhos poderosos, que o arrebataram na voragem dos grandes
delírios. Mas, mesmo no meio desse turbilhão sangrento, ele buscava,
quase extenuado, continuar fiel a si mesmo, impor às idéias estrangei-
ras, mediante os mais excêntricos arranjos e improvisos, a marca da
vontade nacional. Tentou cristianizar o fascismo, tentou nacionalizar o
comunismo. Nas duas ocasiões, foi derrotado. É o que sempre acontece
a quem se vê forçado a negociar com o mais forte. Quatro ditaduras
num século, duas guerras, inumeráveis revoluções e golpes de Estado: a
história romena, um quebra-cabeças que leva o estudioso estrangeiro ao
desespero, reflete os movimentos alucinados de um povo que se debate
como um peixe fisgado para escapar de um anzol, sabendo que outro
anzol o espera mais adiante. O romance romeno mais famoso no exte-
rior ainda é A Vigésima-Quinta Hora, de C. Virgil Gheorgiu: a
odisséia de um homem simples perdido no vendaval do mundo, obrigado
a vestir todos os uniformes, a jurar falso a todas as bandeiras, lutando
para preservar um fundo de sinceridade na dobra mais oculta da
consciência. Os romenos perderam tudo. Não poderiam apelar à
consolação grandiloqüente dos franceses: Tout est perdu, sauf
l’honneur. Eles não vêem, de fato, honra alguma nos feitos bárbaros
da Guarda de Ferro, na corrupção sangrenta dos vinte e cinco anos da
ditadura Ceaucescu. Eles têm uma memória terrível, conservam uma
recordação deprimentemente exata de cada uma das vergonhas, de cada
uma das farsas cruéis que o obrigaram a encenar. Eles perderam tudo,
menos essa exatidão que se chama, precisamente, sinceridade
consigo próprios, a coragem de dizer a si mesmos verdades terríveis
que outros povos, em situação idêntica, ocultariam em proveito da boa
auto-imagem nacional. Mas ser sincero consigo é o mais precioso dos
bens. Quien habla sólo espera hablar a Dios un día. Eles
perderam território, independência, riquezas e incontáveis vidas
humanas, tudo enfim, menos a única coisa necessária – a primeira
que tantos outros trocaram por um prato de lentilhas. Este é o segredo
de duas características tão marcantes, que não se esperaria encontrar
num povo tão sofrido e tão realista: um sereno bom-humor e um fundo
de altivez que não tem nada a ver com orgulho nacional, pois emana de
uma luz que não é deste mundo. É a altivez humilde do pecador que,
sabendo-se redimido por uma força mais alta, não teme o olhar da
malícia humana que busque acusá-lo daquilo que Deus já lhe perdoou.
Ora, não há neste mundo coisa que pareça mais enigmática do que
a simplicidade. E os romenos, que são o que são e sabem o que são,
enxergam com resignado humorismo o papel de esquisitões que se
reserva àqueles que não são compreendidos justamente porque falam as
coisas como elas são. Não há povo talvez no universo que tenha mais
que ele o senso da incongruência entre o exterior e o interior do homem,
da impossibilidade de expressar a realidade nua e crua sem que ela
acabe parecendo uma fantasia alucinada. O dadaísmo, não convém
esquecer, é invenção romena. Também o é o teatro do absurdo. Não há
coisa que um romeno considere mais divertida do que não ser
compreendido quando está dizendo uma coisa perfeitamente óbvia e
verdadeira.
Só a um romeno, portanto, ocorreria a idéia de expor a mais alta
metafísica na forma literária de uma paródia da medicina. Esse povo
tem o gênio da ambigüidade aparente a encobrir uma sinceridade
profunda, que os brasileiros também têm, mas que nele se mescla a um
toque de gravidade tragicômica que nos falta quase por completo1.
Quem leu Ionesco ou Cioran sabe que em certos trechos de suas obras é
rigorosamente impossível discernir se falam a sério ou brincando.
E é nessa faixa de indecisão e perplexidade que eles colocam o melhor,
o mais profundo e o mais autêntico de uma visão romena do mundo.
Malgrado a comicidade quase alucinógena de algumas de suas
expressões, seria inexato dizer que essa visão é irônica. A ironia
pressupõe uma frieza, um distanciamento cerebrino, que pode ser,
conforme a índole do escritor, natural ou defensiva. Mas nenhum dos

1
Quase, digo, porque o encontramos abundantemente em
Machado de Assis. Mas muito falta para que a sutileza a um tempo
amarga e resignada do maior dos nossos escritores se integre na
consciência comum, mesmo das classes letradas, e nos nossos usos e
costumes literários. [N.E.]
grandes escritores romenos dá o menor sinal de ser indiferente aos
sofrimentos humanos ou de pretender defender-se deles mediante um
artifício intelectual, seja o da ironia, seja qualquer outro. Ao contrário,
eles não apenas assumem o sofrimento e o absurdo da vida com plena
consciência da fatuidade desses artifícios, como também procuram
expressá-lo da maneira mais franca, direta e literal. É precisamente
desta franqueza que brota, quase paradoxalmente, o efeito cômico,
quando o sofrimento descrito, chegando aos últimos limites da opressão e
do nonsense, ultrapassa o dom das lágrimas e se converte em riso.
Mas seria igualmente inexato dizer que é um riso sinistro, diabólico.
Pois a gargalhada de Satanás é a última palavra após a sentença
terrível que condena o homem à perda do dom da fala. Asura,
“demônio” em língua sânscrita, quer dizer: “criatura desprovida do
dom da fala”. É natural, pois, que o Adversário aspire, acima de tudo,
a desprover sua vítima daquela capacidade de dar nome às coisas, que a
fez com justo orgulho e exata modéstia definir-se a si mesma como
zoon logistikon, o bicho que fala. Entre os condenados, com efeito,
não ouve Dante conversações em língua de gente, mas tão somente
orribile favelle, gritos e gemidos animalescos que expressam sem
nomear, que quanto mais ressoam menos dizem, impotentes para,
objetivando a dor, transfigurá-la em consciência, prenúncio da liberdade.
Mas, nos livros romenos, o homem recusa a mordaça diabólica: ele
continua falando e falando, muito além do ponto em que o eterno
Adversário poderia julgar ter-lhe imposto, mediante sofrimentos e
absurdidades indizíveis, a impossibilidade de dizer. E o que é que eles
dizem? À primeira audição, é uma conversa estranha, um arrazoado
fantástico de incongruências e extravagâncias. Ouvindo com mais
atenção, notamos que esse jogo de enxadristas doidos tem um método,
um propósito, visa com maquiavélica premeditação a um alvo preciso e
determinado: o que eles buscam expressar – e não raro o conseguem 
é justamente a idéia, a estrutura interna, a equação lógica do absurdo, o
qual, sem deixar de ser absurdo, jaz assim derrotado aos pés da
inteligência humana tão logo formulado em todo o grotesco do seu
conteúdo eidético impossível. Forse tu non pensavi ch’io loico
fossi!, exclama o demônio ao perplexo visitante florentino: “Não
imaginavas que eu também fosse lógico!” Mas os romenos, estes sim, o
imaginavam, e entregaram-se com apaixonado afã à mais improvável
das tarefas: decifrar a lógica demoníaca, sistematizar em silogismos a
fórmula do jogo sujo universal, que, uma vez exposto à luz do dia, jaz
morto e se transfigura num monumentum aere perennius ao dom
divino da linguagem humana. Eis por que os livros de Cioran, de
Ionesco e este que se vai ler agora, têm esta paradoxal e incon-
fundivelmente romena propriedade de, justamente quando mais nos
oprimem com a visão do intolerável, nos libertar de súbito, nos infundir
uma luminosidade calma e soberana e nos elevar às portas de um reino
angélico de contemplação e sabedoria. Eles celebram a vitória da
linguagem sobre o mutismo ruidoso do mundo satânico. O jogo de
excêntricos amalucados revela assim sua verdadeira natureza, a missão
secreta desses anjos disfarçados em palhaços: é o divinum opus da
cura pela palavra.
Se a metafísica de Noïca aparece portanto em trajes de medicina,
sabendo da comicidade da situação, é porque por dentro está consciente
de uma comicidade mais profunda ainda: o disfarce é a realidade, a
metafísica de Noïca é medicina no seu mais alto e autêntico sentido.
A coisa mais inacreditável do mundo é que as coisas sejam
exatamente o que parecem.
AS SEIS DOENÇAS
DO ESPÍRITO HUMANO
I. O QUADRO DAS SEIS DOENÇAS

A o lado das doenças somáticas, que conhecemos há


séculos, e das doenças psíquicas, identificadas mais
recentemente, deve existir outras, de ordem
superior, às quais chamaremos doenças do espírito. Nenhuma
neurose poderia explicar o desespero do Eclesiastes, o
sentimento do nosso exílio na terra ou da nossa alienação, o
tédio metafísico, a consciência do vazio e do absurdo, a
hipertrofia do eu ou a revolta sem objetivo; nenhuma
psicose poderia explicar o “furor” econômico ou político, a
arte abstrata, o “demonismo” técnico, ou talvez aquele
formalismo extremo que hoje em dia, em todos os domínios
da cultura, consagra o primado da exatidão sobre a verdade.
Incontestavelmente, de algumas dessas tendências, se
não de todas, nasceram e continuam a nascer grandes obras:
nem por isso deixam de ser grandes desregramentos do
espírito. No entanto, diversamente das doenças somáticas,
que são acidentais (a morte mesma, dizem, é um acidente na
ordem dos seres vivos), e das doenças psíquicas, que de
certo modo são contingentes e necessárias ao mesmo tempo,
as doenças do espírito parecem revestir-se de uma natureza
constitucional.
[DOENÇAS PROVENIENTES DA CARÊNCIA]

Desejaríamos, nas páginas que se seguem, mostrar


que essas doenças do espírito são, na realidade, doenças do
ser, doenças ônticas  e que é isto mesmo que as torna, à
diferença das outras doenças citadas, doenças
verdadeiramente constitutivas do homem: pois se o corpo e
a alma também participam do ser, só o espírito pode, em
contrapartida, refleti-lo plenamente e dar conta de sua força
ou de sua precariedade. E o ser também pode, ele mesmo,
cair doente; se então ele é afetado nas coisas viventes ou
inanimadas, estas permanecem secretamente bloqueadas por
uma dessas doenças, que no entanto se dissimulam por trás
da aparente estabilidade das coisas; mas se é atingido no
homem, este último, graças à sua instabilidade superior,
revela sua doença à plena luz do dia.
Por outro lado, o ser pode ainda revelar-se falso.
Suponhamos que um cientista descubra o meio de prolongar
indefinidamente a vida e que ele ponha sua descoberta a
serviço da humanidade: após render-lhe homenagem, de-
veríamos levá-lo a julgamento. Seu crime seria o de ter fal-
sificado um valor, isto é, o ser. Com efeito, assim como o
dinheiro é tentação para os moedeiros falsos, outros valores
 o verdadeiro, o belo e, acima de tudo, o bem  podem,
eles também, ser uma tentação para os falsários. (Neste
sentido, aliás, toda uma parte da técnica poderia, hoje, ser
acusada de falsificar, mediante bens inúteis, a idéia mesma do
Bem.) Na medida em que o ser é um valor  senão “o”
valor  no seio do real, ele pode portanto ser falsificado.
Tal como um moedeiro falso a forjar sua moeda falsa, nosso
cientista nos teria proposto o falso ser.
Mas é altamente improvável suspeitarmos da
falsidade do ser  como da de uma moeda , e nosso
falsário teria todas as chances de permanecer impune. Ao
contrário, apressar-nos-íamos em tirar proveito dessa
contrafação, na esperança de dar enfim sentido e plenitude
ôntica à nossa existência, a qual, dentro de seus limites
humanos, não realiza senão imperfeitamente o seu ser. Em
outros termos: mediante essa contrafação  que não deixa
de nos recordar a existência da ameba, cuja duração de vida
ultrapassa a de todas as existências terrestres ,
desejaríamos compensar todo a nossa carência de ser.
Mas pode ser também que essa dilatação da nossa
vida no tempo nos permita enfim, pela primeira vez, tomar
consciência de nossa carência de ser. Não temos (como o diz
tão bem E. Ionesco em Le roi se meurt) o direito de pedir o
prolongamento de uma existência tão irremediavelmente
afetada de anemia crônica, talvez de verdadeira hemofilia
espiritual; não nos é lícito receber o dom desse pro-
longamento. Em contrapartida, quando tivéssemos com-
preendido que a eternidade não é condição suficiente para
realizar o ser  e será ela aliás condição necessária? ,
poderíamos enfim nos perguntar se é mesmo na consciência
de sua natureza “perecível” (tão incriminada) que se deve
buscar a causa que faz do homem esse “animal doente” por
excelência que nele já se reconheceu. Veríamos então, para
além de sua doença “crônica”  se é que chega a ser uma
doença o fato de ter sua quota medida no tempo ,
perfilarem-se as verdadeiras doenças do homem, ser nascido
no tempo e que não encontra sua medida no tempo.
[1. CARÊNCIA DO INDIVIDUAL]

Embora esteja bem claro que o prolongamento


indefinido da vida não foi senão um exemplo extremo,
destinado a pôr em evidência as carências do ser no homem,
escolheremos agora um outro, menos estranho, que poderá
nos concernir a todos, no futuro. Algumas doenças ônticas,
que no homem se traduzem por doenças do espírito, se
manifestarão bem mais claramente assim que o homem tiver
permanecido por um tempo suficientemente longo em
estações espaciais, como já se previu que o fará. Faltará a
esse novo homem algo que nos aparece logo de entrada
como um elemento essencial na realização do nosso ser: a
individualidade. Esse homem irá, como todos, respirar, mas o
ar que ele irá respirar será condicionado e “geral”, não este
determinado ar da sua terra, cujo odor ele tão bem sabia
reconhecer; ele se alimentará, por certo, mas, aí também, de
substâncias gerais; ele se esforçará, como sempre, na via do
conhecimento, mas se interessará antes pelas essências do
que pelas realidades particulares; e se alguma planta ainda o
puder deslumbrar, ela terá certamente brotado numa estufa.
Em parte alguma do cosmos ele reencontrará aquela
realidade individual, o sabor particular de “esta coisa aqui”, o
tode-ti do filósofo grego, cuja ausência nos faz sofrer bem
mais do que a imperfeição. Nem ele nem as coisas que o
rodeiam terão mais realidade particular. Por isto ele deverá,
de tempos em tempos, voltar à Terra para curar sua todetite.
[2. CARÊNCIA DO GERAL]

Mas doentes afetados de todetite já podem ser


encontrados, e aliás sempre se encontraram, entre as grandes
naturezas teoréticas: os heróis de Dostoiévski, em Os
Demônios, por exemplo — ou certos heróis de Thomas Mann
—, dos quais a sociedade real fornece generosamente os
modelos. Mesmo Platão sofria disso, de tempos em tempos,
em sua obstinação — que se pervertia em obsessão – de
querer plantar o cenário de sua sociedade ideal naquela
pobre cidade de Siracusa. Pode ser, no entanto, que, à
medida que a visão teórica e a programação venham a impor
seu primado num futuro próximo, a todetite (a necessidade de
encontrar o individual autêntico) se dissemine cada vez mais
no nosso mundo. No momento, ainda é mais freqüente a
doença que de certo modo lhe é oposta; doença na qual o
sofrimento não vem da carência do individual, mas, ao
contrário, da do geral. Se apelarmos de novo à língua grega,
o “geral”, kathalou, lhe dará seu nome: catolite.
Num certo sentido, a catolite é mesmo a doença
espiritual típica do ser humano, tão atormentado pela
obsessão de se elevar a uma forma de universalidade.
Quando, por um gesto elementar de lucidez, o homem
desperta da hipnose dos sentidos comuns que
ordinariamente o manobram — no interesse, aliás, da
espécie e da sociedade —, ele busca por todos os meios
curar, de sua amargura de ser, uma simples existência
individual sem qualquer significação de ordem geral. Então
ele busca, mediante a maior parte de seus engajamentos
deliberados, apoderar-se dos sentidos gerais. Com muita
freqüência ele cai na armadilha dos sentidos prontos (como
as “ideologias” do seu tempo) que não são senão falsos
remédios, impotentes para curar seu mal em profundidade.
Por isto, desde que o homem  mesmo o mais medíocre 
prolongue seu gesto de lucidez por tempo suficientemente
longo para perceber a futilidade do geral ao qual se devotou,
sua catolite retoma toda a sua virulência.
A literatura  traduza-se: a vida  é, ainda desta
vez, rica em exemplos. Em seu Journal de Salavin, Georges
Duhamel descreve a confusão de um homem comum, in-
capaz de encontrar, em sua mediocridade, recursos sufici-
entes para elevar-se a um sentido geral, e que decide então se
tornar  simplesmente  um santo. A catolite, latente em
cada um de nós, é aqui deliberadamente ativada e apresenta,
no coração mesmo do desastre que ela acarreta, uma
evolução excepcionalmente rigorosa e serena: pro-
gressivamente, o herói se afasta da sociedade, da família, da
vida cotidiana, enfim da vida tout court, sob a plácida
alucinação daquela ordem geral que essas realidades não
poderiam conter. A mesma doença, em contrapartida, as-
sume uma forma histérica em César Birotteau, o herói bal-
zaquiano que ela precipita nas convulsões patéticas da sua
confrontação ilusória  na sua escala de homem comum 
com Napoleão. (É por essa confrontação com um destino
que lhe parece da mais alta generalidade que o herói espera,
na realidade, chegar por sua vez a um nível de afirmação
mais geral.) Temos aí como que dois extremos patológicos
da catolite, mas que parecem enquadrar toda uma gradação de
formas, variadas e nuançadas, dessa doença que nos espreita
a todos, seres desprovidos do geral.
[3. CARÊNCIA DE DETERMINAÇÕES]

E, ao lado da catolite e da todetite, vem ainda nos ator-


mentar uma terceira doença, também ela proveniente das
profundezas do nosso ser espiritual. A ausência de um sen-
tido geral adequado, na catolite, e a de uma realidade indi-
vidual, na todetite, não podem, por si, dar conta de todas as
crises espirituais do homem. Além de um geral e de um
individual, o ser tem também, para se realizar, necessidade de
determinações adequadas, isto é, de manifestações que
possam se harmonizar tanto com sua realidade individual
como com o sentido geral a que tende. E, já que a doença é
provocada pela impossibilidade de obter tais determinações,
poder-se-ia denominá-la horetite, tendo em mente o grego
horos, que significa “termo”, “determinação”. Esta doença
exprimiria então os tormentos e a exasperação do homem
por não poder agir de acordo com seu próprio pensamento e
suas convicções. O caso mais extraordinário de horetite, na
cultura européia, é Dom Quixote. Toda a busca patética do
herói espanhol, que com tanta pertinência escolheu a função
de “cavaleiro errante”, é uma busca de determinações; estas
lhe serão recusadas, primeiro, em sua verdade, quando ele as
inventa por si mesmo na primeira parte da narrativa (não são
senão moinhos de vento e rebanhos de carneiros); depois,
em sua realidade, na segunda parte, onde tudo é fingimento e
fabulação maliciosa de outrém.
Mas, como a catolite, a horetite pode, ela também,
revestir formas menos violentas e manifestar-se por uma se-
rena  e inútil  espera das determinações adequadas. É
semelhante existência que nos pinta um autor contempo-
râneo, Dino Buzzati, no seu romance O Deserto dos Tártaros:
seu herói vai se deixar, ao longo dos anos, literalmente cair
doente de horetite, instalando-se como oficial na espera
passiva de um incerto combate, em algum lugar num posto
de fronteira, contra um inimigo desconhecido. Por fim, seu
único verdadeiro inimigo será a morte, essa última de-
terminação que se apodera da vida dos homens, desprovida,
como tão freqüentemente acontece, de determinações
significativas. E aqui também, entre esses dois extremos
patológicos do mal, podem-se escalonar todas as formas da
horetite, a terceira doença espiritual do homem.
Acreditamos ter podido identificar, nas páginas
precedentes, três doenças espirituais, que refletem, no
homem, as carências possíveis dos termos do ser: geral,
individual, determinações. Tal como numa outra medicina
 e não sem sorrir , foi-nos preciso dar-lhes nomes. Mas
como não lhes dar nomes, se elas se manifestam tão
claramente no homem e, mui certamente  enquanto
“situações” do ser , também nas coisas?

[DOENÇAS PROVENIENTES DA RECUSA]

Todavia, a lista das doenças de ordem superior não


está ainda encerrada. Três outros grandes desregramentos se
nos apresentam, segundo nos parece, provenientes já não da
carência, mas da recusa, no homem  sinônimo de inaptidão,
nas coisas , de um dos três termos do ser. E, já que as três
primeiras doenças receberam nomes, não iremos privar deles
estas três recém-chegadas no repertório patológico do ser e
do espírito. Tendo em conta o seu aspecto privativo, vamos
chamá-las: acatolia, atodecia e aorecia. Comparadas às primeiras,
elas parecerão, à primeira vista, um pouco mais estranhas:
por isto, vamos deixá-las à vontade para que se apresentem
por si mesmas, através de suas manifestações no homem. E
como a cultura é o espelho ampliador da nossa vida
espiritual, escolheremos, também desta vez, ilustrá-las por
meio de três criações literárias.

1. DOM JUAN E A RECUSA DO GERAL

Tomemos o caso de Dom Juan: não há talvez um


melhor para ilustrar a acatolia. Com Dom Juan, estamos ante
um destino-limite, ante um ser que rejeita categoricamente o
geral, até que este se apresente a ele como uma simples
estátua de pedra. Em tal destino parece-nos poder ler, num
livro aberto, os sintomas dessa primeira doença do espírito.
Dom Juan encarna plenamente o primeiro termo do ser,
o individual, pois ele é uma “individualidade” no sentido
forte do termo, isto é, um ser humano que conseguiu se
destacar da inércia das generalidades comuns. E, não o es-
queçamos, os homens, como as coisas, não são na maioria
senão realidades particulares  e não individuais : simples
casos particulares da espécie e da sociedade.
Dom Juan soube, portanto, libertar-se da inércia de
uma ordem estabelecida e forjar seu próprio destino. Ele
pretende não mais deixar-se comandar pelas verdades (pelos
preconceitos) da sociedade e da religião. Ele é libertino e
libertário, ele age como bem lhe parece. É neste sentido que
ele adquiriu já sua individualidade, o que não quer dizer sua
personalidade: pois, se ele se libertou de uma ordem imposta,
deveria agora abrir-se a uma ordem diferente e que lhe fosse
própria. Mas Dom Juan não se abre deliberadamente a nada.
Ele permanece um “individual” absoluto, o homem do
diabo, como no-lo diz Sganarello na versão de Molière, isto
é, aquele que está condenado à recusa do geral.
Destacado e como que suspenso acima dos fluxos da
existência comum, o individual absoluto não se deixa, no
entanto, flutuar ao acaso; é ele mesmo quem se dá doravante
suas próprias determinações, é ele só quem tem a iniciativa
dos acontecimentos que vão modelar seu destino. Um
libertino como Dom Juan, em conseqüência, coloca
igualmente em jogo o segundo termo do ser, pois o libertino é
aquele que se dá a si mesmo determinações livres.
Mesmo se o Dom Juan de Molière não se atém, na
verdade, à conta das “mille e trè” determinações  as mil e
três conquistas amorosas , ele todavia coloca em jogo uma
infinitude potencial delas e faz, diante de Sganarello, uma
sutil exposição da teoria da necessária infidelidade a todo
amor terrestre. É verdade que, bem antes de Molière, um
outro já tinha feito essa teoria: Platão. Só que, enquanto no
filósofo a infidelidade a uma só ou a uma multidão de
encarnações do belo era uma ascensão à Idéia do Belo, isto é,
a um geral que conteria todas as determinações doravante
ultrapassadas, em Dom Juan a infidelidade permanece cega e
fechada a toda ultrapassagem. O herói quer simplesmente
“fazer justiça” à beleza particular de cada uma das mulheres
que encontra; ele não sabe fazer justiça à beleza tout court, isto
é, ao geral. Ele ama a conquista amorosa em si mesma, pelo
só prazer dos “pequenos progressos” que a cada dia ele faz
no empenho de “forçar as resistências”, e isto lhe basta para
se julgar à altura dos grandes conquistadores. Ele sente
orgulho em subjugar, à sua maneira, a Terra inteira... e deixa
escapar a frase que trai seu desequilíbrio: ele desejaria, como
Alexandre, que houvesse outros mundos, – é o que diz –para
poder lá estender suas conquistas até o infinito.
Estando, portanto, de posse dos dois primeiros
termos do ser, Dom Juan recusa o terceiro: o geral. Só que,
da sua recusa, eis que surge o “mau infinito” de que fala
Hegel: o infinito do “de novo e de novo”. É ele que vai
aniquilar o herói, pois é ele que aniquila tudo o que é simples
repetição de si e retorno do mesmo. No fundo, não há
nenhuma necessidade da condenação moral nem do castigo
celeste que evocam Sganarello, Dom Luís e Elvira. A queda
no mau infinito das determinações é, em si, punição
suficiente.
Mas se essa desventura do ser  cair no mau infinito
 é a sorte tanto dos humanos quanto do resto dos
viventes, o que, em contrapartida, está reservado somente ao
homem no destino de Dom Juan é seu sentimento de
culpabilidade; não tanto a culpabilidade de contravir às leis
terrestres ou celestes, isto é, a um geral determinado, quanto
a de ter recusado o geral enquanto tal.
É interessante notar que, diversamente de seus
precursores espanhóis ou italianos, que acentuam o castigo
divino, Molière parece propor-nos ele mesmo essa outra
interpretação: com efeito, logo de início  desde a entrada
do herói em cena , a peça concentra-se em torno da
confrontação com o geral inerte que é o “Convidado de
pedra”. Dom Juan vive seus últimos dias: o mecanismo das
determinações já começou a se desarranjar, por falta de um
sentido geral. O herói não parece mais regozijar-se com seus
“pequenos progressos”  dos quais no entanto continua a
se gabar ; ele não exerce mais sua arte sutil sobre vítimas
de eleição, e já não usa senão da sedução rasa do pedido de
casamento. Com meios mais sutis, Dom Juan teria talvez
continuado a fascinar um criado como Sganarello; por sua
desordem, que nenhum refinamento, talvez nenhum gozo
 mesmo frusto  vêm compensar, ele já não consegue
senão exasperá-lo. A desordem engendrada por Dom Juan
reflete-se aliás fielmente na desordem do discurso de
Sganarello, que, agora, quer desesperadamente reconduzir
seu patrão ao bom caminho.
É aqui, no meio da peça  em campo aberto, ou, em
suma, não importa onde , que surge a estátua do
Comandante, o pai de Elvira, que Dom Juan havia matado,
tanto é verdade que a generalidade inerte pode aparecer em
qualquer lugar. À desordem vem assim opor-se a ordem mais
baixa, a ordem do inanimado. Ela, ao menos, deveria acalmar
a fúria das manifestações donjuanescas desprovidas de
sentido. Os apelos ao arrependimento, renovados por todos
os outros personagens  Dom Luís, Elvira, o irmão dela
quando Dom Juan lhe salva por acaso a vida , parecem ser
outras tantas advertências enviadas pela estátua. Quanto a
Sganarello, não sente ele mesmo a evidente advertência do
geral, ao perguntar a seu patrão: “Não vos rendeis à
surpreendente maravilha dessa estátua movente e falante”?
Mas Dom Juan responde: “Há realmente alguma coisa aí
dentro que eu não compreendo; mas, o que quer que seja, não é
capaz nem de convencer meu espírito, nem de abalar minha
alma.” Que o nada possa falar em nome da ordem, quando
não se soube encontrar uma melhor, eis, na verdade, o que
Dom Juan não soube compreender.
No entanto, a desordem absoluta não aparece no
próprio Dom Juan, pois o herói sabe se dominar e bravatear:
ela aparece, em contrapartida, no último ato, na cena II, no
espírito de Sganarello, cujo pensamento agora se perde num
delírio argumentativo: “O homem está neste mundo como o
pássaro no galho; o galho está ligado à árvore; quem fica
ligado à árvore segue bons preceitos” e assim continua,
loucamente, até a conclusão, que é no entanto justa, ainda
que sem relação com o raciocínio: “Em conseqüencia, sereis
danado por todos os diabos”. É neste momento preciso que
faz sua aparição final o Comandante  o sentido geral
exterior; ele está lá para trazer o não-ser a um mundo que se
recusou tão obstinadamente a se abrir ao ser. Ele assume de
início a forma de um espectro de mulher velada, símbolo
anunciador da morte: “Dom Juan já não tem mais que um
momento”, diz a aparição. Em seguida, o espectro muda de
aparência, como para se aproximar da imagem da inércia
última: ele é o Tempo vazio com sua foice, e não diz mais
nada. Surge enfim o Convidado de pedra, a estátua mesma
do Comandante, que toma o herói pela mão. Ao contato da
pedra, Dom Juan sente enfim o fogo devastador que o
aniquilará.
Nas versões anteriores, espanholas ou italianas, a
peça era intitulada O Convidado de Pedra. É certo que, de um
ponto de vista artístico, a versão de Molière lhes é superior;
mas esse não é talvez o caso do título; pois o “Convidado”
encerra, com efeito, o admirável pensamento do geral que o
homem se empenha por vezes em enfrentar e que ele não
tolera senão como simples conviva, quando seu verdadeiro
lugar seria o do dono da casa.
A acatolia é a doença do escravo humano que ignora
todos os seus mestres, inclusive seu mestre interior.

2. TOLSTÓI E A RECUSA DO INDIVIDUAL

Comparada à acatolia, que, com suas recusas


provocadoras, exacerba a individualidade, a atodecia
manifesta-se com menos violência, pois põe à frente o geral,
cujas resistências são mais discretas. Doravante, será em
nome do geral, isto é, em nome de uma entidade ou de uma
lei, que virá a recusa; estranha ao desafio  que em Dom
Juan se confundia com a revolta , a recusa atodécica toma
ora a forma da compaixão para com o mundo inteiro, ora a
da indiferença para com tudo o que é humano e individual.
Se nos é permitido ver na acatolia o mal característico do
nosso mundo europeu, onde primam as individualidades, a
atodecia será, por sua vez, característica do mundo asiático.
Em todo caso, o autor que se encarregou de descrevê-la,
talvez de viver em si mesmo a recusa do individual, tinha
algo de ambos: trata-se de Tolstói.
O comum dos mortais, diz Tolstói, ignora que todo
ato e toda manifestação dependem de leis que desprezam as
individualidades, ainda que da estatura de um Napoleão. Na
acatolia, era o retorno do geral aviltado que arrastava o
indivíduo à perdição; na atodecia é o individual que é
desprezado e é a ele que cabe, na sua terrível vingança, a
tarefa de desprover o homem atodécico de seu lugar, de sua
identidade e de seus fundamentos. Mas nem a atodecia nem a
acatolia poderiam trazer dano à qualidade das obras literárias
que as refletem. Tanto Dom Juan quanto Guerra e Paz, o
romance de Tolstoi que ilustra tão bem, a nosso ver, esta
segunda doença, parecem, ao contrário, ter obtido do mal do
homem um acréscimo de sua tensão interna, e 
semelhantes nisto a todas as criações artísticas  se
expandem ao contato das paixões e dos desregramentos
humanos. Tolstoi, ele próprio e só ele próprio pessoalmente,
sofreu do seu mal, pois a atodecia o impediu de realizar sua
vida e seu ideal. Sua obra, em contrapartida, teoriza a atodecia,
e isto a despeito de que, enquanto obra, venha
necessariamente a desmenti-la.
A recusa do individual domina todo o romance, e
isto desde a primeira cena, a recepção nos salões de Anna
Pavlovna Scherer. Todos os personagens que aí fazem sua
entrada  com a exceção de Pedro Bezukhov, cuja
autenticidade é indispensável ao autor, como eixo central da
narrativa  trazem no seu ser a marca de uma sociedade
bem estabelecida em suas modalidades gerais e que não
pretende mais fazer concessões às autenticidades individuais
de uns e outros. Tolstoi, o artista, se proíbe, certamente, de
reduzir sistematicamente seus personagens a simples “figuras
típicas”: em contrapartida, o atodécico nele saberá colocá-los
em situações típicas, ou  quando ameaçam escapar, em sua
verdade vivente, ao controle do geral e transformar-se em
sedutoras individualidades , reduzi-los ao silêncio. Os
grandes e os humildes sofrem com isso, lado a lado:
Napoleão e o tzar russo, pelos primeiros, Platão Karataev, o
“tipo” do camponês russo, pelos segundos. Entre esses dois
extremos, todos os personagens deixam ouvir o ronco surdo
de suas pulsações de vida e de autenticidade reprimidas; mas,
a cada vez, o discurso de um sentido geral procura  e
consegue, com muita freqüência  deter sua eclosão2.
Para esse efeito, uma das funções-chave dos herói, e
em geral de todos os personagens lúcidos, é a de ressentir a
vaidade dos seres, a deles próprios como a dos outros. Em
Austerlitz, Andrei Bolkonski, gravemente ferido no campo
de batalha, percebe Napoleão a contemplar o teatro da sua
vitória e se diz que o Imperador não é senão um nada em
face da imensidão do céu. No dia seguinte, quando é
transportado entre os feridos de uma certa patente, e revê o
Imperador, tem de novo a mesma revelação da “vaidade das
grandezas”. A vaga, ou antes, o refluxo do geral varre assim,
impiedosamente, tudo aquilo que ao longo das páginas
tentara obter um contorno individual. E como se, apesar de
tudo, a obra arriscasse ainda desmentir a atodecia do autor,
Tolstói, num apêndice, se dá uma vez mais o trabalho de
afirmar a vaidade do individual.
O que é que verdadeiramente é?, pergunta-se ele.
Qual é realmente o ser da história, ou, em termos mais claros,
qual é a força que faz com que na história – e, em
conseqüência, na narração histórica – as coisas tenham um
sentido e uma consistência, tal é a questão essencial que
coloca, sem nenhuma ambigüidade, o “Posfácio” do
romance. Com muita freqüência, a nosso ver, as ambições

2
Nota-se hoje em dia a mesma coisa nos personagens de
Soljenítsin, em O Pavilhão dos Cancerosos, por exemplo. No instante mesmo
em que parecem ao ponto de se abrir à autenticidade e à vida, o autor,
sob a pressão de suas intenções demonstrativas de ordem geral, os
impede de fazê-lo. Como Tolstoi, Soljenítsin parece-nos sofrer de
atodecia. [N.A.]
teóricas de Tolstói foram encaradas com aquela espécie de
indulgência que só uma fraqueza da obra poderia merecer, e
o foram mesmo quando se reconhecia que o visionário e
enfim o profeta que ele se tornou tinham sido, nele,
solidários do artista. É no entanto difícil não ver em todas
essas digressões teóricas a probidade profunda do autor; e é
ainda mais difícil, na perspectiva da atodecia, a qual, enquanto
doença constitucional do homem, aparece de maneira tão
flagrante na sua visão de profeta, não sentir que sua teoria
tem algo de tão perturbador quanto sua obra mesma.
Não vamos insistir no fato de que, por definição, a
arte põe em jogo o individual; de que ela talvez represente,
no fundo, a conversão das determinações do individual no
sentido do geral; nem de que sua virtude é de arrarcar às
coisas à sua “catá-strofe” e de salvá-las, por uma espécie de
“aná-strofe”, da queda e do aniquilamento: é natural, aí, que
Tolstói não tenha podido se impedir de salvá-las, a despeito
de seus discursos sobre a vaidade delas. Em contrapartida,
faremos observar que sua lucidez teórica pôde ser, às vezes,
tão surpreendente e tão sedutora quanto sua inspiração
artística, mesmo se, por outros aspectos, parece ir de
encontro a esta última.
“Apreender diretamente a vida – escreve Tolstói no
‘Posfácio’ –, ainda que fosse a de um só povo, a fim de
descrevê-la, eis algo impossível.” Ninguém poderia, com
efeito, encontrar todas as determinações dessa imensa
realidade individual que é um povo, como ninguém poderia
dizer qual é a força que põe os povos em marcha. Com
efeito, qual é a força, qual a lei, qual a razão interna que cria
a história? Não se pode mais, doravante, invocar a vontade
divina, dizem; a vontade das massas também não, pois não
encontra jamais sua expressão justa. Quanto à obra dos
heróis e das grandes personalidades que os novos
historiadores põem à frente, em lugar da vontade divina, não
poderia ser o caso uma vez que se viu neles o humano,
demasiado humano, tal como ele, Tolstói, fez com o o tzar
Alexandre ou com Napoleão. Sob o impulso de sua alma
aberta à humanidade inteira, Tolstói vê a história como um
produto de todos.
Cada homem é, à sua maneira, um agente da
liberdade, liberdade forjada conforme aquilo que lhe sugere
sua própria consciência. Mas, ao mesmo tempo, cada
homem sente que sua vontade é entravada por leis – e a
razão as descobre no seio mesmo da história: as leis
estatísticas, ou as do determinismo político-econômico, por
exemplo. No fundo, diz-nos Tolstói, acontece com a história
o que se dá com todas as outras ciências: lá como cá, certas
forças se manifestam sob a forma de leis. A força da
humanidade é a liberdade; as da natureza, a força de
gravitação, a inércia, a eletricidade ou a vitalidade. Mas quê
sabemos, de exato, sobre todas essas forças? Exatamente tão
pouco quanto sabemos da essência da liberdade. Sabemos,
em contrapartida, uma coisa: se houvesse um só corpo que
pudesse se mover a despeito das leis mecânicas, toda a
ciência da natureza se tornaria, no mesmo instante, vã. Tal é
também o caso da liberdade: ela encontra necessariamente,
em suas fronteiras, a necessidade.
Censurou-se em Tolstói o afundar no fatalismo.
Poder-se-ia dizer, ao contrário, que ele condece demasiada
importância às massas e a cada um em particular, e que isto
o leva ao “infinitesimal” da liberdade – segundo suas
próprias palavras –, obrigando-o, no fim das contas, a
sacrificar a personalidade humana. Não se poderá fazer
verdadeiramente história, diz ele, enquanto se buscar a causa
dos acontecimentos na “livre” vontade dos grandes homens,
pois assim se deve, obrigatoriamente, chegar à liberdade
infinitesimal de cada indivíduo, que permanece todavia
inacessível.
Mas com a história dá-se o mesmo que com a
ciência: sem conhecer a essência da gravitação pode-se
compreender as suas leis, e sem saber qual a necessidade
histórica última, reconhecemos suas leis, integrando nela os
elementos infinitesimais, eles também desconhecidos. “A
marcha dos acontecimentos no mundo depende da
coincidência de todas as vontades”, eis o comentário do
romancista ante o inexplicável na história, que culminava, na
época, com a batalha de Borodino.
Refletindo bem, Tolstói exprime essa verdade
admirável, incessantemente confirmada depois pela ciência: a
relação de duas séries de desconhecidos pode ser algo de
conhecido. Não sabemos o que é a liberdade, nem o que é a
necessidade, mas conhecemos no entanto sua relação. O
individual dá a si mesmo determinações diversas, que não
podemos conhecer na sua totalidade e, menos ainda, prever;
o geral coloca, ele também, sua infinidade de determinações
possíveis e, desta vez, organizadas; igualmente
desconhecidas. Mas o ser – o ser histórico, no caso – nasce,
no entanto, dessa relação entre determinações que, fora da
sua conversão a um sentido geral, não são senão nada e esse
mesmo sentido geral, do qual jamais saberemos se é outra
coisa senão nada. Tal como no cálculo infinitesimal, dois
nadas engendram algo de determinado.
Pode-se, então, encontrar o individual verdadeiro?
Tolstói quis nos dissuadir disso – ao menos em Guerra e Paz
–, e sua grandeza é precisamente a de ter tentado o
impossível: completar sua visão artística a despeito da
precariedade do ser histórico que ele havia posto em jogo.
Na verdade, para além dos destinos individuais, aos
quais Tolstói, enquanto artista, devia não obstante dar um
contorno, para além mesmo do sucesso, desta vez
consentido, de um personagem, Pedro Bezukhov, a obra vive
da extraordinária enfatização de uma outra realidade
individual: a época. Esta, nenhuma das leis da história na
escala humana pode esmagar, nem reduzir ao papel de
elemento infinitesimal. Em contrapartida, o fracasso, que
Tolstói encontra na pintura daquele que deveria ter sido –
malgrado sua aparição episódica – o personagem-chave do
romance, o camponês Platão Karataev, é, este sim,
profundamente revelador da atodecia do escritor. O autor não
podia pintá-lo de maneira viva, mas somente como um
estereótipo – o “camponês russo” – que ele esmaga sob o
peso das vãs declamações generalizantes. E é ainda a recusa
do individual que acaba sendo denunciada por essa outra
obra-chave que deveria ter sido a própria vida de Tolstói, com
seu profetismo, e que terminou por desencaminhá-lo, tanto
no mundo histórico quanto no mundo íntimo, até o
paroxismo da sua “fuga” de casa, isto é, da mais elementar
ordem humana. Se a atodecia não fosse, precisamente, a
doença típica dos profetas de toda sorte, teríamos podido
dizer, dele, que fôra, como Fausto, “der Unbehauste”3.

3
Em alemão no original: “o sem morada”. [N. E.]
3. GODOT E A RECUSA DAS DETERMINAÇÕES

Após a recusa do geral e do individual, chega a vez


das determinações, com a ahorecia, doença evidente do nosso
mundo “decadente” (pensamos, por exemplo, na ahorecia dos
hippies), embora seja constitutiva do homem e em
conseqüência, de certo modo, eterna.
Não é de maneira alguma absurdo – ao menos no
que diz respeito às conseqüências práticas do gesto – negar,
com Dom Juan, a divindade, as leis ou a existência de um
sentido geral. Não o é, igualmente, dizer com Tolstói que o
indivíduo, como tal, não existe na história, que ele está
sempre imerso em algo de mais vasto, que ele é, talvez,
evanescente. Não será, em contrapartida, absurdo sustentar
que as manifestações do indivíduo, suas mensagens, em
particular, quando se trata do homem, e em geral todas as
determinações das situações e dos seres não são nada, não
significam nada, ou, no máximo, são intercambiáveis? “Nada
a fazer” são as primeiras palavras da peça de Samuel Beckett,
Esperando Godot.

AS SEIS DOENÇAS
II. CATOLITE

Chamei então catolite – de katholou, que significa “em geral”, mas que mesmo em grego se
usa como substantivo – às anomalias produzidas pela carência do geral, tanto nas coisas
como nos homens. Na verdade, a nada faltam sentidos gerais e, assim como qualquer
realidade do presente, viva ou morta, tem atrás de si alguns bilhões de anos, ela é também
encruzilhada de inumeráveis sentidos gerais. Mas o que pode faltar ou ser incerto é o seu
geral – uma situação que o homem às vezes sente de maneira aguda. É como se lhe fosse
necessário um outro geral, um só, à sua medida individual, a despeito de já ter todos os
outros. E ainda mais: é como se esse geral não se encontrasse num lugar, num depósito de
gerais prontos, do qual se pudesse invocar o geral adequado, mas como se lhe fosse preciso a
cada vez adquirir uma nova face, simultânea às manifestações do individual.
Mediante a investidura do geral, o homem quer ser. Quer ser para os outros, para si, no
absoluto, na história, quer ser no sentido em que são uma estátua, uma fama, uma justeza,
uma verdade, um criador, um destruidor – apenas ser. O tormento do homem é, de maneira
discreta ou exasperada, o do real, que também aspira a ser, pelo menos no sentido elementar
de persistir. Que boa criatura! Ens et Bonum convertuntur, diziam os medievais. E enquanto a
placidez corrente das coisas, em comparação com o ser humano, está ligada ao fato de que
não podem ter por si mesmas um “outro” geral, o sofrimento do homem reside em que ele
pode ter um outro mas na verdade não o obtém. Ele se reposiciona o tempo todo ao longo de
sua vida, assim como as coisas só se reposicionam ao longo da vasta evolução; mas nem
sempre ele é. A este desequilíbrio, em busca de algo de ordem geral, dá-se o nome de catolite.
A maneira de existir em desequilíbrio surge justamente da inconsistência das maneiras de
se manifestar, nas coisas e nos homens. Há no mundo processos em liberdade: todos os
tipos de ondas do espectro eletromagnético correm por todas as partes; fatos da vida e atos
humanos pulsam, sem se finalizar em nada. São manifestações cegas. Não seriam “cegas” por
não lhes percebermos as leis e a consistência? Mas são cegas em si mesmas, assim como
acontecem as coisas no movimento browniano das partículas de matéria de um líqüido.

Um exemplo espantoso deste primeiro modo de existir em precariedade, nascido das


manifestações cegas, é oferecido pela biologia. Dentro dela fez-se distinção, como parece,
entre protenóides e proteínas. As primeiras possuem muitos dos elementos de que se
constituem as segundas, fora que suas letras, do código genético, são casuais. Elas
representam, assim, um modo de existir perfeitamente garantido, mas que não pôde chegar a
uma plenitude das sortes de existir. Só as proteínas, em que há ordem das letras, conseguem
dar vida, conseguem conduzir ao ser da vida. As protenóides têm letras, têm até mesmo
“palavras”, mas que não constituem uma linguagem, isto é, algo de ordem geral.

Protenóides existem por toda a parte. A realidade tem de estar plena de substâncias ou de
processos que possuam os elementos da ordem, mas que não tenham obtido ordem, ou seja,
que tenham permanecido caóticos. Portanto, houve, talvez, muitos modos de o homem se
comunicar e mesmo falar que não formaram uma gramática, não se fixaram num sistema de
regras gerais, e como tais não se constituíram numa língua. Mas não seriam também assim os
homens? Também eles não reeditam, em seu plano, uma aproximação ontológica?

Poder-se-ia dizer que Napoleão foi uma simples protenóide da história: deu manifestações,
ou suscitou todo tipo de manifestações, mas a ordem não estava nelas. A ordem - significado
de natureza geral dos atos, sua justificação histórica - haveria de ser provada pelo Memorial de
Santa Helena. Só que era tarde demais, e a protenóide Napoleão não mais podia tornar-se
uma proteína. No muito, foi aproveitada por outras proteínas, estas verdadeiras, da história.

Mas assim como as protenóides representam também elas um modo de existir da vida, as
manifestações cegas do seio do real são, por sua vez, um simples modo de existir. Elas não
permanecem suspensas no vazio. São mantidas juntas por algo individual, ao qual dão a
expressão, por exemplo, de um destino humano (Napoleão), de uma determinada matéria,
ou de uma determinada situação. Tais realidades individuais se desprenderam da inércia geral
e dão a si mesmas determinações específicas, sem obter, contudo, “o código” do ser. São um
maço de manifestações presas por um pólo, o individual, sem que haja um segundo pólo, o
geral, através do qual se pudesse obter o pleno equilíbrio do ser.

O que a catolite elucidava desde o início era o fato de que, pelo menos no caso do homem,
não é qualquer geral ligado ao individual que conduz ao equilíbrio. “Por que você não se
contenta com o que tem? Você não vê que está em ordem?” dizem os outros para um
homem e sua alma toda poderia dizê-lo ao próprio homem. Ele não está em ordem. O geral
apresenta no homem esta condição especial, de ser específico; de até mesmo parecer ser
individual, próprio, de qualquer modo. É necessário sair da condição individual e confirmá-la
ao mesmo tempo. É necessário encontrar o geral certo. A tensão da catolite nasce daqui, da
necessidade do geral certo. Mas é também daqui que nasce o risco de não saber da falta do
geral, tendo em vista que ele ainda é não-identificado.

Surgida da carência do geral, a catolite é a única doença espiritual em que justamente o geral
pode ser ignorado. Todas as outras vão surgir graças à sua presença ou, como no caso da
acatolia, através de sua recusa consciente. Aqui, no caso da catolite, pode não existir
consciência dele, e então surgem manifestações de um tipo das doenças, enquanto que a
consciência do geral, ou de sua carência, vai produzir, sempre no caso da catolite,
manifestações de outro tipo. Há portanto dois tipos de catolite. Em Salavin e César Birotteau
encontrávamos manifestações da doença que se deviam à consciência do geral, carecendo
dela; em Bonaparte, poder-se-ia dizer, encontramos o caso contrário, em que, a doença
catolite aparece sem a consciência de que falta o significado geral. Com ele podemos,
portanto, iniciar a descrição do primeiro aspecto clínico da catolite.

1) Este homem, em que a própria pessoa era completamente hipertrofiada, não negava os
gerais, como Don Juan. Nem parecia sentir a falta deles, atribuindo-os todos, misturados, a
si mesmo: sentidos revolucionários, destino histórico da França, a idéia européia, até mesmo
a Igreja. Mas justamente por atribuí-los a si, ou seja, subordinando-os à sua pessoa, ele
provava que não tinha verdadeiramente consciência deles, não demonstrando nenhuma
forma de submissão a algo além deles. Abandonou rapidamente a idéia revolucionária; não
pôde oferecer à França nada além de uma boa administração (incluindo uma vã soberba); e a
idéia européia ele a comprometeu, não importa quantas conseqüências tenha tido, por isso, a
sua aventura histórica. As únicas determinações efetivas que se lhe puderam atribuir foram as
campanhas militares - simples desempenhos. A carência do geral, no seu caso, conduziu à
síndrome da catolite típica de todos os grandes líderes: a necessidade cega de ação. E, de fato, sob
esta forma a catolite é a doença dos tiranos, cujas manifestações, na falta dos sentidos, se
exacerbam. Atormentado por ações, o doente de catolite pode chegar, então, até mesmo a
chacoalhar a história com os seus calafrios. Sobre aqueles tomados por tais tremores, pôde-se
dizer o seguinte: “pitié pour les forts”.

Mas o exemplo das maiores mutilações do espírito, como Napoleão, arrisca desfigurar,
finalmente, as coisas. Privado da consciência do geral, pode sofrer de catolite também o
homem comum, cujo caso anônimo revela a primeira forma da doença quiçá melhor que a
exasperação dos grandes. A ignorância do geral é mesmo a lei, no caso desse homem e,
quando jovem, o fato de que lhe falta geral e de que lhe falta mesmo a consciência dessa falta
assume formas tão encantadoras que a gente se pergunta, num primeiro momento, se ainda
se pode falar nesse caso de uma doença espiritual. Desse modo, o homem jovem começa por
se abrir naturalmente a fatos e determinações, sem nada para além deles. Assim como na
criança existe a simples “sede de nome”, ou seja, a necessidade de fixar as coisas
denominando-as; assim como mais tarde surge e se desenvolve até à gratuidade a
necessidade de entrar em contacto direto com as coisas, apalpando-as a fim de ver como são
feitas e de poder manejá-las, da mesma maneira surge, como uma primeira idade do homem
- de fato como sua primeira precariedade -, a idade em que o ser individual se atribui
determinações e se satisfaz na riqueza delas, independente de qualquer temor ou rumor de
geral.

A criança invocada por Goethe no poema Prometheus não sabe de Deus, ou seja, de nada de
ordem geral, mas está contente com a vida ferindo a chicotadas os cardos do campo.
Goethe, da mesma maneira, se atribui, nos primeiros anos da juventude, as determinações
mais livres, dos espetáculos teatrais que cria sozinho e as estórias que conta aos outros
inventando-as no mesmo momento, até ao primeiro encontro com aquilo que finalmente
mais tarde lhe parecerá “generalidade”, sob o nome de “eterno feminino”, o encontro com
Annette de Leipzig. E Agostinho - também ele exemplar de homem representativo, nos anos
da juventude - prolonga até tarde, até ao confronto com o maniqueísmo, como uma primeira
entrada na ordem que se lhe oferece, os anos em que o único modo de vida é a plenitude ou
a variedade das determinações que a gente se atribui, sem relacionar com outra coisa.

Nos homens que não se aprofundam nunca no humano, a vida permanece nessa idade
primeira, a das determinações e manifestações livres - na caça de que falava Pascal, na
distração em todos os sentidos, mesmo naquela de levar a vida a sério, com a demência dos
seus fatos vazios - de modo que uma vida de homem pode ser um simples desenrolamento
de determinações cujos acontecimentos representem, para eles, consumo de vida. Neles,
com a sua febrilidade, começa a ser nítido um início de adoentamento do espírito. Pois uma
forma branda de catolite se encontra por detrás de qualquer vida desenrolada em perfeita
inocência e aparente saúde. E mesmo a distração, uma grande conquista do homem sobre as
necessidades cegas, pode representar na verdade uma punição sobre ele. O inferno foi
descrito por alguns teólogos como uma festa que começa, continua, prolonga-se, e que não
acaba mais, desvelando, dessa maneira dilatada, o seu vício oculto.

Existe algo bem oculto, por detrás de tudo o que fazemos, nesse nível. Nem podemos saber
de uma falta, no momento dos primeiros entusiasmos, quando se vive debaixo da magia dos
verbos: que flutuemos, que viajemos, que sonhemos, ou que destruamos, que construamos,
que façamos um mundo nosso, que ergamos um mundo para todos, melhor. Um verbo atrás
do outro traz a solicitação, oferecendo tanto espaço de ação que nenhum corretivo pode
mais frear as devoções. O verbo ainda é puro, sem advérbios; ele não tem outros limites a
não ser os que um outro verbo lhe traz, que surge com a mesma rigidez, relacionando-se
somente com a sua ação. Algo poderia, entretanto, despertar inquietude, nesta condição
singular do verbo, mas agora ainda não é momento para outra inquietude que não seja a mais
distante portadora do verbo puro.

Não podemos parar para ver se a ação tem sentido e significado, visto que parece que ela nos
enriquece. “Tudo o que me engrandece é verdadeiro”, dizia Goethe, em sua grande
inocência. Acumulamos fatos assim como juntaríamos haveres, sob a crença oculta de que a
acumulação pode significar por si só existência. Todas as formas de acumulação, terminando
com a de enriquecimento dos conhecimentos, ou hoje a de acumulação de produtos técnicos
desejados ou indesejados, solicitaram do homem, como se tivessem uma verdade sua no
simples fato de que são obtidas, assim como talvez no passado, com os seus mitos, o homem
acreditasse que as coisas existem porque ele fala delas. De certo modo, continuamos
acreditando nisso, exatamente como o homem das culturas que têm por base os mitos. Em
sua criação literária, o homem crê que existe tudo aquilo que é destino individual ou coletivo
desenrolado de maneira segura e artística, num plano de realidade das culturas e do
pensamento. Na sua pintura, acreditava que tudo o que pintava com maestria, até ao mais
humilde rosto humano ou canto de realidade e paisagem, hoje até à estrutura mais abstrata,
obtinha ou possuía carga ontológica. Em sua criação musical, acreditava e acredita que pode
elevar à harmonia qualquer caos sonoro, dando-lhe assim o direito de existir. Existir, onde e
como? Não sabemos bem, nem se esse enriquecimento está na medida adequada ao mundo,
ao homem. Mas “sou rico em fatos e criações, logo existo”, este é o raciocínio de quem
esconde a doença.

Mas seria isso aqui uma forma de adoentamento, ou talvez efetivamente uma forma de saúde
do homem? Num primeiro momento, não é uma nem outra. Se a saúde espiritual do homem
significa a conexão do indivíduo com um geral, nas manifestações descritas acima trata-se
sempre de uma conexão, do individual com um possível. Por que não poderíamos dizer -
pensamos então - que o possível é mesmo a forma de realidade do geral ou que, pelo menos,
o aumenta e enriquece? Em todo caso há algo de inocente no possível (seria a inocência do
devir), no primeiro momento em que ele suscita vida, e o senso geral forçosamente ainda
não precisa surgir. Aqui está em jogo o direito à criação de que o homem se encarregou, ou
seja, o direito “de enriquecer a natureza no seio da natureza”, direito que, segundo Schiller,
pertence só ao gênio. Qualquer criação inocente parece ter nela algo de puro.

Numa primeira tentativa de criação, ainda próxima do estado de natureza, atribuem-se por
exemplo determinações novas a uma certa realidade individual. Um tronco de árvore ou um
bloco de pedra podem se tornar uma mesa com cadeiras, como uma “Mesa do Silêncio” ,
assim como uma pedra polida pela água pode ser polida ainda mais, até formar um corpo
humano, ou assim como se pode imaginar um destino individual, na criação literária,
surpreendido por todo o gênero de situações e acontecimentos da vida, como os de Ulisses.
Num certo nível, aparentemente mais alto, mas onde a natureza e a cultura se encontram
igualmente bem como nos primeiros exemplos, Balzac deu em seus romances - até o
momento em que se tornou consciente do geral sob o qual se encontravam todos eles: A
Comédia Humana - um exemplo extraordinário da conexão do individual com o possível,
exprimindo não só a riqueza da sociedade ou da selva social de seu tempo, mas efetivamente
enriquecendo a natureza no seio da natureza, ou seja, as listas do estado civil, como se disse.
E, definitivamente, se Balzac não houvesse chegado à idéia (ao geral) da Comédia Humana,
teria isso então significado que os seus romances haviam sido uma simples acumulação de


  N. do T.: Escultura que compõe, juntamente com o “Portão do Beijo” e a “Coluna sem Fim”, o
complexo estatuário da cidade de Târgu Jiu, executado por Constantin Brancusi (1876-1957), escultor romeno
estabelecido em Paris, considerado um dos maiores escultores modernos.
sucessos artísticos, neles escondendo um adoentamento do espírito, uma espécie de câncer
da criatividade?

Pode ser que nas manifestações artísticas seja uma inverdade falar tão rápida e sumariamente
sobre o adoentamento, no caso em que elas não ocupem lugar sob o signo de um sentido de
ordem geral. Na realidade, um primeiro senso geral deve existir nessas manifestações, de
momento em que os outros gostam delas; elas exprimem assim o pensamento e o ideal deles,
erguendo-se aos sensos de uma comunidade inteira. A obra de arte se justifica por si mesma,
assim como os romances de Balzac se justificavam por si mesmos, independentemente de
seu significado ulterior; as obras também podem acumular o quanto for - até que uma
insatisfação de sucesso, uma desorientação na maestria obtida, assim como um certo cansaço
do artista e do espectador comece a se desvelar. Se não for a falta do geral, talvez seja então a
falta de um outro geral. A pintura flamenga pôde dar por vezes a sensação de falar bem
demais uma mesma coisa; assim como, por outro lado, a música de hoje fala
maravilhosamente bem qualquer coisa, até esse taedium culturae, esse tédio por qualquer coisa.
Picasso por vezes pareceu ser um fenômeno de cansaço, justamente na sua extraordinária
prolificidade, assim como na cultura antiga o número limitado de assuntos, aqueles 110
temas de tragédia sobre que falava Goethe, conduzia ao impasse da criatividade
simultaneamente à proliferação das criações. Uma certa exuberância criadora, junto com um
primado do possível vazio, assim como com outro da maestria vazia (sobre que se falou
sempre em épocas de decadência), seguida hoje pela maestria da execução e da direção,
parece solidária com aquela perda de si em “ação” que traía ao espírito o estágio de
adoentamento da catolite. Existe, assim, um indício de sutil miséria no momento de aparente
glória de qualquer cultura artística plena.

Mas no momento em que não se pode falar de onde ou quando a arte trai uma forma de
adoentamento do espírito - assim como não se pode dizer hoje de onde e de quando a
técnica começou a ser uma proliferação doentia -, por outro lado, para a vida moral do
indivíduo, assim como para a vida histórica das comunidades, as coisas são mais simples e o
diagnóstico faz-se mais facilmente, pelo menos quando é o caso da catolite: ela surge no
momento em que se sai, legalmente ou não, de debaixo da tirania de uma ordem geral e ainda
não se entrou na ordem “própria”. Duas límpidas ilustrações estão à nossa disposição: o
filho pródigo para a vida moral do indivíduo e a história em si para a vida das comunidades.
Talvez o filho pródigo, de um lado, e a história, de outro, sejam verdadeiros paradigmas da
catolite, em sua forma primeira.

“Faço o que gosto”, diz o filho pródigo, e parte para o mundo, saindo de debaixo do senso
geral da família e da sociedade para obter os sensos que deseja e que ignora como sendo
sensos gerais; pois justamente isto o exaspera, a tirania da generalidade. Agora libertou-se. Se
gosta do encanto da natureza, vai se aprofundar na natureza; se quer conhecer países, vai
rodar o mundo; quando quiser a ordem ou a desordem do amor, vai procurar o amor. Vai se
perder, assim, sem perceber, de um geral para outro, demonstrando explícita ou
implicitamente que a sua liberdade é, de fato, a de procurar pelo próprio geral. O filho
pródigo e, em geral, o homem de aventura não é, entretanto, consciente nem desse, nem de
nenhum outro geral, acreditando que a sua liberdade significa aventura “pura”. Mas o geral
não precisa a todo preço ser invocado a fim de ser ativo, na desordem aparente da aventura,
com sua presença ou mesmo com sua ausência. Qualquer andar e qualquer perder-se
representa um caminho e possui uma transcrição segura no mapa do coração humano, assim
como toda curva traçada casualmente num papel corresponde nas matemáticas a uma
equação. Se o agente finalmente não se der conta disso, vai terminar por ferir-se na ordem
mais baixa, a da necessidade cega, assim como as manifestações livres de Don Juan
terminavam, em sua exasperação, na necessidade mais comum, a morte.

O filho pródigo, o homem “faço o que gosto”, não obtém mais que um momento do rosto
de Don Juan. Ele tem à sua frente gerais muito mais variados que o eros, que não recusa mas
nem transforma, como o outro, desafiando a sociedade. A sua arma é outra que não a
contestação: é a infidelidade. Mais profunda que a infidelidade daquele, a qual não existe
senão diante das mulheres - portanto dentro de um só geral -, a infidelidade do filho significa
liberação diante de quaisquer gerais existentes.

Resta-lhe dar-se um, mas ele se acostumou demais a fugir de tudo para chegar a pensar em
tal coisa. A sua doença é a falta, da qual não é nem mesmo consciente, do geral, catolite de
primeiro tipo. Se houvesse sabido de um geral através do qual pudesse se realizar, poderia ter
permanecido em casa, ou teria partido em busca de si mesmo; e mesmo se não o houvesse
encontrado, teria pelo menos sabido por que acabou tomando conta de porcos. Mas ele não
sabe, em matéria de geral, senão da casa, que abandonou e, por isso, no momento em que
precisa da proteção de alguém, ele volta para os seus. Teria sido possível acontecer de viver
em palácios, ao invés de tomar conta de porcos; mas de qualquer modo ele teria voltado, se
tivesse sido honesto consigo mesmo. Porque ele está doente, em plena juventude e energia.
Levou consigo a doença por todas as partes do mundo, e agora volta para continuar
sofrendo, mas pelo menos debaixo do mimo dos pais. Entretanto, o pai (a generalidade da
família) não poderá dar nem a ele, nem ao seu irmão, que sofre de outra doença, mais do que
mimos.

São comunidades históricas que não têm, infelizmente, essa última carícia e esse refúgio num
“em casa”. Quando o seu destino ou aventura histórica as conduziu à situação de tomar
conta dos porcos dos outros, muitas delas se apagam efetivamente como guardiões de
porcos; ou se, sob circunstâncias favoráveis e com a própria rebelião, algumas saem da
escravidão, outras acabam por se perder na história, como o filho pródigo pelo mundo.
Na verdade, a maioria das comunidades, assim como a maioria dos homens, atribuem-se -
sem ter em vista, muito freqüentemente, um senso geral - determinações de todo tipo, cuja
lenta acumulação pretende um dia tornar-se “história”. Mas o que é história, sob tal
perspectiva? E como ela pode ser exibida? É estória, nada mais que isso - não é história.
Goethe não aceitava a história como disciplina distinta da cultura humana e nem
compreendia a história real como elevação a algo com o sentido do devir humano. Para ele, a
história real era o inteiro devir coletivo, sem restar nada, de tal maneira que a única história
escrita poderia ter sido a transcrição e a “biografia” dos eventos. E apesar de não poderem
fazer justamente isso, muitos historiadores, dentre os quais os que não vêem o geral e a idéia
na história real, permanecem realmente na simples biografia dos eventos. Perdemo-nos em
crônicas e documentos, ou na história das famílias principescas da Renascença, assim como
se perderam elas mesmas nas areias da história. Não têm sentido as coisas? Não se vertebram
elas através de nada geral?

O exemplo mais espantoso na história, de incapacidade de sair da precariedade das


manifestações cegas e de obter um senso geral (até mesmo um “estado”), é oferecido por um
povo como os Celtas, que, alguns séculos antes de nossa era e até hoje, no espaço que haverá
de se ter tornado o romeno, e depois na França, Espanha, Inglaterra, estiveram
continuamente - como já se disse - minando tudo o que era estado constituído, mas sem
terem podido eles mesmos chegar à idéia e à realidade de ordem mais geral de estado. A
história é plena de grandes anonimatos, graças à não-elevação aos sensos gerais, mas um
insucesso tão persistente provavelmente não possui equivalente, pelo menos no espaço
europeu. Se se pode falar de catolite nos povos, ou seja, de sofrimento provocado pela falta
do geral e de sua consciência, nem um dos povos conhecidos padeceu tanto quanto os
Celtas.

Mas, de uma maneira ou de outra, a catolite de primeiro tipo (sem a consciência do geral)
persegue todos os povos, pois até aqueles que se alçaram à idéia geral de estado, imbuindo-se
mesmo, depois, de um senso geral como “missão histórica”, sofrem de certo modo de sua
falta e navegam apenas debaixo de seu pavilhão e veleidade. São como “caravelas bêbadas”
da história. Mas quando algumas delas têm a felicidade de alcançar um porto, as outras, ainda
tomadas pelos calafrios da catolite, têm o cuidado de espantá-las dali, como se nada pudesse
descansar na ordem do geral, dentre as que flutuam no oceano da história.

Se reunirmos agora num lugar os traços principais que os casos mencionados de catolite
trouxeram à luz, vemos que todos eles são como uma réplica do espírito diante da falta,
sentida de maneira indefinida, do geral, que pode modelar os destinos e as tentativas do
indivíduo ou da comunidade. A réplica do espírito tem, no início, algo de positivo nela. Traz
consigo, nos anos da inocência, a sedução do verbo puro, livre com suas aberturas e de
qualquer trajeto. Com a sua reação como se diante de um vazio (o vazio da vida), o espírito
desperta a riqueza do possível, mas sem resolvê-lo num real, até mesmo quando o leva à
realização, realizando-o como uma reação em cadeia, possível após possível. Entrado dessa
maneira em exuberância, o espírito poderia perder logo, se não olhasse para trás, as
acumulações da experiência vivida e, às vezes, da criação, em casos privilegiados. Mas as
acumulações são um simples acúmulo, assim como era apenas um acúmulo de vitórias vazias
a série de guerras de Napoleão; e o homem, indomesticado de um senso mais largo de seus
fatos, vê-se obrigado a suscitar fatos novos, deixando-se narcotizar pela ação. Assim como a
proliferação excessiva de células num organismo trai a carência de controle genético, a
pluralidade para ela mesma é, no espírito, sempre prova de carência do Uno. As
determinações, não submetidas a um geral, não podem tornar-se senão pletóricas, de tal modo
que, em plena aparente saúde, a abundância pode revelar justamente as vicissitudes que o
espírito encontra.

Por que vocês se agitam tanto?, dizia um indiano aos europeus, e todos o podem dizer, de
sua perspectiva. O primado do verbo, da ação, do possível, das acumulações, da proliferação
acaba por ser a síndrome de uma perda e prodigalidade de si. O filho é melhor denominado
“pródigo” que “peregrino”; porque ele se prodigaliza o ser ao invés de juntá-lo sob um
senso geral, como o prodigalizam os povos na história. É significativo que a ciência da
história tenha nascido no continente europeu, onde mais incide a catolite. Os povos que se
encontram sob o signo do geral - como alguns dos asiáticos - não têm necessidade de
história. Eles sofrem, porém, de outras doenças do espírito.

2) Uma primeira forma de catolite, aquela em que não só falta o geral mas falta também a
consciência dele, foi por nós assim examinada. A segunda forma vai possuir manifestações
diferentes, apesar de solidárias, ao limite, com as primeiras. Por estarmos agora falando da
doença espiritual daquele que tem consciência de que lhe falta o geral adequado, a atmosfera
será mais refinada, mas também a morbidez será mais acusada. Nesta versão, a catolite é uma
doença do homem erguido ao nível da cultura e, em todo caso, daquele que busca a lucidez.

De modo especial, o homem de ciência, no momento em que sai da segurança da


especialidade e sente a necessidade de filosofar, arrisca-se a ser tomado por essa segunda
forma de doença espiritual que estamos analisando. Na verdade, ele adoece espiritualmente
de fato - como aconteceu em nossos dias, no caso do biólogo francês Monod - sob o
espetáculo de um mundo em que deveriam, sobretudo para ele como homem de ciência,
aparecer leis e sensos gerais, recusando-se porém a aparecer a não ser sob a forma de
necessidades evidentes. O homem de ciência tem, assim, a consciência do geral, mas não o
podendo identificar em lugar algum, proclama categoricamente, apesar de ele mesmo vacilar
dentro de si, que o mundo não é senão um encadeamento cego, visto da perspectiva de sua
ciência. Uma semelhante visão é freqüente na história, de Epicuro e Lucrécio a Jacques
Monod, mas este a pôs em evidência de maneira tão provocatória que bastaria só ele ser
invocado.

Que o mistério da vida se reduza à conversão do acaso em necessidade; que a vida seja um
acidente no universo e que o homem seja um nômade no mundo, uma criatura sem razão e
sem motivo - quantos sábios desabusados e cínicos não o disseram? Se as coisas são
repetidas agora por Monod em Le Hasard et la Nécessité, à luz das grandes descobertas
científicas e em particular do código genético (em cuja elucidação contribuiu o próprio
autor), isso nos interessa menos como visão filosófica, visto que ela é concebida antes, do
que como sintoma de uma doença espiritual que não pára de tentar homens de ciência e os
homens “lúcidos” em especial.

Quanta objeção não se fez e quanta mais objeção não se faria a semelhante visão? Poder-se-
ia dizer, por exemplo, que o acaso que se transforma em necessidade (“hasard capté,
conservé, reproduit… et converti en nécessité”, op. cit., p. 112) pareceria perfeitamente, num
outro momento da ciência, como sendo completamente outra coisa que não um simples
acaso; que, em todo caso, é a forma mais trivial de acaso, no nível de quem brinca com a
sorte, que em modo correspondente tem, como se sabe, uma idéia igualmente trivial da
necessidade, de tal maneira que pode às vezes acabar na superstição da necessidade; e que - se
devemos mesmo falar de acaso e necessidade - é bom dizer, da perspectiva do pensamento
filosófico, que existem também outros tipos, algo mais refinado, tanto de acaso como de
necessidade, assim como vão justamente demonstrar as outras cinco doenças espirituais cuja
descrição virá a seguir. Mas o essencial é que em plena glória da pesquisa científica, como
hoje, pôde-se reativar uma doença, constitucional do homem, no perfeito estilo clássico do
pensamento científico. Perguntemo-nos mesmo se semelhantes doenças espirituais, sendo
constitucionais, não seriam elas as que dão o impulso e depois o timbre de nossas visões
sobre o mundo. De quando em quando, a catolite poderia pôr no mundo sistemas de
conhecimento, em que o geral seria nada mais que necessidade cega e casual, como em
Epicuro e Monod.

Mas, se está em jogo a carência do geral e a consciência dessa carência, então, ainda
melhor que as visões com base de ciência, aquelas com base de reflexão filosófica podem dar
expressão ao desajuste produzido pela catolite. Assim ocorreu em nossos dias, de modo
exemplar, com o existencialismo. Se alguém quiser ver, no nível da cultura, o que exatamente
significa uma doença espiritual (com o seu positivo e sua criatividade), então o
existencialismo lhe está à disposição.

Desde o início, o existencialismo, ou os seus precursores, reconheceram, às vezes


pateticamente, o adoentamento do espírito humano, com a tortura deste de saber que tem de
buscar uma ordem geral, que entretanto não encontra. Não importando quanta aparente
segurança existisse em seu engajamento religioso, um Agostinho no final da Antigüidade e
depois um Pascal viveram e pensaram dramaticamente, na falta daquilo que declaravam ter.
Mas enquanto neles a busca ainda era equilibrada por uma clara abertura para o geral, num
Kierkegaard e depois no existencialismo ateu dos nossos dias (sobretudo o francês), onde o
individual, e não o geral, tem primazia, aparecem: a exasperação, as contorções do espírito e
o desespero.

Kierkegaard é, sem dúvida, o grande doente de catolite da história de nossa cultura.


Ele sabe do geral, sente-lhe a presença, no caso de seu pai, como uma blasfêmia, percebe-o e
o reinvoca por conta própria constantemente, mas ao mesmo tempo ele o contorna e se
enterra em seu destino individual. Em termos específicos ele se pergunta, no período bom
de seu amor por Reghina Olsen, se “se realiza ou não o geral”, o qual poderia agora tomar a
forma, aparentemente comum, de casamento e submissão à lei religioso-social. Mas não se
realiza o geral e ele se retrai tanto em sua experiência individual, que chega a declarar que
tudo o que escreveu (tudo o que pensou, portanto, sobre o seu geral) tinha sido escrito para a
glória da amada. Se é verdade, como se disse, que ele tenha proclamado o direito à
subjetividade, contra Hegel e todos os agentes do geral, e que tenha sonhado com homens
como “indivíduos” autênticos, então com a sua pessoa ele conseguiu. Mas se ao mesmo
tempo queria, como já se disse de novo, buscar o geral num indíviduo, ele não o encontrou.
Pôde evitar o panteísmo - porque sem a categoria do individual pode-se cair facilmente no
panteísmo -, mas não pôde evitar o primado do individualismo, e igualmente o da desolação.

Como Kierkegaard, existem pensadores que permanecem bloqueados no individual e


em determinações, mas de uma outra maneira que não a experiência imediata e “normal”,
onde o geral é ignorado; neles isso se explica através da impotência de encontrar acesso a um
geral, cuja consciência entretanto têm. Têm primazia então as determinações de existência
(daqui “existencialismo”) sobre a “essência”, assim como surge declarado sobretudo no
existencialismo francês, com Sartre. O movimento do individual, através de determinações,
para o geral, tão harmonioso em Platão, torna-se aqui torturado, porque o individual se
enterra finalmente em determinações, ao invés de se abrir através delas; o próprio encontro
com o geral, se ocorre, torna-se um “terremoto”, segundo o filósofo dinamarquês, e não um
entrar em ordem. Quando não teve mais a cobertura, fosse até mesmo ilusória, da essência
ou do geral divino, o existencialismo teve de reconhecer os seus limites, terminando, fosse
no calar-se, como em Heidegger, fosse - o que é inacreditável para uma filosofia - na
confissão de que deriva de outra filosofia, como fez Sartre com o marxismo. Permanecendo
sozinho, o existencialismo conduz o ser humano à consciência do exílio, como na visão com
base na ciência, ou à exasperação, terremoto e angústia.
Na verdade, o que nos parece comandar o existencialismo, assim como a “lucidez”
dos modernos, é uma compreensão equivocada da inexistência e, geralmente, um pavor
precipitado diante do “nada”.

Nele mesmo, o nada não é perturbador, numa certa área da realidade, e nem deveria
passar o sentimento da inexistência: um nada, ou seja, um lugar vazio, no plano da química,
da biologia ou do espírito, coexiste perfeitamente com o pleno, como se viu na tabela dos
elementos químicos de Mendeleiev, ou quem sabe em que tabelas da realidade; por outro
lado, os tipos de nada obtidos da perspectiva da consciência não são mais do que calmas
inteirações lógicas ou epistemológicas do real positivo através de um negativo, como no caso
das quatro formas de nada de Kant (nihil privativum, ens rationis, ens imaginarium e nihil
negativum). Não se pode falar de “inexistência” química, ou física, nem inexistência lógica. Só
as formas de nada do interior do ser desequilibram o real. Se às vezes elas trazem a direção da
realização necessária, com o que lhes falta, outras vezes elas dão o senso de bloqueio a uma
coisa. E este vazio de ser, que pode ser fértil, mas que pode às vezes despertar, com os seus
bloqueios, o sentimento da inexistência, tem como objetivo termos do ser: o geral, as
determinações e o individual. O existencialismo não sabia, talvez, que se encontrava diante
de uma determinada inexistência e mais nada que isso.

Dessa maneira, no lugar que deveria ocupar, na economia do ser, o geral pode não
ser “nada”. Vivemos a vida tranqüilamente com as suas acumulações, na qual podemos
tentar ver seja a nossa liberdade e as restrições do mundo, seja outras vezes a nossa
necessidade interior e a contingência do mundo; de qualquer modo, vivemos uma vida plena
de determinações variadas. Assistimos depois ao espetáculo da realidade, onde as coisas e os
seres, presas pelas situações do individual, se manifestam também eles de todos os modos,
preenchendo o palco do mundo com a sua exuberância. Poder-se-ia dizer que não se pode
tratar de vazio, nos momentos em que as coisas ou o homem produzem tanta riqueza de
manifestações. E, na verdade, vazio não existe, mas pode existir inexistência (ou seja,
sentimento do vazio) se falta a boa conversão para um senso geral que dê consistência à
riqueza daquela. A inexistência é uma irrealidade mais sutil que o vazio; no meio de uma
plenitude aparente, ela pode nos fazer dizer: “aqui não há nada, de fato”. É o que nós
também às vezes dizemos, com a sabedoria dos anos tardios.

Essa inexistência de destramação (porque existem outros tipos de inexistência) é


também a mais freqüente, sendo percebida por qualquer um sob a existência tão comum do
“que passa” ou do “cerceamento” da vida e das coisas, mesmo se não é límpido para
qualquer um que justamente a falta do geral é o que faz com que tudo se destrame. Porém a
consciência da falta do geral dá, naturalmente, um sentimento mais profundo da inexistência:
sabemos bem que aqui deve haver algo - e não há nada. O desabamento do individual e das
determinações acumuladas são, pois, pouco demais e algo comum demais diante da carência
de geral. “Deus morreu”, exclama Nietzsche, inflamado também ele de catolite. Como
substituir, conforme o seu pensamento, através da simples “vontade de poder” do homem,
ou com o “eterno retorno” daqueles que tornam, a presença do geral? Não se pode nada
mais que enfrentar o geral, e a trágica colisão em que se entra dessa maneira (Dionísio contra
Cristo, do delírio de Nietzsche nas vésperas da loucura) será a experiência extrema da catolite.

É uma das formas do trágico (das seis formas do trágico) esta em que culmina a
doença catolite: o trágico da colisão entre duas ordens gerais. Porque tendo a falta de geral,
mas consciente da gravidade de semelhante falta, o homem pode atribuir ele a si mesmo
semelhantes gerais e confrontar aqueles que não soube reconhecer. Antígona invoca as “leis
não-escritas” para afrontar as da cidadela; El Cid veste a lei da honra para afrontar a própria
lei; assim como Nietzsche se declara deus, para afrontar o divino. A forma clássica do trágico
é assim apenas o final do caminho da catolite: a sua providência extrema, a inimizade dos
gerais em sujeito consciente.

Enquanto a catolite, no sujeito carente de consciência do geral, tem como


manifestações, em sua forma primeira: a perda em ato, o excesso de ações, a exuberância do
possível, a obsessão das acumulações, a pluralidade cega, a proliferação, agora sob a
consciência do geral, ou da falta dele, em sua forma segunda surgem experiências espirituais
em que dão o tom: o evento passado em necessidade cega, o sentimento de perda de si e do
exílio, a angústia, a exasperação e a colisão trágica entre sujeito, doentiamente adequado ao
nível do geral, e o geral ele-mesmo. O mundo deveria ter um sentido, mas para semelhante
assunto não o tem. O homem tenta dar ele um sentido, se esforça e luta por ele, mas não o
pode impor. Está sofrendo. - Mas a sua doença foi muitas vezes benfazeja para o mundo.
III. TODETITE

É a doença causada pela carência do individual, uma carência que chega efetivamente até a
falta “desta coisa mesma” (tode ti, em grego arcaico), através da qual se realizam tanto o senso
geral como as suas determinações. Enquanto a catolite era a doença espiritual da imperfeição,
justamente a de não poder obter o geral adequado, a todetite é de certa maneira a doença da
perfeição, ou, no caso do homem, da disposição teórica em que ele põe o seu confiscar-se por
um senso geral, fazendo com que não se ache no individual adequado.

Poder-se-ia imaginar a própria natureza às vezes “sofrendo” desta doença; em todo caso, o
divino sofre dela. A consciência religiosa do homem por vezes sentiu, no pensamento de
perfeição do divino, o sofrimento de o não ver corporificado em nada, buscando-o em
meteoritos caídos do céu ou nas realidades que lhe pareciam milagrosas sobre a terra. Se
criou também uma situação histórica especial entre as religiões, o cristianismo o deve
também ao fato de que teve o poder de sustentar até o fim a corporificação individual do
divino. Poder-se-ia dizer que a corporificação não representa um dom do divino feito ao
mundo, mas ele mesmo: o ser divino saía desta maneira do nada e da falta de identidade da
perfeição.

Antes, então, de atingir a doença do homem instalado no geral, pode-se falar da doença das
realidades gerais elas mesmas. O tempo absoluto, imaginado com bom-senso muito antes de
haver sido concebido por Newton, o mesmo com o espaço absoluto, ou com o ser de
Parmênides, eram efetivamente doentes de perfeição. Nada individual não os vinha macular,
levando-os a uma “realização” sua, assim como nada individual não resistia diante deles. O
tempo parecia uma vasta ironia metafísica; afirmava-se - nessa concepção - através do
presente, para desmentir-se sozinho; ou punha continuamente no mundo filhos do
momento, a fim de os suprimir, como Cronos. Também o espaço era ao mesmo tempo o
princípio de individualização (hic et nunc), através da determinação local, mas também o de
dissolução de toda localização. Diante dos tempos reais e individualizados de acordo com a
espacialidade em que se encontram, das ciências de hoje (outro é o tempo terrestre, em face
do cósmico), o tempo absoluto parecia, com a sua necessidade, “tudo o que é mais poderoso
e tudo o que é mais fraco”, como dizia Hegel. Diante do espaço-campo das ciências novas, o
conceito de espaço absoluto denominava o próprio vácuo.

Os princípios que lhes correspondiam em lógica eram igualmente doentios: diante da


identidade real da coisa modificadora (ou do “eu”, que é o mesmo, apesar de o homem se
modificar todo o tempo), o princípio da identidade expresso como A = A representa uma
verdadeira alucinação lógica; assim como, diante das contradições efetivas do seio do real, o
velho princípio da contradição reclamava, para as coisas, algo tão perfeito que, graças ao seu
regime, nem mesmo às matemáticas faltavam graves contradições.

Se “a doença” das entidades gerais e de suas reflexões lógicas pode a alguém parecer uma
simples metáfora, o homem de qualquer modo efetivamente sofreu por sua causa e graças a
sua consciência. Sua perfeição, com a falta de qualquer acesso ao individual - para o qual as
entidades deveriam de qualquer modo ser enviadas, porque elas são aquelas que o enquadram
e sustentam -, deu ao homem a forma mais nobre de todetite, mas também a mais difícil de
suportar, não só como homem religioso mas também como ser pensante e conhecedor; pois
a todetite está associada a processos superiores, em primeiro lugar os do conhecimento.
Poder-se-ia haver dito que o mundo moderno, com a degradação que levou às instâncias
supremas (divino, ser puro, tempo, espaço absoluto) e com a relativização através do
conhecimento de qualquer entidade geral, escapou da obsessão da perfeição e, assim, de uma
das formas de todetite. Mas ocorreu, de novo, algo totalmente inesperado: se através do
conhecimento exato desfez-se a névoa de todo absoluto de fora, permaneceu no homem
conhecedor o absoluto da exatidão. Todas as perfeições se dissolveram pelo conhecimento,
mas ficou a exigência da perfeição do conhecimento.

A necessidade da exatidão absoluta encontrou uma expressão extraordinária na lógica


simbólica, cujo ideal de rigor é de tal natureza que ela detecta graves imperfeições em tudo o
que foi pensamento organizado e em tudo o que é afirmação do logos, em primeiro lugar
nas línguas naturais, desvelando mesmo contradições e paradoxos, como dizia, até nas
matemáticas. Uma tal exigência de rigor absoluto não pode deixar de reativar a doença
espiritual da todetite, sob a forma do sofrimento de não poder encontrar realidades
individuais à sua medida e de as dever inventar ou propor com modelos ideais.

Aliada à máquina, ao maquinismo e até mesmo à automatização, a cuja medida e serviço se


encontra, a lógica simbólica exprime em estado puro o primado do geral sobre tudo o que
pode ser individual e, assim, o primado do rigor, da exatidão, da perfeição mecanicista-
racional, graças ao qual o ser do homem, todo natural, arrisca atingir um desajuste através de
um excesso de regulagem. Aquilo que poderia despertar a doença espiritual no homem
antigo, mais exatamente o sentimento e a convicção de que existe um mundo incorruptível,
diante do qual o mundo dele não era senão um mundo do individual e do corruptível; aquilo
que contudo não fez os gregos antigos adoecer, graças quem sabe a que tipo de bom instinto
de sua saúde, agora arrisca adoecer a nós, no momento de todas as descrenças e
desmitificações. Mas se a lógica e a máquina exprimem em estado puro a forma de
incorruptível do homem moderno, a sua exigência de rigor e de reação segura em cadeia se
manifesta, concretamente, em toda a cultura científica, não importa o quão deficitária seja ela
ainda sob o relatório da exatidão absoluta em muitos setores, conduzindo desta maneira não
só a uma tensão dramática do conhecimento, mas - como ainda vou tratar - a uma outra
forma de trágico que não aquela em que a catolite poderia culminar: ao trágico do
conhecimento suspenso, à detenção de um geral perfeito, destacado de individual.

Nas ciências, de fato, o homem é ou tem de ser uma ausência, assim como tudo o que é
individual. Qualquer ciência é a redução de uma diversidade a uma unidade, portanto, de
algumas determinações a um geral. O problema principal foi fazer com que a variedade de
determinações da natureza - enriquecida pelo homem de ciência com determinações novas,
da experimentação - encontrasse aquelas leis que levassem a todas as partes a ordem e a
verdade do geral. A indiferença com relação ao individual não leva em consideração só
aquele que conhece também o seu mundo (o sujeito não deve contar), mas leva também em
consideração o objeto individual do conhecimento. Pois, na medida em que conhece, a
consciência “come” o seu objeto, assim como já se disse; ela o desfaz como tal, reduzindo-o
à lei, e ainda muito mais, reduzindo-o a uma simples expressão de ordem matemática.

Que tudo o que seja natureza vacile desta maneira? Mas fiat scientia, pereat mundus. O
individual como tal, até mesmo o Grande indivíduo que é este nosso astro, são colocados em
parêntesis diante da verdade de conhecimento. Se se dissesse que não passasse aqui de uma
aparência de trágico, para o destino de conhecimento do homem - na medida em que ele
quer conhecer algo, e permanece diante de si somente com um espectro, ou com a “épura”
matemática de algo -, é seguramente um verdadeiro senso trágico nas aplicações técnicas
desse conhecimento, que, no momento em que acaba por tentar reaver uma realidade
individual, ameaça aquelas efetivas ou põe no seu lugar outras, simplesmente explosivas.

Assim como mais tarde, para o impasse trágico da cultura de alta doença espiritual,
escolheremos a arte da música, não se pode escolher agora, para o impasse da cultura
científica, nem a física, sobre cujos terríveis riscos hoje qualquer um sabe, nem a química
com a sua poluição, nem a biologia com o seu intervencionismo deformador possível, mas
simplesmente a medicina, que chegou à situação de não poder deixar de salvar a progenitura
da humanidade, porém sabendo perfeitamente que, agindo assim, apressa a explosão
demográfica, ou seja, ameaça ela mesma a vida humana, assim como, prolongando
infindavelmente e conduzindo à hebetude a velhice do homem, ameaça mais uma vez a
própria vida com a sua própria degradação.


De novo surge, com esse trágico cuja consciência atinge o homem que sofre de todetite, uma
de suas formas culminantes, assim como encontrávamos no caso da catolite. Ilustremos então
a todetite nas situações mais comuns, seguindo-a em suas formas iniciais, e mostremos,
como no caso das outras doenças constitucionais do homem, o quão luminosas podem ser
as suas manifestações no homem jovem, ou que virtudes animadoras e criadoras ela desperta
mais tarde na vida, a fim de reencontrar quase no fim algo do impasse trágico da doença.

Com a perfeição, agora com a exatidão, enfim com a reação segura em cadeia do geral, ela
teve uma entrada solene na vida e na cultura do homem. Mas um geral tal que não encontra
bem o individual - e por isso arrisca extirpar todo individual do seio da realidade - é ativo
também em formas imediatas, não apenas naquelas superiores de conhecimento. A todetite é
tão velha quanto o mundo, assim como as outras doenças. É uma doença típica para a
metade da humanidade, para mulheres que têm como objetivo fixar o geral da espécie num
individual: num amor, numa criança, num lar. Mas da mesma maneira todo jovem passa por
um momento da vida em que sofre de todetite, graças ao seu idealismo, estúpido porém
cheio de belezas e exaltações, sobretudo no caso da magia do ideal, como uma primeira e
vaga elevação ao plano do geral pelo qual se encontra, num dado momento, escravizado.

Sob a forma do ideal, o geral é ativo, no caso do jovem, primeiramente no coração. Parece
que é uma felicidade - antes de se tornar um sofrimento - no indeterminado do sentimento
despertado pela experiência do geral. Sente-se necessidade de fazer, mas não se sabe bem o
quê; endireitar o mundo, sem ver bem como; amar, mas não saber exatamente quem. É tanta
sede, generosidade e amor no coração que parece que se pode viver suspenso neles.
“Amabam, diz Agostinho, sed nondum sciebam quod amabam.” Por seu lado, Goethe ama
Frau von Stein antes de se encontrar com ela, só por causa do contorno que vê do seu rosto.
O estado está acima do conteúdo, no que se refere ao coração. Quando o intelecto é que se
embebe de sensos gerais, ele transforma o homem em ser ativo, desejoso por realizar o geral;
mas quando o coração se enrosca no geral, ele fica um tempo suspenso. Não nós amamos,
mas é algo em nós que ama. Dir-se-ia que seja uma boa plenitude passiva, se não for uma
forma de desequilíbrio espiritual, como se vê imediatamente depois que o ser sai do estado
de suspensão. Ela pode não encontrar nada na medida do ideal do coração, ou pelo
contrário, pode fixar-se em qualquer coisa, assim como Fausto, rejuvenescido pela maga,
enxergava a imagem da bela Helena na primeira moça que encontrasse. Justamente o amor,
que deveria identificar o individual sob a vestimenta de um “tode ti” privilegiado, arrisca, sob
a pressão do geral, atingir uma obnubilação diante do individual.

  O detentor do prêmio Nobel de Biologia, Krick, propôs que, após os 80 anos, o homem não mais
tomasse remédios.
O ideal, porém, como expressão do geral vazio, é ativo não só sobre o coração mas também
sobre o intelecto, num momento do homem e sobretudo numa de suas idades. É a idade
jovem da “consciência teórica”. Tendo quase sempre chegado até aqui, o jovem cai sobre um
geral degradado. Assim acontece mesmo com os grandes espíritos. Goethe encontrava nos
anos de juventude algo da ordem da teosofia, naturalmente sob a influência da senhora von
Klettenburg, mas com uma receptividade que mostra quanta necessidade ele tinha de um
senso geral, qualquer que fosse. Agostinho, que se encontrava na mesma necessidade, deixa-
se encantar pelo maniqueísmo, que lhe vai satisfazer um momento a necessidade do geral e
não o vai deixar disponível para outra experiência senão após a decepção que lhe vai
produzir o encontro tão esperado com Fastus, o apóstolo do maniqueísmo.

O que é característico desta idade e impressionante, tanto no caso de Goethe como também
no de Agostinho, é o fato de que o ser individual se abandona, quase em totalidade, aos
sensos gerais que se lhe revelaram, e se deleita muito mais com a experiência da ordem posta
pelo geral em determinações variadas do que com a afirmação própria ou a aplicação do
geral, também própria, às situações reais. A teosofia para Goethe e o maniqueísmo para
Agostinho representaram, num dado momento, aquela resposta total, de que o homem jovem
tem necessidade mesmo então quando não se pôs a si todas as perguntas e quando nem bem
sabe o que fazer das respostas. Nessa segurança, quase no sono dogmático da segunda idade,
o homem pode ser tomado por todos os fanatismos ideológicos, que lhe parecem ainda mais
convincentes na medida em que ele tenha esquecido de si e do mundo. - Mas o individual,
sob a forma da “realidade” que resiste a ele, como se graças à verdade do próprio ser, que
não se deixa demasiado tempo confiscar pelo ideal, exige os seus direitos. O sentimento da
inadequação se aninha no coração daquele que sofre de todetite, assim como no caso da
catolite era o sentimento de exílio.

E, contudo, não só nessa idade, mas em qualquer momento da vida, o homem é tentado e se
alegra em ver como ele mesmo se ergueu, ou como as coisas se ergueram, no geral, mesmo
se arrisca a não mais saber ancorar, ou ver as coisas ancoradas no individual. As variedades
tentam tornar-se espécies, mostra Darwin. De toda a variedade de situações em que nos
envolvemos e de determinações que nós nos propusemos, quereríamos ver desprendendo-se
uma versão humana que se mantivesse, um tipo de variedade que houvesse se tornado
espécie, ou seja, uma lei válida para outros mais. Se não podemos ver sentido de lei na
própria vida inteira, que não nos é dada como tal, nós o buscamos nos seus fragmentos
terminados. Então constatamos com surpresa como, na nossa vida e na dos outros, fatos
desordenados possuíam na verdade ordem atrás de si, e nos dedicamos com confiança a
alguns mandamentos da sociedade que tivera cuidado de nos colocar em suposição e
modelação antes que consentíssemos sozinhos com as suas regras.
A alegria de ver desta maneira as determinações casuais tomadas na rede da lei social e
histórica pode nos conduzir a qualquer momento a um esquecimento de nós próprios, assim
como de tudo o que é individual, fazendo-nos registrar o formigueiro organizado do mundo
como uma forma de subsistência, além das formigas singulares. Sem que queiramos, um
encantamento nos envolve, não tanto de conhecimento como de existência, vivemos
estados gerais ou nos vemos vividos por eles (por um entusiasmo coletivo, por situações
históricas dominadoras, pelo espírito do tempo, ou pelo espírito objetivo de nossas carreiras,
como também pelas idéias de todos), de tal maneira que o geral, com as determinações que
dele se desprendem, prima agora sobre todo senso individual e recebe uma espécie de
autonomia.

Mas seria ele o nosso geral? É antes uma subsistência fantomática. “Eu não fui eu”, sente
cada um, graças a esse sonho mau. Em definitivo, o que são esses sensos gerais, passageiros a
seu modo, diante da realidade dos indivíduos? Não estamos na condição de formigas a fim
de criar eternamente somente pelo formigueiro e suas leis. Os sensos gerais passam, assim
como passam os domínios humanos, e nós permanecemos; ou mesmo se eles sejam mais
vastos e mais duros que o indivíduo, eles se mostram no final das contas mais fantomáticos
que ele. O homem quer ser e quer ver o mundo que existe. É-lhe um sofrimento constatar
que também ele e as coisas tenham entrado na monotonia do geral, onde toda providência e
afirmação pretensamente individual são captadas pela estatística. A todetite é, pelo contrário, a
doença espiritual com que o homem se confronta no momento em que percebe que foi
tomado pela estatística.

Na realidade, aquele geral que transforma em caso geral toda providência individual não
esmaga as situações e os destinos individuais só porque ele mesmo se encontra nalgum lugar
em carência, não conseguindo obter a plenitude no individual. Mesmo nas situações
objetivas do real, o individual pode às vezes faltar. Processos, instruturas e determinações
podem se desenvolver organizadamente dentro da realidade, sem se ancorar nem eles em
algo individual. Retomando o exemplo biológico, pode-se facilmente imaginar - e os homens
de ciência deram certamente nome a tal tipo de situações - que nas origens, ou ainda hoje,
algo da ordem da vida se obteve, sem se ter obtido também a organização por espécies; ou
que talvez algo da ordem das espécies, se não a própria espécie, se obteve em alguns casos,
sem ter alcançado exemplares individuais. É também essa uma maneira de ser, composta por
determinações que atingiram o geral, mas que não estão à altura de produzir também o
individual. Isso significa que surge também no real uma forma de todetite, no momento em
que as manifestações dele tendem para a direção da individualização, porém fracassando.

Talvez as determinações da matéria se organizam numa medida muito maior no senso do


geral do que no do individual, permanecendo assim em carência, assim como parece ser no
vasto cosmo. Mas certamente tais irrealizações ressurgem ou se refletem no homem, nas
suas teorizações ou nas suas tentativas de criação. As vidas dos homens podem-se organizar
em sensos gerais que não se individualizem em nada (como as naturezas heróicas que não
têm ocasião de realizar atos de heroísmo), assim como, num outro plano, o homem pode
construir, a partir das determinações do real e do pensamento, visões teóricas que tenham
uma única consistência de ordem geral, mas que não se ancorem em nada. Até mesmo no
plano da criação podem existir verdadeiras visões organizadas, que não conduzam a obra
nenhuma. Na Idade Média, uma admirável matriz criadora ofereceram alguns mitos e temas
de ordem geral que podiam conduzir a grandes obras dramáticas; tudo era preparado para se
obterem os assim chamados, em termos literários, “mistérios”, começando com as
determinações mais variadas (as lendas crísticas) e terminando com o seu significado de
ordem geral; mas a substância dos mistérios não encontrou, por um motivo histórico ou por
outro, a realidade individual - o criador e a obra -, apesar de se pretender que no momento
em que “tudo está preparado” devam também aparecer aqueles.

Sob um determinado ponto-de-vista, na criação artística mas também em outro tipo de


criação do homem, vê-se o mais claramente possível a predisposição à todetite. Toda criação
é, inicialmente, a tentativa de conduzir estados anímicos e determinações exteriores a um
sentido; a tentativa de juntá-lo com um senso geral, de tal maneira que os estados e as
determinações possam depois integrar-se, organizadamente, numa realização. A dificuldade
no primeiro momento, para um criador, é a de conceber ou “ver” sensos gerais que possam
somar uma riqueza de determinações (de ver em cada canto da natureza uma “paisagem”,
por exemplo). Foi provavelmente difícil também para a natureza reunir manifestações
diversas de vida numa variedade biológica e depois transformar as variedades, como dizia,
em espécies. Mas não seria agora uma nova dificuldade tornar as espécies indivíduos?

Da mesma maneira foi difícil para o romancista Balzac ver uma Comédia Humana nas
personagens e nos acontecimentos da sociedade francesa do início do século XIX. Mas,
depois de conseguir perceber esse senso geral e assim sentir, com uma esplêndida candura,
que estava a caminho de tornar-se um gênio, como dizia à sua irmã, o mesmo Balzac terá
percebido que a genialidade não consta da intuição do geral vazio, mas antes de sua
implantação nas realidades e situações individuais. Mas e se o individual resistir? Assim
aconteceu ao próprio Balzac. Inflamado pelo senso geral da Comédia Humana, ele sentiu
que devia prestar contas de toda a comunidade francesa e implantar esse senso na realidade
individual do mundo rural de sua época; escreveu então seus romances campestres, que não
saíram bem. Tinha à mão tudo, no que diz respeito ao geral, mas um “tode ti” lhe faltava. Com
o seu sentimento artístico tão seguro, terá sofrido, então, com o insucesso, e terá se
confrontado com uma forma de todetite. E na verdade não seria a todetite, ou seja, o esforço
de obter o individual (a realização adequada), justamente a doença dos artistas?
Os artistas a seu modo são visionários políticos: é-lhes necessária uma realização individual
de seu pensamento, que não conseguem obter quase nunca, por estarem debaixo da maldição
de ter de incorporar idéias no plasma da sociedade humana, o qual é tão inseguro e
intranqüilo, de modo algum pedra, som ou palavra, como no caso dos artistas propriamente
ditos. O sofrimento de artista é por isso ainda mais vivo neles, seja quando utópicos, seja
quando realistas. A utopia do estado platônico, as utopias políticas do Renascimento, as
constituições que Rousseau confecciona para diversos estadinhos, não passam de
preocupações espirituais com que o homem se confronta. Se existe, talvez, um encantamento
gratuito em fazer construções teóricas, quanta miséria espiritual, por outro lado, na
impossibilidade de edificar praticamente. Os utópicos podem permanecer nas formas mais
brandas da todetite, enquanto os visionários realistas entram na demência dos “Possessos”
de Dostoiévski ou no furor político dos reformadores infernizados e desamados que enchem
as páginas da história.

Estados inteiros podem se alçar à generalidade de uma idéia, que não estão à altura de
realizar nem por dentro, nem por fora. Dessa maneira, na falta de uma identidade histórica, o
continente norte-americano se alçou desde o início, através de uma simples Constituição, ao
geral; deu a si mesmo um sentido histórico, uma idéia, que não consegue muito bem, de há
aproximadamente dois séculos, nem realizá-la verdadeiramente na vasta comunidade, nem
passá-la para outras comunidades (“o modo de vida americano”). Por outro lado, no caso de
outras comunidades históricas, como foi a Roma imperial ou como é a França de hoje, o
senso geral, ou seja, a idéia de civilização e de cultura, tem tanto sucesso, tanto por dentro
como por fora, que qualquer um lá se sente em casa, tudo se torna cosmopolita (e não
universal, num sentido humano mais profundo), e o sentido entra assim em dissolução,
através da perda do individual e de todo suporte histórico criador. O império romano se
descompunha, na verdade, pelo cosmopolitismo, também como parece entrar em dissolução
aquilo que se poderia denominar: o império espiritual francês. O geral transformado em
simples generalidade (valores de consumo universal, civilização adequada a qualquer um,
cultura por base do encantamento, não importando o quão rafinada) mina e desagrega o
próprio ser histórico.

Podem-se assim perder em “idéias” também os povos, assim como se perdem indivíduos,
sem mais poder reencontrar o bom caminho de volta ao seu individual. Uma consciência
teórica afirmada demais pode esvaziar comunidades históricas importantes, como pode
esvaziar culturas. A tendência da cultura moderna na direção do positivismo e da exatidão,
assim como a tendência da arte contemporânea na direção de formas de arte abstrata são
solidárias com uma certa maturidade histórica que se atingiu e que, no mundo de hoje,
incorpora essas duas formas contrastantes: lucidez teórica de um estado que ainda não
existe, assim como aconteceu com o norte-americano, e a lucidez refinada de uma nação
historicamente supersaturada. (Que significativo que a Revolução Francesa, próxima de um
final histórico como se mostrava, era solidária com a americana, surgida num início histórico.)
Mas tanto historicamente como artisticamente, a carência é do individual.

A história assim como a arte, a natureza assim como o indivíduo pode assim estar sob a
carência do individual, ocasionando a quem contempla as coisas o espetáculo de uma
inexistência mais sutil do que aquela do destramar, à qual conduziam as vicissitudes do geral
no quadro da catolite. Se não se obtivesse o geral, então a realidade individual se destramava,
perdendo-se no seu passageiro e no seu nada; mas se não se obtém o individual, o geral
permanece livre e produz verdadeiramente uma inexistência de suspensão das coisas. Pode
ser que “a sopa vital” da origem da vida, sobre a qual falam alguns biólogos, tenha flutuado
por muito tempo sobre as águas, sem que os seres individuais nascessem. Isso significa que
se obteve uma substancialidade geral como a vida, assim como talvez se obteve também em
outras zonas cósmicas, sem se ter obtido também as suas realidades substanciais. Desse modo,
o homem pode ver como se lhe organizam admiravelmente, em concepções, os ideais ou,
pelo menos em sonhos, as determinações da vida; pode surpreender por outro lado como as
manifestações caóticas do mundo poderiam confessar-se, no seu profundo, começando com
a natureza geral da história e as suas leis, que lhes dariam fundamento e segurança; mas a
uma e a outra pode faltar a condensação da nuvem em chuva real. Tudo permanece sem
nome, mas a sabedoria tardia vê como a agitação do mundo e o seu tumulto criador
permanece numa inexistência de suspensão.

Se as naturezas teóricas se satisfizessem em contemplar a urdidura contínua das coisas no


geral do qual elas não mais saem, ou se dessem livre curso ao exercício de uma inteligência
que conhecesse somente os possíveis, então certamente se desviariam da todetite (apesar de
que iriam cair numa outra, como veremos com o espírito contemplativo), rejubilando-se com
a infinidade qualitativa das nuances e delimitações do geral, ao invés da infinidade
quantitativa dos indivíduos e estados reais. Assim como o belo, com o qual “não se sacia
mais olhando para ele”, a verdade teórica pode compreender diversas características e
aspectos, sem que a sua acumulação estupefique a visão e a mente. Mas na maioria das vezes
as naturezas teóricas não se satisfazem com o vazio da realidade, pondo em jogo a riqueza de
possíveis do geral, justamente a fim de obter a sua inscrição no real. O individual se encontra
aqui, na todetite, tão somente em carência, ainda não é contestado, assim como vai ser no
caso da atodetia. Todo o refinamento da cultura será necessário para que, saindo da crise da
consciência téorica, o homem passe para uma outra crise, a da consciência da contemplação.
Somente com uma consciência teórica, o homem se adoenta ao ver não só quanta resistência
existe no real, mas também como ele sozinho para si ergue, com a perspectiva do geral sobre
que se assentou, novas formas de acaso e necessidade, diferentes daquelas que via o homem
de ciência, particularmente um Monod, debaixo da doença espiritual da catolite.


  N. do T.: Jacques Monod (1910-1976), geneticista francês. Prêmio Nobel de 1965.
Pois não ocorre no mundo só o acaso que fazia com que algumas determinações livres, por
exemplo certos processos de ordem química, se integrassem à generalidade da vida e
acabassem num código biológico. Pode acontecer também o acaso oposto - deve-se dizê-lo,
assim como ocorre com tantos outros - como um código já constituído, uma espécie, por
exemplo, em que, por ser espécie, as determinações integraram-se num geral, não conseguiria
encontrar a sua natureza individual correspondente. Não seria justamente isso que acontece
na vida? Qualquer um, sem ser biólogo, pode observar o fato de que, graças a certas
mudanças fortuitas (climáticas, geológicas, ecológicas), passam bruscamente a existir novas
espécies de seres, aos quais faltava não o código, ou seja, o geral, mas sim a condição
particular de individualização. Os biólogos talvez devessem dizer - se querem minimamente
filosofar, como Monod e outros - como existiam aquelas espécies sem exemplares
individuais e quão vasta pode ser tal área das realidades gerais que também não têm estatuto
de realidades individuais. Da mesma maneira, os historiadores deveriam identificar, de certo
modo, se não a presença, pelo menos a possibilidade real, num determinado momento
histórico, daquelas naturezas gerais humanas que estão prontas a eclodir no seio da realidade,
no momento de uma revolução ou catástrofe histórica.

Sob essa perspectiva, de um acaso interessado pelo geral, e não o individual, o mundo
inteiro, que surge como uma necessidade e que estudamos como tal, torna-se perfeitamente
contingente. Com alguns graus de calor a mais ou a menos, a natureza sobre a Terra, assim
como a sua história, seria totalmente outra.

Dirão: é velha a história do “o que teria sido se”… Mas não, é o problema do “o que será se?”
É o problema em que acabaram a ciência e a técnica moderna que - já se disse - não mais
têm por eixo exclusivo o “por quê?”, mas põem em vigência o “por que não?” Por que não
esta visão teórica, estes objetos, esta natureza, modificada? E trata-se, definitivamente, da
preocupação toda, até à doença todetite, da consciência teórica - diretamente registrada por
qualquer um no homem político - que também pensa com “o que será se” (não com: o que
teria sido), ou que põe em vigência o “por que não assim” ao invés de se demorar no “por
quê” (ou justamente na prolongação do por quê). Se tudo o que é real é contingente, isso
então significa que não só o acaso se transforma em necessidade, como querem alguns
homens de ciência, mas também a necessidade (o geral, a teoria) pode tornar-se acaso,
respectivamente, lote do real.

Deve-se admitir, de qualquer modo, que, ao contrário das visões comuns do acaso e da
necessidade, há de se conceber uma outra visão e que tanto acaso como necessidade têm
sentido para todos os termos ontológicos, não só para o individual mas também para o geral e
as determinações. Permanecendo agora no acaso do individual que é projetado na
generalidade e no novo, do geral (códigos genéticos, personalidades ideais, ou leis, teorias,
estruturas) que passa para a realidade das existências individuais, significa que entra em ação,
além do acaso que estrutura e modela, um que fixa e “realiza” antes do estruturado. E
correlativamente a este novo tipo de acaso, dever-se-ia pensar também num outro tipo de
necessidade, que não mais se assemelha à necessidade cega do primeiro caso, mas antes a
uma mestre de si mesma.

É a necessidade que a natureza teórica sente. O pendular entre acaso e necessidade faz o
escândalo dessa natureza e da sua doença. Como se pode deixar irrealizado o geral que se viu
em sua perfeição, riqueza e bondade? E se ele depende de necessidade, como realizar-se
somente por acaso?

No nível moral, essa situação intolerável, de ver a lei e os mandamentos realizando-se por
acaso, é a que produz a indignação, no coração do irmão suposto e benfeitor, diante do
retorno do filho pródigo do mundo. Esse último não fez senão “o que gosta”, enquanto o
outro fez “o que deve”. Por dominar os sensos gerais, a lei da família e da sociedade, ele
sentiu o tempo todo, diante do outro, a superioridade de fazer ao mesmo tempo o que deve
e o que gosta, pois encontrava satisfação justamente na realização do dever, ou seja,
subordinando ao geral tudo o que fazia. Se também ele possui um senso para a liberdade, é o
de julgar, no espírito e no horizonte da lei. Com o seu juízo livre, porém não carente de
critérios últimos, ele pôde apreciar em que medida as suas providências e as dos outros estão
adequadas às grandes regras prescritas. O sacrilégio do filho pródigo parece ser mesmo o de
haver tomado a liberdade diante da lei. Nesse sentido, parece ao irmão que o outro nem mais
merece ser condenado; a punição virá sozinha, e a primeira punição que se abateu sobre o
filho pródigo foi a do não-assentamento (como mais tarde com Fausto: “Ich bin der
Unbehauste…”).

Pode ser que, haja vista a seus escrúpulos, nem ele, o irmão, não esteve sempre em perfeita
ordem. Mas as coisas com ele se encontram completamente de outra maneira; se às vezes
pôde dizer sozinho que errou, ele contudo sente, em sua insatisfação declarada, uma
satisfação escondida, de natureza superior, como aquela do artista que acabou acima de suas
obras, ou, num outro plano, como a do demiurgo que saberia de mundos possíveis melhores
do que o criado. Mas como aceitar que uma vida de desordem, como a do filho, pudesse
conduzir, graças a um simples perdão do pai, à ordem? Aquele que, como o irmão, conhece
o geral e a lei, antes mesmo de os ver em materializações individuais, não pode mais admitir
que o acaso e o arbitrário também eles venham pôr ordem nas coisas. Ele não pode outro
senão sofrer com a idéia de que a ordem não pôs completamente de lado o acaso. Entende
perfeitamente por que o filho pródigo não foi punido. Mas que seja mesmo premiado pelo
seu retorno?
As naturezas teóricas de todos os tempos, mas sobretudo as modernas, favorecidas como
são pelo conhecimento comum, depois que se perderam pela natureza e pelos laboratórios
como filhos pródigos da cultura (pois eles não entenderam permanecer na compreensão
religiosa e filosófica de casa, lançando-se no vasto mundo), acabaram de qualquer modo por
aprender algo do espírito moralizador e reformador do limitado irmão que ficara em casa.
Como este, eles não gostam de nada do vasto mundo que freqüentaram por todos os lados.
Os lógicos e os lingüistas não gostam das línguas naturais, os sociólogos não gostam da
história, os ideólogos não gostam da sociedade civil, os geneticistas nem sempre gostam dos
códigos genéticos reais e pensam em modificar os tipos de trigo assim como os de homem,
enquanto pode ser que, finalmente, os cosmonautas nem gostem da terra. A razão se torna,
nisso tudo, “racionalização”, assim como sempre de outra maneira o geral tentou colocar no
mundo realidades adequadas à sua perfeição. Graças aos sensos gerais acreditados pelos
conhecimentos que conseguimos obter, o mundo hoje torna-se um mundo do laboratório,
da retorta, do transplante, ou dos satélites artificiais e da colonização do homem no cosmo,
torna-se um mundo do planificar, direcionar e modelar os destinos humanos.

Então eclode a todetite. Sempre ativa na categoria das doenças espirituais do homem - como
se provindo no passado da consciência do incorruptível e da perfeição suprema, na versão
moderna, da constância mais apagada mas indizivelmente mais rígida da necessidade de rigor
e exatidão, e na versão do homem comum sob a consciência do ideal -, ativa no homem
iluminado graças à consciência da sua natureza teórica, que detém leis a ser incorporadas no
mundo, a todetite exalta o homem, fazendo-o colocar o real em dúvida. Ele posiciona
melhor o mundo? Ele próprio se posiciona melhor? Com as irrealizações ou realizações pela
metade aonde a sua intenção o conduziu e conduz, ele tem geralmente a supresa de ver a
inadequação em torno de si e o fantomático em tudo o que faz, ou de ver a si mesmo rendido à
estatística, junto com as coisas.

Mas ele sai da estatística em nome do geral a que se alçou e o qual, com o seu orgulho
humano, dá-se o direito até mesmo de modificar, se o geral mostrar-se indigno da realidade.
Quem chegou ao nível do geral, ou seja, quem provou das coisas que não existem, não mais
se dá facilmente com as coisas que existem, não importando quantas dificuldades esteja por
enfrentar. E tudo vem a mostrar que o homem europeu, que sofreu e criou tanto sob o signo
da catolite, prepara-se para sofrer e para criar sob o da todetite.
IV. HORETITE

“Horetite”, de horos, “determinação” em grego antigo; quer denominar o desajuste das


determinações que as coisas e o homem se atribuem, um desajuste que pode conduzir à
precipitação, mas também a sua lentidão, até a extinção. Essa doença acompanha os
fenômenos da vontade, no homem, enquanto a catolite estava ligada mais ao sentimento, e a
todetite, à inteligência e ao conhecimento.

Sofrem de horetite, pela linha da vontade, tanto grandes impacientes, quanto, por outro lado,
grandes tolerantes e o bando de pacientes do mundo. Se o desajuste das manifestações é
causado em primeiro lugar pela vontade, com o seu positivo e o seu negativo, ele pode
acelerar ou desacelerar o curso delas. Até mesmo o ritmo das manifestações históricas a
vontade do homem tenta modificar, com o devir estimulado e o devir moroso que ela pode
trazer. Por isso, a horetite vai estar presente, muito mais do que as duas primeiras doenças,
também no quadro histórico. Mas tanto no homem como na história, pode constituir seja
uma forma aguda, seja uma crônica.

1. Horetite aguda. Se pensarmos na horetite do indivíduo humano - não ainda na da história


ou, talvez ainda mais, na do ser -, vêm-nos primeiro à mente grandes impacientes, como
Dom Quixote, que já mencionei, como Fausto em seu próprio plano, como algumas figuras
reais da história da cultura, um Nietzsche, por exemplo, e de qualquer modo como o profeta
criado por ele à sua imagem e semelhança, Zaratustra. Se pensarmos nos deuses, vem-nos à
mente a Estrela d’Alva, imaginada pelo conto popular e depois por nosso poeta. Todos eles
passam pela doença espiritual da impotência de oferecer manifestações adequadas à sua
vontade.

Comecemos com o poema de Eminescu em que, tão impressionante quanto a doença


catolite no caso de Catalina - a sua aspiração ao universo e o sentimento do exílio como
vagueação na luz (“desce e ilumina-me a vida”) - é, combinada à todetite, a horetite na
Estrela d’Alva. Ainda mais, enquanto que na moça o adoentamento não atinge uma forma de
trágico, mas somente enriquece o ser humano, embelezando-lhe o amor de terrena, na
Estrela d’Alva o sofrimento tem um caráter trágico. Pois existe também um trágico das
naturezas gerais, como a Estrela d’Alva, que pareceria um trágico duplo: além de não poder
obter (a não ser “com dificuldade”) uma corporificação individual, assim como com
dificuldade vem de seu mundo a Estrela d’Alva, o novo trágico, depois que obteve a
corporificação individual, é o de não poder obter também determinações - ou seja,
justamente o sofrimento da horetite.

Dir-se-ia que não se pode falar de trágico do geral, representando o trágico uma experiência
de limite do homem; o trágico seria característico somente ao indivíduo, ou às coletividades
históricas bem individualizadas. Mas o geral abunda de uma versão humana, a saber “o
gênio”, que o incorpora, a fim de conversar com o bom romantismo e com Eminescu. Pelo
menos na versão do gênio pode aparecer um trágico, que não mais pertence à pessoa, mas à
natureza geral nela incorporada. Um exemplo nesse sentido dá justamente a Estrela d’Alva,
em que Eminescu via testemunhado o drama e a impotência do gênio “de alegrar os outros e
alegrar a si mesmo”.

Na verdade, como natureza geral a Estrela d’Alva não se pode individualizar (sofrendo como
tal de todetite); ou consegue num dado momento individualizar-se, ou até mesmo em dois
momentos, mas a cada vez é antes “um morto belo com olhos vivos”. Não podendo
atribuir-se determinações terrenas, entrelaça então a sua todetite com a horetite aguda. O
demiurgo vai mostrar-lhe que poderia contudo receber algumas determinações, se as
desejasse em consonância com a sua natureza geral; só que a Estrela d’Alva deseja as
determinações do amor humano, que é naturalmente entrelaçado com a devoção e com a
morte, enquanto o geral não pode entrar na noite da devoção individual e da morte.

A impaciência da Estrela d’Alva de obter determinações terrenas encontra-se, de certo


modo, em simetria com a de Fausto, que quer determinações supraterrenas, entre outras,


  N. do T.: Mihai Eminescu (1850-1889), poeta nacional romeno. Escreveu em 1883 o poema
Luceafarul (A Estrela d’Alva), de filosofia popular e gnóstica, que, misturando mitologia romena e antiga
mitologia grega, ilustra, através de uma dimensão simbólica e metafísica, a condição trágica do gênio na terra.
alçar-se até o Espírito da Terra. Com a mesma precipitação que faz com que a Estrela d’Alva
queira e peça determinações individuais, para o seu ser geral, deseja Fausto determinações do
geral para o seu ser “genial”. Mas o Espírito da Terra detém-lhe o ímpeto, assim como o
Demiurgo detém a Estrela d’Alva. E da mesma maneira como ela retorna a sua limitação,
permanecendo “imortal e fria”, assim vai permanecer Fausto “mortal e frio”, estranho a
qualquer determinação real, não participando senão com o possível que Mefisto lhe confere,
não com o próprio real, de tudo o que lhe acontece depois do encontro com o Espírito.
Tanto em um como noutro a horetite assume a forma crítica da experiência última, que
conduz à extinção espiritual.

De uma maneira completamente diferente, e mais exatamente com o seu positivo e a sua
riqueza, manifesta-se a horetite em Dom Quixote. A sua impaciência de se realizar como
natureza geral conduz efetivamente a determinações que, mesmo se não completam um
destino individual real, terminam por edificar grandes sentidos. Diante do real, tudo é como
se fosse uma gênese fracassada. É o mesmo como se no mundo da vida, onde igualmente
parece manifestar-se às vezes uma impaciência dos gerais (das espécies) de penetrar na
realidade e onde, na arqueologia da biologia, figuram espécies, tão bem codificadas no plano
geral como também atestadas no plano individual, como as espécies dos sáurios, mas sem
que os exemplares individuais respectivos possam atribuir-se determinações através das quais
consigam subsistir verdadeiramente. É uma gênese fracassada - mas é uma gênese.

É o que mostram, além de Dom Quixote mas de certo modo sob o seu signo, algumas
naturezas de realizadores. O homem vê muito bem que não obtém a ordem assim, através da
simples acumulação de fatos na catolite; vê, igualmente noutras vezes, que não a obtém nem
através da submissão às grandes normas gerais dadas e que, no final das contas, podem muito
bem subsistir esmagando os destinos individuais (todetite) ao invés de os realizar. Então o
homem de formato grande, tornado consciente da presença necessária da lei e da norma
geral em tudo o que tende tornar-se ser, toma ele, de maneira ativa, esse sentido, assumindo o
papel de portador e realizador da lei. “Existo, porque fiz uma lei incorporar-se em mim;
conferi-me sozinho um senso de generalidade, ou o conferi a uma área de realidade que está
sob o meu poder.” Assim como um cavaleiro medieval enverga uma armadura, adotando por
conta própria um ideal justiceiro e partindo pelo mundo com o sentimento de uma
investidura, partimos agora armados na direção da realização de si. Mas de novo, como
aquele, podemos permanecer um simples cavaleiro “errante”, quer dizer, sem determinações
e fatos seguros, se realizarmos o ato de violência de incorporar a qualquer preço a lei. Existe
uma medida dos gerais, que, não importa o quão fantomáticos e evanescentes sejam, pedem
também eles, quase como os organismos vivos, uma gestação, uma adaptação à precariedade
do real em que se implantam e um momento favorável a sua incorporação. O homem não
obtém o próprio ser, nem traz ordem ao mundo, com a simples armadura do geral, mas
somente com determinações na medida desse.
O sofrimento da horetite, aqui sob forma aguda, não ocorre na realidade por causa da falta
de determinações, mas por causa da sua natureza de ser simili-determinações, como o
capacete de papelão de Dom Quixote, o qual ele experimenta para ver se é bom, descobre
que não é, mas o decreta bom, saindo com ele na direção de luta e ação. Por toda a parte, no
tomo I do livro, onde tudo o que acontece se encontra sob o signo da ilusão de si de Dom
Quixote, e no tomo II, onde as coisas se encontram sob o signo da ilusão dos outros (o
duque e a duquesa), as determinações estão desajustadas. Mas porque as determinações
existem, até mesmo tortas e grotescas, a horetite acaba por revelar, assim como as outras
doenças espirituais, a sua face boa.

Nietzsche sofreu também ele agudamente de tal doença. Poderíamos ilustrar também com
Fichte a horetite de uma consciência filosófica, mas escolhemos Nietzsche. Pode-se contudo
dizer, com certeza, que a sua aventura espiritual representa um dom-quixotismo? De
qualquer modo uma forma típica de horetite existe, encontrável também no seu caso sob o
signo da impaciência, como nos heróis evocados até agora. Dom-quixotesco em Nietzsche é
o caráter por demais sumário da sua mensagem - ou a idéia e o pathos do dionisíaco, o tema
do super-homem aparentado com a demência goetheana e inferior àquela como visão, o
tema da inocência do devir e do eterno retorno, emprestadas claramente sempre de Goethe -
uma mensagem em nome de que ele se permite negar e derrubar, ilusoriamente, quase tudo;
dom-quixotesca é também a sua exaltação de reformador, no vazio espiritual de um século
refinado que, após a indiferença terrível do início, recebeu e aplaudiu a sua injúria, ao invés
de sentir-se chacoalhado por ela.

Mas as suas intuições no fenômeno da cultura e no moral são extraordinárias, por vezes,
como as suas formulações, de maneira que a doença espiritual atinge em Nietzsche outra
grandeza que não aquela indireta de Dom Quixote. Só que tudo se torna uma forma de
singularidade. Ele se atribui, obra após obra, todo tipo de determinações teóricas que, com o
pensamento delas pulverizado em aforismas, permaneceram também elas na poeira das
bibliotecas e das consciências, mesmo se fizeram ou se ainda fazem sobressaltar algumas
dessas. À sua natureza geral, com a sua genialidade reformadora, teriam sido necessárias
também outras manifestações além de obras. De cada página e pensamento seu ele esperou
contudo um eco chacoalhante, mas com “Ecce Homo” precipitou-se ele mesmo no
indeterminado da noite espiritual.

É profundamente significativo, para a doença espiritual de Nietzsche, o fato de que ao herói


em que idealizou-se por si, a Zaratustra, não lhe acontece nada quando desce das montanhas.
Sobretudo, ele não possui fatos e não se pode atribuir determinações adequadas e
organizadas, entrando numa terrível forma de horetite. Por detrás das palavras, algumas
verdadeiramente extraordinárias, existe uma carência total, quase inacreditável. Zaratustra
desce, após dez anos de retiro nas montanhas, como corporificação de uma vasta natureza
geral, pregando em vão e errando casualmente. Não tem uma parte de nada necessário.
Encontra um velho que não tinha ouvido que “Deus morreu”, encontra um bando de
homens, tem a sorte de o dançarino da corda-bamba cair, de maneira que pode levar o seu
cadáver nas costas, vê o bobo-da-corte e os coveiros, depois adormece, desperta, nota uma
águia com a serpente enrolada em torno do pescoço, atravessa países e povos, faz discípulos,
abandona-os, retorna, encontra a moça dançando na floresta, um corcunda, o guardião do
grande cansaço, dois reis, enfim, pisa num homem e começa a correr, mas não encontra mais
ninguém.

Poucas descrições da horetite, a alto nível, são tão sugestivas, nos anais da cultura, como o
cenário dramático de Assim Falou Zaratustra, ou, se se prefere, como falta de um verdadeiro
cenário. É provável que não somente esse profeta do super-homem, mas os seus próprios
super-homens arriscam que se lhes aconteça assim, se lhes for dado surgir no mundo.

Passemos, com Nietzsche, das personalidades exaltadas pelo seu espírito profético, à história
e às comunidades tomadas às vezes também elas por exaltações. Assim como acontece ao
seu profeta, acontece aos “super-homens” também no nível histórico: não encontram para si
determinações adequadas. Os mesmos povos germânicos sobre os quais Nietzsche disse as
coisas mais impressionantes, terminando com: “Die Deutschen sind nichts, sie werden
etwas”, oferecem estranhos exemplos de horetite a nível histórico.

Poder-se-ia dizer dessa maneira que os Vikingues, que tanto edificaram no norte da Europa,
desceram até a Sicília com um senso histórico fechado, para o qual não mais encontraram
determinações adequadas, caindo dessa maneira vítimas da horetite. De qualquer modo,
esses povos viveram graças à inquietude de algo da ordem da horetite e depois as ordens
religiosas germânicas prontas para realizar edificações no Oriente. Levavam com eles, pelo
menos os últimos, um senso geral, fora as idéias religiosas do tempo: uma idéia de
civilização, destinada a ser conduzida ao burgo e à burguesia em seu espaço de origem, como
se no colonizado. Mas a sua idéia, que apressava a sua própria realização através de grupos
isolados, implantados no meio de outros povos, não encontrava para ela as determinações
através das quais se harmonizasse com o espaço étnico e o contexto histórico onde as
edificações eram implantadas. Ergueram cidades por toda a parte, até mesmo no nosso
espaço, mas, após séculos, os descendentes dos cavaleiros colonizados no Oriente pagaram
com o destramar das comunidades criadas o primado dado por eles à idéia e à realização
precipitada da idéia. Se favoreceram a história de outros, as comunidades germânicas de lá
não fizeram elas história, mas mantiveram-se e sobreviveram, apenas. Algo da miséria de
Esparta ressurge, no nível mais baixo, quase anônimo, no destino daqueles corajosos
realizadores no vazio.
Pois Esparta pode dar o exemplo típico para a impaciência do geral e, em conseqüência, o
fracasso das determinações. Os sensos gerais impostos à comunidade através de uma
constituição, que certamente não era somente de Licurgo, puderam modelar séculos após
séculos a comunidade em que se quiseram incorporar. Quando porém o geral se implanta
diretamente no individual, as determinações sofrem. Assim ocorreu com o povo espartano,
que fez história mas não teve história e não criou suficientemente no plano da cultura,
perdendo de certo modo até mesmo a consciência helênica. Um historiador que descrevesse
Esparta (quando isso não lhe é por demais hostil, como para Toynbee) não pode obter a
“biografia” daquela comunidade tão estável, com os seus casais de reis anônimos e com a
sucessão de fatos resumidos à monotonia de algumas idéias sobre educação e estado. Não
existem determinações, ou estão elas distorcidas. A horetite tornou-se doença de estado, com
Esparta.

Eis assim em alguns povos, como no caso de algumas grandes figuras plasmadas ou ideais,
formas claras de horetite, surgidas sob o signo da impaciência do geral. As manifestações de
semelhantes doenças espirituais eram também elas claras; a cegueira diante da realidade
(“Foste cego a vida toda” diz a Fausto, no final, a Preocupação), a substituição das
determinações naturais por simili-determinações, pertencendo ao possível, com Fausto, ao
imaginário e artificial em Dom Quixote, à hipertrofia da vontade em Nietzsche, ao
profetismo vazio e no vazio em Zaratustra; então as fundações vãs, no caso dos povos
superiormente resolutos, o espírito espartano, a tensão como norma de vida, a ex-temporização, a
anistoricidade em plena história.

Só que o mesmo espírito do geral que podia adotar, com as características de “super-
homens” e com os povos que se querem superiores, o estilo da impaciência, pode ser
também a própria paciência; pode não precipitar os destinos em manifestações
flagrantemente desajustadas, mas deixá-los ver-se sozinhos, sob a massividade do geral de
que são portadores, o desajuste. Existe uma outra forma de horetite, crônica, digamos.

2. Horetite crônica. Para o caráter crônico desta doença espiritual - e somente uma doença das
determinações, com o desenvolvimento delas no tempo, pode ser crônica - o melhor pano
de fundo é dado pela própria cronicidade; o tempo. Assim como o espaço perfeito, o tempo
absoluto nos parecia mais acima carente de algo individual, de um “tode ti”, ambos
oferecendo uma imagem cósmica da todetite. Mas, quando descemos de sua idéia absoluta
para a sua imagem no real, o tempo e o espaço são registrados como se entrelaçados com o
individual e sugerem (assim como a Estrela d’Alva), muito mais que a carência do individual:
a carência, até a extinção, das determinações. Pois no real, o espaço e o tempo são
justamente os princípios de “atualização”; neles, através de um hic et nunc, individualizam-se
as coisas e os processos. No espaço e no tempo acontece tudo. Mas não lhes acontece nada.
Eles exprimem a grande indiferença diante de tudo o que é determinação, o horizonte vazio
e a ritmidade vazia, como a expansão de uma onda que permanece a mesma na sua
monótona propagação.

Neste pano de fundo de desacontecimento de nada, com o seu puro desenvolvimento,


increvem-se as formas de vivência, no espírito, tocadas pela horetite crônica. “Não acontece
nada” quer dizer: não acontece nada significativo, nada necessário e nada enriquecedor,
mesmo se a vida do espírito, graças a sua generosidade, possa fazer com que, da inexistência
das determinações como em Dom Quixote, floresçam alguns sentidos, para o homem.

Não acontece nada na vida dos anjos, por exemplo. Tenham sido de qualquer modo
concebidos, mesmo com os demônios da visão antiga, eles surgem e subsistem sob o signo
da horetite crônica. Tanto geral existe incorporado em seu ser individual que ele não mais
pode receber as próprias determinações do individual e permanece sendo - como ocorreu
com algumas visões medievais - geral desde o início, cada anjo caracterizando uma espécie. É
dado ao homem alçar-se ao senso geral, enquanto imagina-se que o anjo esteja fixado nele; no
máximo tem um brando balançar no seio do geral, assim como tinha o demônio antigo
como intermediário entre o mundo de baixo e o de cima, ou como era o anjo cristão, como
“anunciador”, como o demonstra o nome, de um mundo para o outro. Não possui
determinações, nem mesmo de lugar ou de tempo, pois está em todo a parte e é sem idade.
Por outro lado, justamente dessa maneira o folclore romeno imagina o Paraíso, reencontrado
após o Juízo Final: todos os homens serão da mesma idade e não vai haver habitação, nem
amor, nem palavra, mas “tudo será o mesmo dia”.

Ao ser humano foi dado atingir esta hipóstase numa versão sobre que se falou bastante, na
religiosidade tardia e refinada, como foi a do romantismo: na versão da “alma bela”. Muito
pode acontecer a uma tal alma nobre e desprendida da mácula do mundo, ou pode ela
mesma atribuir-se algumas determinações, mas todas são por ela transfiguradas de tal
maneira que cessam de ter quaisquer significações renovadoras, pois são anteriormente
significadas, a cada vez. Na condição angelical em que aqui se instalou, o geral envolve como
um espírito bom todas as manifestações, transferindo-as para uma mesma glória e luz. Tudo
é “um dia”, como na visão folclórica do paraíso. A noite germinante das determinações deu
lugar ao dia. Mas desse modo o dia se transformou, por sua vez, numa branda noite, assim
como sentimos que ocorre às vezes em “Testemunho de uma alma bela”, da obra de Goethe.
Numa medicina do espírito, trata-se simplesmente de uma forma de horetite crônica.

Desçamos mais um degrau, no plano da experiência espiritual mais comum do homem, e


encontraremos, no caso contudo escolhido daqueles que sozinhos se auto-impuseram uma
ordem superior, os sintomas do adoentamento deste tipo. Uma vez encontrada e
compreendida, é difícil de se desviar da ordem do geral, como acontece com Agostinho com
o maniqueísmo no início, e depois com o cristianismo. Sob a ação desta ordem, a vida torna-
se outra. A pergunta é se não se torna tão “outra”, que por vezes se constitua, graças às
transformações do homem respectivo, algo inadequado também a ele, e à ordem que invoca.

É como uma nova idade do homem, depois daquela das andanças da primeira juventude,
agora, quando a sua ação se torna responsavelmente engajada. Mas a responsabilidade não
existe apenas diante de si mesmo, mas diante do geral aceito. A ação do homem deve agora
decidir até mesmo o próprio senso geral. O que seria o geral, ou as grandes normas,
identificadas num momento mais maduro, se não conduzisse ao responder da realização
delas? E assim, portador da lei, o homem começa todo o tipo de edificações, sem a cegueira
de Dom Quixote, mas firme também ele. São-lhe necessárias apenas determinações de vida
adequadas, assim como buscava Agostinho, sozinho ou com os seus amigos, no
recolhimento de Cassiciacum, um conteúdo novo de vida, sob a medida do modelo religioso
que encontrara e adotara. E todo o problema desse momento, em que o geral se encontra
implantado diretamente nos destinos individuais, será o de não permitir que as
determinações que virão sejam deformadas pelas adversidades do mundo e pelas próprias
inseguranças.

Mas podem ser deformadas também através das próprias seguranças. Acontece ao homem,
então, assim como a Agostinho: a salvo das adversidades do mundo e dono de si, como a
“alma bela”, ele torna insignificativa uma vida demasiado acentuadamente significada. A
experiência de Agostinho junto com os seus amigos, tanto como “recolhimentos” em nome
de uma idéia, tanto como falanstérios e comunidades ideais, terminam geralmente por
conduzir à inverdade da própria verdade. Por quê? Porque, justamente, não podem dar ao
homem determinações verdadeiras e plenas; porque aquelas idéias “não cabem” na vida real
por virem demasiado de cima, ou pelo contrário, permanecem por debaixo dela. A vitória da
idéia nos homens arrisca desajustar-se e adoenta o real da vida deles. No que diz respeito à
idéia tornada “ideal”, ela foi sempre uma agressão ao real, que, uma vez vencido, carrega
atrás de si, em sua cinza, o ideal vencedor.

Existe um dizer, cuja verdade foi freqüentemente sentida: “a tristeza depois da vitória”. Este
dizer é muito mais revelador porque exprime o surgimento, quase inevitável, de uma doença
espiritual, a própria horetite. A vitória deveria abrir-se para uma riqueza de novas
determinações, que fossem também elas vitoriosas diante das velhas determinações. Mas
para isso seria necessária uma outra vitória, em vista de qual o vencedor não se preparasse e
em cuja medida não pode existir: é por um lado a vitória sobre aquela inércia que faz com
que as velhas determinações (“o homem de sempre”) prolongassem sua vida em pleno
triunfo daquele que as teria vencido; por outro lado deveria ser a vitória sobre a brutalidade e
o caráter sumário da nova verdade, que ainda não passou pela realidade e que vem por sobre
ela com toda a grosseria do geral. “A tristeza depois da vitória” exprime o temor confuso de
que o mundo permanecerá o mesmo, ou de que tudo que o tente modificar transformá-lo-ia
em desmundo. Que determinações podem aparecer, de tal modo que estejam na medida do
geral em cujo nome se deu e se venceu a luta? No segundo dia tudo começa a parecer triste.

Deve ter sido terrivelmente pesada - para passarmos a outra figura histórica - a horetite sob a
qual terá vivido um Luís XIV. Quando um homem, sendo ele também rei, diz: “O Estado
sou eu”, então ele toma diretamente o geral em seu destino individual e finge dar, para o
mundo em derredor e para si, as determinações que convêm. Pode ser que nos primeiros
anos de reinado, ainda atormentado pela juventude, por algumas vitórias militares e pela sua
investidura de si, ele terá efetivamente imaginado - independente da desordem que existisse
em sua vida íntima - que edificava algo através de cada palavra pronunciada, que trazia
ordem com cada gesto, assim como se dizia do rei de Fausto II que erguia palácios a cada
passo ao longo do seu império, subitamente enriquecido com cédulas sem garantia. Mas a
experiência dos anos da maturidade devem ter-lhe dado o sentimento de que nem tudo o que
fazia podia ser significativo, e que não qualquer gesto imperial era memorável e edificante,
embora devesse ser assim, tendo em vista que ele era a instância geral. O pobre rei da França terá
caído sozinho na armadilha; pois ou era verdadeiramente estatuário, ou deveria ser
mistificado, todo o tempo. Pode ser que o tédio que se instaurou em Versailles após 1680 e
sobre que fazem menção muitos contemporâneos deve-se menos ao envelhecimento do rei,
ou à austera senhora de Maintenon e à influência da igreja católica, do que à doença
espiritual da horetite de que começava a sofrer o Soberano. Pois não seria possível que ele
não tenha sido claramente tomado pela horetite, diante de tantas determinações inseguras,
artificiais, vãs, umas sinceramente desacreditadas mesmo por aqueles que as recebiam
supondo-as válidas, outras as quais o próprio Soberano, como agente do geral, terá
percebido que não seriam acreditadas pelo tempo. E que estranho jogo de horetites
confrontadas terá ocorrido, num certo momento, naquela França “clássica”, então quando as
determinações dos partidários do rei enfrentavam as determinações em vão dos partidários
do herdeiro (que terá morrido antes dele), cada corrente de manifestações e providências
prontas a determinar, de certo modo, e a pressionar o mundo francês, a sua história e a
história da Europa, mas ao mesmo tempo prontas a se desfazerem, rompendo-se elo após
elo, se o acaso da morte e da vida tirasse do jogo um ou outro daqueles que, naquele
momento, incorporavam “o geral”.

Podemos passar sem solução de continuidade desta horetite dos reis para a horetite comum
dos heróis do amor, por exemplo, dos abençoados pela vida, vitoriosos sobre as adversidades
também eles, a quem se abre de agora em diante a felicidade do ingresso na ordem geral do
casamento. Poucos criadores tiveram a crueldade, aliada à imprudência artística, de penetrar
nos detalhes do tipo de horetite de que são freqüentemente tomados tais heróis casados. Só
um Tolstói assume os riscos de nos descrever, numa página de epílogo de Guerra e Paz, uma
Natasha um pouco gorda, irritantemente tirânica diante de Pierre e carente de graça em seu
relacionamento com as crianças; mas nem ele consegue, no plano artístico, lograr tal
descrição. Não se dera conta muito bem, talvez, que ao invés de prolongar uma felicidade,
começava a descrever uma doença.

Pode ser que, mais expressiva para a doença do que essa experiência espiritual demasiado
comum da vida, seria a situação que se desabre a Pigmalião após a criação, tão feliz em si
mesma como também para ele, de Galatéia. Os deuses lhe deram a sua bênção, animando-a e
destinando-a à vida. Mas o que acontece depois disso? Que outras determinações naturais e
vivas, enriquecedoras para Pigmalião, podem surgir? Não se trata em nenhum momento da
horetite banal de um simples casamento. Está em jogo, pelo contrário, algo da doença
espiritual do artista que se dedicou a uma única obra e que pôde acreditar que nela resolveria
o seu destino.

Na verdade, amamos aquilo que podemos modelar; amamos a produção de nossas mãos.
Mas que amor curioso é este também. Sabemos agora bem, após começarmos a criação, que
não amamos o ser ou a coisa que modelamos, mas a idéia que neles colocamos, o geral. Só
que, nem o geral amamos como anteriormente, por exemplo como todos os homens, pois
nos vem inserir na sua ordem as determinações e as providências - a necessidade de jogo, a
necessidade de sonho, a necessidade de ato -, mas o amamos de ponta-cabeça, porque não
está pronto, nem é seguro de si, porque ele nos solicita, o geral, que o incorporemos nas
coisas, a fim de que também ele se determine, se amolde de acordo com o real e, talvez, se
defina por fim. Amamos assim aquilo que se faz, mais do que aquilo que existe.
Primeiramente amávamos, como homens, determinações livres (“flutuarmos, sonharmos”),
depois podíamos amar o geral por que se deixam prender as determinações; um terceiro
amor nos leva agora na direção dos trabalhos do geral no seio da realidade, individualmente.
Amamos os homens e as coisas em que se exerce uma ação do geral. Balançamos assim entre
os seres reais e o seu pano de fundo de idealidade, até nos darmos conta de que, deste modo,
deformamos os seres reais através dos sentidos com que os dotamos, deformando também
ao mesmo tempo os sentidos através das incorporações singulares que lhes damos. Pois
agora, a Galatéia seria aquela que retivesse para si toda a idealidade do artista. Mas que
conteúdo de determinações pode trazer consigo uma única obra, a fim de realizar uma
consciência de artista? Seria uma inverdade do pensamento e uma sua mutilação. Nenhum
criador pode colocar a criação obtida acima da criatividade. Se é artista verdadeiro, Pigmalião
pede aos deuses que tragam de volta Galatéia ao mármore.

Pigmalião é amaldiçoado a viver em sofrimento, a partir do momento em que comete a


imprudência de acreditar tanto numa obra sua. Uma única criação não lhe pode oferecer
determinações incessantemente, mas ele enterrou a sua visão numa única criação. Uma
Galatéia viva não mais teria graça nenhuma, pois estaria comovida pela sua parte de geral. É
uma blasfêmia da criação, assim como um impasse do ser, esmagar por vezes o individual,
através do senso geral nele incorporado. Talvez por isso, no seu grande momento, as
religiões não consigam oferecer grandes obras de arte (a não ser arquitetônicas, onde o geral
não se exprime diretamente): a sua carga de generalidade pressiona sobremaneira os destinos
e as realidades em que se incorporam. Mas de novo, justamente por isso as religiões do
passado puderam atingir grandes criações artísticas, ou por vezes a crença se enfraquecia,
como no caso dos gregos posteriores ao século V, ou no Renascimento; os seus sensos gerais
tornavam-se então suportáveis para as realidades individuais (quão límpido se vê isso na
pintura religiosa do Renascimento laico), deixando-as livres para se exprimir, e mesmo
oferecendo-lhes um conteúdo de manifestação, através do geral que incorporavam. Bach não
poderia ter surgido num momento de religiosidade tirânica. Os artistas têm necessidade de
um geral crepuscular.

Dos anjos até aos artistas, passando pelos homens comuns e pelos reis, todos podem sofrer
de horetite crônica, então quando o impacto do geral é grande demais. Mas assim acontece
também aos povos, até mesmo a outros que não aqueles que vemos sofrendo de uma
horetite aguda. Desse modo pode-se dizer que para os povos árabes, o islamismo
representou um bloqueio de seu ser histórico, não mais permitindo-lhes, após um início que
parecia brilhante e que podia eclipsar com os Mouros o mundo europeu, atribuir-se
determinações adequadas a uma vida histórica plena. Aos povos turcos, por outro lado, que
desde o início talvez não tivessem grande vocação criadora, o islamismo não deixou nada a
não ser a capacidade vã de conquistar e dominar, sem um conteúdo próprio de civilização e
de cultura.

Se em sua forma aguda a horetite acusa uma genial cegueira de si, a precipitação das
determinações, substituição daquelas reais por outras somente possíveis, imaginárias,
artificiais, de falsa plenitude, enquanto que no plano histórico manifestava criatividade em
vão, perseverança tenaz, espírito espartano, anistorismo, agora com a horetite crônica surgiram
em cena as determinações estacionárias ou já significadas e imultiplicáveis, uma melancolia
superior, a tristeza depois da vitória, a acedia, a falta de confiança em si, a resignação
contudo ativa, ou o sentimento do tédio e da mutilação através do absoluto. Não se pode
sair, como homem, daqui e entretanto não se pode permanecer aqui. Com cada doença
espiritual identificada, o homem encontra o seu muro e lamenta nele, como o povo de Israel.
Ou tenta ir mais longe, com muro e tudo.
V. AHORETIA

Agora começam as doenças da lucidez. Momentos de lucidez apareciam também até agora: o
homem podia saber que não estava em ordem seja com o geral, seja com o individual, seja
com as determinações. Mas ele não se adoentava só pela recusa de alguns deles. Agora os
enfrenta um após o outro e crê, às vezes com razão, no positivo da recusa, imaginando que
enriquece o espírito através dele, assim como a perda de uma carga elétrica produz, no
mundo da matéria, íons positivos. A lucidez - que também é definitivamente constitutiva do
homem - tornou-se-lhe assim fonte de desajuste de sua vida.

A ahoretia denomina a recusa, respectivamente a renúncia, mais atenuada ou mais categórica,


de ter horoi, determinações. O exemplo que oferecia a peça de Beckett, Esperando Godot,
representa a forma exasperada da ahoretia, a recusa categórica e total das determinações. Um
outro exemplo, solidário com este, era o da experiência hippie, expressão da exasperação
(porém baixa) também ela. Mas se a ahoretia parece de algum modo estranha, na civilização
do espírito aberto ativo que é esta européia, ela se sente por outro lado em casa na concepção
e espiritualidade indiana, onde o monumento literário correspondente não é mais uma
simples obra dramática, nem uma experiência excêntrica e juvenil como o movimento hippie,
mas uma extraordinária epopéia, encontrando-se no meio da cultura respectiva, como o
Bhagavad Gita, em que a experiência espiritual de recusa às determinações não mais assumiu a
forma de uma excentricidade, mas a de uma tendência superior lúcida de se retirar do
mundo, consacrada lá na escada histórica.

O herói do Bhagavad Gita, Arjuna, é o soldado que recusa lutar, pode-se dizer. “Para que
serve o poder, ó Govinda, para que nos servem as coisas ou [mesmo] a vida?”, pergunta-se
ele. O Deus mostra-lhe que é necessário lutar, pois assim exige a lei, mas acrescenta ele que o
ato está mais abaixo que a Yoga do conhecimento. Então por que lutar? insiste Arjuna, no
que o Deus responde que tudo o que se lhe pede seja desligado de luta e do desejo dos seus
frutos. Deve-se ver no ato a “irrealização”. Mas “estás ligado ao ato nascido da tua natureza,
ó filho de Kunti; aquilo que, por causa do turvamento da mente, não desejas realizar, irás
realizar sozinho”.

Neste turvamento da mente de não realizar, ou de não querer atribuir-se determinações


mundanas, parece estar qualquer consciência superior no mundo indiano. E o que é contudo
estranho também na sua cultura, pelo menos para aquele que o observa de fora, é que ali os
deuses atribuem-se todo o tipo de determinações, numa proliferação jamais vista, como
numa selva, enquanto o homem as recusa. Poder-se-ia dizer que os deuses indianos, com
tantas faces, manifestações e nomes que não mais podem ser controlados nem pela
imaginação, sofrem de horetite, enquanto os homens sofrem de ahoretia.

Na verdade, diante da variedade de incorporações e meios que ali o mundo celeste põe em
jogo, o mundo humano tende a interromper ou a controlar e dominar toda providência
corpórea e toda reação espontânea do espírito. Em nenhum outro lugar que não no mundo
indiano poder-se-ia pôr em jogo um meio de ação do mesmo tipo do que foi a “resistência
passiva”. O milagre da ahoretia, como o de qualquer doença espiritual, é que obteve o
positivo mesmo na forma extrema do negativo, ou a ação eficaz através de total passividade.
E de novo, diante dos deuses que não param de realizar novas incorporações e que se
rejubilam reincorporando-se, com a sua polissomatia, o homem indiano aprende que a
corrente das reencarnações representa uma blasfêmia e que o nosso eu, que não deseja senão
a tranqüilidade no seio do eu vasto, torna-se o “eu enlouquecido” graças a sua incorporação
contínua. Em nenhum lugar, portanto, melhor do que na dupla visão indiana não se
evidencia o contraste entre horetite e ahoretia. Poderia ilustrar perfeitamente a horetite (a
aguda) com o desencadeamento das determinações nas divindades indianas, se para o mundo


  Bhagavad Gita, no volume A Filosofia indiana em textos, Editora Científica, Bucareste, 1971, tradução
para o romeno de Sergiu Al-George.
respectivo não fosse ainda mais característica a ahoretia, no caso da sociedade histórica e do
indivíduo. Mas o contraste entre a recusa ontológica no real do homem e a insaciedade
ontológica, sempre no real, do deus diz provavelmente também ele sobre esse mundo
indiano de todos os contrastes. Pode ser que o geral dele, Brahma, seja tão vasto -
diferenciando-se de um Jeová e um Alá - que diante dele o homem e a sociedade não mais
significam nada, mas os deuses, pelo contrário, significam qualquer coisa.

Mas é entretanto completamente diferente querer ter determinações como na horetite e não
receber adequadas, diante da sua recusa. O ahorético recusa as determinações em nome do
geral, cujo individual deve integrar-se totalmente, derretendo-se nele “como uma estátua de
sal”, diria o pensamento indiano. Quando o geral era projetado diretamente sobre o
individual, através do qual ele se “realizava”, surgiam: a precipitação das determinações e a
cegueira, no caso da horetite aguda, a tristeza depois da vitória, no caso da crônica. Agora,
no caso da ahoretia, em que o individual se realiza mais através do geral, aparecem: a lucidez e
não a cegueira, a alegria da derrota e não a tristeza do triunfo. Assim se passou com os
Estóicos, os únicos junto com os ascetas, na cultura européia, que podem lembrar-se
diretamente do mundo indiano.

O estoicismo faz indubitavelmente a ligação entre a razão individual e a universal. “Criaste


como uma parte de um todo. Tu te vais reabsorver no ser que te produziu”, diz o imperador
Marco Aurélio, depois que o escravo Epictet dissera: “Recorda-te que és ator num drama
cujo autor o fez segundo a sua vontade.” O estóico não tem portanto necessidade de
intermediação das determinações a fim de se alçar ao geral, em cujo nome ele até mesmo as
recusa. O primeiro ainda dizia: “O homem tem um grande poder à mão, o de não fazer outra
coisa senão o que permite o Deus.” Ou: “Afasta de ti todo o resto e não te preocupes senão
com estas poucas coisas.” Ou ainda: “Nem um olhar, por mais fugaz, a nada que não seja a
razão justa.” Não temos nada a fazer a não ser consentir fora - mesmo se sejamos mendigos
- e triunfar dentro, erguendo-nos, com o significado do geral, acima de tudo o que acontece
no mundo e conosco. Devemos acostumarmo-nos com a indiferença. “Se abraças o filho ou
a esposa - cogita Epictet na crueza da indiferença - dizes que abraças um ser humano, de
maneira que, se morrerem, permanecerás tranqüilo.” Naquilo que nos diz respeito como
homens “considera-te uma criatura por morrer; despreza-te o corpo”, e façamos de tal
maneira que “a parte da tua alma que comanda e domina em ti permaneça imóvel diante de
qualquer movimento corpóreo”; e no que diz respeito ao mundo, “não te admires com nada,
não te sobressaltes com nada”, diz tudo isso Marco Aurélio. Aquele que se alçou ao
significado do inteiro não tem nem mesmo a dizer muitas palavras: alguns aforismas bastam.
Mas os aforismas não são daqueles explosivos, como os de um Nietzsche tardio, mas
cogitações da sabedoria, que não quer mudar o mundo, mas somente entrar na sua ordem
mais profunda. “Não és senão uma imagem, que não representa de modo algum a
realidade”, diz Epictet. Numa tal última colocação do pensamento, nem mesmo as
determinações da cultura e do filosofar por demais aprofundadas não nos merecem ser
oferecidas: “Se não perdi meu tempo, confessa o imperador Marco Aurélio, com o estudo
dos escritores, com a interpretação dos silogismos ou com a pesquisa dos segredos celestes,
devo-o aos deuses.” A ahoretia é quase total no caso dos estóicos.

Também os deuses, ou desta vez o Deus de uma religião segura de si, terão conduzido à
extraordinária forma de ahoretia dos ascetas cristãos orientais. Nenhum tipo de
determinações mundanas está em jogo agora. Os estóicos ainda mantinham uma forma de
refúgio no meio do mundo e também com a realização do papel em que tinham sido
distribuídos pelo Dramaturgo. Agora, com os ascetas, a recusa é também exterior, a ahoretia
tornando-se absoluta, e se dentro ainda existem determinações conscientes, até mesmo
verdadeiras lutas com os turvamentos da própria mente ou com a sedução do Outro, tudo o
que acontece nas almas visa a uma forma de realização, que no limite conduza ao total
esfacelamento das determinações, através do amálgama com a natureza geral e através do
êxtase.

Não nos demoremos nas naturezas extáticas, que são a estação final das naturezas ascéticas e
se inscrevem plenamente no registro da ahoretia. “Havia luz e limpidez no meu coração, mas
não podia ver nem cor, nem criatura”, diz um extático oriental do século XVII, mostrando
que até as determinações mais marginais, as cores e as formas das coisas, devem desaparecer,
na glória do êxtase. Poderemos contudo passar, pelos extáticos, pelos mundos de exceção,
como o mundo indiano, pelas doutrinas de exceção, como a estóica, e pelas manifestações
religiosas extremas, como a ascética, até ao homem comum, que também cai, muito mais do
que se poderia crer no início, nas formas de ahoretia, semelhantes às acima mencionadas.

Poder-se-ia dizer que um equivalente do rapto extático existe também até mesmo na
natureza, reencontrando-se desta maneira no real um pano de fundo ontológico da ahoretia
extrema. É necessário que apareça, no inorgânico e no orgânico, uma situação da ordem do
“rapto”. Tal processo quase instantâneo, que o ser humano registra uma vez com a sua perda
extática em algo geral (como no êxtase estético, por exemplo), representa a absorção direta,
feita por uma natureza mais geral, do individual. Podemos portanto imaginar, seguindo os
rastros do que escrevem os homens de ciência, não somente substâncias que arrancam e
atraem em sua organização partículas de outras, elétrons por exemplo; não somente corpos
cósmicos que tomam para sua órbita outros corpos, como se disse que teria tomado a Terra
o corpo da Lua, mas também substâncias ou corpos em que outras substâncias ou corpos,
integrados com o todo, com a extinção de suas determinações específicas, sejam dessa
maneira simplesmente ahoretizados. Definitivamente, qualquer “assimilação” obtida (a
comida, sobre o que o pensamento indiano fala tão profundamente) integra numa realidade
com generalidade mais segura algumas naturezas individuais, que podem ser-lhe necessárias
para abrir-se, somente ela, para novas determinações, no caso em que nem ela permaneça,
como natureza inorgânica, na letargia da sua generalidade. Com tais integrações, a realidade
autoriza processos revolucionários fecundos, ao invés de lentas transformações, através da
acumulação paulatina de determinações.

Esta boa precipitação na direção do ser (ou da verdade) encontra-se entretanto sobretudo no
homem, por exemplo nos assaltos que o conhecimento faz à verdade, ou às vezes as
providências “indutivas” (o que não mais busca antes justificação lógica, mas produz-se,
simplesmente) enviam o pensamento para o geral, usando o modelo daquilo que se poderia
chamar um integrante ontológico. Contudo, no caso do homem, ainda mais significativa que
a providência do conhecimento, nesta linha, existe uma outra: a do amor.

Quando se vêem obrigados a dizer algo sobre o seu “rapto”, os extáticos não podem falar
senão em termos de amor. Podem existir, de qualquer maneira, muitos tipos de amor (diria
seis tipos, na linha das doenças do espírito), mas tudo aquilo que é verdadeiramente amado
revela-se finalmente ser o geral. “Qualquer amor verdadeiro é amor de Deus”, dizia Max
Scheler, e num sentido laico ele parece ter tido perfeita razão: amamos no fundo somente o
geral, se não fosse o fato de que, no nível mais baixo como se disse, não amamos a criatura
bela por ela mesma mas no interesse da espécie, do geral. Mas quando intervém a lucidez,
como é o caso na doença espiritual que agora pesquisamos, quando estamos conscientes de
que amamos o próprio geral, no ser ou na realidade individual amada, então, mesmo se não
entramos na contemplação do êxtase, somos tomados pela ahoretia. O que mais pode
significar na verdade as nossas determinações individuais, o nosso amor como tal, diante do
geral? E se ele nos exorta a nos atribuir algumas novas determinações, à sua medida, elas vão
cair imediatamente na monotonia das determinações estóicas, ou ascéticas, ou angélicas, ou
seja, estarão sob o signo da ahoretia. Pois, diferenciando-se das naturezas angélicas, que estão
diretamente na ordem estabelecida, nós teremos entrado na ordem através de um ato de
lucidez que, com a extinção voluntária das determinações livres, significa efetivamente para o
homem uma forma de ahoretia.

O próprio amor, por outro lado, em qualquer uma de suas formas, tem em si algo de
ahorético e quase ascético: há uma recusa ao mundo, a fim de preferir uma única criatura sua,
em cuja felicidade vão caber menos determinações novas, até a mais banal forma mundana
de ahoretia: o tédio. O próprio tédio superior, o assim chamado metafísico, não parece ser
senão um amor por demais bem satisfeito: o amor da lucidez vazia, como na limpidez sobre
que falava o extático oriental, e em que não mais vemos nem as cores, nem as criaturas, assim
como o grande desabusado do tédio metafísico não mais percebe os significados e o milagre
do mundo.

Se o amor pode criar, no registro comum humano, um bom terreno, até mesmo um exemplo
para a ahoretia, será necessário que isso aconteça com o seu espectro na sintonia da cultura,
com a poesia lírica, definitivamente a poesia em si. Particularmente, poder-se-iam
reencontrar na poesia aquelas duas modalidades arquetípicas postas em jogo pela ahoretia: a
ascese e o êxtase. A poesia é, primeiramente, uma ascese ao próprio, “um exercício” do
pensamento e do coração, mas é também, num sentido mais largo, por exemplo, uma ascese
à palavra, pelas renúncias a que se submete. É a renúncia à função de comunicação imediata
da palavra, digamos, como na prosa do Sr. Jourdain; mas é também a renúncia à função de
comunicação superior, pelo argumento e justificação lógica, renúncia à função de
conhecimento racional da palavra, do logos; à sua função de historizar, à épica, de momento
em que estamos na poesia lírica; renúncia à sua função de persuasão sobre os homens e - ao
menos com a poesia moderna - de domínio mágico sobre a realidade. Com tantas renúncias,
que são para a palavra como se um desprendimento seu do seu mundo e das suas
determinações, a poesia quer fazer da palavra uma vitória nua no contemplativo. A palavra
nela mesma - como São Simeão nu, numa coluna de pedra -, além de quaisquer
determinações da fala, com seu exercício puro e sua abertura semântica, na sintaxe do
contexto, na direção de um semantismo mais puro, da idéia, ou da emoção, ou do valor, ao
êxtase a que ela queira conduzir, esta parece ser a palavra da poesia lírica e, uma vez com ela,
a substância dela. Na ahoretia a que ela conduz, quantos admiráveis sucessos não pode
haver! Mas a ahoretia é, se não fosse senão porque a emoção da palavra poética seja tão
próxima da emoção do silêncio, aquela a que às vezes chega também a contemplação
filosófica.

Passei, expondo os casos típicos de ahoretia, da ascese e do êxtase ao amor, e deste à poesia.
Pareceria talvez menos justificada a passagem da poesia às matemáticas? Mas não só que se
tenha feito a aproximação, em repetidas vezes; não só que as matemáticas possam ter algo
“contemplativo” nelas, como se pode ver nos matemáticos como Euler, com sua equação em
que resumia o mundo, ou como a traíam, mais próximos de nós, um Wittgenstein, até
mesmo um Russell; - mas, se se trata de observarmos as coisas da perspectiva da ahoretia,
então as matemáticas se nos oferecem por si. Sem invocarmos os grandes exemplos da
ahoretia matemática - um deles destinado a apaziguar a passagem daqui às matemáticas no
nível das providências religiosas, tão opostas a elas em outros planos - justamente o exemplo
que dá Platão, então quando diz que o Deus, ahorético por excelência, atribui-se um tipo de
determinações, que não sejam verdadeiramente unas (pois sairiam de sua pureza e igualdade),
ou seja, fazendo geometria; sem portanto recorrer a tais exemplos, diremos que as
matemáticas devem invocar aqui muito mais do que outra aventura humana, justamente a
fim de poder revelar a presença e a ação da ahoretia no mundo moderno.

Não seriam as matemáticas uma verdadeira ascese do conhecimento? Num sentido alargado
da ascese (que reencontra espantosamente o sentido originário de “exercício”, evidente nas
matemáticas), elas são uma ascese do pensamento conhecedor, assim como a poesia era uma
ascese do pensamento falante. Com elas, o pensamento recusa-se a conhecer qualquer área da
realidade, desprende-se voluntariamente de todas as determinações do real e parte para o
deserto, tornando-se um tipo de “estilista”, e é, como São Simeão, suspenso como está, na
coluna estreita de alguns postulados e axiomas. A pureza ahorética do matemático - que não
só renuncia inicialmente a quaisquer determinações do real, mas se orgulha de não
reencontrar nenhuma em seu exercício, assim como diz Russell que o matemático não sabe
sobre o que fala e se falasse sobre algo - representaria um escândalo, para a cultura humana, e
surgiria um jogo vazio, pois ela não parece posta a serviço de nada, como outras “retiradas
do mundo” (para Pascal, ele próprio gênio matemático, as matemáticas ainda são um jogo, e
não uma atividade séria, de acordo com o que escreve ele a Desargues), se da puridade do
exercício matemático não resultasse, diversamente da ascese, que se pretendia a serviço do
mundo abandonado, um inesperado e fantástico reencontro do mundo. Eis aqui uma das
mais surpreendentes lições do espírito, com as suas doenças, no que concerne às virtudes da
recusa e da ahoretia em particular. De toda esta ascese do pensamento conhecedor, com as
matemáticas, produziu-se muito mais que uma vitória do conhecimento; produziu-se, através
da técnica, uma demiurgia criadora que, da mesma maneira como a vitória do conhecimento,
nos faz crer que Platão tinha razão ao dizer que Deus geometriza, mas desta vez de outro
modo que não no sentido de que encontraria por este caminho um expediente a fim de não
entediar-se.

E entretanto, algo da ordem da ahoretia inicial permaneceu justamente naqueles dois


inesperados sucessos das matemáticas, o conhecimento e a técnica. Não falemos
amplamente do primeiro aspecto, somente teórico, da sobrevivência de uma “recusa”, no
que diz respeito às determinações reais, mesmo no sucesso das matemáticas de as conhecer e
explicar (por intermédio das ciências a que se aplicam); pois, na verdade, reduzir todas as
determinações a expressões matemáticas pelas quais se formulam as suas leis significa passá-
las do real para uma tela onde tudo se torna espectral; ou significa fazê-las parecer com
“outra coisa”, assimilá-las e desfazê-las como tais, exatamente o que quer a ahoretia.
Sublinhemos por outro lado - pois o aspecto leva diretamente à vida prática do homem -
especialmente a ahoretia que se mantém, das matemáticas, ou que ressurge à luz uma vez
com o universo dos objetos fabricados, um universo monótono justo quando parece existir
uma selva da demiurgia; mas sobretudo mostremos que, devido a esta progenitura direta e
indireta das matemáticas, ou seja, o mundo técnico, o mundo do industrialismo e das
máquinas, a vida histórica impõe responsabilidades novas ao homem, umas de controle
racional, de racionalização e de predeterminação, que parecem a algumas pessoas acabar por
reencontrar algo do problema teológico da predestinação (tão solidário com si é o homem
em tudo o que faz, seja no sacro, seja no profano) e de qualquer modo parecem reativar a
partir de agora a ahoretia.

O homem europeu, levando atrás de si o homem do planeta, encontra-se no ponto de


transformar a catolite (a sua doença histórica, surgida durante a busca por um geral
satisfatório), por um lado em todetite, ou seja, no esforço de encontrar um individual
adequado, com o prolongamento dela na horetite, a dificuldade de dar-lhe determinações
adequadas, por outro lado transformá-la - devido à sua lucidez - em ahoretia. No fundo, o
homem europeu é provavelmente o único que tem tomado sobre si todas as doenças do
espírito (pois veremos como as últimas duas terão retornado). Agora entretanto ele toma
sobre si em primeiro lugar a ahoretia, que nos parecera característica ao mundo indiano. Só
que existe uma outra variante da ahoretia, na medida em que também o geral através do qual
se equilibra o espírito europeu é outro que não Brahma.

Com um geral menos vasto, com um tipo de razão que geralmente nem mesmo não mais
busca justificações filosóficas, proclamando-se sumariamente “ordem racional”, às vezes sem
nenhum nome, o homem dos novos tempos recusa as determinações mais livres, tanto da
natureza como também do próprio ser ou sociedade. Ele não mais pode - em nenhuma parte
do mundo agora - não planificar, não organizar, não predeterminar e não danificar as
determinações livres, em perfeita aspiração ahorética. O mundo se esvazia de surpresas,
como no caso dos estóicos, assim como o conhecimento tende a esvair-se de novidade, ou
vem - como a filosofia banal - explicar perfeitamente, diante de algumas novidades, que tinha
de ser assim. De qualquer modo, a novidade radical não mais existe. Nós a aguardamos de
um eventual encontro com extraterrestres.

Não mais encontramos, agora, ou não mais nos deparamos com nada surpreendente através
do contato direto; no máximo por vias indiretas. Quando Máximo Gorki saiu de Nijni
Novgorod para a Criméia, ao longo de milhares de quilômetros, em cada vilarejo por que
passou ele viu e encontrou uma coisa diferente. Agora, pelo menos ao viajante não se
oferece mais nada de novo nos vilarejos e nas cidades do mundo, e isto não somente na
parte oriental, onde o fenômeno bom da ahoretia, no sentido da integração da sociedade (as
classes tendem a desaparecer), é evidente, mas cada vez mais em qualquer outra parte do
mundo. Os homens se agitam e se movem como nunca, mas não mais viajam de verdade.
Desaparece de nosso mundo aquele viajante que trazia com ele a novidade e a confrontava
com a de outros. Da mesma maneira como aquele do deserto, nós não nos movemos, com a
nossa extraordinária mobilidade. O homem da ahoretia é entretanto justamente aquele que
não mais viaja.

Por haver descido tanto, do homem das extremas experiências ascéticas e extáticas, até às
nossas vidas marginais do momento histórico em que nos encontramos, talvez não parecerá
impertinente denominar um destino individual como ahorético. No final das contas, uma
doença, seja ela também espiritual, existe pelos doentes. Se se pode aprender de tratados
todo o tipo de coisas sobre os sintomas e a síndrome de uma doença, ainda permanece
muito o que descobrir da ficha de observação de um doente. Mas o doente que segue
apresentou-se sozinho diante do autor, a fim de ser consultado. É o próprio autor.
Descrevendo à distância a doença espiritual da ahoretia, ele teve a surpresa de ver, num
determinado momento, que aponta e emoldura sozinho o seu próprio destino. Por que
escondê-lo, se pode servir, no mínimo, para uma pesquisa teórica? Somos todos fragmentos
de teoria, enfim, uns insetos no insetário da humanidade, e se às vezes o inseto tenta tornar-
se entomólogo, como aqui, ele não pode senão servir melhor ao conhecimento do insetário,
antes de recair nele.

Descrevamos então um caso de ahoretia no registro objetivo que se faria por um médico
especialista, digamos, por um “nooiatra”.

Ficha clínica

O paciente declara que leu aos 18 anos Kant e que se sentiu confiscado, para sempre, pelo
pensamento especulativo. (É conhecido o fenômeno do rapto, que está quase sempre na
origem da ahoretia. Só às vezes é substituído pela recusa vazia, na ahoretia degradada. A
forma que tem por base o rapto é aquela positiva, malgrado o seu cortejo de negações.
Significativo é o fato de que, no paciente, trata-se de Kant, homem que nunca viajou, com
efeito.)

Desde o início este fato transformou-lhe a vida, dando-lhe uma temporã porém, como
percebeu mais tarde, falsa maturidade. Era uma maturidade que se baseava na atitude, não no
conteúdo. Apesar de tomado por cultura, recusava, em nome da especulação, áreas inteiras
da cultura, como as artes, e naturalmente recusava tudo o que era aplicação prática, pesquisa
de campo ou ação. Não participava plenamente nem da vida dos outros, não se explicando
bem como os podia submeter por vezes, com a sua não-participação e mesmo com a sua
ignorância nas suas áreas de ação. (O paciente parece não saber do “poder do negativo”.)
Sentiu desde então uma tendência na direção do excesso, na sua natureza humana, e quando
leu a confissão de alguém que preferira na vida o excesso a mais, disse a si mesmo que ele
prefere decididamente o excesso a menos. (Caráter típico da ahoretia, que não reside na
“natureza humana”, assim como crê o sujeito analisado, mas no ato de lucidez, seja também
juvenil, que conduz ao auto-adoentamento.)

À pergunta se não fora abordado pelos sentimentos comuns de atração e amor dos jovens,
respondeu que aqui se sentiu à margem dos outros; mas não pôde esconder que descobrira
com interesse, pela linha do excesso a menos, quanto poder de atração confere a recusa - é
claro que freqüentemente estimulada - de deixar-se atraído. Fez até mesmo uma teoria do
donjuanismo pela não-conquista, assim como fez uma espécie de teoria do não-ato e,
praticamente, da não-possessão, a que, para a sua sorte - reconhece ele, dada a situação
histórica em que tinha de viver - teve vocação. Fez igualmente uma teoria sobre os cinco
significados do não-A. (Aqui o detive, satisfeito com toda essa proliferação do negativo,
significativa para o ahorético no quadro de sua vida.)

Continuou confessando que se sentia dessa maneira com o negativo recebendo a “virtude”, e
começava a ser tomado de orgulho; mas compreendeu ainda nos anos de juventude os
limites da virtude vazia. Primeiro, ela arrisca a ser algo “para os outros”, se se baseia na
simples atitude virtuosa; sendo assim, ela se torna ligada demais a recusas, o que não
demonstra uma virtude verdadeira; finalmente, viu que, em seu caso, a virtude é antes
virtuosidade, e então começou a considerá-la como tal. (Cai em modo adequado, com a
virtuosidade, sobre o caráter da ascese neste nível mundano, de ser exercício e nada mais,
sobretudo nos ahoréticos piorados na doença.) Haja vista a que sentia uma certa hipocrisia,
os amigos dizendo-lhe às vezes que tem algo de jesuíta nele, quando não o honravam com o
qualificativo de “diabólico”, procurou compensar a insegurança de sua posição moral com
uma virtude que lhe parecia, desta vez, autêntica: a do “secretariado”. Através disso o
paciente compreende o pôr em ação, minimamente organizado, dos outros, através de sua
boa valorização com a ajuda de uma idéia que se atira em discussão, ou de uma programação
imperceptível nos encontros com os outros, até mesmo sem chegar à organização de
grupamentos (literários ou ideológicos) em que seja secretário-demiurgo. Agradava-lhe essa
condição de secretário, ou seja, de homem que se segrega e que se secreta a si mesmo,
atuando de algum modo a partir da sombra, porém de fato do meio das coisas, para ver os
outros desencadeando-se. Chegava até a arriscar a própria derrota, nalgumas discussões, a
fim de mobilizar melhor os outros (que formas menores pode assumir a alegria estóica da
derrota) e de permanecer depois à parte, invalidado na aparência, porém agente principal
ignorado. (Inesperadamente significativo: não nos atribuímos nós determinações, mas
favorecemos que os outros se atribuam. É uma “transferência de ação”, para o qual deve-se
estar atento no caso da ahoretia, com o seu jogo duplo de passividade e atividade inibida.)
Por esta linha, obtinha ele um estado de indiferença (típica à doença!) que o fazia dizer que
se deve amar a alternativa no seu inteiro, com ambas as possibilidades ao mesmo tempo: “Se
sou tocado pelo pecado, está bem, tenho a volúpia; se não sou, está bem, tenho a virtude.”

Tudo isso acontecia debaixo da falsa calma da primeira juventude. Não o atraíram -
perguntei-lhe - as experiências extáticas, fixadoras? Reconhece que se resguardou delas como
demasiado sedutoras, tendo sido retido pelo êxtase especulativo, sentindo-se bem por não
poder obtê-lo, senão após anos de “exercício” (claro que neste sentido desde o início gostou
do Parmênides de Platão); mas a sedução da música ele a sentiu por um período, vendo nela
um imensurável “exercício” do sentimento e fixando-se em Bach, em quem, mesmo além da
Kunst der Fuge, vê o exercício absoluto. Numa reflexão mais tardia, toda a cultura pareceu-lhe
ser assim: “Dom Quixote é um exercício, o teatro e Shakespeare a seu modo um outro,
Goethe, toda a filosofação, sempre exercício.” (Detive-o mais uma vez, retendo somente a
perspectiva do ahorético sobre o fenômeno da cultura.) Da poesia ficou sobretudo com a
palavra, em sua pureza, sentindo desde jovem que uma palavra pode ser acariciada ou
comiserada como uma criatura viva. Lamentou desde então a aventura da palavra “festa”, em
língua romena, um vocábulo tão eleito, que caiu nas mãos dos festeiros. (Talvez tenha razão
lingüística, mas na dimensão da vida a festa, no sentido bom, representa algo pleno,
enquanto os sensos que ele lamenta, como ahorético, encontram-se suspensos acima da
vida.)

Não sabe bem por que venerou tanto as matemáticas. Saboreou muito pouco delas, é
verdade, não as pôde conduzir até um fim, de medo novamente de não ser confiscado por
outra coisa que não o pensamento especulativo, porém manteve todo o tempo o culto a elas,
com uma devoção de indivíduo repudiado, retomando-as em vão por duas ou três vezes, em
anos mais tardios. Talvez tenha-lhe agradado nelas o fato de que representam uma nobre
forma de não-conhecimento, como a especulação, enquanto todo o resto das ciências tem o
apetite “primitivo” (o horror do ahorético) de conhecer determinada coisa, caindo na
mutilação e na unilateralidade que se pagam tão gravemente agora. Porém, assim como
insiste ele, não entende bem o que sempre o fascinou nas matemáticas, produzindo-lhe o seu
“desespero”. (Como se não fosse óbvio que, sofrendo da sua doença espiritual, era inevitável
venerar este modo supremo de não fazer nada, que são as matemáticas em seu momento
puro.)

Fato é que na idade de 25 anos retirou-se voluntariamente de qualquer engajamento. Com


exceção de algumas viagens de estudo (viagens de não-viajante!) e de escritos, não fez nada.
Declara decidido, reconhecendo contudo que de um determinado momento fora favorecido
pelas circunstâncias à inação: “Durante 30 anos não fiz nada.” (É um modo, novamente
característico, de ahoretizar a sua própria vida, não querendo ver nela nenhum tipo de
determinações. Foi-me necessário insistir. Não fez mesmo nada, no sentido de participação
direta? Nenhum ato de vida pública?) Confessou uma exceção, reconhecendo que
empreendeu contudo um ato de participação; mas escolheu, a fim de o realizar, o momento
quando “não havia mais o que fazer”. Agradaram-lhe na vida os vencidos, confessa ele de
novo. Soube apoiar uma ação quando tudo estava comprometido. (Claro que assim estava
destinado a comportar-se como um ahorético, homem na posição de partir para a guerra
depois que a guerra terminara, mais ainda da parte do derrotado.)

Mas e a guerra propriamente dita, que caía em seus anos plenos? Aqui animou-se um pouco.
A guerra foi uma experiência extraordinária, para ele. Sabia já de antemão como a guerra,
apesar dos seus horrores, atraía alguns homens. Dava-lhes a possibilidade de arrancar, de sua
caixinha misteriosa, um alter-ego que a vida comum não lhes valorizava: um homem por
exemplo que sabe comandar, um empreendedor, mesmo um herói. Depois, eram atraídos
pela guerra porque, numa sociedade em que viviam demasiado sob responsabilidades falsas,
a guerra os posicionava em perfeita e boa irresponsabilidade, limitando-os a uma única ação.
A ele, por outro lado, interessava a guerra por outro motivo: como inação (simplesmente!).
Não só que ela nos arranca de toda atividade sustentada, na vida privada e mesmo pública;
não só que nos atira a uma espécie de não-existir, em que é necessário apenas sobreviver e
viver, mas em si mesma a guerra pareceu-lhe uma imensidade de inação: nove décimos dos
homens não lutam (e ele foi um deles). Todo o mundo espera um momento culminante que,
quando ocorre, não mais está sob controle de ninguém, e de resto não ocorre nada
propriamente dito. Nada de novo no fronte ocidental é um título perfeitamente adequado ao
estado de guerra (segundo ele). Soube com encantamento, pelos outros, da “inação” mesmo
das primeiras linhas, como também do fato de que muitos homens fizeram leituras essenciais
justamente no front. A guerra lhe parece uma grande escola de não-acontecimento em todos os
sentidos, até ao acontecimento final, vindo sobre as nossas cabeças. (É a visão do ahorético
sobre o apocalipse.)

Depois veio o “estranho interlúdio”, sobretudo quando nos posicionamos mal na partida
desenvolvida. Mas, segundo ele, isso pode ser utilizado como uma vantagem, pois nos atira à
margem, à linha de fundo, como se diz no esporte. A vida “marginal” pareceu-lhe uma
condição adequada à sua passividade ativa, e ele admira tudo o que ocorre na margem,
começando pelas experiências do homem em situações-limite, até à condição de “marginal”,
que observou com satisfação na vida dos marginais transilvanos, dalém da fronteira dos
Cárpatos, com aquele outro estatuto seu e com outra realização que não aquela através das
determinações do cidadão comum do estado. Em seu caso, contudo, como também no de
outros, a marginalidade não era reconhecida e aceitada como positiva, no momento
respectivo, mas acusada e ameaçada como tal. Com o perigo de uma sanção, ele viveu anos
após anos com uma secreta volúpia (graças aos prazeres do ahorético!). Não era, então,
pressionado por nenhuma responsabilidade, como eram aqueles que eram ativos pela
participação, mas o paciente declara que sentiu, naquele estranho interlúdio, cada dia livre
como uma dádiva. “Um mínimo de perseguição não estraga na vida”, diz ele.

Ainda mais, justo sobre aquele período de “espera” (a espera de que lhe acontecesse algo!),
fala como se fora o momento mais animado de sua vida. Viveu, conforme o que diz, durante
cinco anos com a febre do “poder do negativo”, a qual agora ele aprofundava com Hegel,
mas sobretudo no extraordinário fervor de vida de Goethe. Pretende até mesmo ter tido
com Goethe - nas leituras feitas durante anos, de autores e comentadores mais renomados -
um contato incomum, de convivência e participação direta. Festejou e rejubilou-se com
Goethe, diz ele, ficou noivo diversas vezes e rompeu os noivados com ele, administrou um
estadozinho, depois fugiu para a Itália, voltou e dedicou-se a uma pesquisa pseudocientífica,
depois no mundo do teatro; discutiu, com o seu grande amigo e com Schiller, todos os
problemas da cultura, saturou-se da vida e retomou, com os amores tardios, a insaciedade
dela, fraternizou-se com Fausto e sobretudo com Mefisto, depois do que esboçou uma
saudação ao mundo e disse como Goethe: “Es ist gut.” (O sentimento do ahorético que vive
e que se atribui determinações caso veja o outro vivendo; experiência de “vida por
delegação”.)

Quando veio a reclusão, depois de bem 10 anos de espera ativa (diz ele), estava quase
cansado da intensidade da vida vivida (respectivamente não vivida) e, até um ponto, desejava
um tempo de reflexão, a fim de se regenerar. Se não houvesse registrado a experiência
amarga de que todas as coisas que fazemos e que não fazemos, até mesmo os nossos
isolamentos, têm um caráter social e se referem de certo modo aos outros, fazendo-os pagar
por nós esta entrada numa das poucas grandes solidões do homem moderno, que é a
reclusão, parecer-lhe-ia um encantamento, de momento em que as coisas aconteciam num
período em que as fúrias se haviam apagado e quando tudo se reduzia a um “exercício” e
uma demonstração, para a tranqüilidade dos espíritos e definitivo posicionamento das coisas
no caminho por que entraram. Aqui entre quatro paredes, com um, com vinte homens, ou
sozinho, podia-se reobter um pouco de vigor espiritual. Aqui, além de tudo, podemos
reobter a consciência de que cada um é um sujeito humano, enquanto o mundo exterior nos
havia transformado, até mesmo ou sobretudo com as suas situações boas, num verdadeiro
objeto seu. Naturalmente, a nossa subjetividade é muito delicada e, mal rodeados por tais
circunstâncias, vemos toda a nossa pequenez e nulidade como homens ou espíritos, com
uma memória que nos atira para além da soleira da consciência todos os seus aluviões
impuros, com uma imaginação que entra rápido em parafuso e com um pensamento que não
sabe dominar nem os processos de consciência, nem os problemas que nos colocamos. Com
tudo isso, pequeninos como somos - ein kleiner Mann ist auch ein Mann, cita ele de Goethe -,
tornamo-nos agora um verdadeiro sujeito e começamos a ver como os outros fora das
nossas paredes, o médico bem como o cozinheiro, ou Argos com os seus inumeráveis olhos
fixados sobre nós, são eles um tipo de objetos humanos, que nos servem e nos mantêm em
nós, e que no final das contas tornam-se-nos até mesmo uma espécie de aliados.

No fundo, se soubermos nos posicionar bem na vida (ou seja, recolhermo-nos bem,
segundo o ahorético), todos e tudo se nos tornam aliados, assim como lhe dizia uma vez um
menininho que “dar-te o troco” significa, pensava a criança, que não tens suficiente, e o
outro dava-te o troco. Mal chegado aqui ele sentiu a verdade do dizer daquele, que é válido
para a cultura inteira, onde não sabemos suficiente e a ciência do mundo nos dá o troco, mas
é até mesmo válido também para uma sociedade ideal, em que ninguém não tem suficiente,
mas a boa gestão e a solidariedade dos homens faz de tal modo com que seja dado o troco.
Mesmo em condições de inimizade, sustenta ele, se as coisas não conduzem àquela solução
desumana da “contradição” que é a anulação - uma condição primitiva, cuja barbárie só a
lógica moderna mantém na cultura, dizendo que A e não-A simplesmente se anulam -, então
uma das partes integra, e não destrói a outra. E depois como “não se sabe nunca quem dá e
quem recebe”, não se sabe nunca quem integra o outro e quem é integrado, como no
capítulo de Hegel com o escravo e o senhor. Não se sabe nunca quem vem com o seu
dinheirinho e quem dá o troco. (A visão idílica do ahorético com visão sobre a adversidade e
as feiúras do mundo.)

Quando saiu dessa experiência, pareceu-lhe que não tinha suficiente e que todo o mundo de
fora vinha dar-lhe o troco. Lembrou-se, então, de um dizer de Talleyrand, que transformou
conforme o seu pensamento: “Qui n’a pas vécu après la révolution n’a pas connu la douceur
de vivre.” Tudo lhe parecia incrivelmente bom e enriquecedor, na medida de suas esperanças
e ainda mais. Realizara-se no mundo a revolução técnico-científica, sem que ainda se
houvessem revelado as ameaças. Ela trazia promessas miraculosas, tanto para a sociedade
quanto também para o indivíduo: um controle, agora naturalmente organizado e não
tirânico, sobre a agitação econômica do homem, uma feliz racionalização, enfim segura, da
sociedade, um tipo de programação dela, com prognoses de redução da virulência e do
desequilíbrio do “novo”, uma programação até mesmo do indivíduo, começando pelas
formas de eugenia até dotá-lo com capacidades espirituais engrandecidas, se não se tratasse
senão de uma memória melhor; uma lenta homogeneização, que não suprimisse a
diversidade, mas que desaguçasse o fio; o espetáculo suportável do mundo, finalmente -
como no teatro antigo, onde o espectador já conhecia o mito posto na tragédia e não vinha
ver senão como fora dramatizado -, ou seja, de um mundo em que não há mais necessidade de
viajarmos porque estamos nele em toda a parte. (O paciente descreve dessa maneira a
imagem do mundo futuro no pensamento de um ahorético, com o seu perfume de
otimismo.)

Passaram-se anos em que não fizera nada, e agora envelhecera. Mas justamente neste
momento havia algo a fazer! (Atenção ao que segue, pois é o cúmulo do característico para a
mentalidade do ahorético.) Após tanto não-viajar, podia dizer que chegara a algum lugar.
Definitivamente, esperamos a vida toda que aconteça conosco algo milagroso, e não
acontece nada. Mas uma anotação de Creanga - “vê-se que também veio, de momento em
que não veio mais” - pareceu-lhe terrivelmente adequada para o fim da vida dos homens,
mas só alguns (eles, os ahoréticos) estão à altura de valorizar assim as coisas. A vida é uma
preparação para o envelhecimento, diz ele. Parece-lhe um dos grandes dizeres lamentáveis e
vãos da humanidade aquele que diz que “a vida é uma preparação para a morte”,
infelizmente um dizer invocado por homens da categoria de um Sócrates, de um Pascal, ou
até determinado ponto invocado também por um Heidegger. Mas é algo absurdo, se não
pensarmos, platônica ou orficamente, que iremos “retornar” da morte para a vida. A
preparação para um estado sem conteúdo e sem horizonte? Para uma nova etapa no melhor
dos casos? Para a inexistência, no pior? A vida é, por outro lado, uma preparação para o


  N. do T.: Ion Creanga (1837-1889), escritor romeno. Observador jovial e irônico da natureza
humana, mestre do estilo oral paremiológico.
momento em que, enfim, o homem pode fazer de si algo e pode estar verdadeiramente em
ação: para o envelhecimento.

(Qualquer comentário daqui em diante é inútil: as coisas falam por si. No máximo pode-se
sublinhar que está em jogo a revanche da ahoretia sobre a vida, com a senectude, pela
transformação do seu negativo no positivo da vida.)

Se a vida não é um crescendo, então ela permanece sendo uma simples questão de biologia.
Que esplêndido é o envelhecimento - não a velhice propriamente dita, se ela deve significar
decrepitude -, com aquele momento quando os estímulos secundários da vida se apagam, um
após o outro, e quando permanece o essencial do nosso ser; quando vemos que tudo visou à
direção deste ponto de acumulação da nossa vida, em que se condensa e se precipita a vida
inteira. Saímos agora debaixo da tutela da espécie, da sociedade, como também dos nossos
vãos entusiasmos ou ambições, e somos enfim homem, livre, sujeito humano, e não a
criatura manobrada por todos os outros. Não vivemos mais nem com esperanças vãs - que
aconteça algo, que o mundo dê um giro de 180 graus, que desça sobre nós sabe-se lá que
investidura ou felicidade -, não mais vivemos então sob “ce sale espoir”, como dizia um
escritor francês. Não mais podemos aguardar, procrastinar, esperar por nada. Mas, sendo
assim, é a única idade quando não mais vivemos em suspensão.

Cada homem está numa suspensão - e até determinado ponto é bom que seja assim, a fim de
não fazer afirmações a que faltem maturidade. Mas como fazer, nos anos mais jovens, com
que, permanecendo em suspensão, em abertura e preparação, não sejamos contudo seres
mutilados? Está aqui toda a sabedoria temporã, enquanto a sabedoria tardia representa, pelo
contrário, a libertação das nossas forças criadoras. Aqueles que envelhecem plenamente -
poucos, porém essenciais para o mundo - devem ser um tipo de “supernovas” da
humanidade: iluminam poderosamente, e depois se extinguem em explosão.

No final das contas, todas as pessoas ativas trabalham para este tipo de homens, a fim de os
sustentar. E como é que um terço da humanidade - pois tantos serão em breve os que terão
entrado na magia do envelhecimento - o terço que mais aprendeu com os anos, o mais
experimentado e iluminado de vida, como poderia ele representar a parte decrépita da
humanidade? Mas é uma ofensa para o homem, para o espírito, para o grande criador, ou
para a natureza. Que não cresça absolutamente nada em nós, ao longo da vida, e o
crescimento do homem seja apenas o dos dentes, das células, do esqueleto?

Mas agora, justamente, tudo o que se acumulou ao longo dos anos pode frutificar-se
verdadeiramente. Se é verdade que, no plano da criação científica, a primeira parte da vida
pode ser mais frutuosa, pois é necessária uma acuidade, uma atenção e uma energia do
espírito que são ligadas quase à animalidade tanto quanto ao espírito (quanta boa
animalidade não é necessária a um matemático ou a um físico, a fim de realizar descobertas),
por outro lado, para o mundo dos valores e a cultura humanista, a segunda parte da vida é
aquela verdadeiramente criadora. Não somente aos homens mas até mesmo às mulheres a
segunda parte da vida, com a sua libertação da natureza, cria as grandes ocasiões do espírito.
O que seria a humanidade sem a sua sabedoria? O que é ela hoje, sem tal sabedoria? Pois
talvez por isso exista tanta insegurança nos sucessos de hoje, porque a humanidade não teve
suficientemente, no passado, a ocasião do bom envelhecimento. Os homens se extinguiam
jovens demais.

Algo inesperado se oferece à humanidade, uma maturação pelos anos, que dê ao mundo
sentidos, não só conhecimentos, como deu o mundo jovem demais até agora; ou que dê
sentidos justamente a estes conhecimentos, vindos com a sua magia mas também com a sua
explosão vindos talvez prematuramente para cima de um mundo ainda jovem. Estamos no
momento em que todas as explosões podem produzir-se; se contudo saberemos encontrar
uma feliz implosão no envelhecer, o homem e o espírito vão se rejubilar no mundo.

Após a apresentação da ahoretia, tanto por casos gerais como também, excepcionalmente,
por um caso individual, a sua descrição resumida é simples: é a doença nascida por um rapto
anímico ou intelectual, conduzindo a uma brusca iluminação ou lucidez de consciência, que
faz com que o sujeito interdite a própria participação, domine as próprias determinações, veja o
positivo do não-ato e o do negativo, aceitando a derrota, assimilando-a e caindo em indiferença,
amando tudo o que se desprende do mundo como tal, da ascese e poesia até às matemáticas e o
espetáculo da revolução técnico-científica, colocando a vida e a história sob a ordem da razão, que
desfaz o novo e proclama a fertilidade da não-viagem. A ahoretia, como recusa das
determinações, revela a própria medida no momento da senectude, quando nenhuma das
determinações cegas do mundo profana mais o espírito.
VI. ATODETIA

Platão sofria de todetite então quando se esforçava por encontrar uma certa cidadela - ou
seja, uma realidade individual - sobre a qual pudesse aplicar a sua idéia geral sobre o estado.
Por outro lado, teria sofrido de atodetia (fazendo também outros sofrer) se houvesse aplicado
efetivamente a sua idéia sobre o estado. Pois nisso, se se houvesse realizado, a realidade
individual, que agora era o simples cidadão, conseqüentemente não teria sido considerada
(cada jovem, conforme a República, passaria a pertencer a todos, não à sua família, e ninguém
teria o direito, até os 50 anos, de deixar a cidadela), de tal modo que qualquer adepto
convicto da respectiva concepção devia recusar um dos termos do ser, o individual,
acreditando contudo que só dessa maneira se obtém, na cidadela ideal, o ser da história.

Com a todetite, descrita anteriormente, o homem tendia a obter o individual, sem nunca
atingi-lo; com a atodetia, por outro lado (da mesma origem grega tode ti = esta coisa mesma),
o homem o recusa conscientemente. Ela representa, como a ahoretia, uma doença da lucidez.
Tanto está em jogo a lucidez, no seu caso, que ela invoca o conhecimento límpido, um tanto
baixo e rudimentar. Por isso a atodetia surge também no momento de maturidade tardia dos
povos e dos indivíduos (o que pode ser muito cedo, historicamente), assumindo a forma do
cultivar, do modelar, do nuançar, do cerimonial, da cultura e, finalmente, do comentário.
Povos inteiros, assim como indivíduos, puderam ser um mero comentário a uma religião, a
uma ética, ou simplesmente a uma “idéia”.

Num nível mais elevado, o que seria a vida sem o seu comentário? Por outro lado - em
alguns povos do passado e talvez até mesmo de hoje - o que seria a vida social sem o seu
cerimonial? E mais ainda, o que seria a sociedade em geral, sem o domínio controlado das
realidades individuais? E tudo ocorre sob o signo de um conhecimento, que pode levar ou não
leva o individual em consideração, mas que se pode tomar em conseqüência com si até à
recusa do individual. Atodetia.

O conhecimento de que falamos não assume bem do início a forma clássica da cultura, mas
a do cultivo do homem pelo “sacro” e pela religiosidade. Graças a esta relação, justamente, a
maturidade tardia dos povos e dos indivíduos parece temporã na história, com o título dos
conhecimentos, respectivamente das crenças de todo o tipo, organizadas em práticas, se não
ainda institucionalizadas. Enquanto a maioria dos crentes se submetem ao cerimonial, alguns
à sua frente conhecem, ou crêem conhecer verdadeiramente, de tal maneira que, se na ahoretia,
com a recusa das determinações, caracterizante era o asceta ou o extático, na atodetia, por
outro lado, com a recusa somente do individual, caracterizante é o tipo do padre (do
detentor de verdades). Mesmo em nossa civilização perfeitamente profana, o homem de
cultura exercita, ou deveria exercitar, um sacerdócio, assim como para a atodetia típica da
China de tempos idos (em contraste com a ahoretia típica da Índia) o conhecedor da ordem
e do cerimonial tinha de manter continuamente um caráter sacerdotal.

Debaixo de tal atodetia endêmica viveram então os povos, até à afirmação da pessoa, ou seja,
do individual, na versão do herói (e talvez na do filósofo/sofista) da Grécia antiga, e mais
tarde na versão da pessoa cristã e finalmente da pessoa livre da cultura européia moderna. A
maioria dos povos aceitaram a história como uma história das delimitações pelas quais
atribuem-se, através delas, um senso geral (às vezes somente tribal). Um tal senso geral é,
como o sugerimos, aquele que produziram, num nível mais elevado, as grandes religiões.
Com o sacrifício do individual, grupos humanos inteiros se viram colocados a serviço de
uma idéia religiosa, trazendo-lhes antes nuanças e versões novas do que preenchendo os seus
exemplares humanos através delas. Assim, a idéia islâmica se matiza em variadas versões do
mundo árabe, passando depois para a versão dos povos otomanos, onde se demonstrou
demasiado larga e esterilmente fanática. Por sua vez, até mesmo o cristianismo, em que
surgia a idéia da pessoa humana e da sua remissão como pessoa, atribuía-se as bem
conhecidas delimitações massivas (Oriente grego, Ocidente latino), para depois, através da
idéia protestante, matizar-se em inumeráveis seitas, dentre as quais umas com capacidade real
de afirmação histórica. E, na Ásia, a idéia budista assegurou adesão a algumas comunidades
étnicas, a fim de se definir e redefinir por elas. Como não existir, então, históricos que vejam
o mundo do passado da perspectiva de algumas “idéias” (como faz Spengler, o histórico
atodético por excelência, que não mais vê o individual histórico mas o analógico, ou vê o
individual somente ao nível de oito grandes culturas), se as religiões do passado oferecem tal
espetáculo em que o herói propriamente dito é o geral?

Mas uma experiência histórica mais sutil, sempre sob o signo da atodetia, vivem as
comunidades alçadas ao nível da cultura refinada. Talvez os mouros tenham estado, num
determinado momento, num caso semelhante. Num passado mais remoto, o Egito e a China
puderam efetivamente estagnar no requinte e na matização de um grupo de sensos gerais
obtidos já prontos. Ainda hoje, a mesma China em que a idéia diretora decide, além da
pessoa, apresenta um esplêndido exemplo de conversão ao positivo do fenômeno da
atodetia, sob cujo signo estagnara demais. Ainda mais no momento presente do século XX,
mesmo na França, a mesma França que passou pelo que havia de positivo de algumas
doenças espirituais, executa de modo exemplar a experiência da matização, pelo espírito e
pela inteligência, das idéias européias criadas ou pelo menos sintetizadas por ela, com o risco
de uma estagnação histórica (ao contrário da atodetia, agora ativa, da China), do mesmo tipo
daquelas que aparecem em qualquer sociedade demasiado requintada, um risco que dobra,
no caso da França, o da cosmopolitização. Surgiu talvez, no grande país ocidental, o belo
momento do crepúsculo histórico, quando todos os sensos gerais se delimitam sutilmente,
até o seu próprio desaparecimento. Se contudo se falará que numa cultura como é a francesa
o individual não é recusado - como nos mundos asiáticos -, mas pelo contrário, afirmado ao
extremo, responderemos que a exacerbação consciente do individual (a afirmação de cada
um com todas as liberdades, até à vaidade de quaisquer afirmações e a histrionice: todos
fazem “trois petits tours et puis s’en vont”) equivale à sua recusa consciente. Existe ali uma
outra forma de atodetia. Quando o indivíduo conta tanto, ele não conta mais.

Poder-se-ia acreditar, após o acima dito, que a atodetia surgiria somente no nível histórico,
mais exatamente através da aniquilação do indivíduo, no interesse da comunidade e do
estado. No final das contas, todo estado e todo regimento prefere a si mesmo do que ao
indivíduo, acabando por ser a própria atodetia, ou seja, a recusa ao individual. (Daí o
protesto ocidental de hoje de tantos jovens e velhos contra a opressão, freqüentemente bem
camuflada, das formas estatais, mas daí também a profunda idéia marxista do
desaparecimento final do estado.)

Só que a atodetia não aparece apenas no supraindividual das comunidades históricas, mas no
próprio indivíduo. Esta doença espiritual pode ser, até mesmo mais do que as outras, uma
doença dos povos (de momento em que recusa justamente o individual), mas, com
segurança, representando uma doença constitucional do homem no nível do ser e de suas
precariedades, ela deve retornar também ao homem como ser individual.

Por ser entretanto uma doença proveniente em primeiro lugar do conhecimento (e de seus
eventuais excessos), ela surge no indivíduo sobretudo no nível da cultura. Por favorecer o
conhecimento - que em linhas gerais pertence ao geral, como devemos admitir com
Aristóteles -, a cultura acaba por ser uma familiarização com o geral (leis, teorias, idéias) de
todo o tipo, numa medida tão vasta que pode conduzir não só ao esquecimento provisório
do individual e à necessidade de o reencontrar, como na todetite, mas geralmente pelo
contrário, conduzir a um abandono deliberado de tudo o que seja individual, na convicção de
que só o geral e as nuanças que lhe trazem as determinações apresentam interesse ao
conhecimento e mesmo à realidade. A cultura conduz a um “sentimento musical da
existência”, como se disse por vezes, e a uma suspensão, de novo como se musical (das
“musas”, definitivamente, deidades da cultura inteira), sobre toda a realidade individual.

Assim como a acatolia será uma doença da civilização, a atodetia agora enfatizada é a doença
da cultura. Se em sociedade ela assume formas opressivas e mesmo tirânicas, no homem, e
em particular no homem de cultura, ela será talvez a doença mais bela e superiormente
criativa do espírito, demonstrando - se ainda fosse necessário - que aquilo a que somos
obrigados a denominar “doenças” significa, na ordem do espírito, verdadeiras fontes de vida
para ele. Poucos sentidos do homem podem ser mais nobres que a ocupação com o geral, e
se nas outras doenças o geral é colocado em jogo indiretamente, agora ele é conhecido e
contemplado para ele mesmo, sendo cultivado com um amor que vai até ao interesse por
tudo aquilo que pode acontecer mesmo a ele. Pois o geral também tem expiações, em seu
puro devir. É suficiente rejeitar deliberadamente toda a possibilidade de se macular com o
individual, a fim de o ver.

Certamente, o conhecimento pode debruçar-se sobre as vidas (especialmente pela técnica, na


cultura européia, e pela sabedoria humana, na cultura oriental), mas a sua alegria plena se dá
permanecendo suspenso. Existe um amor puro - no seu final um “amor dei intellectualis”,
como queria Spinoza - que pode assumir as formas mais humildes, sem começar a subjugar
em nome do geral. Vale a pena vivermos a vida a fim de ver como viveu Goethe, disse um
biógrafo inglês seu, portanto vale a pena recusar o teu individual diante da magia do geral de
outrém. Vale a pena vivermos a fim de registrar as delimitações, as nuanças, as vicissitudes
dos sensos gerais, seja por se tratar de uma natureza arquetípica (“on dit Goethe comme on
dit Orphée”, dizia Valéry), seja por se tratar de grandes instantes da cultura, a sociedade, o
pensamento, a natureza transfigurada ou os deuses.

A própria verdade, o que se tornou ela na cultura? Não algo que se debruça sobre o
real individual, mas - assim como se vê hoje na cultura dos grandes refinados - algo que se
deseja cultivado para si mesmo. E assim cultivado, a verdade cessa de ser estação final e
segurança atingida. Encanta-nos, pela cultura, justamente a sua transformação contínua. A
declaração de Lessing que, entre a verdade e a sua busca, ele escolheria a busca, parece-nos
hoje culpadamente rígida (ou busca, ou verdade) e até mesmo um pouco ridícula em sua
solenidade. Não estão em jogo a busca e a verdade, mas a própria verdade busca a si mesma
continuamente, delimita-se e determina-se melhor todo o tempo, integrando as verdades
velhas, que coloca em minoria. Chegou-se, neste momento de cultura superior que vivemos,
a um tipo de educação das verdades (assim como se falou de educação da natureza). O
mundo dos gerais, que parecia ser um mundo de verdades estáveis, transformou-se para a
razão do homem contemporâneo num fascinante mundo ideal, de laboratório, em que o
homem de ciência não só dispõe da exceção que confirma a regra, mas quer a exceção que
negue a regra, aspirando a que suas leis se desmintam, a fim de as poder alargar. Um simples
inseto que surgisse numa nave espacial seria uma fonte interminável de enriquecimento das
leis sabidas com relação à vida. Mas o inseto como tal, com a sua pobre realidade individual,
não seria objeto de interesse.

Assim como o homem que matiza e revisa as suas verdades, a realidade pode ser
observada também ela como se pondo em jogo regularidades, formações, leis que
incontidamente se especificam; mas, fazendo assim, elas se adaptam e se modificam, ou pelo
menos se matizam e se redefinem. A evolução das espécies, por exemplo, ocorre pela sua
educação e transformação, portanto pelas delimitações do geral em novas modalidades, que
são objetos de interesse por elas mesmas, não por exemplares individuais que obteriam. Com
ou além de Darwin, o evolucionismo oferece à razão uma ocasião de encantamento puro, na
medida em que não só as situações de vida podem ser infinitas mas também as espécies
(libertas da rigidez inicial de serem proporcionadas justamente pelo criador) não
permanecem nem elas na rigidez de uma estação final, mas evoluem elas mesmas
continuamente, podendo ser praticamente infinitas. A cultura traz este bom primado do
possível sobre o real, fazendo com que a razão veja - não só pressuponha, como na
concepção de Leibniz sobre os mundos possíveis - a riqueza da qual o real se encontra
carregado. Aqui se pode limpidamente fazer a diferença entre possível e possibilidade,
possíveis e possibilidades. Pois possibilidades tem somente o individual, que agora não conta
mais; no primeiro plano estão os possíveis do geral.

Também aos seres gerais acontecem muitas coisas, não importa o quão imutados eles
pareceriam a olhos comuns, dentro de um período limitado, pelo menos. O conhecimento
não tende a alçar-se somente à lei, mas pode ser também um reconhecimento das
vicissitudes da lei, ou da sua certificação, até àquela situação extrema sobre a qual falava
Hegel dizendo que uma natureza geral (o divino, em seu exemplo) demonstra efetivamente
ser verdadeira só então quando é capaz de confirmar-se através de tudo que a pode
desmentir (pela incorporação num homem histórico, dizia ele, no momento mais miserável
da história do povo respectivo).

Agora é simples relevar que esse encantamento espiritual, com a renúncia atodética
ao individual e tendo em vista somente as vicissitudes do geral, ocorre especialmente na
consciência de quem filosofa. Citei o caso de Spinoza, com a sua substância única, em cuja
margem não sobra lugar senão para um amor intelectual, mas podemos citar com
justificações mais sugestivas o caso de Kant. Ahorético na vida, ou seja, carente de
determinações, Kant é atodético na filosofia, no nível mais alto e criativo. Ele recusa - ao
contrário de um Hegel mais tardio, que procurará incessantemente obter o individual
histórico - qualquer recurso à realidade individual (até mesmo a exemplos, como se
observou) invocando somente o seu geral e as suas determinações do seio da realidade. Kant
oferece, com as suas “Críticas”, justamente um sistema de filosofia com acento sobre
fenômenos, ou seja, sobre determinações, tanto do mundo exterior como do homem. Em seu
caso entra em jogo uma das mais brilhantes modalidades de filosofar, em cujo quadro - de
ponta-cabeça diante do banal alçar-se do geral ao bom-senso filosófico - só o geral é aquele
que se atribui determinações e se delimita.

Na verdade, o individual se reduz, com o criticismo, à matéria e ao diverso que a


coisa em si oferece, desconhecida; portanto, o individual é decididamente recusado. Mas o
geral do qual parte o criticismo não é mais, como em Spinoza, uma substância única e
tirânica, mas uma sugestiva ordem geral, aquela das formas aprióricas. Com apenas 14 formas,
duas da sensibilidade (tempo e espaço), e 12 do intelecto, as categorias, Kant reencontra,
descreve, e até justifica toda a fenomenalidade do mundo. É um admirável código genético
que agora lhe propõe o pensamento, a fim de compreender sistematicamente todas as
determinações físicas e humanas, ou assim como declara Kant com um dizer conhecido
demais mas geralmente compreendido de modo banal, as determinações “do céu estrelado
acima de mim e do mundo moral de mim”. Com este geral que se atribui determinações
seguras, Kant ofereceu durante muito tempo o próprio estilo da filosofia, e o fato de
historizar a sua doutrina tornou contudo Hegel possível, a fim de que por sua vez este
favorecesse a visão da dialética materialista - tudo isso fala por si.

Mas no final das contas faltou a Kant o individual. A oposição de Kierkegaard diante
de Hegel, no tema da ausência ou da deformação do individual, deveria antes influenciar
Kant, cuja atodetia é categórica. Qualquer um se sente fascinado por Kant num determinado
momento, finalmente percebe que não tem acesso ao real concreto, particularmente àquele
humano (“formalismo ético”, diz-se sobre a doutrina de Kant), nem à história do homem. O
próprio filósofo percebeu que lhe escapa mesmo o real físico, procurando em vão, nas
páginas daquele vasto “Opus postumum” - editado agora completo, mas não lido por quase
ninguém -, fazer a passagem do geral e dos princípios para o real. Dominando décadas após
décadas, até mesmo retomado, após o interlúdio hegeliano dentre 1830 e 1860, o criticismo
foi abandonado, no início do século XX, por um lado em nome de um real físico mais
individualizado (outros espaços geométricos que não o euclidiano, outra física que não a de
Newton, uma física de campos individuais num sentido largo), por outro lado em nome de
um individualismo que era dominante e até mesmo estridente na segunda metade do século
XIX, prolongando-se até 1914. A perda (ou a recusa consciente do individual) no criticismo
foi um dos motivos que puderam reatualizar Goethe na filosofia da cultura, após o
empirismo, derrotado contudo por Kant, depois como conduziu mais tarde, na pátria do
empirismo, àquela filosofia analítica anglo-saxônica, fundamentada por um nominalismo que
o pensamento filosófico autêntico sempre repudiou.

Característico, por Kant, para a atodetia é o fato de que leva a razão na direção de um
pensamento crítico e dissociativo, enquanto a ahoretia conduzia na direção de um pensamento
extático e ao mesmo tempo de tipo matemático, assim como mostramos. A razão que recusa
o individual não tem mais de buscar a lei (Kant, ao contrário de Bacon, Descartes ou
Leibniz, não sonha e não propõe novas ciências), mas apenas o exercício da lei, no
conhecimento da natureza e do homem. De certo modo, trata-se agora de um primado do
conhecimento sobre a realização (só restando ao marxismo manter o primado da realização),
mas não o primado de um conhecimento que encontra as leis da natureza, mas antes de um
que as institua, ou que colabore criticamente em sua instituição. De qualquer modo é um
conhecimento que pertence à maturidade tardia - assim como mostrava Hegel a semelhança
da filosofia com a visão da coruja no fato do anoitecer -, uma maturidade que pareceria
caracterizar o espírito filosófico, mas que representa, como logo veremos, um degrau
humano mais largo.

Na verdade, mesmo espíritos estranhos à filosofia e devotados ao concreto ou ao


individual, como era Goethe, ou espíritos tomados pelo fervor cristão, como era o caso de
Agostinho, podem sofrer, num momento de sua vida, da atodetia da maturidade tardia. Num
tal momento, o homem não quer mais ser um fazedor; o geral não mais o solicita para a
realização, mas para um conhecimento como se desinteressado. Ele busca ver todo o tipo de
delimitações e matizações possíveis do geral, assim como Agostinho matiza e aprofunda,
redefinindo-a, a sua mensagem cristã, até àquelas estranhas Retractationes finais, em que o
autor cristão revisa, no fim da vida, em nome de dogmas cristãos obtidos pela igreja, a sua
própria doutrina, ou seja, pune-se a si próprio em nome do geral e, de certa maneira, esmaga
o seu próprio individual. É uma idade da cultura a que os homens de formato superior
chegam às vezes, assim como a viveu Goethe, no início modestamente, ao redor dos 50 anos,
aprendendo do farmacista Bucholz de sua pequena Weimar tudo o que precisava sobre as
ciências naturais, a fim de lhes sugerir uma renovação (com o tema do “fenômeno
originário”, por exemplo, que não era senão uma generalidade, uma “idéia”, como lhe dizia
Schiller), ou preferindo dar conferências científicas às senhoras da corte, ao invés de ser de
novo um primeiro-ministro do ducado. Como mais querer o fato puro, nesses anos da
lucidez, quando se viram todas as tortuosidades do mundo, como as de si próprias? Os
sensos gerais não realizaram fundações na medida deles nem em nós, nem naqueles que
gostaríamos de ter feito felizes. Por outro lado, têm neles a riqueza do possível, que somente
o pensamento pode abarcar e somente a cultura pode ilustrar. Não se pode viver de verdade
sem o comentário da vida e da realidade. Se é verdade que os fatos são o que nos mais
interessa nos anos maduros e não as idéias propriamente ditas, como confessava Schiller, o
idealista, a Goethe, o realista, é talvez justamente porque na idade da lucidez estamos na
condição de ler nos fatos brutos mais teorias, vendo em cada feito uma modulação do geral.

No momento da verdadeira atodetia cultural, não mais nos preocupam tanto os


substantivos e os verbos quanto os advérbios. Poder-se-ia dizer - e vamos mostrá-lo adiante -
que no século clássico francês, o XVII, não o sujeito mas os heróis interessavam, não a ação,
mas a modalidade, respectivamente o advérbio. O comportamento distinto, nobremente
heróico e variadamente motivado psicologicamente do herói trágico, interessava então
indizivelmente muito mais que os heróis e os feitos, os quais a tragédia francesa emprestava
sem pudor da tragédia e dos mitos antigos. (Mesmo em nossos tempos um Giraudoux
pareceu num determinado momento encantador para o simples comentário sutil que ele
fazia aos temas antigos.) Agora o comentário se encontra em primeiro plano e à maturidade
cabe modelar com sábia sutileza a criação emprestada, de nenhuma maneira a criação de
novos mitos.

Em momentos de maturidade (um pouco cansada), o criador de qualquer área sente


a necessidade de dar razão ao geral, determinado e reconhecido, limpando-o justamente do
toque com o individual. Esse último pode ser esquecido completamente, assim como ocorre
no gênero literário, ainda inaceitavelmente didático porém atestado no fato, que nos tenta,
com as justificações que seguem, a denominá-lo “musical”. O geral está presente sob a
forma de uma idéia, de uma disposição afetiva, ou de uma visão intelectual, e livres estão as
determinações, as delimitações e as suas nuanças. Criar nesta hipóstase significa explorar
todos os lados de alguns sensos gerais, podendo variar infinitamente um tema. (Pode ser que
nem sempre assim acontecesse na tragédia antiga, onde, apesar de que os temas fossem
limitados, algo criador e de qualquer modo um sentido vivo de atualidade e de participação
direta dos espectadores, que conheciam de dentro as situações respectivas, fazia com que o
ato de cultura não fosse um ato de cultura vazia, quase alexandrina, como hoje.) Não só a
música, portanto, mas também a literatura ou mesmo a pintura podem permanecer na
precariedade das determinações de um geral, enquanto a criação filosófica se reduz
verdadeiramente, na maioria das vezes, ao desenvolvimento, o mais organizado possível, das
delimitações de uma idéia geral, assim como ocorre em toda forma de barroco ou pelo menos
em sua forma clássica, onde nenhuma realidade individual não vem, geralmente, fixá-lo.

Ilustrei com Tolstói o aspecto extremo da atodetia na matéria literária: a recusa total
do herói e do individual. De fato, precisamos invocar no final das contas especialmente as
suas teorias e a sua atodetia de princípio (o ato de lucidez que faz com que ele reduza a um
“diferencial” até mesmo um Napoleão), do que as situações reais de Guerra e Paz, onde
alguns heróis, sejam principais, sejam mesmo secundários, conseguem obter uma realidade
individual graças ao gênio artístico do autor, que quis contudo esmagar a todos. O melhor
exemplo porém não pode ser dado com um autor, e ainda mais um que desmente pelo seu
gênio a mensagem teórica, mas através de uma inteira orientação cultural que, com o
requinte de certo modo estéril de sua maturidade, sublinhe a modalidade e o advérbio,
autorizando uma encantadora modulação eterna do geral, pelas determinações. Pois as
determinações, que podiam conduzir, então quando eram do individual, a uma infinidade
imprópria (mais uma manifestação e mais uma), desenvolvem-se numa boa infinidade,
controlada, então quando existem manifestações do geral. Elas vêm agora exprimir os
diferentes lados dele, a sua politropia; e assim como não mais nos saciamos observando a
beleza em diversas versões, da mesma maneira, por toda a parte do mundo dos valores e da
cultura, portanto no seio das manifestações espirituais, pode aparecer uma boa infinidade, de
momento em que o espírito pode totalizar-se com si não importa quanto, ele permitindo, ao
contrário das realidades das áreas inferiores, acumulações infinitas. Não existe excesso de
verdade, de beleza ou de bem.
Por esta linha de cultura superior e de livre variação, sob o controle contudo seguro
do geral (por vezes conhecido, outra vezes desconhecido, como ocorre no plano da vida
social), inscrevem-se não só a temática da necessidade que é talvez profundamente ligada ao
geral, mas também a da liberdade, que parece ligada ao individual, sem ser assim até o fim. A
necessidade é geralmente mal entendida, por causa das oposições rígidas em que se encontra.
(Geralmente os dualismos, necessários didaticamente, falsificam a vida do espírito, que de
fato não permanece congelada em oposições e dualismos.) A necessidade opunha-se ao
possível, como mais pronunciadamente opunha-se ao contingente, mas de certo modo pôde
opor-se também à realidade (como simples existência de fato, não de direito, como daria a
necessidade) e de qualquer modo opôs-se à impossibilidade. Nada porém não mostrava
melhor o seu estatuto incerto do que a impotência de a definir através de qualquer uma de
suas contradições. De fato, nenhuma das oposições acima mencionadas da necessidade tem
um caráter verdadeiramente contraditório (a necessidade englobando a possibilidade, como
se disse, e do mesmo modo com as outras); por outro lado, uma outra modalidade,
geralmente não inscrita no quadro lógico das modalidades, terá um sentido contraditório,
sem que desta vez seja um sentido rígido: a liberdade.

Sobre a liberdade não se fala geralmente a não ser como de uma modalidade “lógica”
(são mencionadas só a necessidade, a possibilidade, a contingência e a realidade), pelo
simples motivo de que o termo de liberdade parece ter sido confiscado pelo seu sentido de
valor humano. Mas a liberdade é também das coisas, de certo modo, não só do homem;
existem graus de liberdade nas coisas - poder-se-ia dizer, mesmo timidamente - e existe uma
margem no exercício dos gerais, que não pode ser denominada senão liberdade. Pois a
liberdade não é do indivíduo nem do individual, nem mesmo das determinações como tais.
A assim chamada liberdade do indivíduo de atribuir-se quaisquer determinações não
representa a verdadeira liberdade, mas a possibilidade vazia; e a liberdade das determinações
de não se totalizarem num geral (as liberdades, no plural) merece ainda menos o nome de
liberdade, como sendo somente o caos da diversidade pura. A liberdade é do geral e consta
das delimitações que ele pode dar a ela ou que se lhe podem ser dadas. Só quando nos
instalamos no geral somos ou podemos ser livres.

O fato de que a liberdade seja do geral nos pode reconduzir ao homem. A partir de
Hegel falou-se justamente que o homem não obtém a sua liberdade senão como
“necessidade compreendida”. Mas o que pode significar isto, senão que, só quando conhece
o seu geral - e não como simples indivíduo, quando exercita as suas determinações de
maneira anárquica -, só então ele se torna livre de verdade? E o que significa ser livre sob a
necessidade, sob a lei e não fora dela, senão que a própria lei pode ser modelada e que o
geral não representa algo rígido, de qualquer modo não modulável, monolítico, fixador,
como na modalidade clássica da necessidade, mas é um geral suscetível a se moldar e obter
variadas determinações?

A liberdade significa a inflexão do geral, e no homem ela é a consciência de sua


inflexão, uma vez atingido o geral. A necessidade comum fazia do geral um selo colocado
sobre as determinações, e o selo podia ser, logicamente, transferido de uma determinação a
outra (como no silogismo da modalidade onde a necessidade passa da premissa à conclusão,
nos exemplos de Aristóteles). Sempre do ponto de vista lógico, por outro lado, a liberdade
compõe um campo das determinações; e pode ser que apenas uma teoria dos campos lógicos,
ao invés daquelas das formas lógicas, como geralmente se faz, pelo menos na lógica clássica,
saberia pôr em jogo a modalidade da liberdade, que os lógicos até agora não tiveram
necessidade de invocar porque o seu geral estava congelado, como as espécies de Linné.

Só que, sendo assim, a liberdade traz alguns riscos, talvez também para a natureza, de
qualquer modo para o homem. As delimitações do geral podem entrar em colisão entre si; a
liberdade de uma consciência pode entrar em conflito com a de outras, e a cultura respectiva,
como teatro dessas liberdades que têm a segurança do geral, mas sem mais ter a do
fixamento do geral numa situação individual, pode ser o próprio teatro, espetáculo, debate. O
irmão do filho pródigo sabe bem que faz o que deve em nome do geral (do espírito de
família) que respeitou e dentro do qual atribuiu-se todo o tipo de liberdades verdadeiras, não
ilusórias como o filho pródigo. Mas o pai deles toma a liberdade de dar outra interpretação
ao mesmo geral, do espírito de família, trazendo o perdão ao filho ao invés de punição, até
mesmo a comemoração do filho com o abate da vitela mais gorda. E então o irmão se põe à
parte e se torna empedernido, desiludido com a sua lei na interpretação do pai. Pode ser que
só agora o filho, tornado a casa e incluído de novo na ordem da lei, vá saber atribuir-se uma
forma superior de liberdade. Quem sabe se não vai tornar-se artista, poeta ou pelo menos
memorialista, com graça e liberdade, invocando agora e compreendendo - melhor que o
outro, cuja experiência de vida fora sumária - aquela lei a que possa dar delimitações e
nuanças inesperadas. Pode ser então que o filho, uma vez de volta, torne-se contemplador e
comentador, ardendo de uma boa atodetia.

Imaginemos que o filho pródigo torne-se biólogo e, num determinado momento,


esboce, como Jacques Monod nos nossos dias, um tipo de filosofia da biologia. Ele não
escreveria um trabalho como Acaso e Necessidade, pois sabe de muitos acasos e muitas
necessidades, assim como de diferentes lados do geral. Falando sobre a Vida, ele levaria em
consideração o fato de que esta Vida com maiúscula se delimita firmemente também ela, não
sendo um simples acaso transformado em necessidade, como dizia o nosso contemporâneo.
Definitivamente, para além da passagem para outra espécie no quadro de sua evolução,
pode-se imaginar, mas não mesmo ver, o modo como se modula e como pratica variações
sobre o mesmo tema uma só espécie. Se as diferentes variações de uma espécie parecem ter
explicações satisfatórias pelas condições externas a que a espécie fora submetida, ou por
quem sabe quais circunstâncias evolutivas, pode-se igualmente imaginar uma margem de
variação do próprio geral biológico, uma variação que exprima a tensão interna e o seu grau
de liberdade, mesmo então quando ele próprio não quebra o seu molde a fim de passar para
um outro geral. No fundo, de momento em que saiu da fixidez das espécies, é natural que
saia também da fixidez de uma espécie. Imaginamos, neste sentido, que se poderia fazer o
estudo da natureza (como também por vezes se fez) por unidades maiores do que os
exemplares individuais, unidades “ecológicas” dizemos hoje, mas que não mais sejam
indispensavelmente espécies determinadas, mas espécies ecologicamente ou de qualquer
maneira moduladas.

Desta vez, porém, justamente o individual é aquele que faltaria (não o geral, ou seja, a
Vida, como em Monod e outros), fazendo com que o acaso se elevasse sobre ele. E é
claríssimo que o acaso não mais expressaria, como no primeiro caso, um banal concurso feliz
de circunstâncias externas, mas antes trairia uma aptidão interna do geral de atribuir-se
sozinho aquelas variações que se podem impor no seio da realidade. Tal acaso “interior”
seria um acaso aberto para a individualização. De qualquer modo não se pode denominar
acaso (respectivamente necessidade) apenas o concurso de circunstâncias, como quer o
pensamento trivial; acaso existe também no concurso de tendências dos processos e da
intimidade das coisas.

Se contudo o filho pródigo, de volta e incluído de novo na ordem do geral, não fizer
a filosofia da biologia, nem da ciência em geral, mas filosofia pura, ou cultura humanista com
horizonte filosófico, talvez até mesmo arte, mas consciente de si e carregada de reflexão
como é a arte de hoje, então aconteceria a ele perder-se nas modulações e vicissitudes do
geral até à recusa atodética de todo individual. Tendo sobrado e contemplado sozinho, com
o seu desprendimento de tudo o que é real, o geral pode rarefazer-se ainda mais, tornando-se
em totalidade “abstrato” e fazendo com que também uma determinada arte tenha a coragem
de denominar-se abstrata. O geral então perderia, no requinte do pensamento culto, qualquer
capacidade modeladora, tendo, com as realidades individuais debaixo dele, não a relação viva
da lei íntima à sua incorporação (como na Idéia platônica generosamente compreendida),
mas a relação da lei externa ao seu exemplar individual, um exemplar perfeitamente
reproduzível e indiferente como tal, exato como nas matemáticas. O individual recaiu na
estatística.

Não resta dúvida de que tal desconsideração desejada, através da cultura e da lucidez,
pelo individual pode conduzir a uma nova forma de inexistência (pois a inexistência também
assume, como sentimento do nada, vários tipos, diríamos, seis tipos, assim como assumiam
os acasos e as necessidades variados tipos). Desta vez seria uma inexistência do
conhecimento e da cultura, portanto verdadeiramente uma inexistência do homem. Pode ser
que também as coisas tenham a sutileza de dar aos seus estados gerais algumas nuanças e
delimitações que não objetivem nada, simples disposições, intenções e sugestões de
realização, que recuem em seu éter. É certo contudo que o homem possua essa sutileza, que
o conduziu à cultura. Ele partiu da necessidade de conhecimento, por um lado, da de
contemplação, por outro, ambas frutuosas então quando se debruçam sobre o real humano e
quando enriquecem o ser, posicionando-o melhor no mundo. Um bom primado do possível
sobre o real cria então espaço no mundo do homem, enriquecendo-o com todos os seus
recursos de possível do real; as coisas entram na ordem de sua generalidade, encontrando
para si isotopias e variantes naturais. - Mas no lugar de um possível do real se infiltra às vezes
o possível vazio e, ainda pior, o “possível impossível”, como diziam os medievais, aquele que
está destinado a permanecer possibilidade e a não se tornar de modo algum e jamais
realidade. E todas as delimitações do geral, mesmo também esta última, podem atrair o
conhecimento e a contemplação, fazendo com que ambos deixem atrás de si a exigência do
individual - aqui como realidade humana - de fixar numa situação real, ou pelo menos de
objetivar artisticamente, as extraordinárias peripécias do geral. O cansaço da cultura, aquele
taedium que os antigos pressentiram, exprime naquele momento demasiado pouco da
experiência amarga do homem de cultura; aquilo que experimenta, nessa demência das
determinações e delimitações sem âncora no individual, é a inexistência da cultura, assim
como hoje alguns dentre os ocidentais sentem as coisas. É uma inexistência de certa maneira
branca, diríamos; não uma inexistência negra, mas branca. Podemos nos lembrar da
formidável página sobre o branco e o seu terror do romance Moby Dick, com a baleia branca,
de Melville, que falava sobre “esse gigantesco véu branco, que envolve todas as coisas”. E
acrescenta: “Seja talvez porque o branco é menos uma cor do que uma ausência de cor,
sendo ao mesmo tempo a mistura profunda de todas elas?”

Pode ser que cada doença espiritual tenha uma cor característica para ela. A atodetia
de qualquer modo tem o branco. A nossa cultura tornou-se como uma página branca.
Quando pensamos nas leis que chegamos a conhecer por toda a parte, com a sua riqueza
jamais esperada (quem imaginaria poder conhecer as profundezas do Universo e mesmo do
homem, com o seu inconsciente e subconsciente?), pode-nos vir à mente que tudo se tornou
semelhante a um disco de Newton, com infindavelmente mais cores do que aquelas sete. E,
apesar de tudo isso, logo que invertemos o disco a fim de obter um sentido do inteiro,
acontece-nos como no caso do disco newtoniano: tudo se torna de novo branco.

Da perspectiva do passado, aquilo que ocorre hoje seria catastrófico: quanto mais
exploramos e mais encontramos, tanto mais o volume da nossa ignorância cresce, ao invés
de diminuir. O que ganhamos em matéria de conhecimento e ação? Só o fato de que nos
abrimos novos horizontes de conhecimento e ação. - Então um antigo cético poderia
considerar confirmado tudo o que nos acontece com o átomo, com a célula, com a vida,
com o homem da antropologia ou da psicologia, com as línguas, com o espírito, com a
história. Não o combaterá contudo ninguém, desta vez.

É-nos evidente, pelo contrário, que todas as complicações surgidas, no nosso


conhecimento e mesmo na nossa ação, têm uma larga parte benfazeja; pois esperamos criar-
nos novas complicações e impasses, com outras perspectivas de conhecimento, assim como a
física e a técnica de hoje, afogadas como estão no conhecimento e na manipulação do átomo
com as suas partículas, esperam contudo chegar à utilização das partículas neutrino, que são
mais leves e talvez mais expliquem o que resta do que os elétrons. E mais a quem pode
mandar ao ceticismo o inexplicável do universo da célula, com aquelas cerca de 100.000
substâncias presentes nela e com os seus ácidos nucléicos - ou o inexplicável do ser humano,
aparentemente mais do que nunca, mais enigmático para si? Pois, é verdade, a cultura
científica por um lado, a humanista por outro não mantiveram a promessa de dar respostas
fechadas. Mas elas fizeram algo mais significativo: mostraram o quão poucas coisas
significaria um inventário de respostas fechadas.

Existe algo de negativo, existe algo de positivo nesse resultado a que chegou, sob a
forma da cultura, a atodetia do homem moderno? Positivo é o fato de que a liberação da
cultura de responder diante do individual (liberação, no passado, do político, da aplicação, da
resposta no imediato, mesmo da modelação humana) deu extraordinárias possibilidades de
investigação, que puderam levar, indiretamente, a surpreendentes embora indesejadas
supraposições sobre o real. Negativo por outro lado é - para além dos riscos ao homem, à
sociedade e mesmo à Terra que essas inesperadas supraposições sobre o real trazem - o fato
de que a acumulação de conhecimentos, seja também em vão, não foi acompanhada de uma
de sentidos. Surgem pela cultura grandes orientações gerais, idéias, técnicas de conhecimento e
mesmo técnicas espirituais, que se atribuem, em sua generalidade, todo o tipo de
determinações, modulam-se e refinam-se não importa quanto, ou podem não dizer nada ou
deixar espaço a dizeres de nada. O homem se ergue, pelo conhecimento, à maestria científica
ou artística, até elas, surpreende-as e até mesmo enriquece as delimitações no seio da cultura,
sem poder tirá-las do vago de sua generalidade. Os sensos gerais benfazejos existem, a sua
adaptação ao real é preparada por todos os pedagogos do mundo, mas a cultura pode muito
bem permanecer e geralmente permanece efetivamente suspensa acima das consciências
individuais, sendo retomada a cada geração, como as colheitas, tanto melhores, como piores.
Da domesticação da animalidade do homem e até ao seu bom posicionamento metafísico no
mundo, passando pela sua educação moral e a abertura para um si alargado - quanto de tudo
isso obtém a cultura, que tornou-se contudo para o homem a irmã mais velha da natureza?

Após alguns séculos de primado da cultura e das suas técnicas sobre o homem
natural como também sobre a sociedade natural (que se equilibra com um simples sistema de
crenças em seu meio, como aconteceu até o início do mundo moderno), o balanço poderia
preocupar, até mesmo às vezes poderia deixar espaço ao sentido trágico da cultura. E se este
pensamento parece entretanto teórico demais ou sumário demais, então colocaremos a
seguir o caso sutil porém evidente da música, na cultura moderna, daquela arte que, em sua
simplicidade, educara contudo plenamente os antigos, enquanto que com a sua riqueza
polifônica e com o seu requinte deixou recair em estado de natureza bruta justamente o
povo que a cultivara mais e melhor. Pelo menos com a música, o trágico dos gerais, não
importa o quão variados, de poder permanecer como o espírito flutuando sobre as águas e
de ser assim percebidos por uma consciência de cultura, em sua nobre futilidade, dá ao
homem de hoje um aviso que diz respeito àquilo que é benéfico e que poderia ser maléfico
na doença espiritual da atodetia.

Comentando a música dos salmos, um medieval dizia: “Aquele de cima não ama a
música em si mesma. Ele não tem necessidade de canto, como não tem necessidade de
imolações; se aceita o canto… é por pena diante da fraqueza do homem” (Combarieu, vol. I,
p. 196).

É bom - independentemente de sentidos religiosos - que os músicos e os amantes de


músicas pensem às vezes num dizer como este e se perguntem se nalgum lugar, sobretudo na
música moderna, não se vêem as marcas de uma fraqueza humana. A extraordinária maestria
atingida pela música, juntamente com toda a sua magia, não pode esconder uma certa
precariedade, revelando-a mesmo mais perturbadoramente. A arte do belo em movimento -
como se disse - ao lado da poesia e da dança, enquanto a arquitetura e as artes plásticas
constituem a arte do belo imóvel, suscita diante de nós belezas, seqüestrando-as depois para
o insabível e o indizível. Ela nem mesmo não tem como a poesia um sentido falado, que se
mantenha como sentido na mente. Traz consigo uma nobre generalidade, mas dos estados
de alma, não dos estados de espírito; e, depois que a modela infindavelmente, resolve-se na
irrealização da própria generalidade, sem poder ancorar-se em nenhum lugar. Falta-lhe a
condensação em torno de algo individual. É uma esplêndida corporificação da precariedade
ontológica característica da cultura e do humano refinado. Tem geral, tem determinações
inefáveis deste, mas não tem individual.

Num momento do passado, embora completamente pobre de meios, a música tinha


um encontro melhor com a realidade. Enquanto era só melódica e monódica, a música
possuía poderes mágicos, curava os homens, erguia ou fazia os outros crer que erguiam
muralhas com ela, abrandava as feras, as almas e mesmo os deuses. De quando tornou-se
polifônica, ela se concentrou sobre si, produziu extraordinárias estruturas e construções, mas
não estremeceu a mais ninguém. A nossa música “que tem na origem uma genial criação da
Idade Média, o contraponto” (Combarieu, p. 259) que não mais faz com ele simples
construções ornamentais ou “arquiteturas sonoras”, como no início, tornando-se um
verdadeiro discurso musical, tem algo contudo das prédicas sem objeto de São Francisco aos
passarinhos e aos animais. Ela transmite algo, mas não se sabe bem o quê, parece modelar as
almas, mas não se sabe bem como ou se positivamente e, acompanhando depois a dança - e
agora ultimamente esta dança das imagens que é o espetáculo cinematográfico -, ela recusa
contudo qualquer sentido funcional e auxiliar, afirmando a sua independência absoluta por
uma gratuidade aristocrática e por um perfeito rigor, quando não lhe agrada tornar-se
iniciática. Mas mesmo assim também, ela é aceitável para quaisquer ouvintes, pois lhes
encoraja a falta total de responsabilidade espiritual e lhes lisonjeia o espírito crítico elementar
ao nível dos mais baixos julgamentos e discriminações, aqueles à base de: gosto - não gosto.

Já se pôde dizer, surpreendentemente, que só a forma vulgar da música moderna, o


jazz - como emanação de outro tipo de uma alma primitiva -, reencontra um senso pleno da
música. Mas isso ocorre na ponta de baixo. Pode ser que também na outra ponta, onde a
música hoje tende a ultrapassar os sons e as notas, tomando como seu material os ruídos
reais, com a música concreta, ou ruídos e sons fabricados, com a música eletrônica, até
mesmo aqui também vai ocorrer um bom reencontro de si da música, na medida em que o
ouvinte dos ruídos e dos sons do vasto mundo poderia chegar um dia a algo da ordem da
harmonia das esferas celestiais, sobre que falava Pitágoras. Ou, a fim de falar de modo mais
plausível, pode ser que, conseguindo passar do registro das ondas sonoras àquele das ondas
eletromagnéticas, a música ou a sua extensão sábia venha a dominar a comunicação entre os
homens e com os objetos cósmicos, venha a poder controlar, orientar e modelar de novo
verdadeiramente, desta vez num nível superior, transformando em realidade a ação mágica
que o ilusório reivindicava no início. Pode ser que a música seja como a lógica matemática;
esta criou em vão, até encontrar a sua aplicação a mecanismos, enquanto a música se
aplicaria a organismos e ao espírito. Quem sabe em que vasto individual não será captada um
dia esta generalidade irreconhecida, ainda casada com nada, da música?

Até então, nos modernos, a música é como uma alma exilada de corpo e que relataria
a ele, do exílio, o quão bela é a união das almas com o corpo.

Numa alma sem corpo a atodetia pode acabar, como recusa do individual, se essa
recusa perde o caminho voltado ao real. Vimos, em resumo, como surge a doença espiritual
em questão ainda cedo na história, com a “alma” das comunidades, uma alma que pode
muito bem recusar as consciências individuais, por tanto tempo enquanto estas ainda não se
alcem à consciência da pessoa. O individual que não tomou consciência de si expressa-se
então efetivamente através do geral, ao invés de ser esmagado por ele, como acontecerá mais
tarde. É um mundo do conhecimento ou pelo menos da crença em algo geral e, como tal, um
mundo do sacerdócio em nome deste geral, assim como é um mundo da regulamentação
cerimonial adequada. Pôde-se estagnar historicamente graças a tal sacerdócio, mas hoje
alguns povos asiáticos reentram na história justamente sob o seu signo também da atodetia.
A doença espiritual em jogo é uma doença que, como tal, pertence à cultura, o que pode ser
fermento ou, pelo contrário, a expressão da decadência refinada, tanto nos povos como
também nos indivíduos.

Na escala individual, a doença representa o cuidado com o geral como o interesse


exclusivo por ele, indo até à educação das verdades, ou ao acompanhamento das vicissitudes
do geral. Tendo em vista que os fatos gerais não estão determinados, o interesse cai sobre o
possível, não sobre o real, sendo a atodetia característica de um tipo maior de pensamento
filosófico, com espírito crítico e dissociativo. Ela não é menos ativa em quase todo autêntico
homem de cultura, no momento da maturidade, quando o regozijo intelectual e as
considerações teóricas primam sobre as ações, portanto quando o comentário da vida torna-se
mais interessante que a vida, a modalidade e o advérbio mais preciosos que a substância
temática e o verbo. Neste sentido, uma boa infinidade de nuanças torna-se possível, assim como
um sentido pleno da liberdade, ao contrário das liberdades vãs do indivíduo a que falta um
senso geral.

Mas a liberdade, que não é senão do geral e conduz à inflexão dele, porta consigo
riscos. Ela enriquece a compreensão do geral com uma visão mais nuançada sobre as
necessidades, respectivamente sobre o acaso, e sobre a lei, invocando porém uma lei que pode
admitir somente um individual estatístico, ou mesmo não objetivar em nada real,
permanecendo ela nas zonas do possível. Uma inexistência do conhecimento e do regozijo é
então o resultado último, e ao sentimento desta inexistência pôde experimentar o mundo
contemporâneo chegando, da glorificação da cultura como um paraíso de gerais, ao senso
trágico da experiência da cultura. Nada melhor que a música do mundo contemporâneo, tanto
na sua criação como também na modalidade de recepção leviana e perfeitamente
irresponsável, mostra melhor as marcas, sobre a alma humana, da atodetia.
VII. ACATOLIA

Enquanto a atodetia era a doença típica da cultura, a acatolia (recusa do geral) é a da


civilização. Sendo assim, ela caracteriza o nosso tempo - em sua versão européia, decisiva para
o resto do mundo - com tanta evidência que, embora seja uma doença constitutiva do
homem como as outras, merece ser analisada no final, como se oferecesse, no espírito do
nosso tempo, o traço culminante.

Parece-nos muito mais fecundo - ousemos dizer - estudar a civilização sob o signo da
acatolia do que como fez Spengler em O Declínio do Ocidente, como um fenômeno de cansaço
e de estação final de qualquer “cultura”. Agindo assim, o pensador alemão não podia ver
senão o negativo da civilização. Mas a recusa consciente do geral, como no caso das outras
duas recusas (da ahoretia e da atodetia), está longe de ser um fenômeno de cansaço e de ser
situado somente no passivo do homem, como declínio e início do fim. Spengler não pôde
dessa maneira compreender, segundo nos parece, nem a plenitude, diríamos romântica, da
revolução técnico-científica, nem as grandes exasperações da inteligência revoltada contra o
geral (como em L’Homme révolté de Camus), nem as gigantescas explosões, informacionais ou
demográficas, e para informacional o sentido bom, não o de “curiosidade”, como diz ele;
nem a renovação esportiva, diríamos, do nosso mundo, nem o seu envio extraordinário do
pensamento aos limites - o que não depende absolutamente de decadência -, conduzindo
decerto até ao nível das catástrofes mais intensas que a humanidade alguma vez tenha vivido,
mas também aos grandes problemas renovadores que se põem ao homem, assim como
finalmente não pôde ver, na civilização como fenômeno de decadência, as suas
extraordinárias promessas para o homem e para o reencontro de si, justamente pelo
desmentir de si (como diria Hegel) do espírito!

Vivemos sob o signo da civilização, ou seja, no seu elemento, que tornou-se o quinto depois
das quatro grandes forças: terra, água, ar, fogo. Em particular, vivemos no elemento do fogo
frio, da eletricidade e dos fluxos eletrônicos, que levaram a um maquinismo diferente daquele
do fogo ainda quente, do primeiro maquinismo. Um passo mais para trás, e esta civilização
pode ser, pelo menos materialmente, uma civilização do fluxo da energia solar, que estamos a
captar (e com a fotossíntese poderíamos captá-la totalmente para o homem, para além da
“natureza”), ou seja, de certo modo vivemos sob o signo da luz, assim como dizia Louis de
Broglie (talvez também um pouco os Livros de Moisés) que tudo começou com a luz.

Mas da luz partiu também o espírito já faz dois séculos, com o iluminismo. Por ser a razão
demasiado rica e por envolver por demais o espírito, com todos os alicerces do coração, a
fim de poder ser só luminosa, o homem moderno pôs em jogo a inteligência pura, a fim de
poder praticar o iluminismo total. O iluminismo surgiu como contestação contra todos os
gerais, sobretudo aqueles dados prontos (de Deus em primeiro lugar) e, com a sua acatolia
original, dir-se-ia que não estava destinado por definição a reencontrar nenhum geral. Mas
seguramente que, como parte da razão, a inteligência teria reencontrado o espírito em sua
plenitude, se houvesse sido deixada em seu exercício verdadeiramente livre, assim como
desejava. Sobretudo, a inteligência não podia querer, para si e para o homem, só conhecimentos,
e mais alguns só positivos, mas teria acabado por buscar também sentidos. A inteligência se
rejubila, é verdade, em ceticismo, porém só num dado momento; depois se restabelece e,
com a morte do espírito pisando sobre a morte, ela deve chegar à luz, de momento em que
nasceu sob o signo dela.

Só que a inteligência do iluminismo não se exercitou livremente até o fim. Ela foi obnubilada
por outra coisa, a saber, pelo empirismo, pelo utilitarismo, pelos sucessos da técnica e por
alguns grandes sucessos puramente materiais (que conduziam à sociedade de consumo),
falhando, pelo menos por enquanto, em sua grande vocação, no ser histórico do homem e
no ser, simplesmente. Aquele esplêndido lema iluminista “Ilumina-te e serás” (modestamente
surgido mesmo na versão iluminista romena) foi capaz de se transformar num “ilumina-te,
mas porás em perigo o teu ser”, que vive hoje com surpresa, diante do assombro, o mundo
ocidental. Nem a acatolia iluminista, contestação de todos os gerais, podia, como toda
doença espiritual, manter-se demais em seu desajuste, que tanto trazia o positivo num
primeiro momento. Mas, assim como mencionamos, ela se encontrou e se casou com outra
acatolia, a do mundo anglo-saxão, mais tenaz do que a dela, talvez mais crônica; e assim
bastardizou-se.

Na verdade, esta parte dos povos germânicos do norte, o mundo anglo-saxônico, parece
efetivamente sofrer de acatolia crônica. O mundo do norte foi curioso: não produziu, nos
séculos dentre 800 e 1200, quando desvelou seus mitos, uma religião grande de verdade, nem
epopéias do nível daquelas gregas ou índicas, nem mesmo ou pouco mais do que quaisquer
estados históricos (o estado inglês sendo antes constituído por franceses, como se disse),
algo que relevamos nos Vikingues, mas fez surgir em seu seio duas vocações sem equivalente
no resto do mundo: a vocação filosófica e musical nos alemães, ao lado das corporações de
ofício, a empírica-prática e técnica nos ingleses, com a invenção da máquina, esta última
vocação transformando finalmente a face do mundo. De qualquer modo a acatolia do
mundo inglês é agressivamente formulada no “nominalismo”, ou seja, na doutrina que
defende que tudo o que seja de ordem geral representa um simples nome. A inteligência
iluminista não teria dito apenas isto; mas intimidou-se e nem ela falou mais.

Só que, antes de ver os limites deste acatolismo, em que ambas as partes, o iluminismo
europeu e o nominalismo anglo-saxão, puseram o que tinham nelas de mais vigoroso (não
era possível que o pobre grande iluminista Voltaire não admirasse desmedidamente o espírito
inglês), vejamos os seus grandes sucessos. O que dizer sobre o fato de que o mundo anglo-
saxão é um mundo da acatolia, com o que pode haver de bom e de mau nessa doença, ele
nos parece tão evidente quanto o fato de que a Índia esteja sob o signo da ahoretia, o que a


  N. do T.: Clara alusão a um verso da oração cristã-ortodoxa entoada por ocasião da Páscoa: “Cristo
ressuscitou dos mortos / Com a morte pisando sobre a morte / E àqueles dos túmulos / Oferecendo a vida”.
faz estar permanentemente acima e abaixo da história, ou a China sob o da atodetia, que a
manteve séculos inteiros na recusa à história, a fim de a precipitar agora, na história tornada
amadurecida para a atodetia, ou seja, para a recusa ao individual.

Os sucessos da acatolia moderna são de tal natureza que, resumindo-nos à de tipo inglês
(com a versão por vezes excessiva e deformante do mundo americano), poder-se-ia dizer
que, após a II Guerra Mundial, quando a Inglaterra perdeu um império, o espírito inglês por
outro lado conquistou o mundo. Conquistou pelo menos o mundo ocidental e a parte da
Terra que se encontra sob a sua influência. Na verdade, os valores anglo-saxões lá se
impuseram - e alguns deles, como vai-se ver, exercitam uma atração também no resto,
sobretudo sobre a juventude - numa medida inesperada e que poderia fazer com que os
ingleses tivessem outro orgulho que não aquele externo e vitoriano (de simples traje, de
morgue, self-respect exagerado, ritual profano e smoking) do passado próximo. Sem
falarmos da língua inglesa (com toda a deformação americana), constituindo também ela
parte do espírito, até mesmo dominante, que se impõe por toda a parte numa determinada
zona do mundo, inclusive a Europa Ocidental, com a sua simplicidade ou mesmo simplismo
gramatical e com a sua incrível apatia lexical, que a fez apropriar-se do tesouro de outras
línguas, em particular da latino-francesa, assim como no século da pirataria os ingleses,
dentre os quais alguns renomados, apropriavam-se dos tesouros espanhóis; uma língua
essencialmente “masculina” e sóbria, como dizia dela o lingüista dinamarquês Jespersen, a
qual justamente por isso perde qualquer profundidade do feminino, perde todo o contacto
com o original e permanece condenada a não permitir absolutamente nenhum acesso ao
pensamento filosófico, mas que em troca - talvez justamente com a sua precisão (pois se
ocupa somente com a proposição e não também com o logos pleno) e com a sua riqueza
emprestada, por outro lado, como também com os seus extraordinários sintagmas possíveis -
obtém no espírito a grande poesia, ao lado da linguagem científica, assim como obtém o
canto, a denominação justa, o slogan, o humor e a intitulação ideal, sendo definitivamente
um piado esplêndido e perfeitamente organizado do homem. Pensemos, para além da língua,
nos valores da sociedade e da civilização contemporâneas, que são quase todas de origem
anglo-saxã, começando por baixo, com o jogo, o esporte, a dança, o tipo de festa (o chá das
5 tornado five o’clock), passando por tecidos, vestidos, salão, comportamento social, depois
pelo Parlamento, sistema de liberdades individuais, meeting, na cultura através do primado da
sociedade sobre o herói, o que conduz ao jornal, à revista e de qualquer modo ao romance
(surgido no século XVIII na Inglaterra), até o romance policial por um lado, a ficção-
científica por outro, a fim de chegar ao plano da cultura, pelo primado do empirismo,
indizivelmente mais operativo do que o positivismo francês, e sobretudo pelo experimento e
pelo fisicismo - onde grandes físicos europeus, como Planck, Einstein, de Broglie, Bohr,
Heisenberg, puderam mudar a imagem sobre o mundo, mas os ingleses com um Faraday e
Maxwell mudaram o mundo - para chegar à máquina e depois à eletricidade, que são
certamente criações ou descobertas do espírito anglo-saxão, também a cibernética de hoje,
ou num sentido mais vastamente cultural, para chegar ao culto da exatidão no lugar da
verdade e a essa lógica matemática cuja origem anglo-saxã ninguém pode contestar e que
ameaça fecundar mas também devastar, começando pela lingüística, todas as outras
especialidades da cultura humanista. Pensemos, concentrando as coisas, na parte dominante
do espírito anglo-saxão nas novidades técnico-científicas de hoje - que têm a sorte de mudar
até mesmo a natureza humana, pela primeira vez na histórica conhecida - e então
compreenderemos que a acatolia deste espírito anglo-saxão significou e significa algo no
mundo.

Definitivamente, se nos concentrarmos sobre as inovações técnico-científicas de hoje, que


tornaram possível a acatolia européia em geral e particularmente a inglesa, é claro que tal
inovação foi possível justamente porque a acatolia tornou-se num determinado momento
preponderante no mundo europeu. Constatou-se que os egípcios poderiam ter chegado
também eles a técnicas mais avançadas, pelo menos em matéria de navegação a vela, porém
não eram suficientemente acatolizados para sair de seu quadro histórico; os gregos, por sua
vez, só de acatolia não sofreram, pelo menos em seu grande momento, deixando assim o
experimento e a técnica - a que estariam à altura - no lugar da jangada, do artesão comum; os
indianos, que também podiam obter a técnica, sobretudo com a sua inventividade
matemática, sofriam demais de ahoretia para se interessar por determinações técnico-
mundanas e pelo “domínio da natureza”. (Que bela é neste sentido a lenda com o rei indiano
que pediu que se cobrisse com couro o mundo todo para não ferir os seus pés, no que um
sábio mostrou-lhe que seria suficiente que ele pusesse couro nos pés, sob a forma de calçado
- o que faz com que um sutil pensador moderno diga: é mais fácil e mais sábio adaptar o
homem à natureza, do que adaptar a natureza ao homem, como quer por vezes a técnica.) E
qual historiador da cultura duvida que na China, o império que queimou as próprias naves
pelos séculos XV-XVI, para não ser tentado a lançar-se no largo oceano, e onde apareceram
tantas invenções técnicas, poderia nascer um vasto mundo tecnológico? - Mas a Europa foi
estremecida pelos calafrios da acatolia, dobrando a natureza do bom Deus com os feitos
técnicos do homem.

É contudo um milagre, que o pensamento filosófico deveria - ao contrário de um Heidegger


e de tantos outros, às vezes até mesmo homens de ciência - olhar para a sua bondade, antes
de condenar o homo-technicus, o qual, coitado, começa a condenar-se e aterrorizar-se
sozinho, como acontecia com Norbert Wiener. Pois a partir de agora pode-se dizer: por que
assustarmo-nos tanto com os riscos da nossa civilização, que é uma civilização do fogo frio?
Não comportaria também a civilização do fogo quente riscos igualmente grandes, pelo
menos na sua escala? Quando o homem descobriu o fogo, devem ter aparecido muitos
sábios que diziam: qualquer criança pode atear fogo às florestas, num momento de seca, ou
às cidades feitas de madeira. Pode ser que o grande incêndio de Londres - depois do qual a
cidade foi finalmente sistematizada - tenha sido causado por uma criança, enquanto que
sobre Nero se diz às vezes que tenha posto fogo em Roma não tanto sob o signo de sua
loucura, mas por certas concepções edílicas. Os riscos da nossa civilização são aqueles de
qualquer outra civilização.

Tudo isso, começando pela inovação técnico-científica, representa contudo só as conseqüências


da acatolia. É bom pesquisarmos a doença em si mesma, a fim de ver depois quais são os
seus limites e os seus limites para o homem, mais exatamente os limites e os riscos espirituais,
para além daqueles acidentais.

Como qualquer doença do espírito, a acatolia é identificável no homem, nas suas idades e
seus engajamentos, da mesma maneira como surge, numa outra escala, nas sociedades e nos
povos. A recusa ao geral era um gesto provocador em Don Juan, através do qual ilustramos
desde o início a acatolia; ele é, contudo, como recusa, ao mesmo tempo uma tentativa digna,
por vezes sutil e positiva, outras vezes resignada do homem de ser e de fazer com que as
coisas existam sem investiduras de exceção. Expressão de lucidez e de maturidade tardia, a
acatolia, seja como fenômeno de cultura, seja como simples fenômeno de vida espiritual,
como uma renúncia a sensos gerais incontroláveis e ao reencontro de respostas diante de
sensos individuais reais de conhecimento (positivismo), surge do seio da pessoa e do todo da
sociedade histórica. O que interessa agora é, para além de quaisquer sensos gerais, a
aplicação das determinações e das manifestações de um modo ou de outro em situações
reais. Deixadas livres, as manifestações do mundo e do homem representam também o seu
caos. Têm necessidade de uma fixação e de uma verdade. A verdade das nuvens do céu é a
chuva. Existe tudo o que existe agora e aqui. O último critério do ser, e portanto da ordem,
sob tal perspectiva, é o individual.

Se a austeridade das formulações teóricas pode ser abandonada por um momento, então
poderíamos dizer que deve existir também no seio da realidade aquela situação que surge
num romance policial: tudo o que acontece se organiza ao redor de uma culpa singular. Deve-
se portanto captar o individual, deve-se pegar o culpado. Que na falta de um senso geral, esta
afirmação do individual tenha nela um quê de absurdo ontológico? Mas seja não o mais
sentindo, como na experiência do homem comum que se satisfaz com hic et nunc, seja
proclamando-o aberto, com o humor britânico, ou com a gratuidade (André Gide) e com o
absurdo contemporâneo. É o nonsense da história pura, o acontecimento histórico
simplesmente, assim como tem também a natureza uma larga parte de história insignificante
em si; é a condensação e a concentração cega em situações de realidade que são todas
extinções dela. Poder-se-ia dizer que está aqui o não-ser, mas num certo sentido pôde ser o
ser da história; e de qualquer modo foi a exatidão dela. Ernest Renan encontrou de verdade,
seguindo os seus rastros até Jerusalém, Jesus de Nazaré. (É verdade, encontrou só o de
Nazaré, não também Jesus Cristo.)

De fato, existiram também no passado épocas e mundos sem acesso ao geral, e então a
história significava, como no caso dos fenícios, em particular como no dos cartagineses, a
concentração sobre algumas realidades individuais - cidadelas ou comunidades por base de
interesse - de determinações históricas carentes de um senso geral. Pode ser que os povos do
comércio sejam assim; de qualquer modo os venezianos foram plenamente assim (que “idéias”
tiveram eles?), assim como hoje, com o primado do econômico organizado e da boa
administração, os holandeses, os suecos e os suíços tendem a se tornar assim, talvez também
os ingleses, ao término de uma experiência histórica entretanto mais plena. De maneira
significativa, em todos estes povos a história escrita se retransforma numa crônica, ou seja,
na fixação de eventos cantonais e paroquiais, em sua nudez. É de outra maneira, no plano
literário, a época das memórias, do jornal e das gravações em fita. Mas não mais surge, na
falta do senso geral, a alegria do biográfico da primeira versão da história, assim como o
concebia Goethe. É apenas a objetividade ou o positivismo dos processos verbais.

Estes processos verbais, com material variado porém sem horizonte histórico da vida de uma
sociedade, acumula-se de tal modo que, com a sua explosão informacional, parece desfazer a
história escrita e constituída em obras. Lá onde falta o geral não há mais lugar, na verdade,
para a história num sentido superior, assim como a falta do código jurídico leva, no caso do
povo inglês, à simples prática jurídica. Talvez a Europa Ocidental inteira se prepara para
entrar na experiência histórica que denominaríamos a do “particularizante”, com a sua
inclinação sobre o individual.

Mas a mesma inclinação sobre o individual sem interesse pelo geral, acima descrita como
experiência histórica, pode ser encontrada na consciência do homem em geral. O homem
não se demora para sempre no regozijo das delimitações que pode produzir ele ou que
podem ter os sensos gerais. Existe conhecimento neste regozijo, não existindo porém
também sabedoria prática de vida, mas antes uma forma de evasão. Vem a idade da lucidez,
quando o homem se pergunta o que deixa ao mundo e o que tem valor ou não, neste mundo,
de modo algum sobre os mundos possíveis. Agora deixa de lado os sensos gerais,
procurando ver quanto significa cada coisa, respectivamente quanta riqueza de
determinações poder-se-ia condensar em cada situação individual. Goethe escreve Dichtung
und Wahrheit e, mais tarde, mas na mesma idade do homem, pode dizer que, debruçando-se
sobre a vida passada, tudo o que se sente é: admiração. Sabedoria de vida significa
consentimento à vida. Depois que se quer mudar tudo, de fato ou pelo menos em
pensamento (que opera sobre os gerais), agora se aceita o mundo assim como é. Pois em
algum lugar ele também é bom, de outra maneira não existiria, não se falaria sobre ele e não
se sustentaria. Quando um pensador como Hegel saltou diretamente, com a sua
extraordinária maturidade última, nessa idade de término do homem, ele então deu razão a
todas as coisas, dizendo: “tudo o que é real é racional”. Mas ele tinha um senso de vasta e
superior generalidade para o racional, enquanto o homem da idade de hoje o diz apenas com
a cegueira da sabedoria frustra.

Tudo está em ordem agora. Alegremo-nos em ver os fatos carregados de toda a admiração
do mundo, sem mais buscarmos neles os sensos gerais. Assim como falamos das nossas
vidas, das nossas lembranças e dos nossos acontecimentos, da mesma maneira se organizam
também as coisas, cuja toda tentativa de legalização geral lhes mostraria um lado inadequado
ou mesmo excessivo e absurdo. “Wie es auch sei das Leben, es ist gut”, dizia Goethe em
nome de todos aqueles que chegaram à idade da lucidez acatólica.

Em tal idade dizemos a nós mesmos que somos demasiado injustos com a vida imediata. Ao
longo da vida inteira mais amamos nela algo “ideal” do que a sua realidade, amávamos uma
espécie de geral conhecido ou ignoto, que traria com ela a realidade. Mas a piedade diante de
deuses é geralmente a impiedade diante de homens e coisas. Em anos tardios, depois que
apreendemos tantas formas de piedade, uma sabedoria ou uma certa resignação nos pode
fazer reencontrar com piedade o imediato. Não vimos a tempo nem a beleza, nem a bondade.
Existe mais verdade no mundo em nosso derredor do que na tua filosofia, Horácio -
diríamos agora, tomados por uma acatolia sagrada, junto com Shakespeare. E então,
deixamos os gerais no céu deles, e amamos toda a riqueza de determinações acumuladas em
seres humanos e realidades particulares.

À alegria de fazer justiça ao real imediato corresponde plenamente uma das modalidades de
criação do homem como artista, uma modalidade que a técnica moderna veio favorecer
ainda mais. A acatolia encontrou, com o homem moderno, os seus próprios meios e a sua
própria arte. Na verdade, criar pode significar não só obter a projeção do individual em algo
geral, mas, para além de qualquer geral, a condensação de um mundo de manifestações ou
mesmo fantasmas em destinos e corporificações individuais, que os fixe. Devido ao fato de a
visão ser o principal sentido fixador (todos os outros sentidos tendo como se uma tendência
para o difuso) e aquele que de verdade parece definir no homem a virtude de delinear tudo,
da idéia (ligada também ela à visão para os gregos) até à imagem real, este gênero de criação
será o do visual. Tudo se pode traduzir em imagem, como se o ato criador constasse de pôr
ou transpor um mundo numa tela. Surgem desta maneira, num mundo da acatolia, as novas
artes da tela, em primeiro lugar a cinematografia, com sua veleidade de fixar no individual
tudo, até a imaginação mais livre, mas também com a sua miséria de não ter o equilíbrio
artístico último - que é também ontológico - dos sensos gerais.

Pois por que se fixariam essas determinações, livres como são de qualquer senso geral, antes
acima de algumas realidades individuais do que da de outros? É como uma forma de
posicionamento não posicionado, este posicionamento da fixação em simples imagens. As
manifestações que deveriam ser fixadas acabam de fato na instabilidade dos casos
particulares (como no romance moderno), que devem proliferar infinitamente, a fim de
responder, dessa maneira, com algo da ordem da quantidade à carência fatal do sentido. Lá,
onde não existe nem mesmo o eco do senso geral, tudo sucumbe à infinidade estúpida dos
casos particulares. A alegria de fazer justiça ao real se transforma - como também as nossas
vidas vazias de sentido - no sentimento da nação.

No imediato contudo não parecia existir nada. “Cultivemos o jardim”, diz sempre um
Voltaire, reencontrando a alegria do particular e do imergir-se nele. A cada vez o positivismo
- da mesma maneira estupidamente chamado positivismo, sendo a eletricidade “negativa”,
que de fato é positiva - tinha, pelo menos num primeiro momento, a ilusão de uma boa
conversão na direção do seu individual e idiomático. Mas é como se nos interessássemos
pelos “dialetos” do ser, sem nos ater também às suas “línguas”. Um tipo de logos geral se
demonstra contudo ativo, com a abertura para o universal, em todas as línguas do planeta,
assim como nos “códigos” do ser. Mas a sua recusa nos faz mergulhar nos fechamentos que
apenas fecham e nas limitações que apenas limitam. Pode ser que todas as coisas do mundo
façam assim, num determinado momento seu, cansadas da tensão do geral que solicitara
demais delas. Enterram-se nelas mesmas entrando numa fatal implosão. Com esse mundo de
estrelas mortas, onde nenhuma forma de geral não é mais ativa, o nada de extinção cria um
lugar para si no seio do real; uma vasta vacuidade, ou a experiência frustra do nada.

Quando não está em jogo justamente o sentimento do nada, permanece aquele de uma
contingência universal para as nossas realidades e vidas. E o contingente não representa de
maneira alguma uma expressão do positivo (no máximo, uma expressão “positivista”), assim
como é o possível, com o qual ele é por demais confundido. O contingente demonstra ser,
de certo modo, o exato contrário do possível, que é sempre suscetível a se propor novas
determinações, enquanto o contingente fecha, concentrando as determinações sobre uma
situação individual. Como possibilidade acontecida, o contingente não constituirá uma coisa
só com o acontecimento possível: a contingência de uma situação representa justamente a
extinção de suas possibilidades. Tudo foi acaso.

Existe, nesta linha, ainda um tipo de acaso diferente daquele que invocou Jacques Monod e
que significa a instituição casual de uma ordem que depois se tornava necessidade. Poder-
nos-íamos assim perguntar se não cabe o esquecimento do geral também no seio da
natureza, ou se nisso não se inscreve uma liberdade diante do geral, uma acatolia, que a
conduza à sua própria dissolução como ordem natural. Os próprios biólogos se perguntaram
se as espécies têm ou não realidade bem definida, e os médicos, se não se deveria talvez falar
mais de doentes do que de doenças, respectivamente de exemplares individuais e não de
classes. O acaso mostraria então um novo lado, ligando-se desta vez aos gerais; constaria da
sua aparição possível de um instante. Uma natureza que transgredisse permanentemente
tudo o que captasse ou mantivesse forma de generalidade, derrubando assim todo molde e
concentrando-se somente sobre os seus exemplares irreproduzíveis, poderia ser concebida
pelo menos como uma hipótese de trabalho.

No fundo, se alargarmos a “natureza” até o homem, poder-se-ia dizer que hoje chegou-se
justamente a uma tal concentração de tudo o que seja natureza sobre a coletividade humana
(ou seja, o homem retomando em si toda a natureza) compreendida como um vasto
individual no seio da vida, enquanto a natureza não mais se importa com o resto,
permitindo-se extinguir uma após a outra espécies inteiras que pareciam indispensáveis ao
seu equilíbrio. A própria natureza terminaria, então, naquilo que parecia, segundo um
Schopenhauer, ser privilégio e sinal de vigor para o homem: a capacidade de suicidar-se. Fato
é que através do homem a natureza se esvazia, assim como o homem pode se esvaziar
sozinho através de alguns excessos da civilização, trazidos justamente pela acatolia. A própria
natureza “civilizou-se”, alçando-se até ao homem e entregando-se a ele. Sair do estado de
selva, deixando que a criação mais honrosa que ela pôde instituir, o homem, disponha de si
mesma.

E com a sua acatolia - que não é mais metafórica, assim como pode ser considerada na
natureza - o homem dispõe efetivamente disso. A coisa é surpreendente, num primeiro
momento. Se a recusa ao geral deve nos fazer voltar à realidade imediata, à piedade diante
dela e nos fazer ocupar de nosso jardim, então haveria necessidade de que o homem
acatolizado, por exemplo aquele posterior ao Renascimento, se descobrisse rousseauista na
natureza, com toda a natureza, de qualquer modo não contra ela. Poder-se-ia até mesmo
dizer, à primeira vista, que o homem moderno não seria de modo algum um acatólico, de
momento em que buscou na natureza as suas leis científicas, portanto, o geral. - Mas aqui
vamos responder: ele não invocou mais a natureza como um geral independente de si e não
seguiu as leis deste inteiro, mas seguiu as leis livres, que são tantas quantos são os sistemas
locais de relações; e as leis como relações (a idéia de função, que substituiu aquelas idéias de
substância da Antigüidade, como dizia Cassirer em Substanzbegriff und Funktionsbegriff) não são
mais verdadeiros gerais concretos, mas gerais abstratos, um tipo de determinações que se
aplicam sobre o indivíduo. As relações têm direito “geral” apenas naquele abstrato de suas
formas, matematicamente simbolizável. As matemáticas (juntamente com o experimento, ou
seja, a natureza distorcida) são aquelas que decidiram não a ontologia, mas a problemática do
ser no mundo ocidental. De tal modo que, no final das contas, o que restava da natureza e da
piedade diante de seu individual?

Restava tão pouca piedade que, como numa perfeita acatolia, onde sobrevivem somente as
determinações e o individual, o mundo moderno teve de inventar o seu Universo de
individuais, mais exatamente o técnico, que viesse a dobrar o Universo dos individuais
naturais. Não só que o universo da técnica não reclame para si o ser (como poderiam fazer
aquelas realidades absolutas dos sistemas de crença, míticas ou religiosas, do passado), mas,
ainda que pertença também ele no fundo a uma forma de demiurgia, consolida-se em
ciências que, como as matemáticas, a física matemática, a lógica matemática, se recusam
abertamente a quaisquer problemáticas do ser, tratando a realidade no máximo como uma
“matéria”. E, na verdade, como poderiam reclamar algumas determinações vazias (uma asa a
mais que se oferece com um avião mais rápido, ou um dispositivo a mais, como uma
máquina de calcular qualquer coisa porém nada determinado) um estatuto de ser? O
universo a que a civilização técnica conduziu é num primeiro momento - se aparece numa
sociedade que não tem um bom posicionamento nas idéias - exatamente como aquele
universo do início sobre o qual falava um pré-socrático, em que mãos, pés, troncos de
homem e fragmentos de coisas flutuavam caóticos no elemento universal.

O que tem o homem a fazer em tal mundo que não “vai” mais, um mundo que não mais tem
nele a verdade, seja também pressuposta, do geral, é claro: ele tem de encontrar a segurança,
através da exatidão. Agora a exatidão substitui a verdade. A segurança da parte cura a
insegurança do inteiro. Assim como característico para as ciências contemporâneas
dominantes é o fato de que não põem mais em jogo axiomas mas simples postulados, ou de
que os seus axiomas são postulados bem escolhidos, que conduzem a deduções bem
asseguradas, característico é igualmente o fato de que a exatidão, a precisão, a necessidade de
dizer que isto é isto e não é senão isto se impõem. Dissemos e fizemos tudo o que tinha de
ser dito e feito. É o mundo da filosofia analítica, da lógica matemática, da cibernética, assim
como é o mundo do romance policial ou do engenheirismo para si mesmo, econômico e
social, o mundo da sociedade de consumo.

Desta vez se pode ver claro, em especial no indivíduo, o que é o mundo da acatolia em si
mesma, com as suas manifestações como se clínicas. Os desajustes do acatólico tornam-se
tanto quanto virtudes: a ordem no mundo imediato (no quarto, nas idéias, na fala, na
sociedade), a precisão em tudo o que se faz, o self-control, a dignidade diante de outros e
diante de si, a civilização, a polidez. Que extraordinária é essa página do pensamento chinês,
onde aparece a “queda” sob a qual vive o acatólico. “Quem perde o Tao permanece com a
virtude; quem perde a virtude permanece com o amor aos homens; quem perde o amor aos
homens permanece com a justiça; quem perde a justiça permanece com a polidez.”

Nem falemos de Tao, sobre qualquer geral último, no homem da acatolia, de momento em
que justamente isso ele repudia; mas nem a virtude plena lhe resta, pois também isso deveria
consolidar-se numa concepção ética. Ele ainda poderia ter amor aos homens, mas ele se
sustenta numa ordem, ainda geral, do coração, num ordo amoris, e o acatólico não aceita o
geral nem mesmo sob a forma de uma simples ordem que preexista. Então que lhe reste a
justiça? Mas - assim como se vê no direito inglês - ela não pode constituir para o acatólico
mais do que uma prática boa e consagrada pela tradição, uma justiça consuetudinária,
baseando-se assim em casos ao invés de princípios. O que fazer então para que o mundo,
respectivamente a sociedade, vá? Que se invoque o respeito ao homem pelo homem, a
dignidade pessoal e interpessoal, o fair play, a civilização, a polidez. E com simples “polidez”
a sociedade é contudo possível, recebendo mesmo por vezes uma inesperada e esplêndida
consistência! Até mesmo no malfeitor deve-se despertar o sentimento do respeito e do fair
play: os policiais ingleses não portam armas consigo, para que nem o bandido faça uso de
armas, se mantiver nele um resto de humano. Uma das mais admiráveis “sociedades” da
história pôde surgir com base na simples polidez, ativa nas consciências individuais tanto
quanto átomos da sociedade. Pois a sociedade é aqui apenas a soma dos indivíduos, nada
pertencendo ao próprio inteiro.

Tal indivíduo dotado de self-respect e com respeito pelos outros torna-se no final das contas,
na experiência consumada daquela família exemplar da Bíblia, o irmão do filho pródigo.
Desiludido pelo fato de que a sua lei não era também a lei do pai, ou de que o pai criador da
lei derrota aos seus olhos a lei própria, o irmão mantém a submissão, mantém a consciência
do dever, mas agora esquece-se voluntariamente da lei. Torna-se acatólico, ele, aquele que
experimentara mais do que ninguém o geral. Não se interessa mais pela verdade, mas apenas
pela exatidão. Mas pode fazê-lo até ao excesso. Assim vai acontecer com o pietismo (essa
seita de irmãos do filho pródigo) no plano da experiência religiosa; assim vai fazer o
positivismo no plano do conhecimento (com esses positivistas, uma espécie de irmãos
também eles diante dos filhos pródigos da sede pelo conhecimento científico e filosófico).
Agora entra em jogo a submissão no objeto e no limite (o positivismo fala claramente sobre
os limites do conhecimento), no plano político a liberdade com a sua responsabilidade, ou
antes as liberdades, com a necessidade de conduzir a um estado entendido como uma
“coexistência das liberdades”; no plano econômico surge o liberalismo (laissez faire, laissez
passer), mas numa medida em que não conduza à anarquia; no plano moral e social, uma
espécie de respeito mútuo como “deixa-me deixar-te”, ou seja, deixar-te também eu em paz;
no plano da cultura, o primado da exatidão e a invocação da suprema instância de controle,
que quer verificar até mesmo a exatidão das matemáticas, sobretudo a lógica matemática. O
irmão do filho pródigo, que começara lendo Cícero, acaba por fazer lógica matemática.
Quanto à ação, ela é pragmática e de modo algum ligada a princípios ou ideologias: wait and
see. Os princípios não podem produzir nada bom, a lei não significa senão leis, assim como a
liberdade não significa senão liberdades individuais. “Deus morreu”. Resta-nos ser civilizados
e exatos.

Não é senão natural que um tal homem civilizado e da exatidão surja no mundo anglo-saxão
(inclusive os Estados Unidos), assim como o relevamos (resultando que os seus criadores
surjam da margem dos não-conformistas). Mas podemos pressenti-lo, se não mesmo
identificá-lo, em muitas outras zonas da Europa de hoje e sobretudo o identificamos no
mundo espanhol, onde parece ter um nobre passado. Quando os seus exemplares escolhidos
não se encontram sob a genialidade de um outro desajuste, como Don Juan ou Dom
Quixote, o homem superior do vasto mundo espanhol se encontra antes sob o desajuste de
um máximo de pessoal e orgulhosa dignidade. Em particular no homem de cultura, a
dignidade significa a segurança última do pensamento. Ardendo de acatolia também ele,
debruçado então com um esplêndido esmero sobre o mundo daquela, ele dá contas dela com
aquela precisão do pensamento que não mais deixa espaço, com a sua radiografia exata, à
idéia. Encontramos um exemplar deste tipo em Martinez Estrada (é suficiente ver-lhe o
rosto sobre as capas dos livros para perceber o seu complexo de segurança), com a sua
célebre Radiografia dos Pampas, um livro cheio de pensamentos encantadores (sobre o gaúcho,
sobre o tango, sobre a faca, e tantas outras coisas), mas um livro onde não aparece nenhuma
idéia, se devemos denominar a idéia como o pensamento voltado sobre o pensamento. Aqui
as determinações se concentram na verdade sobre uma situação ou realidade individual, e
assim fazem sem resto; mas justamente por isso não mais podem - e nem querem - conduzir à
idéia. Aqueles que não invocam o geral recusam a idéia. Basta-lhes a exatidão.

Num mundo da exatidão, as artes podem sofrer não importa quantas inovações e
contorsões, no sentido da arte abstrata e do “novo” romance, espectroscópico, no sentido da
música eletrônica, ou da literatura de processo verbal; elas todas são porém nalgum lugar
incômodas - pelo menos pelas suas criações passadas - para o homem acatólico, excetuando
o cinematógrafo.

É verdade, ainda cabe espaço, fora a arte da tela e do espectral ou do espectroscópico, para
uma espécie de arte do diagnóstico exato; não apenas a arte do “isto é isto”, do tipo daquela
da Radiografia dos Pampas, mas também do tipo do: isto não é senão isto. Neste último caso
chegamos, pela linha da acatolia clássica, ao cômico (por vezes a algo mais profundo do que o
cômico), enquanto a acatolia de hoje chega ao nonsense e ao absurdo. Pois tudo isso é um
tipo de diagnóstico dos defeitos do mundo. O autor cômico, com a sua acatolia original, com
o seu modo, ou seja, de “não ter nada santo”, como Aristófanes, Molière ou o nosso
Caragiale, denunciou sempre os defeitos e a estupidez do mundo, e ainda talvez demasiado
freqüente pagou com o próprio gênio e inteligência a denúncia da estupidez dos outros.
Agindo assim, o gênero cômico não pôde produzir muito - nem mesmo muitos criadores - e,
não importa o quão alto coloquemos Molière por exemplo, teremos de admitir que a
denúncia dos defeitos dos outros é estreita e infecunda, se não acaba por agarrar também o
espectador, fazendo-o apenas rir do outro. Nesse sentido, mais profundo que o cômico, na


  N. do T.: Ion Luca Caragiale (1852-1912). Escritor romeno, profundo observador das realidades
sociais autóctones. Criador de tipos memoráveis. Ergueu o teatro romeno ao nível europeu com as suas
comédias, em que satiriza os costumes políticos e familiares, utilizando com extraordinário efeito o cômico de
situações e da linguagem, a expressão estereotipada definidora e o humor, inclusive o absurdo.
linha da acatolia, parece-nos o sentimento profundo do ridículo, por exemplo aquele posto
em jogo por um Cervantes, quem, fazendo-nos rir de Dom Quixote com a sua horetite
aguda, faz-nos ao mesmo tempo prestar atenção, talvez sem querer, a que não se trata apenas
do defeito daquele mas também do nosso. E sempre num melhor posicionamento do que o
cômico clássico se encontram as criações, desta vez sobretudo contemporâneas, com base no
nonsense e absurdo: elas denunciam não o absurdo ou a irrisão do outro, mas aquilo que
pode dizer respeito aos espectadores e leitores, respectivamente ao homem como tal. Com
um Voltaire as coisas permaneciam ainda na desmistificação e na sátira, não importa quão
feliz; com um (hoje tão modesto) Anatole France, as coisas se reduziam ao exercício da
inteligência, erudita e graciosa, de dizer que “isto não é senão isto”. Mas com o nonsense e o
absurdo de um Ionesco pode-se obter ou obteve-se algo mais profundo: a acatolia chega ao
seu limite, denunciando justamente a fronteira a que ela leva, com a recusa ao geral,
sobretudo na falta de sentido e absurdo. E isto diz respeito a todos, pois em cada um de nós
existe uma gota de acatolia.

E, contudo, assim como a música nos parecia característica para a atodetia, agora não os
expedientes das artes tradicionais mas a arte nova da cinematografia nos parecerá dar a
medida e a cor (o cinzento) da acatolia. Nascida sob o signo da precariedade (ontológica, no
final das contas) de não se ter desprendido de algo geral, como se desprenderam todas as
outras artes do geral da espiritualidade religiosa ou largamente humana, a cinematografia
encontrou imediatamente uma extraordinária função artística, sem poder ter se tornado
também uma verdadeira arte. De fato, ela realizou repentinamente duas funções: a de
reencontrar o sentido da arte popular - assim como se constatou que antes da Renascença,
até mesmo na Antigüidade, o teatro era popular, ignorando a diferença entre as classes - e a
função de servir, por outro lado, como experimento artístico, ao criador que não mais pode
permanecer nas artes tradicionais. Em ambos os casos, a cinematografia responde às
necessidades de um mundo em que predomina a acatolia. “Iluminadas” como são, as massas
não mais buscam hoje o ensinamento e os sentidos, recusando instintivamente o geral, o qual
lhes era oferecido antes pelas grandes obras e livros de ensinamento da humanidade, mas
elas reclamam, na falta dos sensos gerais que comandem a arte, a simples “evasão” pelo
espetáculo; e é certo que, nesta linha e graças à acatolia sempre mais acentuada da nossa
civilização técnica, a cinematografia vai manter a sua popularidade. Mas a partir de agora essa
semi-arte está generosamente à disposição do criador para experimentos artísticos, lá onde a
riqueza dos pensamentos e das imagens vem constantemente preencher o vazio deixado pela
perda de “idéia”. Pode ser que na cinematografia se façam num futuro próximo as tentativas
mais interessantes no sentido de dar um estatuto artístico às exigências espirituais impostas
pela acatolia à civilização técnico-científica. E quem sabe se, através do mergulho em seu
individual, e também no homem terreno, o espírito ocidental não vai contudo reencontrar,
mesmo que de ponta-cabeça, o céu?
Até agora, vive-se num mundo em que o mais difundido agente artístico, o cinematógrafo,
não produz arte; os mais numerosos objetos e realidades, as criações técnicas, não têm
investidura ontológica, e os conhecimentos locais mais seguros e que não mais podem faltar
ao homem moderno, os conhecimentos históricos e sociais, não têm leis. Algo vacila no
mundo da acatolia, com toda a sua exatidão. Resta ao homem, sobretudo ao homem
europeu, reencontrar, através da contribuição de outros mundos - orientais, sul-americanos,
ou talvez ainda infra-europeus -, a própria riqueza espiritual, através daquelas outras doenças,
a fim de reobter dessa maneira, para além do espírito da exatidão, alguns caminhos na
direção da verdade, e a fim de reencontrar-se de verdade como homem do espírito, e não
como seu laboratorista.

E desta vez é simples resumirmos os aspectos principais da doença em jogo. Doença da


civilização, a acatolia invocou, em sua versão européia, a inteligência pura e o iluminismo, ao
mesmo tempo com a inteligência prática, e com o empirismo e o nominalismo anglo-saxão,
conduzindo a um inesperado mundo da técnica e do maquinismo, mas também, num nível
superior, a um inteiro sistema de valores, anglo-saxões, que se impuseram ao mundo
moderno, em grande parte. É verdade que, no fundo, essa experiência espiritual é aquela
velha experiência dos povos do negócio, assim como, com a sua inclinação sobre o real, é o
velho início de toda sabedoria no imediato; é ainda verdade que arrisca um sentimento do
nada, através do mergulho na pluralidade cega dos casos individuais, dos processos verbais e
da estatística (que significativo e triste o elogio trazido por Balzac, com o qual concorreu o
estado civil, ou seja, a estatística, enquanto os heróis antigos concorriam com os deuses!).
Mas no novo caos deixado pela recusa ao geral surgiu a necessidade de segurança, sob a
forma da exatidão, produzindo esplêndidos sucessos científicos locais e oferecendo uma
miraculosa proeminência, e por que não também inovadora para o espírito, às matemáticas, em
todo caso à lógica matemática, assim como no plano humano e social a mesma acatolia nova
conduz à dignidade pessoal e à consolidação da sociedade, através do simples liame do
respeito por si e pelos outros. As artes, naturalmente, podem sofrer num tal mundo da
acatolia, pois normalmente elas se alimentam da substância do geral. Mas as artes da tela e
em primeiro lugar a cinematografia permanecem mantendo aberto, com a toda a sua miséria
aparente e talvez apenas inicial, o Livro do mundo, na história do espírito, assim como a
revolução técnico-científica reabriu o Livro do homem como ser psicossomático.

A sexta doença poderia ser contudo a sexta promessa da Terra, sobre a qual as precariedades
do ser exercitam, na versão do homem, a sua magia.
VIII. O EQUILÍBRIO DO TEMPO E O ESPÍRITO ROMENO

Não tanto o cuidado e o medo do início


Do que o cuidado e o perigo do final…
(de um velho escrito)

Das doenças ônticas que se tornaram doenças do espírito, assim como dos seus sintomas e
manifestações, encontrados por toda a parte, podemos agora passar simplesmente para o
espírito romeno, com os seus não-posicionamentos, posicionamentos e pronúncias.

Todas as doenças do espírito foram reativadas, graças à transformação estimulada e portanto


planetária em que a história entrou. Mesmo se nalgumas partes do mundo, ainda
poderosamente influentes, assim como é o mundo do Ocidente europeu e sobretudo o
americano, nos pareceu predominante uma só doença, em particular a acatolia, entretanto a
conjuntura histórica em que nos encontramos, o equilíbrio do tempo, como poderíamos
chamar conforme nossa velha língua, põe em jogo todas as doenças juntas. E aliás o homem
europeu foi e é assolado por todas elas, talvez mais do que o homem de outros lugares da
Terra, e como participante do destino da Europa, também o espírito romeno as
experimentará. Com tudo isso prevalecem nele algumas doenças, e justamente por isso
poderia ser útil - não só para o conhecimento de si, mas também para a eventual
contribuição que poderíamos trazer, com um plus de afirmação no mundo, em suas margens
- pormos bem à vista, o mais que pudermos, a nossa natureza mais especial.

Relembremos apenas, antes de fazer a confrontação do nosso espírito com o humano da


terra, animado pelas doenças constitutivas como é, o quanto de positivo se manifesta nesses
inevitáveis não-posicionamentos do homem. Nós as deduzimos das precariedades do ser, ou
seja, “de cima”, de maneira alguma de modo em que se faz geralmente, sobretudo hoje (com
o freudismo, por exemplo), de algum lugar dos subterrâneos do homem, de maneira
reducionista. Mas se se lamentasse e se buscasse imprescindivelmente o equilíbrio do ser, no
lugar de suas precariedades, teríamos o direito de nos perguntar: seria possível o equilíbrio
do ser, e, se fosse, seria ele verdadeiramente criador? O que é que vem dar medida ao
homem: o ser, atingido e bem equilibrado, ou a criação?

Digamos contudo mais uma vez que não se pode escolher entre a verdade e a busca por ela,
entre o ser e o seu devir, mas que a verdade é por si mesma uma busca contínua, assim como
o ser é para o homem um impulso para a modelação e a criatividade, uma tal criatividade
sendo a medida plena e de qualquer modo a medida histórica do homem. Mesmo se nas
zonas do espírito se pôde obter, por vezes, algo da ordem do ser realizado, foi apenas no
plano individual e com uma reconciliação de si que, como no mundo indiano, foi anistórica.

Por outro lado, as doenças do espírito nos pareceram não só constitucionais do homem
histórico mas também benéficas (elas sendo verdadeiramente “doenças” apenas em formas
agressivas ou forçadas, como no caso do faquir, na ahoretia, ou nos excessos europeus
ocidentais de hoje); e a partir de agora podemos dizer que, na medida em que tudo no
homem deve existir antes para o ser, do que no ser - como não parece estar o homem senão
graças a uma ilusão ou exceção -, significa que um caminho, um Tao, uma boa abertura
“para”, que exprimiria justamente o nosso vocábulo, “para”, confere a medida correta ou
pelo menos a boa denominação da vida espiritual, exprimindo ao mesmo tempo o sentido
positivo e os destinos criadores de tudo o que nos pareceu adequado denominar doença.
Neste sentido, o “adoentamento” do espírito romeno não deverá de modo algum ser
compreendido como um invalidamento seu, como nem foi o caso para os outros mundos;
vamos até mesmo dizer no final que, de certo modo, com o nosso “existir para”, alguém
poderia enxergar que trazemos e propomos a vastos mundos uma sétima doença, que seja
também a nossa contribuição frutuosa para o equilíbrio do tempo.

Tendo assim parte de todas as doenças do espírito, o que significa todas as grandes
orientações do homem, o espírito romeno parece mais animado por umas e mais
sensibilizado por outras, com outras palavras, põe acentos diferentes sobre as orientações
humanas. Comecemos com a última doença descrita, a acatolia. Sem repugná-lo ou sem vê-lo
em posição de inferioridade em relação às conquistas da civilização a que conduziu a acatolia
moderna - uma civilização que seguimos permanentemente com a nossa inventividade, no
possível se não mesmo sempre no real -, o espírito romeno não é contudo predisposto a
outras formas da doença espiritual respectiva. Ele aceita plenamente os seus resultados, mas
não adere voluntariamente ao espírito em que alguns deles foram obtidos, em particular não
adere à recusa a qualquer senso geral para a civilização. E de outro modo há de se perguntar
se a recusa do geral, e sobretudo a persistência nessa recusa, como parece compreender uma
boa parte do mundo ocidental, não arrisca transformar num fracasso espiritual aquilo que se
obteve. No fundo, os perigos desta acatolia são revelados justamente por agentes da
civilização do tipo acatólico.

O romeno diz de alguém: “Não tem nada de santo nele.” Qualquer um sente que não se trata
de um sentido religioso do dizer, mesmo se no início ele poderia ser assim interpretado.
Dizendo assim, qualquer um pensa na piedade, na verdade ou na medida - aquela muito
invocada medida do nosso espírito - que devemos pôr em tudo o que fazemos. Mas deste
modo invocamos, mesmo sem claramente reconhecê-lo, algo de ordem mais geral, uma
compreensão e uma finalidade que deve possuir toda coisa feita pelo homem e o próprio
homem, com a vida que dá a si mesmo. Sobre Don Juan, o acatólico que consideramos
representativo para uma forma da doença, podemos simplesmente dizer que “não tem nada
de santo”, e com isso dizemos a nosso modo o último pensamento sobre ele. Por seu lado,
as criações excessivas da técnica nova, tantos produtos excedentes surgidos numa sociedade
de consumo, até mesmo a própria sociedade de consumo no seu todo, podem cair ao nosso
julgamento: ela mesma se denomina sociedade de consumo (como se uma sociedade, uma
comunidade humana, pudesse ser só isso!) justamente por reconhecer vagamente que “não
tem nada de santo”, assim como os seus bens são por vezes carentes também eles de
qualquer justificação, não dependendo de uma necessidade real, que lhes dê o caráter de
coisa “santa” na vida do homem e da sociedade.

Poderíamos tomar então cada característica, dentre aquelas descritas na acatolia - como
poderíamos por outro lado fazer com todas as outras doenças - e dessa maneira obteríamos,
através de uma confrontação mais rigorosa, alguns traços caracterizadores do espírito
romeno. Porém duvidamos ter obtido, com a tabela das doenças e com a sua apresentação
clínica, uma base científica tão rigorosa que nos permita evidenciar, no espírito de exatidão, o
que precisamente caracteriza e o que não pode caracterizar até o fim o espírito romeno. E
por outro lado, pareceu-nos que a inclinação para a exatidão e o diagnóstico seguro seja ela
mesma um sintoma da acatolia, favorável nalgums planos porém danoso, talvez, quando
tende a tomar o lugar da abertura para a verdade. Interessa-nos a verdade sobre nós mesmos,
e por isso o confronto que vamos empreender será algo mais livre, satisfazendo-se em
constituir uma simples sugestão de verdade.

O que merece ser retido ainda desse primeiro caso de acatolia - que não parece caracterizar
plenamente o espírito romeno - é o fato de que a respectiva doença espiritual nos acossa
contudo também a nós, como romenos, sob diversas formas. Se no cômico, como gênero
literário, vimos uma expressão da acatolia, então Caragiale, com tudo o que existe nele de
representativo para o espírito romeno, deve ser invocado. Não há dúvida de que, para além
do gênero literário que preferencialmente adotou, Caragiale ele próprio foi assolado pela
acatolia: pelo menos às vezes, ele parecia não ter nada de santo nele. Sem colocar aqui em
discussão o gênero literário e os seus limites espirituais na arte - o que mencionamos acima,
mostrando que o sentimento profundo do ridículo ou mesmo o absurdo contemporâneo
poderiam ser considerados mais afirmativamente espirituais do que o cômico - como
também sem discutir a natureza humana de Caragiale, sobre cuja presença e função na nossa
cultura já se pôde dizer algumas coisas más e outras muito boas, vamos ter de admitir que
todos nós somos por vezes acossados por algo acatólico, não apenas sob a forma, contudo
espiritualmente fecunda quando não passa de um degrau, do ceticismo de pensar, mas
também sob uma forma, mais espumosa e referindo-se ao exercício soberano da inteligência,
mais exatamente a zombaria. Zombou-se no passado de demasiadas coisas, situações e
destinos, em nossa vida pública, se não houvesse sido senão a Revolução de “quarenta e
oito4“. Do positivo da acatolia, temos o bom exercício da inteligência e a alegria do
iluminismo; por outro lado, no plano econômico, faltaram-nos de certo modo as qualidades
(por sorte também os defeitos) dos povos do comércio, assim como no plano moral nos
faltou demasiado no passado, por vezes, o self-respect, o sentimento da responsabilidade
imediata - mesmo se tivemos o sentimento da responsabilidade última -, o senso da exatidão
no comportamento, do esmero no que produzimos e fazemos. No plano espiritual do futuro,
resta ver se saberemos nos deixar tomar bem pelo elã da revolução técnico-científica, que
está prestes a mudar o mundo.

Estamos assim imunes àquilo que pode ser mau na acatolia, mas não completamente
desprendidos de algumas manifestações, mais ou menos medíocres, dela. Não estando
diretamente tomados pelo seu fervor e sua criatividade, resta-nos contudo trazer uma
contribuição - talvez mais preciosa - à sua eventual proeza na história, fazendo isso por uma
ou por outra das doenças que nos acossam.

Vamos passar então às outras doenças espirituais, buscando ver qual delas precisamente nos
caracteriza propriamente e qual delas nos caracteriza mais pela contaminação. Antes de nos
confrontar com as outras cinco, vamos relembrar que em todas essas, ao contrário da
acatolia, é ativo e conscientemente ativo (com exceção da primeira forma de catolite) o geral.
Esse fato é inteiramente significativo, pois só o geral dá às coisas a sua verdadeira medida,
enquanto que na sua falta, na acatolia, encontravam-se apenas substitutos para o equilíbrio
do homem. Mas a presença ativa do geral ainda é significativo por um motivo: aquele pelo
qual, de 1800 até hoje, o nosso mundo mudou o seu centro do real para o possível. Prima, desde
então, o possível sobre o real, com alguns riscos (os quais descreveu antecipadamente
Goethe em Fausto II), mas também com grandes benefícios. A partir de agora podemos dizer
que o espírito romeno está bem com o possível - poder-se-ia dizer: esteve melhor com o
possível, no passado, do que com o real -, e a ação do geral no seio das doenças faz com que
o primado do possível tenha bons destinos de sucesso histórico. Só na acatolia joga o
possível vazio (criações e produtos sem destinação precisa, sociedade aparentemente
equilibrada porém no fundo desequilibrada, demência e explosividade em todos os planos), e
neste sentido podemos nos consolar com a nossa irreceptividade para uma tal orientação
espiritual.

Quanto das outras cinco doenças nos caracteriza propriamente? Vamos dizer diretamente o
que não nos parece caracterizar, como ocorre com a acatolia: não parecemos sofrer, a não ser

4
N. do T.: Trata-se da Revolução de 1848,
de novo parcialmente, de atodetia, nem de horetite; enquanto as outras três orientações nos
caracterizam plenamente.

A atodetia, em primeiro lugar, significa a recusa do individual, enquanto temos, após um


unânime reconhecimento, um autêntico e indesmintido senso do concreto, o que nos faz não
praticar em nenhum lugar, nem ao menos no conhecimento e na cultura, um culto em vão
do geral. Da nossa forma de religiosidade passada, em cujo quadro o divino foi sempre
entrelaçado ao terreno, entrando também ele, segundo o nosso folclore, em todos os
contactos, acasos e por vezes vicissitudes do homem (inclusive o nascimento, pois também o
divino nasceu de uma maneira ou de outra, conforme as nossas lendas populares), daqui e
até o nosso modo de fazer cultura, mesmo no nível da filosofia especulativa, onde sempre
interessou o pensamento voltado sobre o mundo real e curvado sobre ela, justamente o
“sofiânico” de Blaga5, o nosso modo de conhecer e contemplar o geral não existiu na
ausência da realidade individual.

É verdade que também nós temos, da atodetia, um agudo espírito crítico e dissociativo,
como uma tendência de pôr especialmente o acento sobre o comentário da vida do que
sobre a vida e por vezes de fazer teorias de certo modo em vão, como toda nação inteligente;
mas o possível que amamos não carece de supraposição, por cima do concreto (“seja o que
for”, e não “seja em princípio o que deve ser”), a infinidade de nuanças que invocamos não é
apenas do geral mas sobretudo do real, e quanto à sociedade e ao homem, temos um gosto
demasiado acentuado da individualidade e da afirmação pessoal a fim de consentirmos
facilmente as estatísticas. O grande sucesso da cultura atodética, por base no requinte e no
desprendimento, não exige de nós, talvez nem o musical puro - a não ser pela contaminação
-, por outro lado um sentimento “artístico”, ou seja, uma corporificação do geral no
concreto nos segue com a sua tendência permanente, fazendo até mesmo do nosso
pensamento científico, talvez, um pensamento que não permaneça estranho a belezas
concretas - para não mais falar do fato de que muitos homens de ciência em nosso país
“literaturizaram” - ou se não, um pensamento estranho ao resto do mundo real, com o risco
porém para nós de chegarmos ao enciclopedismo, por um lado, e ao ensaísmo, por outro.
Sem individual, concreto ou pelo menos supraposição sobre o real, o mundo nos pareceria
insípido. O romeno não sabe muito sobre o tédio, e ainda menos sobre o trágico da
experiência de cultura ou sobre a inexistência dela. De qualquer modo, se a atodetia pode

5
N. do T.: Lucian Blaga (1895-1961), poeta, dramaturgo, filósofo e ensaísta romeno. Como pensador,
é criador de um sistema filosófico original, que, tendo como núcleo a idéia de mistério, apela na teoria do
conhecimento a um método dogmático agnóstico e, na explicação da criação cultural, a fatores inconscientes.
Em suas últimas obras, desenvolveu idéias epistemológicas próximas de uma compreensão racionalista e
dialética da ciência.
acabar numa alma sem corpo, deve-se dizer tranqüilamente que o espírito romeno sempre
amou a alma com corpo e tudo.

Da mesma maneira poderemos dizer, em segundo lugar, à luz do acima mencionado, que
não sofremos sobremaneira de horetite. Se a horetite é a doença de não poder encontrar as
determinações adequadas, devemos admitir que não tivemos como povo (e talvez nem tenha
o indivíduo romeno) a pressa das determinações, menos ainda a sua impaciência, como no
caso dos grandes doentes de horetite, Dom Quixote, Fausto ou povos inteiros. O nosso
povo, longe de ser um povo que busque sua identidade, que procure afirmar-se de todos os
modos e que conquiste fora, compreendeu antes manter sua identidade, e historicamente, ele
não se formou por expansão ou por contração, justamente como souberam mostrar os
nossos historiadores, tendo ele mais precisamente se concentrado sobre o espaço carpático
dos dácios, da vasta extensão da romanidade oriental. É verdade de novo que, sendo
estranho àquilo que denominamos horetite aguda, o espírito romeno pôde ter algumas
manifestações de horetite crônica, atribuindo-se determinações “estacionárias”, como foi
continuamente a nossa civilização aldeã, ou vivendo sob uma forma de descrença em si e por
vezes resignação, na maioria das vezes ativas, portanto às vezes também passivas, ou enfim,
sendo tomado por formas superiores de melancolia, da qual a nossa palavra “saudade6“
reteve alguma coisa; é igualmente verdadeiro que até mesmo uma certa impaciência do tipo
da ahoretia aguda nos pôde tomar por vezes, diante dos grandes perigos em que vivemos,
mas tratou-se de uma impaciência de certo modo afável e, diríamos, criadora de instituições.
Em definitivo, que boa horetite terá acossado Estêvão o Grande7, quando erguia a cada ano
pelo menos uma igreja, tentando desta maneira atribuir determinações no real de seu
domínio, não só em nome da crença mas também em nome da sua grandeza principesca.
Totalmente estranhos à horetite não pudemos ser nem nós; e sobretudo na Romênia
moderna, quando tudo veio - como se de repente, com a nossa composição estatal - nos
exigir que nos atribuíssemos determinações na história e também como homens livres. Mas
em nós algo de precipitação na direção de determinações se recusa, e neste sentido será
necessário invocarmos de novo o caráter da medida bem concedido a nós, assim como
invocamos aquele, igualmente bem acreditado, do nosso sentimento pelo concreto. A
horetite, com as suas dramáticas afirmações e catástrofes, assim como a sua tristeza depois
da vitória, permanece no lote de outrém.

6
N. do T.: Em romeno: dor.

7
N. do T.: Estêvão o Grande (1457-1504). Príncipe da Moldávia, santificado na década de 1990 pela
Igreja Cristã-Ortodoxa Romena. Uma das mais importantes personalidades da História romena. Notável
comandante militar e diplomata brilhante, fez da Moldávia um significativo fator político na Europa Oriental de
seu tempo. Vitorioso em diversas batalhas contra os turcos otomanos.
Quando nos preparamos para passar, agora, àquelas tantas sugestões de verdade sobre nós
que acreditamos poder produzir à luz das doenças restantes, parece-nos adequado sublinhar
que as doenças e genericamente as orientações espirituais que não nos acossam, a acatolia, a
atodetia e a horetite, são todas elas três doenças de certo modo da decisão e do decidido. O
acatólico decide claramente que o geral não existe (não passa de “nome”), o atodético, como
se o individual não tivesse de ser levado em consideração (é apenas estatístico), e aquele que
arde de horetite decide que deve inclinar-se à ação mesmo que seja com uma metade de ideal
e com qualquer risco pleno. No nosso caso, por outro lado, nos domina uma demora na
decisão, ou um juízo tão bem refletido sobre a decisão que, com todas as boas conseqüências
no geral, parecemos cair por vezes na indecisão. Alguém que quisesse nos criticar - e houve
muitos destes - poderia dizer, em relação às doenças que seguem e pelas quais somos
acossados (a catolite com a busca do geral, a todetite com a do individual e a ahoretia com a
recusa das determinações): o romeno não sabe bem o que busca, não sabe bem o que
encontra, e sem sabê-lo bem para que decidir-se, não mais se decide absolutamente. E não é
que se exprimem todas essas três irrealizações em sua tão característica palavra “saudade”?

Vamos ver o sentido entretanto bom do mesmo vocábulo nas orientações pelas quais o
espírito romeno é efetivamente animado, começando com a catolite. Não pairam dúvidas
sobre o fato de que o nosso espírito tem o órgão do geral, tem pelo menos a abertura para ele
e, com uma palavra dele, “tem algo de santo”. Descrevemos a catolite, que nos pareceu
verdadeiramente a primeira dentre as doenças do homem e caracterizante em particular para
o homem europeu - influente no mundo em primeiro lugar com a catolite, antes de colocar
em jogo o seu inverso, a acatolia, para a Terra inteira -, mais em seus aspectos negativos.
Pareceu-nos necessário fazer desta maneira pois era a primeira doença descrita e tínhamos de
revelar antes os desajustes, criadores é verdade, do homem, do que o seu bom equilíbrio, o
qual no limite pode ser também estéril. Mas em todos os aspectos da doença, descritos antes
pelo seu excesso na direção de pôr as coisas melhor em relevo, algo benfazejo pode intervir,
transformando-os então em aspectos positivos: um certo controle. A catolite, tendo passado
por um controle espiritual, torna-se então verdadeiramente positiva, não só pela criatividade
indireta a que ela conduz e a qual mencionamos, mas também pelas suas virtudes diretas: é a
doença, ou desta vez melhor a orientação do homem na direção daquilo que nem a natureza,
nem as acepções imediatas da vida não podem dar, na direção da sua ordem mais geral e de
sua finalidade segunda. Com uma verdadeira e humana medida, a perda em ato e o excesso
da ação, que evidenciamos naqueles que ardem da busca do geral, abrandam-se e se tornam
feito de habilidade, mas um que busca ser capaz da habilidade; um feito aberto para a sua
acepção melhor expressa. A catolite não denominaria desta maneira o estado transfigurado
daquele que, a qualquer preço e consciente ou não, busca o geral, assim como aquele que o
segue com a submissão aberta ao feito ao seu ver. O espírito romeno pôde assim ser
acossado pela doença em jogo. Ele não a realizou com exaspero, nem permaneceu no
sedentarismo daquilo que lhe era dado, mas - se o pastoral prevaleceu contudo sobre o
agrário no nosso mundo, como se disse - da mesma maneira como os pastores, semelhantes
a navegadores da terra, partiram na direção de outros horizontes buscando grama melhor, o
feito do homem daqui conduziu também incessantemente na direção de outros horizontes,
com acepções melhor ordenadoras.

Todos os outros sintomas que evidenciamos na catolite: a exuberância do possível, a


obsessão das acumulações, a pluralidade cega, a simples proliferação puderam obter uma
face luminosa, com a extraordinária experiência no possível que realizou o espírito romeno,
assim como com a branda pluralidade, com aquele sábio politeísmo de suas crenças naturais,
ou com a riqueza de sua criatividade folclórica e com a sua permissão com relação à
diversidade das crenças e dos mundos. Enquanto o acaso frustro, na catolite descrita como
doença, passava diretamente para a necessidade cega, o espírito romeno sabe fazer um bom
casamento entre o contingente e o necessário, vendo tudo como uma necessidade moldada e
acontecida ela mesma. O sentimento da perda de si e o do exílio, que podia experimentar o
homem da catolite, são atenuados também eles, com uma boa graça que faz o romeno dizer:
“este mundo não é o meu, nem é meu o outro”, mas o faz no final das contas sentir-se em
casa no mundo daqui e fabular qualquer coisa sobre o mundo do além. Quanto ao exaspero
e à colisão trágica dentre um sujeito erguido ao geral e o geral propriamente dito (as soleiras
do mundo), eles se transformam facilmente num verdadeiro “encontro”, como o do Velho
da “Arca” de Blaga com o próprio Noé, e se um trágico persiste na consciência popular
romena (na consciência culta podendo ser um de contaminação), trata-se de um trágico
difuso, que desta maneira consegue transformar o insuportável em suportável. Como para
qualquer doente de catolite, o mundo deveria ter um sentido. Mas o espírito romeno não cai
na desesperança de não o encontrar. “Tem de existir” um, diz a si mesmo, e o continua
buscando.

Não desejaríamos transformar em idílio uma das experiências mais ativas e decisivas no
homem ou na história do homem. Mas se devemos encontrar uma explicação para a atenuação
que o espírito romeno insistiu em levar a alguns grandes impulsos de vida despertados pela
catolite, invocaremos a experiência no possível que o homem romeno soube acumular ou
que casualmente acumulou, uma experiência que o faz evitar as rochas do século, quando
necessário, e continuar viajando, pelas águas do possível.

Algo continua verdadeiramente flutuando, como se por cima de águas, com o nosso espírito.
De certo modo, ele é como um riacho que nem sempre chega às grandes águas, mas parece
não cessar de as buscar. Talvez seja signficativo o fato de que as lendas mais profundas e
simbólicas da nossa cultura sejam aquelas sobre riachos, não aquelas sobre cidades, aldeias,
ou as lendas ligadas à consideração do solo e de nomes de lugares. Numa coletânea (Lendas
Geográficas Romenas, Editora para o Turismo, 1974) foi republicada a Lenda do riacho Buzãu,
que nos parece ilustrativa para o que se disse mais acima. O jovem Buzãu, diz a lenda, com
cabelos de ouro porém chamado Buzãu, ou seja, “ensimesmado, turvo, incompreendido”,
caminha na direção de uma bela, cujo marido, o dragão Danúbio, a mantém trancada num
palácio de cristal. O nosso herói chega, naturalmente, ao riacho Siret, mas sem um fio de
cabelo, pois os arrancara, assim como lhe pedia a voz da amada. Atira-se lá, nas águas do
Siret, e todo o caminho percorrido se transforma num riacho, com as ondas como o cabelo
dele. - Existe aqui também um primado do possível sobre o real: o riacho não atinge as
grandes águas, mas junto com as águas em que desembocou, continua buscando por elas.

Pode ser que o mesmo primado do possível - um de tipo especial, não diretamente
assimilável com o primado moderno do possível, que é de laboratório - seja reencontrado na
versão romena daquela segunda doença espiritual que especialmente nos acossa, mais
precisamente na todetite. Doença originária da necessidade de encontrar um individual
adequado para o geral e para as suas determinações, ela foi reativada no mundo
contemporâneo pelo domínio seguro de um conjunto de conhecimentos, que conduzem
assim a um tipo de leis incorruptíveis difícil de ser aplicado sobre o real. Mas o mundo do
espírito romeno, não tanto pela linha teórica é ajudado pela todetite, quanto pela linha do
ideal ou dos valores in que este espírito crê, sem poder-lhes sempre encontrar a
corporificação. Se na catolite de tipo romeno a palavra “saudade” exprime uma aspiração
saudável e frutuosa na direção de algo ainda vago porém mais alto que as realidades
imediatas do homem, agora, na todetite, a mesma palavra, compreendida como saudade de
determinada coisa, de alguém mesmo que idealizado, vem exprimir a aspiração na direção de
uma realidade ou de uma realização concreta. Existe saudade também numa consciência de
artista que não obtém diretamente a corporificação, assim como surge um sentimento da
saudade até mesmo na aspiração de realização através do feito, uma espécie de não-
posicionamento, ou de posicionamento do pensamento através de uma resposta adequada.

Na linha da todetite descrita, o nosso espírito percebe constantemente uma inadequação


entre aquilo que existe e aquilo que deveria existir (devia existir, não pôde existir), mas sem
deixar, assim como na doença descrita, que o real apareça fantomático, mas antes fantástico e
feérico. “Quem não provou da doçura do que existe - traduzia Udriste Nasturel8 em A Vida
de Varlaam e Josafá9 - não pode compreender a natureza daquilo que não existe.” Mas aqui,
inversamente, “aquilo que existe” representa a vida verdadeira e ideal, ao passo que “aquilo

8
N. do T.: Udriste Nasturel (?-1659), boiardo e homem de letras da Valáquia. Desempenhou um
importante papel cultural e político durante o período do governo de Matei Bassarab, seu cunhado, para quem
realizou algumas missões diplomáticas. Traduziu pela primeira vez do eslavônico para o romeno o romance
popular Varlaam e Josafá (1648-1649).

9
N. do T.: Romance popular de grande circulação na época feudal, que tem em sua origem a lenda da
vida de Buda. Chegou no século XVI à Romênia por intermédio da versão eslavônica.
que não existe” significa “a mentirosa riqueza e honestidade deste mundo”, ou seja,
justamente o mundo propriamente dito real com as suas efemeridades, com “as suas coisas
passageiras”, como diz ele. Não há necessidade, de novo, de vermos imprescindivelmente a
religiosidade nesta disposição do nosso espírito de não aceitar o real como bom em si e nem
digno de ser desejado como tal. E não temos mais de ler, nos sintomas da doença que nos
acossa, uma tendência de irreconciliação destinada a nos conduzir à saída do mundo, como
no texto de Nasturel, mas o sentido mais ativo da irreconciliação com um real, diante de que
o possível, com as suas riquezas, surge como um aperfeiçoamento, mas um aperfeiçoamento
com realizações contínuas também desta vez.

Neste sentido, que bela é a evolução da palavra “ens” do latim, significando ser, que em
língua romena pôde transformar-se em “ins”, indivíduo: é uma expressão viva da nossa
todetite, compreendida como necessidade de enviar o ser, do seu geral etérico, à realidade e
pessoa. Mas em geral, toda a exploração feita pelo espírito romeno no ser através da língua é
profundamente significativa, como se aparentemente conseguisse dar alma e concretização
ao geral mais abstrato. É quase dramático, para quem tem interesse e compreensão filosófica
para a sua língua, o esforço da nossa língua gasta em encontrar equivalentes apropriados para
diversas nuanças filosóficas obtidas na grande especulação do pensamento. Nos
impressionantes Escritos Filosóficos de Samuil Micu10 surge mesmo a tentativa de traduzir ens
por “îns”11, com o sentido de ser ainda, mas não constante de ser geral, da mesma maneira
como aparecem os termos como: îns e neîns, ou estere (“do estere à possibilidade”)
compreendido como existência, ou o termo de ser próprio, como essência, ou mesmo o
termo de temperamento. Ens não se tornou mesmo indivíduo, pessoa, mas tornou-se um
tipo de estima, como teria dito Eufrosin Poteca12, um tipo de entidade real (“este mundo é
ser realizado e o dia de amanhã é ser irrealizado”, ou ainda: “o ser do pensamento”), que
teria uma essência como ser, uma existência como estere e um temperamento como
natureza. - A exploração da nossa língua no ser foi constante, assim como foi também a
nossa exploração no verbo ser, com as suas multiplicações que evidenciamos num outro
lugar: não pôde ser, estava prestes a ser, terá sido, poderia ser, deve ser, pôde ser. E te

10
N. do T.: Samuil Micu (1745-1806), filólogo e historiador iluminista romeno. Autor da Elementa
linguae daco-romanae sive valachicae, primeira gramática publicada da língua romena. Em seu “Livro de Orações”
(1799), utilizou, pela primeira vez na história da tipografia romena, o alfabeto latino.

11
N. do T.: Equivalente em português: próprio.

12
N. do T.: Eufrosin Poteca (1786-1859), iluminista romeno. Publicou em 1829 a tradução da Filosofia
da Palavra e dos Vícios, obra do filósofo alemão J. G. Heineccius, através da qual contribuiu para a fixação da
terminologia filosófica romena.
perguntas: estamos no império do real? ou de certa forma, mais do que outros, no do
possível?

Enfim, sempre o império do possível, mais poderoso segundo o nosso espírito do que o do
real, de que não nos livramos totalmente, assim como fizeram com tantos riscos alguns
mundos ocidentais, está prestes a ressurgir no horizonte daquela terceira doença espiritual
que nos acossa, a ahoretia. Com certeza, se de novo a doença é tomada, desta vez, menos em
suas formas acentuadas, assim como tivemos de a descrever, do que numa versão mais
discreta, a ahoretia poderia ser o principal “adoentamento” clássico romeno. É uma doença
da lucidez, e tanto o povo como o homem daqui parecem lúcidos e despertos; é uma doença
que não recusa, cegamente, os sensos gerais, assim como a acatolia, nem os sensos
individuais, assim como a atodetia, pondo em perigo desta maneira seja o equilíbrio no real,
seja o próprio real, mas só recusa - numa medida maior ou menor e onde mais uma vez a
nossa “medida” parece entrar em jogo - as determinações, incontroladas e não filtradas pela
sabedoria da mente, as quais o homem e os povos podem produzir.

Com ou sem o “rapto” que conduza a uma boa iluminação, assim como aparecia a ahoretia
em seus casos extremos, a doença em jogo dá as condições para a orientação sábia, por um
lado, ou desprendidas, por outro, uma orientação que pôde igualmente conduzir, como
vimos, a grandes experiências do espírito no Oriente, ou, uma vez com o espírito
matemático e racionalista que o favorece igualmente, a algumas grandes novidades do
espírito europeu de hoje. Poderia parecer curioso que as experiências extremas da Ásia e
aquelas, sempre extremas, da Europa tenham se tornado possíveis por uma mesma doença
espiritual. Mas elas têm algo em comum, e algo decisivo para o espírito: um bom encontro
com o negativo, ou com aquela negatividade da qual Hegel fazia a vida da razão.

Não nos pareceu que abusamos mostrando que, da ascese e da poesia até às matemáticas e à
revolução técnico-científica, o negativo da razão foi perfeitamente solidário com si mesmo e
ativo, mesmo se um tipo de ruptura tenha talvez existido entre o mundo europeu e o asiático
ou o indiano em particular. Pode ser que, porém, justamente a forma branda de ahoretia, de
que sofre o espírito romeno, possa refazer a continuidade, assim como se disse sobre o nosso
país que, no limite, poderia ser o pivô do mundo de amanhã, funcionando, com a sua dupla
abertura para o Ocidente e o Extremo Oriente, como o mediador de que o mundo da
história de amanhã vai ter tanta necessidade. Mas enquanto a proclamação de tal papel, seja
histórico, seja espiritual, ou de ambos os tipos, ainda não encontra lugar aqui, os principais
traços e sintomas da ahoretia já se encontram por aqui, autorizando-nos a dizer que ao nosso
espírito foi dada a experiência do negativo, até à assimilação da derrota num plano ou
noutro, com a superação, diferente porém não totalmente estranha àquela superação superior
(aufheben) que Hegel sabia invocar para a sua dialética, ou que qualquer dialética viva de hoje
implicitamente invoca. Pudemos encontrar no “ba13“ romeno as marcas vivas de um
autêntico espírito dialético, assim como encontramos na função positiva do diabo, em nosso
folclore, ainda uma prova concernente à nossa capacidade de colocar o negativo para
trabalhar.

Se nisso tudo podem-se ler as marcas do racional e um consentimento à racionalidade, que


não é estranha mesmo à mais baixa “racionalização” no senso comum - então quando ela
não se torna abusiva -, então estamos no direito de dizer que as formas plenas e ativas da
ahoretia, como aparente doença do desprendimento do mundo mas na realidade como uma
forma melhor de engajamento no mundo, podem ser encontradas entre nós. E mesmo se é
verdade, como nos parecia, seguindo, é verdade, linhas de certo modo subjetivas, que o
grande triunfo das naturezas ahoréticas se obtém nos anos tardios e com a sabedoria tardia,
então de novo podemos dizer que a forma de sabedoria que o nosso espírito ama é uma de
tipo ahorético. Permanece de qualquer modo em aberto, diante da tabela concreta das
doenças do espírito, a pergunta se a ahoretia nos caracteriza melhor que as outras ou não.
Algo porém nos parece decisivo para sustentar o primado da ahoretia, mais exatamente uma
palavra. Desta vez não será mais a “dor”, apesar de ela estar plenamente em seu lugar no
mundo bom e ativo da ahoretia, mas se trata da preposição “para”, que já invocamos noutra
parte e que vem novamente diante de nós, agora, oferecer-se como uma chave para a
compreensão de nossa natureza espiritual.

As vicissitudes do universal na cultura européia. O significado que pode ter a expressão de estar
“para” depreende-se melhor, talvez, da descrição sumária que poderíamos dar às vicissitudes
do universal na cultura européia, em particular da Idade Média e até hoje. Diríamos que nas
categorias, hoje banais e desconsideradas, de gramática podem ser encontradas as fórmulas
adequadas a essas vicissitudes pelas quais passou o universal na consciência européia.

Na Idade Média o universal era substantivo. Conhece-se bem a assim chamada querela dos
“universais”, e qualquer um sabe o quão facilmente eram substantivadas e personificadas
todas as noções gerais, não a fim de serem reduzidas ao concreto mas apenas para serem
representadas em seu universal. Assim, em Le roman de la Rose aparecem as conhecidas
personificações do Amor, do Ciúme, da Razão, da Amizade etc., mas também noções como
Doce-visão e Boa-acolhida. Tudo era pensado em universal, mas ao modo do substantivo.

O Renascimento trouxe um outro termo da nossa gramática tão significativo para o espírito:
trouxe o adjetivo. Agora a cor, a variedade, a nuança, a riqueza e, numa palavra, toda a feeria
do adjetivo como “epitheton”, epíteto, coisa posta sobre algo, entra em jogo. É o mundo de

13
N. do T.: Advérbio equivalente ao doch alemão.
Florença, com os seus tecidos, com as suas formas e cores, e no final das contas, claro, a sua
pintura e os seus esplendores artísticos. A Renascença inteira poderia ser entendida como um
mundo do adjetivo, onde a unicidade do substantivo desapareceu e surge a pluralidade e a
acumulação, até à bastardização, do adjetivo. Pois os bastardos são característicos desse
mundo (Leonardo da Vinci era ele próprio um bastardo), e com a bastardização, que levará
também ao barroco a sua exuberância, o adjetivo exprime, do início e até o fim da
Renascença, toda a sua aspiração ao universal, até mesmo em seu papel gramatical do bem
conhecido ideal humano do “Uomo universale”.

Veio depois o mundo do classicismo francês do século XVII, onde o universal não se
exprimia mais como substantivo, nem como adjetivo, mas como advérbio e com o auxílio das
locuções adverbiais. Esse Classicismo não pretendeu absolutamente possuir originalidade;
deteve-se apenas a ter maneira e estilo. Tomou, para as suas criações de todo o tipo, em
primeiro lugar para a tragédia, tudo o que lhe agradava da Antigüidade, ou mesmo dos
vizinhos espanhóis e italianos, mas soube tratar tudo “de maneira eleita”, “de maneira
motivada” com as profundezas psicológicas de Racine, “de maneira racional” com a
sabedoria crítica de Boileau ou na completa sinceridade do homem sobre si mesmo, com os
moralistas franceses, que não entenderam criar, mas apenas rodear com advérbios os atos e
os engajamentos clássicos do homem.

Se o século XVIII trouxe até o fim esse refinamento e essa estilização pelo advérbio, em
torno de 1800 aparece uma nova forma gramatical que toma para si as responsabilidades do
universal: desta vez é uma modalidade conhecida do adjetivo, sem nenhum retorno porém ao
mundo positivo e real qualificado pelo adjetivo. Agora aparece o comparativo e, após algum
tempo, o próprio superlativo. Na verdade, com as novas civilização e economia, com a
máquina em particular, surgem no mundo “mais bens” e o desejo ardente de obter em todas
as partes uma condição “melhor” para o homem. A característica desse mundo é que o
homem surge nele de certa maneira suspenso: o mundo não sabe mais (e hoje continua
seguramente não sabendo, na sociedade de consumo por exemplo) o que significa bem e
bom, mas sabe perfeitamente o que significa mais bem e mais bom, e ainda na versão
americana ele sabe admiravelmente o que significa muito bem e muito bom. Esses são os
valores que têm de ser buscados e o universal aqui teria se refugiado; mas quantos riscos
surgem para ele, vemo-os bem agora, e uns os viram bem ainda no início da preeminência,
no mundo dos valores, com o comparativo.

O mundo mais novo, de outro modo, especialmente o mundo ocidental da acatolia, mas
também geralmente o mundo da segunda revolução industrial, parece agora pôr acento
numa nova forma gramatical, para além de substantivo, adjetivo, advérbio, assim como
também para além de comparativo e superlativo. Com a técnica eletrônica e os sistemas de
comunicação e controle trazidos pela cibernética, o que domina é o mundo da conjunção. O
universal assumiu hoje, numa vasta parte do mundo, a forma da conjunção - respectivamente
e, ou, se… então - as conjunções que comandam a lógica matemática e, através delas, uma boa
parte do mundo das automatizações de amanhã. Espiritualmente, são as mesmas conjunções
que fazem as ligações entre homens e mundos. Mas elas ainda são ligações? Os contactos
entre homens por tais conjunções - e essa maneira de contato têm efetivamente os homens,
nas grandes aglomerações humanas, onde encontram-se acumulados de “es”, ou seja,
colando-se uns aos outros só através de: e eu, eu, ou onde se encontram separados pelos
“ous”, ou seja, ou eu, ou você -, tais contactos parecem, com a sua pretensão de representar
o espírito em sua universalidade, uma verdadeira dissolução do espírito.

Aqui pode entrar em jogo a contribuição romena. Ela vem apresentar-se com a forma
modesta de mais um termo gramatical, mais exatamente a preposição. Tudo o que nos
acontece, e de outro modo tudo o que acontece ao universal, deve obter um posicionamento
e um equilíbrio, deve existir em algo, acima de algo, com algo, a fim de algo. Mas um milagre,
ousemos dizer, da língua romena faz com que uma única preposição englobe todas as outras,
exprimindo não só a sua totalização, mas aparentemente muito mais: é a preposição “para”,
que compreende e torna possíveis, na verdade, com a sua falta de posicionamento espacial,
todas as outras preposições, em sua espacialidade exata. E com tal preposição, o espírito
romeno poderia trazer o universal para o mundo da preposição. Pois para que existem todos
esses grandes sucessos da civilização e do homem contemporâneo?

Se a vida do espírito tem um sentido, então é o de existir “para algo”, e isso o espírito
romeno, com modéstia mas com firmeza, poderia dizer a um mundo em que as doenças
constitucionais, hoje reativadas de maneira demasiado violenta, correm o risco de
transformá-lo, segundo o dizer indiano, na condição do si enlouquecido.

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