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AS ANDORINHAS AS ANDORINHAS
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Ficha Técnica
- NÚMERO DE REGISTO:
"As andorinhas"- 5756/RLINLD/2008
-PRODUÇÃO:
MATIKO EDITORES
-AUTORA:
Paulina Chiziane
-REVISÃO:
Américo Pacule
-TIRAGE~:
1000 exemplares
- IMPRESSÃO:
CIEDIMA, LDA À memória de RICARDO CHIZIANE
Provérbio Chope
Paulina Chiziane
Prefácio
Amâncio Miguel
VIII 11 Edição
AS ANDORINHAS
(1)
Paulina Chiziane 03
Quem manda aqui?
AS ANDORINHAS
- Às ordens, Alteza.
- Quem manda debaixo do sol? Os homens esquecem as ladainhas habituais de "Sim Alteza",
- Deus- respondem de novo em uníssono. "Viva Alteza", por tudo e por nada. Ficam simplesmente mudos,
- Deus? - a raiva do imperador cresce. navegando perdidos num mar de espanto. Treinados para a
-Sim. guerra, são cegos cumpridores das ordens, mas hoje questionam
- Quem é Deus aqui? em silêncio:
O Nguyuza é o primeiro a falar. É o chefe. A ele cabe a primeira - Estará, o imperador, enlouquecido?
palavra e ao imperador, a última. -Terá bebido um copo a mais?
-O nosso imperador é Deus. É o Mambo dos Mambos, o Nkulunkulu! -Terá fumado daquelas ervas que crescem livres nos campos?
Eles respondem a mesma ladainha de sempre, com tremor Na mente do imperador, a loucura e a lucidez bailam no
acrescido naquelas vozes de guerreiros. Pressentem que nada de mesmo compasso. Parece que a demência começa a marcar
bom virá daquele chamamento. presença. Subtilmente.
- Ordenei o silêncio - barafusta o gordo imperador. - Silenciar as andorinhas, Majestade? - pergunta Nguyuza.
- A aldeia inteira está em silêncio - responde Lumbulule - nem
- Não ouviste? Perdeste os ouvidos?
uma mulher a pilar. Nem uma criança a chorar. O silêncio é total.
- E aquele pássaro? - Perdão, Majestade. A pergunta é meramente técnica. Só queria
-Que pássaro? - Pergunta Khumalo. confirmar a ordem para melhor estruturar as regras, depurar o
Pousados no tecto do céu, os olhos dos homens iniciam a busca. método, refinar a estratégia desta missão.
Descobrem. O calor da hora recolheu os pássaros ao aconchego - Nguyuza, quero silêncio, muito silêncio. Que a natureza à volta
dos seus ninhos. Na sombra da grande mpháma, elas balançam, se cale na hora do meu repouso.
elas bailam. Trazem nos bicos pios alegres que chovem aos ouvidos - Sim, Alteza.
como a frescura da brisa. O Poder é uma armadura invisível que eleva o espírito humano
- São vozes das andorinhas, Majestade- responde Marivate. aos píncaros do absurdo. Pelo poder, os guerreiros sangram a terra e
- Foram enviados pelos espíritos para cantar louvores à sua castram a virilidade dos homens. De tanto poder, o imperador sente-
Majestade, embalar o seu repouso, Hosí! -Acrescenta Lumbulule. se no pico das montanhas de Zulwine, esquecendo o pormenor mais
- São vozes divinas prenunciando a paz - diz o filosófico Sithole, importante: no topo da pirâmide, o seu corpo de elefante não terá
sem convicção nenhuma - no magnífico canto afirmam que sua equilíbrio. Cairá.
Majestade é o mais potente dos homens e que fecundará todas
- A ordem está dada - remata o imperador.
as mulheres no mundo. Dizem, igualmente, que as vacas ficarão
- Estamos aqui para obedecê-lo, Alteza- completa Nguyuza- as
prenhes e as galinhas terão mais ovos. Prenunciam que os celeiros
abarrotarão de alimentos na próxima colheita. suas ordens serão cumpridas a rigor. De resto, as andorinhas são
- Conheces a linguagem dos pássaros, Sithole? - Questiona aves inúteis que nem servem para comer. Não respeitam o nosso
o imperador. imperador nem o nosso império. Vamos castigá-las.
- Não conheço, mas entendo. - Quero uma solução rápida, de qualidade!
- Não conheces e nem entendes, seu cabeça de galinha, cala-te! - Sim, Alteza. Só preciso de algum tempo para organizar uma
- Eles dizem que o nosso imperador é o eterno Deus, o rei expedição forte e dar lição a esses insubmissos.
sobre todos os reis - acrescenta Khumalo, atiçando ainda a fúria - Assim é que se fala General, assim é que gosto - sorria o
de Sua Majestade. imperador acariciando o ventre reluzente de bons manjares.
- Estúpidos, silenciem todas as andorinhas - ordena - apanhem- - A estratégia será infalível, Alteza - assegurou Nguyuza - A
nas. Tragam-nas aqui ao castigo, para que todas as aves do mundo vitória será retumbante. Traremos esses passarinhos ao magno
saibam quem manda aqui! julgamento, juramos. Serão castigados e aprenderão, na dor,
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Paulina Chiziane 05
Quem manda aqui?
AS ANDORINHAS
quem manda nos raios do sol e na direcção dos ventos. Todas as de comer aos peixes! Cem guerreiros mortos é o balanço. Outros
andorinhas do mundo saberão de uma só vez, quem ordena as cinquenta e tal sofreram graves mutilações. Perderam os braços,
tempestades e as trovoadas medonhas que ngungunham o mundo! perderam as pernas, perderam as cabeças. Agora é a guerra contra
- Concedo-vos apenas esta noite para se prepararem.
-Sim, Alteza. os pássaros. Quantos se irão perder desta vez?
Na diarreia acabada de ter, a expressão de medo. Naquele vómito,
- Agora desapareçam da minha frente.
o espelho do pânico. Nguyuza começa, então, a falar sozinho como
Todos baixam as cabeças e batem as palmas em sinal de total um louco. Revoltado, faz um exame do seu percurso e conclui: "a
submissão. Eles sabem que cada palavra do imperador é um escarro vaidade deste gordo, eu é que a sustento. Consumi a minha vida, de
sobre a vida. Ali mata-se. Ali morre-se. Para perder o sopro, basta batalha em batalha, de conquista em conquista, somando vitórias, só
apenas pisar o mais ínfimo risco.
para sustentar a grandeza que o enlouquece".
- É para já, Alteza! - responde Marivate.
O pôr-do-sol vem e dialoga com a sua imagem que se reflecte
- Longa vida, Alteza! - diz Lumbulule com voz de mulher.
nos últimos raios de sol. Espelha-se. Renega-se. Não, não é minha
Com a alma empanturrada de grandeza, o imperador regressa ao aquela imagem de sanguinário estampada no sol, que parte correndo
seu repouso e ronca, sereno. Era ele Mudungazi, o Ngungunhana! atrás do imperador, na conquista do nada, não, não posso ser eu. De
Que ngungunha homens e mulheres. Por isso, o mundo pertence-lhe! onde me veio esta cegueira, a ponto de me deixar montar como um
cavalo louco correndo ao gosto do imperador, aperfeiçoando a arte
de matar para sobreviver? Que poder é este que destrói, derruba,
( 2)
elimina? Eu quero mudar, ser outro. Gostaria tanto de nascer outra
vez, para ser outro, e não este!
Nguyuza sente calor e frio. O estômago comprime-se numa Outras andorinhas dançam na copa da mafurreira. Nguyuza
náusea profunda, e o vómito vem a caminho. Os intestinos também levanta os olhos e observa atentamente. Tenta identificar a que
se rebé"Jam, e ele corre em direcção à moita. Defeca e vomita logrou a maior proeza da história. Sorri e monologa: "Cagar no olho
fel, muito fel. Já livre do desconforto, procura repouso na sombra do imperador? Bravo macho é essa andorinha! Ousou desafiar a
predilecta. A purga traz-lhe clareza na mente. virilidade do mais alto do império, o Ngungunhana, que ngungunha
Pensa nas ordens acabadas de receber. As palavras do gordo todos os homens e todas as mulheres do planeta. Ah!"
imperador são o prenúncio da dança de sangue à volta do fogo. O riso traz nova inspiração. Irá, sabiamente, preparar a melhor
Com a história das andorinhas, o imperador busca pretexto para estratégia militar para abrilhantar a carreira dos bravos guerreiros,
uma nova sangria, as suas ordens são mais mortíferas do que as com uma caçada de pássaros, só para aplacar a ira do soberano.
balas dos portugueses. Seria mais fácil receber ordens para matar Irão todos armados de escudo e lança. Com que armas se iriam
um homem. Mas um pássaro? defender as pobres andorinhas?
Na capital do império, o luto ainda enjoa as pobres viúvas. Na Uma brisa repentina arrebata-lhe para o outro lado da vida, num
semana finda, guerreiros valentes foram atirados à vala comum, sono de magia, e os deuses se revelam. Num curto sonho, vê
como gatos mortos. Tudo porque o gordo imperador mandou primaveras e flores . Vê muito espaço azul e muita nuvem branca.
silenciar uma manada de hipopótamos que se refrescava no lago, Descobre que está no céu . Os seus olhos machos procuram um
em pleno sol. Organizou uma expedição, e os homens fizeram-se encanto celeste, uma estrela, um anjo do sexo oposto ao seu , um
ao desafio. Hipopótamos e humanos não lutam com as mesmas pedaço de céu, para guardar na memória e recordar. Foi então que
armas. Enquanto os guerreiros nadavam e tentavam desferir golpes viu uma andorinha fêmea de penas sedosas, reflectindo cores de
com as frágeis lanças de ferro, os hipopótamos, numa só dentada, diamante. Atraído por tanta beleza, transformou-se em pássaro, voou
quebravam o guerreiro pela coluna e atiravam o corpo para dar em direcção a ela. Esta, mais veloz, eclipsou-se entre as nuvens.
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Quem manda aqui? AS ANDORINHAS
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Quem manda aqui? AS ANDORINHAS
Inspirado pelo zelo no cumprimento da missão, lança ao ar todos Lumbulule retorce-se no tronco, fazendo par às chicotadas e uivos,
os dados: se no meio da mata um rato surge, há um celeiro por na dança e contradança. Um castigo sem história, sem suspiros
perto. Se uma ave doméstica aparece, há uma aldeia por perto. Uma nem lágrimas das mulheres. Elas estavam preocupadas com a
palavra injuriosa contra o líder é mensageira da conspiração que se própria fome, com o cansaço que fazia deles seres morto-vivos. Só
avizinha. De certeza, a mulher apenas repetiu a palavra ouvida na Lumbulule chorava de dor e de raiva, por estar a ser castigado sem
voz de um homem nos suspiros do leito. saber por quê.
Chamaram-me de louco, logo agora que o mundo das andorinhas - Se alguém, entre vós, me chamou de louco, nos ouvidos de uma
está mais nítido, mais visível, mais próximo. Agora que se tem a mulher, que se acuse!
pista, as mulheres lançam murmúrios com palavras mortas. Quem De novo, o silêncio.
está a cultivar a horta dos murmúrios? Quem as aduba? Lamentos - Vocês são soldados, e a vossa missão é disciplinar o grupo,
de mulher? Os homens lançam gemidos cancerígenos nos ouvidos lembrem-se. Não quero mais ouvir a palavra, louco. De agora em
delas. Quem terá sido? Algum guerreiro? O que virá depois deste diante, quero apenas ouvir o choro das crianças e as cantigas dos
insulto? Desordem. Anarquia. Fracasso. Decide, então, disciplinar o pássaros. Nada de lamentos, de quem quer que seja, ouviram?
grupo. O General manda interromper a marcha e põe em prática as - Sim, meu General.
cogitações que lhe correm na mente. Depois da sessão de castigo, a lavagem cerebral e a moralização
- Quem me quer chamar de louco que se acuse! do grupo. Nguyuza retoma a palavra em gritos de guerra.
A pergunta remete os guerreiros ao silêncio. Sabem o que significa - Somos um exército forte ou fraco?
desafiar um General em plena acção. - Somos fortes. Fortíssimos. Imbatíveis!- Respondem todos
- Quem ousa desafiar a minha autoridade? os guerreiros.
De novo, o silêncio. -Sabem de onde vem esta força?
- Passei por provas muito duras para me tornar homem - recorda -Sabemos.
- Então, digam-me. Quero ouvir.
o General- venci muitas batalhas para merecer este posto. Querem ,
- De Macupulane, o rei dos chopes.
agora, fazer-me recuar, perante um bando de pássaros? Jurei
- O que aconteceu?
fidelidade ao imperador. Cumprirei a missão com muita dignidade.
- Matamo-lo.
Serei condecorado, acreditem . A história da minha vitória será
- E depois?
contada e recontada. Serei consagrado herói depois desta missão.
- Bebemo-lo!
Não me respondem? - Sim , bebemos o rei dos chopes - remata Nguyuza - têm boa
Chegou a hora do desembainhar de espadas para recordar a memória, vocês, mas quero que me digam tudo em pormenores.
todos que a lei existe. Para facilitar a tarefa, começo. Eu , Nguyuza, a mando do imperador,
- Marivate, amarra o Lumbulule no tronco daquela árvore- ordena. atraí o rei dos Chopes para uma cilada e matei-o. Pronto. Cada um
A ordem é imediatamente cumprida, e os soldados tremem de que fale da sua parte nesse acto. Começa tu , Lumbulule.
medo. De onde vinha aquela aspereza? E por que a escolha do - Eu, Lumbulule, extirpei-o. Tirei-lhe o cérebro, o coração e as costelas.
Lumbulule, como vítima? E, por que se elegeu o Marivate como - Eu , Marivate, preparei a fogueira.
carrasco? Não conseguem resposta. São os mistérios do acaso - Eu , Khumalo, calcinei as partes do finado na grande fogueira.
escolhendo, criteriosamente, as suas vítimas. Tanto um como outro - Eu, Sithole, recolhi os pedaços calcinados e triturei-os num pilão
eram muito disciplinados. Mas também são os mais preguiçosos de mulher.
que, com maior prazer, saboreiam o descanso. O general retoma a palavra num breve sumário.
- Chicoteia-o, Marivate, mas não o mate. - Depois de tudo, eu Nguyuza, preparei a bebida. Misturei as
cinzas das partes do finado , num barril de água que todos beberam . - Só servem para engordar.
- O que será das crianças, General?
O grande imperador tomou o primeiro gole e embriagou-se . No
- Já viram as andorinhas? As fêmeas nunca transportam cargas
delírio da celebração, todos gritamos: "bebemos o rei dos chopes!
Não foi assim?" à cabeça, mas comem . Nunca fizeram guerra, mas são soberanas.
- Foi - respondem todos como crianças na sala de aula. Os machos nunca voaram com lanças, nem arcos, nem flechas , mas
- Assola-vos o medo do impossível? - Pergunta Nguyuza - vivem em liberdade. Sejamos como as andorinhas. Falemos a oração
Temeis a viagem ao infinito? A ordem já foi dada, escolhei. Cumprir de todos os pássaros no despontar de cada sol, vamos, aprendam
e viver ou recuar e morrer! e recitem : "Deus, dai de comer aos pássaros, dai de comer a nós,
- Cumpriremos as suas ordens, General! também". Vamos, repitam.
Os homens ficam estarrecidos. Levavam aquela missão de ânimo Os homens repetem:
leve, mas eis que outro louco transforma-a num autêntico jogo de - Deus, dai de comer aos pássaros, dai de comer a nós , também .
vida e de morte. Arriscando-se a um novo castigo, Lumbulule questiona:
- Quem me desobedecer será imediatamente imolado no fogo - Estamos longe de casa, General. Deixamos muito para trás a
da desonra. Atirá-lo-ei ao abismo por cobardia. Não será bebido, terra dos chopes. Afinal , aonde vamos?
porque não presta. Só se bebe o que é corajoso e bom , como o - A um lugar sem nome , caçar a andorinha que cagou no olho
Macupulane, o rei dos chopes. do imperador.
O General é sempre assim. Depois de castigar alguém, renova os - Mas , General , não estará também a ficar louco como o
ânimos . Sente o prazer de disciplinar e submeter. Depois da frieza nosso imperador?
glacial, o degelo. Finalmente a bonomia. - Lumbulule, meu refilão , já ouviste falar do país das andorinhas?
- Falemos, agora, como homens - convida o General - dizei-me - Quer mesmo a minha opinião sincera, meu General?
I com 9inceridade, bravos guerreiros: qual a causa desta insubordinação?
Com palavras controladas, os guerreiros dão as respostas necessárias.
- Fiz-te uma pergunta.
- O reino das andorinhas nunca se alcança- explica Lumbulule-
li - A fome , meu General - responde Khumalo - as crianças Elas vivem a primavera eterna, sem noite, sem sofrimento, sem calor
passaram dias e dias sem comer. A marcha é bárbara e as mulheres nem frio. São livres.
I, já emagreceram bastante. - Livres? O que é para ti a liberdade, Lumbulule?
- As mulheres! Existem seres mais resistentes que elas? Elas Fica em silêncio e voa num mundo sem guerras, nem castigos.
conhecem o sacrifício supremo no parto da vida . Elas aguentam. Um mundo onde tudo é azul, frescura e arco-íris.
E ainda bem que emagreceram - diz o General -a gordura atrasa - Não me respondes? - insiste o General.
a marcha. De novo, o silêncio.
Não existe tirania nas atitudes do General. Ela conhece o sacrifício - Tens muita razão, Lumbulule. A liberdade não se expressa. Vive-se.
a consentir e os caminhos da soberania. Sabe tudo sobre os limites
do corpo humano, mas a meta está na próxima etapa, não pode
permitir a desordem e o desassossego neste instante. (6 )
- No conforto e no repouso reside a morte da liberdade- explica o
General - liberdade é buscar, caminhar e, por vezes, sofrer. - O General ainda não voltou? - Pergunta o imperador pela
- Estão todas cansadas, General.
milésima vez.
- Sim. Por causa das inúteis cargas que transportam. Atirem-nas
- Não - responde Xabalala, o conselheiro.
todas às águas do Rio Púngue.
- Porque demora tanto?
- São mantimentos, General!
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Paulina Chiziane 17
AS ANDORINHAS
Quem manda aqui?
- Porque as andorinhas refugiam-se por trás da abóbada, depois A Sacerdotisa olha para o General. Ele olha para ela. Sentem
do Zulwine , nesse lugar onde ninguém já conseguiu chegar, com os chegado o momento.
pés vivos. Nguyuza ordena uma paragem.
- Pressinto traição. -Chegamos.
- Não, não creio. Doze luas completas durou a viagem de -Aonde? - perguntam os soldados.
Mossurize a Manjacaze. Dez ciclos da lua demora o parto de uma - Ao reino das andorinhas.
criança. Quanto tempo leva a marcha até ao país das andorinhas? Todos levantam os olhos para o céu.
- Chegamos? - Perguntam as mulheres e as crianças.
- E se o General não regressar?
-Voltará. -Chegamos, sim.
-Quando? O êxtase, finalmente!
- Como é belo, o reino das andorinhas! - suspiram as crianças.
-Em breve.
Todos conheciam, afinal, este lugar que fazia parte de todos os
O gordo imperador está a emagrecer. As guerras dos portugueses sonhos, sem imaginar que ele existia, de facto. Não sabiam que a ele
são poderosas e Nguyuza não volta. chegariam, nas asas das andorinhas. Os cajus maduros, as mangas,
- Será que devo mandar outra expedição para resgatá-los? os ananases e mapfílwa, colam-se às bocas sedentas de beijos, e a
-Ficaria sem guarnição, Majestade. É perigoso- aconselha Xabalala.
fome daquele povo morre num instante.
- Boa gente, - diz o General - estamos aqui para semear uma
nova bandeira. Chegamos à terra prometida.
(7) O sonho maravilhoso transforma-se em realidade. O fim em
princípio. Para trás ficou o triste cenário de um império em queda.
Os olhos dos viajantes espalham-se no céu onde as andorinhas Com as capulanas das mulheres, fizeram-se redes de pesca.
bailam, cantam e brincam. Qual delas provocou esta tortura? Esta? Com as catanas dos homens desbravaram-se as matas e nasceram
i Aquela? Nenhuma? O império de Gaza ficou lá atrás, com as as hortas. Nos bicos das cegonhas vieram os grãos de milho, de
I suas andorinhas loucas, destemidas. As que bailam neste céu são laranja, limão. Da cloaca das andorinhas vieram as sementes de
~I elegantes, respeitosas, não cagam em qualquer lugar. goiaba, de tomate, de papaia. Finalmente a fartura, o delírio.
- Porque não nos disse a verdade General? - perguntam todos
li A marcha prossegue com a maior disciplina do mundo,
ao mesmo tempo.
' com as vozes dos guerreiros a gritar como pastores de gado:
I vai, segue, marcha. Chegaram às margens do Rio Nhathe, o -Eu menti?
Zambeze. Mergulharam naquelas águas e purificaram-se. E -Não, mas ...
voltaram a caminhar. -As grandes mentiras incubam grandes verdades-íemata Nguyuza.
Chegaram ao Rio Chire e atravessaram. Chegaram a um lugar. - E as andorinhas, General?
- Se queres conhecer a liberdade, segue o rasto das andorinhas!
Divino. A música do éden ouve-se das almas das andorinhas, aqui
reside o princípio do mundo. O útero grávido dos montes dá à luz
dois rios irmãos gémeos, Licungo e Malema, que seguem destinos
&&&
opostos como o homem e a mulher, aqui nascem todos os pássaros.
A Sacerdotisa e o General sobem ao monte de mãos dadas.
Nguyuza escuta a melodia verde e azul que vem da flauta dos
Chegam ao ponto alto do Namuli, bem perto do Zulu. No trono
canaviais e sorri: o alimento do meu povo brotará ao lado das rosas
de pedra que a natureza criou. Nguyuza senta-se como um rei e
e antúrios que embelezam este solo. O meu túmulo estará nos
contempla as estrelas a partir do alto. Cansado de contemplar os
contornos mais altos destes montes desenhados com exactidão e
céus, desce aos rios para olhar os raios de sol a deixar-se reflectir no
elegância, porque aqui nascem todos os sonhos.
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Quem manda aqu i?
AS ANDORINHAS
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Quem manda aqui? AS ANDORINHAS
- O tipo dizia coisas do outro mundo. Estava humilhado e morto -Sim. O homem da montada chamava-se Muzimo wa Buquene -
de medo, mas reanimou-se de forma milagrosa. Será que a caganita (Mouzinho de Albuquerque) .
de pássaro injectou-lhe poderes mágicos pela cabeça? - E o cavalo? Tinha nome?
- Pode até ser. As andorinhas têm os seus mistérios. -Hã? - As mães ficam embasbacadas. Encabuladas.
- Quem derrubou o império foi o homem-cavalo. Porque se fala só
- O que nos vai acontecer então? Algum azar?
da vitória do homem e não do cavalo? Será que o tal homem podia
Na mente dos dois, irrompe o tumulto das noites tenebrosas, e ambos
ganhar a vitória, sozinho, sem o cavalo? Quem foi vitorioso de facto:
caem no poço adormecido dos fantasmas, como espelhos quebrados.
o homem ou o cavalo?
É mesmo isso. As ideias inquietantes conduzem-nos às trevas. As perguntas das crianças revolvem baús de amarguras no
-Vou partir- diz um deles coração das mães. Elas não respondem, mas fazem o balanço da
-Para onde? vida. Somos agora pássaros sem horizonte e sem azul por causa do
- Para um lugar onde essa maldição não me alcance. homem-cavalo. Por isso, lançam suspiros das feridas abertas.
O sipaio levanta-se cambaleante . Vai acelerando a marcha. - Ah , meninos, não incomodem os mais velhos com as vossas
Começa a correr como um louco e desaparece na mata. O outro perguntas, vão, vão brincar longe, vão!
termina de beber o seu copo para que o medo se afaste. Larga o As crianças, esses pequenos inocentes, são seres de questões
copo e persegue o amigo. Encontra-o tarde demais: Era já um peixe profundas. Elas perguntam. Em cada questão revolvendo passados no
flutuando no alto. Enforcou-se de medo! Os olhos abertos do morto reajuste das linhas do tempo. E o passado regressa ao presente.
pareciam transmitir imprecauções que faziam crepitar fogueiras - Dizem que o imperador falou muitas coisas. O que dizia ele?
mágicas adormecidas no monumento de cinzas. Não suportou -Cantou a liberdade .
aquele olhar e enlouqueceu para sempre. -A liberdade canta-se?
Perante o infortúnio dos dois sipaios, o povo inteiro aclamou a A liberdade vive-se, dizia Nguyuza, o general desertor. Como
vingança dos espíritos! explicar, então, às crianças o conceito de liberdade, quando por todo
o lado há prisão, xibalo, deportação? Como explicar que liberdade
&&& é palavra, semente, diamante? Como ensinar que a liberdade é a
fêmea que dará à luz uma nova estrela?
-Canta, mãe, canta então essa liberdade. Canta um bocadinho, só!
Várias imagens ficam gravadas na mente daquele povo. Um branco,
Elas então repetem a ideia. A essência. O resumo .
de chapéu e calças de caqui e botas altas. Uma montada vigorosa,
-Ele disse: a liberdade virá. A liberdade é gema de pedra preciosa
nobre, de pêlo reluzente. Sipaios pretos, cofiá vermelho, calções e
que resiste ao martelo dos tempos.
botas altas, caminhando a pé. Tiros de mauser . Pânico. Fim. - Onde está o imperador: morreu? Viajou?
- Não morreu e nem vai morrer. Ele está sempre aqui na forma de
&&& uma andorinha. É ele que prediz o futuro e celebra os ritos de vida
e de morte. Ele escolherá o homem bravo que lutará pela liberdade
Muitos anos depois as mães ainda teriam o trabalho de satisfazer desta terra. ·
a curiosidade das crianças, que perguntavam sem parar.
- Quem era o tal ser tão monumental, com quatro patas, duas &&&
cabeças, uma de animal e outra de gente com pele branca?
-Era um homem-cavalo. Homem, sabem o que é. O cavalo é uma Os chopes perceberam que o imperador, apesar da rivalidade ,
espécie de burro, mas é muito mais forte e só os chefes montam . era um bom amigo. Compreenderam também que, depois de uma
- O homem tinha nome? invasão, viria outra, com impostos pesados e a dor da escravatura.
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AS ANDORINHAS
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Paulina Chiziane 33
Maund/ane - o criador AS ANDORINHAS
morto que vivo. A serpente, que afinal era um deus, largou o menino, - Ele está num lugar sem sofrimento.
enrolou o pai e devolveu-lhe a vida. E tudo acabou bem. -Ele está morto, não está?
- Nada disso! Só está a viver do outro lado do mundo; por isso,
visitou-te no teu sonho, filho meu. Esteve contigo esta noite. Ele
(2 ) ama-te. Não fiques triste, vamos, dorme, para que ele venha de novo
ao teu encontro.
Um menino dorme e sonha com aquela história. À volta da -Avó, diz-me, como era o meu pai?
fogueira, a história é simples fantasia, mas no sonho parecia muito -O teu pai? - Responde pela milionésima vez- Grande filho ele
real. O herói da história era ele. Espanta-se. foi. Grande marido. Grande pai ele foi, meu menino.
- Porque é que só nos contos à volta da fogueira os pequenos As perguntas do menino despertam dores adormecidas e as
vencem? - Pergunta-se. Serei algum dia um vencedor? Vencedor lágrimas correm nos olhos da anciã. Ela funga. Também sente
de quê, sendo eu um pobre sem pai? No sonho transportei aquela saudade do filho perdido. O menino já não dorme, pensa. As palavras
serpente medonha, muito mais pesada do que as minhas forças. Se da avó fazem pensar.
foi sonho, porque é que o corpo me dói como se tudo tivesse sido De repente, pensa nos lamentos do povo, por causa da chuva
verdade? Seria eu, na vida real, capaz de semelhante sacrifício? que não cai, por causa do sol que tudo queima. Pensa na pastagem,
Há muito que a avó interrompera o leve sono dos adultos. Perante cada dia mais rala e nas vacas, cada dia mais magras. Pensa nos
o rebolar incessante do neto, ela pergunta: assimilados, cada dia mais arrogantes e nos sipaios, cada vez mais
- Chitlango, o que foi? Tens pesadelos? sanguinários. Pensa ainda no ser misterioso caminhando solto pelas
- O sonho, avó. ruas, metade homem, metade cavalo, o tal Muzimo wa Buquene que
-Ah? capturou o imperador de Gaza e faz desaparecer muitas pessoas no
Sorrindo, o menino conta as aventuras daquele sonho. Fala do cruzamento dos caminhos. Pensa nos pastos. Nos pássaros. Nas
pai doente. Dos dois irmãos que falharam a missão. Explica como foi estrelas que brilham lá fora. Adormece.
difícil transportar a serpente nos seus ombros pequenos e percorrer
caminhos, montes, florestas, com os pés descalços. Espanta-se.
- Serei eu capaz de tamanha coragem, avó? (3 )
- Já foste capaz!
-Aonde?
Na sombra da micaia, o menino e seus amigos fazem planos do
- No sonho, ora essa. Para ser herói na vida, é preciso ser herói futuro. Bem pertinho deles, a manada, feliz, rumina as mais doces
no sonho.
ervas dos pastos. Estão na pausa da pastorícia.
Há gozo nas palavras daquela avó que arremessa de novo a - Eu quero ser polígamo. Casar duas mulheres de uma só
mente do menino ao reino da fantasia. O menino não entende aquela vez - diz o .que parece ser mais velho. Primeiro vou trabalhar nas
resposta. minas do Rand , ganhar dinheiro para o lobo/o , bem antes de ser
- Estou a falar da vida real, avó! apanhado pelos sipaios nas rusgas e ser levado para o xibalo.
- Não crês em ti? - Também, quando for grande, quero ser mineiro - diz outro
-Em mim? com ar sonhador - quero comprar um relógio que toca, um rádio
- O sonho é seara da vida. e uma bicicleta.
Um sopro de saudade prQvoca o silêncio dos túmulos e o menino - Eu quero guiar um camião e vender carvão. Quero ser casado
morre de ansiedade. Questiona. com uma mulher gorda que cozinha bem - falava o gorducho com
- O meu pai estava doente no sonho. ares de comilão- a mim, os sipaios não apanham. Vou fintar-lhes.
- Eu não quero ser nada - diz o malandrote - gostaria de ter nos mercados de sexo.
nascido touro, para andar de curral em curral a cobrir as mais belas -Teimosos, o que querem saber? - Responde à pergunta com
vacas sem pagar lobo/o . gozo no rosto - os sonhos de um rei são segredo do Estado!
As fantasias dos meninos navegam em vôo rasante , as tesouras Entra na balada soturna e dança. Sou filho de uma pátria agreste
mágicas do xibalo decepam as asas dos sonhos que encalham onde se matam os homens para que as mulheres sofram de enxada
como barcos velhos, num mar dos tormentos . Os colonos matam na mão, alimentando, sozinhas, a nova geração de escravos. Sou
tudo o que lhes passa pela frente. Matam leões e elefantes, desta pátria explorada, mas não serei machileiro, nem mineiro, nem
florestas, pessoas. polígamo. Muito menos um escravo. Porque um Chivambo não
-Hei, molengão - grita o futuro polígamo- tu, não dizes nada? chora, dizia a mãe. Um Chitlango não se verga, mesmo que sofra,
Vais ficar a vida inteira nas saias da avó, reizinho da mamã? Já sei. repetia a avó. De repente, cai na realidade. Serei mesmo rei? Sou
Tens bom corpo para machileiro. Lenhador. Plantador. Chitlango protector de quê, se nem sei ler? Protector de quem, se
Chitlango responde com um olhar de desafio, não quer falar. sou protegido por duas pobres mulheres, que se esfalfam de sol a
Quer ouvir vozes que vêm de longe. Ouve os delírios da avó e o sol para me garantir alimento?
choro da mãe. Os lamentos do quotidiano na boca do povo. De Recorda as palavras da avó nos lamentos de cada dia.
repente se lembra desse ser misterioso; metade homem, metade "Os filhos deixam-nos, esquecem-nos - diz ela. Escrevem-nos
cavalo; o tal Muzimo wa Buquene, (Mouzinho de Albuquerque) que uma vez, duas vezes, e mais nada! O meu filho mandou-me uma
capturou o imperador de Gaza. Estremece. Esse homem cavalo carta e um cobertor. Teve ao menos dó do meu reumatismo, mas a
continua por aí à solta e abocanha os jovens para o xibalo no manta já apodreceu."
cruzamento dos caminhos. Com novas palavras, a mãe canta o mesmo desespero. "Os
- Diz alguma coisa, Chivambo, reizinho da mamã! homens, na África do Sul, comem, bebem, casam-se, enquanto nós,
- SÇ>bre quê? mulheres que os pusemos no mundo, vergamos debaixo da carga,
somos desprezadas. Esta casa e esta cozinha já não se põem de pé.
Responde de mau humor, mas por de dentro sorri. Adoça a mente
As térmitas, a podridão e o uso arruinaram-nas. Na próxima ventania
com belas imagens e fala de si para si. A avó me chama Chivambo
vão desabar."
o rei, sim. A mamã também. Dizem que fui rei , lá nesses tempos
Revolta-se. Esta terra amada se tornou viúva, se tornou solteira,
mortos. Um rei morto. Um rei nobre. A mamã acredita tanto nessa
não há homens bravos por aqui. Por causa do xibalo, das minas e
fantasia que passa a vida a chamar-me reizinho, por tudo e por nada.
das deportações. As mulheres é que têm que desbravar as matas,
Sou rei, pois, porque não? Rei descalço em trono de palha, neste
semear o milho e colocar os tectos das palhotas para o sustento
presépio que é a minha morada. Quando era pequeno, tudo fazia
dos filhos, os escravos de amanhã. Sou um pastorzinho de cabras,
às birras e aos berros, só para me prestarem vassalagem. Bons
não sou rei nenhum. Sou Chitlango apenas no nome, Chivambo-
momentos, aqueles! o-velho, apenas no sonho, não sou ninguém. Sente que será o
- Não tens sonhos, molengão? - pergunta o malandrote com ar próximo deportado, e treme de medo. Abandona os amigos, e busca
de provocação - não tens sonhos? segurança nos braços da avó.
Chitlango olha para os amigos do alto do trono e sorri. As vacas - Diz-me, avó, haverá um remédio para parar de crescer?
ao lado ruminam lentamente, preludiando um futuro de guisados e - Remédio de quê?
matadouro, enquanto os meninos celebram o porvir de incertezas: - Não quero crescer, avó.
partir para as minas e morrer no subterrâneo, ou regressar cheio de - Oh! Olha só! Munamasse wê? Vem ouvir o que me pede o teu
doenças. Ser deportado para o sofrimento, morte e esquecimento. filho! Oh, então, não queres crescer, malandro?
As raparigas mais lindas da aldeia, recrutadas como criadas nas - Quero ser sempre criança!
casas dos colonos e, finalmente, arruinadas pelo vinho e aguardente - Posso saber por quê?
- Para não ser mineiro. Para não ser deportado. Para não sair daqui. homem? Vou usar nova estratégia: aprender essa língua com que os
- Lindo menino! Fica, pois, sabendo que és o homem da casa. O invasores conspiram contra a nossa gente. Conhecer os sinais que
único. Deves crescer muito depressa para ajudar a tua mãe e a tua escrevem nos livros deles para nos tirar a terra. Para ser o homem
avó. Tu és Chivambo, não te esqueças disso. da casa, tenho de saber de tudo.
-Sim, avó.
- Promete-me, então, que vais crescer, e depressa. &&&
-Sim, mas não vou ser deportado, nem contratado.
-Terás de lutar contra isso. Matriculou-se na escola para saber tudo e ser o homem da
- Sou bom no soco, avó. Lutarei mesmo. casa. Estudou na escola dos indígenas, onde professores negros,
- Boa resposta! Assim é que os homens falam . arrogantes, torturavam os alunos, obrigando-os a servi-los nas suas
Lutar? O menino começa a avaliar a força dos seus braços lides domésticas, como ir ao rio buscar água, deixando-os com pouco
adolescentes. Lutar com os colegas das pastagens não é o tempo para estudar. Nos livros daquela escola não encontrou sequer
mesmo que lutar com o criador de todas essas desgraças. Dá por uma linha sobre o Chivambo- o rei que conduziu os homens à vitória,
si a questionar o mundo dos brancos. Não entende aquela gente há cem anos. Mas havia rainhas brancas, cobertas de jóias e rendas
que abandonava o conforto da grande metrópole para se fixar ali, como se os seus ombros fossem cabides. Nas cabeças, por que é
naquela aldeia pobre e pacífica. Queria perceber por que é que, que tinham coroas douradas e laços de seda? Não carregavam água
sendo eles estrangeiros, se julgavam donos de tudo. Por exemplo, nem lenha? Nas mãos, por que é que traziam os leques e não as
diziam: aqui é Portugal-Moçambique. Que contradição! Como é que enxadas? Se elas não trabalhavam, de onde lhes vinha o alimento?
uma terra pode ser outra terra ao mesmo tempo? Achava engraçada Nos livros de Geografia via tudo trocado. Por exemplo: aparece o
aquela história de registar a terra, como se alguém pudesse pegá- Rio Limpopo, sem nenhuma referência aos N'wanati, espíritos e
la, do!}rá-la, embrulhá-la num lençol, carregá-la no navio ou no gentes desse rio. Do Zambeze, nada se diz sobre o Nhyathe, seu
avião para ser registada numa repartição qualquer de Portugal. O outro nome. O imperador de Gaza aparece muito gordo e muito feio ,
registo das pessoas, sim, é fácil, porque elas têm pernas e andam. mas a avó diz que era bonito de cara, diz ainda que a vida era melhor
Mas, ... a terra? Por que é que eles trazem agonia, desespero, noites com o imperador, e que piorou com o invasor. Tudo lhe desagradou.
intermináveis de medo e raiva? Queria perceber a raiz desse poder Desiludido, transferiu-se para o colégio da missão onde melhor
que só maltratava os indefesos, mas não conseguia mudar o ciclo se adaptou. Ali, as pessoas aprendiam Português, mas falavam a
das estações. sua língua com toda a liberdade. E cantavam em coros lindíssimos.
Com um prato de mandioca, a avó interrompe-lhe os pensamentos. Na ânsia de melhor entender, tudo aprendeu. Infelizmente, antes de
- Vamos comer rapaz; come e cresce depressa, para seres o crescer para ser o homem da casa, a mãe perdeu a vida e a avó
homem da casa - dizia a mãe com um grande sorriso. morreu pouco depois.
-Homem da casa?- questiona-se Chitlango.
-Claro!
- Para que serve o homem da casa? - perguntava na maior (4 )
ingenuidade do mundo.
- Come e cresce. Depois saberás.
Chitlango retornou à casa e chorou o infortúnio, o ventre do tempo
Enquanto mastiga, o pensamento voa de novo para o espaço. deu à luz novas auroras. O passado acaba de parir o presente e
Como saberei ser o homem da casa, se o pai morreu pouco depois o choro se torna melodioso como o canto. As palavras delirantes
do meu nascimento e nem teve tempo de me ensinar o que é ser ganham a forma de profecias.
- Como poderei ser o homem da casa, se me deixaram sozinho? sua inteligência, pela sua magna estatura e musculatura delicada.
Já não sou homem da casa, sou um homem vazio, tudo acabou . Só vestia peles de animais nobres caçados pelos próprios filhos, que
Não morreste, avó; tenho a tua voz bem guardada no fundo do meu lhe assentavam admiravelmente".
ouvido; tu estás aqui, para ti morte não existe. Prometi uma manta Sente uma estranha vontade de derrubar as paredes do além e
nova e um reméd io para o teu reumatismo , eu vou crescer, vou penetrar. Despertar todos os antepassados para lhe aliviar a angústia.
ganhar dinheiro e cumprir a promessa. Conhece-lhes os nomes que a mãe lhe ensinara a repetir, dia após
Nos olhos adolescentes, as marcas de água moldam imagens dia. Mas ninguém conseguiu ainda a transposição da muralha
novas e ele balança na turbulência do fim e do princípio. tumular e realizar um passeio no reino das sombras. Compreende
- Rasgaste o ventre para me fazer homem, minha mãe. Não te que só o tempo cura as feridas da alma, esse tempo que comanda
perdi nem a ti, nem ao pai , cujo rosto não vi. as estações, amadurece a fruta e as mentes da gente.
No céu do entardecer, as andorinhas bailam enquanto no leito da
eternidade semeia flores do campo. Reza.
-Que não morra nunca o mugido das vacas que pastei. Que o sol (5 )
nasça sempre ameno e renove o colorido das buganvílias com que
farei coroas para a minha mãe e a minha avó, rainhas do meu trono O menino dá passos largos e percorre o perímetro do mundo. Em
Chivambo. Que a chuva caia e a vida se renove! cada passo, a renovação do sonho antigo: minha terra mãe, minha
Senta-se na entrada da casa. Gostaria de ficar ali até a noite cair, terra viúva e solteira; um dia voltarei para ser o homem da casa!
até a chuva chegar, até a vida acabar. Mas a vida é um peixe - Vive a emoção dos caminhos: este vale, este verde vivo, parece
dissera uma vez a avó - carne e espinho no mesmo petisco. Viver mesmo o das pastagens da minha infância. Esta pegada na areia faz
é essa arte de separar o espinho e a carne para saborear o petisco. lembrar o pé da minha mãe. Este azul, este brilho, fazem lembrar o
Então olha para o céu escuro onde pontos luminosos brilham. As lenço da minha mãe. Este sorriso, este rosto belo parecem mesmo
estrelas piscando no céu iluminam o caminho dos justos. Toma uma
da minha avó. E este homem? Tão alto, tão nobre, tão digno, é tal e
decisão súbita. Arruma os pertences e parte . Antes, faz uma prece .
qual o meu pai, cujo rosto nem ao menos vi.
- Que o Cruzeiro do Sul ilumine o meu caminho!
Caminha. Na Vila de Manjacaze vê homens condenados na
Em cada passo, as palavras da avó caem-lhe na mente como
construção do caminho-de-ferro. Vê o capataz branco, fuzil nas
chuva de granizo: "Tu não és igual aos outros rapazes, tu és o nosso
costas, chicote na mão. Vê o sipaio negro de bastão erguido,
grande Chivambo. Reinaste anos e anos sobre esta terra. Quando
batendo e desfazendo as costas dos homens em papas de sangue.
se é Chivambo, não se chora por tudo e por nada. Tu és o grande
Ouve os gritos dos capatazes sobre os condenados: "Quer erguer os
Chivambo, não te esqueças disso. És o senhor valente que conduziu
os homens à batalha!" ombros? Chicote. Olhar para o lado? Chicote. Vai urinar? Chicote".
A brisa ganha a sonoridade da voz da mãe, afastando os fantasmas A revolta de sangue se incuba. Ele caminha rápido para conhecer
dos caminhos: "não tenhas medo, Chivambo. Lembra-te que Dzovo, os mandantes da tragédia e obrigá-los a parar todas as maldades.
Kambane , Chivambo-o-Velho velam por ti. És tu quem vai erguer de - Quero alcançar o cerne da vida e ver onde tudo começa. Quero
novo o nosso clã!" conhecer o ventre e o túmulo onde o sol nasce e morre. Quero
caminhar para longe. Quero conhecer o falo mágico que engravida
I
i
- Serei o homem da casa, mãe, eu sinto. - ele repete a si mesmo,
enquanto lhe correm na mente as perguntas de sempre: o útero das pedras e montanhas mortas, no maravilhoso parto dos
- Como seria o meu pai se estivesse vivo? rios. Quero conhecer as salinas onde se cristaliza o fel que derrama
I
I A voz da mãe, vencendo as fronteiras do tempo, preenche o no coração dos homens. Eu vou sim . Vou descobrir o remédio para
I vazio: "O teu pai era um homem benevolente, que se impunha pela a doença de que padece a nossa terra.
Dá muitos passos até lhe nascerem todos os dentes de siso. A tudo. Até tenho secretária executiva, sou chefe! Que bela casa, que
barba nasce e cresce. Ele caminha até se tornar um homem feito, belo carro eu tenho, meu Deus! Que belo futuro me espera, eu que
que não pode ser homem da casa, porque na casa que fora sua, o vim do nada. Aqui neste serviço tudo se faz em inglês. Verdade seja
invasor montou o seu palco de tortura. Por isso atravessa fronteiras , dita: o majestoso embandeiro nasce na pequenez de uma semente,
mares e oceanos, até encontrar um abrigo seguro numa terra depois cresce e se agiganta.
I ,
distante. Era já um homem forte e um bocadinho careca. Senta-se, Sim senhor, eu sou alguém . Mas,.. . serei mesmo alguém?
! repousa e faz o balanço da marcha. Tenho diploma, mas não tenho chão. Tenho pão, mas sofro
-Venho da nobreza, mas vivi em extrema pobreza. Os invasores com a fome de um irmão. O meu pai , chefe de terra ocupada, não
transformaram a minha realeza Chivambo num trono de palha, mas tinha diploma nem dinheiro no bolso , mas era nobre e era alguém .
duas mulheres bravas lutaram pela minha sobrevivência. Estou vivo Porque tinha nome e tinha chão. A minha mãe e a minha avó
e estou aqui. eram duas viúvas com orgulho de existir, porque tinham sombra
Foi a inteligência da minha avó que me fez sábio. e tinham chão. Até as mulheres da aldeia que vivem em lares
Foi o amor da minha mãe que me fez nobre. polígamos , com muita fome e muitos filhos por cuidar, são pobres ,
Foi a imagem do meu pai que me fez mais homem. mas têm dignidade. As que frequentam o mercado de sexo, têm
Fui às pastagens e tornei-me bom pastor. boa comida, boas roupas e dinheiro no bolso, mas não são
Veio a dor da morte da mãe e da avó. Lutei contra ela e venci. ninguém. Nesta América de sonhos, não sou nada, sou apenas
Parti à conquista dos saberes dos brancos, lá onde a memória mais um. Na minha pátria ocupada eu sou alguém , porque sou o
das palavras é substituída por símbolos, letras, alfabeto. Escalei Chivambo, o Chitlango , o Dzovo, o Maundlane!
Manjacaze, Chicumbane, Mausse. Venci distâncias. Viajei para Não, não sou nada, aqui não sou ninguém!
Lourenço Marques numa camioneta mais incômoda do que um Os bravos guerreiros da minha pátria lutam com paus e pedras
chapa. Cheguei. e resistem tenazmente como bandos dispersos nas greves do cais.
Estudei tudo num zás e passei todas as classes. Até as mulheres já são levadas para o xibalo e pagam o imposto de
Na igreja tornei-me catequista. palhota. Escravizar as mulheres? É o fim. Quando os homens são
Na escola tornei-me professor. levados para o desterro, as mães ficam com os filhos e a vida se
ajeita. Mãe é pedra sagrada sem a qual a vida não existe. Uma avó
Em Portugal quiseram transformar-me em sipaio, arrumei as
malas e parti. é a luz sem a qual nenhum sonho se revela.
Fecha os olhos e dá um mergulho fundo nos mugidos das vacas lá
O regime sul-africano era mais feroz, queria sufocar a minha
liberdade, fintei-o e fugi. do seu tempo de pastorícia. De lá lhe vem o cheiro do solo e o choro
da terra. Vem-lhe também a dor da orfandade.
Sou um pobre órfão de pai e mãe.
Não, não sou ninguém!
Venho de longe!
Sabes o que é ser alguém, meu neto, sabes? - perguntava a avó
Conquistei esta América com os pés descalços!
- não sabes? Ser alguém - dizia ela - é parar de chorar. É ver a
tristeza a morrer e o sorriso a nascer. É ter a certeza de que um
corpo morre para que outro cresça. É olhar para o horizonte sem
(6 ) medo de mergulhar em liberdade no vôo das águias.
A memória se ilumina na parábola dos tempos. Cem ovelhas ao
Serei eu alguém? todo e uma perdida. O bom pastor larga todas e busca a que se
Fixei os pés com firmeza nesta terra conquistada. De pastor de perdeu . Na sua terra, essa parábola se inverte. Lá, de cem ovelhas,
gado, passei a pastor de almas, agora sou Doutor. Tenho bom salvou-se apenas uma, a que está na segurança das Américas.
emprego, gabinete confortável, um computador, ar condicionado e Noventa e nove encontram-se no meio das matas em chamas.
42 11 Edição
Paulina Chiziane 43
Maundlane - o criador AS ANDOR INHAS
Como recuperá-las? A experiência de pastorícia ganha na infância imagem de um povo se reflecte. Mas ele fintou a todos e chegou
reergue-se e reafirma-se. Um dia, ele salvou uma manada inteira de à Tanzânia, onde reuniu todos os lutadores dispersos, que, muito
uma queimada. Lembra-se. Já fiz isso com os bois e deu certo. E cépticos , perguntaram :
com os meus irmãos? Poderei eu ajudar as ovelhas de todo o meu - Quem és tu , que vens de longe e falas a língua dos brancos?
o
país a vencer círculo de fogo? -Sou o Chitlango, o Chivambo.
Sente, por dentro, um tremor estranho. Era o ·despertar para - Pareces estrangeiro, não és dos nossos. Como foste parar
o futuro dos séculos. Anuncia aos companheiros de trabalho a nessas terras distantes?
suprema decisão:
- Desafiei o mundo. Sozinho! No céu , o Cruzeiro do Sul me
-Vou partir.
apontava o caminho.
- Para onde assim tão de repente?
- Para a minha terra. - O que trouxeste desses lugares?
- Hã? Quando? - A lição da vida. Aprendi que o coração humano é maior que
-Agora! o infinito. Que na humanidade não existem raças, apenas almas.
-Porquê? Aprendi muita coisa, desde a hierarquia e a autodefesa nas
- Para ser o homem da terra. O homem da casa. pastagens , aos signos mágicos com que se abrem os livros dos
- Pense bem, Doutor! Lá, nessas Áfricas, tudo é atrasado, tudo mistérios, nas escolas do mundo. Andei de avião e desafiei os céus
são trevas. Mosquito, malária, cólera. Aqui está bem. Muito bem. O como os pássaros.
mundo inteiro luta ter um emprego aqui nas Nações Unidas. Agora -Dizes que és órfão. Como venceste, tu, as feras dos caminhos?
que o Doutor conseguiu tudo, quer voltar para trás? E a solidão profunda? Como acabaste com o desânimo, com o medo,
-Voltar atrás? a fome, a incerteza, se estavas só no mundo?
O Dr. Chivambo responde ao nobre chamamento. Ergue-se. - As vozes dos meus antepassados falaram sempre ao meu
Coloça o chapéu na cabeça. No braço esquerdo pendura o casaco, ouvido . Nos momentos mais amargos do percurso , eu lia a Bíblia.
e no direito a pasta. Em plenos pulmões ele grita: para trás? Não, As canções da igreja embalaram a minha alma. Lia, cantava,
não voltarei nunca mais! Vou , sim, para frente. Fixa os olhos no sol chorava ; a fome desaparecia, as feras fugiam para longe e eu
e lança-se no azul profundo, no vôo das águias! marchava, sereno .
- És demasiado nobre para ser guerrilheiro. És também
estrangeiro. Dominas os instrumentos desses brancos e não os
(7 ) nossos, Chivambo.
- A guitarra que tens nos ombros também é estrangeira, mas
Aterrou no coração da floresta densa. Cabriolando no colo da sua aí colocas o sopro da tua própria alma - argumenta Chivambo.
mãe África, mata de uma só vez toda a saudade. Come muitos cajus. Instrumentos dos outros? Ainda bem que os tenho. Haverá melhor
Mangas. Cheira o perfume verde das mafurreiras. Vê o povo. O seu arma que matar a cobra com o próprio veneno?
povo! Saboreia imagens antigas no acto do novo nascimento: como Os guerreiros quedam-se em silêncio. É mesmo assim. O mundo
é bom voltar aos braços da terra mãe! se cala quando a verdade passa.
Andou às escondidas pelas aldeias , até pelas igrejas, mostrando -Tu, que nos falas em união, diz-nos: alguma vez estiveste numa
pela prática que uma galinha é uma galinha e uma águia é uma guerra? Tens as mãos delicadas e unhas bem tratadas. Falas fino
águia. Gritava a plenos pulmões que o ser humano não tem asas, como os meninos mimados.
mas voa, porque a mente é feita de liberdade. Mostrou ainda que - Eu - responde Chivambo divertido - pastei gado e o defendi.
ser negro não significa ser escravo. Os sipaios queriam caçá- Nunca perdi cabra nem vaca, meu amigo. Era duro no soco, ninguém
lo. O regime colonial queria matá-lo, por ser o espelho onde a me desafiava, comigo tudo era bravo, fiquem a saber.
- Estamos a falar de armas. De espingardas, de pistolas. mente para que o sol penetre. Temos de remover as pedras do solo
- Foram fabricadas por mãos humanas. Dominam-se. para deixar o novo milho nascer!
Chivambo fala do milagre das formigas. Pequenas, juntas, Os guerreiros esquecem os medos, deixam as querelas e selam o
invisíveis insignificantes, construindo dólmenes, pirâmides, morros pacto. Tomaram uma decisão que não tinha volta.
de salalé. Fala das estrelas no alto, tecendo o manto celeste que - O que fazemos, agora?
ilumina o mundo. Fala das abelhas, das colmeias e da doçura do - Lutemos.
mel. Depois conta a sua parábola predilecta: a águia que fixa os - Até quando?
olhos no sol, levanta as asas em vôos inimagináveis. Fala da sua - Até à vitória final.
experiência de homem. Convence. Os invasores tinham cães medonhos, cavalos sipaios. Espingardas
- Que ganhamos nós ouvindo -te , estrangeiro , com nome e aviões que provocavam incêndios celestes. Eram poderosos! Para
de africano? acalmar o medo e afastar os fantasmas da noite, Chivambo fazia
- Unamo-nos. Todas as armas num só feixe. Derrotemos o papel de avô. Embalava os guerrilheiros com histórias à volta da
a amargura do percurso, para acabar com o sofrimento do fogueira. Contava muitas vezes aquela história dos três irmãos e da
povo. Venceremos! cura do pai doente. Com novas roupagens, claro, quem conta um
- Unirmo-nos? - Os guerrilheiros reflectem uns nos outros, conto, acrescenta um ponto. Contava assim:
pequenas rivalidades - nós? Unidos a esses aí? Eles são fraquinhos "Era uma vez um pai doente, que tinha três filhos. Dois eram
e lutam como galinhas. Nós? Somos galos, somos falcões! valentes, mas acobardaram-se diante do desafio. Era uma vez o filho
- Deixem-se de querelas. Formemos, já, a corrente humana que menor, o mais franzino, que era corajoso, que era inteligente, que
levará a serpente sagrada até à cura da nossa terra - aconselha venceu o desafio". Uma vitória ganha-se com coragem- resumia.
Chivambo- vamos, lutemos. Eles ganhavam coragem. Cada dia mais unidos, transportaram
-E as armas, de onde virão? Não temos como as comprar, somos nos ombros a serpente para a cura da terra. Andando uns atrás dos
camponeses, não temos dinheiro no bolso- argumentam. outros, como patinhos no lago. Serpenteavam pelas matas, pelos
- Quem tem cabeça, tem dinheiro na mão - adverte Chivambo - rios, pelos montes, carregadíssimos de objectos: sacudu, cantil de
já viram a distância entre a cabeça e a mão? Nenhuma. A mão vai ao água e outro material bélico. Cantando canções guerreiras, para
animar o percurso. De vez em quando, faziam uma paragem para
encontro da cabeça num zás, de lá tira o dinheiro que mete no bolso.
Não custa nada, quem bem pensa, tem tudo! admirar, saudar o líder:
- Quem és tu, que vens de tão longe e nos falas com a linguagem
Os lutadores se encantam e deliram: os verdadeiros profetas não
das estrelas? Cada frase tua remete-nos à nossa própria imensidão
aparecem apenas nos livros da eternidade. Estão do nosso lado e
e faz-nos descobrir a exacta dimensão da nossa grandeza. Tu és
connosco saboreiam o pão amargo do percurso. Nem os vemos
tão jovem, tão menino, mas tão sábio e ainda não tens nem um
porque temos os olhos vendados pelos brilhos nefastos deste mundo.
cabelo branco! ·
- Sejamos os libertadores da nossa terra martirizada pelos
- Sou agora um guerrilheiro - respondia Chivambo.
colonos. Unamo-nos- repete Chivambo.
- Eras mesmo tu o redentor que esperávamos, senhor valente
- Não queremos a guerra, mas os sipaios provocam-nos. que nos conduzirá à batalha! És tu sim, quem vai erguer a bandeira
- Tudo se fere na hora da gestação. O sol na terra. Catana no da nossa terra, Chitlango!
tronco. Semente no solo. O filho no parto. Perante o espanto, Chitlango explicava:
- Nós queremos paz . . - Herdei a perseverança da minha mãe, a sapiência da minha
- Paz é milho - diz Chitlango - semeia-se. Sejamos nós os avó e a nobreza do meu pai. De todos os antepassados ganhei esta
agricultores do novo milheiral. Abramos clareiras nas florestas da força, esta bravura.
Os guerreiros, emocionados, aclamaram numa só voz: A avó explicara várias vezes: Meu Chivambo, sabes o que é a
- Acende as nossas mentes com a vela da tua sapiência. Lava eternidade? Sabes como se faz? Do milho de ontem nasceu o milho
todas as nossas diferenças, para que não haja raças , nem tribo, nem de hoje. Deste nascerá o milho do amanhã. Da formiga de ontem
região dentro desta marcha. Molda-nos num só barro, e coloca o veio a formiga de hoje, que irá gerar a formiga do futuro. A árvore de
sopro da tua bravura nos nossos passos de tímidos e de indecisos. ontem trouxe a semente de hoje. Até o pó se transforma em pedra,
Leva-nos ao alto do monte e ensina-nos a descobrir o infinito, no vôo monte, casa, ponte, e volta a ser pó e areia. Eternidade é passagem,
das águias! caminho, testemunho. Tudo começa, cresce, termina e regressa
Finalmente, Chivambo assume o trono de fogo no reino da com vida nova. O amanhã que caduca também se renova. Meu
guerra. E portou-se tal como o seu pai , segundo a descrição Chivambo, tu és a eternidade, cresce e te alonga. Nós os negros
da sua mãe. Homem benevolente. Que se impõe pela sua estamos na terra desde o princípio do mundo, e esses colonos têm
inteligência, pela sua magna estatura e musculatura delicada. que parar de nos massacrar.
A única diferença é que enquanto o pai usava peles de animais Chivambo celebra a primavera que germina no canto das armas.
nobres, Chitlango vestia a farda de guerrilheiro, um boné e botas - Ah, liberdade amada! A ti devotei toda a minha senda. Por ti me
militares, que lhe assentavam admiravelmente! esfalfo, por ti eu morro, eu amo-te! És vida, és princípio. Por amar-
te, fiz-me guerrilheiro. Por ti designei-me mensageiro do porvir, a
ponto de desafiar os limites do meu próprio corpo. Em ti renascerei
(8 ) reverberante, como a semente de milho no beijo do orvalho. Por ti,
liberdade, a luta continua!
Um guerrilheiro interrompe o seu repouso só para entregar-lhe um
O peso das marchas cai-lhe sobre os ombros, e Chivambo busca livro. O livro era negro, com marcas de poeira. Ao abri-lo, Chivambo
o repoupo no útero do mundo. Sentado na cadeira de baloiço, abriu a mágica página da vida nova. O livro era um relâmpago que
regressa, relaxadamente, ao ventre materno.
o elevou para um lugar onde o sono nunca acaba. Dormir era tudo o
"Era uma vez, um pai doente e três irmãos à procura do curandeiro que queria naquele amanhecer. Cumpriu-se a bênção e a maldição
no coração da floresta".
da sua sina: "Pelos livros vives, pelos livros morrerás"!
Nesta história era ele o filho mais novo. Quebrou barreiras,
derrubou fronteiras. Transformou a serpente mágica em dragão
com o tamanho de uma nação, que lança majestosas fogueiras (9 )
que matam a sede sanguinária dos invasores. O colonialismo
reage. Ataca. Recua. A doença da terra está a curar, a liberdade Imagens renovadas fluem na mente que desperta. Chivambo está
virá, tem a certeza. Sente uma fadiga dilacerante, hoje só quer a flutuar na suprema dimensão. Vê coisas antigas e os amigos que
descansar. Baloiça. há muito partiram para o outro mundo.
- Sinto vontade de dormir, hoje - fala em surdina e as - Boas vindas, Chivambo - diz a avó - feliz despertar para a
ondas escutam . nova vida.
Em silêncio, as lembranças executam a dança dos pássaros. -Avó? Tu aqui?
Ascendem. Descendem. Recuam. - Onde deveria eu estar?
- Venho de longe. Conduzi os homens à batalha que vai erguer - Se já morreste, como conseguiste atravessar a fronteira?
de novo o clã da nossa pátria! A guerra vibra e a terra dança, a Os dentes da avó refulgem como bagas de milho, no amanhecer
vitória é certa. Posso morrer hoje, que a liberdade da minha terra das estrelas. Ela move-se com a graciosidade das brisas, o corpo já
me libertará. esqueceu o reumatismo.
- Tu é que vieste ao meu encontro, eu nunca saí daqui. - A porta dos tempos abre-se com vigor e o parto da alma faz-se
Chivambo inspecciona tudo movido pela surpresa. Vê o com amor. A morte tranquila não tem história.
presépio iluminado da sua infância. Na pradaria, as cabras saltam - Conta-me, avó, como cheguei até aqui?
e os bois mugem suavemente. Busca, em redor, vestígios do -Vieste num violento tropel. Mil cavalos trouxeram-te da fronteira
fatídico momento: procura a arma, as botas e a farda militar. O - esclarece a avó. Tiveste uma entrada triunfal, com muita dança
título do livro que não chegou de ler. Ali não existe caos tudo é e muita pompa. No m'saho das boas vindas, os grandes mestres
ordem: areis solta, vento e frescura . tocaram a timbila. A dança do limbondo foi genial. A muganda foi
-Que lugar é este, avó? fantástica. A ngalanga e o nhambarro foram as danças fortes e
- Não reconheces? Renasceste do ventre de luz numa as anjas dançarinas se redemoinhavam como piões. Foi uma
explosão perversa.
celebração perfeita.
-Como? - Anjos que dançam? Onde estão que ainda não vi?
- Chivambo, filho de Khambane, desperta! -diz a avó- quando - Consegues ver o teu próprio nariz?
tudo passa, aprendemos que a vida não tem forma concreta. -Eu?
Descobrimos que o fim é apenas uma paragem e uma mudança. - És um deles.
Ontem lá e hoje cá. Aqui a morte não existe. -Eles quem?
Chivambo esfrega os olhos e escuta o silêncio dos próprios -Os anjos.
passos. Descobre que o seu olhar penetra em todos os segredos, - Não tenho asas.
tudo é transparente. -Tens asas na mente, és uma águia- explica a avó -voaste
-Avó, acha que morri? e alcançaste dimensões inimagináveis. Descobriste os segredos da
- Morte é sono, é mudança, sabes disso. criação. És um anjo sim, sempre foste.
-Mas, se estou aqui! ... Avó e neto conversam animadamente e passeiam de mãos
-Vieste de lá para cá, então estás vivo. Tu falas e eu respondo, dadas pelos carreiras. Nesse instante ele descobre: aqui começa o
sem rituais nem missas, porque estou na tua presença. Quem está princípio. O sol é um girassol cujas pétalas se tangem, aqui nascem
do outro lado do mundo diz que o além é aqui. Agora que estás todas as auroras. Daqui partimos para a grande aventura, voamos
aqui, o além é tudo o que ficou do lado de lá. Tudo é mudança, e regressamos, a vida não tem morte. Aqui somos todos antigos,
transferência, distância, a vida é eterna. renascidos, reciclados, reencarnados. Temos todas as idades.
- E aquela explosão, o que era? -Quando será o meu juízo final?
-Todo o parto é violento. A vida começa com lágrimas e termina - O teu quê?
com outras. O choro é a celebração do fim e do princípio. - O julgamento das coisas que andei a fazer por aí.
-Terei um funeral? - Quem tem poderes para te julgar a ti, um ser completo, perfeito?
- Claro que isso não pode faltar. Os vivos têm os seus rituais - Perfeito? Eu? ·
e os seus ritmos. Deixa-os viver os seus momentos de luto e -Tu sim, não sabias? Então, vais saber já. E agora, vais ficar em
abominar a morte. Venerar o invisível sobre o teu túmulo. Colocar silêncio, muito silêncio, que hoje vou contar-te mais belas histórias
uma pedra no marco da tua passagem . do amanhecer.
- Era uma bomba, não era? O dia é perfeito para revelações. As histórias que a avó vai contar
-As salvas de canhão anunciam a partida dos heróis, assim tem a profunda dimensão do cosmos. Ela está inspirada, está
como o fumo e a neblina anunciam a chegada das estrelas nos satisfeita, até parece que esperou a vida inteira por aquele instante.
palcos da humanidade. -A tua perfeição está nos sons com que te invocamos em cada dia.
- Senti a suprema dor... Os teus nomes são o enigma da plenitude: Chitlango e Chivambo,
encarnando os espíritos machos. Dzovo e Mondlane são o ventre do e uma idosa, podem educar uma criança com valores altíssimos,
universo, o útero do mundo, espíritos criadores, maternais, altruístas. mesmo vivendo na extrema pobreza.
Toda a história da terra, em ti se encerra. Por que é que Deus deu-te 1 A avó desenha, com palavras vivas, a ponte da existência.
esse corpo possante, porquê? E a força que reside nos teus braços? - Maundlane, ou Mondlane, significa criador, protector, incubador.
-Mas, avó ... Significa também piedoso, caridoso. Este apelido foi-nos dado pelo
- Silêncio, menino, silêncio, deixa-me falar. Aqui deste lado, o povo na consagração dos nossos actos, há muitos e muitos anos.
teu nome de Eduardo é de pouca monta, pertence a esse mundo Chivambo-o-Velho, de quem herdaste o nome, era um homem de
que deixaste. grandeza espiritual. Protegia os necessitados, os maltratados, os
Chivambo escuta as maravilhosas lendas da criação. excluídos. Protegeu todos os que tinham fome e sede de justiça.
- Chivambo é escopro e martelo. É lança, é funda, é punhal. Incubaste e pariste uma nação no teu ventre Maudlane. Ergueste os
É cruz e cadafalso. Sujeito e objecto de tortura. Eras tu o homem maltratados e excluídos na luta contra a injustiça.
de que o gordo imperador falava, eras tu . Ele disse que nasceria, Avó e neto. Aqui todas as gerações se fundem e os mistérios
aqui , o Chivambo objecto de tortura que iria desafiar e eliminar o se revelam . Água do rio recolhendo ao ninho, no delta da vida.
regime, golpe a golpe, com pancadas de chivambo- martelo. Com o Chivambo saboreia o gorjeio das águas na fonte da vida.
chivambo-escopro derrubaste os calhaus que obstruíam a circulação - Dzovo é pele de animal -conclui a avó - serve ainda de manto,
dos rios e abriste os canais para a nova vida. Com o chivambo- cobertor, tanga, roupa. Alcofa do recém-nascido. Incubadora dos
/ança-funda-punhal, armaste um exército poderoso que apagou num prematuros, nos tempos idos. Todo aquele que tinha frio no corpo
sopro, as mauseres, os canhões e todas as armas dos heróis do e na alma, recebia o dzovo das mãos de Chivambo-o-velho. É por
mar. Foste o chivambo-cadafalso, o estrado onde a pedra viva se isso que, depois de muitas gerações, o povo inteiro ainda nos saúda
martela na construção do edifício de uma nação. com um ritual de gratidão: "saúdo-te Dzovo, que incubou a alma
Est~ na plenitude, o Chivambo, e bebe luar em taças de cristal.
do povo dzovo da vida, bom dia! Obrigado, Maundlane, Mondlane,
Segura as estrelas nas pontas dos dedos. Aprende a brincar com de N'wanati, de Khambane, de Dzovo, de Mbinguana, que nunca
pedaços da lua, a virá-la, revirá-la, a manejá-la e vai iluminando a abandona um só grão de milho na aridez do deserto! Longa vida,
terra, assim, às fases. Mondlane, obrigado e bom dia!" E tu, Chivambo-menino, teceste o
A avó continua a falar das fórmulas mágicas do destino. dzovo-manto e com ele cobriste a nudez da tua nação. Teceste o
- Chitlango é arma e escudo. Abrigo e defesa. Sombra. Fortaleza. dzovo-bandeira com que afirmamos a nossa dignidade nos mastros
Tu és a rocha firme onde o oceano lança a fúria das suas ondas do mundo e que irá cobrir todas as pessoas de toda a nação em
e reencontra a calma. És o monte alto que quebra a força dos todos os tempos!
ventos para proteger as flores dos cajueiros. És a pedra funda Chivambo se encanta. Afinal de contas, o destino e o divino
que acolchoa o leito dos oceanos, para que os navios de paz mistério estavam ali à vista, empilhados em pequenas sílabas, com
naveguem em segurança. Haverá, neste mundo, protecção mais o paladar métrico dos fonemas.
poderosa do que tu? - Avó, sai de casa sem despedir. A minha esposa e meus filhos
Chivambo sente-se leve, sente que voa. Extasia-se. estão a chorar por mim a esta hora.
- De Dzovo e Maundlane, veio esse teu lado criador e maternal. - Tranquiliza-te, Chivambo, que a vida é assim. Choro e dor é a
Geraste milhões de filhos espirituais que transcendem a vastidão sina de todos os mortais. Habitua-te.
das fronteiras da nossa pátria. Retalhado por uma bomba, libertaste - Habituar-me?
o rio do teu próprio sangue, só para transfundir vida nova na alma - Os homens bravos morrem jovens. A esposa do bravo é
anémica do nosso povo. Ensinaste, pelo exemplo, que ser órfão não sempre viúva. O filho do bravo, sempre órfão, conhece o pai
é ser mendigo. Mostraste ao mundo que duas mulheres, uma viúva 11 apenas na memória. Sossega! Estava escrito nas páginas da vida
52 11Edição - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Paulina Chiziane 53
Maundlane -o criador AS ANDOR INHAS
do teu pai que tu, seu filho, viverias sem pai. E sem pai cresceriam o poder do filho que de ti nasceria? As canções de coragem com que
os seus netos . te embalei eram apenas para te animar. A gravidez não teve nenhum
- Estava? Porque não me deixaste ler essas páginas antes? sinal diferente. Nem mais enjôos, nem mais vómitos, e nasceste
- Para quê? A orfandade não começa contigo. Nem terminará igualzinho a todas as crianças. Nem ao menos imaginava que serias
contigo. Nas gerações futuras, milhares de crianças crescerão a materialização da profecia do nosso imperador, o gordo!
sem os pais, por causa de guerras e doenças malignas que ainda Chivambo dá um beijo no rosto da avó e confessa:
hão de vir. Serão alimentadas pelo amor imenso das suas mães - O que seria de mim sem a vossa existência? Venci todos os
e pela sabedoria das suas avós . Como tu , serão também sábias. desafios, alicerçado no poder das vossas almas. São vossas, todas
Corajosas . Maravilhosas. Heróis e heroínas do seu tempo. as vitórias deste mundo. É vossa, toda a grandeza que brilha nas
- Quer então dizer que vou ficar aqui só a passear sem cores do nosso dzovo, a nossa bandeira. Amaldiçoado seja quem
nada fazer? louvar apenas os meus actos, sem invocar os vossos poderes
- Engano teu . Aqui tens novas tarefas, já és um espírito: vais criadores, que fizeram de mim o homem que fui.
proteger todos os teus das tempestades satânicas da terra com o
dzovo sagrado. Afastar o fogo terrestre das epidemias e das guerras
que ainda hão-de vir, com o chitlango celeste! ( 1o)
- Não acha que parti cedo demais? Gostaria tanto de terminar
tudo o que comecei.
Cinquenta anos depois
- Tudo? O que queres tu dizer com esse teu "tudo"?
- Onde está o Chivambo? - pergunta um adolescente à sua avó.
-A paz da terra, avó. A liberdade.
- Subiu - responde ela.
- Deixaste a áNore em terra fértil , crescerá. Sossega.
- Para cima da áNore?
- Go~taria de fazer uma rega.
- Não, para mais alto.
-Ouve de uma vez, Chivambo: cumpriste já a tua parte, descansa
que agora estás morto. - Para as nuvens?
- Estou mesmo morto, avó? - Não, para muito mais alto. Para o Altíssimo. Por que queres saber?
- Morto? Alguém aqui falou de morte por aqui? Nunca disse tal - Quero conhecer esse homem extraordinário. Nasci agora. Há
coisa, nunca, porque tu, Chivambo nunca morrerás. poucos anos. Como poderei conhecê-lo, se está no alto?
Ele conforma-se. Dá um passeio no bosque e colhe uma flor com -Ele tem ouvidos sensíveis, chama-o. Está no céu, no aconchego
que enfeita os cabelos entrançados da mãe. Canta-lhe ao ouvido I'
do Cruzeiro do Sul. Também está na terra, está aqui. Ele morreu e
palavras de mel. renasceu em forma de semente . Semente que se fez áNore. É ele a
- Foi a tua voz que me despertou minha doce mãe - confessa mafurreira da vida que nos dá a seiva sem a qual não existiríamos.
Chivambo - da criminalidade pagã do colonialismo cresceu a -Ainda bem.
clarividência. A magia das tuas palavras transformou em riqueza, - Por quê?
a pobreza das nossas vidas. Coroaste-me rei ainda no teu ventre, - Se tem a forma de luz e a forma de árvore, então tem a
minha mãe! forma humana. Está mais próximo de mim do que nunca. Preciso
A mãe vive a felicidade sem fim. Delira. de lhe falar.
- Chitlango, nasceste mesmo de mim? Como puderam os deuses - Não entendi - pergunta a avó mais intrigada.
colocar tantas estrelas num só ventre? Todas as mulheres do - As almas dos vivos estão na terra e dos mortos no céu. Ele está
mundo perguntam-me: como foi a gravidez desse astro? Era feita de em todas as dimensões. É omnipresente. Omnipotente.
espelhos? Era de ouro ou de prata? Não pressentiste, nesse tempo, Dito isto, o adolescente afastou-se sereno. Pouco depois, voltou
56 11 Edição - --------------------------
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'' ' I I
AS ANDORINHAS
(1)
(2 )
Paulina Chiziane 61
MUTOLA, a ungida AS ANDORINHAS
da vitória que virá com príncipe encantado que as levará ao palácio torpes com anuência dos homens. Devias fazer um curso de
de uma cozinha existente nas traseiras de uma casa, com muita bordados, de croché e de boas maneiras. Vem que te ensino a servir
pompa e circunstância. É a tradição. um bom café, vamos lá menina, deixa essa coisa de corridas e bolas
Porque ela é copo de água - diz-se - tem que se manter fresca que a cozinha é o nosso canto.
para ser servida a esse príncipe que virá, um dia. Porque é galinha Teriam essas vozes, razão? Sim. Não. Talvez. O milho no pilão
o ilustre visitante - diz-se ainda - ela tem de manter a musculatura sofre um golpe e outro golpe. Fica limpo. Demolha-se. Depois sofre
suave e tenra de um franguinho, para o tal príncipe. Desde séculos, as novos golpes. Peneira-se. No fim vem a farinha branca e a xima boa.
mulheres cumpriram sem questionar estes princípios que funcionam É isso mesmo. A vozearia martela os sonhos, mas também forja.
como leis invioláveis, inalteráveis. Uma vez alguém disse:
Quando aquela menina nasceu, todos a aplaudiram. Criatura - Menina, os teus pés têm uma missão importante, pelo povo não
doce, igualzinha às outras. Cresceu obediente, inteligente, submissa serás esquecida!
como se querem as meninas bonitas. Até que um dia começou a Filiou-se num clube de futebol masculino. Experimentou a força
andar ... Descobriram que ela tinha passos de gazela. Velozes. do corpo no rectângulo do jogo e deu passos na descoberta da nova
Chegava com rapidez a toda a parte. Era vento e brisa. Era muito vida. No dia da competição, jogou ao lado dos homens perante o
ágil e muito firme. Sinais de uma guerreira. Olhava sempre para o assombro do mundo. O país ficou paralisado de espanto enquanto
horizonte. Tinha sonhos. Alguns anos depois, começou a frequentar os pés dela avançavam, defendiam, fintavam. Fez uma jogada
a escola. Enquanto as colegas jogavam ao ringue, ela corria atrás magistral e marcou.
de uma bola. - Golôôôô! -gritou o relator da televisão.
- Maria rapaz - diziam as colegas. - Viram quem marcou o golo? - Comentavam os populares
- Sou Maria e sou menina - respondia ela divertida. Na marcação do golo, o embaraço da equipa. Como podiam os
E continuava com as suas brincadeiras. Era bonito vê-la na homens saborear a golada com abraços efusivos e saltos mortais,
frescura das ruas, pezinhos leves tangendo a bola, com a doçura de se ela era mulher? Como celebrar a vitória com a mesma loucura de
uma música suave. sempre, se o corpo da mulher só pode ser tocado pelo seu homem?
Sonhos reveladores afloram como pirilampos no espelho do Os comentaristas da rádio relatam o facto com vozes sincopadas. Não
tempo. Uma voz saia-lhe da planta dos pés, segredando: chegarás. sabem o que dizer ao certo, não foi ainda desenvolvido o vocabulário
Chegarei? Aonde, se nem sei aonde vou? Um rio verde perto de ti. jornalístico para golos de mulher. Para remediar a situação, o locutor
Bem debaixo do milheiral. Busca-o. Então pegava na bola e atrás da rádio diz algumas palavras tontas.
dela corria. - O golo extraordinário foi marcado por uma mulher que nem
- Maria rapaz! parece mulher, aquilo parece golo de homem mesmo, é espantoso,
- Eu? Ah! As andorinhas inspiram-me - confessava - quando as mulheres não percebem nada de futebol e nem sabem jogar!
corro atrás de uma bola, sinto-me a voar na conquista do mundo. Foi extraordinário! Esta mulher vibrou, brilhou, mostrou o que valia,
Qualquer dia me inscrevo num clube de futebol. parecia até uma águia no meio de galinhas!. ..
-Futebol? Ah, essa não! O desconforto tomou conta da equipe. Apesar da feliz vitória,
- Que mal há nisso? aqueles jogadores tiveram que engolir palavras jocosas que os
- Vais ficar com os músculos rijos. Tens que te resguardar. adversários lançavam sobre eles. Desconforto sentiram também os
Aguardar. Tens que ficar com a pele de tomate. Ou de caju. Posso treinadores e os adeptos. Ser superado por uma mulher é uma grave
ensinar-te ... afronta! Inadmissível! Simplesmente inaceitável!
Uma vozearia espessa se eleva sobre ela, como mosquitos - Isto é nefasto para o estado psicológico da equipe - disseram
zumbindo febres palúdicas. São as mulheres derramando discursos muitos - uma mulher não pode jogar futebol no meio dos homens.
de uma cozinha existente nas traseiras de uma casa, com muita torpes com anuência dos homens. Devias fazer um curso de
pompa e circunstância. É a tradição. bordados, de croché e de boas maneiras. Vem que te ensino a servir
Porque ela é copo de água - diz-se - tem que se manter fresca um bom café, vamos lá menina, deixa essa coisa de corridas e bolas
para ser servida a esse príncipe que virá, um dia. Porque é galinha que a cozinha é o nosso canto.
o ilustre visitante - diz-se ainda - ela tem de manter a musculatura Teriam essas vozes, razão? Sim. Não. Talvez. O milho no pilão
suave e tenra de um franguinho, para o tal príncipe. Desde séculos , as sofre um golpe e outro golpe. Fica limpo. Demolha-se. Depois sofre
mulheres cumpriram sem questionar estes princípios que funcionam novos golpes. Peneira-se. No fim vem a farinha branca e a xima boa.
como leis invioláveis, inalteráveis. É isso mesmo. A vozearia martela os sonhos , mas também forja.
Quando aquela menina nasceu, todos a aplaudiram. Criatura Uma vez alguém disse:
doce, igualzinha às outras. Cresceu obediente, inteligente, submissa - Menina, os teus pés têm uma missão importante, pelo povo não
como se querem as meninas bonitas. Até que um dia começou a serás esquecida!
andar ... Descobriram que ela tinha passos de gazela. Velozes. Filiou-se num clube de futebol masculino. Experimentou a força
Chegava com rapidez a toda a parte. Era vento e brisa. Era muito do corpo no rectângulo do jogo e deu passos na descoberta da nova
vida. No dia da competição, jogou ao lado dos homens perante o
ágil e muito firme. Sinais de uma guerreira. Olhava sempre para o
assombro do mundo. O país ficou paralisado de espanto enquanto
horizonte. Tinha sonhos. Alguns anos depois, começou a frequentar
os pés dela avançavam, defendiam, fintavam. Fez uma jogada
a escola. Enquanto as colegas jogavam ao ringue, ela corria atrás
magistral e marcou.
de uma bola.
- Golôôôô! -gritou o relator da televisão.
- Maria rapaz- diziam as colegas.
- Viram quem marcou o golo? - Comentavam os populares
- Sou Maria e sou menina- respondia ela divertida.
Na marcação do golo, o embaraço da equipa. Como podiam os
E continuava com as suas brincadeiras. Era bonito vê-la na
homens saborear a golada com abraços efusivos e saltos mortais,
frescura das'ruas, pezinhos leves tangendo a bola, com a doçura de se ela era mulher? Como celebrar a vitória com a mesma loucura de
uma música suave. sempre, se o corpo da mulher só pode ser tocado pelo seu homem?
Sonhos reveladores afloram como pirilampos no espelho do Os comentaristas da rádio relatam o facto com vozes sincopadas. Não
tempo. Uma voz saia-lhe da planta dos pés, segredando: chegarás. sabem o que dizer ao certo, não foi ainda desenvolvido o vocabulário
Chegarei? Aonde, se nem sei aonde vou? Um rio verde perto de ti. jornalístico para golos de mulher. Para remediar a situação, o locutor
Bem debaixo do milheiral. Busca-o. Então pegava na bola e atrás da rádio diz algumas palavras tontas.
dela corria. - O golo extraordinário foi marcado por uma mulher que nem
- Maria rapaz! parece mulher, aquilo parece golo de homem mesmo, é espantoso,
- Eu? Ah! As andorinhas inspiram-me - confessava - quando as mulheres não percebem nada de futebol e nem sabem jogar!
corro atrás de uma bola, sinto-me a voar na conquista do mundo. Foi extraordinário! Esta mulher vibrou, brilhou, mostrou o que valia,
Qualquer dia me inscrevo num clube de futebol. parecia até uma águia no meio de galinhas!. ..
- Futebol? Ah, essa não! O desconforto tomou conta da equipe. Apesar da feliz vitória,
- Que mal há nisso? aqueles jogadores tiveram que engolir palavras jocosas que os
- Vais ficar com os músculos rijos. Tens que te resguardar. adversários lançavam sobre eles. Desconforto sentiram também os
Aguardar. Tens que ficar com a pele de tomate. Ou de caju. Posso treinadores e os adeptos. Ser superado por uma mulher é uma grave
ensinar-te ... afronta! Inadmissível! Simplesmente inaceitável!
Uma vozearia espessa se eleva sobre ela, como mosquitos - Isto é nefasto para o estado psicológico da equipe - disseram
zumbindo febres palúdicas. São as mulheres derramando discursos muitos - uma mulher não pode jogar futebol no meio dos homens.
- Os treinadores gastaram o melhor tempo e a melhor energia, a Levitou. Subiu , subiu até atingir um ponto alto, altíssimo. Alcançou
treinar uma equipa- comentavam outros - e eis que os jogadores se o Olimpo!
deixam rebaixar por uma mulher. Os homens é que devem superar Ela era, afinal , uma águia de ouro. Águia era também o nome
as mulheres e não o contrário. Mas ela dá na bola com classe! Ela daquele clube dos seus tempos de futebol.
entende da coisa! Pena é ser mulher! Pois é! Foi mesmo isso que aconteceu .
Os homens ultrajados decidiram defender o seu santuário por Afastaram a Águia d'Ouro e ficaram com os restantes membros da
decreto: ela não pode jogar - diziam - nos clubes dos rapazes , capoeira! Águia mulher, águia menina, ela detêm a ciência da água.
as meninas não entram. Exibiram-se regulamentos. Artigos . Gota a gota. Passo a passo. Suavidade. Vôo. Levitação. Conquista
Documentos . As mulheres, em clubes de croché e tardes de chá, do mundo. A perseverança que lhe fez brava! Voou entre os deuses
revolviam memórias antigas. Um caso como o desta menina? Nunca do Olimpo, mas regressou modesta ao seu ninho de pássaro,
houve! Se não aconteceu antes, não pode acontecer agora. Onde cativando, nesse gesto, o coração do seu povo. Tornou-se líder.
já se viu uma coisa destas? Não, isto não pode voltar a acontecer. Ensinou pela prática a lição da disciplina: concentração no fim e
Havia muita razão nisso: Na vitória da mulher reside, por vezes, a no princípio. Nenhuma dificuldade deste mundo a vence. A vitória
desonra dos homens. As falas espessas correm como um rio de prepara-se.
águas negras. Ela não mergulha. Esquiva. Enrola-se sobre o milheiral Mulher de muitos actos e poucas palavras, aprendeu cedo a lição
aguardando que a maré negra passe. Mas as ondas crescem e o da vitória: "quem muito fala pouco acerta".
caso reúne homens de peso, que apresentam argumentos de peso e Águia-real, percorreu caminhos de água, de fogo, de neve. Em
tomaram decisões de muito peso . Ninguém se recordou de que tudo cada passo içando a nossa bandeira. Transportou, no bico, medalhas
o que é de peso fica em baixo. Ela, pequena e leve, flutua, navega douradas que iluminaram o nosso país sedento de alegrias.
no alto. Lógico! A gravidade é que manda, evidentemente! Por isso, em cada águia que cruza os céus, a imagem dela é que
No vôo s~reno, a menina questiona a ordem das coisas. Porque se projecta. Nesse instante as andorinhas bailam e a terra inteira
é que as mulheres sempre esperam, se têm força para desafiar levanta os olhos para o alto em êxtase e delírio:
o destino? E se o príncipe esperado não chegar quem pagará Maria de Lurdes, senhora da sorte e das boas marés, obrigado!
a despesa da eterna frustração? Resistindo às falácias, abre os O teu sobrenome Mutola, denomina os que "talam" os ungidos,
caminhos de glória. Depois das magnas reuniões foi -lhe comunicada consagrados, e purificados com o m'tona, a magna loção da mafurra!
solenemente a suprema decisão. Das tuas asas de águia, teceste o dzovo celeste que nos elevou
-Vamos, deixa o futebol menina, vai para o atletismo, vai! ao mais alto do Zulwine, onde a morte não existe.
Na saída do clube, alguém lhe segreda: Ungiste o corpo e a alma do nosso povo com o m'tona, essência
- Menina, tu és um monumento. Tu és uma águia e o teu lugar é divina dos Deuses do Olimpo.
entre os deuses! Pertences ao céu e não à terra. Abre as tuas asas Águia menina, materializaste na íntegra as profecias do criador, o
e voa! Chitlango, o Chivambo, o Dzovo, o Maundlane!
Ela partiu para a nova vida. Já não tem a equipa do clube para Obrigado Mutola, de N'wanati, de Kambana, de Dzovo, de
onde buscar reforço nos momentos de perigo. Persistiu. Os sonhos Maundlana, de Maxele, de Ngomati, de Nyathe, o grande Zambeze!
humanos só se quebram quando no espírito, a fragilidade existe. Longa vida, Mutola, águia dos deuses!
Começou a treinar, a reforçar os ossos, os músculos, os sonhos.
Sozinha, olhou para todos os lados e estremeceu, invadida pelo
medo das alturas. Concentrou todas as energias vitais. Colocou um
olhar fixo no dourado solar. Suspendeu a respiração até atingir a
suavidade de uma pena. Abriu as asas. Venceu o peso e a gravidade.
Glossário
Paulina Chiziane 71
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