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DIETRICH VON HILDEBRAND

O AMOR ENTRE
O HOMEM E A MULHER
ESTUDO TEOLÓGICO-FILOSÓFICO

TRADUÇÃO E EDIÇÃO:
CARLOS ANCÊDE NOUGUÉ

2002

Original norte-americano:
Man and Woman,
Franciscan Herald Press
(Chicago, E.U.A).

IMPRIMI POTEST:
Dominic Limacher O.F.M.
Minister Provincial

NIHIL OBSTAT:
Marion A. Habig O.F.M.
Censor Deputatus

IMPRIMATUR:
Most Rev. Cletus F. O’Donnell, D.D.
Vicar General,
Archdiocese of Chicago
December 9, 1965

NOTA PRÉVIA DO EDITOR

NASCIDO NA ALEMANHA, o católico Dietrich von Hildebrand, após intensa atividade na terra natal,
foi destituído da Cátedra de Filosofia da Universidade de Munique pelo nazismo. Com o
pseudônimo de Peter Ott refugiou-se na Suíça, durante toda a II Guerra Mundial, e terminado o
conflito estabeleceu-se nos Estados Unidos, onde continuou a publicar livros e lecionar. Faleceria na
mesma Alemanha, no início da década de 1980.
Em decorrência de tais atribulações, as suas obras editaram-se parte em alemão, parte em
inglês, tendo sido traduzidas em quase todos os principais idiomas. Destaquem-se:

Die Idee der sittlichen Handlung


Sittlichkeit und ethische Werterkenntnis
Metaphysik der Gemeinschaft
Das Katholische Berufsethos
Der Sinn philosophischen Fragens and Erkennens
Die Menschheit am Scheideweg
Die Umgestaltung in Christus
Der vervüstete Weinberg
e
In Defense of Purity
Marriage
Christian Ethics
The New Tower of Babel
Graven Images: Substitutes for True Morality
Liturgy and Personality
What is Philosophy?
Not as the World Gives
The Sacred Heart
The Art of Living
Morality and Situation Ethics
Trojan Horse in the City of God.
De minha parte, se cheguei a pensar em escrever aqui algo a respeito desta
extraordinária obra que temos a honra de publicar, logo desisti. Contentei-me com
incluir dois Apêndices, um de minha lavra (em que sumario a recuperação que Servais
[Th.] Pinckaers OP faz da teologia moral tomista) e o outro da do próprio Santo Tomás de
Aquino. E a razão é muito simples: nada se pode acrescentar ao que de per si já
refulgem estas páginas de Von Hildebrand, fazendo-nos a todos — o editor mas
também, tenho-o por certo, os leitores — lê-las com permanente lágrima nos olhos: a
lágrima que brota diante da Verdade única e maiúscula.
Em memória da minha esposa, e à filha que Cristo me deu,

Carlos Nougué
SUMÁRIO

Capítulo I: O Verdadeiro Significado do Sexo


Capítulo II: A Missão do Amor Humano
Capítulo III: A Amizade entre os Sexos

Capítulo IV: Amor e Casamento


Capítulo V: Casamento e Superpopulação

Apêndice I: O Casamento e a Virgindade Segundo Santo Tomás de Aquino

Apêndice II: Excertos do Comentário aos Dois Preceitos da Caridade e aos Dez Mandamentos da Lei,
de Santo Tomás de Aquino

CAPÍTULO I
O VERDADEIRO SIGNIFICADO DO SEXO
O SEXO É um mistério. É pena que tantos livros cristãos acerca do assunto tenham tratado
o sexo tão-somente do ângulo moral, em vez de tentar sondar-lhe a própria natureza.
Pois não é senão compreendendo a natureza, o significado e o valor do sexo que se
está capacitado a compreender os valores e os desvalores desta esfera.
Por certo não queremos dizer que deveríamos, ao tratar o sexo, prescindir da
moralidade, como se as categorias do bem e do mal morais não existissem. Sim,
porque, se eliminamos a luz do bem e do mal morais, imediatamente nos condenamos
a compreender somente a superfície da pessoa e da esfera espiritual. Veremos, mais
adiante, que o tratamento amoral, a neutralidade de uma esfera, o modo de tratá-la
como se o bem e o mal morais não passassem de ilusões, de ficções, de conseqüência de algum
complexo ou de superstição, falsifica a natureza da pessoa humana, seus atos, suas atitudes.
A cegueira com respeito à natureza de algo veda a possibilidade de discutir-lhe o valor
específico; com um homem para quem não haja diferença entre a música e o barulho de
um aeroplano não faz sentido discutir que óperas, se as de Bizet ou as de Mozart, são as
mais belas. Analogamente, não faz sentido discutir a imoralidade da luxúria com
alguém que esteja cego à verdadeira natureza e significado do sexo.
Lembra-me um professor de matemática, da Universidade de Goettingen, que era
completamente desprovido do senso de beleza. Quando foi a Florença, um colega sugeriu-lhe fosse
a São Mineato, igreja maravilhosa, perto de uma colina, da qual se tem belíssima vista de
Florença. Todavia, ao encontrar-se de noite com o colega, o professor disse-lhe: “Pregaste-me
uma peça desagradável. Fizeste-me de tolo, enviando-me àquele lugar enfadonho. O
que há lá para ver?”
O deplorável no tratamento do sexo, nos dias de hoje, não é particularmente a imoralidade —
que existia também nos tempos antigos — mas a cegueira comum quanto à verdadeira
natureza e significado desta esfera. Muitos tratam o sexo com o mesmo embotamento
com que aquele professor se aproximou da natureza e da arquitetura.
Se se considera o sexo um simples instinto — pondo-o no mesmo plano da fome e da sede —
permanece-se necessariamente cego à sua verdadeira natureza. Pode-se estudar o
relatório de Kinsey, podem-se ler tratados acerca da fisiologia do sexo, mas nada
disso ajudará de modo algum a compreender-lhe a natureza e o significado verdadeiros.
Só se partirmos da grande e abençoada experiência do amor, o amor entre o
homem e a mulher, é que se revelarão a natureza e o significado do sexo, e o seu
mistério.
Nos Estados Unidos a doutrina de Freud ainda é aceita por muitos como se fosse
cientificamente provada, tão exata como as descobertas expostas num livro de química. Na
Europa, ao contrário, as teorias de Freud estão já superadas, e não se aceitam senão
alguns elementos da sua doutrina, como o fenômeno da repressão e a função do
subconsciente e dos sonhos. A sua “metafísica”, no entanto, a sua redução de tudo a
sexo, a sua interpretação arbitrária de cada expressão da existência humana como
símbolo de algo mais não são levadas a sério, mas claramente vistas no seu caráter
anticientífico. Nos Estados Unidos, felizmente, cada vez mais se levantam vozes contra o
inqualificável freudismo.
O que me interessa neste terreno é a cegueira de Freud quanto ao fenômeno do sexo
em si mesmo. Embora atribuísse ao sexo importante papel na vida do homem, negligenciou
completamente a profundidade desta esfera e a radical diferença entre ela e o mero instinto. Tratou-
a pelo ângulo das ciências naturais e não pelo da realidade humana. Pois, como já se disse, a
legítima natureza do sexo não se revela senão quando o observamos à luz do grande e
decisivo fator na vida humana: o amor entre o homem e a mulher.
Se quisermos compreender a verdadeira natureza do sexo, precisamos libertar-nos de uma
prevenção geral, a saber, a de acreditar que a única realidade válida e autêntica nos é
apresentada pelas ciências naturais. O mais é considerado “romance”. Muitos crêem que as
vibrações são mais sérias e reais que as cores ou as melodias, ou que o aspecto da mão
humana sob o microscópio é o autêntico e que o seu aspecto como o vemos normalmente é mera
aparência. Muitos crêem que é somente no laboratório que se alcança a realidade válida,
autêntica.
Esse erro é desastroso e nos afasta da mais importante face da realidade. Não se
trata apenas de uma estúpida e triste noção do mundo, mas também de uma noção
absolutamente errônea, deformada, irreal, como o é toda e qualquer idéia unilateral.
Li um artigo na revista Reader’s Digest, intitulado “Quem Matou o Romance?”, em que se faz um
paralelo entre as relações de amor de épocas passadas e as dos nossos dias. Conquanto o autor
esteja certo na sua avaliação, erra em ver a diferença entre as duas no fato de uma ter
sido, e a outra não, embelezada de romance. Se se considera a verdadeira natureza do amor entre o
homem e a mulher — esta imensa realidade que a literatura de todos os países e de todas as
épocas tem cantado, e que encontrou a sua expressão mais gloriosa no Cântico dos Cânticos —
como somente uma deleitosa ilusão, fica-se reduzido a compreender mal a verdadeira
natureza deste amor. Denominando-o “romance”, já se aceitou a deturpada concepção da
realidade — a visão de laboratório. Deveríamos, antes, compreender que este amor, com toda a
sua felicidade, não é mero romance, mas uma realidade completa, verdadeira, e que a
imagem que o amante tem da pessoa amada é muito mais profunda, verdadeira e existencial do
que a insípida imagem que qualquer não-amante tem de outra pessoa. Da poesia certa vez disse
Goethe: é como os vitrais coloridos de uma igreja. Vistos do exterior, parecem negros,
monótonos, sem forma. Mas, ao entrar-se na igreja, manifesta-se todo o seu esplendor. Obviamente,
o aspecto interior é o autêntico e válido. Isto se aplica a todas as coisas grandes e importantes,
que são dotadas de valores reais. Enquanto as observarmos “do lado de fora”, enquanto as
tratarmos com a atitude de laboratório, elas não poderão compreender-se na sua natureza e
significação verdadeiras.
Pretendendo que observar algo do lado exterior constitui o tratamento “realístico”, está-
se a dizer que ninguém faz justiça à realidade se não for embotado e insípido, e que este
homem embotado e insípido compreende mais realisticamente a natureza do universo e todos os
seus diversos entes do que a pessoa mais vigilante, mais dotada, a pessoa acima do comum. Por
que haveria o espiritualmente míope de apreender a realidade de modo mais autêntico do
que a pessoa dotada de visão excepcional? Não. Precisamos libertar-nos da superstição
de que o tratamento de laboratório é o único autêntico.
O amor entre o homem e a mulher não é uma invenção romântica dos poetas, mas um
fator extraordinário na vida humana desde o início da história da humanidade, a fonte de
felicidade mais intensa na vida humana terrestre. Dele diz o Cântico dos Cânticos: “Se por amor um
homem desse todos os bens da sua casa, haveria de desprezá-los como a bagatelas.” Com efeito, só
este amor é a chave para uma compreensão da verdadeira natureza do sexo, do seu valor e
do mistério que personifica. Antes de analisar este tipo de amor, que passarei a chamar “amor
conjugal” sem implicar que os amantes já estejam casados, há porém que fazer breve
referência à natureza do amor em geral.
O amor é uma resposta ao valor. Por esta expressão, que talvez não seja familiar ao leitor,
entendemos os atos pessoais que se motivam pelo valor intrínseco do objeto, em contraste com as
atitudes originadas pelo simples aspecto subjetivamente satisfatório de um bem.
No livro Ética Cristã, tratei com detalhes a natureza da resposta ao valor, este ato mediante o
qual o homem manifesta, acima de tudo, a sua transcendência. Em resposta ao valor, o
homem amolda-se àquilo que é importante em si mesmo, a um bem que é dotado de valor. Aqui ele
está interessado em alguma coisa, não porque esta lhe satisfaça algum apetite ou porque seja um
bem para ele mesmo, mas por causa da sua beleza e bondade intrínsecas. Uma típica
resposta ao valor é o ato de vontade mediante o qual nos amoldamos ao apelo moral, obedecemos
à lei moral. Não obstante, as respostas ao valor não se restringem à esfera volitiva;
encontram-se também na esfera afetiva, como o entusiasmo, a admiração e,
sobretudo, o amor.
O amor é uma resposta a uma pessoa que nos comoveu o coração pelo belo e precioso da sua
personalidade. O amor é uma resposta ao valor. Quando amamos alguém, esta pessoa
permanece preciosa, nobre e louvável para nós. Se alguém nos é somente útil ou somente nos
diverte, não podemos amá-lo. Podemos “gostar” dele. Quando amamos, temos necessariamente
consciência de que o ente amado é louvável, de que nos merece o amor. O amado
sempre é não só um amatus, mas um amandus.
Por conseguinte, a idéia de que a pessoa que ama vê o outro como um meio para a sua própria
felicidade constitui o mais radical equívoco a respeito do amor.
A resposta que damos à preciosidade e beleza do ente amado manifesta-se no desejo de união
com ele, a intentio unionis, e no interesse pela sua felicidade ou bem-estar, a intentio
benevolentiae.
Vejamos primeiro a intentio unionis. Todo e qualquer amante deseja unir-se à pessoa amada.
Amando, não só se lhe busca a presença, não só se busca saber-lhe acerca da vida, das alegrias e
sofrimentos, e se nutre o desejo de compartilhá-los de algum modo, mas sobretudo se aspira a
uma união dos corações, uma união que só o amor recíproco pode proporcionar.
A intentio benevolentiae, que igualmente é um sinal fundamental de todo e qualquer amor,
manifesta-se no completo interesse pela felicidade, bem-estar terreno e eterno da pessoa
amada. Revela-se numa participação singular do seu destino. A intentio benevolentiae, todavia, é
mais que o profundo interesse pelo bem-estar da pessoa amada, ou até que o desejo de fazê-la feliz.
É o modo bondoso de vê-la, é o sopro da bondade que se encontra no amor mesmo, o próprio
elemento que torna o amor uma bondade crescente. No amor, vertemos (por assim dizer)
esta mesma bondade na alma do ente amado — acariciamos-lhe a alma.
Após estas referências acerca da natureza do amor em geral, voltemos ao amor entre o
homem e a mulher, isto é, ao específico tipo de amor que, como se disse antes, se chamará aqui
amor conjugal.
Seria um grande erro crer que as características deste amor derivam do fato de o sexo
acrescentar-se ao amor em geral, por exemplo, ao amor de amizade. Falamos já sobre a tentativa
absurda de reduzir o amor ao sexo. Não basta, contudo, abster-se dessa superstição; é
preciso também ver a diferença básica entre o amor conjugal e os meros instintos
sexuais. É preciso também proteger-se do erro segundo o qual a específica categoria do amor entre
o homem e a mulher reside na mera combinação de amor e sexo.
É verdade que o caráter especial do amor conjugal se assinala pelo fato de este amor
não poder existir senão entre homens e mulheres, e não entre pessoas do mesmo sexo, como ocorre
com a amizade e com o amor paterno ou filial. Seria porém incrivelmente superficial
considerar tal diferença entre homens e mulheres somente como de ordem biológica. Com
efeito, defrontamo-nos com dois tipos complementares de pessoa espiritual na espécie humana.
A diferença entre o homem e a mulher não a devemos exagerar nem subestimar. Por
vezes, têm-na exagerado grosseiramente; foi caso, por exemplo, de Aristóteles, ao afirmar que o
homem é um ser em ato e a mulher um ser em potência. Ademais, têm-se estabelecido, pelos
costumes, no decurso de muitos séculos, diferentes padrões morais para a conduta já do
homem, já da mulher. Isso é absolutamente falso. Há uma única moral para ambos, e
ambos são igualmente pessoas humanas completas. A natura humana é idêntica em ambos.
Por outro lado, não se deve subestimar nem reduzir só à biologia a diferença entre o
homem e a mulher. Há, sem dúvida, traços especificamente femininos ou masculinos da
personalidade. Por mais que as feministas de todas as categorias o tentem negar, ou
pelo menos reduzir ao mínimo a existência de características pessoais baseadas no sexo, por
mais que as mulheres modernas se mostrem ansiosas por eliminar tal diversidade, adaptando
o seu comportamento ao dos homens, usando calças compridas e assim por diante, permanece
inegável realidade a diferença na estrutura da personalidade do homem e da mulher.
Se tentamos delinear estes traços especificamente femininos ou masculinos, encontramos nas
mulheres uma unidade de personalidade decorrente do fato de o coração, o intelecto e
o temperamento estarem nela muito mais entrelaçados, ao passo que no homem há uma
específica capacidade de emancipar-se, com o intelecto, da esfera afetiva. Aquela
unidade do tipo feminino da pessoa humana se revela também em maior unidade na
vida interior e exterior, uma unidade de estilo que envolve tanto a alma como o
comportamento exterior. Na mulher a própria personalidade se situa mais em primeiro
plano do que as realizações objetivas, ao passo que o homem, por ter uma criatividade
específica, é mais atraído para as realizações objetivas.
Talvez ninguém, na literatura, tenha sido tão bem sucedido em patentear a específica
beleza feminina quanto Shakespeare. Pense-se em Cornélia, Rosalinda, Desdêmona ou Ofélia, em
cada caráter se desdobra, diante dos nossos olhos, a verdadeira natureza da feminilidade.
O que importa no nosso contexto é compreender, em primeiro lugar, que o homem
e a mulher não só diferem na ordem biológica ou fisiológica, mas são duas expressões
diversas da natureza humana; em segundo lugar, que a existência desta duplicidade da natureza
humana possui grande valor. Ainda que nos abstenhamos, por enquanto, de todas as
razões biológicas, bem como da procriação, temos de compreender como o mundo é
mais rico por esta diferença, e que de modo algum é desejável que se elimine demasiadamente esta
distinção no reino espiritual. Infelizmente, a tendência neste sentido está
demasiadamente disseminada nos dias de hoje.
É necessário compreender também que esta diversidade tem caráter complementar
específico. O homem e a mulher são espiritualmente determinados um para o outro —
foram criados um para o outro. Em primeiro lugar, têm uma missão recíproca; em
segundo lugar, mais do que entre pessoas do mesmo sexo, é possível entre eles, por
causa desta diferença complementar, uma comunhão mais íntima e um amor mais
perfeito.
A sua missão recíproca revela-se tanto num benéfico enriquecimento mútuo como na
diminuição dos perigos a que estão expostos os tipos masculino e feminino do ser
humano quando se encontram privados desta influência. A inegável influência
enriquecedora manifesta-se numa tensão animadora, numa fecundação no plano puramente
espiritual.
Quanto à redução dos perigos, pode-se facilmente notar que os homens correm o
risco de se tornar vulgares, esgotados ou despersonalizados pelo seu ofício ou profissão, quando
estão completamente afastados de qualquer contato com o mundo feminino; e que as
mulheres estão sujeitas a se tornar mesquinhas, egoístas e hipersensíveis, quando estão
completamente afastadas de qualquer contato com os homens. Por conseguinte, é uma grande
bênção para a criança, do sexo masculino ou do feminino, receber a influência tanto
do pai como da mãe.
Esta diferença entre o homem e a mulher constitui enorme enriquecimento para a
nossa vida terrena. O mundo é mais pitoresco e a vida mais atraente para os homens
porque há mulheres, e para as mulheres porque há homens. As mulheres têm para os
homens (e vice-versa) um encanto específico, que vai da alma à aparência física, baseado
em valores objetivos e no fato de um estar determinado para o outro.
Esta benéfica influência recíproca, todavia, este enriquecimento do universo resultante da
diferença complementar entre homem e a mulher, só poderá desenvolver-se se entre
eles reinar uma atmosfera de respeito e reverência. Só se se mantém certa distância, franqueável
unicamente no casamento sem no entanto sacrificar-se o respeito e a reverência, é que
este enriquecimento mútuo se dá. Ele realiza-se tão-somente se estamos conscientes
do mistério que há neste ente determinado para o seu oposto. Tão logo uma espécie
de camaradagem tediosa domine a relação entre os dois sexos, tão logo a mera presença de uma
pessoa do sexo oposto já não reclame da nossa parte um comportamento diferente, ou tão logo a
relação com o outro sexo se impregne de comodismo e se verifique uma incursão na sensualidade
extraconjugal, necessariamente nos tornamos cegos à dádiva desta dualidade — estamos, então,
embotados para ela.
É impossível sublinhar suficientemente o fato de a diferença entre o homem e a mulher não ser
somente de ordem biológica, mas prolongar-se também, profundamente, até a região da
personalidade. É necessário compreender que é por causa desta influência
complementar que é possível — e tão-só entre eles — um tipo específico de amor. Este amor
específico se distingue pelas seguintes características
Em primeiro lugar, mais que qualquer outro amor, inclina-se para uma “eu-tu
comunhão”. No meu livro Metafísica da Sociedade, distingo duas dimensões básicas de
comunhão com outras pessoas: “eu-tu comunhão” e “nós comunhão”. Em uma “eu-tu
comunhão” estamos, por assim dizer, perante outra pessoa, e olhamo-nos um para o
outro. Em uma “nós comunhão”, de modo diverso, olhamos simultaneamente com a
outra pessoa para um objeto. Alegramo-nos conjuntamente por algo, realizamos algo em
conjunto. (Nesta situação, não estamos, por assim dizer, perante outra pessoa, mas
antes permanecemos ao seu lado, de mãos dadas.) Estas dimensões são, ambas,
encontradas em qualquer relação durável com outra pessoa, de acordo com a situação. Mas também
é característico uma dessas dimensões dominar a relação, a depender da que for típica para
determinado caso: a “eu-tu comunhão” ou a “nós comunhão”. De maneira singular, o
amor conjugal tende para a “eu-tu comunhão”.
Intimamente ligada à primeira, a segunda característica refere-se ao fato de o
cônjuge amado ser mais temático do que em qualquer outro amor. “Ele tornou-se o
grande amor da minha vida; nele estou todo concentrado.” Isto também se manifesta
no fato de a intentio unionis, que é comum a todas as categorias do amor, não só adquirir
aqui a sua mais alta “tensão”, mas estender-se muito além do que em qualquer outro amor.
Desejamos a união com o seu verdadeiro ser; desejamos uma vida em comum com ele, e a
retribuição do nosso amor assume importância incomparável.
Por um caráter essencialmente extático, que se designa por “estar apaixonado”, o amor
conjugal difere de todas as outras categorias de amor. Estar apaixonado — este estar
encantado, estar fascinado, estar capturado por algo maior que o que somos — é geralmente
observado com um sorriso, e se considera uma excitação ou uma paixão louca, uma
espécie de extravagância juvenil. Isso é um grandíssimo erro. Em verdade, o
autêntico estar apaixonado é uma feliz e desperta condição da alma. Torna-nos mais
atentos para o mundo inteiro dos valores; vive-se então em estado mais autêntico, como
admiravelmente escreveu Platão, em Fedro.
Por certo, como em toda a parte, há aqui a diferença entre um profundo, verdadeiro
estar apaixonado, que constitui o ápice de um intenso amor conjugal, e uma paixão superficial, um
falso estar apaixonado. Em toda a parte, essa diferença existe. Há um verdadeiro
gênio artístico e um falso gênio; há um verdadeiro filósofo, como Platão, e um falso
filósofo, como Sartre. Mas tal possibilidade de impostura não afeta o valor da arte ou
da filosofia, nem o valor de estar apaixonado.
Para compreendermos que o verdadeiro estar apaixonado é algo notável e
majestoso, basta-nos observar quão mais belo se torna um ser humano quando um grande
amor e um estado de paixão lhe enchem o coração.
Tão logo um homem experimenta um amor verdadeiro, real, uma aventura feliz
como é todo e qualquer amor, vê-se que se liberta das malhas de egoísmo, que se
torna generoso, que supera a sua própria insignificância. Com efeito, não é senão no
amor que se vive verdadeiramente. De modo inesperado, o amante liberta-se de
convenções e valores convencionais; liberta-se das cadeias do que “se faz”, já não vive como
um “alguém”, mas como uma pessoa real — desperta para a verdadeira hierarquia dos
bens e dos valores. É sobretudo amando que qualquer homem se torna mais humilde.
Até a pessoa mais medíocre deixa de o ser tão logo ame verdadeiramente.
Lembra-me um jovem que era uma pessoa amável, mas que estava caminhando
penosamente ao longo da estrada convencional, preocupado com a opinião pública,
aprisionado pelas categorias convencionais. Apaixonou-se por uma encantadora moça — era um
profundo e genuíno amor. Não sabia ainda se era correspondido, mas
inesperadamente tudo nele tinha mudado. Veio ver-me, e disse-me que já não podia entender
como pudera viver como antes, de modo tão medíocre e insípido. Revelou-se-lhe o
significado da existência humana, como também a natureza da verdadeira felicidade e a
importância secundária das coisas exteriores, como a sua carreira. É difícil expressar
quão mais generoso, profundo e louvável se tornou, por amor.
Recorda-me igualmente um amigo que era pessoa admirável, de nenhum modo convencional
ou medíocre. Não obstante, estava demasiado “possuído” pela profissão de advogado,
havendo pois o perigo de fazer do trabalho o centro da sua vida. Contou-me que,
quando a moça a quem amava profundamente lhe dissera que lhe retribuía o amor,
exclamara: “O meu escritório, doravante, desempenhará um papel secundário!”
Novamente, houve este feliz despertar para a verdadeira hierarquia de valores, esta libertação,
esta generosidade do amor. Com efeito, no amor verdadeiro se obtém a liberdade interior:
entregando-nos a um “tu”, transcendendo o egoísmo, alcançamos uma bem-aventurada liberdade.
Mediante um autêntico amor, o homem é levado para o recôndito do seu ser. A
sua relação com o mundo inteiro torna-se diferente, mais genuína e mais profunda.
O amor conjugal aspira a uma união que se estende muito além da de uma
simples amizade, amor filial ou amor paterno — este amor deseja uma união física. No amor
conjugal, o corpo da pessoa amada assume um encanto especial, como o receptáculo da sua alma, e
também personifica, de modo único, o encanto comum e a atração que a feminilidade tem
para o homem, ou a virilidade para a mulher. O amor conjugal aspira a uma união física,
como a uma realização específica da união total, como a uma singular, profunda e recíproca
autodoação. Se se ama alguém com este amor, compreende-se então o mistério da união física, e
anseia-se por ela, porque se ama a alguém.
Aqui a disposição física para o sexo, a sensualidade em sentido positivo, é claramente
apreendida na sua função instrumental. O seu verdadeiro significado é tornar-se uma expressão do
amor conjugal e uma realização da almejada união. Assim, no drama do poeta alemão
Kleist, diz o amante: “Não me importa morrer, se me for permitido tão-somente estar
junto da minha amada na nossa noite de núpcias.”
Para o amante genuíno, há um abismo entre o aspecto desta união física e o
aspecto que ela oferece como mera satisfação de um desejo sexual isolado. Para o
amante, a pessoa amada é o tema; a mais íntima e profunda união com ela constitui o
desejo fundamental, e todo o encanto e deleite que a esfera sexual personifica — a atração
da feminilidade — estão indissoluvelmente ligados à união com a pessoa amada.
No caso do amante, todo o encanto comum da feminilidade se realiza na
individualidade da pessoa amada, ao passo que, no caso de alguém estimulado tão-só por
um desejo sexual isolado, a companheira é uma portadora anônima da comum
atração da feminilidade. Desse modo, ademais, o encanto da feminilidade também
fica reduzido a um atrativo superficial, meramente físico. A personalidade da companheira
não desempenha nenhum papel decisivo; ela é trocável, dado que pertence ao outro
sexo — “pur che porta la gonnella”, como diz Leporello na ópera de Mozart Don Giovanni.
No caso do amante, é exclusivamente esta singular, irreproduzível personalidade individual
que personifica o encanto comum em toda a sua plenitude e profundidade psicofísica. É só
com o conhecimento desta personalidade amada que este fascínio se desdobra
completamente. Tal encanto não pode florescer plenamente senão na personalidade
da pessoa amada, como de modo tão belo disse Petrarca de Laura: “che sola a me par
donna” (que para mim é a única a ser mulher). E vice-versa: a mulher que ama vê no
ente amado todo o encanto da masculinidade.
Para o amante, a pessoa amada é o tema; a mais íntima e profunda união com ela
constitui o desejo fundamental; e todo o encanto e deleite que a esfera sexual personifica, a
atração do sexo oposto, estão indissoluvelmente vinculados à união com a pessoa amada.
Aqui, a outra pessoa é vista totalmente como pessoa. Quando se almeja à satisfação de um
mero desejo sexual isolado, a outra pessoa não é, de modo algum, temática como pessoa.
De modo algum se pensa numa união com ela — ela é usada somente como instrumento
para sossegar um desejo, ou pelo menos como mera companheira de um jogo aprazível.
Se nos aproximamos fenomenologicamente da esfera do sexo, se a observamos sem prevenção,
vemos que difere completamente de todos os outros instintos e apetites. Tem, antes de
tudo, um tipo de profundidade que nem a sede, nem a fome, nem a necessidade de
dormir, nem nenhum desejo de outro prazer físico possuem. Realize-se em nós o
encanto do sexo oposto quer como desejo conjugal, quer como simples luxúria
sensual, o sexo atua na vida pessoal de modo completamente diverso de como o
fazem os demais instintos. O sexo tem um caráter misterioso, algo irradiante, na vida
psíquica, o qual nem o desejo de comer nem o prazer que a satisfação desse desejo
proporciona têm. O êxtase sexual atinge principalmente o cerne da nossa existência física; o seu
poder é algo extraordinário, comparável somente às mais terríveis dores físicas.
Em decorrência disto, em virtude da sua própria importância e natureza, é característico do
sexo incorporar-se às experiências de ordem superior, que são puramente psicológicas e
espirituais. Nada no domínio do sexo é tão autônomo como as demais experiências físicas,
por exemplo, comer e beber. Demonstra-se suficientemente a profundidade singular do sexo pelo
simples fato de que diante dele a atitude de qualquer homem tem significação
incomparavelmente maior para a sua personalidade do que diante dos demais apetites
físicos.
A esfera do sexo, além disso, tem também caráter de intimidade, que nenhum dos
outros instintos tem, nem sequer as grandes dores físicas, as quais, até certo grau, lhe
compartilham o caráter de profundidade. Em certo sentido, o sexo é o segredo do
indivíduo. Cada manifestação do sexo é a revelação de algo íntimo e pessoal; é uma
espiada no nosso segredo.
Estas características do sexo são realçadas tão logo alguém se apaixone, no verdadeiro e
autêntico sentido da palavra. Almejando uma união física com a pessoa amada, compreende-se
claramente a intimidade única desta esfera. Pelo próprio fato de desejar, acima de
tudo, esta união com o ente amado, admite-se univocamente a intimidade e a
profundidade desta esfera, e compreende-se a exclusividade desta mútua autodoação.
A verdadeira atração desta esfera, a sua marca de algo extraordinário, a sua fascinação
estão indissoluvelmente vinculadas ao seu caráter íntimo e secreto. Quando já não se
sente embaraço em projetar esta esfera para o domínio público, quando é já tratada
como se fosse um problema meramente biológico, que se pode discutir publicamente como
qualquer outro problema médico, inevitavelmente se destrói o autêntico encanto e o
caráter misterioso que o sexo possui. O sexo, pela sua própria essência, não é algo neutro.
Neutralizá-lo seria não compreendê-lo, seria privá-lo de toda a possível significação para a
felicidade humana. E, para que possa tornar-se a expressão máxima do amor conjugal
e a realização de uma perfeita união, o sexo deve apreender-se no seu caráter de
mistério.
A infeliz pessoa que, por uma disposição de temperamento, carece de toda a sensualidade e é
de todo indiferente a esta esfera, será incapaz de, ao casar-se, ver nesta união a mais alta forma
de autodoação e o ápice de uma união feliz.
Amiúde se ouve dizer que, hoje, o sexo é acentuado em demasia. Isso porém não é certo. De
modo algum. Vivemos mais propriamente numa época em que o sexo já não é compreendido
na sua verdadeira natureza, em que se é tão cego à sua verdadeira significação como as pessoas que
carecem totalmente de sensualidade. O que domina o nosso tempo é um tratamento
“eunuco”. Exauridas pelo fastio, as pessoas têm conferido a esse sexo ocasional,
superficial e neutralizado um papel oposto à verdade. A espalhafatosa sexualidade dos nossos dias
oculta um patético vazio sensual.
Muitos elogiam o modo livre e objetivo com que nos nossos dias se trata o sexo,
em comparação com a afetação da época vitoriana, ou com o horror puritano de todas
as coisas sexuais. Por certo, tanto o melindroso como o puritano são infelizes, mas não por serem
capazes de sentir acanhamento, não por se absterem de tratar esta esfera, como se fosse
algo neutro. Não: o que está errado no tratamento puritano é o seu desprezo gnóstico
da sensualidade; ele vê o sexo como algo ignóbil em si mesmo, como moralmente negativo, o
que, precisamente, nega a alta missão a que se destina esta esfera — servir à máxima
autodoação recíproca, no amor conjugal. O que está errado na afetação vitoriana é o seu
suspeitar, em toda a parte, de algo impuro, o seu modo de tratar o sexo como algo impuro
em si mesmo, e o encobrimento dele com a mesma vergonha que se sente pelas coisas mais
repulsivas. Como assinalei no livro Em Defesa da Pureza, há diversos tipos de vergonha.
Há uma vergonha que quer ocultar as coisas repulsivas, sejam físicas ou psíquicas. Sente-se
vergonha quando os outros mencionam a nossa covardia ou a nossa fraqueza. Mas há
também a vergonha que expressa uma relutância em revelar as coisas belas e nobres, se são
íntimas. A gente não deseja estar exposta à inspeção pública quando se sente
profundamente comovida — se as lágrimas que vêm aos olhos são a expressão da
emoção ante algo nobre e belo. Não se quer nenhuma testemunha quando se beija o
amado cônjuge. Esta vergonha, que diz respeito a coisas que se ocultam não porque
se acredita sejam horríveis, mas porque são íntimas e porque o seu valor específico exige
discrição, é a resposta absolutamente certa à esfera sexual; e, quando não se observa, está-
se diante de um sintoma unívoco de cegueira para a natureza específica do sexo.
Antepor a neutralização do sexo à afetação vitoriana, derrubar as paredes deste misterioso
jardim e ver nisso “progresso” é um erro fundamental. Aqui, como tão freqüentemente sucede,
opõe-se a uma atitude negativa não a sua verdadeira contraparte positiva, mas outra atitude
negativa. (Assim, por exemplo, antepõe-se uma neutralidade antiafetiva ao sentimentalismo, sem
perceber que a verdadeira antítese deste é a autêntica, a gloriosa afetividade — um grande amor
ardente.)*
A verdadeira antítese do racionalismo não é o banimento da razão, o culto do
irracional, mas sim o devido uso da razão. Do mesmo modo, devemos entender que a
verdadeira antítese da afetação vitoriana é uma atitude reverente para com o sexo,
vendo nele algo extraordinário, profundo e misterioso, cuja existência não se deveria tentar
negar, e que, em virtude da sua própria natureza, é íntimo e tem caráter de segredo.
Outra falha na afetação vitoriana é o comportar-se como se o mundo do sexo não
existisse. É claro que isso não é o mesmo que tratar esta esfera a uma reverente
distância, dado o seu caráter de mistério. O afetado que se esforça por comportar-se
como se o sexo não existisse tem qualquer coisa de falso e insincero; tem laivos de
sensualidade reprimida. A verdadeira antítese de tal afetação é o reconhecimento
cabal do valor desta esfera, não se evitando mencioná-la quando necessário, mas
falando dela sempre de maneira reverente — com o que se lhe faz inteira justiça ao caráter de
mistério íntimo — e nunca a neutralizando.
Tratar o sexo como mero instinto, semelhante à fome e à sede, é destruir a
possibilidade da grande e profunda experiência da união física, como realização de
um supremo amor conjugal e de uma completa autodoação. Se digo “destruir a
possibilidade”, não quero dizer que uma pessoa com tal atitude não possa mais tarde
converter-se, mediante um grande amor, e mudar radicalmente a sua atitude para
com o sexo, compreendendo-lhe então o profundo significado, como a máxima
expressão do amor conjugal. Mas quero dizer que considerar o sexo mero instinto,
como a fome e a sede, é incompatível com a percepção e a experiência do seu
profundo e misterioso significado, como expressão de um grande amor. Tão logo
alguém que visse nas relações sexuais somente a satisfação normal de um instinto
despertasse, por um grande e profundo amor, para a descoberta do real significado desta
esfera, não poderia deixar de lamentar profundamente o ter-se sempre menosprezado a si mesmo, o
ter sempre profanado tal união. Por outro lado, se se vê no ato sexual somente a satisfação normal
de um instinto, é impossível compreender por que a união física deve ser a expressão
máxima de algo tão profundo como o amor, como o pode ser a realização específica da
intentio unionis.
Isto deveria estar claro para qualquer pessoa que já amou profundamente. Não
obstante, até alguém que ainda não tenha experimentado um grande e profundo amor pode
ter uma verdadeira e autêntica opinião sobre o sexo. Lembra-me quando, há cerca de
cinqüenta anos, me encontrei com um jovem, filho de famoso filósofo, e que comigo
estudava na Universidade de Munique. Conversamos sobre a questão do sexo, e jamais lhe
esquecerei as palavras: “Pensas que sou tão bobo que estragaria a grande e feliz
experiência da minha noite de núpcias? Pensas que não estou consciente de que destruiria a
plenitude e a felicidade desta experiência, da união suprema com a pessoa que amo?” Ele
não era um homem religioso, e nem sequer via as coisas primeiramente do ângulo moral; o que
disse era simplesmente o resultado de uma compreensão do mistério do sexo, do seu
verdadeiro significado como expressão do amor máximo e da sua capacidade de
tornar-se fonte de profunda felicidade. Se se compreendeu que na união física se
encontra uma inigualável dádiva do próprio segredo ao ente amado, não se pode
deixar de ver com horror o seu abuso como mera satisfação de um instinto, como um
meio de divertimento, como um violento prazer físico, como um jogo divertido com uma
pessoa por quem talvez, poucos dias depois, não mais nos preocupemos.
O verdadeiro amante compreende que a união física é algo misterioso e profundo,
mediante o qual, de modo exclusivo, revela o seu segredo à pessoa amada, e esta lhe revela o
seu. É um fato muito significativo e profundo que a Bíblia fale desta união física como
“conhecimento” — conhecer uma mulher. Este termo expressa a intimidade e
profundidade da revelação do segredo da pessoa, a autodoação que esta união
corporifica.
A profundidade e o impacto existencial da união física revelam-se igualmente
quando se compreende que a esta expressão máxima de amor está confiada a criação
de um novo ser humano.
Neste sentido, também devemos penetrar no universo humano para libertar-nos
da referida superstição de que o aspecto real, autêntico do mundo nos é fornecido
unicamente pelas ciências naturais. Se não compreendemos o que é uma pessoa
humana, o abismo que separa o homem de um simples animal, se o mistério da pessoa não
está apreendido, então não se pode compreender a grandeza do nascimento de um ser humano, a
sua criação. Se se vêem a concepção e o nascimento unicamente como meros processos
fisiológicos, não se podem compreender o impacto e a seriedade de um novo ser
humano. Se no entanto tivemos êxito em nos livrar dessa cegueira para a autêntica
realidade do universo humano, não podemos deixar de apreender a beleza de ter sido
confiada a esta união de amor a geração de um novo ente. A reverência e o respeito com
que devemos tratar esta esfera tornam-se mais evidentes, tão logo se compreenda a beleza deste
fato, tão logo se compreenda que o mesmo evento da autodoação recíproca e da
realização da união de amor é também a fonte de um novo ser humano.
Até agora analisamos tão-somente a natureza e a finalidade do sexo, sem lhe
considerar o aspecto moral. A monótona e neutra concepção do sexo, que nele não vê senão
mero instinto, já dissemos que é falsa, porque, à margem de todas as considerações
morais, corresponde a uma completa cegueira para a verdadeira natureza do sexo.
Dissemos também que essa opinião a respeito do sexo o impede de conferir-nos uma
grande e profunda felicidade, como a expressão máxima do amor, no casamento. Ao
compreendermos, porém, o mistério do sexo, não podemos deixar de ver a relevância
moral do abuso desta esfera. Não se trata somente de que, por tal abuso, nos
privamos de uma profunda felicidade; procedendo assim, agimos também
imoralmente. A profanação é uma das fontes clássicas de desvalores morais. Ninguém
duvida de que quem se valesse da dedicação e da amizade de uma pessoa só para satisfazer o seu
interesse egoístico, usando-a, por exemplo, como mero meio de obter certo lucro, e
abusando, assim, em suma, da sua dedicação e amizade, faria algo moralmente
desprezível e mesquinho. A própria razão desse desvalor moral é precisamente a profanação de
usar algo nobre, que exige reverência e gratidão, como mero meio para os próprios interesses
egoísticos. Assim, dar uma resposta indevida à verdadeira natureza e valor da esfera do
sexo, fazer de algo que se destina a ser a expressão da mais profunda comunhão de
amor humano um mero meio para satisfazer os próprios instintos, é moralmente desprezível e
mesquinho.
Não raro se ouve o argumento seguinte: compreendemos que moralmente é errado
abusar de outrem para satisfazer os nossos interesses egoísticos, forçando alguém, por
exemplo, a fazer serão porque queremos ganhar mais dinheiro. No caso todavia da
relação sexual, se ambas as partes a desejarem, como pode haver abuso da outra
pessoa, desrespeito à sua liberdade? Por que isso haveria de ser moralmente errado?
Afora o fato de toda a moralidade não reduzir-se a não injuriar a outrem, é
equivocado crer que só injuriamos a outrem quando lhe impomos algo contra a sua
vontade. O fato de a outra pessoa gostar de alguma coisa não determina que tal coisa
realmente convenha ao seu melhor interesse nem constitua verdadeiro bem objetivo.
Se conheço alguém que está em perigo de tornar-se alcoólatra e o convido a beber comigo, ele
pode gostar muito disso, mas sem dúvida o prejudico ao proceder assim. Se, a título de curiosidade,
alguém quiser experimentar o efeito da heroína, e lhe consigo essa oportunidade, faço-
lhe mal, ainda que ele a possa apreciar. Por certo, esses exemplos são muito diversos
do caso do desejo sexual; não obstante, provam que o fato de alguém gostar de tais
coisas de modo algum é decisivo. No abuso do sexo, certamente, não é a saúde de alguém que
é afetada, como no caso do alcoólatra ou do viciado; em tal abuso, prejudico-o em
algo muito mais precioso: a sua dignidade de pessoa. Induzindo-o a abusar da união
física, ou até somente cedendo ao seu desejo desse abuso, rebaixo-lhe a dignidade de
pessoa, antes de tudo porque ele se torna em instrumento para o meu prazer, mas
também porque aceito o fato de ele desprezar-se a si mesmo, de trair o seu segredo,
de realizar uma falsa autodoação e de aviltar-se por uma profanação.
Afora essa atitude imoral para com o outro, esse desrespeito e falta de caridade
que lhe demonstro, o próprio desprezo de si mesmo é algo imoral. Temos obrigações
morais também para com nós mesmos.
Se alguém se casa somente por razões financeiras, comete uma ação sórdida. Usa
o casamento, usa tão grande bem, que inclui a dádiva do nosso coração e do nosso corpo a
outra pessoa, como um meio para enriquecer. Vende-se por isto, por assim dizer.
Ainda que a outra pessoa não esteja enganada, ainda que esteja ciente do baixo
motivo, tal venda de si mesmo, do próprio coração e do próprio corpo, é imoral e
degradante. Do mesmo modo, a profanação da misteriosa união física de duas
pessoas é imoral e aviltante; prejudico a mim mesmo e à outra pessoa, frustrando em
ambos a grande dádiva que o amor conjugal pode conferir.
A “face” do universo torna-se falsificada tão logo se condene ao ostracismo a
categoria fundamental do bem e do mal morais, que é o eixo do universo espiritual e
da vida humana, e que para estes cumpre a mesma função que o sol cumpre no
mundo material que nos cerca. Falamos genericamente a respeito do erro básico de
restringir a realidade à visão de laboratório. Agora, a pior faceta dessa visão
falsificada do universo é o despojamento artificial do mundo da sua substância moral
— considerar o homem e a sua vida de modo que os neutraliza do ângulo moral.
Quando alguém nega artificialmente a imensa realidade do bem e do mal morais,
torna-se cego à verdadeira natureza do universo humano. Com essa negação, elimina-
se toda a profundidade, toda a tensão e toda a realidade espiritual. Estende-se isso
até à mesma literatura. Se eliminarmos artificialmente de Otelo as categorias do bem
e do mal morais, o horror ético de Iago, a culpa trágica de Otelo, a pureza e inocência
de Desdêmona, então, em vez desta tragédia grave, ter-se-á algo sem profundidade,
sem tensão, sem poesia. Vendo-se em cada um o resultado de complexos e assim por
diante, acaba-se num consultório de psicanalista, que, certamente — ainda para os que
crêem nesse tipo de feiticeiro moderno — não transmite nenhuma beleza artística.
O bem e o mal morais são realidades elementares tais, que, ainda quando algum
filósofo as tenta negar, volta a deparar com elas assim que se afasta da sua mesa de trabalho
e entra novamente em contato existencial com a realidade.
A tentativa de separar a realidade do seu significado moral resulta, em grande
parte, de uma concepção errônea da moralidade. Pode-se considerar a moralidade
simplesmente à luz de uma lei positiva; pode-se acreditar que seja mais ou menos
arbitrariamente imposta, equivalente até aos mesmos incontáveis tabus com que as
coisas se têm rotulado na história humana. É possível que alguns moralistas, eles
próprios, sejam culpados desta concepção errônea, por tratar a moralidade dessa
maneira. O fato porém é que o valor ou o desvalor morais estão enraizados no âmago
de alguma coisa; são de tal modo o oposto de uma imposição, que nos tornamos
cegos ab ovo para a verdadeira natureza de algo se tentamos vê-lo, digamos assim,
num universo onde não existam o bem nem o mal.
Aplica-se isso especialmente à esfera do sexo. Se muitos repetem que o prazer sexual é
pecaminoso, que é proibido pela lei moral, sem ver o alto valor positivo que o sexo
possui na sua verdadeira e válida função, sem reconhecer-lhe o mistério, esse
julgamento moral pode despertar a impressão de proibição imposta. Alguns tentam
dar uma explicação psicológica para o suposto tabu da relação extraconjugal, crendo
que, ao libertar do tabu essa esfera, ao negar-lhe toda e qualquer significação moral, tornam
a vida mais saudável e feliz. Crêem que, tornando o sexo neutro do ângulo moral,
finalmente o tratam de modo positivo. Em verdade, todavia, a significação moral desta esfera
está indissoluvelmente ligada à sua verdadeira natureza, ao seu real valor, ao mistério que ela
corporifica. E, tentando subtrair o sexo ao universo moral, não abrem caminho para
um sadio enfoque dele, não tornam a vida mais feliz, fechando antes as portas ao verdadeiro
tratamento do sexo. Tornam o homem cego para o seu verdadeiro valor; impedem o rio
de uma profunda felicidade, conferida à vida humana no casamento. Em vez de libertar o
homem, encarceram-no num desesperado fastio.
Não é difícil perceber o abismo que há entre o conceito da relação sexual como satisfação de
mero instinto físico, semelhante à fome e à sede, e o conceito da união física como a
mais elevada, a mais misteriosa realização do amor conjugal, nos vínculo do matrimônio.
Não é difícil reconhecer em que conceito o sexo exibe maior valor, mas isso não se pode apreender
sem que se veja também que o abuso de algo tão profundo e misterioso constitui
grave erro. Vimos o desvalor moral da profanação daquilo que está destinado a ser a
profunda e misteriosa realização do amor conjugal. Devemos acrescentar agora que se trata de
grande degradação do sexo — não apenas rebaixá-lo a plano muito inferior, mas privá-lo de
todo o seu valor — tentar livrá-lo da esfera moral, separá-lo da sua significação moral.
Isso é o mesmo que privar o sexo da capacidade de ser fonte de verdadeira felicidade.
Torna-se patente quão inextricavelmente está ligado o aspecto moral à compreensão da
verdadeira natureza do sexo tão logo se comparem os dois casos seguintes.
No primeiro, um desejo sexual isolado, ou uma excitação superficial, que assume a feição de
paixão esmagadora e leva alguém à queda. Esta pessoa está perfeitamente consciente
do mal moral que está cometendo. Vê o mistério da esfera sexual, a sua
profundidade, a sua intimidade, o seu impacto. Sucumbe ao aspecto que esta esfera
também pode ter — uma misteriosa, diabólica atração. Neste caso, há a terrível profanação,
mas ao menos a pessoa ainda vê o mistério desta esfera, porque está consciente da
profanação, e porque apreende o abismo moral em que está caindo.
O homem que, ao contrário, considera o sexo como moralmente neutro, e a relação
sexual como a satisfação de um instinto saudável, à semelhança do alimentar-se,
absolutamente não alcança a natureza do sexo. Está cego para a sua intimidade,
profundidade, impacto e mistério. É de todo incapaz de compreender o papel da
união física em termos de realização de um grande amor conjugal; está privado da profunda
felicidade que o sexo se destina a conferir ao homem.
A amoralidade é ainda pior que a imoralidade. O homem imoral pode arrepender-
se da sua falta e voltar-se para o seu interior, ao passo que o homem amoral
condenou-se à periferia e não encontra o caminho de volta após cometer algo objetivamente
imoral.
Quem erra moralmente mas tem consciência da sua imoralidade permanece na
órbita da verdade; admite a importância máxima da questão moral, ainda que neste momento
se perca. Movimenta-se ainda no verdadeiro universo espiritual, e vê os valores reais. A sua
situação pode ser trágica. Mas quem profana o mistério do sexo, vendo nele uma
satisfação inofensiva de um instinto físico, quem contempla o mundo após ter apagado a luz
da moralidade, move-se num universo insípido, falsificado, sem profundidade, sem emoção,
sem grandeza. O seu mundo é o exaltado consultório de psicanalista. Ele não é
trágico, mas está imerso num desesperado fastio, porque é a luz moral — a grande
tensão do bem e do mal — que eleva e amplia a vida humana para muito além das
fronteiras da nossa existência terrena. Como disse Kierkegaard: “O ético é o próprio alento do
eterno”.

*
Grifo nosso. (N. do E.)

CAPÍTULO II
A MISSÃO DO AMOR HUMANO
S E FALHAMO S EM compreender o que é realmente o amor, é-nos impossível oferecer uma
adequada consideração filosófica sobre o que é o homem. Só o amor conduz o ser humano à
plena consciência da existência pessoal, dado que é só no amor que o homem
encontra a oportunidade de ser o que é. A falha de Heidegger ao não perceber isto
constitui um dos seus numerosos e graves defeitos. E é uma fraqueza particularmente
chocante em alguém que pôs o foco da sua filosofia na singularidade do “ser”, ou seja, nos
seus aspectos mais propriamente pessoais do que impessoais. Já Gabriel Marcel soube
levar em total consideração a missão do amor humano. Para ele, a outra pessoa, um
“tu”, é de importância crucial para o “eu”. Isto se torna especialmente claro na sua compreensão da
morte. Para Heidegger, uma exata idéia da morte — em contraste com toda a história de
“alguém está morrendo” — leva a admitir: “deverei morrer”. Considerando as coisas de
outro modo, Gabriel Marcel vê uma relação existencial, que surge principalmente da
carinhosa atenção de alguém para com um “tu” em particular. O pleno significado da
morte atinge-nos com “um dia tu morrerás”.
Torna-se absolutamente claro o que é o amor se conservamos no espírito a sua missão auto-
reveladora mediante a essencial característica da transcendência humana. Se consideramos ou
pensamos uma pessoa somente como outro indivíduo, que pode ser entendido em termos
da sua própria luta autônoma, não compreendemos o que é totalmente novo e incomparável
no ser pessoal. A transcendência do homem, isto é, a habilidade para entrar em íntima relação
e entendimento com outro ente ou um “tu”, a capacidade de responder ao valor do outro e de
interessar-se nele por sua própria causa (propter ipsum), a capacidade de alcançar o que está
além de si mesmo e das suas próprias tendências imanentes — tudo isto faz parte do que é
especialmente característico da personalidade. E disto depende a dignidade de que uma pessoa
desfruta ao elevar-se acima de todo o ser impessoal. Ainda no plano natural é válido o dito
do Senhor: “Aquele que perder a sua alma a encontrará.”
Naturalmente, qualquer pessoa criada recebe de Deus um ser pessoal, a título de
simples dádiva. Não obstante, a obrigação de uma luta contínua para tornar-se mais
pessoal apóia-se diretamente na natureza de tão singular criação. Disse o grande filósofo
francês Gabriel Marcel que ser pessoa implica mais que o simples fato. É também
uma conquista.
O mesmo pode dizer-se do amor. A capacidade de amar é uma dádiva de Deus, seja
tal poder em si mesmo, seja a habilidade de amar uma pessoa particular. Ao mesmo tempo,
contudo, há uma obrigação, um apelo ao nosso livre-arbítrio que envolve mais que a
nossa característica posição de lealdade, firmeza ou defesa com respeito ao amor. Isto
tem que ver com o fato de que, para amar verdadeiramente, é preciso aprender a fazê-lo.
Trataremos outra vez esta questão ao fim deste capítulo.
Em primeiro lugar, porém, há que compreender o que é em verdade o amor,
penetrando-lhe a natureza. Poucas vezes isto se fez satisfatoriamente na história da
filosofia.
Em filosofia, há o perigo de que algo considerado univocamente seja sacrificado em prol
de uma plausibilidade de pouco valor, a qual dá ensejo ao que apenas parece ser um melhor
discernimento, mas que, em verdade, corresponde a uma compreensão incompleta. Há certa
tendência a evitar a busca profunda e a pronta admissão dos “mistérios do ser” — o
maravilhoso. Em vez disto, há uma predisposição para alterar as realidades em questão, reduzindo-
as ao que é plausível, de modo meramente superficial. O que nelas é mais característico
fica completamente ignorado.
Algo semelhante a isso se dá sempre que se tenta chegar a um entendimento do amor
partindo do amor de si próprio. O que caracteriza a especial transcendência do amor,
ou seja, a sua correspondência ao valor, é a capacidade de suscitar interesse por outra
pessoa, pelo que ela tem de mais belo e precioso. Negligencia-se isto, no entanto, e acredita-se que,
para alcançar um real entendimento da natureza do amor, se deveria voltar os olhos para
uma inequívoca fonte de identidade — o inevitável interesse que uma pessoa tem por si
mesma.
Obviamente, há esta inequívoca e até inevitável identidade com o eu, a qual desempenha
importante papel na vida de todos nós. Faz-se sentir fortemente em todos os planos. É natural,
por exemplo, ficar muito aborrecido por uma sensação de dor na perna. E, por causa do
nosso próprio sentido de orientação, ficamos naturalmente perturbados por um
comportamento sem amor, humilhante ou insultuoso, que nos tenha por objeto. Para nós, a
felicidade é assunto de importância. Buscamos evitar o infortúnio. Mas esta identidade natural não
vem do amor. Este vínculo com o eu não tem por fonte o amor. De modo absoluto,
isto precede ao amor, como algo inerente à identidade natural, isto é, a nós mesmos.
Sem dúvida, a natureza do amor é de ordem tal, que se pode estar interessado
numa pessoa de modo inteiramente semelhante àquela identidade. Alguém, pois, pode ter o
mesmo tipo de identidade com ela que verifica ter consigo mesmo. Seria todavia
erroneamente tomado como fundamento ou fonte do amor aquilo que em alguém é efeito ou
“realização” do seu amor por outra pessoa. Onde se dá tal identidade consigo
mesmo, que, é claro, se baseia na natureza humana, ainda não há fonte nem fundamento
para o amor.
Tão logo se dê maior consideração ao que está envolvido aqui — por um lado o
amor, e por outro lado a identidade consigo mesmo — evidencia-se que absolutamente
não há possibilidade de deduzir do “amor de si próprio” o amor e o intrínseco interesse
por outrem, interesse que é inerente a este amor. Uma confusão desse tipo não conduz a
nenhum entendimento do amor de uma pessoa por outra. Tal tratamento falseia o
mistério do amor, e não proporciona senão uma soi-disant explicação para o interesse
inerente ao amor por outrem.
Torna-se ainda mais clara a impossibilidade de deduzir o amor por outrem do “amor de si
próprio” ou da identidade consigo mesmo, quando se compara o amor com a
solidariedade manifestada a uma pessoa, a qual é pouco mais do que a extensão da
identidade que se sente consigo mesmo. Semelhante identidade com relação ao outro
existe, naturalmente. Um exemplo típico encontra-se no comportamento do homem
que fica extremamente sensível quando alguém lhe explora ou humilha a esposa, ainda que
não tenha por ela verdadeiro amor, e ainda que ele mesmo abuse dela. Por considerá-
la parte de si mesmo, o fato de ser sua esposa põe-na no reino da sua própria identidade.
Experimenta um ataque a ela como se tivesse sido dirigido a ele — não porque a ame, mas
porque a considera uma extensão do seu próprio ego. O mesmo se dá com o patrão
que abusa ou tira partido do empregado, mas que, não lhe tendo embora nenhuma
afeição, recebe como ofensa à sua própria pessoa um insulto dirigido ao funcionário.
Qualquer tentativa de analisar o amor partindo do amor de si próprio, qualquer
idéia de que algo tão unívoco como o amor de uma pessoa por outrem possa explicar-
se nos termos ambíguos do amor de si mesmo, fecha as portas a qualquer verdadeiro
entendimento do amor.
A nossa primeira tarefa é tentar chegar a um acordo com o amor no ponto onde ele
total e claramente se revela por aquilo que é. Surge contudo um problema: o de libertar-
nos de antigo e enraizado preconceito, a saber, a teoria de que tudo o que diz
respeito à esfera afetiva não é realmente de natureza espiritual. A suposição de que
somente o intelecto e a vontade são componentes da natureza espiritual do homem, e
de que toda a esfera das emoções, comumente chamada “coração”, simplesmente
pertence aos seus constituintes vitais e irracionais, é remanescência do intelectualismo grego.
Mas esse ponto de vista nunca se provou nem se pode pretender evidente.
Em vários livros e artigos insisti neste ponto: a fria análise da esfera emocional
demonstra claramente que as respostas significativas ao valor — como a alegria, a tristeza, o
respeito, a admiração — exibem, todas, as marcas de atividade espiritual que se manifestam, por
exemplo, no conhecimento, na convicção, na conjetura e na determinação. Quando se
compreende que uma completa expressão emocional não é de modo algum incompatível com a atividade
espiritual, e que no homem existem três centros espirituais — intelecto, vontade e coração — como
corretamente mostrou Haecker, já não há nenhum motivo para aderir a uma interpretação do amor que o
transforme em ato de vontade, como freqüentemente mas indevidamente sucede.* Outrora, acreditava-se ser
necessário converter o amor em ato de vontade a fim de preservar-lhe a
espiritualidade. O amor, todavia, é clara e indubitavelmente uma resposta do coração.
No livro Ética Cristã mostrei a distinção entre três categorias de importância, que
podem determinar-nos as intenções ou as “respostas” afetivas. Como de capital
relevância ressaltei a que é de valor, a que é importante em si mesma e desempenha papel
eminente na vida do homem. Não obstante, para evitar todo o mal-entendido, devo
empenhar-me em esclarecer que o termo “valor” absolutamente nada tem que ver com a
chamada “filosofia do valor”, de Rickert. Nem é “valor” aquilo que Scheler entende
pelo mesmo termo. Enquanto as duas categorias de importância referentes ao que é
só “subjetivamente satisfatório” e ao que é um “bem objetivo para a pessoa” não tiverem
sido claramente diferenciadas do que é de valor (o “importante em si mesmo”), falhamos em
apreender com precisão o que é o amor. Antes de tudo, devemos ressaltar o fato de
que na idéia de valor, como é usada aqui, não há nenhum recurso a abstrações que
nos levem para fora do mundo dos bens reais e individuais. Assim, segundo usamos o termo
aqui, valores — e valores especificamente considerados em sentido qualitativo — são raios de
esplendor refletidos da infinita majestade do Deus vivo. Como se apresentam em todos os
autênticos bens, são mensagens de Deus e constituem a realidade suprema no próprio Deus,
que é Justiça, Bondade e Amor.
Ninguém pode compreender o que se quer dizer por transcendência humana sem perceber que
é possível o interesse numa coisa por seu próprio mérito e por nenhuma outra razão.
Referimo-nos a isto como a capacidade humana de responder ao valor. Se nos limitamos a
admitir só uma categoria de importância, ou seja, o que é “objetivamente bom para a
pessoa”, acreditando ser impossível um interesse real por outrem, porque o que é
objetivamente bom só para a pessoa não tem nenhum poder de motivação,
interpretamos mal a transcendência humana. O homem confina-se, assim, a uma
imanência insuperável. Então, o mais importante e significativo dos atos humanos não
poderá jamais avaliar-se corretamente. Seremos forçados a nutrir falsas noções acerca da
própria natureza humana, e a falsificar-lhe grosseiramente a realidade.
Quando analisamos atos como o entusiasmo, a admiração e especialmente o amor,
tomados de modo intuitivo, somos compelidos a ver o que neles há de mais
característico — a correspondência ao valor.
Propriamente entendido e no sentido mais imediato, o amor é somente amor quando diz
respeito ao outro. Seja por uma criança, por um genitor ou por um amigo, envolva
recém-casados ou se trate do amor a Deus ou do amor ao próximo — é sempre amor por
alguém. E, embora o amor por coisas que não desfrutam de estrutura pessoal (por
exemplo, a nação, a pátria, determinado país, certo trabalho artístico, uma casa etc.)
esteja em sentido próprio muito mais perto do amor do que o amor de si mesmo,
ainda assim só é amor em sentido análogo.
De modo semelhante, o apego a coisas, trate-se de alimento, bebida, dinheiro etc.,
nunca se pode identificar com o que queremos dizer por “amor”, nem no máximo
sentido análogo. Deve-se fazer nítida distinção ao considerar a questão decisiva do
amor. Um beberrão não “ama” o álcool, nem o avarento o seu dinheiro.
Naturalmente, ficam apegados a essas coisas. Estão sujeitos à sua influência, e aí está
envolvida uma indescritível atração. Não obstante, o elemento de “atração” que se
encontra no amor é de tipo totalmente diverso. É tão diverso o tipo de atração que se
encontra em cada um desses casos, que a analogia aí se torna enganosa. Deve-se ter em conta o
perigo de tais analogias.
Se começo com a experiência do apego a alguma coisa, pode interpretar-se mal a
natureza do amor. O que responde pelo que é peculiar no amor, pela sua natureza específica,
inflexivelmente o exclui de qualquer tipo de apego a qualquer outra coisa. Esta
diferença tem significado para todo o campo da afetividade e, de modo análogo, para
o da vontade. Diz respeito ao que torna uma resposta ao valor diferente de uma resposta ao
que é meramente agradável. Basta, então, para os nossos objetivos, mencionar aqui o
fato, ao mesmo tempo que se chama a atenção para a diferença existente entre o
deleite proporcionado por um valor e o produzido por outro motivo.
Um exemplo do primeiro caso seria o prazer que se experimenta ao visitar um
belo lugar. A beleza do cenário, e portanto o seu valor, é responsável pela sua
atração e deleite.
O prazer que se sente num banho morno ou o que é produzido por um jogo de cartas,
por sua vez, são exemplos de recreação que não dependem de valor. Nestes casos, não
está presente um valor a que se possa dar resposta adequada. Com efeito, o
importante aí é a qualidade do prazer que faz algo “tornar-se objetivamente bom
para mim”. O fato de certos alimentos terem bom gosto ou de um jogo de cartas ser agradável
depende de algo assim. Toda a espécie de apego a coisas desse jaez — coisas que são agradáveis
no sentido mais amplo do termo, sem possuir valor próprio nem ser agradáveis por um
valor — é essencialmente diverso do apego a coisas verdadeiras, cujo prazer se deve ao
seu valor.
Há que enfatizar ainda mais vigorosamente o grande perigo que existe em tentar
avaliar a natureza do amor mediante analogias de uma dimensão em que o deleite
não se baseia em valor, e em que a atitude da pessoa para com o objeto se funda
totalmente em alguma outra coisa.
Se assim procedemos, chegamos à infeliz noção de que a pessoa amada serve de meio para a
nossa felicidade. Coisas puramente deleitáveis, coisas que satisfazem ao eu, podem sem dúvida
considerar-se meios para o nosso prazer. Mas isso é de todo impossível quando o deleite
se deve ao valor de determinados objetos. O meu interesse por tais objetos deve ser
causado por eles próprios. Só assim podem trazer-me indescritível felicidade. E isto é
especialmente verdadeiro no caso do amor.
A idéia de que o amor envolve a rendição de si mesmo a outra pessoa com o fito de alcançar a
felicidade constitui o mais crasso equívoco acerca do amor. O que sucede no amor é a
confirmação de outra pessoa como tal. O meu próprio desejo de felicidade nunca pode
ensejar o amor por outrem. Mas a felicidade provém da união com outrem — em virtude do
amor que lhe tenho. A felicidade é uma conseqüência do amor, nunca o seu motivo.
Quando alguém é amado, ele é um fim em si mesmo e, por certo, não um meio para algo
mais. Por conseguinte, é da essência do amor, onde quer que se encontre, que o ente
amado se mostre precioso, belo e digno de amor. Quando um ser humano não é senão
útil, quando dele só se fizer um bom uso, não há a menor possibilidade de nascer o
amor. Quer se trate de amor pelo próprio filho, pelos pais, por um amigo ou pelo
cônjuge, a rendição que se encontra em cada caso de amor pressupõe toda a dignidade da pessoa
amada, a sua beleza, a sua preciosidade — em suma, pressupõe que seja digna de amor, em
sentido objetivo. O amor é uma resposta ao valor (o “importante em si mesmo”).
Sem dúvida, Aristóteles percebeu que uma verdadeira amizade não é possível se não se fundar
em considerações de valor. É só então que o nosso interesse visa à outra pessoa como
pessoa. Quando isto acontece, a suscetibilidade ao valor, que é típica do amor,
apresenta-se de modo nítido. Esta suscetibilidade inerente ao interesse amoroso é
essencialmente dirigida à outra pessoa como pessoa. A sua existência e, ademais, todo o
seu ser são totalmente temáticos. Quando todavia alguém é meramente útil, uma
fonte de diversão ou entretenimento, não é temático em si mesmo. E não é amado.
Os valores aqui considerados e o deleite que deles emana devem pôr-se de maneira tal,
que tenham alguma conexão com a pessoa como pessoa. Esta deve ser totalmente
temática. Se alguém, por exemplo, tem uma natureza inteiramente poética e encantadora e se
há algo fascinante no ritmo da sua vida, estes valores são tais, que tornam esta criatura
preciosa e bela. Quando se desfrutam estes valores, a pessoa permanece de todo
temática. É o que especialmente se verifica no caso em que o valor é uma orientação
espiritual que brilha através da sua personalidade, revelando-lhe o encanto e a
atração. Obviamente, um valor desta espécie faz parte de uma pessoa como pessoa. E
toda a tentativa de usá-la como meio para deleitar-se com o seu dom espiritual por certo seria
frustrada, pois o encanto se dissolveria de imediato. Isto é muito mais verdadeiro
quando os valores morais e religiosos estão presentes. Quando a generosidade, a
pureza, a bondade, a profunda fé religiosa do outro, ou o seu amor por Cristo, são a
atração, estes valores fazem parte dele de maneira tal, que em verdade, adornando-o,
o fazem completamente temático. E a nossa percepção volta-se de modo especial para
ele como pessoa. Aqui, o deleite emana univocamente da preciosidade e amabilidade
desta pessoa.
Invariavelmente, em cada uma das suas formas, o amor inclui a percepção de que o
ente amado é precioso, bem como da presença do valor, que de tal modo faz parte dele,
pessoalmente, que toda a sua dignidade como pessoa se torna maravilhosamente
visível. A sua dignidade e beleza imensuráveis são responsáveis por tudo o que nele
é atraente e deleitável.
O que nisto é de importância crucial é o fato de que em cada caso de amor há uma
característica resposta ao valor. Este tipo de rendição a outrem não pode estar
separado do fato de que ele é precioso, belo e digno de amor.
Quando nos defrontamos com a questão de saber por que amamos alguém, não
podemos, à guisa de explicação, enumerar-lhe as qualidades meritórias, como
faríamos num cálculo. Isso, no entanto, não deveria dar margem a nenhuma confusão
quanto à suscetibilidade do amor ao valor.
Antes de tudo, há naturalmente mais valores qualitativos do que noções deles. E há
mais tipos de valores do que podemos enumerar. Tratando-se do amor, contudo, o que
há é principalmente uma questão de beleza individual de uma pessoa tomada como
um todo, e da sua notável dignidade. Isto tem que ver com algo central, um dado de
valor, que é verdadeiramente fornecido por muitos valores vitais, espirituais e morais. Tal
dado nunca se pode reduzir a tais valores nem formular-se como eles o podem. Mas
isto se deve a ser impossível classificar a beleza total de uma pessoa. Quando se ama um
amigo, o dado central de valor, a saber, a sua preciosidade como indivíduo singular, está
notavelmente claro. E isto é ainda mais verdadeiro no caso do amor conjugal. O que
enseja o amor ou a grande sensação de alegria experimentada por outra pessoa é a
beleza e a preciosidade da sua personalidade individual, tomada na sua totalidade. Poderíamos
chamá-la a beleza da especial idéia divina que esta pessoa personifica.
Não obstante, o fato de não se poder prontamente justificar o nosso amor
recorrendo a coisas como a confiança, a lealdade, a inteligência ou a integridade espiritual
do outro, de maneira alguma afeta o caráter do amor como resposta ao valor. Ao
contrário, deve-se à profunda e central presença do valor que o amor pressupõe. O
caráter do amor como suscetibilidade ao valor revela-se ainda quando a nossa
percepção está voltada para a presença de um tipo especial de valor.
Permanece, no entanto, outro equívoco por corrigir. Sempre que o amor é tomado
por apetite ou desejo, sempre que é considerado uma espécie de força espiritual que no plano
físico corresponde ao desejo, está radicalmente negada a essência do amor.
Quando tal se verifica, a beleza da pessoa amada e o seu atrativo estão erroneamente
reduzidos à capacidade de satisfazer um desejo. Esse engano traz conseqüências não só para a
compreensão do amor mas também para toda a esfera de respostas do homem. E isso
envolve não só má compreensão da resposta ao valor mas também, o que é pior, má
compreensão do próprio valor. Tratei-o em Ética Cristã.
Há atitudes no homem que são imanentemente fundadas na sua natureza, como todos os
tipos de necessidades. As necessidades, naturalmente, desempenham papel significativo na vida
de uma pessoa. O importante é notar que não são engendradas pelo objeto e pela sua
importância. Ao contrário, surgem espontaneamente. Um objeto é buscado, digamos
assim, na medida em que possa trazer alívio a uma necessidade.
No caso porém das respostas e, mais especialmente, de cada resposta ao valor, é o
objeto e a sua importância o que traz à vida a atitude de suscetibilidade numa
pessoa. Quando se trata de necessidade, a própria exigência é, em verdade, o fator
determinante (principium), e é o objeto o que é determinado (principiatum). Mas, quando se
trata de uma resposta ao valor, o objeto determina e a atitude da pessoa é
determinada. Toda e qualquer necessidade, por certo, tem origem na natureza
humana, e portanto um objeto não tem importância senão enquanto a necessidade
está presente — a importância que ele possa ter em si mesmo não constitui um fator.
Emerge, assim, a importância peculiar que um objeto tem para uma pessoa: ele é capaz de
satisfazer uma necessidade. Se no entanto a necessidade, o impulso, o apetite
desaparecerem, o próprio objeto que agora é atraente deixará de sê-lo por completo.
Nem sequer conservará importância alguma.
O fator decisivo que diferencia um apetite e uma resposta ao valor reside em que,
para a última, a importância do objeto não consiste na satisfação de uma necessidade
pessoal, seja objetiva ou subjetiva. Em vez disso, o objeto é neste caso “importante em si
mesmo”. Quando se trata de resposta ao valor, o valor do objeto é em si mesmo a
finalidade. Mas, no caso do apetite, há uma questão de necessidade por satisfazer ou,
em outras palavras, de algo que o sujeito reputa necessária para a sua realização.
Uma segunda diferença se situa no interesse por um objeto que é importante em si mesmo e
que se fundamenta no seu valor. Há interesse em algo pelo seu próprio valor e pela
importância que tem em si mesmo — independentemente de quem o possua. O valor
desperta resposta ao que é importante em si mesmo. Em verdade, o valor do objeto
fá-la assomar. Já no caso do apetite, este se ergue pela própria constituição da pessoa. Um
objeto prende a atenção de alguém porque tem em si o poder de satisfazer uma
necessidade — porque é necessitado. É por esta razão, e não por nenhum valor próprio, que
o objeto é “um bem objetivo”.
Devemos perguntar-nos agora: Que distingue o amor das demais respostas afetivas que
envolvem valor, a saber, a estima, a admiração, o entusiasmo, a veneração?
Como dissemos antes, quer-se aqui dar ênfase especial ao seguinte fato: tipicamente, o
amor envolve suscetibilidade à beleza de um indivíduo muito singular, tomado como um
todo, e não a valores tomados individualmente. Uma vez que não existe isto de amar
alguém de certo modo (secundum quid), não podemos amar uma pessoa na medida em
que possua certas qualidades. Conquanto seja possível apreciá-la pela erudição, não
decorre disso que preciso estimá-la como a uma pessoa. Do mesmo modo, pode-se admirar
alguém pela voz e não pelo talento intelectual. Uma vez todavia que o amor constitui
resposta à beleza do outro no seu conjunto, porque, de modo único, envolve o indivíduo
como um todo e, ao mesmo tempo, nele se concentra como num indivíduo, não pode haver amor
secundum quid. Apesar da missão importante que os valores desempenham, um indivíduo
nunca é meramente um portador deles. É uma pessoa real, completa, que jamais se pode
substituir por nenhuma outra. Se fosse possível conceber alguém que perfeitamente repetisse o
potencial e o valor de outra pessoa em todos os aspectos — o que é completamente
insustentável — ainda assim uma das duas seria a pessoa amada e nunca haveria o
desejo de trocá-la pela outra. Quando há amor, está nele intimamente envolvida a
incomparável plenitude do significado de um indivíduo como pessoa humana.
A orientação básica para conseguir a união (intentio unionis) e o desejo de fazer o
bem (intentio benevolentiae) são as duas características fundamentais ou essenciais do amor
mediante as quais ele se distingue de todo e qualquer caso de suscetibilidade
amistosa ou afetiva ao valor. Antes de tudo, vamos considerar a intentio unionis. Quando há
amor, há anseio por uma união espiritual com a pessoa amada. Há desejo não somente
da presença do outro, por um conhecimento da sua vida, alegrias e tristezas; há mais:
há anseio pela união dos corações, a qual só o amor mútuo pode propiciar.
Não obstante quanto este desejo por uma união dos corações possa singularmente
estar presente no amor conjugal, quer com respeito à união, quer com respeito ao próprio
desejo, está presente também, de maneira especial, onde quer que haja amor. O amor
sempre deseja retribuição. Onde há amor ao próximo, há também o desejo de que este
sinta a necessidade de retribuir tal amor. E ambos estão envolvidos na extraordinária
união que constitui a comunidade de amor em Cristo — e tudo isto, naturalmente, por sua
causa. Em todo o amor, o sujeito movimenta-se espiritualmente, por assim dizer, na
direção do ente amado a fim de o “encontrar”; em todo o amor notamos este gesto de
“apressar-se” na direção da pessoa amada.
Não só o amor exibe esta tendência à união, mas por meio do amor se consegue a
união — ao menos na medida em que isto for possível por parte de quem ama.
Naturalmente, a verdadeira união não se realiza senão quando o amor é retribuído, quando há
impulso recíproco ou movimento de atração mútua. Mas o amor de uma pessoa já é,
em si mesmo, fator essencial para alcançar a união. O amor não só tem esta inclinação
para a união, mas também tem em si mesmo poder para a união (virtus unitiva). O amor
anseia por uma união que possa assegurar uma resposta ao valor. Se porém estiver em
seu poder, o amor em verdade alcança a união. O duplo aspecto do amor é da máxima
importância. Não obstante, a missão do amor — alcançar a união — não se limita ao poderoso
movimento na direção da pessoa amada. Implica igualmente uma abertura de si
mesmo, o compartilhar a sua vida espiritual com o outro, ocorrência que não se
verifica senão no amor.
Quando isto ocorre, remove-se o biombo, digamos assim, que até então ocultava e
protegia o seu eu mais íntimo e secreto. Quando alguém ama, e tão-somente então, é
que admite tal acesso a ele próprio; só então é que se verifica aquela genuína
“doação” de si mesmo, das profundezas do seu ser. Obviamente, de modo especial,
tudo isto é característico do amor conjugal. Há no entanto algo semelhante a isto em
todo e qualquer amor, ainda que só se encontre na proporção adequada ao seu tipo
específico.
A intentio benevolentia é um desejo de fazer feliz a outra pessoa. A sua genuína
preocupação visa principalmente à felicidade do outro, ao seu êxito e ao seu bem-estar.
Envolve um interesse todo especial pelo que é importante para a outra pessoa — a sua
felicidade e o seu destino.
Convenhamos que o desejo de felicidade pessoal, conquanto, é claro, não seja um sinal de
amor-próprio, é obviamente uma disposição da natureza humana que não se pode ignorar.
Que todavia a felicidade de outra pessoa deva ser de grande interesse, isto absolutamente não é
óbvio, mas é exclusivamente uma conseqüência do amor. Mais ainda, isto não se pode
separar nem é meramente um epifenômeno do amor. Tal identidade é produzida pelo
amor como parte integrante da sua própria vida e do seu crescimento. Por conseguinte, tão
profundo interesse pela felicidade do outro não pode, em verdade, considerar-se à parte
do amor.
Mas a intentio benevolentiae é também mais que o simples desejo de tornar feliz a pessoa
amada. É mais que o genuíno interesse pelo seu bem-estar e felicidade. Como atitude,
revela a disposição de zelo que se tem para com o outro. É o sopro da bondade que
emana do próprio amor e que nos possibilita falar nele como “difuso”. Assim,
encontramos aqui algo análogo ao que descobrimos no caso do impulso do amor no
sentido da união. Da mesma forma, pois, que a intentio unionis é tanto um passo para a verdadeira
realização da união como um desejo dela, igualmente a intentio benevolentiae é algo mais
que o simples desejo de fazer feliz a outra pessoa, que o mero interesse pelo seu bem-
estar. É um sopro da bondade, pelo qual, no ato de amar, alguém faz de si mesmo
uma dádiva totalmente única e inestimável. Uma vez que a intentio benevolentiae não se pode
encontrar senão no amor, também difere notavelmente de respostas semelhantes, como a estima,
a admiração e o respeito.
À luz destas duas características — a intentio unionis e a intentio benevolentiae — torna-se claro,
agora, que o amor difere de qualquer outra suscetibilidade positiva ao valor pessoal.
Há indubitavelmente uma série de outras características do amor que estão intimamente
relacionadas à intentio unionis e à intentio benevolentiae. Onde há amor, há doação do eu. No
caso do amor conjugal isto é tão perceptível, que dele se pode literalmente falar como
de doação de si mesmo. Quando se trata do amor a Deus, a dádiva do próprio eu vai
ainda mais longe, em sentido totalmente excepcional e entretanto real. Mas qualquer caso
de amor inclui, ao menos, certo elemento de doação e de renúncia de si mesmo.
Sem embargo, se a intentio unionis de modo algum se pode compreender como desejo
de fusão, tampouco pode a doação do eu (como intentio benevolentiae) interpretar-se como
doação ontológica do próprio eu. A individualidade das pessoas é objetivamente
mantida em ambos os casos. Isto é tão óbvio, que raramente necessita dizer-se;
obviamente, qualquer pessoa é por natureza um indivíduo. Sem dúvida, a idéia de
literal fusão espiritual e física com outro é absurda, impossível. Ademais, o fato da
separação individual se mantém subjetivamente na própria experiência. Em verdade, isto não
é menos essencial para a experiência de dar e receber do que para a experiência da
união.
No amor, portanto, e na entrega de si mesmo à pessoa amada, não há consciência de
renunciar ao próprio caráter como indivíduo. Antes, o ato da doação faz com que a
pessoa seja mais verdadeiramente ela própria. Torna-se total e autenticamente mais
viva. A sua própria vida faz-se mais desperta; faz-se plena em sentido existencial. A
mútua percepção das pessoas que se amam mantém-se completamente e vitalmente.
Mais ainda, nesta rendição se alcança uma subjetividade singularmente plena e significativa.
Conquanto se possa dizer: “eu sou teu”, não há “desistência” de si mesmo. A dádiva
envolvida no “teu” pressupõe ser a pessoa viva inteira quem pertence ao ente amado.
Encontra-se um dos mais representativos sinais do amor genuíno sempre que as
qualidades meritórias da outra pessoa se vejam como realmente suas, como típicas
dela, ao passo que os seus defeitos se vêem como inusitados desvios do seu verdadeiro
eu. Quando se põe em foco algo desagradável, é característico do amor a expressão: “Esse
não se parece com ele.”
No caso de alguém que não amamos, confere-se a mesma posição, digamos assim, aos
seus valores e aos seus desvalores qualitativos. Quando porém há amor genuíno, em
resposta à beleza do outro tomada em conjunto, espera-se que os seus traços negativos
não lhe sejam considerados típicos. Em vez disso, pretende-se que se trata de um aspecto
que lhe está em desarmonia com a verdadeira natureza.
É particularmente digno de nota o modo como o amor difere de uma atitude
neutra ou “fria” com relação aos outros. A chamada avaliação objetiva ou opinião imparcial
considera que lhe são igualmente próprias as qualidades positivas como as negativas de uma
pessoa — ambas lhe pertencem. O amor, enquanto admite os traços positivos como genuinamente
ou “realmente” existentes, julga tudo o que for negativo como desvio — que conflita, atraiçoa e nega
— daquilo que o outro é realmente. Este é o crédito singular que o amor, e somente o amor,
propicia.
Este mesmo crédito também desempenha importante papel no amor ao próximo; é
este o modo por que o amor consegue manter vivo no espírito o valor ontológico de
uma pessoa, e não os valores qualitativos que efetivamente lhe pertencem como
indivíduo. Dessa forma, o amor responde à imagem de Deus (a imago Dei) no outro, vendo-o à
luz daquela semelhança com Deus (a similitude Dei) que um dia lhe deverá pertencer. Longe
de considerar os desvalores qualitativos como parte da sua personalidade, este amor
os vê como uma traição à nobre essência da imago Dei.
As faltas de um amigo vêem-se como contraditórias com a sua verdadeira
natureza. Conquanto todavia não lhe sejam atribuídas nem consideradas típicas dele,
como ocorre com as boas qualidades, isto não quer dizer que se tenda a ignorá-las ou
justificá-las. Nem a subestimá-las ou ocultá-las. O amor torna-nos sensíveis às faltas
do outro, porque a beleza da sua personalidade está presente como um todo no nosso
espírito. Para nós, por conseguinte, é da máxima importância que permaneça fiel ao
que é verdadeiramente, e que o seu eu real se manifeste por completo. É
absolutamente incorreto pensar que o amor é cego. Em verdade, abre-nos os olhos.
Mas o orgulho que amiúde se encontra no amor cega-nos — especialmente quando o
ente amado é considerado uma extensão do nosso próprio ego. A mãe que considera o
filho uma extensão de si mesma crê, naturalmente, que a criança é incapaz de
quaisquer faltas. Isso porém é típico do orgulho, não do amor, absolutamente.
Quando se trata de faltas, há naturalmente grande diferença entre as que dizem respeito
à pessoa que amamos e as de alguém que não amamos. Faltas são aborrecidas em
qualquer pessoa por quem temos pouco amor. Tornam-nos irritados e deixam-nos
indignados. Não as vemos em contraste com a beleza da sua personalidade tomada
em conjunto. Em vez disso, são observadas de per si, e são-lhe atribuídas de mistura
com as suas boas qualidades.
Quando no entanto se trata de alguém que amamos, nada é aborrecido. Não ficamos
irritados. Sentimo-nos somente infelizes pela pessoa amada e pelo fato de possuir essas faltas.
Entristecemo-nos com a presença do que nela é essencialmente falso, e assim o
experimentamos em virtude do profundo sentimento de identidade que lhe temos. Com plena
consciência da nossa fraqueza e fragilidade, cientes de quão infiéis somos a nós
mesmos e ao que Deus deseja de nós, enfrentamos carinhosamente, quando ocorrem,
as faltas da pessoa amada, recebendo cada uma dessas situações de fraqueza com
empatia, e rejeitando-as intimamente por ela e com ela.
Quando há amor, a nossa percepção das faltas do outro é mais objetiva (no
sentido próprio da palavra) do que nos casos em que não há nenhum amor.
Entendemos muito melhor a realidade se observamos as faltas do outro à luz de toda
a sua personalidade, “compreendendo-as” de dentro para fora e entristecendo-nos
por elas, em razão do que é a pessoa amada. Há até um profundo sofrimento por sua
causa, não porque as suas faltas sejam um fardo, mas porque o amor que lhe temos faz
com que o seu crescimento interior, até atingir a perfeição, constitua assunto de grande interesse
para nós.
Há uma nobreza específica no tipo de crédito que o amor torna possível. Descobre-se
nele a especial generosidade do amor — um valor que todavia não se origina inteiramente
da atitude responsiva despertada pelo valor. Tal convicção, enraizada no ato da doação,
implica um elemento de esperança, o qual porta especial bênção para a pessoa amada —
uma bênção que é também um dos dons do amor.
Há porém outra espécie de crédito. Referimo-nos ao que diz respeito à natureza do outro
em áreas que ainda não tiveram oportunidade de descobrir-se. O amor faz acreditar
somente no melhor da outra pessoa. Antes de tudo, nem sequer lhe credita os traços
indesejáveis que lhe são atribuídos, ou pressupõe que não foram devidamente
interpretados.
Notamos, pois, que sempre que há amor há também um elemento de confiança. E
o que não foi ainda experimentado da beleza do outro é presumido com base no que
já se conhece. Não estamos, agora, interessados no tipo de confiança comum que
usualmente se encontra em toda a genuína manifestação de amor, como entre amigos
ou no amor de uma criança pelos pais. O elemento de confiança que nos importa agora
consiste em muito mais do que completar a imagem da pessoa amada em todas as
dimensões ainda desconhecidas, com base no que é completamente acessível na sua
beleza.
Ao lado deste crédito está a determinação de tudo interpretar na outra pessoa de
modo positivo, desde que nela nada claramente sugira o contrário. Indubitavelmente, há
muitas coisas numa pessoa que se podem compreender de diversas maneiras. Há muitas coisas
realizadas, ditas ou ocultas, que definitivamente não são morais nem imorais em si mesmas. Não
são belas nem repulsivas, não são estúpidas nem inteligentes. São no entanto
significativas e da maior importância, pelo prisma do conhecimento de determinada pessoa e
de toda a sua personalidade. Assim como é típico de um comportamento ciumento e rancoroso
estar sempre à espreita (qui vive) para apanhar o outro nas suas faltas, dando uma
interpretação negativa a tudo quanto ele faz, assim também é basicamente característico do
amor permanecer esperançoso em ver o outro adotar uma conduta de acordo com o que é bom,
justo e belo — um viver no caminho de Deus. É também particularidade do amor a
contínua presteza em aceitar sob as melhores cores tudo quanto poderia
compreender-se diversamente. Esta boa vontade para dar ao outro o benefício da
dúvida (à la hausse) está intimamente relacionada ao crédito de confiança que se mantém
com respeito à pessoa amada.
O amor assume sempre o que há de melhor no outro. Desde que não se imponha
um ajuste de contas motivado pela presença de uma falta, o amor alimenta a mais
favorável (à Ia hausse) opinião com respeito a tudo quanto é duvidoso. Quando o amor
depara com uma falta na outra pessoa, é como encontrar deslealdade ou infidelidade
ao que é mais verdadeiro na sua natureza (isso nunca é aceito paralelamente às suas
qualidades positivas). Tal atitude multímoda é característica do crédito que o amor, e somente
o amor, propicia.
Não obstante, não se deve confundir este crédito de confiança com a tendência de
idealizar, que é típica dos sonhadores. A generosidade, que é própria do amor,
pressupõe a existência de um valor correspondente, que a justifica e lhe dá sentido.
Quando contudo há apenas sonhos, a questão central é uma necessidade de
experimentar deleite e de ter contato com pessoas admiráveis e extraordinárias. Um prazer
desse tipo é tão profundamente desejado, que a própria pessoa se entrega a um ideal
imaginário. Compraz-se em sonhar. A pessoa idealizada é mais uma ocasião para
sonhar do que um objeto significativo, por tomar-se seriamente em si mesmo.
Imagina-se que tudo no outro é esplêndido e grandioso, conquanto não se tenha tido
nenhuma oportunidade de conhecê-lo bem para estar tão seguro. Agora, passaremos
a considerar a diferença entre tal infundada atitude e o fiel crédito de confiança do
amor, a que já nos referimos.
Este crédito pertence ao dom do amor, que, por sua vez, é uma resposta ao valor.
Conquanto se estenda para além de qualquer resposta ao valor, não é, por esta razão,
uma espécie de necessidade espontânea que possa, de alguma forma, separar-se do
que caracteriza o amor como resposta ao valor. Sonhar, todavia, é sintomático de uma
necessidade — um apetite — que busca obter o mais que puder, sem nenhum interesse ou
suscetibilidade por coisas de valor.
O crédito generoso do amor está intimamente ligado à rendição que ele implica.
De modo algum a pessoa que ama busca a sua própria satisfação. Está totalmente
voltada para o outro. E a sua firme convicção vincula-se completamente à causa do
outro, não tendo, em si, nada de satisfação própria. O sonho porém é sempre movido
pela satisfação. Não tem a outra pessoa no espírito, mas antes o próprio eu que sonha.
Não há nada de extravagante neste crédito. Está intimamente ligado à percepção
de que uma criatura nobre também é, efetivamente, fraca e vulnerável. Ainda quando
tudo parece estar em ordem, o amor admite a possibilidade de imperfeições, que devem
ver-se como fatos desagradáveis mas temporários, embora o amante nunca se prejudique
por eles. O crédito amoroso não reside numa região etérea ou irreal. Não cavalga
Pégaso. Fortifica-se, antes, no solo, que é completamente real, caracterizado por arredores santos.
Nem fica, de modo nenhum, diminuída a radical diferença entre o crédito amoroso e a
fantasia sonhadora pelo fato de ser possível ficar desapontado ainda no caso de um
amor autêntico, ou de que o próprio crédito possa por vezes resultar em real
desapontamento. Não é a possibilidade de frustração o que faz as fantasias do
sonhador ser o que são. Em verdade, elas caracterizam-se pela ausência do amor verdadeiro,
pela atmosfera etérea, irreal e até decepcionante para onde se conduz a vida do desejo.
Poder-se-ia dizer: o amante pode desapontar-se; o sonhador ilude-se a si mesmo.
Obviamente, o crédito amoroso é portador de valor especificamente moral. Conquanto
não proceda exatamente da suscetibilidade do amor, encontra-se enraizado no poder de
dar, que pertence ao amor.
Na dádiva do amor revela-se o que há de “melhor” no ser da pessoa que ama. E,
naturalmente, o que constitui o valor do amor — a sua profundidade, ardor e nobreza
— depende em grande parte do caráter do próprio amante, e não meramente dos valores
presentes no outro e que lhe incendeiam o amor.
Três faces assomam do nosso tema quando se comparam dois casos de amor.
Antes de tudo, há a questão da qualidade do amor, a envolver não só diversos graus de
intensidade, como no caso da dor de cabeça, que é maior num dia que no outro. Sem
dúvida, questões de tal tipo variam segundo as circunstâncias. Não obstante, de
preferência, estamos interessados no “mais”, porque este tem que ver com a rendição
do coração ou com o lugar que se confere ao outro no amor mútuo. Tudo isto se pode
traduzir na expressão “o que uma pessoa significa para a outra”.
Ademais, há a diferença de qualidade e profundidade, quando se contrasta um
amor sublime com um menos elevado. Observa-se melhor esta diferença no contraste
entre o amor sagrado e o amor puramente natural — por exemplo, a caridade (caritas),
quando comparada ao amor encontrado também entre os pagãos.
Por fim, há a diferença que envolve as diversas categorias do amor. E isto é o que
habitualmente nos faz perceber o amor de pais e filhos, o amor fraterno, a afeição
entre amigos, o amor conjugal, o amor ao próximo e o amor a Deus.
É de especial importância compreender que a caridade e o amor ao próximo não
são idênticos, embora o último, no seu significado total, nunca possa estar inteiramente
separado daquela. A gloriosa e radiante bondade, a abundância sobrenatural e a incomensurável
liberdade, características tão singulares da caridade, não dependem da categoria do
amor prestativo. A caridade constitui-se exclusivamente no amor a Deus, em Cristo. E isto não
experimentamos senão na rendição a Cristo. Em sentido qualitativo, tanto o amor a
Deus como o amor ao próximo se identificam como caridade. Em termos no entanto
de categorias, diferem completamente.
Aqui não é possível fazer senão breve referência a este problema, que é discutido
minuciosamente em alguns dos meus outros livros. É preciso contudo examinar-lhe
em pormenor uma das conseqüências.
Não há, é claro, nenhum tipo de amor natural que a caridade não envolva, seja o
amor pelos próprios filhos, o amor dos filhos pelos pais ou o amor conjugal. Só quando estes tipos
de amor se transformam em Cristo é que lhes são propriamente conferidos o que neles há
de mais característico. Mas, ainda quando transformados em Cristo (e, naturalmente,
podem e devem sê-lo, ainda quando capazes de dar glória a Deus e quando repletos
do esplendor da caridade), permanece uma grandíssima diferença entre cada tipo e
expressão do amor natural e o amor a Deus ou ao próximo (caridade). No processo da
transformação, as categorias do amor de modo algum perdem o que lhes é típico e
característico. Não deixam de ser o amor de pessoas casadas, o amor pelos próprios
filhos, ou a afeição por um amigo. E, só quando alcançam, efetivamente, a
transformação a que são levadas pela sua plenitude e expressão características, é que
se tornam amor, no sentido mais verdadeiro. Este ponto foi extraordinariamente
ressaltado, numa alocução aos casais, pelo Papa Pio XII: “Quando o amor é
transformado, não tenhais receio de que possa, de algum modo, perder o que há nele
de esplendor, ardor ou rendição de si mesmo. O sobrenatural não destrói, por
sublimação, nem altera o que é natural. Ao contrário, glorifica-o e conduz à
perfeição.”
O espaço limitado permite-me somente um exemplo para o ilustrar. A intentio unionis
está impressa no amor conjugal de maneira especial. Ela consiste num esforço em prol de uma
completa identidade de corações, que deve encontrar expressão na união física. Se,
sem embargo, não há encontro do outro em Cristo, também não há movimento para
além daquele primeiro passo. Nunca se pode alcançar o outro completamente. E a razão disto
reside no fato de só Cristo possuir a chave dos mais profundos e secretos recessos da alma.
Trazendo ao espírito a intentio benevolentiae, não ficamos perplexos ao compreender quão fracos
e impotentes somos sempre que desejamos fazer a outra pessoa feliz? Podemos tão-só olhar, e nada
fazer, quando ela está sofrendo ou doente, ou quando está morrendo. Mas que
possibilidades nos são oferecidas se a depositamos no Coração de Jesus, se a
confiamos a Cristo, se a amamos juntamente com Cristo, se compreendemos, por completo, que
Cristo a ama infinitamente mais do que nós o fazemos. E, por fim, um amor como este
aspira à infinitude. Vemos isso, particularmente, no amor das pessoas casadas. Todavia, quão
limitados somos, quão terrivelmente estamos cercados cada momento pela nossa natureza.
Este desejo de infinitude não pode realizar-se senão em Cristo, quando participamos e recebemos
uma parcela do seu infinito amor.
Ao dizermos que é preciso aprender a amar, quisemos dizer, especificamente, que sempre
convém nos esforcemos por deixar a caridade permear-nos o amor.
Com Cristo por nossa testemunha, deveríamos sempre lutar para ficar impressionados
com a grandeza e a seriedade do amor, com a compreensão de que o amor é muito mais pro-
fundo e mais importante que a maioria das atividades profissionais. Dever-se-ia observar
isto, especialmente, no dia-a-dia, em que o trabalho, tão amiúde, representa o único lado
sério da vida, e em que a busca de divertimento e de recreação se encontra no meio
de tudo o mais.
Tal porém não é possível se não nos livramos do turbilhão da atividade e da antecipação da
confusão do momento seguinte, o que nos priva da plena consciência do presente. Em outras
palavras, tal não pode suceder se, na nossa vida, não concedemos lugar especial à contemplação.
Só nos empenhando permanentemente em perscrutar o mais profundo e, deste modo,
alcançar a Cristo e à realidade última, é que podemos, constantemente, ter esperança
de aprender a amar de verdade. Só continuando a considerar a pessoa que amamos e o seu
amor por nós como dádivas gratuitas — e isto com profunda gratidão, nunca as tomando por
fato consumado — é que podemos alcançar o verdadeiro amor.
Quem ama verdadeiramente está cheio de respeito e gratidão. E só de tal respeito e
gratidão pode florescer o verdadeiro amor.
É só no amor que a pessoa humana desperta totalmente, é só no amor que alcança
a transcendência a que é chamada. Santo Agostinho diz-nos que, amando, o homem se torna
digno de amor. Em verdade, sempre que o poder transformador de Cristo tocou cada
uma das manifestações do amor, a pessoa que ama é como um tênue mas glorioso
reflexo daquilo que obtém maior parcela — daquele fogo de que fala Nosso Senhor ao
dizer: “Eu vim para trazer fogo à terra, e qual é o meu desejo senão que ele se acenda?”

*
Grifo nosso. — Em sentido diverso mas correlato, escreve Henri Charlier em L’Art et la Pensée (Paris, Dominique
Martin Morin, Éditeurs, 1972, p. 30): “A isto responderei, antes de tudo, que Santo Tomás, o qual felizmente não era
tomista mas filósofo, e se guardava de destruir a unidade do ente por tais distinções, disse que, ‘para falar com
propriedade, nem o sentido nem a inteligência conhecem, mas sim o homem mediante um e outro’ (De veritate, art.
6). Ou seja, é o homem inteiro, e não o intelecto, que é inteligente.” [N. do E.]
CAPÍTULO III

A AMIZADE ENTRE OS SEXOS

U M A Q UEST ÃO PAR T I CULARM EN T E oportuna nos dias de hoje é a que diz respeito, no
plano divino, à significação do homem e da mulher, um para o outro, fora do
matrimônio. Para os demais tipos de relações, tem algum sentido, desempenha uma
função significativa a diferença entre os dois sexos, ou a sua finalidade, desejada por
Deus, se limita à mais íntima, mais elevada e mais completa de todas as
fundamentalmente enraizadas comunhões, o casamento?
A esta questão respondem de modo apressado aqueles que não admitem senão a
esfera sexual como a razão básica por que os homens e as mulheres se destinam uns
aos outros. A esfera sexual está inequivocamente associada ao casamento; de acordo
com a vontade divina, não pode realizar-se senão no casamento. Isto é tão óbvio para
todo e qualquer católico, como para toda e qualquer pessoa moralmente consciente, que
desperdiçar mais palavras aqui seria como ensinar o Pai-nosso ao vigário. Se pois a
planejada associação do homem e da mulher, em verdade, só existisse na esfera
sexual, poderíamos de imediato responder à nossa pergunta: começa e termina no
casamento a significação mútua do homem e da mulher.
Todavia, qualquer pessoa que faça uma investigação profunda da significação
mútua do homem e da mulher no casamento, como tentei no livro Em Defesa da Pureza, logo
reconhecerá que, ainda aqui, a específica característica suplementar não se limita à esfera
sexual. Com efeito, não se pode compreender o mais profundo significado da esfera sexual — a
realização peculiar do amor conjugal — se não se compreendeu a possibilidade única da
realização espiritual entre o homem e a mulher; se não se percebeu que a complementação
sexual é somente uma expressão particular do enriquecimento espiritual. Um verdadeiro
entendimento da grandeza e da consagração do casamento — o estado final, supremo do amor
mútuo, e que foi comparado à relação entre Cristo e a Igreja — bem como a mais
profunda compreensão da natureza específica do amor conjugal, leva de imediato à clara
percepção de que um inteiramente singular enriquecimento espiritual entre as pessoas está
presente, aqui, muito antes de entrar em consideração a esfera sexual. Esta
complementação espiritual é de natureza tal, que não é possível senão entre os
homens e as mulheres, nunca somente entre os homens nem somente entre as
mulheres. Para entender a inigualável qualidade espiritual suplementar do homem e
da mulher, é preciso, antes de tudo, ter compreendido que a diferença entre eles não
é meramente de ordem biológica, senão que há profunda diferença que influencia a
estrutura básica da personalidade, tendo esta diferença o seu valor próprio. A diferença é de
ordem metafísica, como tão acertadamente os filósofos pitagóricos sustentaram quando —
conquanto com exagero inadmissível — fizeram do masculino e do feminino duas categorias
de ser.
Com esta questão vem à baila uma comum, ainda que radicalmente errônea,
concepção do homem. Ela tenta compreender o homem partindo de baixo, da semelhança
animal, em vez de ver nele a imagem de Deus, e, conseqüentemente, considera que no
homem os aspectos mais intrínsecos e mais reais são tudo quanto se possa ligar à esfera físico-
biológica. Tenta interpretar os atos espirituais — amar, querer, sentir saudade ou entusiasmo etc. —
como meros impulsos, ainda que altamente desenvolvidos; tenta reinterpretar os vínculos
significativos entre as motivações como associações causalmente determinadas; busca compreender
a estrutura da pessoa humana e as suas diferenciações inatas como simples funções de
finalidades biofisiológicas. Em suma, toma os aspectos do homem que são comuns aos
organismos superiores como os fundamentalmente reais, e busca entender o que nele é
espiritual como apenas um refinamento da esfera vital, biológica — constituindo esta última a
mais profunda, a verdadeira base. Essa concepção, exemplificada na idéia ridícula de
que o homem, que é pessoa espiritual e realiza ações significativas, poderia ter
evoluído de um animal, como uma espécie mais elevada derivada de uma inferior,
interpreta de todo erroneamente a natureza do homem. Essa concepção não
reconhece a diferença essencial entre uma pessoa espiritual e uma simples criatura viva, uma
distinção tão básica que, na comparação entre uma ameba e um macaco, a diferença
desaparece. Com efeito, esta diferença é muito mais profunda e fundamental que a
existente entre os objetos materiais e os seres vivos.
Para a pessoa que se libertou dessa tendência basicamente errônea que ainda obceca a
psicologia moderna, não é difícil ver que a diferença entre o homem e a mulher não
somente é de ordem biológica, mas traduz dois diferentes tipos originais da pessoa
espiritual que é o ser humano. Conquanto nos devamos resguardar também do comum
exagero desta diferença, é certo ainda que, no homem e na mulher, nos defrontamos com
dois tipos fundamentais de humanidade, com seus valores próprios, com sua missão
específica e com peculiares dons sobrenaturais suplementares.
A esta altura, gostaríamos de citar rapidamente os três sentidos em que tal
distinção tem sido infaustamente exagerada, a fim de assim esclarecer, devidamente,
a magnitude das diferenças positivas.
A diferença entre o homem e a mulher não envolve nem altera a vocação suprema
da humanidade: a de ser transformada em Cristo, tornar-se santa e glorificar a Deus,
e alcançar a comunhão eterna com Ele. Na confrontação entre a criatura e Deus, a
diferença entre o homem e a mulher desaparece de todo.
Com relação ao renascimento em Cristo, ao recebimento da vida sobrenatural, não
há diferença. Também aqui prevalece a palavra: um batismo, um credo, um sacrifício.
Qualquer alma eterna, pertença a um homem ou a uma mulher, tem o dever de realizar
e irradiar Cristo com todo o seu ser e não só com uma parte de si mesma. É falso
afirmar que para o fim último há uma via específica para os homens e outra
específica para as mulheres. Isso porém não elimina o fator feminilidade ou
masculinidade da específica nota individual que se encontra até nos próprios santos; com
efeito, serve ela para dar um matiz próprio à santidade universal.
Vê-se a mesma exagerada distinção entre os sexos nas freqüentes tentativas de
interpretar de modo diverso os mandamentos para a perfeição moral e a santidade.
Ouve-se amiúde a afirmação completamente falsa de que, quanto à pureza, os mandamentos
são mais severos para as mulheres do que para os homens, e outros argumentos do
mesmo tipo. A diferença que há entre o homem e a mulher não implica uma diferença nos
padrões morais.
Um segundo perigo, muito diverso de tal exagero, sucede quando se faz da
“masculinidade” ou da “feminilidade” uma consciente meta de luta, ou seja, quando
não se vê que tanto o homem como a mulher devem simplesmente esforçar-se pelo
certo e determinado por Deus, e que a distinção entre os dois sexos, efetivamente, se
dá de todo por si mesma. Isso é tão desolador como ouvir alguém sublinhar sempre a
sua própria individualidade e, em vez de não se esforçar senão pelo objetivamente
certo, concentrar-se unicamente na preservação da sua própria personalidade. O
matiz característico tanto do feminino como do masculino deve surgir por si mesmo,
e colorir o resultado; não deve ocupar o espírito durante a realização das exigências
objetivas, a não ser que os seus temas sejam diretamente relevantes para o sexo da pessoa. Tal
atitude, por conseguinte, só se justifica quando estão envolvidas certas questões
particulares que, em si mesmas, têm já relação especial com a natureza feminina ou
com a masculina; para a mulher, por exemplo, muitas coisas assumem caráter vicioso,
inconveniente, conquanto sejam perfeitamente naturais para o homem. Anda quanto a isto,
contudo, é bem menos artificial e muito mais valioso que a mulher instintivamente omita o
inadequado, sem ter de antes de tudo refletir a respeito e lembrar-se da sua
feminilidade. O mesmo, mutatis mutandis, aplica-se ao homem. Normalmente, este colorido
particular deve aparecer por si mesmo, de modo análogo, por exemplo, ao que sucede
com as peculiaridades nacionais. Um artista que queira criar arte alemã provoca-nos uma
espécie de mal-estar. Se ele é alemão e quer criar boa arte, a nota nacional específica aparecerá por
si mesma. Uma auto-reflexão intencional conduz à impropriedade e a um embaraçoso
“sentir-se homem” ou “sentir-se mulher”.
Isso nos leva diretamente ao terceiro tipo de exagero. Esse “sentir-se homem ou
mulher” pode criar entre os sexos uma especial sensação sectária, até ao ponto de as
mulheres e os homens se verem como dois grupos de interesses opostos. Muitos
homens e muitas mulheres sentem que pertencem a como um partido, e, assim, olham
para tudo desse ângulo “partidário”. Tornaremos mais adiante ao engano básico
dessa atitude. Ela é particularmente absurda pelo seguinte motivo: quanto mais se
apreende verdadeiramente a natureza essencial da mulher como mulher e a do
homem como homem, mais se lhes vê, igualmente, a específica natureza complementar, o
significado que ambos têm um para o outro, fato este que exclui de todo aquele
facciosismo. Este exagero, portanto, enseja a perda real da essência particular dos
sexos. Tais mulheres se tornam antifemininas, e tais homens se tornam neutros. Este exagero, por
fim, termina por negligenciar o caráter específico do masculino e o do feminino.
Por outro lado, não obstante tais exageros estarem errados, há que reconhecer
nitidamente o sentido, determinado por Deus, da “feminilidade” e o da “masculinidade”,
à parte da esfera sexual, e entender o valor específico contido nestas duas formas da pessoa
humana.
Iríamos demasiado longe se aqui enumerássemos em pormenor todas as
particularidades espirituais quer da pessoa feminina, quer da masculina. Na mulher, a
específica fusão orgânica do coração e da mente, dos centros afetivo e intelectivo, a
unidade de toda a sua natureza, a delicadeza e a receptividade de todo o seu ser, a
precedência do ser como personalidade sobre as realizações objetivas; no homem, a
específica capacidade de desvincular a mente de toda a sua vitalidade, a habilidade para a
objetividade pura que o predestina aos cargos oficiais, a específica adequação à eficiência e à
realização de trabalhos objetivos, a clareza, a força, a determinação. Estas diferenças
marcam os dois sexos na sua própria e respectiva natureza peculiar.
Basta pensar nos homens e mulheres santos para ver que esta diferença cria uma aura
distinta e específica. O mesmo amor por Jesus existe neles e nelas; eles e elas estão
unicamente preocupados com o unum necessarium, e são totalmente receptivos a Deus; neles e
nelas a mesma pureza, a mesma humildade, o mesmo heroísmo, a mesma vitoriosa
força; e, todavia, eles como elas representam respectivamente a mais alta forma da
masculinidade e da feminilidade. Pode-se imaginar algo mais feminino que a
Santíssima Virgem Maria? Não seria absurdo imaginar exatamente as mesmas qualidades
num homem? A sua santidade, obviamente, poderia dar-se num homem, mas então a sua
aura particular seria necessariamente diversa. Estas duas formas fundamentais fazem parte da
estrutura do homem. Na Idade Média, compreendeu-se plenamente o cerne desta
diferença, como evidencia o interesse em saber se também os anjos são masculinos e
femininos. A mera formulação da pergunta demonstra já — não importando como se possa
responder a ela — que no ser humano esta diferença existe não só por ser ele um vivente,
mas também in quantum homo, enquanto é pessoa espiritual. Há até valor diverso nestas
formas específicas; a eliminação desta diferença de modo algum é desejável. As figuras
dos nossos santos demonstram nitidamente que a diferença de sexo não só continua a
existir mas, de fato, aparece na sua forma ideal. Basta pensar em Santa Inês, Santa
Escolástica, Santa Isabel, Santa Catarina de Sena e Santa Teresinha do Menino Jesus, de um
lado, e em São Paulo, São Pedro, Santo Agostinho, São Bento, Santo Inácio de Loiola
e São Bernardo, do outro, para ver claramente que ambos os lados são portadores dos
específicos e respectivos valores feminino e masculino.
Quem quer que perscrute profundamente a natureza espiritual do masculino e a do
feminino vê igualmente o específico desígnio de um para o outro. Em primeiro lugar,
o homem e a mulher têm uma missão recíproca puramente espiritual, e enriquecem-
se um ao outro. Em segundo lugar, jamais uma mulher será tão profundamente
entendida por uma mulher como pode sê-lo por um homem, e vice-versa.
Dois aspectos de suma importância merecem realce, quando examinamos este
destino mútuo. Em primeiro lugar, a missão específica do homem para a mulher, e
vice-versa. Em segundo lugar, a possibilidade de comunhão muito mais íntima e
plena sobre a base das suas naturezas complementares.
Em parte a missão de um com respeito ao outro consiste na necessidade de se
ajustarem à natureza contrastante do sexo oposto e da atenuação de certas tendências hostis,
inerentes à natureza de cada um dos sexos, quando carecem totalmente da influência
do sexo oposto.
Não obstante, esta missão recíproca não se limita a um papel negativo, ou seja, a
evitar um perigo. O contato espiritual entre o homem e a mulher tem também uma
missão positiva, a saber, a singular emulação e fecundação espiritual. Em ambos, este
contato faz emergir virtudes particulares que de outro modo permaneceriam pouco
desenvolvidas. A atitude cavalheiresca desperta no homem um maior domínio de si
mesmo, uma posição mais humilde, maior delicadeza e pureza, certo enternecimento
e vitalização da sua natureza. Com a mulher, por outro lado, sucede um alargamento
do intelecto, um fundamento mais amplo, e mais vinculado à causa primária, para a percepção
de valores, uma nobre reserva, por um lado, e específicos fervor e dedicação, por
outro.
Este peculiar enriquecimento mútuo está intimamente vinculado ao segundo aspecto de
que se falou acima. O fato de as duas naturezas estarem ordenadas uma para a outra
possibilita o mais profundo entendimento mútuo. O homem fará mais pela
transformação espiritual de uma mulher, assim como a mulher o fará com relação a
um homem. Não é por acaso que a idéia de direção espiritual se encontra na sua
maior pureza quando a pessoa dirigida é do sexo feminino. Isto decorre do fato de o
homem e a mulher se entenderem melhor reciprocamente, como se viu acima. A natureza
complementar do homem e da mulher os põe, desde o início, mais numa posição face-a-
face do que numa posição lado-a-lado. Forma o fundamento básico para todas as
relações eu-tu, para a interpenetração máxima de duas pessoas, para a união espiritual. (Ver,
a este respeito, meu livro Metafísica da Sociedade.) É justamente a dessemelhança geral da
natureza de ambos que permite penetração mais profunda na alma um do outro, maior visão
do interior, uma abertura total para o outro, uma verdadeira relação complementar.
Os dois tipos de entes estão coordenados um para o outro, e foi-lhes dada a
habilidade específica de se compreenderem mutuamente. Este fato constitui não
somente a base espiritual para o casamento mas também, como veremos, a
possibilidade de comunhões mais profundas, mais íntimas, mais radiantes, de natureza
inteiramente espiritual, que nunca são possíveis entre pessoas do mesmo sexo.
Agora que começamos a reconhecer a diferença espiritual na natureza do homem e da
mulher, bem como o seu mútuo destino específico, torna-se dupla a questão inicial da
importância mútua dos dois sexos também fora do casamento. Primeiramente, em
que relações individuais fora do casamento este destino espiritual é mais eficaz, ou
que tipos clássicos de amizade há entre o homem e a mulher? Depois, de que modo esta
coordenação influencia os grandes grupos compostos de homens e mulheres?
Antes de respondermos a estas questões, devemos ainda chamar a atenção para o
seguinte: na teoria de Sigmund Freud, tudo no mundo tem relação com motivos sexuais.
Ainda que com moderação, mas sempre de modo impróprio, essa idéia
fundamentalmente falsa penetrou também em alguns círculos católicos. Segundo tal teoria, a
coordenação espiritual do homem e da mulher é, naturalmente, tão-só o resultado da
associação sexual. Por certo, para os que vêem tudo — arte, religião, qualquer forma de
amor — unicamente como sublimação do impulso sexual, tal complementação espiritual será
vista também desse modo, se não for considerada como sexualidade per se, engenhosamente
dissimulada.
Não se pode avançar mais, aqui, quanto aos erros fundamentais dessa teoria.
(Consulte-se, a respeito, o meu livro Em Defesa da Pureza.) Mas pode-se identificá-la como caso
clássico daquela falsa psicologia que atribui a real substância do homem ao ser vivo,
e não à pessoa espiritual; aquela errônea visão que “parte de baixo” e que mencionamos
no início deste capítulo. Ela faz da esfera sexual — que, conforme ao seu significado real, é
somente uma expressão da esfera mais elevada, a espiritual — a verdadeira base de toda a
vida da alma. Esse ângulo exibe má compreensão fundamental não só quanto à estrutura da
pessoa mas também quanto à inteiramente soberana natureza da esfera espiritual.
Não obstante, até a pessoa que tenha percebido a falsidade dessa teoria deve estar
atenta ao simbolismo fatal de ver em tudo um indício sexual. Se buscarmos diligentemente
esse indício, encontrá-lo-emos em toda a parte. Não porque esteja realmente presente,
mas porque se usam, digamos assim, óculos espirituais “coloridos sexualmente”. É uma
peculiaridade desta esfera permitir que tudo se possa ver à sua luz, e tal maneira de
ver as coisas é, por assim dizer, contagiosa, de modo que, ainda que se julgue
encontrar algo completamente diverso, no momento seguinte também ele parece colorido
sexualmente. Devemos guardar-nos desse suspeitar de sexualidade em tudo — na relação
entre mãe e filho, pai e filha, irmão e irmã etc. — porque essa atitude cria uma base
especialmente propícia para erros. Vê-se “um tanto” desse componente em tudo,
conquanto de fato aí nada haja disso. Devemos, por conseguinte, e de maneira
absoluta, rejeitar não só a afirmação de que toda e qualquer relação espiritual entre o
homem e a mulher é sexualidade reprimida, mas também uma ouvida muito amiúde:
a de que entre os dois sexos não pode haver amizade nem amor puramente espiritual, porque
aí sempre haverá ao menos um elemento de sexualidade, não podendo nunca excluir-se
completamente esse elemento.
Ademais, não devemos esquecer que, por errôneo que seja buscar explicar a
coordenação espiritual entre os dois sexos pela coordenação sexual, ou considerar a relação
espiritual como algo fundamentalmente sexual, o homem decaído está sempre
exposto ao perigo de um impulso sexual insinuar-se ilegitimamente em tal relação. No homem
decaído, a esfera inferior emancipou-se de tal modo da superior, que não só se
realiza em harmonia com esta, ou seja, com a esfera espiritual, e particularmente com
a vontade, mas também aparece de maneira isolada. Por conseguinte, um desvio para
a esfera sexual, ainda que ilegítimo, pode sempre ocorrer em toda e qualquer relação
entre os dois sexos. Aplicam-se também aqui as palavras: “Sede sóbrios e vigiai, porque o
demônio, vosso adversário, anda ao redor, como um leão que ruge, buscando a quem
devorar” (1 Pedro, V, 8). Mas esse perigo, conquanto deva exortar-nos à vigilância e à
cautela, não pode tornar-se motivo para evitar todo o contato com o sexo oposto. Não
podemos escapar dos perigos da tentação. O simples perigo de tentação deveria por certo
manter-nos afastados de coisas sem valor e indiferentes, mas não deve impedir que nos
aproximemos das coisas que são boas em si mesmas e benéficas. Aplica-se aqui a mesma
norma válida para as demais tentações. Quem está livre do orgulho ao fazer algo bom?
Deverá, portanto, omitir a obra? Cabe evocar aqui as palavras de São Bernardo, ao
ser dominado pelo orgulho diante do poder da sua própria oratória, durante um ser-
mão: “Satanás, não comecei a pregar para ti; por ti não cessarei de fazê-lo.” Esse
perigo geral de tentações inesperadas deve manter-nos, pois, em constante vigilância
e em sã desconfiança de nós mesmos, mas isso não constitui razão suficiente para evitar o
contato espiritual com a outra pessoa. Veremos mais adiante que essas tentações
impõem certas obrigações na comunhão entre os dois sexos.
Passemos agora à questão dos tipos clássicos de amizade entre os dois sexos. Afirma-se
que, ainda que o perigo de tentações não seja obstáculo à possível associação entre os sexos,
tão logo se desenvolva uma amizade sincera entre o homem e a mulher, um forte
vínculo pessoal, uma explícita relação eu-tu, uma verdadeira e afetuosa interpenetração, se
tornará inevitável uma guinada para a esfera sexual. Em outras palavras, diz-se que uma
amizade profunda, alimentada por um amor verdadeiro, entre o homem e a mulher é sempre
simultaneamente uma amizade colorida sexualmente, queiram ou não queiram admitir isso a si
mesmas as pessoas envolvidas. Se isso fosse certo, qualquer comunhão de amor entre
o homem e a mulher fora do casamento estaria condenada; mas definitivamente não é
esse o caso.
Obviamente, não nos queremos enganar a nós mesmos. Quando há uma suprema
relação espiritual eu-tu entre o homem e a mulher, há também uma tendência natural de
este amor conduzir-se para a esfera sexual, como se dá no matrimônio. Existem porém
fatores especiais que eliminam tal tendência, e que retêm o caráter puramente
espiritual desta relação, sem nada tirar da sua profundidade e ardor.
Essa tendência perigosa, com efeito, não existe senão para as amizades que representam
uma máxima relação eu-tu e que, desse modo, vão muito além de qualquer amizade no
sentido comum. A amizade típica, que consiste numa nítida posição lado-a-lado, de mãos dadas,
num olhar conjunto para valores objetivos, é uma relação em que o amor recíproco
não é “temático”, em que não há específica interpenetração de almas e não se planeja
unificação espiritual; não contém, portanto, a tendência de mover-se para a esfera
sexual. O ponto de partida para qualquer possível referência à esfera sensual está
ausente na própria qualidade da relação. Que é possível tal tipo de amizade entre o
homem e a mulher é óbvio, e não há maior dificuldade em ela permanecer livre de
qualquer mescla sexual. Naturalmente, a vigilância comumente requerida, e mencionada
acima, é também aqui necessária; pois, uma vez que o homem nunca se encontra livre de
tentações sexuais, estas também podem, inesperadamente, aparecer aqui. Neste caso, todavia, vêm
completamente de fora, ou seja, completamente de modo acidental, uma vez que a
relação em si não lhes fornece base. Nesta relação está ausente o brilho e a
centralidade de uma verdadeira relação eu-tu, na qual a total coordenação do homem
e da mulher produz o seu máximo sentido complementar. Não obstante, o nosso problema
agora é este: que fator pode manter entre os sexos uma plena relação eu-tu livre de
toda e qualquer superposição intrinsecamente normal da esfera sexual? Quando uma relação
pode ser genuinamente espiritual e, no entanto, cheia de ardor e devoção supremas?
Só quando se trata de comunhão em Jesus, de Jesus e por Jesus. Somente estando
completamente ancorada no sobrenatural é que pode uma máxima relação eu-tu permanecer
livre de qualquer traço sexual e, entretanto, representar uma realização única da
reciprocidade espiritual entre o homem e a mulher. Uma elevação mútua à esfera
intelectual não é suficiente; devemos elevar-nos à esfera espiritual, ou seja, à esfera sobrenatural,
para que esta comunhão santa possa desenvolver-se. Nesta relação, a coordenação
entre o homem e a mulher pode, pois, desenvolver-se em todo o seu valor, permitindo uma
união espiritual em Jesus que nunca seria possível entre homens ou entre mulheres.
Isso pressupõe que Jesus seja o tema desta relação; que para cada um a salvação do
outro seja de interesse fundamental, que cada um deles participe do amor de Jesus pelo outro,
que o Sagrado Coração seja o lugar onde ambas as almas se encontrem e onde, digamos
assim, se interpenetrem. Esta relação se apresenta, então, com um brilho e um ardor não
superáveis por nenhuma outra relação de amor; e, neste sentido, de certo modo, é análoga ao
amor conjugal, mas tem também uma pureza e espiritualidade que nenhuma relação entre
pessoas do mesmo sexo pode sobrepujar. (Veja-se a exposição acerca do amor santo,
com a sua temática específica, no meu livro Metafísica da Sociedade, Parte I, cap. 3.)
Não se trata de ideal vago, que nunca se tenha realizado, mas de possibilidade
real, acontecida já muitas vezes na história dos santos. O mais notável exemplo é o
da relação entre São Francisco de Sales e Santa Joana Francisca de Chantal, cujas cartas
inequivocamente demonstram a profundidade e ardor, a pureza e a plenitude da sua
relação. Logo porém fica claro, para os que vêem mais profundamente, que
semelhante realização, tão pleno entendimento recíproco, tal interpenetração de
almas só é possível, antes de tudo, em e através de Jesus; e, ademais, somente entre o
homem e a mulher. Pensemos igualmente em Santa Clara e São Francisco de Assis, em Santa
Teresa de Ávila e São João da Cruz, mas também em São Bernardo de Claraval, que escreveu à
Condessa Hermengarda estas palavras: “Por que não posso levar o meu espírito diante
dos teus olhos, tanto quanto o faço a este papel, de modo que te mostre os
sentimentos de amor no meu coração, que o Senhor põe dentro de mim, e o zelo pela tua alma
com que Ele me cumula?! Verdadeiramente, reconhecerias que nem palavras nem a
pena podem expressar-me os sentimentos. Estou contigo em espírito, conquanto
fisicamente separado. É verdade que não te posso mostrar o meu coração, por ser-me
impossível revelá-lo inteiramente a ti, mas para que o entendas basta somente olhares dentro
do teu próprio coração, para aí encontrar o meu e atribuir-me tanto amor por ti
quanto tu sentes por mim... Entenderás agora como me tens conservado inteiramente
ao teu lado desde a minha partida; porque, de minha parte, posso em verdade dizer
que não te deixei quando parti, e que te encontro em todo o lugar a que vá [...]. O meu
coração alcança o ápice da alegria assim que recebe notícias de paz do teu coração. Estou feliz
quando sei que estás feliz, e no teu descanso encontro o meu.”
Sem embargo, quero enfaticamente advertir contra a colocação destas relações de amor
espiritual numa esfera superior à do casamento, precisamente por terem caráter
puramente espiritual. É verdade que em geral se encontram subjetivamente em plano
superior, porque não podem existir senão no plano mais elevado, ou seja, em Jesus.
Mas, se pensamos num casamento no mesmo plano, um casamento entre dois santos, o fato
de a sua união também incluir a esfera sexual não pode ser apresentado como razão para
considerar o casamento algo menos sublime. Para nós, a questão decisiva é
compreender que a relação entre o homem e a mulher fora do casamento também
torna possível uma comunhão inteiramente espiritual, de singular profundidade, ardor e
pureza, de especial complementaridade, entendimento e enriquecimento. Mediante esta
comunhão, Jesus é glorificado em Suas palavras: “Onde quer que dois se encontrem em
meu nome, aí sempre estarei”; esta relação, por conseguinte, personifica uma específica “vitória
sobre o mundo”.
Voltemos agora à nossa segunda questão, relativa à missão do homem e da mulher, em seu
destino mútuo, nas grandes comunidades. Aqui é importante evitar dois perigos. O primeiro é
o já mencionado perigo geral de intromissão da esfera sexual. O segundo consiste num
insípido encontro pela associação de homens e mulheres. Estes dois perigos acontecem de
modo notável na fase colegial e na fase superior dos estudos, e afetam particularmente a
mulher; reduzem-lhe a feminilidade, anulando, assim, o mútuo efeito benéfico dos dois sexos, e
destruindo o característico valor individual do feminino.
A fim de contrabalançar o segundo perigo, é preciso que a motivação que une o
grupo seja de natureza tão elevada, que exija um “sursum corda” de todos os seus
membros (como no caso das comunidades religiosas, ou das comunidades seculares,
em que certo ideal mantém unidos a todos), ou que tal motivação possua uma
festividade pitoresca (como em eventos sociais de épocas passadas). Conquanto as
duas situações sejam diferentes, implicam tal força construtiva, que ambos os sexos
retêm, cada qual, a sua natureza e o seu valor específico; têm por conseguinte efeito estimulante,
benéfico e complementar na atmosfera do grupo. Se no entanto os grupos em questão se
organizam de modo estritamente pragmático — por exemplo, concentrando-se em interesses
econômicos, ou fundando-se num simples sentimento de camaradagem — então a situação é
hostil à natureza da mulher como mulher, e a sua possibilidade de influenciar e
complementar a atmosfera através da sua participação, ou seja, de exercer tal efeito
sobre os homens, está eliminada.
Assim, pois, a missão recíproca dos sexos nem sempre se pode realizar; exige certos
requisitos. Se estes não se dão, e se predomina certa sociabilidade na relação, é
melhor que as mulheres não estejam presentes.
Leva-nos isto a outro elemento importante, que simultaneamente contrabalança o perigo
sexual. Na associação do homem e da mulher deve sempre conservar-se, por parte do
homem, um caráter nobre. Toda a camaradagem vulgar é simplesmente intolerável entre
os dois sexos. Quando homens e mulheres estão juntos, deve reinar uma atmosfera de auto-
controle, ou seja, o oposto do “soltar-se”. É o que sucede, automaticamente, em todos
os grupos em que o bem comum é portador de altos valores, e especialmente nas
comunidades religiosas, porque então a eminência do campo de valores conduz a pessoa
para o seu interior, e produz o oposto de todo o “soltar-se”. Nos acontecimentos sociais, é
preciso manter uma atitude cavalheiresca, uma nobre reticência, e, ademais, evitar todo o
“soltar-se”, todo o convívio impróprio. As danças e as modas de hoje, bem como
todos os hábitos de uma mocidade livremente associada, os quais não radicam em
nenhuma tradição, provam, suficientemente, a importância de tais exigências. Em todas as
situações em que o ideal comum consiste em “soltar-se” — em que ninguém se sente “à
vontade” senão quando cada um se abandona a si mesmo — é melhor que os sexos
permaneçam separados. Caso contrário, a sua associação torna-se destrutiva e perigosa.
Esse “soltar-se”, por conseguinte, é muito pior aqui do que quando ocorre entre
pessoas do mesmo sexo. Em outras palavras, sempre que alguém conscientemente anular a
recíproca missão específica dos dois sexos ou objetivamente excluí-la, a associação dos dois
sexos será destrutiva e inconveniente; e, de modo análogo, se alguém quer “soltar-
se”, é melhor que o faça num bar e não numa igreja.
Essa situação, por outro lado, também serve para esclarecer a missão particular
inerente à associação dos dois sexos num grupo. Simplesmente, ao trazerem as
mulheres a um acontecimento social, todos devem sentir-se forçados a evitar o “soltar-se” e a
dirigir-se para o seu próprio interior.
Talvez estes pensamentos mostrem de maneira suficiente a grande significação do homem
e da mulher para os diferentes tipos de comunidades fora do casamento, e que altos
valores podem advir do contato espiritual entre o homem e a mulher; e pois quão
necessária e benéfica é esta mútua influência, e quão incompleta seria uma raça
simplesmente masculina ou feminina, para não falar da sua impossibilidade biológica.
Sobretudo, no entanto, e dado o exposto, fica claro o ridículo de reinterpretar a evidente
tarefa comum nesta terra, tarefa em que ambos os sexos são chamados a colaborar,
em termos de rivalidade entre eles, um contra o outro, como se o mundo fosse
compreendido segundo um modo de ver (weltanschauung) masculino ou feminino. A
tarefa complementar do homem e da mulher não se limita ao casamento — antes,
possibilita uma união mais completa entre toda a humanidade. Tem aplicações gerais a
palavra de Deus na criação de Eva: “Não é bom para o homem estar só; façamos-lhe
uma companheira à sua semelhança.”

CAPÍTULO IV

AMOR E CASAMENTO
A MISSÃO DECISIVA do amor revela-se, de maneira especial, ao considerarmos que é
amando que se manifesta a característica fundamental da pessoa: a sua
transcendência; pois, se acreditamos que a natureza da pessoa pode compreender-se
pelas suas tendências imanentes (como é o caso das plantas e dos animais), e se
supomos que tudo na pessoa está determinado por um esforço próprio em prol da
sua perfeição, por um total desenvolvimento da sua própria natureza, falhamos em
apreender o ser completamente novo, incomparável, de uma pessoa. A transcendência da
pessoa, ou seja, a sua capacidade de amoldar-se a um objeto, ou a um tu, de apreender-
lhe a natureza, de responder-lhe ao valor, de interessar-se naquilo, ou nele, por sua
própria causa (propter ipsum), de superar a si mesmo e a todas as suas tendências e
necessidades intrínsecas, constitui o traço característico mais profundo de uma
pessoa, um traço de que depende a dignidade única que a eleva muito acima de todos os
entes impessoais. Aplicar-se-ão também ao reino natural as palavras do Senhor: “Aquele
que perder a sua alma a encontrará”?
A condição preliminar para alcançar uma verdadeira compreensão da natureza do amor é
partir do amor no seu sentido literal e autêntico, o amor por um tu, seja o amor a um
amigo, o amor de uma mãe ao filho, o amor ao cônjuge, ou o amor a Deus.
Deveríamos começar pela análise do ato de amor pessoal e não de abstratas, vagas
analogias do amor, como o desejo da própria perfeição, que também se pode
encontrar nos seres impessoais. Se, por exemplo, consideramos também a lei da
gravidade em termos de objeto de amor, como o faz o Padre Garrigou-Lagrange, está
vedado o caminho que nos conduz à compreensão do mais pessoal dos atos, qual seja,
o amor.
Não obstante, é insuficiente abster-se de vagas analogias tomadas do reino impessoal.
Há também que evitar partir de um total sentido análogo, como o amor de si próprio. De-
veríamos antes concentrar-nos no amor a outra pessoa, o completamente experimentado e
realizado ato de amor endereçado a um tu. Isto é amor no sentido literal, amor que
desempenha papel fundamental na vida do homem e na literatura de todas as épocas e de
todos os países.
Como se disse antes, por amor de si próprio geralmente se entende aquela máxima
solidariedade que o homem tem para consigo mesmo. O homem, pela sua própria
natureza, está inevitavelmente interessado na sua felicidade e no seu bem-estar. Naturalmente
ele evita os sofrimentos. Tal solidariedade, porém, não resulta do amor que temos por nós
mesmos, não resulta de uma posição consciente tomada em relação a nós mesmos — encontra-se,
antes, necessariamente, na nossa natureza. Advém da unidade ontológica da pessoa.
Não precisamos amar o nosso próprio corpo para preocuparmo-nos quando ele nos
incomoda, e assim é porque o sentimos de qualquer maneira; não precisamos amar-nos a
nós mesmos para ressentirmo-nos quando alguém nos ofende ou maltrata, nem para
alegrarmo-nos quando obtemos um lucro. Para preocuparmo-nos, todavia, com as
dores suportadas por outrem, precisamos amá-lo, porque estas não nos afetam por si
mesmas, inevitavelmente. Quando o bem-aventurado Jordan da Saxônia escreve à
bem-aventurada Diana: “Sinto nas minhas próprias pernas as dores que padeces nas
tuas”, estamos diante de um amor extraordinário. Se no entanto alguém dissesse:
“Sinto dores na minha própria perna porque a quebrei”, isso não seria de modo algum
sinal de um amor extraordinário por si mesmo. De qualquer forma ele sentiria essa dor.
A nossa solidariedade para com outra pessoa, solidariedade que nos leva a dizer:
“Os teus sofrimentos são os meus sofrimentos; a tua felicidade é a minha felicidade”,
resulta do amor, é fruto do amor, é uma realização do amor, da atitude consciente
tomada com respeito à pessoa amada, de uma experimentada resposta feliz a ela. Por
seu lado, no entanto, a solidariedade para com a nossa própria felicidade e bem-estar
não resulta do amor, mas sim da nossa própria natureza, da unidade do nosso ser — é
algo inevitável.
Essa solidariedade para com nós próprios de forma alguma pressupõe uma resposta a nós
mesmos que implique todas as características do amor, como o deleite e a felicidade inigualáveis.
Por conseguinte, todas as tentativas de começar uma análise do amor partindo da solidariedade
que experimentamos com relação a nós mesmos estão destinadas a não alcançar a verdadeira
natureza do amor. Para compreender-se claramente a diferença radical entre esse tipo de interesse e
o amor por um tu, basta considerar os casos em que a nossa relação com outrem se baseia realmente
num prolongamento da solidariedade que temos para com nós mesmos.
No amor, a pessoa amada é inteiramente temática: amando-a, tomamo-la inteiramente
a sério como pessoa, e de maneira nenhuma como meio para alguma outra coisa. Jamais o
interesse pela minha própria felicidade pode motivar-me o amor. A união com o ente
amado não é deleitosa senão porque lhe temos amor. A felicidade é uma
conseqüência do amor, mas nunca a sua razão e o seu motivo. É da natureza específica do amor
que estejamos interessados na outra pessoa como tal — que de modo nenhum ela
receba a sua importância e valor do fato de ser um meio para qualquer outra coisa.
Em um artigo intitulado O Papel da Afetividade na Moralidade, tentei mostrar que,
quando analisamos integralmente as mais altas formas de experiência afetiva — como a
alegria pela conversão de um pecador, ou a admiração por uma nobre ação moral, ou o
entusiasmo por uma grande obra de arte, ou a veneração por uma grande e nobre
personalidade — vemos nitidamente que estas respostas afetivas possuem todas as marcas de
espiritualidade que caracterizam como espirituais a convicção ou um ato de vontade.
Têm a mesma relação significativa e inteligível para com o seu objeto; são uma
adaequatio do nosso coração ad valorem, numa rigorosa analogia com a adaequatio intellectus ad rem no
conhecimento.
O espaço impede-nos que insistamos neste fato. Queremos apenas salientar, ainda,
que o preconceito da antiespiritualidade do coração e de toda a afetividade tem vedado o
conhecimento adequado da natureza do amor. Alguns acreditam que para salvar o
caráter espiritual do amor se deve interpretá-lo como um ato da vontade.
Obviamente, todavia, nem o amor de um Jônatas por Davi, nem o amor de uma
Santa Mônica por Santo Agostinho, nem o amor de uma Leonora por Florestã, em
Fidélio, de Beethoven, são atos de vontade. O amor conjugal, como tão admiravelmente se
descreve no Cântico dos Cânticos, ou o amor de São Paulo pelos discípulos, a quem chama “a
minha alegria e a minha recompensa”, são, de modo nítido, algo diverso de um ato da
vontade. Nitidamente, o amor difere do extraordinário ato que se encontra na base de
todas as nossas ações, a saber, a vontade — o ato que se orienta para a realização de um
estado de coisas ainda não real, o ato mediante o qual interferimos no mundo. Com
efeito, o amor é univocamente a voz do coração, uma resposta afetiva. Se o amor
fosse um ato da vontade, como poderia dizer São Paulo: “E, se eu distribuir todos os
meus bens para alimentar os pobres e entregar o meu corpo para ser queimado mas
não tiver caridade, nada me adiantará”?
Após estas observações acerca da natureza do amor em geral, queremos
concentrar-nos agora no amor conjugal e no casamento.
O verdadeiro significado e valor que em si o casamento possui não podem
compreender-se se não começamos a estudá-lo pela grande e eminente realidade do amor
entre o homem e a mulher. E aqui, sejamos francos, estamos a tocar numa espécie de escândalo
em livros católicos a respeito do casamento. Ouve-se falar muito da vontade da
carne, do remédio para a concupiscência, do auxílio e da assistência mútuas, da
procriação, mas muito pouco do amor — quer dizer, o amor entre o homem e a
mulher, a mais profunda fonte de felicidade na vida humana, o grande, o glorioso
amor de que diz o Cântico dos Cânticos: “Se por amor um homem desse todos os bens da
sua casa, haveria de desprezá-los como a bagatelas.”
Em contraste com o silêncio geral acerca deste amor, o Papa Pio XII proferiu algumas palavras
eloqüentes: “O encanto exercido pelo amor humano tem sido por muitos séculos o tema inspirador
de admiráveis trabalhos de gênio, na literatura, na música, nas artes visuais; um tema sempre velho
e sempre novo, acerca qual as eras bordaram, sem nunca exauri-lo, as mais sublimes e poéticas
composições.”
É inacreditável que, na maioria das vezes, se tenha negligenciado o motivo real, válido, para o
casamento, que se tenha ignorado a relação intrínseca deste tipo de amor com a autodoação mútua
na união física. Comparado com este grande, nobre e básico estímulo, de que diz o Cântico dos
Cânticos: “é tão forte como a morte”, o desejo isolado da carne é superficial e secundário. Quem
pode negar que é este amor o que comove a alma do homem nas suas profundezas, o que assinala a
mais intensa experiência da vida humana? Certamente, há uma larga escala no potencial de amor
dos homens, na profundidade, na perfeição do amor. Disse Leonardo da Vinci: “Quanto maior o
homem, mais intenso o seu amor.” Grandes amores, como o de Santa Isabel da Hungria e seu
marido, ou o de São Luís de França e sua esposa, podem ser raros e pressupõem grandes e
penetrantes personalidades; mas, para todo e qualquer ser humano que experimentou um
verdadeiro amor, limitado e imperfeito como possa ser, constitui a maior, a mais dinâmica
experiência humana da sua vida.
É inacreditável o modo como algo tão grande e sério — o amor entre o homem e a
mulher — é por vezes tratado nos sermões. Ouve-se dizer que este amor é tão-só um romance que
não deveria desempenhar papel algum no casamento, que o que importa é somente a
vontade, a observância dos preceitos morais, os deveres implicados no casamento.
Nunca estaremos em condições de entender a grandeza, a profundidade do casamento se, antes
de tudo, não compreendermos a beleza, a excelência e a seriedade do amor, cuja
natureza, como em nenhum outro lugar, é tão apropriadamente interpretada no Cântico
dos Cânticos.
Nunca se conseguirá afirmar com a devida ênfase que chegou para nós o momento de abolir a
tendência gnóstica e puritana de suspeitar do amor conjugal.
Sejamos existenciais; vejamos que o amor entre o homem o a mulher é uma categoria e um tipo
de amor específicos, que é uma realidade bela e gloriosa, destinada pela vontade de Deus a
desempenhar missão fundamental na vida do homem, e que este amor é o motivo normal
para o casamento; que o casamento é justamente a realização deste amor.
O amor conjugal é um tipo preciso de amor, e tem caráter próprio, ainda que se
prescinda da esfera sexual. O sexo não é a forma do amor. Seria um erro básico crer que o amor
conjugal é uma combinação de amizade, amor e sexo.
É verdade que o caráter singular do amor conjugal se assinala pelo fato de este amor não poder
existir senão entre homens e mulheres, e não entre pessoas do mesmo sexo, como é o caso da
amizade, do amor paterno ou do amor filial. Seria totalmente errôneo, contudo, reduzir tal
característica à esfera sexual e dizer que o amor conjugal é tão-somente amizade mais relações
sexuais, pressuposta a diferença de sexo.
O amor conjugal visa a uma total e irrevogável autodoação numa união indissolúvel, no vínculo
sagrado do matrimônio. Só quando se faz justiça à natureza e valor deste amor, é que se pode
apreender o significado que em si o casamento já possui como união de amor, à parte da sua
finalidade primária — a procriação — e perceber que o seu valor não provém unicamente desta
finalidade.
Devemos pois começar por entender o significado e o valor do casamento como a mais
estreita união de amor entre o homem e a mulher, como a mais íntima comunhão
humana eu-tu, como o irrevogável vínculo que Cristo elevou a sacramento.
Esta união constitui, pelo consentimento dos esposos, uma recíproca autodoação por toda
a vida, feita mediante a vontade expressa dos cônjuges, solenemente pronunciada diante de
Deus; confia-se assim, portanto, este vínculo a Ele. A intentio unionis do amor conjugal
encontra a sua expressão válida no consentimento, e a sua realização na união
irrevogável constituída pelo consentimento. Ela todavia alcança uma nova realização
no ato conjugal, na consumação da autodoação iniciada e prometida no
consentimento. O caráter de indissolubilidade começa com a consumação do
casamento, com a autodoação completamente realizada, pela qual “eles serão dois numa só
carne”. Quem pode deixar de apreender a excelência e a beleza do casamento e da
união física que este envolve se, sem preconceito, considerar as palavras do Senhor
quanto à indissolubilidade do casamento: “Por causa da dureza de seus corações, Ele
lhes deu esse preceito. Mas desde o início da criação Deus os fez homem e mulher.
Por esse motivo, o homem deixará o seu pai e a sua mãe e se unirá à sua esposa, e
eles serão uma só carne. Logo, eles já não são duas, mas uma só carne. O que
portanto Deus uniu o homem não separe.”
Não é possível, dada a estrutura deste livro, tratar mais amplamente aqui o mais
sublime aspecto do matrimônio: o ser um sacramento. Queremos no entanto salientar
que o amor conjugal também se destina a transformar-se por Cristo. Em verdade, só
em Cristo podem os esposos viver à altura de todo o esplendor e profundidade a que
este amor, por sua própria natureza, aspira. Como disse Pio XII: “Mas que nova e
indivisível beleza se acrescenta a este amor de dois corações humanos, quando a sua
canção está harmonizada com o hino de duas almas, vibrando com vida sobrenatural!
Aqui também há uma troca mútua de dons; e, então, através da ternura física e suas
alegrias saudáveis, através da afeição natural e seus impulsos, através de uma união
espiritual e seus deleites, os dois seres que se amam identificam-se em tudo o que neles é
mais íntimo, das profundezas inabaláveis das suas convicções ao mais alto cume das
suas esperanças.”
A transformação do amor conjugal por Cristo não o faz, todavia, perder a sua
feição específica. Citemos novamente o saudoso Papa: “Deus, com o seu amor, não
destrói nem muda a natureza, mas a aperfeiçoa [...] .“
Parece-me que todo e qualquer católico deveria ver a criação — o grande e misterioso bem
natural, que também reflete a glória de Deus e contém uma mensagem de Deus — no seu
significado e valor mais profundos e no esplendor que ela recebe mediante a sua
transfiguração em Cristo. Um tratamento prosaico dos bens da criação — seja a
formosura da natureza, seja o homem como tal, criado à imagem de Deus, seja a amizade, o
amor ou o casamento — parece-me uma traição, uma recusa a testemunhar a nova luz que
Cristo irradiou sobre toda a criação.
Já se disse que os cristãos devem ser reconhecidos pelo fato de se amarem uns aos outros.
Eu acrescentaria: os cristãos, que receberam a vestimenta do batismo, deveriam também ser
reconhecidos por evitar qualquer tratamento superficial, medíocre, dos grandes bens da
criação, e por compreender mais profundamente do que os outros “quão admiráveis
são as vossas obras, ó Deus”.

CAPÍTULO V

CASAMENTO E SUPERPOPULAÇÃO

A AMEAÇA DA SUPERPO PULAÇÃO dá origem a uma série de graves problemas morais. Que
tipos de recursos são moralmente irrepreensíveis para fazer face a essa ameaça? Um
menor número de pessoas deveria casar-se, em decorrência do fato de a moderação
da concepção tornar-se, em grande escala, um dever ditado pela causa do bem comum da
humanidade? Tal fato priva o casamento do seu valor e significado? Ou pelo menos solapa a raison
d’être da união física dos esposos? Conduz-nos isso também ao controle artificial da natalidade ou à
abstinência? O que há de errado no controle artificial da natalidade, se evitar a concepção, mediante
o uso do ritmo, é moralmente irrepreensível?
Estes e muitos outros problemas surgem da ameaça da superpopulação, e, ante o conhecimento
dessa ameaça, deve-se deplorar especialmente a tão generalizada ignorância com respeito ao
significado e valor do casamento. Em muitos casos, essa ignorância se revela numa superficial e
exagerada simplificação do profundo e misterioso vínculo entre a união de amor do
casamento e a sua finalidade primária — o nascimento de uma criança; e, em muitos
acatólicos, ela apresenta-se sob o aspecto de cegueira para o abismo que separa a
anulação da concepção mediante o uso do ritmo da anulação mediante o controle
artificial da natalidade.
A nossa tarefa aqui é realçar, em toda a sua profundidade e grandeza, o
significado e o valor intrínsecos do casamento, e o vínculo entre esta união de amor e
a procriação.
Veremos que é justamente a diferença fundamental entre o controle artificial da
natalidade, de um lado, e a anulação da concepção mediante o uso do ritmo, por
outro, o que nos permite descobrir nitidamente em que consiste o caráter pecaminoso
do controle artificial da natalidade.
Nada obstante, devemos começar com um apelo ao leitor para que, ao
acompanhar-nos a análise do casamento e do pecado do controle artificial da
natalidade, como que suspenda a definição tradicional de procriação como a
finalidade primária do casamento, porque é precisamente a aplicação demasiado
simplificada dessa doutrina que veda o caminho à compreensão a que visamos, como
amiúde o fazem as simplificações excessivas. Ao fim da nossa análise, ficará claro que não há
contradição entre essa definição e as idéias que estamos expondo. A nossa questão é
que o casamento também tem significado e valor próprios, e não somente uma
finalidade — a procriação.
Em vez de mencionar outros aspectos — a assistência mútua, a fidelidade ou o sacramento —
como finalidades secundárias, queremos mostrar que o casamento tem não só uma finalidade (isto
é, a procriação e a educação das crianças), não só o valor proveniente da sua função de servir a essa
finalidade, mas também significado e valor próprios. Reivindicamos, ademais, que a grandeza e a
beleza do vínculo entre casamento e procriação não se revelam totalmente senão quando antes de
tudo admitimos o valor que, em si, o casamento já possui.
Além disso, não há esquecer que o termo “fim” se usa, na filosofia tradicional, em
sentido muito vago; deveríamos até dizer — em sentido análogo. E, quando um termo
análogo é entendido como unívoco, conduz a ambigüidades. Por conseguinte, é preciso
esclarecer o tipo de finalidade especial que sustenta a definição de procriação como o
fim primário do casamento.
Veremos que nos defrontamos aqui com o princípio de superabundância, um princípio
de base metafísica, cuja aplicação encontramos em vários outros casos e que, se vinculado ao termo
análogo “finalidade”, constitui um tipo de finalidade muito diverso da simples relação
instrumental entre os meios e o fim: por exemplo, quando dizemos que a finalidade dos
pulmões é impregnar de oxigênio o sangue, ou que a finalidade de uma faca é cortar.
Neste sentido, convidamos os leitores a acompanhar-nos a análise com o espírito receptivo, sem
receio de que contraditemos a doutrina do fim primário do casamento. O nosso único
propósito é oferecer uma compreensão do casamento mais diferenciada, tanto nos
seus vários e fundamentais aspectos quanto no atinente à natureza específica da
relação que vincula o casamento à procriação. Tornar-se-á claro, então, não só que a
nossa concepção do casamento se encontra em notável concordância com o modo
como, na prática, a Igreja trata este assunto, mas também que agora estamos a
elaborar as implicações filosóficas dessa prática.
Alguns autores católicos, quando se propõem a elogiar o amor conjugal, o despojam do seu
ardor extático, do seu esplendor e singular intentio unionis, separando-o fundamente, pois, da
esfera sexual, da união física; outros, uma vez mais, menosprezam o amor conjugal e lhe
interpretam o caráter extático e o esplendor singular como uma miragem, como uma ilusão.
Recentemente, nos Estados Unidos, um famoso filósofo católico foi tão longe, que
chegou ao ponto de sustentar que este tipo de amor é tão-só um instinto sexual
disfarçado, e que tão-só na medida em que existe ágape entre os esposos a sua união
merece chamar-se amor autêntico. A maioria dos autores, porém, ignora por
completo a existência deste amor, omitindo-o, simplesmente, ao falar de casamento.
Outro erro básico também impede o caminho para a compreensão do real
significado e valor do casamento. No homem, qualquer tratamento da esfera do sexo como
mera subdivisão do reino dos instintos e necessidades biológicas, sem nenhuma relação intrínseca
com a esfera espiritual (como a sede e a necessidade de dormir), e cujo significado
deve encontrar-se num fim extrínseco a que serve, obstrui a compreensão da sua
verdadeira natureza e significado. Se admitimos que, no homem, a natureza e o significado
do sexo podem tratar-se como mera realidade biológica, tornamo-nos cegos ao mistério desta
esfera vital — ao significado e valor que ela possa ter, de um lado, e ao terrível mal moral da
impureza, de outro.
Se em verdade o sexo fosse nada mais que instinto biológico, como a sede ou a fome,
seria incompreensível que a satisfação de um instinto implantado por Deus na natureza
do homem deva ser imoral fora do casamento, especialmente se conduzisse à procriação.
Considerar a esfera sexual uma subdivisão dos instintos é reduzir a imoralidade da
impureza a mera violação de um mandamento positivo, ainda que se admita
decretado por Deus.
Não podemos apreender o mistério personificado nesta esfera antes de compreender
que o seu significado mais profundo consiste em ser uma singular realização do amor conjugal e do
seu desejo de união. Temos de compreender que esta esfera está essencialmente ordenada para a
constituição de uma duradoura e irrevogável união, a que o amor conjugal almeja, e que
é sancionada por Deus; só então podemos compreender a real pecaminosidade de pôr
a satisfação do desejo sexual fora da constituição desta união sancionada por Deus.
Só quando compreendemos que o ato sexual implica uma autodoação recíproca e
irrevogável, e que pela sua própria natureza é chamado e destinado a constituir uma união
indissolúvel, podemos ver a profanação envolvida na satisfação sexual fora do
casamento.
O tratamento desta esfera como algo que constitui em si uma realidade primária, uma
esfera autônoma, uma subdivisão da esfera dos instintos, não se restringe,
infelizmente, a Freud. De modo completamente diverso, encontramos o mesmo erro
em toda a concepção do desejo sexual que vê nele sobretudo uma expressão da
concupiscência, a luxúria da carne, um mal em si, sendo tolerado, na melhor das hipóteses,
quando serve à procriação e quando é legitimado pelo casamento.
Nessa concepção, o significado da esfera sexual e o seu verdadeiro valor também estão
completamente negligenciados, porque separados da sua missão de constituir uma união
única e irrevogável entre duas pessoas a que o amor do homem e da mulher aspira, e em que
encontra a sua realização.
Cite-se Pio XII: “O ato conjugal, na sua estrutura natural, é uma ação pessoal, uma cooperação
simultânea e imediata do esposo e da esposa que, pela própria natureza dos agentes e pela
adequação do ato, é a expressão do dom recíproco que, segundo a palavra da Escritura,
efetua a união ‘em uma só carne’.”
Poderíamos também aplicar ao ato conjugal as admiráveis palavras de Santo Ambrósio ao
falar do beijo: “Aqueles que se beijam não se satisfazem com a simples doação dos
seus lábios, mas precisam infundir a sua própria alma um no outro.”
Por fim, devemos deixar de ver na união física algo mau, que se tenta desesperadamente
justificar como mal tolerado no casamento. Há que aprender a ver que a união física,
destinada a ser a realização do amor conjugal e a máxima autodoação recíproca, é, como tal,
algo nobre e um grande mistério, um terreno sagrado de que nos deveríamos aproximar com
profunda reverência e nunca sem uma sanção específica de Deus; e que, precisamente por esta
nobreza e pelo mistério sagrado — em face do grande valor que se destina a realizar — todo o
abuso é terrível pecado e contém até algo sacrílego.
Ao enfatizarmos que é um grave equívoco ver a esfera sexual e o ato sexual como coisas más
em si, estamos longe de negar que o isolamento da esfera sexual é não só um erro teórico mas
também uma muito disseminada tendência da nossa natureza decaída. A esfera sexual também
tem, quando isolada e separada do amor conjugal e da autodoação recíproca no casamento, grande
poder de atração. O perigo de se deixar apanhar e seduzir por esse aspecto da esfera sexual é em
verdade grande, e está à espreita na maior parte da humanidade. No livro Em Defesa da Pureza,
tratei essa poderosa fascinação. Sempre que alguém cede a ela e tenta satisfazer um desejo sexual
isolado, defrontamo-nos com o grave pecado da impureza, uma conseqüência da concupiscência
nociva e uma profanação. Esse pecado envolve uma misteriosa traição da nossa natureza espiritual.
Isso, todavia, de modo algum nos autoriza a considerar o ato da união física uma coisa má. Ele
torna-se um mal pelo seu isolamento. Precisamente porque é algo nobre, profundo e misterioso na
relação — determinada por Deus — em que, pela sublime união de amor do casamento, dois se
tornam uma só carne, o seu abuso é uma terrível profanação. É completamente ilógico concluir que
algo é mau em si porque o seu abuso constitui um pecado terrível e porque, na nossa natureza
decaída, é grande a tendência para semelhante abuso. Deveríamos considerar o trabalho intelectual
e o conhecimento coisas más em si mesmas porque, inegavelmente, produzem em muitas pessoas
uma atitude orgulhosa, porque alimentam o orgulho? Estará certo São Pedro Damião ao alegar que
o demônio é o pai da gramática porque nos ensina a declinar Deus no plural: Eritis sicut dii?
Deveríamos estender a todos os homens a proibição do conhecimento assentada por São Francisco
para os seus frates minores porque, em verdade, nele se encontra à espreita o perigo do orgulho? Ou
deveríamos ver na razão algo mau pelo perigo do racionalismo?
Não. Por maior e mais terrível que seja o perigo da impureza, por mais que
reconheçamos que na nossa natureza está à espreita a tendência de corresponder ao
apelo do isolamento do sexo, isso de modo algum altera o fato de que o significado válido,
real, desta esfera é tornar-se campo de realização para o amor conjugal. O aspecto original,
válido, do ato conjugal é a sua função de autodoação mútua no vínculo sagrado do casamento, a
constituição de uma união irrevogável, não sendo, por conseguinte, algo mau em si,
mas, ao contrário, algo grande, nobre e puro.
Em vez, pois, de dizer que a satisfação pecaminosa do desejo sexual se torna legítima mediante
o matrimônio, deveriamos dizer que o ato sexual, porque se destina a ser a consumação desta
união sublime e a realização do amor conjugal, se torna pecaminoso quando profanado
pelo isolamento.
Isto não contradiz São Paulo, quando menciona o casamento também como um remédio para a
concupiscência. Dado o fato de, em muitas pessoas, o desejo sexual isolado ameaçar conduzi-las ao
pecado — ou seja, a profanar a união física, de acordo com as palavras do mesmo São Paulo:
“Ou você não sabe que quem se une a uma prostituta se torna um só corpo com ela?” —
o casamento, em que a união física cumpre o “tornar-se uma só carne”, também é um
remédio para a concupiscência. Não obstante, o ut avertatur peccatum (a fim de que se possa
evitar o pecado) não é um substituto para o amor conjugal. Significa apenas que quem é
atormentado por tentações de desejo sexual isolado deveria antes casar-se do que permanecer
solteiro. Mas isso não significa que lhe seria supérfluo encontrar uma pessoa a quem amasse,
porque é próprio desse remédio que, no maior grau possível, o ato conjugal se torne a expressão do
amor matrimonial e a constituição de um vínculo durável e irrevogável.
Se quisermos compreender a natureza do amor conjugal — esta maravilhosa herança do Paraíso
— e o válido aspecto da esfera sexual, que é determinada por Deus, deveríamos ler receptivamente
o Cântico dos Cânticos. Não deveríamos pensar no sentido análogo, mas tomá-lo no seu original
sentido literal. Podemos então respirar a atmosfera deste amor, e ver a sublimidade da
união física, quando experimentada como a máxima autodoação recíproca, concedida por Deus. E,
quando tivermos apreendido a beleza do sentido literal, deveremos considerar a implicação do
fato de a Liturgia usá-lo como analogia na relação entre a alma e Deus e adotá-lo no Ofício
da Virgem Santíssima. Não deveria estar claro que somente o que é nobre no plano humano
pode usar-se como analogia para a relação sobrenatural entre a alma e Cristo? Por que o
autor sagrado usa esta relação e não a da amizade, como a que une Davi e Jônatas?
Só quando tivermos corrigido essa atitude errônea a respeito do amor entre o homem
e a mulher e a respeito da união física, união em que tal amor, ansiando uma união
indissolúvel, encontra a sua realização singular, é que poderemos fazer justiça ao
significado e valor do matrimônio e, também, à profundidade e beleza da sua ligação
com a criação, como o seu fim, de um novo homem.
Não se corrige o grave erro de equiparar o primário e válido aspecto da esfera sexual ao mero
reino do instinto quando, como sucede por vezes, certas pessoas exigem que esta esfera seja
considerada algo positivo e ao mesmo tempo negligenciam o fato de o seu significado
essencial ser a realização do amor conjugal.
Tais pessoas argumentam que se trata de instinto natural e bom, e que, se não há vocação
especial para a virgindade, deveria ele encontrar alívio na tarefa da procriação, conquanto,
é claro, exclusivamente no âmbito do casamento; elas opõem-se aos aspectos negativos e puritanos,
e salientam o fato de o instinto sexual ser algo que pertence à nossa natureza humana. Um exemplo
desse tratamento pode encontrar-se em França de Hoje, num recente artigo sobre o casamento, da
autoria de André Maurois. Cito-o: “Quer-se que o casamento seja uma feliz mistura de
camaradagem, sexualidade e afeição.” Semelhante ângulo também absolutamente não
consegue ver que a esfera sexual não revela a sua verdadeira qualidade senão quando
formada pelo amor conjugal, que serve à constituição de uma união irrevogável, sancionada por
Deus. O verdadeiro casamento não é uma mistura de sexualidade, enquanto instinto
autônomo, com afeição e camaradagem; o ato conjugal é uma expressão orgânica do
amor matrimonial. A questão decisiva não é ver o desejo sexual por um aspecto positivo
ou negativo; trata-se, isto sim, de ver que esse instinto, justamente, não se destina a permanecer
instinto como os demais, mas sim a tornar-se uma expressão do amor conjugal e uma
plena autodoação, que servem à constituição da união entre os esposos.
Se se considerar tal instinto simplesmente como algo paralelo à união espiritual,
uma espécie de analogia na esfera material, ainda se permanecerá, no seu abuso, cego ao
mistério, ao alto valor do mysterium unionis, e ao mysterium iniquitatis.
Sobretudo hoje se negligencia este caráter de mistério, e muitos proclamam como um
passo à frente o fato de agora, em vez de um silêncio puritano, se falar desta esfera de maneira
franca e neutra. Em verdade, isso absolutamente não é progresso. Se a atitude afetada faz pouca
justiça a esta esfera, a atitude neutra o faz ainda menos.
A verdadeira antítese da atitude puritana é o tratamento reverente desta esfera, dado o seu
caráter de mistério, o qual exclui, pela sua própria essência, toda a neutralidade. Como se disse
anteriormente, é falso crer que um sentimento de vergonha não pode ser senão resposta a algo
negativo. Há diversos tipos de vergonha; mas há um tipo, uma nobre timidez, que é a resposta ao
caráter íntimo e misterioso de algo; e ver esta timidez e modéstia, que são exigidas na esfera do
sexo, como afetação ou tagarelice neutra, é um exemplo da deplorável cegueira e superficialidade
que confunde humildade com servilismo e pureza com frieza. Em verdade, essa neutralidade revela
a mais lamentável incapacidade para compreender esta esfera no seu caráter extático e misterioso e
na sua necessária intimidade.
A esta sublime união de amor Deus confiou a criação de um novo homem; trata-
se, pois, de uma cooperação com a criação divina. E é preciso dizer enfaticamente que
esta acentuação do significado e valor do casamento como união de amor não
diminui o vínculo entre casamento e procriação, antes o realça.
Tornar-se-á isto mais claro após fazermos um breve exame da natureza do
princípio de superabundância, e da diferença entre ele e uma finalidade meramente
instrumental.
Não se pode negar que um dos fins do conhecimento é capacitar o homem para agir;
toda a nossa vida prática pressupõe o conhecimento das mais primitivas às mais
complexas atividades. Ademais, um ainda mais sublime fim do conhecimento é tornar-nos
aptos a alcançar a perfeição moral e a santificação, que constituem o postulado para o nosso
bem-estar eterno. E, todavia, se esses fins podem corretamente ser chamados fins a que
se destina o conhecimento, este, em si mesmo, tem também, inegavelmente, significado e
valor próprios; e a relação com os fins a que serve tem o caráter de superabundância.
Este é um caso típico de finalidade em que o fim não é a exclusiva raison d’être de algo.
Esta espécie de finalidade difere, evidentemente, da finalidade instrumental implicada quando
se diz que determinado instrumento cirúrgico é um meio para operar, ou que o dinheiro é um meio
para nos proporcionar um bem, ou que os dentes são um meio para a mastigação do alimento. A
diferença principal entre a finalidade instrumental e a finalidade que classificamos de princípio de
superabundância consiste em que na finalidade instrumental o ente, que é considerado um meio, é
no seu significado e valor completamente subordinado ao fim, ao passo que na finalidade
superabundante o seu significado e valor são independentes da finalidade a que ele conduz.
Na finalidade instrumental, a causa finalis determina a causa formalis, ao passo que na
superabundante a causa formalis difere da causa finalis.
No caso de uma faca, o seu fim — cortar — determina a sua inteira natureza; o seu
significado é equivalente ao que serve a esse fim, e o seu valor depende da sua função como de um
meio. A sua única raison d’être é ser um meio para cortar. Esta é uma típica finalidade
instrumental.
Na finalidade instrumental, o fim é a exclusiva raison d’être do meio; na finalidade
superabundante, o bem que serve ao fim também tem, em si, uma raison d’être.
Vimos anteriormente que o significado e o valor intrínsecos do casamento devem ser a mais
profunda e a mais íntima união de amor. Vimos que o ato conjugal tem o significado de
realização singular deste amor, na autodoação recíproca e no seu caráter de
constituir uma união inigualável. A tal bem eminente, no entanto, o qual tem significado e
valor em si, foi confiada a procriação. O mesmo ato cujo significado é a constituição da
união foi feito superabundantemente a fonte de procriação, de modo que devemos
falar de procriação como fim, mas não no sentido de mera finalidade instrumental.
Ao passo que, nos animais, podemos considerar o instinto sexual mero meio para a
continuação da espécie, um fim no sentido de finalidade instrumental, isso é obviamente
impossível com respeito ao amor entre o homem e a mulher, ou à sua incomparavelmente bendita
união no casamento.
Ocasionalmente alguns têm reconhecido que, subjetivamente, os esposos não precisam
considerar o casamento e a união conjugal mero meio no sentido instrumental, mas
continuam a sustentar que, objetivamente, a relação entre ambos tem caráter de finalidade
instrumental. Proclamam que Deus implantou no coração humano o amor entre o
homem e a mulher e o desejo de união conjugal como mero meio para a procriação, e
dizendo-o mostram que não entenderam o verdadeiro caráter do vínculo existente entre casamento
e procriação.
Tocamos aqui a tendência geral e perigosa de negligenciar a própria natureza da pessoa e de
assumir que a espécie de instrumentalidade que se encontra no reino da biologia pode estender-
se ao reino espiritual do homem. Tão logo os instintos, ou as necessidades, se
encontram envolvidos, a sua lógica interna e a sua ratio atravessam-lhe, digamos assim,
a mente. É verdade que nem a inteligência do homem nem o seu livre-arbítrio
estabelecem a direção significativa de um instinto, como a sede ou o desejo de dormir. Deus
concedeu a esses instintos e necessidades a sua própria significação, sem envolver a inteligência do
homem; tal finalidade é semelhante à que só se encontra nos processos fisiológicos
inconscientes.
Quando uma necessidade experimentada, ou um instinto (como o da sede, por exemplo)
se encontra envolvido, dizemos corretamente que a sua raison d’être é (no caso) buscar para o
corpo o líquido necessário, e que Deus o providenciou como meio para esse fim.
Quando porém se trata de atos espirituais da pessoa (como querer, amar ou experimentar
contrição), já não podemos, diante dos olhos de Deus, admitir que em si não tenham significado e
que não sejam senão meios vinculados a um fim, por um tipo de finalidade semelhante à dos
instintos ou das necessidades. Não podemos esquecer que Deus considera o homem tão seriamente,
como pessoa, que Ele próprio se dirigiu a ele, e que depende da livre resposta deste o seu destino
eterno. As atitudes espirituais do homem têm significado e ratio em si mesmas, e nunca se podem
tratar como se a sua significação real fosse independente da pessoa; envolvem-lhe a inteligência e a
liberdade, a capacidade de responder significativamente, e não uma finalidade impessoal,
automática, que lhe atravesse a mente. Por conseguinte, não é possível vê-las, com a sua
significação real, fora e independentemente da experiência consciente da pessoa. O
homem não é um títere de Deus, mas um ser pessoal a quem o próprio Deus se dirige
e de quem espera uma resposta significativa. Aquela postura de desvalorização e
degradação das atitudes espirituais humanas é incompatível com o caráter do homem
como pessoa, com o seu caráter de imago Dei; ignora até o fato de Deus, Ele próprio,
ter-se revelado ao homem, além de ignorar, ademais, o modo como se realizou a redenção
deste.
Pode-se contestar: não se vale Deus amiúde de uma atitude má como meio para
algo bom na vida do indivíduo e, especialmente, na história da humanidade? Não pode uma
atitude má em si tornar-se um meio para algo bom? Sim, efetivamente, mas a felix
culpa não livra a falta do seu caráter moralmente negativo, e não nos autoriza a
considerar uma decisão moral como algo que não adquira real significado senão na
possível função justamente de felix culpa, em vez de ver-lhe o significado primário no
seu valor ou desvalor moral.
O tipo de finalidade que temos no espírito ao dizer que Deus extrai do mal algo que
conduz a um bem também difere, obviamente, e absolutamente, da finalidade
instrumental com que deparamos na esfera da biologia. Não se trata de uma
finalidade que esteja enraizada na natureza de alguma coisa, mas de uma livre
intervenção da providência de Deus, que usa algo numa direção até oposta à sua
própria natureza e significado. Não faria sentido, naturalmente, dizer que a finalidade do mal
moral é aplanar o caminho para algo bom; isso seria reivindicar que a própria
natureza de uma falta moral a torna um meio para realizar um bem. A culpa é, como
tal, infelix, e para que possa tornar-se felix depende de uma intervenção de Deus, o que
nunca nos autoriza a dizer que isso é o significado objetivo, válido, da culpa moral
aos olhos de Deus. Vemos, por conseguinte, que a intervenção misericordiosa de
Deus, extraindo um bem do mal, de modo algum anula o significado de uma atitude
humana espiritual, de modo algum reduz a tarefa do homem à de um títere.
Tornando ao nosso tópico, temos de afirmar que é incompatível com a própria natureza da
pessoa considerar as mais profundas experiências humanas espirituais como meros aspectos
subjetivos de algo que, aos olhos de Deus, seria mero meio para um fim extrínseco.
Seria tratar o homem meramente do ângulo da biologia admitir que o amor entre
o homem e a mulher, o maior bem terreno, é um simples meio para a conservação da
espécie, que a sua raison d’être objetiva é, exclusivamente, estimular uma união que serve à
procriação.
O vínculo essencial, estabelecido por Deus, entre o amor do homem e da mulher e a sua
realização no ato conjugal, de um lado, e a criação de uma nova pessoa, de outro, tem justamente o
caráter de superabundância, que supõe uma ligação muito mais profunda que a da simples
finalidade instrumental.
Mas afirme-se outra vez, com toda a ênfase, isto: a acentuação do significado e do valor
do casamento como a mais íntima e indissolúvel união de amor não contradiz a doutrina de que a
procriação é a finalidade primária do casamento. A distinção entre significado e finalidade, assim
como a acentuação de que o casamento também tem valor próprio, além do sublime valor
de fonte de procriação, de modo algum diminui a importância do vínculo entre casamento e
procriação, antes o realça e põe na perspectiva certa. Sublinhar que a finalidade em
foco tem o caráter de superabundância de modo algum implica negação da procriação
como o fim primário do casamento.
Alcançamos agora o ponto que nos capacita a ver o abismo que separa o uso do ritmo e o
controle artificial da natalidade. A pecaminosidade do controle artificial da natalidade está
enraizada no fato de reclamar para si o direito de separar a consumada união de amor, no
casamento, de uma possível procriação, de romper esta ligação maravilhosa, profundamente
misteriosa, instituída por Deus, aproximando-se deste mistério com atitude irreverente.
Defrontamo-nos aqui com o básico pecado da irreverência diante de Deus, a negação da nossa
humanidade, o agir como se fôssemos os nossos próprios senhores. É a negação básica da religio, de
estarmos ligados a Deus; é um desrespeito para com os mistérios da criação de Deus, desrespeito
cuja pecaminosidade aumenta à medida que se eleva a classe do mistério envolvido. É a mesma
pecaminosidade que se encontra no suicídio, ou na eutanásia, quando agimos como se fôssemos os
senhores da vida. É a mesma irreverência que ignora a indissolubilidade do casamento; por essa
irreverência, os casamentos contratam-se e terminam do mesmo modo como se troca de luvas.
Da parte dos esposos, toda a intervenção ativa que venha a eliminar a possibilidade
da concepção através do ato conjugal é incompatível com o santo mistério da relação
superabundante na inacreditável dádiva oferecida por Deus. E essa irreverência também afeta a
pureza do ato conjugal, porque a união não pode ser a verdadeira realização do amor senão
quando é tratada com reverência e quando está imersa na religio, a consciência do nosso
fundamental vínculo com Deus.
Ao sublime vínculo existente entre casamento e procriação também se aplicam as palavras
de Cristo: “O que Deus uniu o homem não separe.”
Aquela irreverência, todavia, está relacionada unicamente com a intervenção ativa que separa o
ato conjugal do seu possível vínculo com a procriação.
De modo algum o ato conjugal perde o significado e o valor plenos quando se sabe que uma
concepção é impossível quer pela idade, quer por uma cirurgia inevitável para o bem da saúde,
quer por qualquer outra razão. O conhecimento de que a gravidez é impossível não lança sobre o
ato sexual a tacha da irreverência. O ato que não redunda em gravidez, se é a expressão, no
casamento, de um profundo amor radicado em Cristo, se situará até mais alto em termos de
qualidade e pureza do que aquele que se dá num casamento em que o amor é menos profundo e
não é formado em Cristo, conquanto leve a uma concepção. Mais: ainda quando por razões boas e
válidas, como o perigo de vida ou de grave miséria econômica, a concepção deveria evitar-se
quanto possível, o ato marital, cujo significado e valor representam a realização de uma máxima
união, de forma alguma perde a raison d’être. A intenção de evitar a concepção não implica
irreverência, desde que não se interfira ativamente para frustrar o vínculo existente entre o ato
conjugal e uma possível concepção.
Nem de modo algum é irreverente o uso do ritmo com o fim de evitar a
concepção, porque o próprio fato da sua existência, em outras palavras, o fato de a
concepção limitar-se a um período curto, também inclui um desígnio de Deus. Isto
igualmente tem significado, e é definitivamente reverente aceitar a oportunidade que Deus
oferece àqueles esposos para quem evitar a concepção se torna imperioso. Que a
concepção se restrinja a um período curto também implica uma palavra de Deus. Não
só confirma que a união física tem significado e valor em si mesma, à parte da
procriação, mas também deixa aberta a possibilidade de evitar a concepção se isso, por razões
sérias, for imperioso. Fazer uso do ritmo não implica a menor irreverência ou
rebelião contra a instituição de Deus nem contra o maravilhoso vínculo entre a união
de amor e a procriação; de modo nenhum é um subterfúgio, como alguns católicos se
inclinam a crer. Ao contrário, é uma grata acolhida da possibilidade concedida por Deus para
evitar a concepção, se isso for imperioso, sem frustrar a expressão e a realização do amor
conjugal na união física.
Quando percebemos o abismo que há entre o uso do ritmo e o controle artificial da
natalidade, estamos capacitados para responder à retórica pergunta: “Por que haveria de ser
pecado o controle artificial da natalidade se o uso do ritmo é permitido?” E, quando
percebemos claramente a pecaminosidade do controle artificial da natalidade, podemos e devemos
repudiar, por completo, a sugestão de que isso é o meio próprio para evitar a ameaça da
superpopulação. Nenhum mal no mundo, por grande que seja, nos autoriza a usar um
meio pecaminoso para o evitar.
Cometer um pecado a fim de evitar um mal significa aderir ao princípio ignominioso de
que “os fins justificam os meios”. *
Por outro lado, não há muita dúvida quanto a ser imperioso fazer algo contra a
ameaça da superpopulação. A esse respeito, podemos perfeitamente esperar que, dentro em
breve, a ciência nos proporcione um meio de descobrir os dias de fecundidade de
maneira tão exata, que o uso do ritmo será de todo seguro para evitar a concepção. O
Papa Pio XII disse que rezou ardentemente para que possa encontrar-se tal meio; e
desde então se têm obtido importantes progressos nessa direção.
Nas circunstâncias atuais, porém, toda a discussão do problema revela uma lamentável
cegueira moral. É mais do que assombroso que, enquanto tantas vozes se levantam
para exigir que o pecado do controle artificial da natalidade seja encorajado pelas autoridades
públicas, nenhuma, de sã consciência, exija a imediata proibição do pecado da inseminação
artificial. A inseminação artificial é a mais viciosa separação entre a procriação e a união de amor;
pressupõe o grave pecado da masturbação; implica a mais desprezível, a mais terrível
profanação, ao pôr a geração de um homem abaixo da geração natural de um irracional,
ou seja, no plano de uma injeção. Ela associa a máxima irreverência ao mais desprezível
abuso e degradação.
Pode-se contestar: admitindo-se embora a imoralidade e a baixeza da inseminação artificial,
proibi-la não seria, todavia, uma interferência totalitária do Estado na vida do indivíduo?
Este é um problema de outra ordem: a legítima interferência do Estado na vida privada. A
ameaça da superpopulação, em verdade, também suscita este problema.
Em uma época em que o totalitarismo está inteiramente desenvolvido em muitos
países, e em que certas tendências totalitárias podem ser atestadas até em países
democráticos, precisamos estar especialmente vigilantes quanto à linha divisória entre as coisas
que, pela sua própria natureza, são da competência do Estado e as que pertencem ao
domínio particular do indivíduo. Pela sua própria natureza, há coisas, como as que
ameaçam a vida do indivíduo ou afetam o bem comum, que deveriam estar
submetidas à lei do Estado. Mas há vários outros problemas — particularmente os de alta
moral — que, pela sua própria natureza, não são da competência do Estado, ou não
deveriam ser impostos ao indivíduo.
Assim, um crime deve ser punido porque, afora a imoralidade que implica, afeta igualmente o
bem comum. Claramente, todavia, seria impróprio para o Estado tentar, por lei, impor caridade ou
humildade, ou implantar, mediante uma ação policial, determinado tempo para meditação e
contemplação no dia-a-dia dos indivíduos. Do mesmo modo, as questões relativas à profissão que
se possa escolher, ou relativas a com quem se queira casar, pertencem ao domínio sacrossanto do
indivíduo, que não está sujeito a Deus e à Igreja senão na medida em que os mandamentos morais
estão em foco. Mas, ainda que, em princípio, esta linha divisória seja clara, circunstâncias
extraordinárias podem confundi-la até certo ponto. Em si, a questão de quantas crianças um casal
deve ter está fora, obviamente, da alçada do Estado. O Estado não tem o direito de proibir um
casamento em que haja impossibilidade de filhos, nem de forçar um casamento em que haja
possibilidade de filhos, nem de estabelecer um numerus clausus para a prole. Sem embargo, em tal
caso extraordinário, como o da ameaça da superpopulação, que pode mudar radicalmente toda a
base da existência humana, a questão da interferência do Estado para proteger o mais elementar
bem comum torna-se um problema sério.
Claro está, portanto, que a proibição de algo que é um abuso abominável e um
pecado, como a inseminação artificial, de modo algum tem caráter totalitário, por imperiosa
para o bem comum. Em verdade, é incompreensível, conquanto talvez sintomático, que
tantas vozes se tenham levantado em favor de algo imoral — o controle artificial da
natalidade, encorajado pelo Estado — em vez de instar em que algo imoral e em todos os
sentidos vil e desumano — a saber, a inseminação artificial — fosse imediatamente proibida.
Deveríamos tratar o problema imposto à humanidade pela ameaça da
superpopulação inteiramente cientes do mistério do casamento como a máxima união
do amor conjugal, e do mistério de ter sido confiada a esta união de amor a criação
de um novo ser humano. É somente em face deste conhecimento que podemos
apreender nitidamente a exata natureza do pecado do controle artificial da
natalidade e, por conseguinte, compreender claramente que, na busca dos meios para
afastar a ameaça da superpopulação, devemos rejeitar radicalmente como solução o controle
artificial da natalidade, e devemos, em vez disso, empenhar-nos em encontrar um
meio que torne o uso do ritmo um método seguro para evitar a concepção.
A ameaça da superpopulação realçou, de modo particular, o significado do matrimônio. Ante
uma situação em que muitas crianças, em vez de ser uma bênção, podem tornar-se um grave dano
ao bem comum da humanidade, obviamente nem o casamento nem o ato conjugal perdem a
justificação, o significado e o valor. Enquanto, até pouco tempo atrás, toda e qualquer nação sempre
considerou o aumento da população um grande bem comum — uma consideração que, certa vez,
assumiu caráter único e a mais alta significação no povo eleito de Israel — hoje o aumento da
população ameaça tornar-se uma calamidade. Poder-se-ia alegar que esta nova situação também
afeta a vocação para o casamento, que um menor número de pessoas deveria casar-se, ou que um
homem e uma mulher, amando-se um ao outro com amor conjugal, deveriam renunciar à união do
casamento a fim de evitar o aumento da população? Ou se poderia alegar até que por isso a união
física perde a justificação, e que haveria que encorajar as pessoas casadas a viver em abstinência,
ainda que não sintam a menor vocação para um casamento virginal? Ou, ainda, se poderia
argumentar que a intervenção do homem mediante o controle artificial da natalidade se justifica
pelas circunstâncias, ainda que seja um pecado? Certamente, a resposta a todas essas questões deve
ser negativa.
Se Deus, através de circunstâncias, impõe o dever de evitar a concepção, nem por isso
condena ao ostracismo o maior bem humano na terra, a mais profunda fonte de
felicidade na vida — o amor conjugal e a sua realização na união sagrada do
casamento, em que “dois serão uma só carne”.

*
Grifo nosso. [N. do E.]

APÊNDICE I

O CASAMENTO E A VIRGINDADE
SEGUNDO SANTO TOMÁS DE AQUINO*

Carlos Nougué
“O juramento é aquilo que nos diferencia já não
digo dos selvagens, mas das bestas e dos reptis.”
G. K. CHESTERTON, Barbarism of Berlim

ALHURES EXPUS CRITICAMENTE a visão neoplatônica do sexo; segundo tal visão, por exemplo,
a mulher é uma espécie de semideusa sem inclinação sexual, ou que pelo menos deveria abster-se
de sexo, e a que os homens não deveriam votar desejo carnal algum. Mas que dizer, então, da
virgindade e do celibato, tão caros ao Cristianismo desde o seu começo? Em outras palavras: A
virgindade e o celibato religiosos são legítimos?
Foi esta mesma pergunta que se fez Santo Tomás de Aquino ao pensar no assunto.1 Fê-la, e
respondeu a ela em algumas das mais belas páginas jamais escritas.2 Passo a sumariá-las, com o
permanente e profícuo auxílio de Servais (Th.) Pinckaers OP, cuja obra recuperou a integridade da
teologia moral tomista, perdida, em seus grandes traços, havia já muitos séculos.

***

Santo Tomás de Aquino vincula a inclinação sexual à natureza que o homem tem em comum
com os outros animais: é ela que o ordena à união dos sexos, e à geração e educação dos filhos. Não
se passa o mesmo em todo o restante gênero animal?
E não se estranhe esta apresentação que faz Santo Tomás da questão; nela, o termo “animal”
não tem nenhum sentido pejorativo. A desqualificação — desqualificação moral — da animalidade
provém do racionalismo, o qual, cavando um abismo entre, por um lado, o puro pensamento e, por
outro, o corpo e os sentimentos, provocou grande desprezo com relação a estes. Não assim para
Santo Tomás, que tinha o termo “animal” por moralmente neutro, da mesma forma que tinha por
moralmente neutro o termo “paixão”, que designa os sentimentos. “Animal” quer dizer para o
Doutor Angélico: ser dotado de vida e de conhecimento sensível, e que, como obra de Deus, é bom em
si mesmo ou como tal.3
Por outro lado, se é incontestável que a inclinação sexual, diferentemente das inclinações
espirituais, comporta uma dimensão corporal, biológica e, pois, animal, isso não significa que para
Santo Tomás a sexualidade humana se encerre na câmara da pura animalidade. Ao contrário,
realiza-se ela de modo muito diverso e mais rico do que nos animais, pela sua integração na
globalidade da natureza humana, e particularmente pela sua coordenação com as mesmas
inclinações espirituais. É que para o Doutor Angélico o homem, diferentemente do que pensavam
os agostinianos do século XIII, não se compõe de três almas: a vegetativa, a animal e a espiritual,
mas de uma só alma, que, cumprindo as mesmas três funções vitais (a vegetativa, a animal e a
espiritual), atua “como um princípio interior de unificação e de convergência”.4 Chegamos aqui,
com esta afirmação tomista, ao céu do auto-entendimento humano.

***

A doutrina de Santo Tomás sobre a sexualidade é relativamente nova com respeito não só à
tradição agostiniana mas também à escola franciscana. Relativamente, sim, porque, baseando-se em
trechos de São Paulo e de Santo Agostinho em que a sexualidade é vista em condições concretas, ou
seja, em experiências afetadas pela má concupiscência provinda do pecado original, Pedro
Lombardo já propusera a teoria das escusas do matrimônio:5 em razão daquela concupiscência, do
desejo sexual desregrado, o casamento deve retornar à pureza original pelos bens que o cercam ou
que dele redundam, quais sejam, o sacramento, a fidelidade, a procriação etc. Não se tratava, pois,
de desprezar o sexo no casamento, mas de retificá-lo por causa justamente da concupiscência
carnal.6 Ademais, há belos textos de Santo Agostinho e de São Boaventura sobre o apoio mútuo no
casamento, sobre o amor e a amizade entre os esposos etc.
Em suma, o assunto permaneceu como suspenso sobre uma lacuna até que Santo Tomás de
Aquino o veio tratar com base na doutrina das inclinações naturais. Inclinação primitiva da
natureza humana e, por conseguinte, obra do Criador, como se pode ver pelo relato do Gênesis, a
sexualidade é agora reconhecida boa em si mesma, e — eis — fonte de valor moral, não
importando, aqui, que males ou deficiências lhe tragam, no homem concreto, o pecado e a má
concupiscência, a torná-la sede de desejos desregrados. Não estranhemos estas palavras do Santo:
ele sempre considerava “a natureza das coisas antes da experiência psicológica”.7
Mas quantas implicações trazem estas palavras! A partir delas, conclui-se que a sexualidade,
com toda a sensibilidade que comporta, pode ser a sede da virtude da temperança em forma de
castidade, alcançando-se esta não por um constrangimento exterior, mas por um domínio interior da
razão; esta a integra na personalidade e a põe ao serviço do amor verdadeiro, o que supõe, como
diz Pinckaers OP, uma lenta educação e maturação. Retificada, pois, quanto possível, a sexualidade
no casamento pode tornar-se meritória por influência da Caridade e contribuir, assim, para a
salvação dos cônjuges. Além disso, Santo Tomás refere a intervenção da virtude da justiça, que faz
os cônjuges manter-se nos devidos termos matrimoniais, e a intervenção da religião, que inclina à
extensão do culto divino mediante a multiplicação dos filhos de Deus. Mais: o Doutor Angélico,
diversamente dos franciscanos de então, situa virtudes como a temperança e a castidade — eis! —
no apetite sensível segundo a sua capacidade de participar da obra da razão,8 atribuindo, por
conseguinte, caráter meritório ao reto uso do matrimônio.9
A sexualidade encontra, desse modo, lugar ativo na personalidade e na vida do cristão.

***

Nada porém desta doutrina positiva elimina a inarredável necessidade de combate, e combate
particularmente duro, rude, áspero, contra os desregramentos suscitados pela má concupiscência e
pois decorrentes do pecado original. Tais desregramentos põem em risco o equilíbrio da vida
pessoal, o amor entre o homem e a mulher, as amizades e a própria vida social. Pela sua força e pelo
seu papel, a inclinação sexual, quando afetada de desregramento, ameaça todas as virtudes. E
lembremos que, “embora as suas categorias sejam mais largas”,10 São Paulo descreveu o combate
moral como a luta entre a vida segundo a carne, em que os vícios sexuais ocupam lugar de
destaque (conquanto sempre abaixo do sumo pecado do orgulho), e a vida segundo a caridade, em
que se dá o domínio de si e a castidade. “Tal é a experiência cristã como experiência humana; seria
ingênuo negligenciá-la”,11 como o fazem certas correntes do modernismo “católico”. Aliás,
digamos mais propriamente: não ingênuo, mas de todo em todo equivocado; fazê-lo é esquivar-se à
tradição cristã e à autoridade da Escritura.
É fundamental, portanto, vincular estreitamente o domínio sobre a sexualidade — ou seja, a
castidade — e o amor humano aperfeiçoado pela Caridade. É que a castidade assegura a retidão do
apetite, sem a qual é impossível haver amor autêntico e duradouro nem progresso pessoal e
espiritual.

***

Insistamos na interpretação dualista do homem que se gera com o racionalismo.12 Tal dualismo
é radical já em Descartes, o qual define o homem pelo pensamento puro, e considera os animais, e
portanto o corpo e a sensibilidade, como aparatos mecânicos. É a separação abismal entre o físico e
o biológico, por um lado, e a razão e a ordem moral, por outro. Por assim o entender, Descartes não
pode senão reduzir a sexualidade a uma função biológica animal.
No terreno da moral casuística — a que se forjou a partir de Guilherme de Ockham e, pois, do
desprezo do tomismo — essa redução racionalista leva a considerar o sexo no casamento como
processo essencialmente biológico, dotado de leis próprias, que basta observar para garantir-lhe a
qualidade moral. E, se é fato que tal redução dá conta de uma dimensão real e básica da
sexualidade, ela porém tem o grave defeito de fazer esquecer que no homem o biológico está
vitalmente integrado na sua natureza espiritual.
Para estabelecer uma profícua doutrina moral acerca do casamento, é indispensável reencontrar
o sentido profundo da unidade humana — os laços inextricáveis, nela, entre o biológico, o
psicológico, o moral e o espiritual — e nela inserir a dimensão sexual. Ademais, a vida do espírito
penetra a sexualidade a fim de a regular, e até se pode dizer, sem receio de espécie alguma, que sem
o corpo o espírito humano não pode verdadeiramente realizar-se.13 E pode-se perfeitamente
demonstrar que o exercício natural da sexualidade tem laços íntimos com a psicologia profunda do
homem e da mulher nas suas mútuas relações, e que a ordenação do sexo à fecundidade está
inextricavelmente ligada ao que Pinckaers OP chama, admiravelmente, “lei do dom”, o qual,
ademais, se inscreve no coração de todo o amor, divino como humano.14 Se alguém não sabe dar-
se, não é fecundo. E é uma exigência do amor que o casamento tenda à fecundidade física e
espiritual pela geração e educação.15

***

Todas as inclinações naturais do ser humano se realizam de modo muitíssimo especial no


casamento, e mostrá-lo é, por conseguinte, também mostrar a importância e riqueza da sexualidade.
Vejamo-lo, primeiramente, pelo ângulo dos esposos.
1) A INCLINAÇÃO AO BEM. O amor conjugal apresenta na pessoa amada uma forma específica de
realização deste pendor: é nela que se dá, no plano meramente humano, o maior dos bens e a maior
das felicidades. Na pessoa amada o amador “investe” todo o seu corpo e alma; é um sair-de-si para
o outro, um anular-se em prol do outro, um crucificar-se ao outro. E a importância disso se
patenteia pelo uso que faz a Revelação do tema dos esposos para significar as relações de amor (ou
de infidelidade) tanto entre Deus e o povo eleito como entre Cristo e a Igreja ou cada crente.
2) A INCLINAÇÃO À CONSERVAÇÃO DO SER. Reforça-se esta inclinação no casamento pelo simples
motivo de que, nele, os esposos se tornam “uma só carne” — um só ser como que redobrado. E,
para ambos os cônjuges, há nesta união ou amálgama um aumento da pujança de ser e da
segurança diante da vida, e experimentam ambos o poder de dar existência, em conjunto, a outros
seres. É o lar matrimonial, pelo apoio mútuo, como uma cidadela onde cresce a capacidade
individual de agir e de se defender.
3) A INCLINAÇÃO AO CONHECIMENTO DA VERDADE. Graças ao conhecimento do outro que,
mediante o amor, o casamento permite, renova-se e aprofunda-se o conhecimento de si. Pela boca
da personagem José Maria, diz Gustavo Corção em Lições de Abismo que “a mulher é o espelho do
homem”, e assim é: a diferença complementar entre os respectivos sexos e psicologias permite a
cada esposo a completação da sua auto-imagem.
4) A INCLINAÇÃO À VIDA EM SOCIEDADE. Este pendor encontra no matrimônio a sua primeira
realização e, em certo sentido, a mais completa. Por isso pôde Aristóteles distinguir, nas relações
entre os cônjuges, entre os pais e os filhos e entre os irmãos, os arquétipos das formas de governo
que se constituem na sociedade: segundo ele, a monarquia corresponde à relação entre o pai e os
filhos; a aristocracia, à relação entre o marido e a mulher; a democracia, à relação de igualdade
entre os irmãos etc.
Vejamos, agora, a importância do casamento para as crianças.
1) É no lar que as crianças têm a sua primeira experiência de vida, primeira e básica, porque
sobre ela se erguerão todas as demais ao longo da existência. Sem a segurança do lar não se
formaria a segurança pessoal que permite a atividade no seio da polis. É por isso que a separação
dos pais pode, entre outras muitas conseqüências, impedir aos filhos a aquisição da coragem de ser,
fundamental para a formação da personalidade.
2) É no lar que as crianças têm a experiência primeira do amor e da felicidade, com as variantes
de afeto com respeito ao pai, à mãe e aos irmãos. E é no lar que as crianças aprendem a discernir
entre o bem e o mal; é nele que recebem a primeira formação moral e religiosa. Mas é também no
seio da família que as crianças encontram, de modo especialmente íntimo, a sua primeira
experiência de sofrimento, de infelicidade, de dissensões, o que as marcará de modo variável
segundo a forma e intensidade com que tal se dê.
3) É no lar que as crianças adquirem os primeiros conhecimentos: a língua, o saber prático, as
verdades religiosas, o gosto artístico, as primeiras idéias etc. É dos pais que as crianças recebem a
formação para as virtudes, sem a qual não se pode desenvolver o que Servais Pinckaers OP chama
liberdade de qualidade.16 Por tudo isso, vê-se quão danosa pode ser para o futuro adulto uma
educação familiar deficiente.
4) É no lar que as crianças fazem a experiência original das relações sociais, tomando
conhecimento da sua diversidade através da relação com os pais e com os demais membros da
família. Crescidas, as crianças levarão consigo, tanto para o seio da sociedade civil como para o seio
da Igreja, aquela experiência primária, e até projetarão na sua relação com Deus a relação, por
exemplo, com o pai. É pois no lar que as crianças se confrontam primeiramente com a autoridade,
aprendendo a colocar-se diante dela com uma obediência de caráter pessoal.

***

Abra-se a esta altura um parêntese: Por fundamental que seja, como de fato o é, a contribuição
da família, ela nunca será bastante para produzir e explicar a natureza e o desenvolvimento das
inclinações ao bem, à verdade e ao próximo, “que fazem do homem uma pessoa”.17 De fato, é no
seio mesmo das relações familiares que, pelo senso da verdade, do bem e da felicidade, se revela e
se forma a relação superior, e toda pessoal, de cada homem com Deus, ou seja, o que se chama hoje
consciência, e que constitui este lugar íntimo que o Apóstolo das Gentes chamava também espírito
do homem. A este lugar só o próprio indivíduo e Deus podem chegar diretamente. Tal é o
constituinte primeiro da pessoa, a semente do universo moral e espiritual que há em cada homem; é
ele que religa, de modo necessário, o segundo mandamento ao primeiro, o amor do próximo ao amor
de Deus como à sua fonte e fim. A relação íntima com Deus pode despertar muito cedo na criança, e
desde então conformar todas as demais relações — apesar da sua natureza secreta, e apesar dos
obstáculos que o mundo exterior lhe possa opor. E, com efeito, não se pode construir uma moral
sólida sem que ela se erga sobre esta relação individual e intransferível com Deus.
Assim, tanto o estudo psicológico das relações familiares como o estudo das relações sociais são
insuficientes não só para fundar uma moral mas também para explicar os próprios
comportamentos humanos no que eles têm de mais pessoal e profundo, por maiores que sejam a
sua necessidade e o valor da sua contribuição para uma vida moral à altura da nossa natureza. Por
outro lado, todavia, é imperioso não opor as relações pessoais e sociais à relação pessoal com Deus.
Trata-se de planos que convergem, para fazer de cada homem uma totalidade viva e ativa. Mais
ainda, a relação pessoal com Deus não se dá fora mas no interior das relações familiares e das
relações sociais, e não se completa senão através delas.
Não obstante, o amor a Deus poder-se-á manifestar, na sua especificidade e na sua
superioridade, em certas escolhas exclusivas, como a renúncia ao casamento. Vê-lo-emos ao fim
deste Apêndice.

***

A doutrina dos dois fins do casamento foi profundamente afetada pela concepção ockhamista da
liberdade e da relação com o outro: nesta concepção, a procriação e o apoio mútuo tornaram-se
antagonistas. A partir de então, passou a importar qual sobrepujaria o outro, pois que o primeiro se
cingiria à natureza e sua força biológica, com as correspondentes obrigações morais, ao passo que o
segundo seria o único a vincular-se à liberdade, ao amor, e à razão, à qual caberia dominar a
natureza mediante a ciência. Mais: até pouco tempo atrás, os moralistas ao menos ainda mantinham
o princípio de que a procriação é o fim primeiro do casamento, conquanto o fizessem tão-somente
por encontrar nele uma base sólida para fundar as “obrigações” conjugais; hoje, porém, tende a
prevalecer o apoio mútuo como fim primeiro ou autônomo, o que acaba por desvalorizar a própria
instituição do casamento, dada a natureza subjetiva e individual do mesmo sentimento de amor.
Nada disso se vê em Aristóteles nem em Santo Tomás de Aquino, para os quais os dois fins do
casamento não são concorrentes, mas convergentes.
Para o Estagirita18 a afeição conjugal é uma forma de amizade. Fundada na natureza, mais
precisamente na inclinação à reprodução (que se encontra em todos os animais), ela, no entanto,
realiza-se de modo superior, pois que engloba o conjunto das tarefas familiares que se dividem
entre o homem e a mulher no seu apoio mútuo. É desta forma que a relação conjugal pode fundar-
se na virtude e tornar-se uma amizade no pleno sentido da palavra. Ademais, os filhos, que são um
traço de união entre os cônjuges, tornam o matrimônio mais sólido. Por fim, o casamento, como
comunidade natural, é anterior à polis, onde se completa a inclinação natural à vida em sociedade.
Veja-se, portanto, que para Aristóteles de modo algum predomina no casamento o biológico, mas o
propriamente humano: convergentes, a procriação e o apoio mútuo manifestam a amizade entre os
esposos.
É a mesma a perspectiva de Santo Tomás de Aquino.19 Começa ele por precisar em que sentido
se diz natural a instituição do casamento: é-o não no sentido de um impulso necessitante, mas,
justamente, no de uma inclinação que se realiza com a ajuda do livre-arbítrio. Eis-nos, pois, já acima
do biológico — no moral em que se assume o biológico, e em que se podem considerar os dois fins
do casamento no que têm de propriamente humano: 1º) para além da procriação, a instrução e a
educação até o fim da juventude, com a decorrente formação das virtudes; 2º) o apoio mútuo —
mas diferenciado — entre o homem e a mulher nas tarefas complementares, no qual se entretece a
amizade ou afeição conjugal.
Para o Doutor Angélico a procriação é o fim principal do casamento não só pela mera “generatio
prolis” (geração da prole), mas sobretudo pelo “bonum prolis” (bem da prole), com tudo quanto isto
implica, particularmente a educação. Que os filhos sejam o fim direto e primeiro do casamento não
somente é uma doutrina clássica, e indiscutível, mas também se comprova pela própria fisiologia.
Trata-se de algo tão natural, que o mesmo termo natureza significou originalmente, em grego como
em latim, o ato de nascer. Mas tanto Aristóteles como Santo Tomás de Aquino precisam o que há de
específico na geração humana: a educação dos filhos, e o apoio mútuo entre os esposos, o qual é tão
importante, que constitui no casamento um fim segundo mas nunca secundário. É também um fim
natural; convém ao ser humano inteiro, corpo e alma; e visa a formar uma amizade, uma afeição
única, cujo valor moral atinge a plenitude quando ela se ergue sobre as virtudes e qualidades de
ambos os cônjuges.
Conjugar os dois fins do casamento — não pode ser outra a base de uma autêntica moral do
matrimônio. O fim principal, em especial a educação dos filhos, não se pode dar de modo adequado
sem a colaboração entre os esposos, sem a sua afeição ou afeto mútuo. Por outro lado, “a recusa ao
fim primeiro do casamento implica, quase necessariamente, a falência do fim segundo”.20 O filho é
como o fruto próprio do amor conjugal, e os esposos que o recusam condenam à esterilidade e à
quebra o seu próprio amor, a sua própria afeição mútua. Sim, o amor tende à fecundidade, em
todos os planos; “é como uma lei de generosidade inscrita tanto na alma como no corpo do homem
e da mulher”.21 E não se pode infringir voluntariamente esta lei, em nenhum plano, sem
comprometer o próprio amor, sem comprometer a sua verdade, a sua profundidade e a sua
expansão.22
É imperioso levar em consideração, portanto, a interdependência, a interação, a
inseparabilidade dos dois fins do casamento. “Há aí uma como lógica da realidade humana, mais
profunda e mais forte, finalmente, que todas as idéias e opiniões, que todos os sentimentos e
paixões.”23 E é por isso que se tem de falar, aqui, do individualismo e seu papel nas relações entre
homem e mulher. Já há mais de um século cresce a tendência a reivindicar uma liberdade
individual (liberdade de indiferença, diga-se) que nega, por um lado, a destinação da mulher à
maternidade e a uma participação específica na educação dos filhos — como se tais fossem
constrangimentos e não, como de fato o são, qualificações complementares às do homem — e, por
outro lado, a destinação do homem à sustentação e à defesa da mulher e dos filhos — como se tais
não fossem senão imposições de uma época econômico-social que já teria ficado para trás na
marcha “evolutiva” a um “éden terrestre”. Mas, precisamente porque busca a impossível supressão
de diferenças naturais, aquela reivindicação dupla acaba por tornar a distinção entre os sexos lugar
de aguda rivalidade. É que só a aceitação franca, e positiva, destas diferenças permite uma
harmonia e uma colaboração entre o homem e a mulher fundadas no reconhecimento do outro e,
por conseguinte, numa verdadeira liberdade de qualidade, que afinal nada mais é, sempre, que a
liberdade única de escolher o amor do Outro e o amor do outro — e que serão o Outro e o outro
senão diferenças com respeito ao eu? O masculino é o outro do feminino, e vice-versa, o que,
convenhamos, é um saber anterior, muito anterior, ao Novo Testamento; é uma evidência.
Naturalmente, as naturais diferenças entre os sexos conhecem variações segundo o contexto
social, o contexto cultural, o próprio contexto familiar etc., o que, sem negar o essencialmente
diverso entre o homem e a mulher, conduz, aqui sim, a uma autêntica igualdade, dinâmica, pessoal,
“sempre em construção como a vida, [e] que é preciso não confundir com uma igualdade material e
reivindicativa”.24

***

A inclinação natural ao sexo e portanto ao casamento é de abrangência universal: existe em


todos os homens, e constitui direito inalienável. Funda um preceito da lei natural, o qual, ao longo
dos tempos, se realizou diversamente, segundo determinações múltiplas de ordem histórica e de
ordem psicológica.
Sucede porém que a universalidade desta inclinação natural implica exigências menores que as
de outras inclinações: com efeito, o homem não pode renunciar legitimamente à existência, nem
deixar de buscar a verdade e o bem, nem fugir a toda a participação na polis; mas, certamente, ainda
que com grande esforço, pode abdicar do exercício do sexo e pois do direto ao casamento.
Este problema não se suscitou, em toda a linha, senão com o Cristianismo, no qual se enraizou e
expandiu o ideal já da virgindade, já da castidade absoluta tardia, a saber — o celibato religioso. Entre a
Cristandade, a abdicação do casamento não é, como o era na Antiguidade, algo excepcional; é algo
ou institucionalizado ou vivamente recomendado, e por isso suscita a importante questão da sua
legitimidade ante a natureza humana.
Para responder a esta questão, que, evidentemente, lhe interessava de muito perto, Santo Tomás
de Aquino não facilitou a sua própria tarefa: pôs na base da sua doutrina do casamento a inclinação
natural ao sexo, antes que a experiência da má concupiscência produzida pelo pecado; procedeu de
modo inverso, pois, ao da tradição agostiniano-franciscana. Assim, se tal inclinação é natural e
conseguintemente obra de Deus, o casar-se e procriar não seria um dever, e, em contrapartida,
abster-se deste dever não seria um pecado? Pergunta-se o Doutor Angélico, com todas as letras, na
Suma Teológica: “Não será ilícita a virgindade?”25 Acompanhemos-lhe a resposta, a angélica
resposta.
Diferentemente de certos Padres, que chegavam a considerar como um bem a cessação da
procriação por ver nisso uma maneira de antecipar o fim do mundo, Santo Tomás de Aquino
interpreta esta palavra do Gênesis: “Crescei e multiplicai-vos”, como preceito imposto à
humanidade, como dever natural de fecundidade. Sucede, todavia, que tal preceito não se limita ao
plano corporal, concernindo, igualmente, ao plano do crescimento e da fecundidade espirituais da
humanidade. Em conseqüência disso, “como num exército, [e] como também em toda e qualquer
comunidade organizada”,26 dá-se uma divisão de funções entre o povo cristão. Para garantir a
multiplicação física da humanidade, bastará que certo número de homens se case (sempre a maior
parte deles, naturalmente), enquanto outros se vão consagrar, de maneira toda especial, ao
crescimento espiritual da humanidade — renunciando ao casamento para se devotar à
contemplação e/ou à pregação das realidades divinas.
Insistamos no principal móvel do celibato católico, para precisar-lhe o caráter. Se nosso Doutor
chega a dizer que tal móvel é a contemplação, é porque para ele esta inclui tanto “a vida ativa que se
orienta para ela [como] a pregação apostólica que lhe assegura a irradiação e a comunicação,
estando cada um destes modos de vida animado pela caridade”.27 Não fosse Santo Tomás
justamente um Dominicano...
Por tudo quanto já se disse aqui, vê-se que a virgindade e a castidade absoluta tardia recebem a
sua legitimação da própria natureza, não, certamente, da inclinação à procriação e pois ao sexo, mas
da aspiração ao conhecimento da Verdade divina como ao bem maior do homem. É por isso que a
opção pela virgindade ou pela castidade absoluta tardia não se pode opor ao casamento, dado ser
motivada pelo cumprimento de outra tarefa natural, ou “ainda mais natural”:28 o avanço do
conhecimento da Verdade e do Bem, em prol de toda a sociedade. Mas deve-se dizer também, isto
sim, que a virgindade e a castidade absoluta tardia são, por espiritualmente fecundas, outra e
superior forma de realizar o mandamento divino de crescimento e multiplicação. E a virgindade
sempre foi, de fato, um dos principais motores da expansão da Igreja.
Insista-se: apesar do que quer fazer crer o mundo, e particularmente o mundo moderno, não há
oposição entre, por um lado, virgindade e castidade absoluta tardia e, por outro, o casamento; há
antes profunda coordenação — “se se considera a natureza humana com a totalidade das suas
inclinações, sobretudo as espirituais, bem como a sociedade dos homens em conjunto”.29

***

Em que reside, pois, a força de toda esta argumentação tomística? Em fundar na própria
natureza humana tanto a motivação como a legitimidade do ideal cristão de virgindade e de
castidade absoluta tardia. Como já se sublinhou, até podemos dizê-lo superiormente natural.
Sucede, todavia, que nos dias de hoje a argumentação de Santo Tomás tem sido mal-entendida
e deformada. Tende-se a crer, hoje, que bastariam motivos puramente naturais para explicar este
ideal e seus corolários. Ao modo sempre “horizontal” do humanismo de todas as cores, é-se levado
a explicar a renúncia ao casamento por motivações como um maior devotamento ao bem dos
homens no plano caritativo, social, cultural, político etc.
Mas a virgindade e a castidade de que fala o Doutor Angélico são, sem sombra de dúvida, a
virgindade e a castidade para Cristo, exatamente como proposta por São Paulo.30 “Tal é o ideal
especificamente cristão que inspirará todas as formas de vida religiosa tradicional e,
particularmente, a grande renovação causada pelas Ordens mendicantes do século XIII”.31 E, na
nova elaboração teológica que Santo Tomás de Aquino confere ao estado religioso, este se torna
numa das características da Lei evangélica como “lei de liberdade”,32 devendo-se compreender tal
Lei, por conseguinte, consoante a sua definição: “a graça do Espírito Santo dada pela fé em Cristo, a
operar pela caridade”,33 e consoante a sua ligação com o Sermão da Montanha e com os
sacramentos, como elementos segundos (mas nunca secundários). O problema da relação entre, por
um lado, a virgindade e a castidade absoluta e, por outro, a inclinação natural ao sexo e pois ao
casamento só se suscita na Cristandade; ele não teria surgido na Antiguidade, ou seja, num quadro
meramente natural e filosófico, onde a opção pela virgindade e pela castidade absoluta era não só
muito rara como, quando se dava, chegava a considerar-se falta. Sim, o ideal e a expandida prática
da virgindade são sinais seguros, e nítidos, da intervenção do sobrenatural na vida do homem.
Ademais, é totalmente diversa da dos teólogos modernistas a concepção tomística das relações
entre a natureza humana e as realidades sobrenaturais. Para Santo Tomás a natureza humana é
aberta ao dom divino pelas inclinações naturais à Verdade e ao Bem, que constituem o desejo natural de ver
a Deus. E, com efeito, “quanto mais uma realidade é natural, mais e melhor ela se orientará para o
dom sobrenatural”.34 É o caso, justamente, da virgindade e da castidade absoluta tardia: é por
serem convenientes à busca da Verdade e do Bem que elas se tornam especialmente propícias à
contemplação e pregação cristãs. “A virgindade torna-se natural pela sua matéria, que provém da
temperança, mas ela torna-se sobrenatural pela sua motivação e pela conformação nova que recebe
do Espírito Santo como uma disposição especial para a vida contemplativa.”35 Ao demonstrar a
conveniência da virgindade à natureza do homem, o Doutor Angélico absolutamente não a reduz a
um plano meramente humano; muito pelo contrário, se lhe descobre os alicerces mais sólidos e o
lugar preciso na natureza humana, é justamente para mostrar-lhe a capacidade de acolher, em toda
a sua plenitude, a obra da Graça.
Eis, portanto, como sempre, a obra de Santo Tomás como “um cume entre dois vales”:36 no
caso, entre o sobrenaturalismo excessivo e o naturalismo abusivo. E este, que hoje nos interessa
mais de perto do que aquele, está indubitavelmente votado ao malogro: por mais que se tente
demonstrar que a renúncia ao casamento é algo bom no puro plano do natural, é impossível que a
abstenção do sexo se sustente por muito tempo graças a motivações meramente humanas. E não é
precisamente isto o que se vê hoje, com a ruína das Ordens monásticas, com o declínio do número
de vocações, e com o aumento espantosamente perverso das infrações à virgindade e à castidade
absoluta tardia? É que a “lógica do real humano se exerce incontestavelmente em sentido
contrário”37 ao pretendido pela “teologia” modernista. E é de perguntar, sempre com Pinckaers, se,
“permanecendo no nível da pura natureza, não seria preferível o casamento, pelo apoio que se
podem dar os esposos na busca de valores os mais altos, como a verdade, o amor, o devotamento
em todas as suas formas”.38
Com efeito, no caso da virgindade e da castidade absoluta tardia, não se pode esquivar, nem
minimamente, a intervenção da realidade sobrenatural, dotada de superior poder de atração e de
apoio, e entretanto de todo propícia à nossa natureza — que, pela sua essência e fim, é justamente
espiritual.

***

Concluamos: segundo Santo Tomás de Aquino, se há complementaridade entre o casamento e a


virgindade, é porque se trata de duas funções ao serviço da beleza e da salvação do homem. E tal
complementaridade só se pode dar no seio da Igreja. Se há, à primeira vista, contrariedade entre,
por um lado, o mandamento de crescimento e multiplicação e, por outro, a vida celibatária, tal
suposta contrariedade logo se supera, ao constatar-se a natureza espiritual do homem, ordenada à
Verdade e ao Bem. Aquela complementaridade, todavia, não se poderá dar sem a intervenção da
caridade de Cristo, como força de Amor superior, “capaz de conferir uma dimensão nova à afeição
conjugal e de inspirar a vocação à virgindade”.39 Só assim, só com a intervenção da Caridade e da
Graça, é que cada vocação pode concorrer para o avanço da outra.
E, se tal intervenção é ainda mais necessária porque a natureza humana está afetada pelo
pecado, em especial no domínio da sexualidade, que maior prova haveria da fecundez sobrenatural
da virgindade e da castidade cristãs do que a pujança das Ordens monásticas, que cobriam o
mundo, fertilizando-o espiritualmente, até que o modernismo e outros “ismos” viessem — nesse
“século do nada” que foi o XX, e como nunca na história da Igreja — semear entre os cristãos a
apostasia?

*
Revisado e reformatado para incluir-se aqui, este texto faz parte de uma série de cursos que se ministram por e-mail.
Para outras informações, vide www.co-redentora.com , ou escreva-se para edicoes@co-redentora.com .
1
Eis um traço marcante do caráter de Santo Tomás de Aquino: nunca deixar de fazer-se nenhumas perguntas, ainda
as mais espinhosas para um católico. Respondeu com acerto à quase totalidade delas, sempre cingido pelos dados da
Revelação.
2
Essas páginas se encontram na Ia IIae da Suma Teológica.
3
Veja-se o que já dizia Cícero a esse respeito: “É ainda coisa comum a todos os ‘animais’ o desejo de se unir para a
procriação, e o cuidado com os seres que se puderam engendrar” (De Officiis, t. I, IV, cit. in Servais (Th.) Pinckaers
OP, Las sources de la moral chrétienne — Sa méthode, son contenu, son histoire, Fribourg/Paris, Éditions Universitaires
Fribourg/Éditions du Cerf Paris, 1985, p. 437, n. 16). Mas em seguida, como lembra Pinckaers, o mesmo Cícero
mostra a diferença entre o homem e os outros animais: graças à razão, o homem pode prever o futuro e pode melhor
satisfazer as necessidades de sua família. A afeição familiar, portanto, está na origem da sociedade humana.
4
Servais (Th.) Pinckaers OP, op. cit., p. 438.
5
Esta expressão, “escusas do casamento”, deriva de I Coríntios VII, 6, onde o Apóstolo aconselha os cristãos jejunos
de sexo no casamento a que voltem à esposa, com o fito de evitar uma possível incontinência, e conclui: “Mas digo-
vos isto por condescendência [em latim indulgentiam, e em grego suggnômé], não por mandamento”. Pois bem, como
observa Servais (Th.) Pinckaers OP (in op. cit., p. 438, n. 17), o termo “foi estendido ao uso geral do matrimônio. O
próprio termo foi explicado como uma permissão de usar um bem menor, o laço matrimonial formado pelo
consentimento dos esposos, e de se servir de um mal menor, ou seja, venial, a saber, a união carnal que se dá sob o
impulso da concupiscência.” Observe-se, todavia, que se mantém a afirmação do bom caráter do casamento, bem
como a condenação dos que o reprovam. Em outras palavras, no seio do Cristianismo sempre se consideraram
heréticas visões como a albigense. É este, aliás, um dos traços mais marcantes da verdadeira Religião: ainda quando
não se têm os instrumentos teológico-filosóficos necessários para elucidar uma questão, um senso especial de
prudência impede que se dê o passo derradeiro para o abismo. — Os albigenses ou cátaros constituíam a seita
religiosa, de fundo maniqueísta e neoplatônico, que desde o século XII se propagara pelo Sul da França, nos
arredores de Albi, e contra a qual ordenou uma Cruzada o Papa Inocêncio III.
6
Como diz Chesterton em Santo Tomás de Aquino (Edições Co-Redentora, 2002), a diferença entre um faquir hindu e
um santo católico que rola nu sobre silvas é que o primeiro mortifica a carne porque a despreza, ao passo que o
segundo o faz para retificá-la — e salvá-la: ele sabe-se destinado a corpo glorioso.
7
Servais (Th.) Pinckaers OP, op. cit., p. 439.
8
Summa Theologiae, Ia IIae, qu. 56, a. 4.
9
Cf. Servais (Th.) Pinckaers OP, “Ce que le Moyen Âge pensait du mariage”, Supplément de la Vie Spirituelle, setembro
de 1967, pp. 413-440.
10
Servais (Th.) Pinckaers OP, Las sources de la moral chrétienne — Sa méthode, son contenu, son histoire, op. cit., p. 439.
11
Idem.
12
Para tal visão dualista o platonismo e o neoplatonismo também contribuíram, mas em muito menor grau que o
racionalismo.
13
A promessa que Cristo veio trazer aos homens é, centralmente, a da ressurreição da carne e não a de uma mera
sobrevivência da alma, o que afiança inequivocamente a unicidade do composto humano. Quanto à subsistência da
alma entre a morte e o Juízo Final, trata-se de árduo problema teológico-filosófico, que no entanto se resolve
definitivamente por Santo Tomás, após as muitas oscilações que perpassaram o período dos Padres e alcançaram o
da Escolástica.
14
O amor é em essência o que Santo Tomás chama amor de amizade, e será sempre — de Deus para o homem, de pai
para filho, de cônjuge para cônjuge, de amigo para amigo — um dar-de-si, uma efusão; será sempre, como diria o
Poeta, um “transformar-se o amador na cousa amada”.
15
Quanto às pessoas biologicamente infecundas, ou que por quaisquer outras razões não procriaram, terão sempre à
sua disposição, para suprir a privação natural, as possibilidades incontáveis do amor. “Ama, e [suposto o cumprimento
da lei natural inscrita no Decálogo] faz o que quiseres” — diz Santo Agostinho.
16
Pinckaers distingue a liberdade de qualidade da liberdade de indiferença. Não posso aprofundar aqui o tema.
Transcrevo, porém, as palavras com que Pinckaers delimita as duas concepções:
“A linha de demarcação entre as duas concepções de liberdade que estudaremos é traçada, histórica e
sistematicamente, pelas interpretações dadas à primeira parte da definição de livre-arbítrio legada por Pedro
Lombardo à teologia ocidental: ‘O livre-arbítrio é esta faculdade da razão e da vontade pela qual se escolhe o bem
com a assistência da graça, ou o mal sem esta assistência.’
O início desta definição pode receber duas interpretações diametralmente opostas. Inspirando-se na análise
aristotélica da escolha, Santo Tomás explicara a liberdade como uma faculdade procedente da razão e da vontade, que
se reúnem para compor o ato da escolha, formado, assim, por um julgamento prático e um querer. Para Santo Tomás,
o livre-arbítrio não é uma faculdade primeira; ele pressupõe a inteligência e a vontade. [Nota: Cf. a qu. 83. Esta
questão, consagrada ao livre-arbítrio, é logicamente precedida do estudo da inteligência, da razão (qu. 79), e do
estudo da vontade (qu. 82).] Ele enraíza-se, pois, nas inclinações naturais à verdade e ao bem que constituem estas
faculdades.
Ao contrário, Ockham sustenta que o livre-arbítrio precede à razão e à vontade, movendo-as aos seus atos, pois eu
posso escolher livremente, diz ele, entre conhecer e não conhecer, entre querer e não querer. O livre-arbítrio é,
segundo ele, a faculdade primeira, anterior à inteligência e à vontade quanto aos seus atos” (Servais [Th.] Pinckaers
OP, Las sources de la moral chrétienne — Sa méthode, son contenu, son histoire, op. cit., pp. 332-333).
Como já disse, não posso aprofundar aqui o tema; mas posso concluir: É patente que todo o mundo moderno, o
que se ergueu sobre as ruínas da Civilização Cristã, tem por um dos seus alicerces precisamente a concepção
ockhamista de livre-arbítrio.
17
Servais (Th.) Pinckaers OP, ibid., p. 443.
18
In Ética a Nicômaco, 1. VIII, c. 12, 1162 a 6-8.
19
Suplemento qu. 41, a. 1.
20
Servais [Th.] Pinckaers OP, Las sources de la moral chrétienne — Sa méthode, son contenu, son histoire, op. cit., p. 446.
21
Idem.
22
Obviamente, a infração não-voluntária desta lei não torna estéril esta afeição; até pode servir, quer pela adoção de
filhos, quer por concentração na amizade conjugal, de estímulo ao aprofundamento do amor mútuo, e a uma maior
reflexão sua fora dos limites do casamento. Fora? Sim, o amor, em qualquer das suas formas, sempre irradia de si. É
sempre um sol.
23
Servais [Th.] Pinckaers OP, Las sources de la moral chrétienne — Sa méthode, son contenu, son histoire, op. cit., p. 446.
24
Idem.
I IIae qu. 152, a. 2.
25 a

26
Servais [Th.] Pinckaers OP, Las sources de la moral chrétienne — Sa méthode, son contenu, son histoire, op. cit., p. 447.
27
Ibid., p. 448.
28
Idem.
29
Idem.
30
In I Coríntios 7, 34. — E o que se acaba de dizer absolutamente não nega o dito anteriormente, a saber, que a
virgindade e a castidade absoluta tardia propiciam “o avanço do conhecimento da Verdade e do Bem, em prol de
toda a sociedade”, porque, se o fazem, é pelo motivo superior de que um maior conhecimento da Verdade e do Bem
por parte de toda a sociedade é uma alta forma de devotamento a Cristo.
31
Servais [Th.] Pinckaers OP, Las sources de la moral chrétienne — Sa méthode, son contenu, son histoire, op. cit., p. 449.
32
In Ia IIae qu. 108, a. 4.
33
Idem.
34
Servais [Th.] Pinckaers OP, Las sources de la moral chrétienne — Sa méthode, son contenu, son histoire, op. cit., p. 449.
35
Idem.
36
Esta expressão é constantemente usada por Louis Jugnet em La Pensée de Saint Thomas d’Aquin, Paris, Nouvelles
Éditions Latines, 1999.
37
Servais [Th.] Pinckaers OP, Las sources de la moral chrétienne — Sa méthode, son contenu, son histoire, op. cit., p. 450.
38
Idem.
39
Idem.

APÊNDICE II

EXCERTOS DO COMENTÁRIO AOS DOIS PRECEITOS DA CARIDADE E


AOS DEZ MANDAMENTOS DA LEI, DE SANTO TOMÁS DE AQUINO*

“DO SEXTO PRECEITO DA LEI

Não cometerás adultério (Ex 20, 14). Depois de ter proibido o homicídio, o legislador supremo nos
proíbe o adultério, e conseqüentemente, pois que o homem e a mulher, graças ao casamento,
tornam-se um só e mesmo corpo: Serão dois, disse o Senhor, em uma só carne (Gn 2, 24). Por
conseguinte, depois do assassino que ataca o próximo em sua pessoa e vida, o inimigo mais
perigoso para o homem é o libertino que o ataca na pessoa e na honra daquela que é sua a metade.
O adultério porém é igualmente proibido ao marido e à mulher. Entretanto, convém considerá-lo
primeiramente em relação à mulher, porque esse crime parece maior quando é ela que o comete. A
esposa adúltera comete três pecados gravíssimos, que são indicados pelo Eclesiástico nestes termos:
toda a mulher que deixa seu marido torna-se primeiramente desobediente à lei do Altíssimo; em segundo lugar
peca contra o seu marido; enfim, viola a castidade conjugal (Ecl 23, 22-24).
118. Ela pois peca antes de tudo por incredulidade, e isto de muitas maneiras. Porquanto não
acreditou na palavra do Senhor que proibiu o adultério, obra contra a ordem de Deus, que quer que
a união do homem e da mulher seja indissolúvel: não separe o homem o que Deus ajuntou, diz Ele em
São Mateus (19, 6); obra contra os estatutos da Igreja, que abençoou seu casamento; viola o
juramento que pronunciou à face do céu tomando a Deus por testemunha e garante da fé jurada. O
Senhor, diz o Profeta, foi testemunha entre ti e a esposa da tua mocidade, que depois desprezaste (Ml 2, 14).
Assim, a mulher peca por incredulidade obrando contra a lei divina, contra os estatutos da Igreja, e
contra a santidade do sacramento estabelecido pelo próprio Deus.
119. Em segundo lugar peca por traição, porque abandonou seu esposo. A mulher, diz o
Apóstolo, não tem poder sobre o seu corpo, mas tem-no o marido (1 Cor 7, 14). Por isso não lhe é
permitido guardar a continência sem o consentimento daquele que tem todo o poder sobre sua
pessoa. Se ela comete portanto o adultério, torna-se criminosa de traição, entregando-se a um novo
senhor: deixa o guia da sua puberdade, e esqueceu-se do pacto do seu Deus (Pr 2, 17).
120. Em terceiro lugar peca pela comissão de um furto, porque introduz na casa conjugal os
filhos de um estranho, e lhes entrega a herança paterna, o que é um grande furto que faz aos seus
filhos legítimos. A mulher adúltera deveria, pelo menos, para diminuir a enormidade da sua culpa,
dedicar ao estado religioso os frutos do seu amor criminoso, ou tomar outro qualquer expediente
lícito, afim de que nunca eles tivessem parte na sucessão do seu marido. Assim pois a mulher
adúltera é criminosa de sacrilégio, de traição e de furto.
121. O marido adúltero não é menos criminoso, bem que muitas vezes seja indulgente para com
suas próprias fraquezas: e digo que não é menos criminoso por três razões.
122. Primeira razão. A mulher tem sobre ele os mesmos direitos que ele sobre a mulher. O
marido, diz S. Paulo, não tem poder sobre o seu corpo, mas tem-no a mulher (1 Cor 7, 4). Assim, como
esposos, o homem e a mulher acham-se em mútua dependência um do outro, e os deveres do
casamento são os mesmos para ambos. Para significar essa dependência mútua dos esposos, é que
Deus formou a mulher de uma das costelas do homem, e não de outra qualquer parte do corpo
humano. O casamento nunca foi o que deve ser senão depois da promulgação da lei cristã. Entre os
Judeus era permitido a um homem ter muitas mulheres, mas não o era a uma mulher ter muitos
maridos. Não havia portanto igualdade de direitos e de deveres entre o esposo e a esposa.
123. Segunda razão. A força é o atributo do homem, e a fraqueza o da mulher. A paixão, por
assim dizer, própria da mulher, é o amor; a fragilidade deste sexo é pois uma espécie de escusa às
suas faltas (cf. lPd 3, 7), e o marido que exige de sua mulher uma fidelidade que ele mesmo não
quer guardar é um tirano injusto.
124. Terceira razão. O homem tem autoridade sobre a mulher, e é o seu chefe. Por isso devem as
mulheres, segundo o preceito do Apóstolo, guardar um respeitoso silêncio na Igreja, e contentarem-
se com interrogar seus maridos na casa conjugal. O homem tem pois a missão de guiar a mulher, de
esclarecê-la com suas luzes; e eis aí por que foi a ele que Deus deu os seus preceitos e suas leis. Ora,
o desprezo das leis e dos preceitos de Deus é mais criminoso em um sacerdote do que em um leigo,
mais em um bispo do que em um simples sacerdote. Porquanto os ministros da religião têm a
missão de instruírem os outros homens, e esta missão é um dever mais rigoroso para aqueles que
estão mais elevados na hierarquia eclesiástica. Da mesma maneira o esposo, sendo o guia e o chefe
da esposa, é mais criminoso do que ela em calcar aos pés a santidade do casamento cometendo um
adultério. Entretanto, atendam bem as mulheres e não esqueçam o preceito que Jesus Cristo lhes
deu: mulheres, obedecei aos vossos maridos; fazei tudo que eles vos ordenarem; porém guardai-vos de seguir
os seus maus exemplos (Mt 23, 3).
125. Não cometerás adultério. Dissemos que este preceito refere-se tanto ao marido como à
mulher. Acrescentemos que certas pessoas, não obstante reconhecerem que o adultério é um crime,
contudo não acreditam que a simples fornicação seja um pecado mortal. Mas esta opinião é
destruída por estas palavras de S. Paulo: Deus julgará os fornicários e os adúlteros (Hb 13, 4); e por esta
outra passagem do mesmo Apóstolo: não vos enganeis, nem os fornicários, nem os adúlteros, nem os
efeminados, nem os sodomitas hão de possuir o reino de Deus (1 Cor 6, 9). Ora, a única coisa que pode
fechar ao homem a entrada do reino celeste é um pecado mortal; por conseqüência a simples
fornicação é um pecado mortal. Mas, direis vós, como a simples fornicação pode ser um pecado
mortal, pois que ela não mancha, como o adultério, o corpo de uma esposa? A isto respondo que, se
não mancha o corpo de uma esposa, mancha o corpo de Jesus Cristo, que de nós se apossa no
momento do batismo. Se pois é um crime desonrar a pessoa do próximo, muito maior crime é ainda
ultrajar a Cristo mesmo. Não sabeis, diz S. Paulo aos fiéis, que os vossos corpos são membros de Cristo? E
como haveis de fazer dos membros de Cristo os membros de uma vil prostituta, manchando-os pela fornicação?
Longe de vós semelhante pecado (Ibid. 6, 15).
126. É portanto uma heresia dizer que a simples fornicação não é um pecado mortal. Digamos
ainda que o preceito que nos ocupa, se o interpretarmos em seu sentido verdadeiro e completo, não
proíbe somente o adultério, mas também todos os prazeres carnais, exceto os que o casamento tem
legitimado. Acrescentemos além disto que, segundo certas pessoas, a união dos sexos no casamento
não é isenta de pecado; mas esta doutrina é ainda uma heresia. Seja por todos tratado com honra o
matrimônio, diz o Apóstolo, e o leito sem mácula (Hb 13, 4). Algumas vezes a união dos sexos no
casamento, longe de ser um pecado, é mesmo uma obra meritória; é o que sucede quando,
acompanhada da intenção de aumentar o número das criaturas de Deus procurando filhos, toma o
caráter de um ato de virtude; quando é acompanhada da intenção de cumprir um dever, conserva
ainda o caráter de um ato de justiça. Entretanto, ela pode tornar-se, conforme as circunstâncias, ou
um pecado venial, ou um pecado mortal. Quando não tem outro fim senão satisfazer os apetites
grosseiros da carne, mas sem degenerar em libertinagem, tem o caráter de pecado venial; quando
excede os necessidades da natureza e os limites severos do casamento, toma o caráter de pecado
mortal. Digamos agora por que o adultério e a fornicação são proibidos. Há muitos motivos para
esta proibição.
127. Primeiro motivo. A libertinagem perde a alma. O esposo adúltero, diz o autor dos Provérbios,
perde sua alma por causa da fraqueza do seu coração (Pr 6, 32). Esta expressão — fraqueza do seu coração
— significa a covarde complacência que o espírito tem para com a carne.
128. Segundo motivo. A libertinagem merece a morte. O esposo adúltero deve morrer, segundo o
preceito da lei mosaica. Ele pode escapar ao castigo nesta vida; mas esta impunidade é uma
desgraça para ele; porquanto os castigos sofridos com resignação sobre a terra alcançam ao
criminoso a remissão de suas culpas. Esta impunidade, além disto, não será de longa duração; e, se
ele pode subtrair-se à justiça humana, não evitará de certo a justiça divina.
129. Terceiro motivo. A libertinagem é uma causa de ruína. Assim, o filho pródigo de que se fala
no Evangelho dissipou todo o seu patrimônio, vivendo na desordem e na devassidão. Não te
entregues às voluptuosidades dos sentidos, diz o Eclesiástico, para que te não deites a perder a ti e a tua
herança (Ecl 9, 6).
130. Quarto motivo. A libertinagem avilta até as inocentes vítimas que tiraram a vida desta fonte
impura. Os filhos dos adúlteros, diz Salomão, não prosperarão, e a linhagem do tálamo iníquo será
exterminada. E, ainda quando forem de larga vida, serão reputados como coisa de nenhuma entidade, e a sua
última velhice será sem honra (Sb 3, 16). Nunca um bastardo é promovido às dignidades eclesiásticas,
e quando muito pode-se, sem desonra para a Igreja, deixá-lo no último grau da clericatura.
131. Quinto motivo. A libertinagem é uma desonra para os que se entregam a ela, e
especialmente para as mulheres. Toda a mulher que é prostituta, diz o Eclesiástico, será pisada como o
esterco em o caminho (Ecl 9, 10). E quanto ao homem, diz Salomão, se ele ajunta para si a infâmia e a
ignomínia, [...] não se apagará o seu opróbrio (Pr 6, 33). São Gregório também diz que os pecados da
carne são mais infames e menos condenáveis do que os do espírito. E a razão é [que] eles nos
rebaixam até a ordem dos brutos, de sorte que o homem, neste estado de abjeção, merece mais
desprezo do que censura. O homem, quando estava na honra, não o entendeu:foi comparado aos brutos
irracionais, e se fez semelhante a eles (Sl 48, 21).
[...]

DO DÉCIMO PRECEITO DA LEI


Não desejarás a mulher do teu próximo. S. João nos diz que todos os bens deste mundo não são
mais do que objetos de concupiscência para a carne, objetos de cobiça para os olhos, e objetos de
ambição para o espírito. Assim, todos os objetos dos nossos desejos estão compreendidos nestas três
divisões. Duas sortes de desejos são proibidos por este preceito: não desejarás a casa do teu próximo: a
saber, o desejo das riquezas e o desejo das honras; o desejo de possuir a casa do próximo
compreende ao mesmo tempo estes dois desejos, estas duas paixões: a cobiça e a ambição. A glória e
a riqueza habitam em sua casa, diz o Salmista (Sl 112, 3). Assim, a idéia de casa encerra, na Escritura
Santa, a idéia de riquezas e de honras, e o que deseja a casa do seu próximo é ao mesmo tempo
cúpido e ambicioso. Depois de ter proibido a cobiça e ambição, o legislador supremo nos proíbe a
concupiscência carnal. Tal é o sentido deste preceito: não desejarás a mulher do teu próximo. Mas
depois da culpa de Adão nenhum mortal está ao abrigo da concupiscência. Só o nosso divino
Salvador e a gloriosa Virgem sua mãe conservaram uma pureza sem mancha. A concupiscência
algumas vezes é acompanhada de um pecado venial, outras vezes de um pecado mortal. É
acompanhada de pecado mortal quando domina o homem. Não reine o pecado em vosso corpo mortal,
diz o Apóstolo (Rm 6, 12); e não diz — não exista o pecado em vós; porquanto ele mesmo
acrescenta: sei que o bem não habita em mim, isto e, em minha carne.
156. Ora, o pecado reina na carne, primeiramente, quando a concupiscência reina no coração e
domina a razão. É por isso que o Apóstolo, depois de ter dito: não reine o pecado em vosso corpo,
acrescenta estas palavras: de maneira que não obedeçais aos seus apetites. Pois aquele que olhar para uma
mulher cobiçando-a, já no seu coração adulterou com ela, diz o Evangelho (Mt 5, 28). Porquanto aos olhos
de Deus a intenção é reputada como o fato.
157. Em segundo lugar, quando a concupiscência se revela por palavras: fala a boca o de que está
cheio o coração, diz ainda o Evangelho (Ibid. 12, 34). Não saia jamais de vossa boca uma só palavra má, diz
S. Paulo (Ef 4, 29). Não poderiam portanto ser inocentes os que compõem cantigas vãs; é o parecer
dos próprios filósofos, segundo os quais deviam ser expelidos das cidades os poetas que fazem
versos amatórios.2
158. Em terceiro lugar, quando a concupiscência se revela por atos. Oferecestes vossos membros,
diz S. Paulo, para que servissem à imundice, e à iniqüidade. (Rm 6. 19). Tais são os três graus da
concupiscência. Acrescentemos que se não evita este pecado sem dificuldade, e que é preciso lutar
com coragem para subtrair-se ao seu império: é um inimigo doméstico que nos convém expelir de
nossa casa. Ora, pode-se triunfar da concupiscência de quatro maneiras.
159. Primeiramente devem-se evitar as ocasiões exteriores; por exemplo, as más sociedades, as
conversas criminosas, e em geral todas as seduções. Não detenhas os teus olhos em ver a donzela, diz o
Eclesiástico, porque não suceda que a sua beleza te seja ocasião de queda. Não lances os olhos por toda a parte
pelas ruas da cidade, nem andes vagueando pelas ruas. Aparta os teus olhos da mulher enfeitada, e não olhes
curiosamente para a formosura alheia. Por causa da formosura da mulher perecerão muitos; porque daí é que
se acende a concupiscência como fogo devorador (Ecl 9, 5-9). Acaso pode o homem, diz o autor dos
Provérbios, esconder o fogo em seu seio, sem que ardam os seus vestidos? (Pr 6,27).
160. Em segundo lugar é preciso fechar o coração a todos os maus pensamentos, porque eles
produzem a concupiscência; e para fechar o coração às imagens importunas das voluptuosidades é
necessário recorrer às mortificações. Eu castigo o meu corpo, e o reduzo à escravidão, diz o Apóstolo (1
Cor 19, 17).
161. Em terceiro lugar devemos fortificar-nos pela oração; se o Senhor não guardar a cidade, debalde
vigiarão os que a defendem (Sl 127, 1). Eu sabia, diz Salomão, que de outra maneira não podia ter
continência, se Deus não ma desse (Sb 8, 21). Esse gênero de demônios, diz o Evangelho, não pode ser
expelido senão pela oração e [pelo] jejum (Mt 17, 20). Com efeito, se dois adversários estiverem em luta,
e quiserdes tomar o partido de um contra o outro, ser-vos-á necessário prestar socorro ao primeiro,
e procurar enfraquecer o segundo. Ora, entre o espírito e a carne há uma luta contínua; se quereis
portanto que o espírito triunfe, é preciso que lhe presteis socorro, e é da oração que esse socorro
pode vir; é preciso ao mesmo tempo que enfraqueçais a carne, e é pelo jejum que ela pode ser
enfraquecida.
162. Em quarto lugar devemos entregar-nos com ardor assíduo às ocupações piedosas. A
ociosidade é a mãe de todos os vícios, diz o Eclesiástico (33, 29). Qual foi o crime de Sodoma? pergunta
Ezequiel: foi a soberba, a fartura de pão, e a abundância, e a ociosidade (Ez 16, 49). Fazei sempre alguma
coisa boa, diz S. Jerônimo, a fim de que o demônio vos ache ocupado. Ora, entre todas as ocupações a
melhor, sem contradição, é o estudo das Escrituras Sagradas. Amai o estudo das Escrituras Sagradas, diz
ainda S. Jerônimo, e não amareis os prazeres sensuais.
163. Tal é a explicação que tínhamos a dar desses dez preceitos da lei divina, desses preceitos
augustos, cuja sublimidade e importância Nosso Senhor mesmo nos fez ver, dizendo: se queres
entrar na vida eterna, observa os mandamentos (Mt 19, 17). Dois preceitos principais resumem toda a lei,
a saber — o do amor de Deus e o do amor do próximo. O amor divino encerra três sortes de deveres:
primeiramente ele impõe ao homem a obrigação de não adorar senão a Deus, e é o que se nos ordena
neste artigo da lei: não adorarás deuses estranhos. Em segundo lugar impõe-lhe a obrigação de honrar a
Deus, e é o que se nos ordena neste artigo da lei: não invocarás o nome do teu Deus em vão. Em terceiro
lugar impõe-lhe a obrigação de procurar o descanso em Deus, e é o que se nos ordena neste artigo
da lei: lembra-te de santificar o dia de sábado. O amor do próximo encerra duas sortes de deveres;
primeiramente ele impõe ao homem a obrigação de prestar a cada um a honra que lhe é devida: honra
a teu pai e a tua mãe. Em segundo lugar impõe-lhe a obrigação de não fazer mal a outrem, quer seja
por ações, em sua pessoa, na pessoa que lhe é mais estreitamente unida, e em seus bens: não
matarás; não cometerás adultério; não furtarás; quer seja por palavras: não dirás falso testemunho contra o
teu próximo; quer seja enfim por pensamentos: não cobiçarás os bens do teu próximo, não desejarás a
mulher do teu próximo.”

(**) Tais excertos são os que, nessas linhas do Doutor Angélico, têm que ver diretamente com o tema do casamento e
da virgindade. Quanto ao Comentário como um todo e quanto à sua tradução em português, entrego a palavra a
Omayr José de Moraes Junior: “O Comentário aos Dois Preceitos da Caridade e aos Dez Mandamentos da Lei, de Santo
Tomás de Aquino, tem sua origem nas pregações do Santo Doutor, realizadas em Nápoles, durante exercícios
quaresmais do ano de 1273. Proferidas originalmente em dialeto local, e tendo sido anotadas por Pedro de Ândria,
confrade do Angélico, estas Collationes ganharam posterior redação latina, da qual procedem os manuscritos.
Este Comentário fez-se preceder, na mesma ocasião, de outros dois congêneres, a saber, um referente ao Credo e o
outro ao Pai-Nosso, que formam uma trilogia cujo fundamento repousa sobre as três virtudes teologais — a fé, a
esperança e a caridade. A regra áurea que preside toda a explanação é a mesma que nos legou Jesus Cristo: Amarás o
Senhor teu Deus de todo o teu coração, e ao teu próximo como a ti mesmo.
A tradução que o leitor tem mãos é de Braz Florentino Henriques de Souza, e veio a lume na cidade do Recife,
pela Typographia Academica de Miranda & Vasconcellos, no ano de 1858. E aqui faz-se necessário notar que, se nem
sempre é muito precisa a escolha dos termos realizada pelo jurista pernambucano — que deu maior preferência ao
floreio do estilo à exatidão da palavra — o texto, contudo, nada encerra que desautorize sua reedição.
Pregando ao povo que acorria à catedral ou à capela dos frades dominicanos, esta terá sido das últimas ocasiões em
que Santo Tomás, ausentando-se um pouco do meio acadêmico, que era o seu habitual, pôde mais diretamente
exercer o ministério da Palavra junto aos fiéis. No ano seguinte, tendo deixado Nápoles rumo ao concílio de Lion, o
Angélico, colhido pela Providência, não cumpriu outra Quaresma em que pregasse as maravilhas antigas e novas do
tesouro inefável da Revelação divina, expirando no 7 de março de 1274.”
(**) Ou seja, libidinosos.

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