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Círculos de Cultura: problematização

da realidade e protagonismo popular


Sistematizados por Paulo Freire (1991) os Círculos de Cultura
estão fundamentados em uma proposta pedagógica, cujo caráter
radicalmente democrático e libertador propõe uma aprendizagem Nada continua como está
integral, que rompe com a fragmentação e requer uma tomada de Tudo está sempre mudando
posição perante os problemas vivenciados em determinado con- O mundo é uma bola de ideias
texto. Para Freire, essa concepção promove a horizontalidade na Se transformando se transformando
relação educador-educando e a valorização das culturas locais, da
oralidade, contrapondo-se em seu caráter humanístico, à visão eli- (Junio Santos)
tista de educação.
Concebidos na década de 1960, como grupos compostos por
trabalhadores populares, que se reuniam sob a coordenação de um
educador, com o objetivo de debater assuntos temáticos, do inte- Vera Lúcia Dantas
resse dos próprios trabalhadores, cabendo ao educador-coordena- Médica, educadora popular, mestre
dor tratar a temática trazida pelo grupo. Surgem no âmbito das em Saúde Pública - UECE, doutora
em educação – UFC e atualmente
experiências de alfabetização de adultos no Rio Grande do Norte coordenadora pedagógica do Siste-
e Pernambuco e do Movimento de Cultura Popular. Não tinham ma Municipal de Saúde Escola da
SMS Fortaleza.
a alfabetização como objetivo central, mas a perspectiva de contri-
buir para que as pessoas assumissem sua dignidade como seres hu-
Angela Maria Bessa Linhares
manos e se percebessem detentores de sua história e de sua cultura,
Professora doutora do Programa de
promovendo a ampliação do olhar sobre a realidade. Nesse con- doutorado em Educação e do Mes-
texto, propõem uma práxis pedagógica que se compromete com a trado em Saúde Coletiva da Univer-
sidade Federal do Ceará.
emancipação de homens e mulheres ressaltando a importância do
aspecto metodológico no fazer pedagógico, sem desvalorizar, no
entanto, o conteúdo específico que mediatiza esta ação, possibili-
tando a tomada de consciência do educando, mediante o diálogo
e o desvelamento da realidade com suas interligações, culturais,
sociais e político-econômicas.
Destarte, caracteriza-se como locus privilegiado de comunica-
ção-discussão embasadas no diálogo, nas experiências dos atores-
74

Fonte:<http://acervo.paulofreire.org/xmlui/handle/7891/3016” \l “page/1/mode/1up>

-sujeito, na produção teórica da educação e traduzirá no tema gerador geral, vinculado


na escuta, a qual se orienta pelo desejo de a ideia de interdisciplinaridade e subjacente
cada um e cada uma aprenderem as falas à noção holística de promover a integração
do outro e da outra problematizando-a e do conhecimento e a transformação social.
problematizando-se. A Tematização3, ou seja, processo no
Tendo como princípios metodológicos qual os temas e palavras geradoras são co-
o respeito pelo educando, a conquista da dificados e decodificados buscando a cons-
autonomia e a dialogicidade, os círculos de ciência do vivido, o seu significado social,
cultura, tais como foram sistematizados por possibilitando a ampliação do conhecimen-
Freire, podem ser didaticamente estrutura- to e a compreensão dos educandos sobre a
dos em momentos tais como: a investigação própria realidade, na perspectiva de intervir
do universo vocabular1, do qual são extraídas criticamente sobre ela. O importante não é
palavras geradoras2. Esse mergulho permite transmitir conteúdos específicos, mas des-
ao educador interagir no processo, ajudan- pertar uma nova forma de relação com a ex-
do-o a definir seu ponto de partida que se periência vivida.

1
Relação das palavras de uso corrente, entendida como
representativa dos modos de vida dos grupos ou do
3
A codificação pode se dar por imagens expressas de
território onde se trabalhará (estudo da realidade). Este várias formas — desenho, fotografia, imagem viva, — que
momento permite o contato mais aproximado com por sua vez deverão suscitar novos debates. Parte-se da
a linguagem, as singularidades nas formas de falar do compreensão de que cada pessoa, cada grupo envolvido na
povo, e suas experiências de vida no local. ação pedagógica, dispõe em si próprio, ainda que de forma
2
Unidade básica de orientação dos debates. rudimentar, dos conteúdos necessários dos quais se parte.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Fig. pag 74: A experiência
de Angicos (RN) é referên-
cia na vida e obra de Paulo
Freire. Nessa cidade, 300
trabalhadores rurais foram
alfabetizados em 45 dias.

fig. pág 75 e 76: Guache


do artista plástico pernam-
bucano Francisco Bren-
nand, ilustrando a discus- 75
são do conceito de cultura
nos Círculos de Cultura.

Fonte: <https://www.google.com.br/search?q=francisco+brennand&espv=210&es_sm=93&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=ximvUqCIH8SIkQek_YDYBQ&ved=0CAkQ_
AUoAQ” \l “es_sm=93&espv=210&q=francisco+brennand+guache&tbm=isch&facrc=_&imgdii=_&imgrc=QaFmJbvhOOClhM%3A%3Bt6BlKIAnQIwTIM%3Bhttp%253A
%252F%252Fwww.projetomemoria.art.br%252FPauloFreire%252Fpaulo_freire_hoje%252Freinventandopaulofreire%252Fpaulofreireeomundosustent>

A Problematização representa um mo- jeitos atuantes. Para Freire (2003), o diálogo


mento decisivo da proposta e busca superar possibilita a ampliação da consciência críti-
a visão ingênua por uma perspectiva críti- ca sobre a realidade ao trabalhar a horizon-
ca, capaz de transformar o contexto vivido. talidade, a igualdade em que todos procu-
A ação de problematizar em Paulo Freire ram pensar e agir criticamente com suporte
impõe ênfase no sujeito práxico que discu- na linguagem comum, captada no próprio
te os problemas surgidos da observação da meio onde vai ser executada a ação peda-
realidade com todas as suas contradições, gógica e que exprime um pensamento ba-
buscando explicações que o ajudem a trans- seado em uma realidade concreta. Diálogo,
formá-la. O sujeito, por sua vez, também se nessa perspectiva, tem a amorosidade como
transforma na ação de problematizar e passa dimensão fundante, contrapondo-se a ideia
a detectar novos problemas na sua realida- de opressão e dominação. Situa a humilda-
de e assim sucessivamente. Nesse sentido, de como princípio no qual o educador e o
a problematização emerge como momento educando se percebem sujeitos aprendentes,
pedagógico, como práxis social, como mani- inacabados, porém jamais ignorantes.
festação de um mundo refletido com o con- A ampliação do olhar sobre a realida-
junto dos atores, possibilitando a formula- de com amparo na ação-reflexão-ação, e, o
ção de conhecimentos com base na vivência desenvolvimento de uma consciência críti-
de experiências significativas. Assim, o ca que surge da problematização, permitem
diálogo se constitui como elemento-chave que homens e mulheres se percebam su-
no qual educadores e educandos sejam su- jeitos históricos, o que implica a esperança

Nossas fontes
A ampliação do olhar sobre a realidade
com amparo na ação-reflexão-ação, e,
o desenvolvimento de uma consciência
crítica que surge da problematização,
permitem que homens e mulheres
se percebam sujeitos históricos,
o que implica a esperança de que,
nesse encontro pedagógico, sejam
vislumbradas formas de pensar um
76 mundo melhor para todos.
Fonte: <https://www.google.com.br/search?q=francisco+brennand&espv=210&es_sm=93&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=ximvUqCIH8SIkQek_YDYBQ&ved=0CAkQ_
AUoAQ” \l “es_sm=93&espv=210&q=francisco+brennand+guache&tbm=isch&facrc=_&imgdii=_&imgrc=QaFmJbvhOOClhM%3A%3Bt6BlKIAnQIwTIM%3Bhttp%253A
%252F%252Fwww.projetomemoria.art.br%252FPauloFreire%252Fpaulo_freire_hoje%252Freinventandopaulofreire%252Fpaulofreireeomundosustent>

de que, nesse encontro pedagógico, sejam Nesse contexto, segundo Dantas (2010),
vislumbradas formas de pensar um mundo o Círculo de Cultura constitui-se locus da vi-
melhor para todos. Esse processo supõe a vência democrática, de formas de pensamen-
paciência histórica de amadurecer com o tos, experiências, linguagens e de vida, que
grupo, de modo que a reflexão e a ação se- possibilita o estabelecimento de condições
jam realmente sínteses elaboradas com ele. efetivas para a democracia de expressões, de
A democracia (...) é forma de vida, se pensamentos e de lógicas com base no res-
caracteriza, sobretudo por forte dose de peito às diferenças e no incentivo à partici-
transitividade de consciência no comporta- pação em uma dinâmica que lança o sujeito
mento do homem. Transitividade que não ao debate, focando os problemas comuns.
nasce e nem se desenvolve a não ser dentro
de certas condições em que o homem seja Referências
lançado ao debate, ao exame de seus proble-
DANTAS, V. L. A. Dialogismo e arte na
mas comuns (FREIRE, 1991, p. 80).
gestão em saúde: a perspectiva popular nas
Dessa forma, Paulo Freire fala de edu-
Cirandas da Vida em Fortaleza. 2010. (Tese
cação como conscientização, reflexão rigo-
de Doutorado) – Universidade Federal do
rosa sobre a realidade em que se vive, com
Ceará, Fortaleza, CE, 2010.
o entrelaçamento das linguagens e suas res-
FREIRE, P. Educação como prática de liberdade.
pectivas lógicas epistêmicas, evidenciando
20. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
os focos a serem problematizados pelo gru-
po, instigando o debate e constituindo uma FREIRE, P. O caminho se faz caminhando:
rede de significados. conversas sobre educação e mudança social.
2. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde

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