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Parmenides Da Natureza PDF
Parmenides Da Natureza PDF
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José Trindade Santos
Da natureza
Parmênides
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© 2000 by José Trindade Santos
Diagramação
Victor Tagore
Capa
Leonardo Gonçalves
Impressão:
Thesaurus Editora
CDU 113
CDD 113.2
Todos os direitos em língua portuguesa, no Brasil, reservados de acordo com a lei. Nenhuma parte deste
livro pode ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópi a,
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Fax: (61)344-2353
33
PoR QUE SABER? ................................................... .. .. ....... . .............. .
O saber é coletivo e pessoal ........................................................... 34
O que há para saber? ............................................ ........................ 35
O peso da memória ....................................................................... 36
Transmissão e criação cultural na Antigüidade ............................... 39
3. A Via da Opinião ... ................... ................. ....... . ......... . .. ... ...... 101
3. 1 0 ALCANCE DA V IA DA VERDADE .. . ....................................... 102
3. 2 As DUAS FORMAS ........................................................ . ....... 104
3. 3 A POSITIVIDADE DA OPINIÃO .............. . ................................. , 107
3. 4 ASTRONOMIA E FISIOLOGIA .. . ................................................ 108
3. 5 0 PENSAMENTO E A MISTURA....................................... . .... . .... 111
3. 6 A OPINIÃO E OS NOMES ......................... ............................ ... 112
11
Casertano, Parmenide il metodo la scienza l'esperienza, Napoli, 1978
( 1o edição). A estes estudioso quero aqui acrescentar, ao meu agrade-
cimento, a minha homenagem.
Como é de esperar, .um texto com a en ergadura do Poema de
Parmênides tem vindo a merecer, especialmente ao longo do séc. XX, a
detida atenção da crítica, atravé da apre entação de muitas edições e
comentários, tanto globais, quanto centrado numa ou noutra questão
do argumento. A finalidade e ambição de te trabalho não justificam a
referência a essa monumental tarefa, nunca acabada, para a qual con-
tribuirá apenas na medida das limitações já expressas.
Esta advertência é ditada não apenas pelo rigor e exigência do
trabalho científico, mas sobretudo para que se tome manifesto que a
interpretação aqui apresentada carece da referência ao acervo de bibli-
ografia filológica e crítica, sem a qual nunca teria chegado a poder ser
formulada 1 • A única justificação que se oferece para essa falta reside
na finalidade que presidiu à sua concepção e redação. O diálogo com a
tradição multissecular de interpretação crítica do Poema de Parmênides
pesaria enormente sobre a sua compreensão, sobretudo àqueles que o
vão abordar, pela primeira- e talvez última - vez.
12
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será questionada adiante, mas nunca alterada. Isto ~ignifica, por exem-
plo, que, apesar de se propor a sua localização entre os fragmentos 1 e
2, o fragmento 5 nunca deixa de ser referido por esse número; e assim
para os casos análogos.
Na parte dedicada ao comentário, a tradução do poema será
repetida pari passu. Tanto aí, como na tradução inicial, é da maior
importância a habituação da referência aos fragmentos, identificados
pelo respectivo número, seguido de um ponto '.', quando precedem a
indicação de versos. Estes podem aparecer sozinhos, ou emparelhados
por um hífen '-', ou uma vírgula ','. Por exemplo: 8 (ou B8, adiante
explicado) refere esse fragmento; 8. 2, o verso 2 do fragmento 8; 8. 34-
41 a seqüência de oito versos, habitualmente referida como o "sumário
da via da verdade"; 8. 38, 53, os dois versos do frag. 8 em que apare-
cem formas do verbo onornazein (nomear).
2. O ensaio sobre o saber deve ser encarado como uma introdu-
ção temática ao texto e ao seu comentário. Debate, de modo superficial
e sem pretensões, a constituição da questão do saber na Grécia clássi-
ca, procurando evocar a adesão simpática dos leitores, a quem
porventura nunca terá sido proposta nesta perspectiva. A pouco fre-
quente intrusão da linguagem poética pelo discurso de divulgação cien-
tífica constitui uma opção de incerta eficácia. Também aqui se calou a
oportuna referência a muita e variada bibliografia de difícil acesso a
estudantes.
Para facilitar a leitura e compreensão, esse texto é dividido em
curtas seções, com titulação centrada. Essa decisão traduz e· pretende
sugerir que não reproduz um argumento seqüencial. É antes constituí-
do por um percurso, quase caleidoscópico, onde se vão descobrindo
tópicos que convergem numa visão panorâmica da Cultura de uma
época, convocada de uma pluralidade de perspectivas. Deve ser enca-
rado mais como matéria para meditação e reflexão pessoal do leitor do
que como abordagem dogmática e científica do tema tratado. Para os
que quiserem entrar imediatamente no texto do poema, esse capítulo
poderá ser abordado depois do comentário.
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3. A última parte do texto é integralmente dedicada ao comentá-
rio do poema. Começa por uma curta introdução que descreve sucinta-
mente as vicissitudes pelas quais o texto passou até atingir a forma com
que é hoje apresentado ao público. A entrada no poema é assinalada
pela paragrafação numérica, inserida à margem, de forma a salientar a
integração dos tópicos, na ordem pela qual são abordados.
Estes são quatro: as três partes em que consensualmente se divi-
de o poema, seguidas de um comentário ao modo como este foi recebi-
do pelos filósofos e pelos sofistas gregos - 1. O proêmio; 2. A via da
Verdade; 3. A via da opinião; 4. Parmênides e a herança eleática (cada
um deles articulado e subdividido em parágrafos distintos). A repeti-
ção dos algarismos iniciais significa que o parágrafo seguinte faz parte
do anterior, enquanto a mudança indica a passagem à outra questão. A
inclusão de notas com titulação centrada quer dizer que estas devem
ser lidas como apêndices ao que se disse na seção em que se acham,
mas que a sua relevância para o argumento é marginal.
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FRAGMENTOS
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16
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Fragmento 1
B1
Os corcéis que me transportam, tanto quanto o ânimo me impele,
conduzem-me, depois de me terem dirigido pelo caminho famoso
da divindade, que leva o homem sabedor por todas as cidades. Por
aí me levaram, por aí mesmo me levaram os habilíssimos corcéis,
5 puxando o carro, enquanto as jovens mostravam o caminho.
O eixo silvava nos cubos como uma siringe,
incandescendo (ao ser movido pelas duas rodas que vertiginosamente
o impeliam de um ede outro lado), quando se apressaram
as jovens filhas do sol a levar-me, abandonando a região da Noite,
1O para a luz, libertando com as mãos a cabeça dos véus que as
[escondiam.
Aí está o portal que separa os caminhos da Noite e do Dia,
encimado por um dintel e um ombral de pedra;
o portal, etéreo, fechado por enormes batentes,
dos quais a Justiça vingadora detém as chaves que os abrem e fecham.
15 A ela se dirigiram as jovens, com doces palavras,
persuadindo-habilmente a erguer para elas
por um instante, a barra do portal.
E ele abriu-se, revelando um abismo hiante, enquanto fazia girar,
17
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oÜTE <Ppáams-.
18
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2 Preferimos a lição eu:rm8Éoç (eupeitheos : Sexto Empírico Adversus Mathematicos VII 111:
"fidedigna) à tradicional e mais frequente e'ÓKUKÀÉoç(eukykleos: Simplício De caelo 557, 25), por
sustentar a oposição en tre os vários termos com as raízes ÕOK-, rrn8-/ m ot-, que encontramos no
v. 30 ("crenças dos mortais"/"confiança verdadeira").
Em abono de eukykleos pode dizer-se que indicaria a circularidade da verdade (vejam-se os frags.
5 e 8. 43). Dados os óbvios méritos de ambas as lições, a preferência é justificada pela importância
desempenhada pela família de termos, no contexto do proêmio.
19
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B6
20
B3
[... ] pois o mesmo é pensar e ser.
B4
Nota também como o que está longe, pela mente se toma firme
mente presente:
pois não separarás o ser da sua continuidade com o ser,
nem dispersando-o por toda a parte segundo a ordem do mundo,
nem reunindo-o.
B5
[ ... ]para mim é o mesmo
por onde haja de começar: pois aí tomarei de novo
B6
É necessário que o ser, o dizer e o pensar sejam; pois podem ser,
enquanto o nada não é: nisto te indico que reflitas.
Desta primeira via de investigação te <afasto> 3 ,
e logo também daquela em que os mortais, que nada sabem,
5 vagueiam, com duas cabeças: pois a incapacidade
lhes guia no peito a mente errante; e são levados,
surdos ao mesmo tempo que cegos, aturdidos, multidão indeci
sa,que acredita que o ser e o não-ser são o mesmo
e o não-mesmo, para quem é regressivo o caminho de todas as
coisas.
3
Reconstituição conjecturai de Di eis - dpyw (eirgô) - "afasto" (termo que ocorre em 7.2).
Nesta situação, em que qualquer opção é consentida ao intérprete, são-lhe exigidas boas razões
para apresentar uma nova sugestão. Por exemplo, N .-L. Cordero Les deux chemins de Parménide
Paris, 1984, 24, 132-144, propõe apl;EL (arxei) "começarás", para argumentar que na Via da
Verdade a deusa aponta apenas dois caminhos: "que é" e "que não é". Mas a interpretação não
colheu grande apoio entre os estudiosos.
21
ll7-llS
22
B7-B8
7.1 Pois nunca isto será demonstrado: que são as coisas que não são;
mas afasta desta via de investigação o pensamento,
não te force por este caminho o costume muito experimentado,
deixando vaguear olhos que não vêem, ouvidos soantes
5 e língua, mas decide pela razão a prova muito disputada
8.1 de que falei. I I Só falta agora falar do caminho
que é. Sobre esse são muitos os sinais
de que o ser é ingénito e indestrutível,
pois é compacto, inabalável e sem fim;
5 não foi nem será, pois é agora um todo homogêneo,
uno, contínuo. Com efeito, que origem lhe investigarias?
como e onde se acrescentaria? Nem do não-ser te deixarei
falar, nem pensar: pois não é dizível, nem pensável,
visto que não é. E que necessidade o impeliria
10 a nascer, depois ou antes, começando do nada?
E assim, é necessário que seja de todo, ou não.
Nem a força da confiança consentirá que do não ser
nasça algo ao pé do ser. Por isso nem nascer,
nem perecer, permite a Justiça, afrouxando as cadeias,
15 mas sustem-nas: esta é a decisão acerca disso -
é ou não é - ; decidido está então, como necessidade,
deixar uma das vias como impensável e inexprimível (pois não é
via verdadeira), enquanto a outra é autêntica.
Como poderia o ser perecer? Como poderia gerar-se?
20 Pois, se era, não é, nem poderia vir a ser.
E assim a gênese se extingue e da destruição se não fala.
Nem é divisível, visto ser todo homogêneo,
nem num lado é mais, que o impeça de ser contínuo,
nem noutro menos, mas é todo cheio de ser
25 e por isso todo contínuo, pois o ser é com o ser.
Além disso, é imóvel nas cadeias dos potentes laços,
sem princípio nem fim, pois génese e destruição
foram afastadas para longe, repelidas pela confiança verdadeira.
23
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Lendo ÓVÓ!J.UO'tUL (onomastai) em vez do tradicional óvó~J,' EO'tm (onom 'estai) de Diels),
apoiado em L Woodbury "Parmênides on Names" Essays in A ncient Greek Philosophy I Anton
& Kustas (eds.) Albany 1971, 145-162.
25
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~mov ov,~Éy' [àpmóv] EÀa<Pp<Ív. Étuun0L TTávToaE TttJtJT<Ív,
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Tàtn(a vúKT' à6a~. TTUKLVÓv bÉfl-GS' Efl~pL8Éç TE .
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B9
Mas, uma vez que tudo é chamado luz ou noite
e o conforme a estas potências é dado a isto e àquilo,
tudo é igualmente cheio de luz e de noite obscura,
ambas iguais, visto cada uma delas ser como nada.
Blü
E conhecerás a natureza do éter e no éter de todos os
sinais e dos raios da pura lâmpada do sol
as obras destruidoras, e de onde nascem,
e conhecerás as obras que rodam em tomo da lua de olho redon
do
e a sua natureza, e saberás do céu que os tem à volta,
e de onde nasce, e como guiando-o a Necessidade o obriga
a conter os limites dos astros.
Bll
... como a terra e o sol e a lua
e o éter que a tudo é comum e a via láctea e o Olimpo
extremo e o calor ardente dos astros forçados a
nascer.
B12
Pois as coroas mais estreitas enchem-se de fogo sem mistura
e as que vêm à noite depois destas, mas com elas lança-se uma
parte de chama.
27
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Primeiro que todos os deuses concebeu Eros.
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Facho noturno, em tomo à terra, alumiado a uma alheia luz
BlS
Sempre à espreita dos raios do sol.
BlSa
Parmênides no poema diz que "a terra tem raízes na água".
B16
Pois, tal como cada um tem mistura nos membros errantes,
assim aos homens chega o pensamento; pois o mesmo
é o que nos homens pensa, a natureza dos membros,
em cada um e em todos; pois o mais [o pleno] é o pensamento.
B17
À direita os machos, à esquerda as fêmeas
B18
Quando a mulher e o homem juntos misturam as sementes de
Vênus, a força que se forma nas veias a partir de sangues diver
sos, mantendo o equilíbrio, gera corpos bem formados.
Se, contudo, misturados os sémens, as forças se opõem,
5 e não fazem unidade, misturados no corpo, cruéis,
atormentam o sexo da criança com o duplo sémen.
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30
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B19
31
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33
Nascemos num mundo já pronto: os pais, a casa, o lá fora, e um
dia a escola. Só começamos a aperceber-nos disso ao iniciar esse longo,
infindável, processo de transmissão, pelo qual recebemos o saber que é
de todos. E vamos aprendendo a fazer nossa a diversa experiência de
cada um dos que estão conosco.
É isso a Escola: o lugar em que cada um começa a aprender a ser
ele próprio, ao mesmo tempo que é levado a descobrir os outros. Pri-
meiro, o que têm diante de si: família, amigos, colegas, professores,
. entre a diversidade das pessoas com quem se convive: entre os parentes
presentes e ausentes. Depois, os mais distantes, que já aqui estavam, e
os que vieram antes deles. A quem só chega pela decifração dos sinais
que deixaram. Em casa, os retratos dos familiares. Na cidade, os nomes
das ruas, os lugares, os monumentos. Nos livros, as imagens de outros
tempos e de outras gentes. As histórias que deixaram.
Assim vamos aprendendo. Até ao dia em que nos acham prontos
para enfrentarmos o próprio saber.
O saber, esse, começamos por recebê-lo passivamente, Depois
vamo-lo gradualmente acomodando à cadeia de decisões pela qual cada
vida humana se impõe e se distingue das outras. E, tal como a cada um
de nós, assim acontece e acontecerá aos outros.
É por tudo isto que o acaso é uma ilusão. Só um nome para
designar o que não podemos entender. É também por isto que ninguém
nunca está só, mesmo que um dia assim o sinta.
34
que nela vivem usam no seu dia-a-dia. Mas os móveis, utensílios e ador-
nos que aí encontramos carregam em si uma memória em que a vida
dos que vêm se cruza com a dos que vão, na persistente continuidade
da família.
O saber constitui, pois, mais um dos campos de batalha em que
os humanos travam a sua guerra contra o tempo. De um lado está a
unidade do grupo, incessantemente reafirmada, cristalizada na memó-
ria que tem de si. Do outro, a sua constante renovação, na diversidade
dos que inscrevem na memória coletiva o selo da sua personalidade
própria.
Unidade e diversidade são perspectivas complementares pelas -
quais o saber pode ser abordado. Vê-mo-las concretizarem-se na série
de associações que o termo imediatamente desperta: conhecimento,
ciência, experiência, habilidade, aptidão ... Nelas a dimensão cole.tiva
da informação, tendencialmente teórica, combina-se com capacidade
individual de realização, que remete para a prática.
35
do ver que tudo o que lhe está a acontecer é idêntico, embora sem-
pre diferente da experiência por que todos os outros passaram, pas-
sam e hão-de passar.
No fundo, um erro compensa o outro. Pois, se, por um lado, a
sistemática confrontação com o corpo coletivo e teórico do saber
objetivo lhe esconde a dimensão pessoal daquele; por outro, o modo
como vive "a sua vida" não o deixa aperceber-se de como ela se
confunde com as outras, na identidade continuada da existência co-
letiva.
Só com a entrada na maturidade começa a valorizar a memória.
Quando começa a recordar-se de si e da sua história pessoal, quando
aprende a reconhecer-se no passado, começa a dar-se conta da longa his-
tória de tudo em que afinal sempre se achou inserido. Embora lhe falte
ainda uma enorme parte do percurso. Aquela em que acabará por entrever
quanto ele próprio não passa de um fragmento de História, por um fugaz
instante perdurando na sua própria memória e na dos que o cercam.
O peso da memória
36
u ~~iVEHSIOJ.\I)f.: t:E-::·
' Rf'.L!í rt:Cí\ ._.
37
numental, independente das circunstâncias adequadas à preservação
da mensagem fixada e dos destinatários por ela visados.
O produto final é antes de mais nada, uma narrativa palpitante,
recheada de peripécias. Uma história de aventuras, que a muitas outras
servirá de modelo e inspiração. E, no entanto, a própria história não é
mais do que um artifício, concebido para garantir a fixação de tudo o
que se quer registar. Pois a forma da narrativa, moldada em verso
ritmado, encadeia nos feitos das personagens míticas um manancial de
informações, oriundas de todas as regiões da experiência5 , que a me-
mória assim procura fixar, para com mais facilidade poder reproduzir.
Vista deste modo, a composição de um poema, que narra as ori-
gens do mundo, dos deuses e dos homens, é uma tarefa gigantesca.
Não pode, portanto, ser obra de um único autor. No princípio eram os
cantos, que os bardos compunham, ou aprendiam de cor, e recitavam a
uma assistência atenta. É desses cantos que se alimenta a memória
coletiva, persistente na tradição oral. Até ao dia - séculos mais tarde -
em que os versos declamados· começam a ser registados por escrito.
Inicia-se então o trabalho complementar do anterior: o de orga-
nizar a diversidade dos episódios -as aventuras das personagens indivi-
duais -na unidade da narrativa. É aí que o poema começa a definir-se,
afirmando-se sobre a variedade dos cantos. Porque o texto escrito é
manejável, como a sua fonte oral não era. Fixado, pode ir-se aperfeiço-
ando. E as sucessivas correções pelos quais passa vão-no moldando até
encontrar a sua forma canônica.
É um processo muito complexo. E sobretudo lento. No início era
a imagem de um mundo que se pretendia captar. O mundo conquista-
do pelo povo cuja história mítica é narrada. Mas o poema inclui tam-
bém o saber desse povo, que passa dos feitos dos príncipes ilustres e
dos guerreiros à descrição dos modos de vida da população anônima: o
5 A leitura de uma obra como A vida quotidiana no tempo de Homero, de Émile Mireaux (trad.
portuguesa, Livros do Brasil, Lisboa, sem data), mostra perfeitamente como a elisão da história, a
supressão dos contornos concretos da narrativa, converte os poemas numa enciclopédia, numa
organização abstrata da memória e do saber dos tempos homéricos.
38
agricultor, o pastor, o homem do mar. É esse saber que o grupo quer
ver transmitido aos vindouros.
Mas a sociedade tem de optar. Ou permanece igual a si própria;
condenando-se a mudar sempre sem se dar conta do fato, limitada pela
imutabilidade do saber que ensina cada geração a seguir as pisadas da
anterior. Ou aceita o desafio de se libertar do peso da transmissão oral,
adotando a tecnologia que lhe permite fixar as mensagens sem ter que
as carregar na memória: a escrita.
39
O papel capital é sempre desempenhado pela escrita. Mas como
é que ela pode agir sobre as mentalidades, condicionando o seu modo
de ver o mundo? A sua primeira função reside na libertação da memó-
ria do peso da mensagem imposta pela .tradição. Poupada ao esforço
exigido pela memorização, a mente adquire a capacidade de observar
de fora a mensagem. Tom_fl-se crítica. Nota incongruências. Revolta-se
contra o servilismo com ~ que tradição repetia sempre os mesmos pre-
ceitos. Por exemplo, por que é que temos de aceitar aquilo que os anti-
gos consideravam certo, quando é claro que já não tem validade hoje?
A mais relevante conseqüência do processo assim iniciado é a aparição
do novo, da declaração inédita e do seu autor, definido pelos contornos
da sua personalidade própria. E, a ele associadas, virão a autoconsciência
e o florescer nos outros das sementes do espírito crítico.
Assim se declara a revolução cultural. Mas é um erro pensar
que a opção por ela se põe isoladamente às sociedades, ou sempre
da mesma maneira. Representa um degrau, um patamar, a que as-
cenderam em conseqüência de um crescimento social e político con-
tinuado, para o qual converge uma imensidão de fatores. É possível
.só porque muitos outros obstáculos foram já ultrapassados com su-
cesso. A atenção particular que aqui lhe é conferida resulta do enfoque
na questão do saber. Deixemos, pois, de parte os outros aspectos.
Chegamos, contudo, a um momento em que a história que estamos
a explorar já não pode prosseguir sem a identificação dos protagonis-
tas. O desafio da revolução cultural começou a apresentar-se às socie-
dades do Mediterrâneo Oriental a partir dos finais do IV milênio a.C.
Foi aceita por todas. Porém, com estratégias e resultados bem diversos.
Fixemo-nos na escrita.
A escrita
40
da, ou na idéia a ela associada, bem como no signo que a representa.
Por exemplo, a idéia de 'cavalo' contém a imagem real, ou imaginada,
de um cavalo qualquer: visíveis como a figura, ou signo, que a repre-
senta (o desenho de um cavalo). Todavia, a escrita pode também refe-
rir essa mesma realidade recorrendo à representação do som, ou sons,
da palavra usada para a designar. É o qu~ sucede se optarmos por
representar um cavalo pelas letras da palavra 'cavalo'- 'f'-'a' -'v' -'a' -'1'-
'o'-, que representam os sons com que é pronunciada.
O sistema de escrita adotado por uma sociedade pode ser esco-
lhido entre duas soluções possíveis. Ficar no visível, passando da reali-
dade à figura, ou signo, desenhando uma imagem do representado, de
modo indiferente aos sons palavra. Ou pode optar por representar a
realidade visual através do conjunto de signos representativos dos sons
da palavra falada.
Em termos práticos a diferença entre um e outro sistema é imen-
sa, em variedade, expressão e economia. Pois, enquanto o visual abre
diretamente para a ilimitada realidade representada, o fonético, que
estabelece a mediação entre duas realidades visuais através da sua re-
presentação sonora, recorre a um número definido de signos para re-
presentar o conjunto limitado de sons que os falares humanos são
capazes de articular7 •
Por outro lado, a infrastrutura (conjunto de elementos de que
faz uso) e a superestrutura (sistema dos objetivos e produtos que reali-
za) destes dois tipos de escrita vai conduzir a situações praticamente
opostas. Se não, vejamos. A escrita pictográfica é "pesada", porque a
acumulação de um extenso número de caracteres desenhados: 1) re-
quere um suporte material estável- pedra ou argila (osso, madeira ou
7
Em todo o signo linguístico se combinam duas naturezas: a visual e a sonora. A primeira refere-
se à própria realidade descrita (tecnicamente diz-se: refere). A segunda, a ela associada, evoca a
palavra, o som convencional usado para referir essa mesma realidade.
O sistema de escrita que se apoia na natureza visual requere idealmente um signo único para cada
entidade descrita. A escrita fonética é, pelo contrário, muito mais economica. A diversidade infinita dos
objetos é primeiro representada pela combinação dos sons da fala (que descrevem a realidade através
signos fonéticos), sendo estes que depois vêm a ser representados pelo signo escrito.
41
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42
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c: .. ·.:. F~ .~
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44
I
I
I
I
formação dos costumes e dos valores, pelos novos desafios a que as
I
alterações sociais vão originar.
I
É desta mesma fonte e explorando este mesmo impulso que a
I
Filosofia vai nascer na Grécia. Mais assumida e conscientemente vol-
tada para o saber, dependendo das personalidades em quem ele se
consubstancia- os Sábios (sophoi) -, toda ela é intrinsecamente gre-
ga, provindo dos mais distantes pontos do mundo helênico, do Ori-
ente norte, no mar Negro, até às colônias do sul da península Itálica,
passando pela ilhas jonicas e pelo litoral da Ásia Menor. Todavia, esta
abrangente origem aponta para um único alvo: para a Atenas dos
sécs. V-IV. É aí que a vemos florescer, primeiro na intensa revolução
cultural a que se associam os sofistas, depois, nas obras dos grandes
filósofos: Platão e Aristóteles. Nelas se assume como método de in-
vestigação e busca do saber, e depois disciplina em que esse saber se
acha fixado e apto a ser transmitido para o futuro, em obras concebi-
das e estruturadas pelas regras da composição escrita 11 •
11
A história dos primeiros momentos do processo de transmissão, aquisição e fixação do saber
grego acha-se condensada em torno destes três figuras tutelares: o sábio, o sofista e o filósofo. O
epíteto 'sábio' começa por designar uma personalidade venerável, responsável por qualquer frag-
mento de saber que a memória coletiva tenha deciddo fixar, para, no séc. V. referir todo aquele que
aspira a ostentar esse estatuto. O termo 'sofista' começa por ser aplicado àquele que se afirma
detentor de um saber qualquer, pela transmissão do qual se responsabiliza, para acabar por descre-
ver uma personagem típica, hábil na fala e na argumentação. O 'filósofo' é aquele que se dedica à
aquisição e exploração de um saber teorético (desinteressado das aplicações "práticas"), que cobre
todos os domínios da realidade, de cuja posse efetiva nunca se quer afirma como detentor.
45
O que inicialmente se nos manifesta como captação de uma
memória milenar, genialmente imobilizada "nas potentes cadeias"
do verbo homérico, é a um tempo declamação oral e discurso escri-
to. É o imenso compêndio de um saber que abarca a história e a
geografia do mundo antigo, além de um percurso enciclopédico atra-
vés das artes e técnicas do quotidiano, tudo encerrado numa síntese
ética e política, que afirma e questiona o próprio sentido da identi-
dade cultural dos Gregos: a sua origem e o seu futuro como herdei-
ros dos deuses.
A poesia didática e a lírica arcaica retomam essa síntese através
dos olhares, cada vez mais intensamente pessoais, dos criadores cultu-
rais gregos, atentos às exigências dos seus tempos e lugares. É todo um
mundo novo - interior e exterior- que o homem reconhece e descreve
com surpresa e paixão.
A entrada no séc. VI vai trazer a confrontação dos Gregos
com outras e sempre novas experiências. Dessa tradição- a lírica-
mencionaremos apenas três nomes. Arquíloco revisita e revê
Homero, do mesmo modo que Sólon o ajusta- e também a Hesíodo
- a uma nova realidade política: a da cidade-estado. A sociedade
aberta que começa a despontar, oferece oportunidades a diferentes
reações: dos que choram a pureza dos valores perdidos, ou se riem
da estranha mistura de que são compostos os humanos. Píndaro
caldeia o metal da antiga excelência guerreira no fogo que incen-
deia os estádios, propondo uma nova visão do heroísmo.
Mas a voz e o olhar dos Gregos alarga-se a outros horizontes.
É a exploração da nova geografia do Mediterrâneo e dos povos que
o habitam que, com Heródoto, aponta para a fundação da História.
É a interrogação sobre a razão de ser de tudo, o questionar da or-
dem, do mundo e da vida, o espanto com a sua própria evidência,
que conduz à intenção epistêmica de que nascerá a Filosofia. Mas
essa história, em que Parmênides ocupa posição proeminente, tem
de ser contada de outra maneira.
46
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I
I
A formação da tradição filosófica grega
I
I
Se a preocupação com o saber constitui a essência da Filosofia,
I
então é impossível dissociá-la do impulso que desde sempre anima toda
I
a Cultura e Literatura gregas. Se, por outro lado, a reflexão filosófica
I
se dirige a um conjunto de temas e problemas específicos -os que assis-
I
tem à organização e explicação do mundo e da vida - , então como é
I
que deixamos fora dela quantos a estes se dedicaram: os poetas, nome-
adamente? Todavia, se a tradição filosófica retoma questões antigas a
uma outra luz, ou se concentra nelas de uma forma nova, então há que
explicar como e porque isso acontece. E também onde e quando, e com
que conseqüências. Numa palavra, se não tem sentido separar a Filoso-
fia da Cultura em que nasce e da Literatura que a exprime, na Grécia, é
preciso explicar como foi que isso mesmo veio a acontecer (por exem-
plo, nas Histórias da Filosofia).
Mas para isso teremos de prestar atenção a um conjunto de fatos
políticos que ocorreram num tempo e num lugar bem circunscritos,
com enormes conseqüências em todo o futuro da Cultura Ocidental. E
depois que abordar uma história bem conhecida por uma perspectiva
um tanto diferente da habitual.
Interlúdio político
47
evitar, ou como conseqüência dela, algumas dessas cidades entregam-
se ao arbítrio de um tirano.
E é assim que o poder de um único homem e, por arrastamento,
da dinastia dos seus descendentes, por algumas décadas, consegue afir-
mar-se acima das leis. Esse episódio traz, porém, inesperadas conse-
qüências. A política dos tiranos é intensamente "desenvolvimentista".
Ao dar novo impulso às atividades produtivas, desenvolvendo as in-
dústrias artesanais e o comércio que nelas assenta, o tirano converte a
cidade no pólo de atração de uma nova forma de riqueza- a moeda. E,
com ela, deixa que uma nova classe de industriais artesãos e comerci-
antes se distinga e se aproxime do poder.
A luta era, como sempre foi, pela terra. Mas a solução da conten-
da passava pela promulgação de leis que sanassem os antigos conflitos,
tomando medidas para que não se viessem a repetir. Isso equivalia a
redistribuir o poder em bases inteiramente novas. Os tiranos, já o vi-
mos, tinham alterado os dados do problema, dando origem a uma
nova e inédita forma de riqueza. Mas tinham, na melhor das hipóteses,
apenas contribuído para o adiamento da confrontação de uma classe
de latifundiários, sempre cada vez mais reduzida, com uma população
de expoliados, pelo contrário, cada vez mais numerosa, por vezes redu-
zida à servidão nas suas antigas propriedades 12 •
Atenas não foi estranha a este processo, embora tenha contribu-
ído de forma original para a sua ultrapassagem. No final do séc. VII, a
cidade encontrava-se à beira da guerra civil. Foi então escolhido um
homem - Sólon - para arbitrar o conflito. Mas não quis agir como um
tirano. Criou legislação com vista à sua superação: acabou com a servi-
dão, perdoou as dívidas dos pobres aos latifundiários, tirou algum po-
der às instituições tradicionais, criando outras, e ordenou um censo
que dividiu a população em quatro classes, segundo o rendimento das
suas terras, expresso em medidas de cereal e de líquidos (azeite ou
vinho). Promulgada esta legislação, deixou o poder e a cidade.
12
A perda da liberdade e da cidadania e a conseqüente redução à escravidão são consequências da
impossibilidade de pagar as dívidas contraídas.
48
I
I
I
diatamente.
A situação foi aproveitada pelos Pisitrátidas, que se mantiveram no
poder ao longo de quase todo o séc. VI. Até que, após o "tiranicídio" de
Hípias - o terceiro e último da dinastia -, ao entrar na derradeira década do
século, um novo Sólon apareceu em Atenas. Chamava-se Clístenes e teve a
oportunidade de lançar as bases do sistema democrático.
Através de uma completa reordenação do território, conseguiu
que os laços das antigas solidariedades fossem desfeitos e novas insti-
tuições criadas, que permitissem à segunda classe censitária (a dos ca-
valeiros) abeirar-se do poder. Mas as forças em oposição mantinham o
conflito latente.
De forma que ninguém sabe o que teria sucedido, se o rei dos
Persas não tivesse invadido a Grécia. A disposição das cidades para o
acolher, e das classes no seu seio, foi diversa 13 • Uma, porém, se lhe
opôs com determinação e o deteve no campo de batalha: a democracia
Ateniense, em Maratona.
A vitória de 490, renovada em Salamina, em 480, trouxe a
hegemonia sobre toda a Hélade a uma cidade arrasada pelas tropas
invasoras. Cidade que o ouro dos aliados irá ajudar a reconstruir, urba-
na e politicamente. É essa Atenas que, a partir de 480, primeiro os
aristocratas, mais tarde Péricles - recorrendo a subsídios e à política
monumental dos tiranos-, começarão a erguer em bases inteiramente
novas, convertendo-a no grande centro difusor da cultura grega.
13 Os aristocratas, bem como as cidades em que dominavam, mostravam-se dispostas a acolher a
supremacia Persa, que por pouco mais se expressaria do que pelo pagamento de um tributo. Pelo
contrário, as democracias, construídas sobre a isonomia, a igualdade dos cidadãos perante a lei,
.recusavam esse domínio, por saberem que era sobre o corpo dos cidadãos que os encargos haviam
de cair.
49
Política e Cultura
50
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permitiam ser eleitos para os mais altos cargos, onde seguiam uma
carreira política.
Todavia, com as últimas transformações por que passou o regi-
me democrático, são agora concedidas oportunidades aos cidadãos co-
muns. A dificuldade reside na formação que deveriam receber. Quem a
poderia proporcionar? A educação, na Atenas de meados do séc. V,
não se estendia acima do nível primário: ler, contar e talvez escrever,
mesmo assim com fluência difícil de avaliar. Onde se poderão achar os
mestres aptos a promover este ensino?
Os sofistas
vida Ateniense. Declara-se a peste, que vitimará o próprio Péricles. Os altos e baixos das campa-
nhas guerreiras agravam a instabilidade da vida. Em 411 a "tirania dos 400" derruba o estado
democrático. A revolta que põe cobro ao seu domínio não consegue restabelecer o equilíbrio na
cidade. A execução ilegal dos generais vencedores da batalha das Arginusas (406), a derrota final
de Egospótamos (405) e a entrega do poder à "tirania dos 30" (404) não podem ser alheias ao
estado de espírito da cidade que condena Sócrates (399).
18 Antigo semideus, um dos titãs, cuja história é referida por Hesíodo, na Teogonia (5 1Osegs.), e por
Ésquilo, na tetralogia Prometeu, de que sobreviveu uma única tragédia: Prometeu agrilhoado.
Originalmente encarna a figura ambigua do deus, ou herói, artificioso e desonesto, presente em
muitas tradições (Loge, na Edda nórdica; Quetzalcoatl, na mitologia tolteca, etc.). A ambiguidade
mantém-se na evolução posterior para a figura do defensor do Homem (é ele o responsável pelo
roubo do fogo aos deuses, pela arte da fundição dos metais e pela guerra).
52
ano do nascimento de Platão, 427) -, se tomarão famosos pelos seus
ensinamentos sobre a linguagem e a oratória (ou retórica).
É destes, conhecidos sobretudo pela imagem fixada nos diálogos
platônicos, compostos cerca de meio século mais tarde, que a tradição
celebra os êxitos e invejas que despertaram: o fazerem-se pagar, serem
seguidos por discípulos e admiradores, questionarem o saber e as cren-
ças tradicionais, entregando-se a debates e a argumentos, tão inéditos
que a partir deles se cunhou o termo "sofísticos" 19 • Todavia, embora
fundada, a concentração exclusiva nesta dimensão da prática dos sofis-
tas peca por excesso. Faz esquecer que devemos encará-los como os
primeiros intelectuais que o Ocidente conheceu. E que a eles se deve a
idéia de um ensino acima do nível primário e a introdução das primei-
ras perspectivas críticas sobre a tradição.
Todo este processo é contemporâneo do nascimento da prosa
grega. O que equivale a dizer ser esse o momento de extensão da escrita
à captação da fala do quotidiano, funcionando não mais como memó-
ria atual de um tempo passado, mas como memória futura do tempo
presente.
Decerto o desinteresse dos sofistas pelo saber, bem como a sua
orientação pragmática para o poder, notáveis nos debates através dos
quais se promoviam, justificam não terem prestado maior atenção à
escrita. Embora seja possível pensar que o número de peças que nos
deixaram é diminuto por muitas se terem perdido. Mas, mesmo assim,
19
Poderemos considerar tipicamente sofística a completa cisão entre o discurso e a realidade a que
se refere (adiante discutida). Esta atitude resulta e pode ser explicada por duas razões de ordem
diversa. Por um lado, pela distância crítica com que viam a tradicional exigência de infalibilidade
do saber; por outro, pela sua concentração no poder único do discurso.
Os sofistas são os primeiros a dar-se conta, e a explorar até às últimas consequências - em
polêmica oposição aos filósofos - o fato de a estupidez e a incompreensão humanas poderem e
deverem ser usadas como argumento nos debates. Não para o saber, naturalmente, mas para o
poder.
Tanto sofistas como filósofos constatam a ignorância dos homens. Todavia, enquanto os últi-
mos procuram combatê-la através da defesa de um projeto de saber (de valor incerto e sempre
discutível), os primeiros percebem as vantagens imediatas, resultantes do seu aproveitamento. A
oratória, a persuasão, a demagogia, levam a cabo nas assembléias a função que a erística (ver
adiante) desempenha nos debates públicos. Voltaremos com algum pormenor a estas questões, nas
quais é sensível a influência exercida pelo Poema de Parmênides.
53
nem a enumeração dos seus títulos sugere obras com as dimensões das
de Platão e de Aristóteles.
A Filosofia
1. PLATÃO
tão pouca elevação e solenidade quanto pode ter um simples recado, escrevinhado num caco de
cerâmica, em que um trabalhador diz ao outro onde deve deixar a serra.
Isto significa, à letra, a completa fidelidade para com o sentido
próprio do termo 'filosofia': amor ao saber. Perseguição constante em
vez de posse efetiva. Entrega total, em cada instante e ao longo de toda
uma vida, à busca do saber. Movido pela única certeza de a infalibilidade
- marca do saber autêntico - ficar sempre além de todas as tentativas.
Escapam-nos hoje as razões deste eterno adiamento do encon-
tro com a verdade. E muitos sucumbem à tentação de as encontrar
numa exigência mística de absoluto, que depois se teria perdido. Para
só reaparecer num ou noutro pensador, fundamente associada ao an-
seio religioso.
É legítima também essa interpretação. E defensável a sua locali-
zação nos diálogos. A exigência de infalibilidade, que aí notamos ser
atribuída ao saber, radica na dimensão sapiencial da tradição grega .
. Desde Homero que a vemos ser atribuída aos videntes e poetas, que
sabem "o que é, o que será, e o que foi antes" (Ilíada I 70). Decerto
porque "os deuses" lho ensinaram.
Séculos mais tarde, outros poetas, como Xenófanes e de certo
modo Heráclito, em quem a busca do saber é plenamente assumida,
rir-se-ão-das pretensões de Homero. Parmênides, contudo, apesar de
ser um pouco mais novo que eles, não deixará de lhes prestar toda a
atenção, ao fazer do seu poema uma viagem ao encontro de uma deu-
sa. Da boca de quem sai a mensagem que "o jovem" se limita a fixar,
para depois a transmitir aos mortais (frg. 2.1).
Por outro lado, a busca do saber nunca deixa de exprimir, em
Platão, uma intenção política, a que a dimensão religiosa e cultuai tam-
bém nunca será estranha. É o enigma da "sua sabedoria" que leva Sócrates
a interrogar os outros homens (Apologia 20 e segs.). Tal como é a via de
acesso ao "bem" que as investigações dos diálogos promovem.
Esta intenção é-nos hoje perfeitamente estranha. Como poderá
um estudante divorciar a busca do saber da sua posse efetiva, depois de
ter passado na escola a maior parte da vida? Como pode manter-se
indiferente ao fato de não encontrar resposta para as perguntas que
mais vivamente o perseguem?
55
As perguntas de Sócrates irritam-no tanto mais quanto lhe pare-
ce só ganharem sentido através da destruição de todas as respostas.
Todavia, se o impulso que as orienta para o saber se esgota na mera
procura, não é então claro que a Filosofia não serve para nada? A
resposta a esta pergunta tem de ir mais longe do que a simples consci-
ência de haver perguntas que nunca têm resposta.
Antes de mais, porque há perguntàs que têm resposta, às quais a
Filosofia não pode ser indiferente. Nem superior. Porque há um saber!
Que se ensina e que se aprende. Sob pena de a Escola não ter qualquer
sentido. E também a vida.
2. ARISTÓTELES
56
tos! A dependência que ainda em Platão se manifesta em relação à
oralidade atenua-se até se apagar de todo. Do mesmo modo que o
império da pergunta vai ruindo perante a invasão do exército das res-
postas em que a reflexão se transforma.
Na realidade o processo nunca pode chegar a completar-se por-
que há mesmo perguntas que nunca terão resposta. E a Filosofia gira
incessantemente em torno delas. É que as respostas de Aristóteles não
são definitivas. Mesmo se continuam ainda hoje a fazer sentido para
muitos homens. Vai para mil anos que o assédio do imenso edifício do
saber aristotélico se mantém, sem que estrutura em que assenta tenha
sido totalmente arrasada.
Mas não poderemos deixar de conceder toda a razão a Platão,
pela sua insistência na dimensão heurística, investigativa, do saber. Não
só há perguntas sem respostas, como ainda toda a resposta abre para
uma infinidade de novas perguntas. Há um saber que se fixa em infor-
mação adquirida. Mas só a reflexão sobre ele pode conduzir à desco-
berta de mais saber. A pergunta pelo saber nunca pode ter resposta
definitiva. Sob pena de o destruir como saber.
O Poema de Parmênides
57
vantes deixou-nos perante.a Atenas do século de Péricles, na qual en-
contramos algumas respostas que ainda condicionam o nosso presente
político. Foi assim que chegamos aos sofistas e à Filosofia.
Em todo este processo de fixação e renovação do saber, o Poema
de Parmênides desempenha uma função capital. É nele que colhemos a -
concentração no saber. É dele que deriva ainda, pela via negativa, a
teorização do discurso, que os sofistas explorarão. É finalmente dele
que recebemos a ordem de procurar o saber através do debate dialético.
É, portanto, para ele que nos voltamos agora. Em busca do senti-
do das perguntas que esboça e das respostas que para elas acha. E até
do modo como ao longo dos séculos não parou de afetar a nossa pró-
pria capacidade de fazer perguntas.
58
' '·
INTRODUÇÃO À LEITURA DO
PoErYIA DE PARMÊNIDES
23
A tradição, mais que milenar (estende-se do final do séc. IV a. C. até ao séc. IX d. C.), que
tomou a seu cargo fixar o saber dos gregos anteriores a Sócrates, achou bem atribuir a composição
de "livros" à generalidade dos pensadores de quem lhe tinham chegado "fragmentos" escritos. A
venerável antiguidade dessa atribuição tornou-a inquestionável, aos olhos de muitos estudiosos da
Literatura e da Filosofia gregas.
Admite-se hoje que alguns desses livros, dos quais não conhecemos referência no séc. IV a. C.,
possam ter sido atribuídos exclusivamente com base em fontes muito posteriores. De resto, que
poderemos entender por um "livro", na Grécia arcaica, ou mesmo clássica? Poderia tratar-se de
ditos conservados pela memória oral, mais tarde captados por escrito por outros, com intenções
críticas; ou resumidos por copistas, que faziam negócio com a sua venda ao público. Estas e outras
possibilidades fazem-nos pensar que talvez não disponhamos apenas de "fragmentos" de obras de
considerável extensão, mas de textos fagmentários, eles próprios ecos de opiniões mais antigas.
Excetuam-se naturalmente aqueles de que não se pode duvidar que tenham sido compostos, na
forma com que os conhecemos, como é o caso dos poemas. Aqui a natureza fragmentária é inquestionável
e as grandes dúvidas são sobre a extensão e importância do que se terá perdido. Mas é ainda assim
permitido conjecturar que o que não sobreviveu foi deixado de parte por se julgar ter menos relevância,
sendo certo que- seja por que razão- deixou de exercer influência no pensamento postetior.
59
toda a Cultura Ocidental. Deriva essa sua importância da influência -
implícita, ou explicitamente atestada - que exerce sobre a totalidade dos
pensadores gregos posteriores a Parmênides. Se fosse só por isto já seria
bastante. Mas nem sequer é aí que reside a mais mais autêntica medida da
sua importância. Pelo modo como aborda a questão do saber e a converte
no tema central da sua investigação, o Poema de Parmênides foi, e conti-
nua ainda hoje a ser reconhecido como a primeira obra em que se definem
os princípios reguladores da atividade a que se chama 'pensar'.
As suas duas grandes contribuições para a Cultura Ocidental
acham-se, portanto, facadas no saber e no pensar. Quanto ao primeiro
·- ~
aspecto, o poema inova por ter deslocado a interrogação, do tradiciQ-
nal questionamento sobre a origem e a constituição do cosmos, para a
do próprio saber. Quanto ao segundo, a inovação reside no modo como
encontra na análise do pensar a solução para o_problema do saber.
É como se, confrontado com uma pergunta e a indefinição gerada
pela sucessão das diferentes respostas que a tradição regista, o investiga-
dor buscasse, através do rigor dos procedimentos que desenvolve, a força
para impor a sua resposta. Surpreendente é ainda que, na análise levada a
.cabo, venha a recorrer~ princípios que ainda hoje tutelam o pensamen-
to: da identidade, contradição e t_~rceiro excluído, invocando ainda uma
versão do princípio da razão suficiente em apoio da opção que segue. Este
recurso implica uma inédita valorização dos processos formais do pensa-
mento (dependentes das suas regras de funcionamento e metodologia), em
detrimento da natureza material do saber (patente na especificidade das
questões que aborda). Uma vez mais, é como se o interesse da investigação
se afastasse do qu!! e do porque das questões, para se centrar no como
das perguntas e das respostas.
60
outros, o reconhecimento do valor dessa influência acha-se muitas ve-
zes atestado nas obras de Platão e de Aristóteles: sobretudo no diálogo
Sofista e na Física.
E, no entanto, por paradoxal que pareça, se dispuséssemos só
dos testemunhos destes dois filósofos, o nosso conhecimento do Poema
de Parmênides seria diminuto. É aos discípulos dos dois maiores filóso-
fos gregos, próximos e longínquos, que devemos a fixação do texto do
poema do Eleata24 .
O primeiro foi T~o, que sucedeu a Aristóteles à frente do
Liceu. Na sua obra As opiniões dos Físicos, terá fixado a totalidade
dos textos em que se achava condensado o saber dos gregos que ante-
cederam Sócrates.
Não sabemos se terá copiado a totalidade do poema, que teria
diante dos olhos, visto que a obra se perdeu (sobrevivem hoje apenas
partes consideráveis do seu resumo em dois livros). Nem sabemos du-
rante quanto tempo uma, ou outra, versão da obra de Teofrasto terá
suportado o desgaste do tempo 25 • Todavia, depois da cópia parcial, que
nos chegou numa obra de Se~~?.]~o (filósofo céptico do séc. II d.
C.) e da referência de Clemen~lexandria (a quem devemos o frag.
4), o número de exemplares em circulação deve ter baixado o suficiente
para que os neoplatônicos Proclo
,..,___
e Simplício
- - tivessem, no séc. V, decidi-
26
do copiar partes consideráveis do poema • De forma que foi sobretudo
graças aos esforços deste último que a extensão da influência de
Parmênides na tradição grega chegou a poder ser hoje apreciada.
24 Parmênides nasceu em Eleia (no sul da Península Itálica) , no início da última década do
séc VI a. C.
25 Lembremos que na Grécia clássica os escritores utilizavam o papiro para fixar as mensagens que
confiavam à História. Este material -importado do Egito - não resistia, em condições normais de
temperatura e humidade, mais de uns sessenta anos. Enterrado nas quentes e secas areias do deser-
to, algumas cópias mantiveram-se legiveis até terem sido descobertas, em finais do século passado.
Isso significava que, assim que as inevitáveis manchas de bolor começassem a invadir os rolos em
que estavam escritos os livros, era necessário mandar fazer outra cópia: sempre uma de cada vez,
lembremo-lo!
26 O próprio Simplício declara (Física 144.26): "As linhas de Parmênides acerca do único ser não
são muitas e eu gostaria de as apensar a este comentário tanto como confirmação do que digo,
quanto pelo fato de o livro se ter tornado raro."
61
Que percentagem do poema original possuímos hoje? Qual a
relevância das partes perdidas? Que razões terão levado homens cul-
tos, como Proclo e Simplício, a excluí-las? Que distância separa o
Parmênides histórico (tal como foi lido, e sobretudo ouvido pelos seus
contemporâneos) do filosófico (a que temos acesso hoje)?
Trata-se evidentemente de perguntas para as quais não temos
esperanças de encontrar resposta. E o mesmo se poderá dizer de todos
os outros que nos chegaram em fragmentos. E, contudo ... Não é bem
assim. Há em Parmênides uma característica que confere um peso sig-
nificativo ao que desconhecemos do poema integral. Mas considerare-
mos a questão daqui a pouco. Voltemos à história do poema.
Na Idade Média, o recurso ao pergaminho e ao trabalho dos
copistas conventuais tomou a tarefa de preservação do manuscrito me-
nos difícil. Até o problema vir a ser definitivamente resolvido pela inven-
ção da Imprensa. A partir daí o número de exemplares do texto passou a
ser potencialmente ilimitado. E, em conseqüência do fato, o problema da
fixação do texto converteu-se no oposto do que tinha sido até então.
É praticamente impossível que, em tantas cópias e recópias, ao
l.ongo de tantos séculos, não se tivessem introduzido diferenças, vari-
antes, erros de transcrição do original. Não é apenas a imperícia dos
copistas que tem de ser levada em conta (quantos compreenderam o
sentido do que tinham diante si?), mas a transformação das condições
de recepção do texto27 •
A comparação de versões diferentes de um mesmo texto dá
origem ao problema da reconstituição do original, o qual só pode
ser resolvido através de uma edição crítica. Todos os textos antigos
que conhecemos mereceram, pelo menos, uma edição crítica: um
cânone fixador das condições que regulam a sua leitura. Todos os
exemplares a que o público tem acesso nas livrarias são, ou estão
27
0s sinais de pontuação, os acentos, a convenção do intervalo separador entre as palavras escri-
tas, a normalização das regras de composição de textos escritos, sobre os quais assentam as nossas
regras de compreensão de textos, foram todos inventados mais de um século depois da criação do
Poema de Parmênides.
62
LJt~;-..;r:~:<·:~~i).f~r.r~· . . ::· :·\
P:~··:t t ...... -:" .......
63
/
64
outro lado, a interpretação apresentada deve ser abordada com os cuida-
dos necessários por todos aqueles que não são familiares com a
extensíssima produção de interpretações e comentários do poema.
Esta é só uma interpretação. Não está certa (se estivesse, não
seria uma interpretação). Não é definitiva. Há muitas outras noutras
línguas, que com ela não coincidem, e a que não se faz menção. Nem
sequer respeita as condições normais de cientificidade (a obrigação
de referência crítica à totalidade das edições e interpretações até hoje
apresentadas).
Como interpretação, pretende apenas contribuir para a compre-
ensão do poema e da função por este desempenhada na Filosofia e
Cultura Ocidentais. A medida em que este objetivo for atingido só
poderá ser dada pelo tempo. O esquecimento é o lugar onde repousam,
lado a lado, algumas das mais e todas as menos interessantes idéü.ts
que a Humanidade produziu.
l. Ü PROÊMIO
65
não tinha direitos adquiridos 30 - a ordem imposta pelo argumento de-
senvolvido, onde a "Necessidade" representa, por um lado, o esteio da
ordem divina, e, por outro, a incontomabilidade do argumento lógico.
Fragmento 1
30
Até aí - é esse o carácter distintivo das obras da tradição mitopoética - o recurso aos deuses
confere às mensagens o selo de autenticidade do saber. É típica a invocação das divindades para
atestar a origem das coisas: como elas eram "no princípio". Essa referência costuma ser feita
através de genealogias (veja-se, por exemplo, a Teogonia de Hesíodo: "Primeiro que tudo nasceu
o Caos, e depois a Terra, de peito ingente, ... e o brumoso Tártaro, .. . e Eros ... , etc.").
É a esta ordem que Parmênides opõe o rigor de um argumento dedutivo. Tal oposição é
apreciada por diversos comentadores como significando a emergência do lagos (discurso racioci-
nado, justificado racionalmente), que supera o mythos (mito, história fabulosa), mera narrativa
das origens, inventada pelo poeta, que alega tê-la recebido por inspiração divina.
31
Instrumento musical a que se dava o nome de "flauta de Pã", idêntico à nossa flauta de amolador.
66
~~~~·~NC~F\S~~~; .t\L~ f:. ~~:.· ·..
(~ ;~·:".: .: ') ·:··_:~ (~ •·•. ·· . ·: . , . r
.. -
f .
67
nação vem de lhe caber o encargo de manter o equilíbrio do todo,
assegurada pela retribuição de todas as faltas contra ele cometi-
das33. A noite e o dia (como as luas e o ano solar) são padrões
instituídos por essa ordem de que os deuses- em particular a Justiça
- são a garantia.
33Note-se no fragmento I de Anaximandro esta mesma observação: " ... E destes" [os contrários]
"vem a origem para as coisas que há e provém a destruição para essas coisas, 'segundo a necessi-
dade, pois prestam justiça umas às outras, pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo"'
(Anaximandro DKI2B I; Simplício Física 24, 13; as duplas aspas referem o texto de Simplício, as
simples, o do Milésio, que Simplício reproduz: vide José Trindade Santos, Antes de Sócrates,
Lisboa, 1992, 122-3).
68
1. 2 REALIDADE E APARÊNCIA
SENTIDOS DE "SABER"
69
de uma arte (technê) 36 • O saber pode dizer-se de um homem (ou de
animais: por exemplo, na Odisséia V 222-3, dos cavalos Troianos),
homem que possui um certo conhecimento, ou habilidade social-
mente reconhecida.
Em todas estas utilizações, contudo, a dimensão prática não exclui a
nota de interioridade, de intimidade até, com que a característica sapiencial
vem a manifestar-se. O "homem sabedor" (como aquele a que a expressão
de 1.3 alude) distingLie-se dos outros porque sabe e ao mesmo tempo "se
sabe". É este o sentido mais evidente do mote inscrito no templo de Delfos,
que através de Sócrates se tomará famoso: "conhece-te a ti mesmo".
Posta nestes termos, a questão parece simples, embora o não
seja, pelo fato de a diversidade referida nas linhas precedentes ser co-
lhida em textos e figuras separados por ma~s de 400 anos!
Considerada do nosso ponto de vista, a evidência assume a apa-
rência de uma evolução, em que o saber, incialmente virado para a
prática, começa a inclinar-se no sentido teorético: o do saber puro,
motivado pelo desejo de compreender algo, e não por qualquer finali-
dade concreta. Ora é no início do séc. V, com Heráclito (a quem a
d~mensão sapiencial não é alheia: "investiguei-me a mim mesmo": frg.
101) e Parmênides, que vemos o saber começar a ganhar esse sentido
teorético, ligado à investigação, com que se desenvolverá em Platão e
Aristóteles.
Para Heráclito há um saber37 , que, sendo de todas as coisas - do
mundo e da vida-, distingue o homem sabedor. Expresso na "mensa-
36
No saber confluem várias famílias de palavras de diferentes raízes, cujos sentidos vão, com o
tempo, sobrepor-se: os de raiz soph-, de onde derivam sophos e sophistês (sofista); os associados
ao verbo epistamai ("saber fazer", "ser capaz de fazer", mas também "compreender", mais tarde,
"saber cientificamente"; patente, por exemplo, em "epistemologia"); os de raiz tech-, que desig-
nam uma arte, mas só a partir de Platão começam a designar pessoas (technikos : "técnico",
"perito"); a que se acrescentam os tradicionais tanto os de raiz *oid-1 *eid-1 *id-, 'eidenai', em que
'saber' se acha associado ao ver; e ainda os de raiz gn-, por exemplo, gignôskein, que cobrem as
acepções sapiencial e epistêmica mais forte: "aprender a saber", "discernir", "conhecer" (que en-
contramos em "gnose", "gnóstico")- família extensa com muitos derivados.
37
"Um é o saber: [que] recusa e aceita ser chamado pelo nome de Zeus": frg. 32; "Um é o saber:
compreender a intenção que tudo governa através de todas as coisas": 41; "O saber é concordar,
ouvindo não a mim, mas o lagos, que todas as coisas são uma": 50; "De quantas mensagens (logôn)
ouvi, nenhuma chega a conhecer que o saber é de todas as coisas separadas": 108).
70
gem" (lagos) que o pensador divulga aos mortais, sustenta, entre outras
teses, que "os contrários" sempre se referem, ou supõem, a subjacente
unidade. E o Efésio38 raro perde a oportunidade de insisitir em que este é
"o saber" que corrige todos os outros, que antes eram tidos por saber.
Não tem um alvo preferido. Alguns são visados: Homero e
Hesíodo, em particular. A razão invocada é " ... saberem muitas coi-
sas" (frg.40). Mas o frag. 57 é mais claro: Hesíodo distinguia os opos-
tos, quando " ... são um e o mesmo". É essa a nota a que o lagos volta
sempre: à defesa da unidade, subjacente á aparente separação dos
contrários.
71
Tradicionalmente, a cosmologia é a disciplina que se dedica ao
estudo do cosmo (da origem do universo e da ordem que o caracteri-
za40). A inovação de Parmênides reside no modo como a reflexão vai
separar estas duas questões uma da outra. Aceitando a ordem como
um fato, desinteressa-se da sua origem para se concentrar no próprio
saber.
Ou seja, em vez de perguntar- qual é a origem do cosmo? -e de
responder - "é a água", ou "o ar", ou "os contrários" - opta por se
concentrar na natureza própria do s@ey, que demonstra ser indissociável
-
da do ser. É assim que a ontologia se sobrepõe à cosmologia.
H á, contudo, que estabelecer uma distinção. A abordagem de
uma e outra é radicalmente distinta, e não pode ser confundida. A
cosmologia começa pela pergunta, e foi assim que se manifestou "nos
que primeiro filosofaram": pela pergunta que questiona a ordem e se
interroga sobre ela- "por que a ordem e não a desordem?", "por que
esta ordem?"41
Ora, ao sustentar- "a origem do cosmo é a água", ou "o ar", a
cosmologia apresenta uma diversidade de respostas à pergunta. E a
indefinição criada pela pluralidade é que justifica a crítica): "por que esta
ordem?" - não haverá outra ordem mais funda, subjacente a ela? Estas são
as perguntas implícitas na crítica de Heráclito à cosmologia tradicional.
Esta é também a pergunta implícita na crítica apresentada pela
deslocação da reflexão para a ontologia. É, contudo, claro que, ao
contrário da cosmologia, a ontologia não nasce do espanto, nem come-
ça explicitamente como pergunta. Ao voltar as costas à interrogação
sobre a origem do cosmo, o pensador ultrapassa o estágio do espanto
em brenha-se na senda da reflexão. À cosmologia, Parmênides limita-se
a opor a postulação do ser.
40
O termo grego kosmos começa, com Heráclito (frgs. 30, 124) e Parmênides (frg. 4. 3; 8. 60),
a designar ao mesmo tempo o mundo e a ordem que lhe confere sentido.
41
O "filósofo" dá-se conta da ordem do cosmo e espanta-se com ela. Os sinais mais evidentes dessa
órdem acham-se nos movimentos dos astros, na sucessão das estações, no ritmo dos dias e noites,
etc. Essa é a razão pela qual o saber mais antigo e venerável, que os Gregos receberam do Oriente,
versa sobre a astronomia
72
I
I
I
I
Significa isto que a resposta à pergunta sobre a ordem deixa de I
I
ser dada pela descrição desta, ou daquela ordem. Mas pela resposta
I
"é": a ordem "é". Neste sentido, "é" é uma resposta. A resposta. Não é
I
pergunta, nem admite a pergunta: "por que o ser? Por que é que "é"? I
(vide frag. 8. 15-21). I
I
I
1.2.2 Á REALIDADE/VERDADE CONTRA A APARÊNCIA ENGANADORA I
I
I
Agora que a intenção epistêmica que a anima se manifestou ex-
I
plicitamente, com o início do discurso da deusa surgem as primeiras
I
dificuldades de interpretação da mensagem que, através de Parmênides,
aquela dirige aos homens. As suas palavras de acolhimento indiciavam
já o tratamento de exceção que reservava ao jovem. A motivação do
l
"tudo" foi já aclarada. Falta enunciar as suas conseqüências. "Tudo"
abarca não apenas a realidade/verdade, como ainda "as crenças dos
mortais". A obrigação de recolher ambos os ensinamentos é indicadora
de uma intenção programática, adiante explicitada (vide frag. 7. 5).
Mas confirma ainda a indistinção, para nós dificilmente compreensível
(presente já na associação da verdade à realidade), entre os fatos, as
coisas, e os discursos, os dizeres, que os fixam 42 •
Na tradição poética, Parmênides começa por recorrer aos deuses para
garantir a autenticidade da sua mensagem. Todavia, inova, em relação aos
poetas, por apresentar um argumento reflexivo, autenticamente filosófico,
que explora uma evidência, característica de todas as mensagens que, a um
tempo, instituem (dizem que há) e constituem (dizendo como é) o saber.
42
Significa isto que na tradição recuperada, constituída e comentada por Aristóteles e pela sua
Escola, a partir do séc. IV, é através do estudo das opiniões dos pensadores mais antigos que a
realidade pode ser estudada.
Por exemplo, uma pergunta como- "por que é que a Lua tem fases?"-, feita e refeita ao longo
dos séculos, constitui a evidência de um problema (uma "aporia", diz Aristóteles na Metafisica B;
ver a nota 12: 3. 1. 1) que interessou os pensadores, e para o qual estes apresentaram as suas
respostas. O filósofo deve partir da evidência destes "problemas" , que por um lado, apontam o
caminho a seguir pelas suas investigações; por outro, desvendam a estrutura problemática da
própria realidade.
73
~
Não se limita a afirmar: este é o saber! Vai mais longe, explican-
do como e porque é saber. É saber porque é apresentado na forma de
um argumento, como veremos a seguir (frags. 2, 3). Mas, como "é"
acerca daquilo que refere, não pode distinguir-se disso.
A idéia, que talvez nos pareça ingênua, é a de que a verdade
sobre qualquer coisa é antes de mais a própria coisa (noutros termos,
que a coisa institui o critério de verdade sobre si própria). Não é um
processo muito diferente do que adotam os que jogam às moedas, ao
exibirem, depois das apostas, as que escondem dentro das mãos. Afi-
nal, se a verdade e a realidade fossem duas, não poderiam ser nem
uma, nem outra coisa.
'Verdade' e 'realidade' são, portanto, uma e a mesma. É por
isso que são saberes. Mas então, se assim é, também o saber será isso
mesmo: realidade e verdade - duas coisas iguais a uma terceira são
iguais entre si. Nem poderia ser de outro modo. O argumento começa
pôr explorar uma identidade, que se expande até definir um domínio
fechado, circular: a verdade é o que "é verdade"- o saber é verdade
porque é a Verdade. Esta circularidade determinará posteriormente a
oposição àquilo que, por um lado, exclui, mas, por outro, a
complementa (frags. 2+3, 6, 7) .
Por agora, o que ressalta é a complementaridade entre a verdade
e as crenças dos mortais, que a conclusão do frag. 1 caracterizará.
74
A expressão não é minimamente esclarecedora. Será preciso es-
perar pelos frags . 6 e 7 para lhe compreender o sentido. Há, contudo,
nestes dois últimos versos um jogo de relações paralelas, que delimita a
complementaridade entre a realidade e a aparência, embora esta só se
torne evidente nos termos gregos.
A realidade/ verdade (Alêtheia) é fidedigna (eupeitheos 43 ). Nas
crenças (doxas) dos mortais não há "confiança verdadeira" (ou pistis
alêthês). As aparências são "aparentemente" (ta dokounta ... dokimôs
einai : a aparência é o seu modo próprio de serem). Deste modo a
concessão ou negação da confiança estabelece a complementaridade,
como primeiro grau da oposição, entre a verdade e as crenças: de um
lado, a confiança (peith-/pist-), do outro a aparência (dok-).
Em suspenso fica o 2° hemistíquio (meio verso) de 1.32. Que
pode querer a deusa dizer com "passando todas através de tudo"? A
aparência fica envolvida no seu argumento a partir do frag. 6. Mas a
questão só receberá tratamento adequado nos frags.'7 e 16 (embora os:
frags. 8.38-41, 9.1 e 19 se lhe possam referir através da inclusão dos
"nomes"). O recorte poético da frase não nos permite por ora avançar
mais, para além de um envolvimento entre a verdade e as crença~ dos
mortais, a realidade e a aparência. O modo que comanda este
envolvimento terá de ser aprofundado mais adiante (frag. 6).
Mas o fragmento 1 interrompe-se aqui, após a explanação da
complementariedade dos conteúdos sobre que versará o ensinamento
da deusa. A eles passaremos em seguida.
43Pist- (vocalismo zero) e peith- (vocalismo e) são formas antigas da mesma raiz. Os significados
são: 'confiança', 'fé', garantia'. Peithô é a deusa da persuasão; e o verbo peithomai significa 'ser
persuadido', 'obedecer'.
75
2. A via da Verdade
Fragmento2
76
UN!\JERS!OAOE FG• · - -
8!PUOTF'.". S -- •·
1. afirmação;
2. negação;
3. afirmação da afirmação;
4. afirmação da negação;
5. negação da afirmação;
6. negação da negação.
77
cos que a tradição instituiu como tutelares do pensamento: 1. identida-
de (A=A); 2. contradição (Al_A); 3. terceiro excluído (AV_A). Por ou-
tras palavras: 1. a afirmação é igual à afirmação e a negação à negação;
2. a afirmação é diferente da negação; 3. entre a afirmação e a negação
não há meio termo.
78
2.1 [por ela poder ser uma infinidade de coisas];
2.2 [portanto, nenhuma delas, ou seja "nada"];
3. [então] não é possível negar;
3.1. [e] não é possível dizer falsidades (coisas que não existem e/
ou não são verdade)
Esta conclusão tem muito que se lhe diga, sobre que não é opor-
tuno adiantar nada agora.
Fragmento3
79
Fragmento 2+3
80
A que título se fala de "caminhos"? Seria mais próprio falar
em "quem" pensa e "naquilo" em que se pode pensar. Mas essa
atitude, tão natural para nós, decerto não o seria para Parmênides.
Referir o pensamento a um sujeito e a um objeto iria contrariar a
tese do Eleata, para quem "pensar" e "ser" se identificam. Mas
afinal que é o ser?
Vamos à primeira. A deusa não nos quer dizer "o" que é e que
não é, obrigando-nos a fazer conjecturas. Mas também pode ser que
não o diga pel9 fato de não poder. Em que nos apoiamos para susten-
tar esta eventualidade? Não é difícil responder à pergunta. Como vi-
mos, todo o argumento explora o regime de oposições, puramente for-
mal, entre os dois caminhos. De início não interessa o que é afirmado,
ou negado, mas apenas o fato de: 1. tanto a afirmação quanto a nega-
ção serem idênticas a si mesmas; 2. diferentes uma da outra; 3. nada
haver para além de uma ou outra.
81
Mas depois o argumento surte efeito. Da indefinição 46 da via
negativa resulta a sua exclusão. Nessa altura, porém, a deusa já pode, e
até deve, dizer "o" que é excluído. E o diz claramente em 2. 7: é o "não-
ser". Pelo contrário, a via que resta e se identifica com "o pensar" é a de
"o ser" (frag. 3). Temos, portanto, razões para crer que "o" que é é "o
ser", tal como "o" que não é será o "não-ser". Enunciados completa-
mente, então, os dois caminhos são: "[o ser] é" e "[o não-ser] não é".
Este problema já está resolvido.
46
Podemos tecnicamente dizer "irreferencialidade". O termo negativo não "indica" nada, não
refere nenhuma entidade que se possa designar. Daí resulta a sua incognoscibilidade. E desta a sua
exclusão como "pensamento". Desta, por sua vez, decorre a identificação do "ser" e do "pensar".
47
Quanto a este último sentido, vide a nota seguinte. Quanto à exemplificação dos diversos exemplos em
linguagem atual, manifesta-se um pequeno problema. As dificuldades levantadas pela ambiguidade de
einai obrigaram, noutras línguas, à invenção de verbos e expressões verbais para sentidos distintos do
predicativo. É o caso de 'existir', o de "ser igual a" e o de 'é verdade (que)'. Por essa razão é-nos difícil
encontrar exemplos que, em linguagem de todos os dias, exprimam esses sentidos com o verbo 'ser'.
Mas é simples compreender as quatro consequências fundidas na afirmação da ordem (vide
atrás 1. 2. I). "A ordem (o cosmo) é" significa: I: o mundo é ordem; 2) a ordem é a ordem; 3) a
ordem existe; 4. a 'afirmação da ordem' é verdade.
48
C. Kahn The Verb 'be' and its synonyms. Philosophical and grammatical studies edited by fohn
W M. Verhaar. The verb 'be' in ancient Greek, Dordrecht/Boston, 1971, 335, 342 encontra ainda
um quarto sentido: o veritativo - que" ... expressa a verdade de declarações e o reconhecimento de
serem assim os fatos e os estados das coisas". Assentindo com Kahn na relevância deste quarto
sentido de einai (que aprofunoa à indistinção entre "fatos" e "ditos"), parece-nos que podemos
entendê-lo como um alargamento ao discurso do sentido identitativo.
82
I
I
deles. É costume ditingui-los, referindo-os como utilizaçoes completa (que
I
dispensa complemento: o terceiro) e incompletas do verbo 'ser'.
I
Ora, no frag. 2, o verbo apresenta um uso completo: I
I
3 um que é, que não é para não ser,
5 o outro que não é, que tem de não ser, I
I
Não implicará esse fato que deva ser traduzido pela forma com-
I
pleta: "existe"? À primeira vista, sim. A tradução "existe" assenta perfei-
tamente no texto. Todavia, o motivo acima manifesto (a impossibilidade j
de dizer "o" que é e "que coisa é") continua a valer: a deusa tem de
manter ocultos o sujeito e o nome predicativo de o "que é". Isto significa
que as três acepções do verbo são possíveis.
Por esta ordem de idéias, apesar de um número considerável de
ilustres tradutores e comentadores do poema o terem vindo a fazer, não
parece legítimo isolar uma das leituras do verbo, quando isso é feito em
detrimento das outras. A ambiguidade de einai deve ser respeitada49 • De
resto, a interpretação acima apreseotada (que se apoia na irreferencialidade)
dispensa perfeitamente a tradução existencial50, sem lesar o argumento,
nem distorcer o seu contexto cultural. A melhor tradução será então aque-
la que respeita a ambiguidade de einai, possibilitando as três leituras do
verbo: é. Este problema pode também dar-se por resolvido.
49 Havendo pelo menos dois motivos de ordem histórica para a manter. Um é o modo como o
sofista Górgias a explora no seu Da natureza, ou do não-ser, texto composto com a intenção de
subverter o argumento da deusa (DK82B3). O outro é o diálogo O sofista, de Platão, onde as três
leituras de einai são pela primeira vez, e definitivamente, desambiguadas (ver adiante 4. 3. 2).
Significa isto que cada uma das leituras é identificada e posteriormente explicada pelas estruturas
ontológica da realidade (os "cinco gêneros supremos") e lógica do discurso (as relações de inclu-
são e exclusão entre cada um dos gêneros).
50
Dois famosos comentadores, por vias diferentes, defendem esta interpretação. Charles Kahn,
Op. cit. 321-370; além de numa série de opúsculos dirigidos contra a leitura existencial de einai.
A mesma tese é sustentada num dos mais estimulantes comentários do Poema de Parmênides: A. P.
D. Moure1atos, The Route ofParmênides. A Study ofWord, Image andArgument in the Fragments
, New Haven & London, 1974.
83
2. 1. 7 UMA AMBIGUIDADE NO SENTIDO DE TO EON
84
Esta ambiguidade, que originalmente pesaria sobre os nomes pró-
prios54 , vai afetar toda a compreensão do poema e manifestar-se em
todos os pensadores que não conseguiram escapar à força do argumento
da deusa: e não houve nenhum capaz de a ele se subtrair. É ela que nos
vai conduzir à maior dificuldade que nos é posta pela interpretação do
poema: afinal o que é o ser?
2. 1. 8 Ü SER.
aristotélico), materialidade, finalidade, ou ainda do do seu autor, criador. Cada uma destas é um
modo de dizer a causa. Vejamos, por exemplo, o que é um sapato? Enquanto sapato, cada um pode
ser encarado como "uma peça de calçado" (forma), um objeto de couro, ou plástico, ou madeira,
etc, (matéria), que serve para calçar, proteger o pé (finalidade), ou ainda "peça criada pelo sapatei-
ro" (causa eficiente, o criador).
85
Com esta emenda de Parmênides, Aristóteles resolve algumas di-
ficuldades - lógicas e metafísicas -, criadas pelo ser eleático. Por um
lado, dissolve o mistério de "o ser" através de uma série de distinções;
mas, por outro, recusa, ou adia, o confronto com ele.
Ora esse mistério, podemos expressá-lo em diversas perguntas. Como
terá Parmênides chegado ao ser? Quais sao as conseqüências da aceitação
do argumento da deusa? A segunda pergunta tem resposta na continua-
ção do estudo do poema. Mas a primeira deve ser respondida agora.
O ponto de partida de Parmênides é o pensar. Vê o pensamento
como realizando duas funções: afirmação e negação. Cada uma destas
é idêntica a si mesma e diferente da outra; não havendo outra alternati-
va além delas. Até aqui o raciocínio nada tem de problemático. Mas
agora a deusa vai como que tirar um coelho de dentro do chapéu.
A afirmação afirma: diz "é". E "o" que é é aquilo "que é". Tudo
bem. Pelo contrário, a negação nega. Mas "o" que é que nega? Não
pode ser "aquilo que é", porque então de "o que é" diz "não é" (o que é
impossível, porque a afirmação e a negação se opõem). Mas, por outro
lado, também não pode negar "aquilo que não é", porque "não é" ou
não existe, ou não se sabe do que se está a falar (seja como for não se
está a falar de nada). O simples fato da negação implica, portanto,
conseqüências inaceitáveis, visto ser ou contraditóris consigo própria,
ou absurda (como é que se pode negar aquilo que se desconhece?)
Definem-se assim dois continentes incomunicáveis. De um lado,
o pensamento, a afirmação, a realidade, a verdade. Do outro, ainda o
pensamento, a negação, a irreferencialidade/inexistência, a falsidade.
Todavia, como as conseqüências da negação são todas impossíveis, esta
é eliminada como pensamento. Donde resulta a identidade entre pen-
samento e ser.
O que é então "o ser"? É o único domínio em que a afirmação, a
realidade e a verdade coincidem. "O ser" é tudo aquilo a que se pode
chegar a partir do pensar. Logo se percebe que é o único pensamento
possível: todo o pensamento, o único lugar onde o discurso e a realida-
86
de se encontram: a verdade (tal como na afirmação "é" coincidem a
predicação, a existência e a verdade). É quase o que está dito em 6.1:
87
esquecimento a que a alma é forçada ao entrar no corpo, como nota
Platão no Pedro (246 b-250 c; vide República X 621 a; Fédon 75 d).
Todavia, a fecundidade filológica da tese não faz jus ao argumento
de Parmênides. Como o próprio Heidegger nota60 , a verdade institui uma
dupla concordância: entre a coisa e o discurso sobre ela, entre a coisa e ela
mesma (poderia fala-se de essência, mas não é preciso). Um exemplo: uma
moeda de cinco escudos. A afirmação "Esta é uma moeda de cinco escu-
dos" é verdadeira se o objeto indicado por "esta" for de fato uma moeda
de cinco escudos (e não de dez, vinte, etc.): este é o registo da verdade,
como adequação da nossa compreensão à própria coisa. Mas pode acon-
tecer que a moeda seja falsa. Nesse caso "esta" é uma moeda de cinco
escudos, mas não "é" o que parece: este é o registo da autenticidade, como
adequação da coisa à nossa compreensão.
Ora o argu111ento de Parmênides caracteriza-se pela integral fu-
são destes dois registos. "O ser é" é o pensamento em que a realidade
(autêntica) e a verdade coincidem. Todavia, como a continuação do
argumento vai mostrar, uma vez que só "o ser" é, porque só o ser é real,
esta única afirmação acarreta não a falsidade (de resto, 'falsidade, ou
'falso', são termos de todo ausentes do poema), mas a impossibilidade
de qualquer outra.
Por esta razão, preferimos acentuar o registo da autenticidade,
traduzindo alêtheia por 'realidade' (mais do que o outro ele é revelador
do argumento). Por outro lado, o registo da verdade sugere a competi-
ção entre proposições, pertinente no nosso mundo, porém, deslocado
num contexto em que uma única proposição é possível ("é").
60
Tradução francesa da Op. cit.: "De l'essence de la verité", Questions I, Paris, 1968, 159-192
(vide 163-8).
88
~I
I
6. A apresentação seqüencial levanta, porém, um problema: o da loca-
lização dos frags. 4 e S. Sem outras razões que não as que o bom-senso I
lhe ditou, Diels incluiu-os entre B3. e B6. Se os tirarmos daí, onde
poderemos pô-los? Não há muitas opções. Vejamo-las. I
fragmento 4 I
fragmento 5
~
por onde hei-de começar: pois aí tornarei de novo.
1. Entre Bl e B2.
É uma possibilidade. O frag. 5, pe!a sua referência ao começo e
ao retorno a ele, poderia ser colocado em qualquer local. Mesmo antes
do início do argumento do frag 2. Já, pelo contrário, o frag. 4, pela I
inclusão da referência a to eon, estaria aí desajustado.
2. Entre B2 e B3. · I
Ninguém advoga esta inserção. Mesmo aqueles que não encaram
B3 como a conclusão natural de B2 não vêem sentido na proposta. j
3. Entre B3 e B6.
É a leitura tradicional, cujo único inconveniente reside em cortar J
J
ficar juntos, poderia explorar-se a possibilidade de o separar de B5,
que, como vimos, não ficaria mal antes de B2.
A ordem proposta será então Bl, B5, B2, B3, B6, B4, B7. Aí
entroncao frag. 8, que conduz à Via da Opinião, na qual B4 e B5 não
parecem ter lugar.
Quanto ao sentido destes fragmentos, não parece pôr qualquer
dificuldade. B5 prefigura, ou comenta, a circularidade do argumento
da deusa, à qual já fizemos referência. B4 contempla a unidade do ser,
confrontando-a com a separação, produzida e justificada pela experi~
ência da sensibilidade, como o frag. 7 proclamará. Como é que "o ser"
pode aparecer separado na diversidade sensível? Como é que pode to-
lerar, na diversidade, a unidade parcelar de cada uma das coisas? São
perguntas para que não é oferecida resposta. Contudo, a advertência
insere-se perfeitamente após a condenação expressa no frag. 6, desen-
volvida num sentido metodológico no frag. 7.
fragmento 6
90
lÊ~:g[\!EF:!S'U'J;tJt-\:. r-~~~~~· ,: .
F:~~~ .{C!~~-;~~c ~\ c~-.. --.i.
I
I
nada. Resta o ser como possível. Sendo, porém, o único, é forçoso que
I
seja. A única possibilidade converte-se em necessidade. Em B3 a elimina-
ção do não-ser conduz à identificação do ser com o pensar. Em B6.1 é o
I
fato de nada poder resultar do nada que eleva a possibilidade à necessi-
dade. Mas o argumento vai prosseguir num sentido inesperado. I
I
2. 2. 1 UMA TERCEIRA VIA
I
[. .. ] isto te ordeno que medites.
Desta primeira via de investigação eu te <afasto>61 , J
e logo também daquela em que os mortais, que nada sabem, j
vagueiam, com duas cabeças: pois a incapacidade
lhes guia no peito a mente errante; e são levados,
surdos e cegos, a um tempo, estupefatos, multidão indecisa,
que acredita que o ser e o não-ser são o mesmo
e o não-mesmo, para quem é regressivo o caminho de todas as coisas.
E eis que subitamente uma terceira via se ab're, para logo se fe-
char. Aquela em que "vagueiam os mortais", que ainda não aprende-
ram a respeitar a oposição do ser ao não-ser e por isso os confundem.
O argumento da deusa regressa à eliminação da via negativa e às con-
seqüências dela decorrentes.
Os insultos de que os homens são alvo operam em dois registos.
De um lado, os que denunciam a sua dupla natureza (que o frag. 16 irá
aprofundar): "duas cabeças", "mente errante", "multidão indecisa", que
confunde o ser com o não-ser ora sustentando que é, ora que não é. Do
outro os que evidenciam as causas da sua incapacidade: surdos, quan-
do julgam ouvir, cegos, quando crêem ver, estupefatos, quando imagi-
nam que, falando, dizem alguma coisa.
61
Se aceitarmos a reconstituição proposta por Diels, não é muito clara a referência à "primeira via
de investigação". Qual é ela? Suponhamos que se trata da via negativa, aceitando a conjectura
consensualmente aceite. Um modo mais claro de dizer seria: "esta é a primeira via de investigação
de que te afasto, mas logo também daquela ... "
91
De início tanta veemência é surpreendente. Depois, com a continua-
ção da leitura do poema percebemos que desde sempre foi aqui que a
deusa quis chegar. A eliminação da segunda via, do não-ser, não é mais do
que o instrumento que lhe vai permitir chegar às crenças dos mortais, à
explicação de por que é que "passam todas através de tudo" e finalmente à
lição que lhes possibilitará a correção do erro em que laboram. De resto, a
radical alternativa entre os dois caminhos esboçados no frag. 2 seria bas-
tante para excluir um meio termo: a aparência, "que é e não é".
fragmento 7-8
Pois nunca isto será demonstrado: que são as coisas que não são;
mas afasta desta via de investigação o pensamento,
não te force a este caminho o costume muito experimentado,
deixando vaguear olhos que não vêem, ouvidos soantes
e a língua, mas decide pela razão a prova muito disputada
de que falei. [. .. ]
92
Mas B7. 5 confere à injunção divina um contorno inteiramente
novo, também ele inesperado. Contra a entrega ao costume da prática
sensível advoga a deusa o exercício da razão, através da "prova muito
disputada" (é evidente - e pretendemos mantê-lo na tradução- o para-
lelo da expressão com o "costume muito experimentado" de 7. 3).
A lição é de enorme alcance. Levanta, porém, nada menos de três
questões de tradução, que convém esclarecer previamente.
A primeira tem a ver com "decide" (krinai) . A 'decisão' desempe-
nha uma função capital na economia da mensagem divina. Em B6. 7 a
"multidão indecisa" (akrita phyla) é a que hesita entre o ser e o não-
ser, confundindo um com o outro. Em B8. 15-16, a "decisão" (krisis)
consiste precisamente na oposição do ser ao não-ser, com que é mister
contrariar a '"mistura' (krasis) dos membros errantes" de B16. 1. I
A segunda é a 'razão'. O termo usado é lagos. A oposição· à I
sensibilidade sugere encontrarmo-nos perante o apelo à faculdade J
93
Levando inteiramente a sério a exortação divina, o que, na com-
plexidade dos sentidos que permite, o verso sugere é que o jovem se
deve entregar à defesa do argumento (que argumento? Aquele "de que
falei" - B7. 6a) através do debate. Não é possível exagerar a importân-
cia e as conseqüências deste conselho. O que a deusa está a aconselhar
o jovem a fazer é a confrontar-se pelo debate com todos aqueles que
contrariem a força do argumento expendido. E a entrada direta no
assunto, ao longo de todo o frag.8, enuncia as principais teses às quais
há que opor a força da razão/argumentação.
2. 2. 4 Os SINAIS DO SER
94
falar, nem pensar: pois não é dizível, nem pensável,
visto que não é. E que necessidade o impeliria
1O a nascer, depois ou antes, começando do nada?
E assim, é necessário que seja de todo, ou não.
Nem a força da confiança consentirá que do não ser
nasça algo ao pé do ser. Por isso nem nascer,
nem perecer, permite a Justiça, afrouxando as cadeias,
15 mas sustem-nas: esta é a decisão acerca disso -
é ou não é - ; decidido está então, como necessidade,
deixar uma das vias como impensável e inexprimível (pois não é
via verdadeira), enquanto a outra é e é autêntica.
Como poderia o ser perecer? Como poderia gerar-se?
20 Pois, se era, não é, nem poderia vir a ser.
E assim a génese se extingue e da destruição se não fala.
64
Alguns intérpretes interpretam "sem fim" (ateleston) como "infinito", com o sentido que habitu-
almente atribuímos hoje a esta noção (por exemplo, R. Mondolfo, El Infinito en el pensamiento de
la Antiguedad Clásica, 1942 trad. port. : O Infinito no Pensamento da Antiguidade Clássica, S.
Paulo, 1968, 101, 344-8). Não podemos estar de acordo, por razões textuais e culturais. Em
primeiro lugar, por entrar em contradição (apesar do que sustenta Mondolfo) com outros atributos
do ser, expressos mais adiante: ouk ateleutêton : "não incompleto" (B8. 32; tetelesmenon pantothen,
"completo por todos os lados": B8. 42-3. Finalmente, por, com excepção de Melisso (por isso
criticado por Aristóteles, que, na Física A, recorre a ele para refutar o ele~tismo : vide Sobre a
geração e a corrupção, A 8, 325 a3 segs.), a generalidade dos pensadores gregos encararem o
infinito negativamente, como uma carência de forma, de fim.
65
Se não acaba, não tem fim. Logo é infinito. A contradição com o que sustentámos na nota
anterior é aparente e será resolvida mais adiante (vide B8. 43 segs).
95
te, uno, homogêneo e contínuo. Sem admitir outro além dele, e,
no seu seio, pregas, ou partes.
A novidade surge agora, com a interrogação sobre as razões que
justificariam uma qualquer origem, ou fonte de alterações de que o ser seria
produto. Não pode haver nenhuma. Porque a única que se imaginaria só
podia ser o não-ser. Todavia, a indizibilidade e impensabilidade deste,
justificada pela sua impossibilidade, impedem-no. O questionamento das
razões para que algo seja, ou melhor, a idéia de que para tudo tem de haver
uma razão de ser, manifesta a primeira aparição de um "princípio da razão
suficiente". A falta de uma razão suficiente, na duração (8. 10) e no lugar (8.
13), proíbem a origem e a destruição do ser. Ou seja, carecendo de razão
para nascer, ou morrer, num qualquer momento, ou determinado lugar,
impedem-nos de pensar que foi gerado, ou será destruído. Ficará, pois, con-
tido num eterno presente, sem passado nem futuro, de onde não pode sair.
2. 2. 4. 2 É INDIVISÍVEL.
96
vNíVEHStD:-\L!:: t;: ~.
P;:Ri f:~)Tt::Cl~ C: ..~(.j·~ t.
2. 2. 4. 3. É IMÓVEL.
97
te" que ele (DK30B8) 67 • O primeiro com uma série de argumentos que
atestam as impensáveis conseqüências da adf!lissão do movimento e da
mudança68 •
Todavia, a experiência do movimento e da mudança é demasia-
damente frequente para poder ser erradicada da mente. Na tradição
reflexiva, três pensadores vão tentar acomodá-la à veemência do inter-
dito eleático: Empédocles, Anaxágoras e Demócrito.
Reinterpretando poeticamente o ser na forma de quatro ele-
mentos divinos e eternos, Empédocles explica movimento e mudança
como a "dupla história" da mistura e separação destes. O àrtifício
reside na preservação da identidade de cada um dos elementos de
cuja combinação deriva a ordem do mundo em que vivem os homens.
Enquanto estes se mantiverem unos e imutáveis, as conseqüências da
violação do argumento da deusa não se tornarão efetivas. Torna-se
assim possível conceber toda uma teoria do devir. Embora a difícil
coabitação da razão e da sensibilidade se faça com o sacrifício da
visão ingênua do mundo 69 •
Análoga reinterpetação do ser eleático é levada a cabo por .
Anaxágoras e pelos Atomistas: para o primeiro, o ser é constituído por
partículas infinitamente divisíveis, nas quais se acham todas as coisas;
para os segundos, por mínimos indivisíveis: os átomos. Postulando a
infinita divisibilidade das suas partículas, Anaxágoras adia indefinida-
mente o problema da sua identificação: resolve assim a mudança na
suspensão da identidade (se uma coisa não é isto, ou aquilo, também
não deixa de o ser).
Mais fecunda é a solução atomista, que explica a diversidade
pelo número infinito e pela não menos infinita variedade de átomos,
cujas propriedades resultam exclusivamente da sua forma, e da posição
e disposição com que se combinam uns com os outros. Ao moverem-se
67
Ver a análise deste argumento em Kirk & Raven, Op. cit. 315; ou em José Trindade Santos, Op.
cit. 193-5.
68
Vide Kirk & Raven, Op. cit., 299-305; J. T. Santos, Op. cit., 188-92.
69
Vide J. T. Santos, Op. cit., 214-8.
98
no vazio, os átomos chocam e emaranham-se, dando origem aos mun-
dos e a tudo o que neles há. Como se vê, a proibição eleática não é
violada, uma vez que a contrariedade qualitativa fica subsumida na
unidade física (os átomos são compostos sempre pela mesma "maté-
ria"), e a mudança ocorre sem que a identidade do ser seja beliscada.
2. 2. 4. 4. É COMPLETO.
Sem origem, nem fim, indivisível, imóvel, ao ser nada falta (ao
contrário do que acontece ao não-ser) . Está, portanto, completo. O
- I
que significa que se não acha em processo, à espera do que quer q~e
seja que se lhe acrescente, ou seja retirado.
A tese da completude do ser complementa a da sua imobilidade e
imutabilidade. A influência que exerce na tradição é, como se viu, deci-
siva. Todavia, as mais ambiciosas teorias sobre o movimento e a mu-
dança no pensamento grego são as de Platão e Aristóteles, cada uma
das quais exigiria não menos de um livro para poder ser apresentada.
2. 2. 5 SUMÁRIO
° Como uma noiva a um noivo, é a idéia expressa pela utilização do verbo phatizô.
7
99
não acharás o pensar. Pois não é e não será
outra coisa além do ser, visto o Destino o ter amarrado
para ser inteiro e imóvel. Acerca dele são todos os nomes
que os mortais instituíram, confiantes de que eram reais:
"gerar-se" e "destruir-se", "ser e não ser",
"mudar de lugar" e "mudar a cor brilhante".
2. 2. 5. 1 0 PENSAMENTO E OS NOMES
100
2. 2. 6 A ESFERA
3. A Via da Opinião
101
3. 1 Ü ALCANCE DA VIA DA VERDADE
102
tiF.J~\/~T<.StG.6; --~.J.=:. {=-~;;_·· ---. --~ ..
r:·- _ ~,.-~ ·~_"}1.-F< -!·_ ~ • • i.:
72
Como vimos, Zenão e Melisso aprofundaram as conseqüências da sua mensagem. Empédocles,
Anaxágoras e os Atomistas reinterpretaram-no (conferindo novos sentidos ao ser). Platão e Alistóteles
construíram amplas sínteses do saber grego, a partir da aceitação da identidade do ser e do saber. Os
sofistas entragaram-se à desvalorização do saber (Górgias), ou à reabilitação da aparência (Protágoras).
103
além de uma oposição de fundo nas obras dos dois pensadores 73 , tor-
nou-se habitual afirmar que o poema visava, na realidade, as doutrinas
do Efésio. Mas já muito poucos sustentam hoje essa tese.
Não é, porém, forçoso personalizar a questão. Mesmo sem ter de
pensar nesta ou naquela figura da tradição, não há dúvida de que o poema .
critica todos aqueles que- e quantos o não fizeram?- antes de Parmênides
apontaram uma origem para o cosmo. Ou os que consentiram uma emer-
gência dos contrários (Anaximandro: DK12A9; vide Aristóteles Física A
4, 187 a20 segs.; Pseudo-Plutarco Strômateis 2). Mas decerto a denegação
de alcance epistêmico às conjecturas dos mortais não podia deixar de visar
as discussões entre intelectuais, que terão constituído o verdadeiro suporte
para a transmissão oral das opiniões "dos que primeiro filosofaram".
Para todos esses, e ainda naqueles em quem, como em Parmênides
e Aristóteles, é notável a indistinção entre "fatos" e "ditos'~ (para o
Eleata vide atrás 1. 2. 2; para Aristóteles Metafísica B 174 ), a investiga-
73
A contradição de fundo reside na radical oposição entre uma defesa da identificação da realidade com
o movimento- "tudo flui" (Platão Crátilo 440 c)- e com o repouso (Parménides frag. 8. 26 segs); a
coincidência superficial é entre a palintonos [ou palintropos] harmoniê de Heraclito ("Não compreen-
dem como o que difere consigo mesmo concorda: como a harmonia de tensões opostas [ou reversível]
entre o arco e a lira": BSl) e o palintropos keleuthos (o "caminho reversível") de Parménides B6. 9.
74
"Em relação à ciência que estamos a investigar [a Metafísica], é necessátio examinar primeiro as
apórias (aporêsai) que começam por se nos apresentar, as que acerca dessa questão outros conside-
raram, bem como o que fora delas terá sido omitido.
Os que querem ultrapassar as a porias (euporêsai) hão-de começar por explorá-las bem (diaporêsai
kalôs), pois a posterior ultrapassagem das a porias (euporia) resulta de se desenvencilharem das
aporias anteriores (lysis tôn proteron aporoumenôn), e não se desenvencilha quem desconhece o
nó, além de que a aporia da reflexão aponta para a da coisa, visto que quem está na aporia (aparei )
fica imobilizado, como quem está amarrado: um e outro são incapazes de avançar em frente.
Por isso se torna necessário contemplar primeiro todas as dificuldades, não só pelo que foi dito,
mas porque os que investigam sem terem explorado antes as apotias (diaporêsai prôton) são semelhan-
tes aos que ignoram onde devem it; por nem sequer saberem se encontraram o que buscavam; pois a
finalidade [da investigação] só é manifesta a quem previamente considerou as a porias (proêporêkoti) .
E ainda é necessário que se ache em melhor situação para decidir aquele que- como se de litigantes se
tratasse - deu ouvidos a todos os argumentos opostos". (Aristóteles, Metafísica B 1, 995 a23-b3).
Para além de outros aspectos não menos importantes, o texto evidencia a importância das "apotias"
(note-se a repetida referência ao tetmo, através dos compostos do verbo aporein) no método de inves-
tigação de Aristóteles, justamente designado de "diaporemático". Ora o que é uma apotia? Uma difi-
culdade, um problema que deixa o investigador embaraçado, e para o qual ele apresenta uma solução,
pelos outros considerada insatisfatótia (por isso, apresentam, também eles, as suas soluções). É surpre-
endente que Aristóteles se proponha a investigar a realidade, considerando-a partir do estudo das apatias,
ou seja, das dificuldades que persistem nas opiniões daqueles que o antecederam.
Deverá começar por considerar as aporias (aporêsai) com que os outros se confrontaram,
isolá-las, explorá-las bem (diaporêsai kalôs: estudando-as noutros que sobre elas se debruçaram)
e finalmente resolvê-las (euporein) . Uma vez mais, saber e ser coincidem.
104
ção do ser- o saber- não pode separar-se da recuperação crítica, polê-
mica mesmo, das opiniões dos que os antecederam. Neste sentido ain-
da, a intenção controvesa de 7. 5 constitui não só o único meio de
advogar a entrega à busca do saber, como também a forma de, por
excelência, promover a sua manutenção e divulgação, assegurando ainda
a educação das novas gerações: sempre, como hoje, atraídas por todas
as formas de exibição pública de capacidades, como forma de afirma-
ção pessoal e social.
Todas estas intenções se acumulam então na dedicatória crítica às
opiniões dos mortais. Convergem deste modo duas finalidades: por um
lado, são expostas as opiniões dos que o antecederam na tradição; por
outro, é denunciado o erro em que caíram e apontado o remédio para
ele. Mas há ainda algo de muito importante a acrescentar, a que já fize-
mos referência e a que tomaremos quando chegarmos aos frags. 9, 16·e
19. A estes conferiremos, portanto, redobrada atenção. Mas voltemos
pela última vez ao frag. 8.
3. 2 As DUAS FORMAS
105
Os versos 50-2 declaram o fim do discurso verdadeiro e anunciam o
início da chamada "via da opinião". A caracterização das "crenças dos mor-
tais", feita através da indicação das "duas formas" ... "que nomearam", co-
meça com uma nota crítica: "... e nisso erraram". Erraram porque nomea-
ram "duas", quando já ficou sobejamente demonstrado que só deviam ter
nomeado uma, visto que só "o ser é" e" ... a ele se referem todos os nomes
que os mortais instituíram, convencidos de que eram reais ..." (8. 39).
Depois disso separaram os contrários: um identificado com o fogo
(ou o sol), outro com a noite (as trevas). A crítica visa aqui implicita-
mente a tese, tipicamente jônica75 , da constituição das coisas através da
mistura (krasis) das qualidades opostas que suportavam. Assim, de um
lado estava o fogo, sumamente quente e raro, do outro a terra, fria e
densa. No meio, achavam-se o ar - quente e rarefeito - e a água - fria e
pouco densa. A mistura destas qualidades era produzida, e explicada,
pela mistura física, das substâncias materiais que as suportavam.
É isso mesmo que a deusa afirma em 8. 56-9. Os dois últimos versos
criticam este ensinamento e indicam a sua justificação. A plausibilidade,
verosimilhança, desta ordem cósmica foi transmitida ao jovem para que este
~o se deixe enganar por nenhuma outra tentativa empreendida pelos mortais.
Talvez este dado, prestado de forma aparente casual, constitua um
indício precioso sobre a finalidade da via da opinião. Neste sentido, ela
conteria menos um ensinamento positivo do que uma súmula crítica do
saber dos físicos, que o jovem deverá desaprender. No entanto, como
veremos, o tom de muito do que se segue excede esta visão limitada.
3. 2. 1 DIALÉTICA E ERÍSTICA
fragmento9
Mas, uma vez que tudo é chamado luz ou noite
e o conforme a estas potências é dado a isto e àquilo,
75
Os pensadores jônicos, a que Aristóteles chamará "físicos", ou "fisiólogos", por se dedicarem ao
estudo da natureza e do movimento, são Tales, Anaximandro e Anaximenes, de Mileto. Tradicio-
nalmente, o seu "florescimento" estende-se ao longo do séc. VI.
106
tudo é igualmente cheio de luz e de noite obscura,
4 ambas iguais, visto cada uma delas ser como nada.
3. 3 A POSITIVIDADE DA OPINIÃO
Fragmento 1O
107
e de onde nasce, e como guiando-o a Necessidade o obriga
a conter os limites dos astros.
3. 4 ASTRONOMIA E FISIOLOGIA
fragmento 11
108
fragmento 12
1
fragmento 18
109
r
fragmento 13
fragmento 14
O que constitui "um dos mais belos versos da literatura grega76 " de-
signa evidentemente a Lua e pode bem acoplar-se ao fragmento seguinte.
fragmento 15
fragmento 15a
fragmento 17
76
Jean Beaufret, Parménide. Le poeme, Paris, 1955, 8.
110 I
\ !J ftFlt~f~~S-COt~r~r ·F·f.:~ ·-.· I
r~ :.-~! .i(_: ,r~r~4\ ~- ·~
3. 5 Ü PENSAMENTO E A MISTURA I
I
fragmento 16
I
~
assim aos homens chega o pensamento; pois o mesmo
é o que nos homens pensa, a natureza dos membros,
em cada um e em todos; pois o mais [o pleno] é o pensamento.
111
Ora, tal como são constituídos pela mistura, assim os homens
perct:bem a mistura77 • E, no entanto- e aqui o jogo entre os sentidos
contrauitórios quase atinge o paroxismo-, nos homens é o mesmo que
pensa (o paralelismo com B3 não pode ser fortuito): "a natureza dos
membros".
Mas então está a justificar com a mistura a percepção da mistu-
ra? E/ou a celebrar a natureza do mesmo? "Pois o mais é o pensamen-
to" coroa tanto equívoco: não se percebe se está apenas a exaltar o
pensamento, ou a acenar ao pleno (recordando a necessidade de uma
natureza única e de um único pensamento: "é"). Pode até suceder que a
equivocidade se manifeste como uma forma de comentar a ambivalência
da mistura e das conseqüências que engendra: a regressividade, a hesi-
tação. etc.
3. 6 A OPINIÃO E OS NOMES
fragmento 19
112
2. 2): são os nomes postos pelos homens que as distinguem. A diferença
não está "nelas" (que razão poderá haver para falar de uma pluralidade?),
mas apenas nos nomes (B8. 38; B9. 1 seg.) que os homens (sem proprie-
dade/autenticidade?: Bl. 30-2) lhes atribuem, e com os quais as distin-
guem, "confiantes de que eram [são] reais": (B8. 39).
78
Falar de 'sofística' não implica que a acção dos sofistas se possa, ou deva, entender como um
movimento concertado, mais do que como o fenómeno da convergência para Atenas das figuras mais
representativas da cultura grega da época. A primeira alternativa levanta problemas difíceis de resol-
ver: da datação dessa convergência (estende-se ao longo de mais de um século), da diversa origem,
estatura intelectual e posição ideológica de cada um dos sofistas e da significativa degradação do
ambiente que a sua presença foi provocando. Levanta ainda uma dificuldade que se reflecte sobre a
dependência em que nos achamos das fontes pelas quais nos chegaram informações sobre os sofistas:
para além da evidente parcialidade, gira sempre em torno de personalidades concretas.
Embora nos concentremos sobre a presença da mensagem eleática nas obras dos dois maiores sofistas
- Protágoras e Górgias -,não poderemos deixar de considerar as informações prestadas por Platão no
Eutidemo (condensada em torno de Eutidemo e Dionisodoro, personalidades cuja importância real
se desconhece). Outros sofistas- Trasímaco, Hípias, Pródico e até, mais tarde, Isócrates- poderiam
ser referidos, mas neles o efeito da dialética eleática não é notável.
113
4. 1. Ü FRAG. 2 REVISITADO
79
O nível sintático refere as relações formais entre os termos; o semântico remete para as relações
materiais entre os sentidos dos termos, ou das expressões.
114
4. 1. 1 DA AMBIGÜIDADE AO SOFISMA
Mas as dificuldades não ficam por aqui, uma vez que de novo se
verifica a contaminação entre os dois tipos de ambiguidade, a qual é
forçoso encarar numa perspectiva histórica. É natural pensar que o
primeiro sentido das palavras da deusa constituam uma interdição:
"não dirás",;não conhecerás". Todavia, se assim fosse, a própria deusa
não poderia com legitimidade proferir a expressão "o que não é", ou
mesmo qualquer declaração na forma negativa. Esta primeira leitura -
a proibição da negativa - pode, portanto, considerar-se violada pela
própria proposição que a declara. Mesmo assim, a interdição poderá
ser invocada para justificar a rejeição de qualquer declaração negati-
va80, ou dar origem a uma cadeia de aporias que afundam o discurso
no infinito regresso81 ·82 . Há, portanto, razões para privilegiar a adv:er-
tência contra a interdição.
Esta possibilidade vai, contudo, dar origem a novos e inespera-
dos problemas. Cruzando de novo o sintáctico com o semântico, a
advertência sobre a impossibilidade de declarações negativas equivale
a sustentar que nenhuma delas terá sentido, como se dizer - "x não
é ... ", ou "não-x .. ."- fosse o mesmo que não dizer nada, ou nem sequer
falar, produzir sons sem nexo- gargarejos, assobios, fungadelas, ata-
ques de tosse, etc.-, ou até gestos obscenos.
80
E não só declarações, como também termos negativos, por exemplo: "não-cavalo", ou, como
veremos adiante, a propósito da interpretação existencial, termos que referem entidades inexistentes,
como 'Pégaso', ou 'Quimera'.
81
Com esta expressão caracteriza-se uma situação indecidível, porque susceptível de se prolongar
indefinidamente, como no exemplo do ovo e da galinha.
82
Por exemplo no seguinte diálogo:
- "Não chovendo"
-"Não podes dizê-lo! "
-"Porque?"
- "Porque não é possível dizer o que não é"
-"Mas posso!!"
-"Porque?"
- "Porque então também tu não poderias proibir-me!!"
- "Nem tu impedir-me dê o fazer!!!" . E a dificuldade torna-se ainda mais complexa se fizermos
retroagir o nível semântico sobre o sintático, sustentando que negar "não está a chover" equivale
a afirmar "está chovendo").
115
Já ultrapassamos o limiar da gargalhada. Mas é só o começo. A
entrada em cena da ambiguidade semântica de einai vai engrossar muitÇ> a
lista de aporias resultantes da interdição divina. Por exemplo, nas interpre-
tações predicativa e identitativa, equivale a proibir, ou desclassificar, qual-
quer forma de movimento ou mudança (como B8. 26-31 demonstra), e
também de geração e de corrupção (B8. 6-21). Como é que "isto" poderá
alguma vez tomar-se "aquilo" (vide B8. 40-1)? Portanto, de o que quer
que seja só poderá afirmar-se que é isso mesmo: "o que quer que seja" (o
que é o mesmo que limitar toda a predicação à identidade83 ).
A interdição da negação da existência vem acrescentar um toque
de paradoxo a esta inextrincável cadeia de aporias. Não se pode falar
de seres inexistentes, como vimos, tal como negar a existência do que
quer que seja. Esta nova impossibilidade vais dar origem a duas inespe-
radas complicações. Primeira, a que resulta do cruzamento das leitu-
ras. Por exemplo, a negação de um predicado pode ser interpretada
como a negação da existência do sujeito ("Sócrates não é meu pai", é o
mesmo que afirmar "Sócrates não existe"). Por conversão, do que não
existe nada poderá ser afirmado, nem sequer que não existe (visto nada
se poder dizer de "o que não é").
· Mas também, pelo seu lado, a segunda complicação vem bara-
lhar toda a confusão já criada. Resulta ela de se encarar o discurso
como um fato, talvez uma outra, espécie de ser. O que acontece então,
se pensarmos que, ao violar cada um dos interditos acima explicitados,
estaremos não a negá-los, mas a cair numa incontornável aporia? Veja-
mos. Não é possível dizer o que não é. Portanto, se o posso dizer (bas-
ta-me dizer: "o não ser... "), então é porque é. Uma vez mais a retroação
do semântico sobre o sintático produziu inéditas dificuldades. Isso sig-
nifica que o fato linguístico da negação a torna tão possível e legítima
quanto a correspondente afirmação.
83Naturalmente que esta dificuldade não terá qualquer conseqüência para quem se limitar a falar
do ser, afirmando "é". Afeta, contudo, qualquer referência a alguma entidade, fato, ou qualidade
do mundo em que vive. Por exemplo, a proposição "o homem é bom" torna-se impossível, ou
destituída de sentido, uma vez que do homem só poderá afirmar-se que "é homem" e do do bom
que "é bom".
116
E assim chegamos à aporia final. A impossibilidade de dizer o
que não é pode ser também lida como a concessão da garantia da
verdade a toda a declaração afirmativa (em todos os sentidos acima
enunciados), a qual acarretará a da correspondente falsidade de todas
as declarações negativas. De resto, a leitura veriditiva de "é" (ver atrás
2. 1. 6) atesta isso mesmo, ao interpretar "é" como "é verdade". Toda-
via, uma vez mais a inegável evidência do discurso recairá sobre esta
interdição, implicando que, na medida em que se declara o que quer
que seja, essa declaração, pelo simples fato de poder ser feita, é verda-
de. E é-o apenas pelo fato de ter sido proferida. Duas conseqüências
decorrem daqui: a impossibilidade da falsidade, bem como a da con-
tradição. Se eu digo "é verde", então é verdade que é verde, pelo sim-
ples fato de o estar a dizer. Mas, se digo "não é verde" também é verda-
de, porque acabei de o dizer. Portanto, se faço uma afirmação e a ·se-
guir a nego, nem por isso me contradigo, visto que tanto uma como
outra são verdades (ou seja "verdade").
4. 2 A CRÍTICA À SOFÍSTICA
117
os últimos e mais brilhantes representantes de um mundo que Platão e
Aristóteles ajudaram a sepultar: o da oralidade.
Para o amante do saber, como para aquele que se dedica à exaus-
tiva tarefa de o registar, criticar e sintetizar em textos escritos, destina-
dos a serem usados criticamente pelas gerações futuras, o calor das
disputas erísticas (combates verbais em que o que interessava era ven-
cer o opositor), a mera valorização do sucesso, a expensas da investiga-
ção da verdade, não só são destituídas de sentido, como constituem o
maior obstáculo aos seus propósitos. Assim se·explica a atitude que o
levará a excluir os sofistas da autêntica tradição filosófica.
É compreensível. Todavia, uma tão severa crítica não passaria de
parcialidade, se não fosse compensada por um esforço efetivo, no sen-
tido de emancipar o saber filosófico do atoleiro de sofismas em que os
erísticos tinham deixado a tradição reflexiva grega.
Mas os sofismas, como vimos, limitam-se a explorar as
ambiguidades consentidas pelo grego corrente. Para além dos rigorismos
éticos e da sobranceria política, a tarefa prioritária residirá em conse-
guir despistá-las e resolvê-las cabalmente. Essa será, antes de todos, a
missão de Platão.
4. 2. 1 PLATÃO
118
', .' }. ·~ ~
4. 2. 1. 1 NEGAÇÃO
84
Se houvesse mais do que um saber, se estivesse sujeito a alterações, se pudesse ser refutado, não
se poderia legitimamente considerá-lo saber. As duas primeiras exigências derivam da natureza do
ser (unicidade, imutabilidade, eternidade etc.). As duas outras são específicas do saber e condicionarão
o seu modo de fixação e transmissão.
119
•
4. 2. 1. 2 NÃO-SER
120
4. 2. 1. 3 fALSIDADE
'
Se é assim, também uma falsidade não é o contrário de uma
verdade, mas apenas uma outra coisa, diferente dela. Nessa medida,
não só é possível dizer falsidades (violando o interdito "dizer o que não
é"), como é o que acontece sempre que uma descrição de um estado de
coisas não coincide com esse estado de coisas: por exemplo, afirmar
"esta é uma moeda de cinco escudos", quando se trata de uma de dez
escudos, ou uma de cinco escudos falsa. É outra coisa, mas não coisa
nenhuma.
4. 2. 1. 4 VERDADE
4. 2. 1. 5 APARÊNCIA
4. 2. 1. 6 OPINIÃO
121
A opinião tem uma natureza escorregadia, variável, passível
de ser avaliada de muitos pontos de vista diferentes. E é por isso
mesmo que não se pode confundir com o saber. Mas não será por
isso que o saber pode de todo dispensar a opinião. Pelo contrário,
serve-se dela como matéria sobre a quallabora. Mas terá de a sub-
meter a uma consideração refinada para poder apurar o que da opi-
nião se poderá converter em saber e o que não passa de confusão,
erro, ou ilusão.
122
tavam primariamente voltadas para a prática e para a preparação e
apetrechamento intelectual de todos os envolvidas na vida política. e,
numa cidade como Atenas, nos anos que se seguiram ao triunfo sobre
os Persas, esses eram potencialmente todos os cidadãos. Como inter-
pretaram os sofistas a mensagem eleática?
4. 3. 1 PROTÁGORAS
123
nega diretamente valor ao saber, pelo contrário. Limita-se a não se
pronunciar sobre ele, desconfiando das capacidades humanas para o
atingir (posição susceptível de conduzir a um ceticismo moderado).
4. 3. 2 GóRGIAS
124
a agirem no sentido dos nossos interesses. Para o conseguir, porém, são
necessárias qualidades naturais e conhecimento técnico das regras da ora-
tória. Os seus dois mais famosos discursos que chegaram até nós: os elogi-
os de Helena e de Palamedes (duas figuras que qualquer Grego considera-
ria indefensáveis) demonstram isso mesmo: como através do discurso se
constrói a realidade, realidade que, sem ele, de todo nos escapa.
A funda relevância desta consideração final é inegável. Todavia,
o desprezo manifestado em relação ao saber, obriga o filósofo, para
quem estas considerações levantam questões pertinentes, a ignorá-lo. É
aqui que Platão e Aristóteles pecam por parcialidade87 •
87
Para o compreender bastará ler o final do Da natureza ou do não ser. Vale a pena a longa citação.
"Uma vez que as coisas que são são visíveis e audíveis, e, em gênero, sensíveis, na medida em
que são externas a nós, e, de essas, as visíveis são perceptíveis por meio da vista, e as audíveis pelo
ouvido, e não simultaneamente, como poderemos exprimir um [sentido] pelo outro? Pois o meio
com que nos expressamos é a palavra (lagos); e a palavra não é a coisa, o que .realmente é;
portanto, não é a realidade existente... " (ta hypokeimena kai anta; note-se a recusa em aproveitar
aqui a ambiguidade de einai) " ... , mas outra coisa. Do mesmo modo então, o visível não pode
tornar-se audível, e viceversa; de tal modo que assim o ser, na medida em que é coisa exterior a
nós, não pode tornar-se na nossa palavra. Porque a palavra, diz Górgias, é expressão da ação que
exercemos sobre os fatos externos, isto é, as coisas sensíveis. Por exemplo, do contato com o sabor,
tem origem em nós a palavra conforme a esta qualidade; e do encontro com a cor, a palavra
conforme à cor. Posto isto, resulta ser a palavra que explica o dado externo, mas é o dado externo
que confere significado à palavra. E, contudo, também é possível dizer que, do modo que existem
(hypokeitai) as coisas visíveis e as audíveis, assim também a palavra; contanto que, existindo ela
também como coisa, tenha a propriedade de significar as coisas existentes. Pois, admitindo-se que
a palavra seja coisa, ela diz, embora difira das outras coisas; e sobretudo diferem das palavras os
corpos visíveis; visto ser um o órgão com que percebe o visível, e outro aquele com que se aprende
a palavra. Portanto, a palavra não pode expressar a máxima parte das coisas, tal como nenhum
destes pode revelar a natureza do outro." (Sexto Empírico Adv. Math. VII 83-6).
A instituição de uma tão funda cisão entre as palavras e as coisas, a par da correspondente confe-
rência de um estatuto ontológico ao discurso, não agrada decerto a Platão e a Aristóteles, que
consagraram o trabalho das suas vidas a anulá-la. Mas não será por isso que este texto deixará de
exibir uma qualidade genuinamente filosófica. É que a lição de Górgias é tão clara quão problemá-
tica: as palavras não "são" as coisas que referem; só que isso não as faz menos "coisas" (terem uma
menor dignidade) que elas. por outro lado, sem as palavras não teríamos qualquer forma de acesso
às coisas.
125
dar o próprio propósito que anima o amor ao saber. Esta justificação
torna-se ainda mais forte se pensarmos que, além dos mais ilustres
sofistas, de que acabamos de falar, outros haviam, uma chusma deles,
que vivia alimentada pela ignorância e inveja da multidão. Tanto te-
ria bastado para que o sentido aristocratizante de Platão e o genial
bom-senso de Aristóteles lançassem sobre eles um anátema que ainda
hoje perdura.
Mas isso não significa que os ensinamentos dos sofistas não ti-
vessem tido uma importância transcendente E ainda menos que alguns,
pelo menos Protágoras e Górgias, não tivessem razão. E ela está aí aos
olhos de todos. Na verdade, quem triunfa nos dias de hoje são os sofis-
tas e não os filósofos, se de todo há alguns.
Seja como for, o nosso papel não será tanto julgar uns e outros,
quanto tentar compreendê-los. De todos somos descendentes: de sofis-
tas e de filósofos, e de pessoas ignorante, bem como de quantos apro-
veitaram para o bem, ou para o mal, as lições que deixaram.
Mas uma verdade há que repetir. Acima de todos eles -e também
de nós- paira ainda o vulto tutelar de Parmênides. Nunca poderemos
cc,mceder-lhe atenção demasiada, nem respeito que seja imerecido.
126
tinção entre "ciências puras, exatas" e "ciências aplicadas": enquanto
as primeiras privilegiam o método dedutivo, a priori, as segundas op-
tam por proceder indutivamente, a posteriori (respeitando a oposição
da unidade pensável do ser à diversidade da aparência) .
Por outro lado, a evidência do progresso tecnológico, proporcio-
nada pelas ciências experimentais, quando confrontada com a incerte-
za da reflexão, bem como com os novos campos de aplicação, forneci-
dos pela atividade humana, sugeriu a oposição, introduzida no séc.
XIX por Dilthey (hoje já ultrapassada), entre "ciências do espírito" e
"ciências da natureza".
Mas há mais. A constelação de problemas filosóficos expressa
pelas múltiplas contraposições históricas -do Idealismo ao Racionalismo
e ao Empirismo, do Realismo ao Nominalismo - reflete ainda o modo
eleático de colocar o problema do saber.
O fato de a maior parte destas distinções - outrora tidas por
definitivas - se acharem hoje ultrapassada, ou pelo menos sujeita a
incessante revisão, obscurece a sua derivação da problemática
introduzida pelo eleatismo. Bastará, porém, um estudo superficial do
poema para mostrar a influência que produziu nas mais brilhantes men-
tes da Grécia clássica, quase incompreensível, perante a indiferença a
que é votado hoje. Como explicar esta divergência de posições? Natu-
ralmente, pela diferença dos contextos culturais e também pelo con-
traste evidente nas concepções de saber em presença.
4. 5. 1 A EVOLUÇÃO DO SABER
127
outro, copw problema, seria uma novidade, um jogo, uma charada ...
Como é que a um mortal era concedido esse dom da infalibilidade que
era a marca distintiva do saber? Como é que ela havia de se manifestar
a não ser pela exigência de irrefutabilidade que afetava todos os pro-
nunciamentos epistêmicos, tudo o que aspirava a valer como saber?
Todo o saber atual se diz por escrito, ou em relação à escrita.
Pelo contrário, na Atenas clássica, como vimos, a escrita é uma recém-
chegada. E a sua relação com o saber é altamente ambivalente. Tendo
começado a carreira como mero instrumento de fixação da informa-
ção, cedo manifesta as suas potencialidades como meio de reprodução
de mensagens, para acabar por se converter na tecnologia vocacionada,
por excelência, para a produção, seleção, fixação e circulação das men-
sagens culturalmente significativas.
É por essa razão que, antes de chegar à escrita, o saber realizou uma
muito longa caminhada no mundo da oralidade88 • Ora é sobre os momen-
tos finais desta marcha que as disputas sofísticas, as peças da oratória
grega, os escritos deXenofonte, os diálogos de Platão, nos documentam89 •
E o espanto que a todos percorre e permeia deixa-se condensar em três
versões, ou fases, de uma única interrogação. Como é que a perfeição
imutável do saber, infalível e irrefutável, consente caber: primeiro, num
único homem?; segundo, nas suas efémeras palavras?; terceiro, no sistema
de sinais convencionais que mecanicamente as perpetua (as letras)?
Toda a filosofia grega, até Platão, se deixa enquadrar neste apa-
rentemente simples percurso. A primeira versão da pergunta está volta-
88
Aqui residindo a natureza paradoxal de todas as tentativas de compreensão da questão da oralidade;
pois é bem claro que nunca teríamos chegado a ter notícia das declarações orais se a escrita não
tivesse delas guardado qualquer espécie de memória. Nessa medida, é possível imaginar como
aquilo que é memória escrita de um tempo e de um mundo passados, marcados pela oralidade, nos
aparece como criação original de um autor que escreve sobre o seu tempo.
Esta tendência é sobremaneira evidente em Platão. Só com esforço somos capazes de distin-
guir nos diálogos o que é memória de outro tempo - seja recordação de debates orais, seja
mensagem conservada por antiquíssima tradição- do que é reflexão própria, que o autor conver-
te em texto.
89
O mesmo sucederá com toda a produção em prosa deste período, nomeadamente as obras dos
historiadores: Heródoto (que viveu entre as duas guerras) e Tucídides (que escreveu sobre a segun-
da). Mas aí é a própria natureza histórica dos fatos narrados que impede a confusão temporal.
128
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é também saber melhor. Quantos mais homens souberem, mais capaz a Humanidade será de
superar os desafios que se lhe deparam.
A crise de todas as crises que ameaçam a vida no planeta poderá residir apenas no aprofundar
da diferença que separa as curvas do crescimento quantitativo e qualitativo da Humanidade (agra-
vada pelo abaixamento da taxa de natalidade e envelhecimento da população nos países desenvol-
vidos). O saber é o único fator que verdadeiramente as poderá afastar.
129
Por baixo ficam os cacos do espelho quebrado do saber, de que
sobraram muitos e dispersos reflexos. Primeiro virá a dimensão pesso-
al, a "experiência", o autoconhecimento, o pronunciamento sapiencial,
oracular, refugiado na criação artística, na literatura - ficção, poesia,
prosa reflexiva, epistolografia (literatura de cartas) -, que volta à vida
no diálogo íntimo, na análise clínica, na conversa entre amigos. Depois
vem o universo da crença e da sabedoria tradicional: a fé, superstição,
as práticas de vida, o folclore, a relação de cada um com os grupos em
que se integra. E a última degradação do saber é a "cultura geral",
reaparecida em vestes lúdicas em concursos e jogos, em que se busca e
preserva a informação trivial (é isso que significa Trivial Pursuit).
Todo esse repositório da memória humana é essencialmente co-
mum. E, no entanto, aparece ao estudante como o produto de uma
penosa conquista pessoal. Poucas noções parecerão tão estranhas ao
escolar recém-formado quanto a idéia platônica de anamnese. A pere-
grinação da alma de corpo em corpo, o contato anterior (e interior)
com as verdades eternas, a caracterização da aprendizagem como re-
cordação, nada lhe parecerá mais fantasioso e destituído de sentido. E,
no entanto, se a estas concepções retirarmos os ecos religiosos, se con-
segUirmos enquadrá-las no contexto cultural atual, conseguiremos com-
preender muitos fatos dificilmente explicáveis da prática epistêmica.
Como se estabelece o acordo entre mentes essencialmente
incomunicantes? Sobretudo, como se passa do que se sabe ao que se
não sabe, como se pode descobrir novas verdades a partir das antigas?
4. 5. 2 A HERANÇA DE PARMÊNIDES
130
gência de rigor formal das declarações que as substanciam. O que faz a
verdade das respostas que a Humanidade encontra para as interroga-
ções que a perseguem não é a dignidade da voz que fala, nem a inspira-
ção a que obedece (a divindade atestará sobretudo a presença da tra-
dição), nem sequer a especificidade das perguntas e das respostas. É,
antes de mais, a natureza do produto concebido: o saber! É como
saber que perguntas e respostas começam por ser apreciadas. Mas não
basta. A forma das respostas, o método que as estrutura e lhes define
os contornos, também é relevante: o fato de estas se manifestarem como
um argumento. Finalmente, a dignidade epistêmica reflete-se na exi-
gência crítica que alimenta e suscita a atitude polêmica.
Ou seja, não há apenas que encontrar uma resposta e afirmar
que está certa. É preciso mostrar como, porquê e com que conseqüências.
A História da Filosofia ilustra o modo como os Gregos honraram esta
' .
obrigação e depois todos os outros a respeitaram, embora
reconfigurando-lhe os termos.
131
o saber e de que modo se enlaçam um no outro, nada compreenderá da
Filosofia. Porque a Filosofia começa e acaba aqui. Pode preferir uma
ou outra via, escolher a finalidade que melhor lhe aprouver. Mas não
pode deixar de partir daqui, para de novo aqui tomar (frag. 5). Esta é a
a crise (krisis) que comanda todas as decisões (kriseis).
Depois a Filosofia voltar-se-á para muitos outros objetos e defi-
nirá muitos outros programas. Todos eles, porém, partem de Parmênides
e a ele tomam: ao ser e ao saber. Quem não o compreender prefere a
companhia da "multidão acéfala, acrítica, sem discernimento ... ". To-
dos os insultos merecem os mortais para quem tanto vale fazer uma
afirmação como o seu contrário.
Muitas serão depois as vozes dissonantes, os seus protestos ainda
hoje se ouvem. Mas o eco da terrível advertência divina continua a
ressoar nos nossos ouvidos: "Não dirás o que não é".
132
0 POEMA DE PARMÊNIDES,
A OBRA FUNDADORA DA
TRADIÇÃO FILOSÓF I CA
OCIDENTAL, É COMENTADO
E INTERPRETADO PARA O
BRASIL POR .JosÉ
TRINDADE SANTOS ,
PROFESSOR DE FILOSOFIA
ANTIGA DA FACULDADE DE
LETRAS DE LISBOA .
.(