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José Trindade Santos

Da natureza
Parmênides

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© 2000 by José Trindade Santos

Diagramação
Victor Tagore

Capa
Leonardo Gonçalves

Impressão:
Thesaurus Editora

S337d Santos, José Trindade


Da natureza - Parmênides I José Trindade
Santos.- Brasília : Thesaurus, 2000.
124 p.

1. Filosofia da natureza 2. Parmênides, filósofo


grego I. Título

CDU 113
CDD 113.2

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Printed in Bra~il r=re~:=- .·
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A Giovanni Casertano

"Questa vita e um continuo sacrificio "


Sumário
PREFÁCIO ............................................. ..... ........................ 11

FRAGMENTOS ..... .............................................................. 15

33
PoR QUE SABER? ................................................... .. .. ....... . .............. .
O saber é coletivo e pessoal ........................................................... 34
O que há para saber? ............................................ ........................ 35
O peso da memória ....................................................................... 36
Transmissão e criação cultural na Antigüidade ............................... 39

A ESCRITA ...................................... ..................................... ........ 40


A produção dos primeiros textos da Cultura Grega ........................ 43
A Cultura e Literatura gregas até ao séc. V .................................... 45
A formação da tradição filosófica grega ......................................... 4 7

INTERLÚDIO POLÍTICO ........ ..................................·................... 47


Política e Cultura ..................... .................... .... ....... ..... .;........ ........ 50
Os sofistas ....... ..................................................... .. ...................... . 51

A FILOSOFIA ..... .... .... .................................................................. 54


PLATÃO .......... . ............. . .................................................................. 54
ARISTÓTELES .............................................. . .... ... .... . ....................... . 56

O Poema de Parmênides ................................................................ 57

INTRODUÇÃO À LEITURA DO POEMA DE PARMÊNIDES .... . ..... ........ .. 59

História das cópias do poema ................. ....................................... 60


O texto do poema ................ ... ............................. .. ............ ... ........ 63
Sentido desta edição do Poema de Parmênides ............................... 64
INTERPRETAÇÃO DO POEMA DE P ARMÊ IDES ........ . ............ 65

1. o PROÊMIO .. .. .. .. .. .. ... .. .. ............... ..... .... . ............ ........................ 65


1.1 As PALAVRAS DE ACOLHJME ;TO AO JOVE.\1. .... . .......... .................. 68
1.2 REALIDADE E APARÊ CIA ........................... ......................... ..... 69

2. A via da Verdade .......................... .... .................... ..................... 76


2.1 OS DOIS CAMINHOS ........................................ ......................... 76
NoTA sOBRE ALÊTHEIA . ............. ........... ........................................ 87
A LOCALIZAÇÃO DOS FRAGS. 4 E 5 .. ....................... ......... .. .. ........... 88
2. 2 DESENVOLVIMENTO DO ARGUMENTO : A NOVA VIA ...................... 90

3. A Via da Opinião ... ................... ................. ....... . ......... . .. ... ...... 101
3. 1 0 ALCANCE DA V IA DA VERDADE .. . ....................................... 102
3. 2 As DUAS FORMAS ........................................................ . ....... 104
3. 3 A POSITIVIDADE DA OPINIÃO .............. . ................................. , 107
3. 4 ASTRONOMIA E FISIOLOGIA .. . ................................................ 108
3. 5 0 PENSAMENTO E A MISTURA....................................... . .... . .... 111
3. 6 A OPINIÃO E OS NOMES ......................... ............................ ... 112

4. Parmênides e a herança eleática .. .............................................. 113


.4. 1. 0 FRAG . 2 REVISITADO .......... .. ............................................ 114
4. 2 A CRÍTICA À SOFÍSTICA ............................................. ........ .... 117
4. 3 0 SABER DOS SOFISTAS .. .. .. . .. .. .. . .. . .. .. .. .. .. .. .. .. .. . .. .. . .. . .. .. .. .. .. .. . 122
4.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE OS SOFISTAS ............ .. ... . ............ 125
4.5 CONCLUSÃO : NÓS E PARMÊNIDES ............................................ 126
PREFÁCIO

Esta obra apresenta, uma tradução anotada e um comentário


seqüencial do Poema de Parmênides, acompanhando uma versão do
texto Grego. A tradução é precedida de UI\1 ensaio dedicado à aborda-
gem da questão do saber.
O trabalho dirige-se especialmente aos estudantes e procura pro-
vê-los com uma versão cientificamente aceitável de um dos textos capi-
tais da Cultura Ocidental, à qual agrega alguns instrumentos de traba-
lho, com a finalidade de facilitar a sua compreensão.
Como se explicará adiante, e pelas razões aí apresentadas, esta
versão não pode confundir-se com uma edição do poema. Apoia-se na
edição realizada por Hermann Diels, Parmênides' Lehrgedicht, griechisch
und deutsch, Berlim, 1897. Não parte, portanto, de um cotejo das fon-
tes manuscritas e das respectivas variantes, ou mesmo das principais
edições do poema, às quais se refere incidentalmente e de passagem, só
quando é preferida uma lição divergente da acima citada.
Este esclarecimento é importante pelo fato de a tradução apre-
sentada ser devedora do trabalho de análise filológica e crítica realiza-
do por muitas outras edições e traduções do poema, em diversas lín-
guas, às quais não faz a referência devida. Menciono apenas, e porque
seria grave não o fazer, a dívida para com duas traduções do poema:
em Português, a de Maria Helena da Rocha Pereira, in Hélade, Cohnbra,
1959 (1 a edição), e, em Italiano, a edição e comentário de Giovanni

11
Casertano, Parmenide il metodo la scienza l'esperienza, Napoli, 1978
( 1o edição). A estes estudioso quero aqui acrescentar, ao meu agrade-
cimento, a minha homenagem.
Como é de esperar, .um texto com a en ergadura do Poema de
Parmênides tem vindo a merecer, especialmente ao longo do séc. XX, a
detida atenção da crítica, atravé da apre entação de muitas edições e
comentários, tanto globais, quanto centrado numa ou noutra questão
do argumento. A finalidade e ambição de te trabalho não justificam a
referência a essa monumental tarefa, nunca acabada, para a qual con-
tribuirá apenas na medida das limitações já expressas.
Esta advertência é ditada não apenas pelo rigor e exigência do
trabalho científico, mas sobretudo para que se tome manifesto que a
interpretação aqui apresentada carece da referência ao acervo de bibli-
ografia filológica e crítica, sem a qual nunca teria chegado a poder ser
formulada 1 • A única justificação que se oferece para essa falta reside
na finalidade que presidiu à sua concepção e redação. O diálogo com a
tradição multissecular de interpretação crítica do Poema de Parmênides
pesaria enormente sobre a sua compreensão, sobretudo àqueles que o
vão abordar, pela primeira- e talvez última - vez.

Para benefício desses, passo agora a sugerir o modo como devem


realizar a tarefa de se apropriarem das indicações e pistas aqui semeadas.
1. A versão bilíngüe do texto do poema, que inicia a obra, deve
ser utilizada sobretudo como referência e oportunidade de visualização
global do texto. Para além das poucas divergências assinaladas, limita-
se a seguir a edição de Diels, no texto estabelecido e na ordem pela qual
são apresentados os fragmentos. Essa ordem, que a tradição impôs,
5 Ainda assim, as pouquíssimas referências bibliográficas feitas , de todo indispensáveis, não de-
vem ser confundidas. De um lado, acham-se as fontes-. textos antigos-, com os quais se estabele-
cem relevantes relações; do outro, os comentadores que se pode ignorar.
Em qualquer dos casos, a função que desempenham no texto é secundária: ou servem de apoio a
um argumento, ou tese apresentada; ou apontam uma via de investigação possível. As personagens
referidas e as siglas das suas obras acham-se explicadas em qualquer obra de introdução ao estudo
do pensamento antigo, como o clássico de G. S. Kirk e J. E. Raven, The Presocratic Philosophers,
Cambridge, 1966 (trad. port. Os filósofos pré-socráticos, Gulbenkian, Lisboa, 1979).

12
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será questionada adiante, mas nunca alterada. Isto ~ignifica, por exem-
plo, que, apesar de se propor a sua localização entre os fragmentos 1 e
2, o fragmento 5 nunca deixa de ser referido por esse número; e assim
para os casos análogos.
Na parte dedicada ao comentário, a tradução do poema será
repetida pari passu. Tanto aí, como na tradução inicial, é da maior
importância a habituação da referência aos fragmentos, identificados
pelo respectivo número, seguido de um ponto '.', quando precedem a
indicação de versos. Estes podem aparecer sozinhos, ou emparelhados
por um hífen '-', ou uma vírgula ','. Por exemplo: 8 (ou B8, adiante
explicado) refere esse fragmento; 8. 2, o verso 2 do fragmento 8; 8. 34-
41 a seqüência de oito versos, habitualmente referida como o "sumário
da via da verdade"; 8. 38, 53, os dois versos do frag. 8 em que apare-
cem formas do verbo onornazein (nomear).
2. O ensaio sobre o saber deve ser encarado como uma introdu-
ção temática ao texto e ao seu comentário. Debate, de modo superficial
e sem pretensões, a constituição da questão do saber na Grécia clássi-
ca, procurando evocar a adesão simpática dos leitores, a quem
porventura nunca terá sido proposta nesta perspectiva. A pouco fre-
quente intrusão da linguagem poética pelo discurso de divulgação cien-
tífica constitui uma opção de incerta eficácia. Também aqui se calou a
oportuna referência a muita e variada bibliografia de difícil acesso a
estudantes.
Para facilitar a leitura e compreensão, esse texto é dividido em
curtas seções, com titulação centrada. Essa decisão traduz e· pretende
sugerir que não reproduz um argumento seqüencial. É antes constituí-
do por um percurso, quase caleidoscópico, onde se vão descobrindo
tópicos que convergem numa visão panorâmica da Cultura de uma
época, convocada de uma pluralidade de perspectivas. Deve ser enca-
rado mais como matéria para meditação e reflexão pessoal do leitor do
que como abordagem dogmática e científica do tema tratado. Para os
que quiserem entrar imediatamente no texto do poema, esse capítulo
poderá ser abordado depois do comentário.

13
3. A última parte do texto é integralmente dedicada ao comentá-
rio do poema. Começa por uma curta introdução que descreve sucinta-
mente as vicissitudes pelas quais o texto passou até atingir a forma com
que é hoje apresentado ao público. A entrada no poema é assinalada
pela paragrafação numérica, inserida à margem, de forma a salientar a
integração dos tópicos, na ordem pela qual são abordados.
Estes são quatro: as três partes em que consensualmente se divi-
de o poema, seguidas de um comentário ao modo como este foi recebi-
do pelos filósofos e pelos sofistas gregos - 1. O proêmio; 2. A via da
Verdade; 3. A via da opinião; 4. Parmênides e a herança eleática (cada
um deles articulado e subdividido em parágrafos distintos). A repeti-
ção dos algarismos iniciais significa que o parágrafo seguinte faz parte
do anterior, enquanto a mudança indica a passagem à outra questão. A
inclusão de notas com titulação centrada quer dizer que estas devem
ser lidas como apêndices ao que se disse na seção em que se acham,
mas que a sua relevância para o argumento é marginal.

Devo ainda uma palavra de agradecimento a todos aqueles que


1n:e auxiliaram com a leitura atenta de alguma das sucessivas versões
por que foi passando o texto, até atingir a forma atual. Começo por
Adriana Nogueira, que me auxiliou em inúmeras revisões do texto, e
não posso deixar de mencionar Maria José Figueiredo, Helena Ramos,
Pedro Vidal e Graça Pina, além do revisor, cuja competência e acribia
já se tornou entre nós lendária, Senhor Manuel Joaquim Vieira. Devo-
lhes a chamada de atenção para muitas passagens duvidosas, erradas e
imprecisas, que afetavam a sua compreensão do texto.

José Trindade Santos

14
FRAGMENTOS
Bl
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T~L <f>EpÓJ.l.llV" T~l yáp !J-E TTOÀÚ<f>paCJTOl <f>ÉpOV 'L-rTTTOL
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Ev8a TTÚÀm NuKTÓS' TE Kal. "HJ.l.aTÓS' dm KEÀEÚ8wv,
Ka[ a<f>as- ÚTTÉp8upov clj.l</>LS' EXEL Kal ÀálVOS' ov8ós-·
mJTaL 8' aL8ÉplaL TTÀf)VTaL J.l.EyáÀOLOl 8upÉTpms·
Twv 8E_ ~LKTJ rroÀúrrowos- EXEL KÀTJL8as- àJ.l.m~oús.
15 T~v 8~ rrap<PáJ.l.EVm Koupm J.l.aÀaKÔLGL ÀÓyotCJL v
rrôaav E:m<j>pa8Éws-, ws- a<Pw ~aÀavwTov óxila
clTTTEpÉWS' WCJELE TTUÀÉwv arro · Tal OE 8upÉTpwv
xáall' àxavEs TTOL TjCJaV àvaTITáf..LEVaL TTOÀUXáÀKOUS

16
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Fragmento 1
B1
Os corcéis que me transportam, tanto quanto o ânimo me impele,
conduzem-me, depois de me terem dirigido pelo caminho famoso
da divindade, que leva o homem sabedor por todas as cidades. Por
aí me levaram, por aí mesmo me levaram os habilíssimos corcéis,
5 puxando o carro, enquanto as jovens mostravam o caminho.
O eixo silvava nos cubos como uma siringe,
incandescendo (ao ser movido pelas duas rodas que vertiginosamente
o impeliam de um ede outro lado), quando se apressaram
as jovens filhas do sol a levar-me, abandonando a região da Noite,
1O para a luz, libertando com as mãos a cabeça dos véus que as
[escondiam.
Aí está o portal que separa os caminhos da Noite e do Dia,
encimado por um dintel e um ombral de pedra;
o portal, etéreo, fechado por enormes batentes,
dos quais a Justiça vingadora detém as chaves que os abrem e fecham.
15 A ela se dirigiram as jovens, com doces palavras,
persuadindo-habilmente a erguer para elas
por um instante, a barra do portal.
E ele abriu-se, revelando um abismo hiante, enquanto fazia girar,

17
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oÜTE <Ppáams-.

18
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um atrás do outro, os estridentes gonzos de bronze,


20 fixados com pregos e cavilhas. Por aí, através do portal,
as jovens guiaram com celeridade o carro e os corcéis.
E a deusa acolheu-me de bom grado, mão na mão
direita tomando, e com estas palavras se me dirigiu:
"Ó jovem, acompanhante de aurigas imortais,
25 tu, que chegas até nós transportado pelos corcéis,
Salve! Não foi um mau destino que te induziu a viajar
por este caminho- tão fora do trilho dos homens-,
mas o Direito e a Justiça. Terás, pois, de tudo aprender:
o coração inabalável da realidade fidedigna 2
30 e as crenças dos mortais, em que não há confiança genuína.
Mas também isso aprenderás: como as aparências
têm de aparentemente ser, passando todas através de tudo.
B2

Vamos, vou dizer-te - e tu escuta e fixa o relatoque ouviste-


quais os únicos caminhos de investigação que há para pensar:
um que é, que não é para não ser,
é caminho de confiança (pois acompanha a verdade);
5 o outro que não é, que tem de não ser,
esse te indico ser caminho em tudo ignoto,
pois não poderás conhecer o não ser, não é possível,
nem mostrá-lo [ ... ]

2 Preferimos a lição eu:rm8Éoç (eupeitheos : Sexto Empírico Adversus Mathematicos VII 111:

"fidedigna) à tradicional e mais frequente e'ÓKUKÀÉoç(eukykleos: Simplício De caelo 557, 25), por
sustentar a oposição en tre os vários termos com as raízes ÕOK-, rrn8-/ m ot-, que encontramos no
v. 30 ("crenças dos mortais"/"confiança verdadeira").
Em abono de eukykleos pode dizer-se que indicaria a circularidade da verdade (vejam-se os frags.
5 e 8. 43). Dados os óbvios méritos de ambas as lições, a preferência é justificada pela importância
desempenhada pela família de termos, no contexto do proêmio.

19
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TO yàp aiJTO voELV EOTLV TE Kal. ELVGL.


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B6

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auTàp E1TEL T' àno T~S'. ~v 6~ ~pOTOL ELDÓTES' OUOEV
5 nÀáTTOVTaL, 6(KpavoL · cXfl.TJXUVLT) yàp Êv auTwv
ar~6EoLV L8úvEL 1TÀaKTOV vóov· oí. OE cpopouvTm
KWcpOL ÓflWS' TUcpÀOL TE, TE6T)1TÓTE S', aKpl Ta cpuÀa,
ots- To nÉÀELV TE Kal ouK ELVaL TauTov VEVÓfl.WTaL
Kou TauTóv, návTwv 6E naÀL vTponós E:an KÉ ÀEu8os.

20
B3
[... ] pois o mesmo é pensar e ser.

B4
Nota também como o que está longe, pela mente se toma firme
mente presente:
pois não separarás o ser da sua continuidade com o ser,
nem dispersando-o por toda a parte segundo a ordem do mundo,
nem reunindo-o.

B5
[ ... ]para mim é o mesmo
por onde haja de começar: pois aí tomarei de novo
B6
É necessário que o ser, o dizer e o pensar sejam; pois podem ser,
enquanto o nada não é: nisto te indico que reflitas.
Desta primeira via de investigação te <afasto> 3 ,
e logo também daquela em que os mortais, que nada sabem,
5 vagueiam, com duas cabeças: pois a incapacidade
lhes guia no peito a mente errante; e são levados,
surdos ao mesmo tempo que cegos, aturdidos, multidão indeci
sa,que acredita que o ser e o não-ser são o mesmo
e o não-mesmo, para quem é regressivo o caminho de todas as
coisas.

3
Reconstituição conjecturai de Di eis - dpyw (eirgô) - "afasto" (termo que ocorre em 7.2).
Nesta situação, em que qualquer opção é consentida ao intérprete, são-lhe exigidas boas razões
para apresentar uma nova sugestão. Por exemplo, N .-L. Cordero Les deux chemins de Parménide
Paris, 1984, 24, 132-144, propõe apl;EL (arxei) "começarás", para argumentar que na Via da
Verdade a deusa aponta apenas dois caminhos: "que é" e "que não é". Mas a interpretação não
colheu grande apoio entre os estudiosos.

21
ll7-llS

7.1 OU yàp fl~TTOTE TOUTO bO!lTJl Ell'Ql llll EOl'Ta·


v
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ECJTLv ó6cíç), T~v 6' l,]crTE TTÉÀELV Kal. ET~TUflOV Elvm.
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.20 EL yàp E)'EVT ', OUK EaT(L), ou6' EL TTOTE flÉÀÀEL ECJECJ8m.
TL;JS' )'Él'EGLS' f-J.El' ànÉa~ECJTQL KOL aTTUCJTOS' ()À.E8poç.
ou6E: 6LatpETÓV EO"Tll ' , ETTEL nât• EaTLl' hj.Hílm··
OUbÉ TL T~L flâÀ.ÀOl', T<'J KEl' Elp)'OL flll' CJUVÉXEa8m.
ou6É TL XELPÓTEpcw. TTâl' 6' Ef-J.TTÀEÓV ECJTll' EÓVTOÇ.
25 n0L ÇuvEXES' nâv E-anv· E-cw yàp EÓI'TL TTEÀ.á(EL.
auTàp ciKLVT)TOV fJ.EyáÀt•Jl 1 El' TTELpOCJL 6Eaf-J.l;ll 1
ECJTLV avopxol' GTTOUCJTOl', ETTEL )'Él'EaLç KCÚ tÍÀE8poç

22
B7-B8
7.1 Pois nunca isto será demonstrado: que são as coisas que não são;
mas afasta desta via de investigação o pensamento,
não te force por este caminho o costume muito experimentado,
deixando vaguear olhos que não vêem, ouvidos soantes
5 e língua, mas decide pela razão a prova muito disputada
8.1 de que falei. I I Só falta agora falar do caminho
que é. Sobre esse são muitos os sinais
de que o ser é ingénito e indestrutível,
pois é compacto, inabalável e sem fim;
5 não foi nem será, pois é agora um todo homogêneo,
uno, contínuo. Com efeito, que origem lhe investigarias?
como e onde se acrescentaria? Nem do não-ser te deixarei
falar, nem pensar: pois não é dizível, nem pensável,
visto que não é. E que necessidade o impeliria
10 a nascer, depois ou antes, começando do nada?
E assim, é necessário que seja de todo, ou não.
Nem a força da confiança consentirá que do não ser
nasça algo ao pé do ser. Por isso nem nascer,
nem perecer, permite a Justiça, afrouxando as cadeias,
15 mas sustem-nas: esta é a decisão acerca disso -
é ou não é - ; decidido está então, como necessidade,
deixar uma das vias como impensável e inexprimível (pois não é
via verdadeira), enquanto a outra é autêntica.
Como poderia o ser perecer? Como poderia gerar-se?
20 Pois, se era, não é, nem poderia vir a ser.
E assim a gênese se extingue e da destruição se não fala.
Nem é divisível, visto ser todo homogêneo,
nem num lado é mais, que o impeça de ser contínuo,
nem noutro menos, mas é todo cheio de ser
25 e por isso todo contínuo, pois o ser é com o ser.
Além disso, é imóvel nas cadeias dos potentes laços,
sem princípio nem fim, pois génese e destruição
foram afastadas para longe, repelidas pela confiança verdadeira.

23
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24
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O mesmo em si mesmo permanece e por si mesmo repousa,


30 e assim firme em si fica. Pois a potente Necessidade
o tem nos limites dos laços, que de todo o lado o cercam.
Portanto não é justo que o ser seja incompleto:
pois não é carente; ao [não-] ser, contudo, tudo lhe falta.
O mesmo é o que há para pensar e aquilo por causa de que há
35 pensamento.
Pois, sem o ser- ao qual está prometido-,
não acharás o pensar. Pois não é e não será
outra coisa além do ser, visto o Destino o ter amarrado
para ser inteiro e imóvel. Acerca dele são todos os nomes4
40 que os mortais instituíram, confiantes de que eram reais:
"gerar-se" e "destruir-se", "ser e não ser",
"mudar de lugar" e "mudar a cor brilhante".
Visto que tem um limite extremo, é completo
por todos os lados, semelhante à massa de uma esfera bem
45 rotunda, em equilíbrio do centro a toda a parte; pois, nem maior,
nem menor, aqui ou ali, é forçoso que seja.
Pois nem é o não-ser, que o impeça de chegar
até ao mesmo, nem é possível que o ser seja
maior aqui, menor ali, visto ser todo inviolável:
pois é igual por todo o lado, e fica igualmente nos limites.
50 Nisto cesso o discurso fiável e o pensamento
em torno da verdade; depois disso as humanas opiniões
aprende, escutando a ordem enganadora das minhas palavras.
E estabeleceram duas formas, que nomearam,
das quais uma não deviam nomear- e nisso erraram-,
55 e separaram os contrários como corpos e postaram sinais,

4
Lendo ÓVÓ!J.UO'tUL (onomastai) em vez do tradicional óvó~J,' EO'tm (onom 'estai) de Diels),
apoiado em L Woodbury "Parmênides on Names" Essays in A ncient Greek Philosophy I Anton
& Kustas (eds.) Albany 1971, 145-162.

25
Xtuplç âTT' àÀÀ.~ÀuJV, TTJL !lE I' <PÀoyóç ai8ÉpLOv TTup,
~mov ov,~Éy' [àpmóv] EÀa<Pp<Ív. Étuun0L TTávToaE TttJtJT<Ív,
TL~L 8' ÉTÉptu~ P-~ n.JiJTóv· àTàp KàKELVo KaT' ainó
Tàtn(a vúKT' à6a~. TTUKLVÓv bÉfl-GS' Efl~pL8Éç TE .
60 TÓv am Eyt;J 8LáKOITfl-OV EOLKCÍTa TTái'Ta <PaTLÚJ.
úJS' ou f1 ~ TTOTÉ TL ç aE f3poTt01' yvt•J flfl TTapE ÀáaaflL.

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TTâv TTÀÉ ov E-aTiv Ófl-OU <PáEoç Kai. VUKTÓç a<PâvTou
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G~fl-GTG Kal Ka8apâs EVayÉoç ~EÀLOLO
À.G!lTTá8oç E'py' à(bflÀa Kai ÓTTmÍ8Et' EÇEyÉt'Ol'TO,
E'pya TE KÚKÀt•JTTOç TTEÚITflL TTEPL<PoLTa aEÀ~VflS'
.'i KGL <Púall', Elb~ITELS' 8E: Kal oupavóv àfl<Pis- EXOVTa
EV8Ev ffl.EV yàp] E'<Pu TE KGl t;JÇ fll V ayoua(o) ETTÉbfliTEV
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Bll

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26

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separados uns dos outros: aqui a chama do fogo etéreo,


branda, muito leve, em tudo a mesma consigo,
mas não a mesma com a outra; e a outra também em si
contrária, a noite sem luz, espessa e pesada.
60 Esta ordem cósmica eu te declaro toda plausível,
de modo a quenenhum saber dos mortais te venha transviar.

B9
Mas, uma vez que tudo é chamado luz ou noite
e o conforme a estas potências é dado a isto e àquilo,
tudo é igualmente cheio de luz e de noite obscura,
ambas iguais, visto cada uma delas ser como nada.

Blü
E conhecerás a natureza do éter e no éter de todos os
sinais e dos raios da pura lâmpada do sol
as obras destruidoras, e de onde nascem,
e conhecerás as obras que rodam em tomo da lua de olho redon
do
e a sua natureza, e saberás do céu que os tem à volta,
e de onde nasce, e como guiando-o a Necessidade o obriga
a conter os limites dos astros.

Bll
... como a terra e o sol e a lua
e o éter que a tudo é comum e a via láctea e o Olimpo
extremo e o calor ardente dos astros forçados a
nascer.

B12
Pois as coroas mais estreitas enchem-se de fogo sem mistura
e as que vêm à noite depois destas, mas com elas lança-se uma
parte de chama.

27
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Eanv brrEp <PpovÉEL IJ.EÀÉúJV <Púms- àv8pc(mmmv
Kat rrâau.1 KaL rravT[ · To -yàp rr ÀÉov EO"TL vón1.1a.

B17

8E ÇL TEpo'Lmv IJ.EV Koúpous-, Àmo'LaL 8E. Koúpas-

BlH

femina virque úmulllmeris rum germina misrent,


venis informrms diverso ex srmguine virtus
temperiem servans be11e condita corpora fingir.
ttam si virtutes permixto semine pugnent
S tm:jaârmt unam permixto in mrpore. dirae
nasrentem gemino vexalmnt semine sexum.

28
·. ~'

No meio delas está a divindade que tudo governa;


pois em tudo comanda o parto doloroso e a mistura,
impelindo a fêmea a unir-se ao macho, e ao contrário
o macho à fêmea.

Bl3
Primeiro que todos os deuses concebeu Eros.

B14
Facho noturno, em tomo à terra, alumiado a uma alheia luz

BlS
Sempre à espreita dos raios do sol.

BlSa
Parmênides no poema diz que "a terra tem raízes na água".

B16
Pois, tal como cada um tem mistura nos membros errantes,
assim aos homens chega o pensamento; pois o mesmo
é o que nos homens pensa, a natureza dos membros,
em cada um e em todos; pois o mais [o pleno] é o pensamento.

B17
À direita os machos, à esquerda as fêmeas

B18
Quando a mulher e o homem juntos misturam as sementes de
Vênus, a força que se forma nas veias a partir de sangues diver
sos, mantendo o equilíbrio, gera corpos bem formados.
Se, contudo, misturados os sémens, as forças se opõem,
5 e não fazem unidade, misturados no corpo, cruéis,
atormentam o sexo da criança com o duplo sémen.

29
Bl'J

oÜTt•J TOL KaTà &óÇm 1 E=<Pv Tá&E KaL PVt' EaaL


Kat p.ETÉTTELT' ànú Tou&E TEÀ.EUT~aoum Tpa<PÉvTn-
TOÍ:S' 8' ÔVojl' avTptuTTOL KaTÉ8EvT' ETTLCJnU<W ÉKÓOTt•Jl.

30
:;:; ,,, ',
' .'

B19

Assim, segundo a opinião, as coisas nasceram e agora são


e depois crescerão e hão-de ter fim.
A essas os homens puseram um nome que a cada uma distingue .

31
..'~Í, I

PoR ouE SABER?

Ninguém nasce por acaso.


Ninguém vive sozinho

N ão há quem tenha vindo ao mundo por vontade sua. A vida é


uma força anônima que demora até achar um nome. Por mais
que tenha florido num encontro de desejos.
Tudo começa num tempo e num lugar. Como por acaso. Mas só
aparentemente. Porque o tempo nunca é só de alguém e o espaço é
sempre de muito mais gente. O agora e o aqui já eram de outros antes
de serem nossos. De toda uma sociedade, de um país, de um mundo
inteiro. Nos quais todos somos, porque deles nascemos. E é para eles
que vivemos, apesar de só mais tarde o podermos compreender.
Tudo encontramos já feito à chegada. Tudo deixaremos à parti-
da. E, contudo, nesse breve instante entre um e outro tempo, tudo é ao
mesmo tempo nosso e muito mais que nosso. Gestos de uns, que foram
sonhos de outros. Esperanças que hão-de vir a ser memórias. O sempre
diverso a brotar, para voltar a convergir no mesmo.

33
Nascemos num mundo já pronto: os pais, a casa, o lá fora, e um
dia a escola. Só começamos a aperceber-nos disso ao iniciar esse longo,
infindável, processo de transmissão, pelo qual recebemos o saber que é
de todos. E vamos aprendendo a fazer nossa a diversa experiência de
cada um dos que estão conosco.
É isso a Escola: o lugar em que cada um começa a aprender a ser
ele próprio, ao mesmo tempo que é levado a descobrir os outros. Pri-
meiro, o que têm diante de si: família, amigos, colegas, professores,
. entre a diversidade das pessoas com quem se convive: entre os parentes
presentes e ausentes. Depois, os mais distantes, que já aqui estavam, e
os que vieram antes deles. A quem só chega pela decifração dos sinais
que deixaram. Em casa, os retratos dos familiares. Na cidade, os nomes
das ruas, os lugares, os monumentos. Nos livros, as imagens de outros
tempos e de outras gentes. As histórias que deixaram.
Assim vamos aprendendo. Até ao dia em que nos acham prontos
para enfrentarmos o próprio saber.
O saber, esse, começamos por recebê-lo passivamente, Depois
vamo-lo gradualmente acomodando à cadeia de decisões pela qual cada
vida humana se impõe e se distingue das outras. E, tal como a cada um
de nós, assim acontece e acontecerá aos outros.
É por tudo isto que o acaso é uma ilusão. Só um nome para
designar o que não podemos entender. É também por isto que ninguém
nunca está só, mesmo que um dia assim o sinta.

O saber é coletivo e pessoal

Todos os povos, todas as culturas, todas as nações têm um saber,


que contém o reportório do que descobriu e acha importante para a
sua sobrevivência. Saber ao mesmo tempo moldado aos contornos da
sua identidade.
Podemos compreender bem esta dupla natureza do saber pen-
sando numa casa, num lar. Vê-mo-lo equipado com tudo aquilo que os

34
que nela vivem usam no seu dia-a-dia. Mas os móveis, utensílios e ador-
nos que aí encontramos carregam em si uma memória em que a vida
dos que vêm se cruza com a dos que vão, na persistente continuidade
da família.
O saber constitui, pois, mais um dos campos de batalha em que
os humanos travam a sua guerra contra o tempo. De um lado está a
unidade do grupo, incessantemente reafirmada, cristalizada na memó-
ria que tem de si. Do outro, a sua constante renovação, na diversidade
dos que inscrevem na memória coletiva o selo da sua personalidade
própria.
Unidade e diversidade são perspectivas complementares pelas -
quais o saber pode ser abordado. Vê-mo-las concretizarem-se na série
de associações que o termo imediatamente desperta: conhecimento,
ciência, experiência, habilidade, aptidão ... Nelas a dimensão cole.tiva
da informação, tendencialmente teórica, combina-se com capacidade
individual de realização, que remete para a prática.

O que há para saber?

Mas esta complementaridade vai ainda mais longe. Pois o saber


cobre, além destas, outras áreas, mais vastas e difíceis de descrever: a
percepção e a consciência que cada um tem de si e dos outros, as im-
pressões pessoais, só parcialmente transmissíveis, os valores e o con-
junto de regras e preceitos deles decorrentes. Tudo isto condensado na
atitude que expressa a relação do ser humano com a vida e o mundo
que o cerca.
Condicionado pela rotina da Escola, que o coloca como sujei-
to passivo da aprendizagem, o estudante não tem grande oportuni-
dade para se aperceber de quanto o saber invade todo o espaço e
tempo da sua existência. Escapa-lhe, portanto, a extensão global do
muito que tem para aprender. Por outro lado, o turbilhão das sensa-
ções instala-o numa bem urdida ilusão de novidade. Não o deixan-

35
do ver que tudo o que lhe está a acontecer é idêntico, embora sem-
pre diferente da experiência por que todos os outros passaram, pas-
sam e hão-de passar.
No fundo, um erro compensa o outro. Pois, se, por um lado, a
sistemática confrontação com o corpo coletivo e teórico do saber
objetivo lhe esconde a dimensão pessoal daquele; por outro, o modo
como vive "a sua vida" não o deixa aperceber-se de como ela se
confunde com as outras, na identidade continuada da existência co-
letiva.
Só com a entrada na maturidade começa a valorizar a memória.
Quando começa a recordar-se de si e da sua história pessoal, quando
aprende a reconhecer-se no passado, começa a dar-se conta da longa his-
tória de tudo em que afinal sempre se achou inserido. Embora lhe falte
ainda uma enorme parte do percurso. Aquela em que acabará por entrever
quanto ele próprio não passa de um fragmento de História, por um fugaz
instante perdurando na sua própria memória e na dos que o cercam.

O peso da memória

É e tem sido sempre assim ao longo dos tempos. O grupo sobre-


vive atualizando-se em cada um dos seus membros: em quem imprime
a sua identidade e de quem recebe um novo e diverso impulso vital.
Mas, como se compatibiliza a unidade do grupo com a sempre renova-
da diversidade dos indivíduos que o compõem? Como pode a unidade
coletiva subsistir através da mudança das gerações? O problema é este.
E se é o mesmo em todas as culturas, as estratégias divisadas para o
resolver têm variado significativamente.
O homem é um animal gregário: não é capaz, nem está equipado
para viver sozinho. Depende dos outros para protecção e sustento. Mas
é errado pensar que essa dependência liga de modo indiferente todos e
cada um dos outros, do mesmo modo. O que acontece é que a
interdependência dos membros de um grupo varia e tende a

36
u ~~iVEHSIOJ.\I)f.: t:E-::·
' Rf'.L!í rt:Cí\ ._.

funcionalizar-se, aumentando com o crescimento do grupo e a diversi-


ficação das tarefas necessárias à sua sobrevivência.
É muito longo o percurso feito pelas sociedades até o momento
em que se torna manifesta a sua consciência de si. Tudo o que se pode
dizer é que há um momento em que a emergência da identidade coleti-
va começa a exigir dos seus membros a organização do território e do
modo de vida que escolheu. Estas exigências concretizam-se sobretudo
através da definição das instituições em que se concentra o poder polí-
tico e da manutenção do quadro técnico-profissional de que depende o
quotidiano da coletividade.
Que instituições são estas? Como se definem e estabelecem as
carreiras profissionais numa sociedade? Cada cultura tem de encontrar
a sua resposta para estas perguntas. Mas pode dizer-se que, na sua
evolução, a sociedade atinge um grau de complexidade que a obri'ga a
resolver um conjunto de problemas. Um é o da concretização da sua
identidade através da fixação da sua memória coletiva. Outro o da
necessidade de sistematizar o modo de transmissão dessa memória.
Um outro ainda será o da habilitação dos jovens para uma participa-
ção ativa no funcionamento do todo social. Em duas palavras, o pri-
meiro problema é o da emergência do saber. O segundo e o terceiro,
sob perspectivas complementares, o da educação.
Este é o momento em que o peso da memória se manifesta de
forma visível. Até aí à continuidade do grupo bastava a efêmera
transmissão oral. Mas desta não ficaram sinais. A não ser nesses
textos coletivos de outros tempos, conservados pelos sacerdotes, ou
nas narrativas dos feitos gloriosos dos antepassados heróicos, com
que os bardos cantavam a identidade e os valores que regiam o
grupo. Esta é a parte mais confusa do processo. Que memória pode-
mos ter de u~ saber que só ficou registado na memória dos que já
desapareceram?
Tudo o que sabemos é que há um momento, e uma sociedade, em
que passa a ser confiada a escribas a missão de fixar o saber coletivo
em contornos precisos. O próprio registo assume uma dignidade mo-

37
numental, independente das circunstâncias adequadas à preservação
da mensagem fixada e dos destinatários por ela visados.
O produto final é antes de mais nada, uma narrativa palpitante,
recheada de peripécias. Uma história de aventuras, que a muitas outras
servirá de modelo e inspiração. E, no entanto, a própria história não é
mais do que um artifício, concebido para garantir a fixação de tudo o
que se quer registar. Pois a forma da narrativa, moldada em verso
ritmado, encadeia nos feitos das personagens míticas um manancial de
informações, oriundas de todas as regiões da experiência5 , que a me-
mória assim procura fixar, para com mais facilidade poder reproduzir.
Vista deste modo, a composição de um poema, que narra as ori-
gens do mundo, dos deuses e dos homens, é uma tarefa gigantesca.
Não pode, portanto, ser obra de um único autor. No princípio eram os
cantos, que os bardos compunham, ou aprendiam de cor, e recitavam a
uma assistência atenta. É desses cantos que se alimenta a memória
coletiva, persistente na tradição oral. Até ao dia - séculos mais tarde -
em que os versos declamados· começam a ser registados por escrito.
Inicia-se então o trabalho complementar do anterior: o de orga-
nizar a diversidade dos episódios -as aventuras das personagens indivi-
duais -na unidade da narrativa. É aí que o poema começa a definir-se,
afirmando-se sobre a variedade dos cantos. Porque o texto escrito é
manejável, como a sua fonte oral não era. Fixado, pode ir-se aperfeiço-
ando. E as sucessivas correções pelos quais passa vão-no moldando até
encontrar a sua forma canônica.
É um processo muito complexo. E sobretudo lento. No início era
a imagem de um mundo que se pretendia captar. O mundo conquista-
do pelo povo cuja história mítica é narrada. Mas o poema inclui tam-
bém o saber desse povo, que passa dos feitos dos príncipes ilustres e
dos guerreiros à descrição dos modos de vida da população anônima: o

5 A leitura de uma obra como A vida quotidiana no tempo de Homero, de Émile Mireaux (trad.

portuguesa, Livros do Brasil, Lisboa, sem data), mostra perfeitamente como a elisão da história, a
supressão dos contornos concretos da narrativa, converte os poemas numa enciclopédia, numa
organização abstrata da memória e do saber dos tempos homéricos.

38
agricultor, o pastor, o homem do mar. É esse saber que o grupo quer
ver transmitido aos vindouros.
Mas a sociedade tem de optar. Ou permanece igual a si própria;
condenando-se a mudar sempre sem se dar conta do fato, limitada pela
imutabilidade do saber que ensina cada geração a seguir as pisadas da
anterior. Ou aceita o desafio de se libertar do peso da transmissão oral,
adotando a tecnologia que lhe permite fixar as mensagens sem ter que
as carregar na memória: a escrita.

Transmissão e criação cultural na Antigüidade

Esta maneira de apresentar o problema da transmissão cultural é


ilusoriamente simples. Quase parece que as sociedades optam pela escrita,
como se a tivessem à mão. A verdade é que também neste campo nos
deparamos com um processo longo e complicado. Há, porém, aspetos
distintos que não podem ser confundidos. Um- a que passaremos a seguir
-é o da invenção de um sistema de sinais escritos, capaz de registar os
fatos. Uma espécie de fala muda, que se vê, mas não se ouve. Que se lê.
Outro; que envolve toda a sociedade, é o que passa pela difusão da
nova tecnologia, desde que foi inventada até ao momento em que acaba
por se estender aos mais diversos contornos da vida da comunidade. Esse é
o mais difícil de perceber, porque dele não pode haver registos 6 •
6Uma forma indireta de nos darmos conta da dificuldade de compreensão deste processo é atentar-
mos no modo como ele continua a imperceptivelmente a transformar-se no nosso tempo.
Há menos de cem anos, os homens só podiam comunicar-se uns com os outros pessoalmente,
ou através de registos escritos. A entrada na segunda década do século XX trouxe consigo a difusão
dos meios de comunicação eletrônicos: as telefonias, os telefones, os gravadores, primeiro de sons,
e depois de imagens: as televisões.
É a partir de então que a palavra escrita começa a perder o império que mantinha sobre os
homens e a existência humana é enriquecida pela adjunção da realidade virtual. Enquanto os
nossos avós praticamente só escreviam, os nossos pais habituaram-se a comunicar-se de formas
mais vivas, em que a própria presença do emissor da mensagem é simulada.
Esse jogo entre o real e o virtual ocupa hoje um peso decisivo na vida dos mais jovens. Quanto
tempo gastamos a ver televisão? A ouvir música gravada (ou melhor, quantos de nós já foram a um
concerto ao vivo)? A falar ao·telefone (dentro de alguns anos com imagem)?
As transformações das tecnologias da comunicação estão criando um novo mundo à nossa
volta, sem que nos demos conta disso.

39
O papel capital é sempre desempenhado pela escrita. Mas como
é que ela pode agir sobre as mentalidades, condicionando o seu modo
de ver o mundo? A sua primeira função reside na libertação da memó-
ria do peso da mensagem imposta pela .tradição. Poupada ao esforço
exigido pela memorização, a mente adquire a capacidade de observar
de fora a mensagem. Tom_fl-se crítica. Nota incongruências. Revolta-se
contra o servilismo com ~ que tradição repetia sempre os mesmos pre-
ceitos. Por exemplo, por que é que temos de aceitar aquilo que os anti-
gos consideravam certo, quando é claro que já não tem validade hoje?
A mais relevante conseqüência do processo assim iniciado é a aparição
do novo, da declaração inédita e do seu autor, definido pelos contornos
da sua personalidade própria. E, a ele associadas, virão a autoconsciência
e o florescer nos outros das sementes do espírito crítico.
Assim se declara a revolução cultural. Mas é um erro pensar
que a opção por ela se põe isoladamente às sociedades, ou sempre
da mesma maneira. Representa um degrau, um patamar, a que as-
cenderam em conseqüência de um crescimento social e político con-
tinuado, para o qual converge uma imensidão de fatores. É possível
.só porque muitos outros obstáculos foram já ultrapassados com su-
cesso. A atenção particular que aqui lhe é conferida resulta do enfoque
na questão do saber. Deixemos, pois, de parte os outros aspectos.
Chegamos, contudo, a um momento em que a história que estamos
a explorar já não pode prosseguir sem a identificação dos protagonis-
tas. O desafio da revolução cultural começou a apresentar-se às socie-
dades do Mediterrâneo Oriental a partir dos finais do IV milênio a.C.
Foi aceita por todas. Porém, com estratégias e resultados bem diversos.
Fixemo-nos na escrita.

A escrita

Todo o sistema de escrita associa elementos de duas naturezas:


uma visual, outra fonética. A primeira está patente na realidade referi-

40
da, ou na idéia a ela associada, bem como no signo que a representa.
Por exemplo, a idéia de 'cavalo' contém a imagem real, ou imaginada,
de um cavalo qualquer: visíveis como a figura, ou signo, que a repre-
senta (o desenho de um cavalo). Todavia, a escrita pode também refe-
rir essa mesma realidade recorrendo à representação do som, ou sons,
da palavra usada para a designar. É o qu~ sucede se optarmos por
representar um cavalo pelas letras da palavra 'cavalo'- 'f'-'a' -'v' -'a' -'1'-
'o'-, que representam os sons com que é pronunciada.
O sistema de escrita adotado por uma sociedade pode ser esco-
lhido entre duas soluções possíveis. Ficar no visível, passando da reali-
dade à figura, ou signo, desenhando uma imagem do representado, de
modo indiferente aos sons palavra. Ou pode optar por representar a
realidade visual através do conjunto de signos representativos dos sons
da palavra falada.
Em termos práticos a diferença entre um e outro sistema é imen-
sa, em variedade, expressão e economia. Pois, enquanto o visual abre
diretamente para a ilimitada realidade representada, o fonético, que
estabelece a mediação entre duas realidades visuais através da sua re-
presentação sonora, recorre a um número definido de signos para re-
presentar o conjunto limitado de sons que os falares humanos são
capazes de articular7 •
Por outro lado, a infrastrutura (conjunto de elementos de que
faz uso) e a superestrutura (sistema dos objetivos e produtos que reali-
za) destes dois tipos de escrita vai conduzir a situações praticamente
opostas. Se não, vejamos. A escrita pictográfica é "pesada", porque a
acumulação de um extenso número de caracteres desenhados: 1) re-
quere um suporte material estável- pedra ou argila (osso, madeira ou

7
Em todo o signo linguístico se combinam duas naturezas: a visual e a sonora. A primeira refere-
se à própria realidade descrita (tecnicamente diz-se: refere). A segunda, a ela associada, evoca a
palavra, o som convencional usado para referir essa mesma realidade.
O sistema de escrita que se apoia na natureza visual requere idealmente um signo único para cada
entidade descrita. A escrita fonética é, pelo contrário, muito mais economica. A diversidade infinita dos
objetos é primeiro representada pela combinação dos sons da fala (que descrevem a realidade através
signos fonéticos), sendo estes que depois vêm a ser representados pelo signo escrito.

41
r

bambu, na China8 ) -; além de 2) uma classe de especialistas; portanto


3) uma utilização limitada. Pelo contrário, a escrita fonética é "leve":
1) porque não depende de suportes rígidos; 2) pode - e até deve - ser
aprendida por todos, num curto espaço de tempo, enquanto jovens; 3)
tendendo conseqüentemente a sua utilização a estender-se a todos os
campos da atividade cultural.
Os mais antigos sistemas de escrita do próximo Oriente -o hieroglífico
(egípcio) e o cuneiforme (sumério) -combinavam as duas naturezas do
signo numa escrita ritualista e monumental (adequada à natureza sacra
dos textos que começou por fixar). A evolução por que passaram ao longo
de dois milênios tendeu a simplificá-la -limitando drasticamente o núme-
ro de signos - e a diversificá-la, adaptando-a a finalidades práticas. Toda-
via, pelo início do primeiro milênio, outras escritas apareceram no Medi-
terrâneo, nas quais o elemento fonético era determinante.
Nestes, a diferença residiu na utilização do signo para represen-
tar fonemas compostos (sílabas), ou simples (letras). Os primeiros,
também cronologicamente, eram mais difíceis de manejar, devido à
ambiguidade consentida (resultante da elisão dos sons vocálicos 9). Os
.segundos, do quais se destaca o alfabeto grego, eram-lhes superiores
pela introdução das vogais, separadamente representadas ao lado das
consoantes.
Somando aos dezessete sons consonânticos (beta, gamma, delta,
dzêta, thêta, kappa, lambda, my, ny, ksi, pi, rhô, sigma, tau, phi, khi,
psi) as sete vogais (alpha, epsilon, iota, omicron, hypsilon, mais as
longas, êta e ômega) estabeleceu-se um sistema limitado de sinais
unívocos (representando sempre os mesmos sons, com um mínimo de··
8
O caso da China (e do Japão) são típicos da opção por um sistema puramente visual (pictográfico),
pois aí se desenvolveu uma Literatura que desde sempre viveu alheia à realidade fonética do falar
quotidiano. Enquanto a língua literária tradicional é para ver e não para ouvir, só mais tarde se
inventará um sistema destinado à representação da fala do quotidiano.
A invenção do papel (no séc. li d.C.) e a sua utilização como suporte da criação literária não
corresponderá, portanto, nem á restrição do número de signos escritos, nem contribuirá para a
aparição de uma escri ta fonética.
9
A ambiguidade reside no modo como o signo representa a sílaba falada. Uma vez que só o
elemento consonântico (por exemplo, 'p') se acha escrito, é permitida uma gama de vocalizações
- 'pa', 'pe', 'pi', 'po', 'pu' -, os quais podem representar palavras diferentes.

42
tJ1~P:/·er~S~üt~t· f :··:r:·r ' , I

c: .. ·.:. F~ .~

ambiguidades), susceptível de cobrir a totalidade dos sons articuláveis


na língua (incluindo variantes dialetais). O sistema era muito mais prá-
tico que os dos outros povos por várias razões. Era adequado a supor-
tes mais ou menos rígidos (da pedra ao papiro) . .Prestava-se a uma
aprendizagem rápida (menos de dois anos, antes da adolescência). Po-
dia fixar qualquer tipo de mensagens: não só as recebidas da tradição,
mas ainda outras, novas 10 em que a intenção do autor se subrepunha à
do escriba.

A produção dos primeiros textos da Cultura Grega

A entrada no último quartel do séc. VIII a. C. assiste à produ-


ção dos textos inaugurais da Literatura Grega. São eles os Poemas
Homéricos- a Ilíada e a Odisséia-, o primeiro com mais e o segun-
do com menos de de 15.000 versos (cujo cânone só terá sido fixado
no início do sé c. VI).
Um enorme mistério rodeia a produção destas obras; geniais, de
tão grandes dimensões. Terão alguma base histórica os acontecimentos
que narram? Ou, pelo contrário, não passarão de ficções da imagina-
ção homérica? Poderão ser atribuídos a um único poeta? Como se
explica tamanha perfeição e grandeza de concepção, numa época à
qual a escrita é recém-chegada?
Todas estas interrogações têm apaixonado os estudiosos das
origens da cultura Grega ao longo dos séculos. A hipótese que com
maior probabilidade responde satisfatoriamente a todas é a de uma
origem oral, que este e um conjunto de obras refletirão durante sé-
culos. Notamo-la nos cantos, ordenados em ciclos (Troiano, Tebano,
Argonautas, Titanomaquia, Cantos Cíprios), que reaparecem em po-
emas posteriores e mais tarde ganham proeminência na Tragédia.
10
Só era preciso inventar a palavra, ou conferir um novo sentido a uma já existente. A escrita
limitava-se a representá-la. Num sistema pictográfico, além da palavra, é preciso inventar o signo,
acrescentando-o ao imenso número dos caracteres já existentes.

43
\ \

Homero pode assim ser visto simultaneamente como um fim e


um começo: efeito da fixação por escrito de um conjunto de mensa-
gens conservadas na memória, tradicionalmente transmitidas pelare-
citação oral. ~
A hipótese de u a "literatura oral", resolvendo uma cascata de
problemas, abre, ,c ntudo, para uma nova cadeia de interrogações. Que
intenção, ou fh1~lidade cultural, se oculta por detrás destas obras? Que
relação é po.Úível estabelecer - de fato, que traços encontramos nos
Poemas-, ligando os mundos de Homero e dos seus heróis? Como se
pode explicar a função que Homero continuará, durante séculos, a de-
sempenhar na educação dos Gregos?
Como resposta à primeira pergunta, só recentemente começou a
ganhar consenso a visão "oralista" (que preside á abordagem da Lite-
ratura que estamos fazendo). Esta encara o conjunto monumental de
produções a que nos temos referido como uma gigantesca enciclopé-
dia, um enorme repositório do saber tradicional, em que a memória
dos Gregos, a consciência da sua identidade cultural, integralmente
repousam.
Nos Poemas Homéricos confundem-se dois tempos diferentes: o
dos fatos narrados pelos cantos orais e o das descrições e comentários,
introduzidos por Homero, quando lançou por escrito os poemas (séc.
VIII), sendo ainda possível que, até à fixação do cânone (séc. VI), se
tivessem feito acréscimos.
Durante todo este tempo, e ainda depois, até ao séc. V, Homero
ficará como o "educador dos Gregos". A tradição mitopoética, que
dele parte, agrupará as contribuições dos criadores "originais" da Cul-
tura e Literatura Gregas que nele se inspiram: a obra didática de
Hesíodo (a Teogonia, os Trabalhos e dias e o Escudo de Aquiles) e
depois dele a lírica arcaica, monódica e coral, e a partir daí uma
variedade de gêneros e autores, cuja presença conflui nos grandes
cultores da Tragédia, no séc. V (Ésquilo, Sófocles e Eurípides). Que
representam todos estes afinal? Numa palavra, a mudança dos tem-
pos, a emergência de uma consciência crítica, produzida pela trans-

44
I
I
I
I
formação dos costumes e dos valores, pelos novos desafios a que as
I
alterações sociais vão originar.
I
É desta mesma fonte e explorando este mesmo impulso que a
I
Filosofia vai nascer na Grécia. Mais assumida e conscientemente vol-
tada para o saber, dependendo das personalidades em quem ele se
consubstancia- os Sábios (sophoi) -, toda ela é intrinsecamente gre-
ga, provindo dos mais distantes pontos do mundo helênico, do Ori-
ente norte, no mar Negro, até às colônias do sul da península Itálica,
passando pela ilhas jonicas e pelo litoral da Ásia Menor. Todavia, esta
abrangente origem aponta para um único alvo: para a Atenas dos
sécs. V-IV. É aí que a vemos florescer, primeiro na intensa revolução
cultural a que se associam os sofistas, depois, nas obras dos grandes
filósofos: Platão e Aristóteles. Nelas se assume como método de in-
vestigação e busca do saber, e depois disciplina em que esse saber se
acha fixado e apto a ser transmitido para o futuro, em obras concebi-
das e estruturadas pelas regras da composição escrita 11 •

A Cultura e Literatura gregas até ao séc. V

O processo que conduz à emergência da Filosofia Grega não pode


ser desassociado daquele que acabamos muito sucintamente de referir.
Um e outro se entendem como manifestações da identidade cultural
grega. Num e noutro é a intenção epistêmica (do Grego epistêmê), a
preocupação com o saber- coletivamente encarado, ou individualmen-
te assumido - que o pode explicar.

11
A história dos primeiros momentos do processo de transmissão, aquisição e fixação do saber
grego acha-se condensada em torno destes três figuras tutelares: o sábio, o sofista e o filósofo. O
epíteto 'sábio' começa por designar uma personalidade venerável, responsável por qualquer frag-
mento de saber que a memória coletiva tenha deciddo fixar, para, no séc. V. referir todo aquele que
aspira a ostentar esse estatuto. O termo 'sofista' começa por ser aplicado àquele que se afirma
detentor de um saber qualquer, pela transmissão do qual se responsabiliza, para acabar por descre-
ver uma personagem típica, hábil na fala e na argumentação. O 'filósofo' é aquele que se dedica à
aquisição e exploração de um saber teorético (desinteressado das aplicações "práticas"), que cobre
todos os domínios da realidade, de cuja posse efetiva nunca se quer afirma como detentor.

45
O que inicialmente se nos manifesta como captação de uma
memória milenar, genialmente imobilizada "nas potentes cadeias"
do verbo homérico, é a um tempo declamação oral e discurso escri-
to. É o imenso compêndio de um saber que abarca a história e a
geografia do mundo antigo, além de um percurso enciclopédico atra-
vés das artes e técnicas do quotidiano, tudo encerrado numa síntese
ética e política, que afirma e questiona o próprio sentido da identi-
dade cultural dos Gregos: a sua origem e o seu futuro como herdei-
ros dos deuses.
A poesia didática e a lírica arcaica retomam essa síntese através
dos olhares, cada vez mais intensamente pessoais, dos criadores cultu-
rais gregos, atentos às exigências dos seus tempos e lugares. É todo um
mundo novo - interior e exterior- que o homem reconhece e descreve
com surpresa e paixão.
A entrada no séc. VI vai trazer a confrontação dos Gregos
com outras e sempre novas experiências. Dessa tradição- a lírica-
mencionaremos apenas três nomes. Arquíloco revisita e revê
Homero, do mesmo modo que Sólon o ajusta- e também a Hesíodo
- a uma nova realidade política: a da cidade-estado. A sociedade
aberta que começa a despontar, oferece oportunidades a diferentes
reações: dos que choram a pureza dos valores perdidos, ou se riem
da estranha mistura de que são compostos os humanos. Píndaro
caldeia o metal da antiga excelência guerreira no fogo que incen-
deia os estádios, propondo uma nova visão do heroísmo.
Mas a voz e o olhar dos Gregos alarga-se a outros horizontes.
É a exploração da nova geografia do Mediterrâneo e dos povos que
o habitam que, com Heródoto, aponta para a fundação da História.
É a interrogação sobre a razão de ser de tudo, o questionar da or-
dem, do mundo e da vida, o espanto com a sua própria evidência,
que conduz à intenção epistêmica de que nascerá a Filosofia. Mas
essa história, em que Parmênides ocupa posição proeminente, tem
de ser contada de outra maneira.

46
I
I
I
I
A formação da tradição filosófica grega
I
I
Se a preocupação com o saber constitui a essência da Filosofia,
I
então é impossível dissociá-la do impulso que desde sempre anima toda
I
a Cultura e Literatura gregas. Se, por outro lado, a reflexão filosófica
I
se dirige a um conjunto de temas e problemas específicos -os que assis-
I
tem à organização e explicação do mundo e da vida - , então como é
I
que deixamos fora dela quantos a estes se dedicaram: os poetas, nome-
adamente? Todavia, se a tradição filosófica retoma questões antigas a
uma outra luz, ou se concentra nelas de uma forma nova, então há que
explicar como e porque isso acontece. E também onde e quando, e com
que conseqüências. Numa palavra, se não tem sentido separar a Filoso-
fia da Cultura em que nasce e da Literatura que a exprime, na Grécia, é
preciso explicar como foi que isso mesmo veio a acontecer (por exem-
plo, nas Histórias da Filosofia).
Mas para isso teremos de prestar atenção a um conjunto de fatos
políticos que ocorreram num tempo e num lugar bem circunscritos,
com enormes conseqüências em todo o futuro da Cultura Ocidental. E
depois que abordar uma história bem conhecida por uma perspectiva
um tanto diferente da habitual.

Interlúdio político

Os fatos políticos são os que se prendem com a História de Ate-


nas, que por mais de um século se confunde com a de toda a Grécia:
praticamente do final do séc. VI aos meados do IV a.C.
As lutas políticas que tinham dilacerado as cidades gregas duran-
te os sécs. VII e VI tiveram contornos bem definidos. Uma aristocracia
terra tenente, senhora do Poder e do Direito, subjugava pela força com-
binada dos laços de sangue e das armas uma população de agriculto-
res, agrupada em torno de centros urbanos. A luta pela posse da terra é
em alguns casos conduzida ao limite extremo da guerra civil. Para a

47
evitar, ou como conseqüência dela, algumas dessas cidades entregam-
se ao arbítrio de um tirano.
E é assim que o poder de um único homem e, por arrastamento,
da dinastia dos seus descendentes, por algumas décadas, consegue afir-
mar-se acima das leis. Esse episódio traz, porém, inesperadas conse-
qüências. A política dos tiranos é intensamente "desenvolvimentista".
Ao dar novo impulso às atividades produtivas, desenvolvendo as in-
dústrias artesanais e o comércio que nelas assenta, o tirano converte a
cidade no pólo de atração de uma nova forma de riqueza- a moeda. E,
com ela, deixa que uma nova classe de industriais artesãos e comerci-
antes se distinga e se aproxime do poder.
A luta era, como sempre foi, pela terra. Mas a solução da conten-
da passava pela promulgação de leis que sanassem os antigos conflitos,
tomando medidas para que não se viessem a repetir. Isso equivalia a
redistribuir o poder em bases inteiramente novas. Os tiranos, já o vi-
mos, tinham alterado os dados do problema, dando origem a uma
nova e inédita forma de riqueza. Mas tinham, na melhor das hipóteses,
apenas contribuído para o adiamento da confrontação de uma classe
de latifundiários, sempre cada vez mais reduzida, com uma população
de expoliados, pelo contrário, cada vez mais numerosa, por vezes redu-
zida à servidão nas suas antigas propriedades 12 •
Atenas não foi estranha a este processo, embora tenha contribu-
ído de forma original para a sua ultrapassagem. No final do séc. VII, a
cidade encontrava-se à beira da guerra civil. Foi então escolhido um
homem - Sólon - para arbitrar o conflito. Mas não quis agir como um
tirano. Criou legislação com vista à sua superação: acabou com a servi-
dão, perdoou as dívidas dos pobres aos latifundiários, tirou algum po-
der às instituições tradicionais, criando outras, e ordenou um censo
que dividiu a população em quatro classes, segundo o rendimento das
suas terras, expresso em medidas de cereal e de líquidos (azeite ou
vinho). Promulgada esta legislação, deixou o poder e a cidade.
12
A perda da liberdade e da cidadania e a conseqüente redução à escravidão são consequências da
impossibilidade de pagar as dívidas contraídas.

48
I
I
I

Era movido por objetivos+ opostos: impedir a concentração do I

poder na oligarquia das antigas famílias, deixando intocada a estrutura I

política da cidade. O que equivale a deixar os ricos no poder, evitando I

que enriquecessem cada vez mais, à custa do empobrecimento dos ou- I

tros. Por isso sempre recusou a redistribuição da terra. Mas a profundi- I


dade das mudanças operadas não consentiu que se fizessem sentir ime- I

diatamente.
A situação foi aproveitada pelos Pisitrátidas, que se mantiveram no
poder ao longo de quase todo o séc. VI. Até que, após o "tiranicídio" de
Hípias - o terceiro e último da dinastia -, ao entrar na derradeira década do
século, um novo Sólon apareceu em Atenas. Chamava-se Clístenes e teve a
oportunidade de lançar as bases do sistema democrático.
Através de uma completa reordenação do território, conseguiu
que os laços das antigas solidariedades fossem desfeitos e novas insti-
tuições criadas, que permitissem à segunda classe censitária (a dos ca-
valeiros) abeirar-se do poder. Mas as forças em oposição mantinham o
conflito latente.
De forma que ninguém sabe o que teria sucedido, se o rei dos
Persas não tivesse invadido a Grécia. A disposição das cidades para o
acolher, e das classes no seu seio, foi diversa 13 • Uma, porém, se lhe
opôs com determinação e o deteve no campo de batalha: a democracia
Ateniense, em Maratona.
A vitória de 490, renovada em Salamina, em 480, trouxe a
hegemonia sobre toda a Hélade a uma cidade arrasada pelas tropas
invasoras. Cidade que o ouro dos aliados irá ajudar a reconstruir, urba-
na e politicamente. É essa Atenas que, a partir de 480, primeiro os
aristocratas, mais tarde Péricles - recorrendo a subsídios e à política
monumental dos tiranos-, começarão a erguer em bases inteiramente
novas, convertendo-a no grande centro difusor da cultura grega.
13 Os aristocratas, bem como as cidades em que dominavam, mostravam-se dispostas a acolher a

supremacia Persa, que por pouco mais se expressaria do que pelo pagamento de um tributo. Pelo
contrário, as democracias, construídas sobre a isonomia, a igualdade dos cidadãos perante a lei,
.recusavam esse domínio, por saberem que era sobre o corpo dos cidadãos que os encargos haviam
de cair.

49
Política e Cultura

Foram os aristocratas Aristides e Temístocles que aproveitaram


o tesouro da Liga de Delos 14 para a reconstrução de Atenas. E foram
também eles que imaginavam a estratégia de fazerem os cidadãos acor-
rer à cidade, assegurando-lhes ocupação e sustento 15 • Durante trinta
anos, a população urbana continuará a aumentar e com ela o peso
. político das instituições democráticas (aquelas em que todos participa-
vam, independentemente do seu estatuto social).
No entanto, enquanto as instituições de raiz aristocrática tives-
sem poder, o perigo de ruptura era real. Foi assim que, em 462, o
choque entre o Conselho (democrático) e o Areópago (aristocrático) se
verificou. A conseqüência foi a virtual dissolução, ou reconversão, des-
te instrumento tradicional do poder hereditário da aristocracia.
Pouco depois Péricles assumirá o poder. Não se sabe se é res-
ponsável pela lei que alarga a elegibilidade para o arcontado (o
mais alto cargo político) à terceira classe censitária (os "compa-
nheiros de jugo)". Mas é conhecido o estratagema que mais tarde
imaginará para combater o ascendente da aristocracia sobre o povo:
· continuar a usar o ouro dos aliados, agora para pagar um salário
aos juízes, tirados à sorte.
A tradição aristocrática vê nesta medida a degradação da justi-
ça pelas instituições democráticas. Ela não pode, porém, ter deixado
de ter conseqüências benéficas sobre a cultura da democracia. Até aí
o poder não podia deixar de voltar aos aristocratas: fortes, equipados
e livres para o usarem em seu proveito. Mas agora, o funcionamento
estritamente igualitário das instituições espalhava-o por todos, inde-
pendentemente da sua capacidade e competência. Embora só os bem-
nascidos continuassem a ser os que dispunham dos meios que lhes
14
Criada em 478, constituia um fundo, destinado a prevenir uma possível nova invasão persa, para
o qual contribuiam as cidades gregas aliadas.
15
Criando um exército permanente e uma elite de funcionários administrativos, integrados em insti-
tuições sobre as quais repousará o poder, político, militar e burocrático, de Atenas. O pagamento
desta burocracia começou por ser feito em gêneros, para só muito mais tarde recorrer à moeda.

50
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permitiam ser eleitos para os mais altos cargos, onde seguiam uma
carreira política.
Todavia, com as últimas transformações por que passou o regi-
me democrático, são agora concedidas oportunidades aos cidadãos co-
muns. A dificuldade reside na formação que deveriam receber. Quem a
poderia proporcionar? A educação, na Atenas de meados do séc. V,
não se estendia acima do nível primário: ler, contar e talvez escrever,
mesmo assim com fluência difícil de avaliar. Onde se poderão achar os
mestres aptos a promover este ensino?

Os sofistas

É costume invocar a chegada dos sofistas a Atenas expressamen-


te para satisfazer essa súbita necessidade de habilitação para cargos
públicos. Esse fato, contudo, deve integrar-se num movimento muito
mais amplo de emergência, e posterior afirmação, de uma "classe mé-
dia" urbana, para a qual as carreiras profissionais terão ganho, por
alguns anos, uma importância que depois virão a perder.
São anos (entre 475 e 450) em que Atenas verdadeiramente se
converte no centro da Hélade. Marcados, como já vimos, por uma aflu-
ência de gente à cidade, de que res,ultará um aumento gradual do nú-
mero de cidadãos. A cidade "cresce" a olhos vistos. E com ela o peso
das instituições democráticas, depois do afastamento da aristocracia 16
e da anual reinstalação de Péricles no poder (de 462 até à sua morte em
429). Todavia, a manutenção da estrutura social tradicional, além do
custo das recém-formadas instituições, não pode permiti-lo. Em 451, o
próprio Péricles porá cobro a essa tendência, restringindo a cidadania
aos descendentes de pai e mãe Atenienses.
16
Além do aumento de importância das instituições a que todos tinham acesso, fortalecidas por
passarem a ser pagas, da criação de uma burocracia administrativa e de um exército regular, os
aristocratas tomam-se alvo do ostracismo: decisão pela qual a Assembleia podia exilá-los de Atenas
por um número variável de anos. Deste modo, a democracia protege política e economicamente os
mais pobres, ameaçando ao mesmo tempo o poder dos ricos.
Começam a tomar-se evidentes os sinais de contração política na
hostilidade com que são tratados os estrangeiros. Mesmo assim, a in-
fluência dos sofistas continua a fazer-se sentir. Surgem, no entanto, as
primeiras manifestações do desagrado que a sua presença provoca: de-
cretos censórios e processos, visando o próprio Péricles e a elite intelec-
tual que o rodeava (meados da década de 30).
Todavia, o início da guerra do Peloponeso ( 431-404), a sub-
seqüente morte de Péricles, bem como o êxito das primeiras tenta-
tivas bem sucedidas de sacudir o jugo Ateniense, pela parte dos
antigos aliados da Liga de Delos, devem ter contribuído para tor-
nar ainda mais tenso o clima político em Atenas 17 • Esta hipótese
justifica as críticas a uma mentalidade "aberta", de que a "grande
geração" dos sofistas, entre os quais incluiremos Sócrates, será o
expoente.
De início, o sofista talvez apenas tivesse sido alguém que, à ima-
gem de Prometeu 18 , invocasse a capacidade de praticar e de transmitir
o saber associado a uma profissão. A expansão da classe média nesses
anos, associada ao esplendor econômico e cultural de Atenas, contri-
bui para o prestígio de que gozarão durante pouco mais de uma déca-
da. É que os tempos não tardarão a mudar.
Talvez por isso a História só conserve a memória daqueles, pou-
cos, cujo saber- como Protágoras e Hípias (nascidos por volta de 490 e
famosos já antes da década de 30) -,se estendia a todos os campos. Ou
dos que- como Pródico, e mais tarde Górgias (chegado a Atenas no
17 A súbita entrada em Atenas da população rural , fugida à invasão espartana, degrada o modo de

vida Ateniense. Declara-se a peste, que vitimará o próprio Péricles. Os altos e baixos das campa-
nhas guerreiras agravam a instabilidade da vida. Em 411 a "tirania dos 400" derruba o estado
democrático. A revolta que põe cobro ao seu domínio não consegue restabelecer o equilíbrio na
cidade. A execução ilegal dos generais vencedores da batalha das Arginusas (406), a derrota final
de Egospótamos (405) e a entrega do poder à "tirania dos 30" (404) não podem ser alheias ao
estado de espírito da cidade que condena Sócrates (399).
18 Antigo semideus, um dos titãs, cuja história é referida por Hesíodo, na Teogonia (5 1Osegs.), e por

Ésquilo, na tetralogia Prometeu, de que sobreviveu uma única tragédia: Prometeu agrilhoado.
Originalmente encarna a figura ambigua do deus, ou herói, artificioso e desonesto, presente em
muitas tradições (Loge, na Edda nórdica; Quetzalcoatl, na mitologia tolteca, etc.). A ambiguidade
mantém-se na evolução posterior para a figura do defensor do Homem (é ele o responsável pelo
roubo do fogo aos deuses, pela arte da fundição dos metais e pela guerra).

52
ano do nascimento de Platão, 427) -, se tomarão famosos pelos seus
ensinamentos sobre a linguagem e a oratória (ou retórica).
É destes, conhecidos sobretudo pela imagem fixada nos diálogos
platônicos, compostos cerca de meio século mais tarde, que a tradição
celebra os êxitos e invejas que despertaram: o fazerem-se pagar, serem
seguidos por discípulos e admiradores, questionarem o saber e as cren-
ças tradicionais, entregando-se a debates e a argumentos, tão inéditos
que a partir deles se cunhou o termo "sofísticos" 19 • Todavia, embora
fundada, a concentração exclusiva nesta dimensão da prática dos sofis-
tas peca por excesso. Faz esquecer que devemos encará-los como os
primeiros intelectuais que o Ocidente conheceu. E que a eles se deve a
idéia de um ensino acima do nível primário e a introdução das primei-
ras perspectivas críticas sobre a tradição.
Todo este processo é contemporâneo do nascimento da prosa
grega. O que equivale a dizer ser esse o momento de extensão da escrita
à captação da fala do quotidiano, funcionando não mais como memó-
ria atual de um tempo passado, mas como memória futura do tempo
presente.
Decerto o desinteresse dos sofistas pelo saber, bem como a sua
orientação pragmática para o poder, notáveis nos debates através dos
quais se promoviam, justificam não terem prestado maior atenção à
escrita. Embora seja possível pensar que o número de peças que nos
deixaram é diminuto por muitas se terem perdido. Mas, mesmo assim,
19
Poderemos considerar tipicamente sofística a completa cisão entre o discurso e a realidade a que
se refere (adiante discutida). Esta atitude resulta e pode ser explicada por duas razões de ordem
diversa. Por um lado, pela distância crítica com que viam a tradicional exigência de infalibilidade
do saber; por outro, pela sua concentração no poder único do discurso.
Os sofistas são os primeiros a dar-se conta, e a explorar até às últimas consequências - em
polêmica oposição aos filósofos - o fato de a estupidez e a incompreensão humanas poderem e
deverem ser usadas como argumento nos debates. Não para o saber, naturalmente, mas para o
poder.
Tanto sofistas como filósofos constatam a ignorância dos homens. Todavia, enquanto os últi-
mos procuram combatê-la através da defesa de um projeto de saber (de valor incerto e sempre
discutível), os primeiros percebem as vantagens imediatas, resultantes do seu aproveitamento. A
oratória, a persuasão, a demagogia, levam a cabo nas assembléias a função que a erística (ver
adiante) desempenha nos debates públicos. Voltaremos com algum pormenor a estas questões, nas
quais é sensível a influência exercida pelo Poema de Parmênides.

53
nem a enumeração dos seus títulos sugere obras com as dimensões das
de Platão e de Aristóteles.

A Filosofia

1. PLATÃO

Os sofistas não terão sido, portanto - como o próprio Sócrates 20


não foi-, heróis da escrita. Depois de Homero, esse título cabe antes de
todos a Platão. Embora nem sequer nos seja possível apercebermo-nos
da motivação que o leva a escrever uma tão extensa obra, cuja compo-
sição decerto se estenderá ao longo de toda a sua vida.
A primeira função da escrita é mnemónica. Fixar mensagens que
a alguém pareceram importantes 21 • Talvez a intenção, apontada pelo
filósofo Ateniense, de ter composto os diálogos para " ... se distrair na
velhice" (Pedro 276 d), não seja assim tão alheia à utilização que hoje
lhes conferimos. Mas quem seria capaz de lhe profetizar uma velhice
tão prodigiosamente longa, durante a qual não cessa de "distrair" gera-
ções de estudiosos?
Acima de tudo, um ponto lhe importa fixar: os diálogos não
contêm "a sua Filosofia". Recordações do jovem Sócrates, ecos de anti-
gos debates, críticas aos discursos "dos sábios" - nada disso se contra-
diz-, tudo cabe na escrita. E converge no esboço muitas vezes repetido
das infinitas vias conducentes ao saber. Os diálogos podem até ser lidos
como convites à Filosofia, exemplificações do método a seguir, mais do
que como veículos doutrinais. No fundo, qualquer das abordagens é
legítima, com a única condição de o próprio saber ficar de fora.
20
O fato de Sócrates não ter escrito, bem como a circunstância de a sua influência nas gerações
• futuras se exercer exclusivamente através da imagem fixada por Platão, leva-nos a encarar as
doutrinas que lhe costumam ser attibuídas, bem como os métodos de investigação que desenvolve,
como da responsabilidade do autor dos diálogos em que figura como personagem central: Platão.
21 Talvez seja simbólico que uma das primeiras inscrições em Grego, que a História captou, tenha

tão pouca elevação e solenidade quanto pode ter um simples recado, escrevinhado num caco de
cerâmica, em que um trabalhador diz ao outro onde deve deixar a serra.
Isto significa, à letra, a completa fidelidade para com o sentido
próprio do termo 'filosofia': amor ao saber. Perseguição constante em
vez de posse efetiva. Entrega total, em cada instante e ao longo de toda
uma vida, à busca do saber. Movido pela única certeza de a infalibilidade
- marca do saber autêntico - ficar sempre além de todas as tentativas.
Escapam-nos hoje as razões deste eterno adiamento do encon-
tro com a verdade. E muitos sucumbem à tentação de as encontrar
numa exigência mística de absoluto, que depois se teria perdido. Para
só reaparecer num ou noutro pensador, fundamente associada ao an-
seio religioso.
É legítima também essa interpretação. E defensável a sua locali-
zação nos diálogos. A exigência de infalibilidade, que aí notamos ser
atribuída ao saber, radica na dimensão sapiencial da tradição grega .
. Desde Homero que a vemos ser atribuída aos videntes e poetas, que
sabem "o que é, o que será, e o que foi antes" (Ilíada I 70). Decerto
porque "os deuses" lho ensinaram.
Séculos mais tarde, outros poetas, como Xenófanes e de certo
modo Heráclito, em quem a busca do saber é plenamente assumida,
rir-se-ão-das pretensões de Homero. Parmênides, contudo, apesar de
ser um pouco mais novo que eles, não deixará de lhes prestar toda a
atenção, ao fazer do seu poema uma viagem ao encontro de uma deu-
sa. Da boca de quem sai a mensagem que "o jovem" se limita a fixar,
para depois a transmitir aos mortais (frg. 2.1).
Por outro lado, a busca do saber nunca deixa de exprimir, em
Platão, uma intenção política, a que a dimensão religiosa e cultuai tam-
bém nunca será estranha. É o enigma da "sua sabedoria" que leva Sócrates
a interrogar os outros homens (Apologia 20 e segs.). Tal como é a via de
acesso ao "bem" que as investigações dos diálogos promovem.
Esta intenção é-nos hoje perfeitamente estranha. Como poderá
um estudante divorciar a busca do saber da sua posse efetiva, depois de
ter passado na escola a maior parte da vida? Como pode manter-se
indiferente ao fato de não encontrar resposta para as perguntas que
mais vivamente o perseguem?

55
As perguntas de Sócrates irritam-no tanto mais quanto lhe pare-
ce só ganharem sentido através da destruição de todas as respostas.
Todavia, se o impulso que as orienta para o saber se esgota na mera
procura, não é então claro que a Filosofia não serve para nada? A
resposta a esta pergunta tem de ir mais longe do que a simples consci-
ência de haver perguntas que nunca têm resposta.
Antes de mais, porque há perguntàs que têm resposta, às quais a
Filosofia não pode ser indiferente. Nem superior. Porque há um saber!
Que se ensina e que se aprende. Sob pena de a Escola não ter qualquer
sentido. E também a vida.

2. ARISTÓTELES

Aristóteles dá-se já plenamente conta desse fato. A "sua filoso-


fia" passará então pela fixação de todo o saber grego no conjunto
tendencialmnte fechado de perguntas a que ele terá de dar resposta. O
seu ponto de partida é a pergunta pelo saber. Os que a fizeram foram
os "primeiros a filosofar". A partir destes (com exclusão dos sofistas,
· que, como vimos, se não interessam pelo saber) a Filosofia constitui-se
como uma tradição de perguntas e respostas, encadeadas limas nas
outras, que ele começa por registar. Para depois criticar. E acabar por
integrar nas respostas que para elas encontra, posicionando-se no fim
da Filosofia.
Desta maneira, a tradição de investigação, assente no conheci-
mento dos poetas e nos tardios "livros" 22 , em prosa, que resumem "as
suas doutrinas" (do final do séc. V), ganha uma expressão literária. E
transforma-se em tradição escrita: recolha, comentário e crítica ao sa-
ber anterior. A Filosofia torna-se Literatura. Não por se desinteressar
da argumentação em que Platão a envolveu, mas por se fixar em tex-
22
Que pouco mais seriam do que resumos de ditos e opiniões correntes, atribuídos a um intelec-
tual, copiados nuns magros rolos de papiro. Na Apologia (26 d) Sócrates diz que "os livros de
Anaxágoras" custavam nas bancas uma dracma. Sabendo que esse era na altura o salário diário de
um trabalhador, será legítimo conjecturar que não levassem mais do que um dia a copiar.

56
tos! A dependência que ainda em Platão se manifesta em relação à
oralidade atenua-se até se apagar de todo. Do mesmo modo que o
império da pergunta vai ruindo perante a invasão do exército das res-
postas em que a reflexão se transforma.
Na realidade o processo nunca pode chegar a completar-se por-
que há mesmo perguntas que nunca terão resposta. E a Filosofia gira
incessantemente em torno delas. É que as respostas de Aristóteles não
são definitivas. Mesmo se continuam ainda hoje a fazer sentido para
muitos homens. Vai para mil anos que o assédio do imenso edifício do
saber aristotélico se mantém, sem que estrutura em que assenta tenha
sido totalmente arrasada.
Mas não poderemos deixar de conceder toda a razão a Platão,
pela sua insistência na dimensão heurística, investigativa, do saber. Não
só há perguntas sem respostas, como ainda toda a resposta abre para
uma infinidade de novas perguntas. Há um saber que se fixa em infor-
mação adquirida. Mas só a reflexão sobre ele pode conduzir à desco-
berta de mais saber. A pergunta pelo saber nunca pode ter resposta
definitiva. Sob pena de o destruir como saber.

O Poema de Parmênides

A pergunta pelo saber conduziu-nos ao longo de um tortuoso per-


curso. A partir da infância e adolescência de um jovem, passando pelos
bancos da escola, até à sua entrada na vida, a que os adultos chamam
"ativa". Passamos daí ao exame das circunstâncias em que as sociedades
problematizaram o saber, bem como das estratégias que divisaram para
promover a sua fixação e transmissão. Orientamos então a atenção para
a Cultura Ocidental, cuja história das origens muito brevemente exami-
namos, em busca da solução que encontrou para o problema da fixação
e transmissão do saber. Chegamos assim à escrita, à educação e à Escola.
Forçados a perscrutar as raízes culturais do Ocidente,
concentramo-nos na Grécia. A sumária revisão dos fatos políticos rele-

57
vantes deixou-nos perante.a Atenas do século de Péricles, na qual en-
contramos algumas respostas que ainda condicionam o nosso presente
político. Foi assim que chegamos aos sofistas e à Filosofia.
Em todo este processo de fixação e renovação do saber, o Poema
de Parmênides desempenha uma função capital. É nele que colhemos a -
concentração no saber. É dele que deriva ainda, pela via negativa, a
teorização do discurso, que os sofistas explorarão. É finalmente dele
que recebemos a ordem de procurar o saber através do debate dialético.
É, portanto, para ele que nos voltamos agora. Em busca do senti-
do das perguntas que esboça e das respostas que para elas acha. E até
do modo como ao longo dos séculos não parou de afetar a nossa pró-
pria capacidade de fazer perguntas.

58
' '·

INTRODUÇÃO À LEITURA DO
PoErYIA DE PARMÊNIDES

O Poema de Parmênides, a que a tradição atribui o título comum à


quase totalidade dos "livros"23 dos pré-socráticos - Sobre a nature-
za -,é uma das obras mais importantes não só da Filosofia Grega, mas de

23
A tradição, mais que milenar (estende-se do final do séc. IV a. C. até ao séc. IX d. C.), que
tomou a seu cargo fixar o saber dos gregos anteriores a Sócrates, achou bem atribuir a composição
de "livros" à generalidade dos pensadores de quem lhe tinham chegado "fragmentos" escritos. A
venerável antiguidade dessa atribuição tornou-a inquestionável, aos olhos de muitos estudiosos da
Literatura e da Filosofia gregas.
Admite-se hoje que alguns desses livros, dos quais não conhecemos referência no séc. IV a. C.,
possam ter sido atribuídos exclusivamente com base em fontes muito posteriores. De resto, que
poderemos entender por um "livro", na Grécia arcaica, ou mesmo clássica? Poderia tratar-se de
ditos conservados pela memória oral, mais tarde captados por escrito por outros, com intenções
críticas; ou resumidos por copistas, que faziam negócio com a sua venda ao público. Estas e outras
possibilidades fazem-nos pensar que talvez não disponhamos apenas de "fragmentos" de obras de
considerável extensão, mas de textos fagmentários, eles próprios ecos de opiniões mais antigas.
Excetuam-se naturalmente aqueles de que não se pode duvidar que tenham sido compostos, na
forma com que os conhecemos, como é o caso dos poemas. Aqui a natureza fragmentária é inquestionável
e as grandes dúvidas são sobre a extensão e importância do que se terá perdido. Mas é ainda assim
permitido conjecturar que o que não sobreviveu foi deixado de parte por se julgar ter menos relevância,
sendo certo que- seja por que razão- deixou de exercer influência no pensamento postetior.

59
toda a Cultura Ocidental. Deriva essa sua importância da influência -
implícita, ou explicitamente atestada - que exerce sobre a totalidade dos
pensadores gregos posteriores a Parmênides. Se fosse só por isto já seria
bastante. Mas nem sequer é aí que reside a mais mais autêntica medida da
sua importância. Pelo modo como aborda a questão do saber e a converte
no tema central da sua investigação, o Poema de Parmênides foi, e conti-
nua ainda hoje a ser reconhecido como a primeira obra em que se definem
os princípios reguladores da atividade a que se chama 'pensar'.
As suas duas grandes contribuições para a Cultura Ocidental
acham-se, portanto, facadas no saber e no pensar. Quanto ao primeiro
·- ~
aspecto, o poema inova por ter deslocado a interrogação, do tradiciQ-
nal questionamento sobre a origem e a constituição do cosmos, para a
do próprio saber. Quanto ao segundo, a inovação reside no modo como
encontra na análise do pensar a solução para o_problema do saber.
É como se, confrontado com uma pergunta e a indefinição gerada
pela sucessão das diferentes respostas que a tradição regista, o investiga-
dor buscasse, através do rigor dos procedimentos que desenvolve, a força
para impor a sua resposta. Surpreendente é ainda que, na análise levada a
.cabo, venha a recorrer~ princípios que ainda hoje tutelam o pensamen-
to: da identidade, contradição e t_~rceiro excluído, invocando ainda uma
versão do princípio da razão suficiente em apoio da opção que segue. Este
recurso implica uma inédita valorização dos processos formais do pensa-
mento (dependentes das suas regras de funcionamento e metodologia), em
detrimento da natureza material do saber (patente na especificidade das
questões que aborda). Uma vez mais, é como se o interesse da investigação
se afastasse do qu!! e do porque das questões, para se centrar no como
das perguntas e das respostas.

História das cópias do poema

Todos os pensadores gregos- não é excessivo repeti-lo- manifes-


tam a influência de Parmênides. Porém, mais alto que o de todos os

60
outros, o reconhecimento do valor dessa influência acha-se muitas ve-
zes atestado nas obras de Platão e de Aristóteles: sobretudo no diálogo
Sofista e na Física.
E, no entanto, por paradoxal que pareça, se dispuséssemos só
dos testemunhos destes dois filósofos, o nosso conhecimento do Poema
de Parmênides seria diminuto. É aos discípulos dos dois maiores filóso-
fos gregos, próximos e longínquos, que devemos a fixação do texto do
poema do Eleata24 .
O primeiro foi T~o, que sucedeu a Aristóteles à frente do
Liceu. Na sua obra As opiniões dos Físicos, terá fixado a totalidade
dos textos em que se achava condensado o saber dos gregos que ante-
cederam Sócrates.
Não sabemos se terá copiado a totalidade do poema, que teria
diante dos olhos, visto que a obra se perdeu (sobrevivem hoje apenas
partes consideráveis do seu resumo em dois livros). Nem sabemos du-
rante quanto tempo uma, ou outra, versão da obra de Teofrasto terá
suportado o desgaste do tempo 25 • Todavia, depois da cópia parcial, que
nos chegou numa obra de Se~~?.]~o (filósofo céptico do séc. II d.
C.) e da referência de Clemen~lexandria (a quem devemos o frag.
4), o número de exemplares em circulação deve ter baixado o suficiente
para que os neoplatônicos Proclo
,..,___
e Simplício
- - tivessem, no séc. V, decidi-
26
do copiar partes consideráveis do poema • De forma que foi sobretudo
graças aos esforços deste último que a extensão da influência de
Parmênides na tradição grega chegou a poder ser hoje apreciada.

24 Parmênides nasceu em Eleia (no sul da Península Itálica) , no início da última década do
séc VI a. C.
25 Lembremos que na Grécia clássica os escritores utilizavam o papiro para fixar as mensagens que

confiavam à História. Este material -importado do Egito - não resistia, em condições normais de
temperatura e humidade, mais de uns sessenta anos. Enterrado nas quentes e secas areias do deser-
to, algumas cópias mantiveram-se legiveis até terem sido descobertas, em finais do século passado.
Isso significava que, assim que as inevitáveis manchas de bolor começassem a invadir os rolos em
que estavam escritos os livros, era necessário mandar fazer outra cópia: sempre uma de cada vez,
lembremo-lo!
26 O próprio Simplício declara (Física 144.26): "As linhas de Parmênides acerca do único ser não

são muitas e eu gostaria de as apensar a este comentário tanto como confirmação do que digo,
quanto pelo fato de o livro se ter tornado raro."

61
Que percentagem do poema original possuímos hoje? Qual a
relevância das partes perdidas? Que razões terão levado homens cul-
tos, como Proclo e Simplício, a excluí-las? Que distância separa o
Parmênides histórico (tal como foi lido, e sobretudo ouvido pelos seus
contemporâneos) do filosófico (a que temos acesso hoje)?
Trata-se evidentemente de perguntas para as quais não temos
esperanças de encontrar resposta. E o mesmo se poderá dizer de todos
os outros que nos chegaram em fragmentos. E, contudo ... Não é bem
assim. Há em Parmênides uma característica que confere um peso sig-
nificativo ao que desconhecemos do poema integral. Mas considerare-
mos a questão daqui a pouco. Voltemos à história do poema.
Na Idade Média, o recurso ao pergaminho e ao trabalho dos
copistas conventuais tomou a tarefa de preservação do manuscrito me-
nos difícil. Até o problema vir a ser definitivamente resolvido pela inven-
ção da Imprensa. A partir daí o número de exemplares do texto passou a
ser potencialmente ilimitado. E, em conseqüência do fato, o problema da
fixação do texto converteu-se no oposto do que tinha sido até então.
É praticamente impossível que, em tantas cópias e recópias, ao
l.ongo de tantos séculos, não se tivessem introduzido diferenças, vari-
antes, erros de transcrição do original. Não é apenas a imperícia dos
copistas que tem de ser levada em conta (quantos compreenderam o
sentido do que tinham diante si?), mas a transformação das condições
de recepção do texto27 •
A comparação de versões diferentes de um mesmo texto dá
origem ao problema da reconstituição do original, o qual só pode
ser resolvido através de uma edição crítica. Todos os textos antigos
que conhecemos mereceram, pelo menos, uma edição crítica: um
cânone fixador das condições que regulam a sua leitura. Todos os
exemplares a que o público tem acesso nas livrarias são, ou estão

27
0s sinais de pontuação, os acentos, a convenção do intervalo separador entre as palavras escri-
tas, a normalização das regras de composição de textos escritos, sobre os quais assentam as nossas
regras de compreensão de textos, foram todos inventados mais de um século depois da criação do
Poema de Parmênides.

62
LJt~;-..;r:~:<·:~~i).f~r.r~· . . ::· :·\
P:~··:t t ...... -:" .......

feitos a partir de uma edição crítica (quando a obra de um autor


clássico ignora esta regra, carece das condições mínimas de
cientificidade) 28 •
A primeira edição crítica do Poema de Parmênides é da autoria
de H. Diels e intitula-se Parmênides' Lehrgedicht, griechisch und deutsch
(Berlin, 1897). Depois disso, o trabalho de Diels passou para a genera-
lidade dos estudiosos do saber antigo, através da publicação da obra
que estabelece as condições de acesso aos textos dos pensadores que
antecederam Sócrates: Die Fragmente der Vorsokratiker, Berlin, 1903
(conhecido pela sigla DK29 ). A partir de então, o número das edições,
traduções e comentários do poema têm aumentado praticamente todos
os anos.
A versão do texto grego e a tradução que realizamos do poema
segue fielmente e sem o questionar o texto estabelecido por Diels-Kranz
(6° edição, Berlin, 1954), excepto nos locais em que for expressamente
notado, e pelas razões aí apresentadas. I
I
O texto do poema

Os dezenove fragmentos ordenados por H. Diels cobrem as três I


partes em que o poema se divide. O Proêmio (frag. 1), que descreve a
28
Uma edição crítica é a apresentação impressa de um texto, fixado a partir de diversas fontes
(portanto, propondo uma versão, definida a partir de diversas variantes), com a finalidade de
permitir que leitores atuais a ele tenham acesso .. No caso de textos da Literatura Grega clássica,
esse atuais trabalho inicia-se com a recolha e comparação das fontes manuscritas, e termina com a
fixação do texto. É uma tarefa que só pode ser levada a cabo por especialistas, e que pode ser
criticada, ou emendada, apenas por especialistas, ou pelo consenso dos estudiosos, ao longo da
tradição crítica.
29
Pelo fato de ter sido feita em associação com Walter Kranz. O trabalho de Diels consistiu em
respigar, no oceano de textos em que repousa o saber antigo, a totalidade das informações relevan-
tes, relativas aos pensadores cronologicamente situados antes de Sócrates.
A decifração de uma citação da monumental obra de Diels-Kranz atende às seguintes regras. A
obra acha-se dividida em 90 capítulos, a maioria dedicados a pensadores individuais, identificados
pelos números de I a 90. Cada um destes subdivide-se em três secções, consoante o texto se refere: A
- à vida e obra; B - aos fragmentos (as próprias palavras do autor); C- aos testemunhos posteriormen-
te acrescentados. Por exemplo, DK28Al refere o texto de Diógenes Laércio, Vidas e sentenças dos
filósofos ilustres, IX, 12-3, que aponta a origem e ascendência de Parmênides (este é o capítulo 28 do
!
DK; Al é o primeiro fragmento classificado, que se dedica ao estudo da sua vida e obra).

63
/

viagem do jovem ao encontro da deusa, de quem lhe vêm os


ensinamentos, e fixa as palavras de acolhimento que esta lhe dirige. A
"Via da Verdade" (frags. 2-8. 49), que desenrola a argumentação da
deusa em torno do ser. A "Via da opinião" (frags. 8. 50-61; 9-19), que
estabelece as condições de transmissão das opiniões dos mortais.
Mas aqui manifesta-se a dificuldade de que falamos acima, que
na realidade engloba duas distintas. Uma vez que a argumentação
expendida na Via da Verdade põe em causa o sentido das "crenças dos
mortais", levantà-se um duplo problema. Em primeiro lugar, o do sen-
tido da referência àquilo mesmo que a argumentação desvalorizou: por
que razão se teria a deusa dado ao trabalho de falar da aparência,
depois de ter provado que nela nada de bom havia? Mas voltaremos
adiante a esta questão.
Em segundo lugar o da necessidade de conhecimento da extensão,
senão da totalidade, do poema para assegurar uma posição bem fundamen-
tada sobre as razões dessa inclusão. Só assim se estabeleceriam as condições
suficientes para garantir uma interpretação do poema de Parmênides.
Ora, sabendo que essas condições nunca foram satisfeitas, qual-
quer interpretação do poema está necessariamente construída sobre
conjecturas. Talvez por isso as edições, traduções e comentários, que os
helenistas e estudiosos da Filosofia continuam a produzir, não deixam
de evidenciar: quer o interesse do texto, quer a insatisfação, que nenhu-
ma edição até agora resolveu, quer ainda a riqueza e diversidade de
leituras que o poema consente.

Sentido desta edição do Poema de Parmênides

A finalidade principal desta tradução e interpretação do Poema de


Parmênides é proporcionar aos estudantes pré-universitários, natural-
mente desconhecedores da língua, literatura e cultura gregas clássicas, o
acesso a uma versão simplificada do texto (sem a referência a variantes,
a problemas de fixação, e às mais relevantes opções de tradução). Por

64
outro lado, a interpretação apresentada deve ser abordada com os cuida-
dos necessários por todos aqueles que não são familiares com a
extensíssima produção de interpretações e comentários do poema.
Esta é só uma interpretação. Não está certa (se estivesse, não
seria uma interpretação). Não é definitiva. Há muitas outras noutras
línguas, que com ela não coincidem, e a que não se faz menção. Nem
sequer respeita as condições normais de cientificidade (a obrigação
de referência crítica à totalidade das edições e interpretações até hoje
apresentadas).
Como interpretação, pretende apenas contribuir para a compre-
ensão do poema e da função por este desempenhada na Filosofia e
Cultura Ocidentais. A medida em que este objetivo for atingido só
poderá ser dada pelo tempo. O esquecimento é o lugar onde repousam,
lado a lado, algumas das mais e todas as menos interessantes idéü.ts
que a Humanidade produziu.

Interpretação do Poema de Parmênides

l. Ü PROÊMIO

O fragmento 1 do poema descreve a viagem até à morada da


deusa daquele que, no verso 24, será referido como "o jovem", ou
seja, o próprio Parmênides. O tema da viagem ocupa um lugar de
relevo na Cultura e na Literatura gregas, revelando a influência da
Odisséia, de Homero.
Nessa perspectiva poderemos encará-lo como um "artifício poéti-
co". É, todavia, mais do que isso. Reflete, de modo elaborado, a intenção
de condensar nas divindades, neste caso numa deusa, a garantia da au-
tenticidade da mensagem transmitida. Por um lado, constitui uma espé-
cie de invocação. Coino quando o poeta pede às Musas que o ajudem a
contar, ou a "lembrar-se" de acontecimentos que não presenciou. Mas,
por outro, legitima- num tempo e numa cultura em que o rigor da lógica

65
não tinha direitos adquiridos 30 - a ordem imposta pelo argumento de-
senvolvido, onde a "Necessidade" representa, por um lado, o esteio da
ordem divina, e, por outro, a incontomabilidade do argumento lógico.

Fragmento 1

Os corcéis que me transportam, tanto quanto o coração me impele,


conduzem-me, depois de me terem dirigido pelo caminho famoso
3 da deusa, que leva o homem sabedor por todas as cidades.

O jovem é conduzido num carro puxado por éguas e guiado


pelas "filhas do sol". O motivo da viagem será indicado adiante. Mas o
caminho é de todo o homem que busca o saber para o espalhar "por
todas as cidades". A seqüência da descrição da viagem tomará clara a
identificação do jovem Parmênides com o esse homem sabedor, que
transmite aos outros o saber colhido da boca da deusa.

Por aí me transportaram, por aí mesmo me transportaram os cavalos


[muito hábeis,
5 puxando o carro, enquanto as jovens indicavam o caminho.
O eixo, nos cubos, silvava como uma siringe3 1 ,
inflamando-se (ao ser movido pelas duas rodas que vertiginosamente
o impeliam de uma e de outra parte), quando se apressaram
as jovens filhas do sol a levar-me, abandonando a região da Noite
1O para a luz, libertando com as mãos a cabeça dos véus que as escondiam.

30
Até aí - é esse o carácter distintivo das obras da tradição mitopoética - o recurso aos deuses
confere às mensagens o selo de autenticidade do saber. É típica a invocação das divindades para
atestar a origem das coisas: como elas eram "no princípio". Essa referência costuma ser feita
através de genealogias (veja-se, por exemplo, a Teogonia de Hesíodo: "Primeiro que tudo nasceu
o Caos, e depois a Terra, de peito ingente, ... e o brumoso Tártaro, .. . e Eros ... , etc.").
É a esta ordem que Parmênides opõe o rigor de um argumento dedutivo. Tal oposição é
apreciada por diversos comentadores como significando a emergência do lagos (discurso racioci-
nado, justificado racionalmente), que supera o mythos (mito, história fabulosa), mera narrativa
das origens, inventada pelo poeta, que alega tê-la recebido por inspiração divina.
31
Instrumento musical a que se dava o nome de "flauta de Pã", idêntico à nossa flauta de amolador.

66
~~~~·~NC~F\S~~~; .t\L~ f:. ~~:.· ·..
(~ ;~·:".: .: ') ·:··_:~ (~ •·•. ·· . ·: . , . r
.. -
f .

A viagem parece dercorrer no espaço cósmico, ao longo de


uma noite, e termina com o encontro com o nascer da aurora (esta é
uma possível justificação para a alegoria de um carro guiado pelas
"filhas do sol"). O percurso realizado será aquele que o sol descreve
durante a noite. Como nota curiosa, observe-se que- a aceitar esta
interpretação - o dia e a noite não serão causados, ou explicados,
pela presença, ou ausência do sol, mas, pelo contrário, será o movi-
mento do "carro" solar por uma, ou por outra região, a acender, ou
apagar o astro.

Aí está o portal que separa os caminhos da Noite e do Dia,


com a sua arquitrave e a soleira de pedra;
o portal, etéreo, fechado por enormes batentes,
dos quais a Justiça vingadora tem as chaves que o abrem e o fecham :
15 A ela se dirigiram as jovens, com doces palavras,
persuadindo-a com habilidade a erguer para elas
por um instante a barra do portal. E ele abriu-se,
revelando um abismo hiante, enquanto fazia girar
de uma a outra parte, os estridentes gonzos de bronze,
20 fixados com pregos e cavilhas. Por aí, através do portal,
as jovens guiaram com celeridade o carro e os cavalos.

· A viagem do jovem termina na fronteira que separa a escuri-


dão da claridade, que as filhas do sol têm de pedir licença para
ultrapassar. Por um instante, o jovem tem a percepção da imensidão
do espaço. Mas mais importante para nós será notar quanto toda a
ordem cósmica32 é governada pela "Justiça vingadora". Esta desig-
32
Em Grego, "cosmos" significa ao mesmo tempo a ordem e a realidade ordenada. Ou seja, o
mundo e a ordenação que exibe e o caracteriza. Que "as coisas sejam como são": este é o motivo
original do espanto que, em Platão e Aristóteles (Teeteto ISS d; Metafísica A 2, 982 b 12-983 a21,
respectivamente), é dado como fundador da reflexão filosófica.
O Homem dá-se conta da grandeza da ordem cósmica e enche-se de espanto. Mais o espanta
ainda constatar a sua impotência para a explicar e agir sobre ela. É assim que começa a aperceber-
se da sua ignorância. Não apenas da enormidade dos enigmas que o rodeiam, mas também da
resistência que opõem às tentativas de exploração que sucessivamente esboça para os resolver.

67
nação vem de lhe caber o encargo de manter o equilíbrio do todo,
assegurada pela retribuição de todas as faltas contra ele cometi-
das33. A noite e o dia (como as luas e o ano solar) são padrões
instituídos por essa ordem de que os deuses- em particular a Justiça
- são a garantia.

1.1 ÁS PALAVRAS DE ACOLHIMENTO AO JOVEM

E a deusa acolheu-me de bom grado, mão na mão


dÚeita pegando, e com estas palavras se me dirigiu:
"Ó jovem, companheiro de aurigas imortais,
4 tu que chegas até nós transportado por cavalos,

Salve! Não foi um mau destino que te enviou a viajar


neste caminho- tão fora do trilho dos homens-,
mas o Direito e a Justiça ... "

De novo a reta intenção do jovem é legitimada, agora pela pró-


pria deusa, com nova referência à Justiça e ao Direito, que lhe consen-
tem a viagem, "tão fora do trilho dos homens". Percebemos agora que
o jovem é o "homem sabedor" e que a intenção da sua demanda é
buscar o saber que só os deuses podem proporcionar aos mortais. Tor-
na-se também claro que a dimensão cósmica da viagem se justifica pela
natureza do saber que o jovem busca: aquele que comanda a própria
ordem do cosmo.

33Note-se no fragmento I de Anaximandro esta mesma observação: " ... E destes" [os contrários]
"vem a origem para as coisas que há e provém a destruição para essas coisas, 'segundo a necessi-
dade, pois prestam justiça umas às outras, pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo"'
(Anaximandro DKI2B I; Simplício Física 24, 13; as duplas aspas referem o texto de Simplício, as
simples, o do Milésio, que Simplício reproduz: vide José Trindade Santos, Antes de Sócrates,
Lisboa, 1992, 122-3).

68
1. 2 REALIDADE E APARÊNCIA

Terás, pois, de tudo aprender:


o coração inabalável da realidade34 fidedigna
30 e as crenças dos mortais, nas quais não há confiança genuína.

Nos cinco versos que finalizam o frag. 1 a deusa revela a nature-


za e a verdadeira dimensão do saber que o jovem persegue. Este tem de
aprender "tudo" porque o saber que busca é do todo, do próprio cos-
mo que a alegoria35 da viagem representa. A primeira nota de inova-
ção do poema- e que conseqüências teve! -está patente nesta deslocação,
ou inversão, das relações entre o saber e o seu conteúdo. Mas o que
significa 'saber'?

SENTIDOS DE "SABER"

Para responder à pergunta, teremos de empreender uma ex-


cursão pela Cultura grega. Até ao séc. V, "saber algo" é, em geral,
deter o conhecimento efetivo sobre qualquer assunto e proporcio-
nar aos outros a evidência do fato. O saber é encarado como uma
atividade e apresenta um sentido eminentemente prático. Nessa me-
dida, "aquele que sabe" é um sábio (sophos), mas a qualificação
não é alheia à experiência, perícia, astúcia até, patentes no exercício
34
O GregoA/êtheiê (no dialecto Ático, a/êtheia) significa simultaneamente 'verdade' e 'realidade'
(vide Aristóteles Metafísica A 3, 983 b3). Note-se, no verso seguinte, 'genuína', ou 'verdadeira',
como tradução do mesmo termo: a/êthês. Esta dupla dimensão da verdade, fundida com a realida-
de, constitui o próprio argumento da mensagem da deusa. Qualquer das traduções poderia ter sido
adotada (e, de fato, a primeira é seguida tradicionalmente pela maioria dos tradutores e
comentadores). Adiante esclareceremos as razões da preferência por "realidade".
35
A alegoria é a expressão de uma idéia sob forma figurada. Na descrição que acabamos de ler, há
elementos inquestionavelmente simbólicos (sobretudo as divindadades, ou o que se relaciona com
elas). Tal não implica que toda a descrição da viagem possa, ou deva, ser interpretada simbolica-
mente (como uma alusão velada a certos fatos: a descoberta da verdade pelo autor do poema, a
difusão deste pelas cidades gregas, a sua missão política, etc.).
Diversas leituras simbólicas do proêmio foram feitas desde a Antiguidade (a mais notável é a
de Sexto Empírico Adv. Math. VII 112-4). Não foram aqui referidas pelo fato de nenhuma ser
especialmente convincente, ou mesmo pertinente para a interpretação aqui apresentada.

69
de uma arte (technê) 36 • O saber pode dizer-se de um homem (ou de
animais: por exemplo, na Odisséia V 222-3, dos cavalos Troianos),
homem que possui um certo conhecimento, ou habilidade social-
mente reconhecida.
Em todas estas utilizações, contudo, a dimensão prática não exclui a
nota de interioridade, de intimidade até, com que a característica sapiencial
vem a manifestar-se. O "homem sabedor" (como aquele a que a expressão
de 1.3 alude) distingLie-se dos outros porque sabe e ao mesmo tempo "se
sabe". É este o sentido mais evidente do mote inscrito no templo de Delfos,
que através de Sócrates se tomará famoso: "conhece-te a ti mesmo".
Posta nestes termos, a questão parece simples, embora o não
seja, pelo fato de a diversidade referida nas linhas precedentes ser co-
lhida em textos e figuras separados por ma~s de 400 anos!
Considerada do nosso ponto de vista, a evidência assume a apa-
rência de uma evolução, em que o saber, incialmente virado para a
prática, começa a inclinar-se no sentido teorético: o do saber puro,
motivado pelo desejo de compreender algo, e não por qualquer finali-
dade concreta. Ora é no início do séc. V, com Heráclito (a quem a
d~mensão sapiencial não é alheia: "investiguei-me a mim mesmo": frg.
101) e Parmênides, que vemos o saber começar a ganhar esse sentido
teorético, ligado à investigação, com que se desenvolverá em Platão e
Aristóteles.
Para Heráclito há um saber37 , que, sendo de todas as coisas - do
mundo e da vida-, distingue o homem sabedor. Expresso na "mensa-
36
No saber confluem várias famílias de palavras de diferentes raízes, cujos sentidos vão, com o
tempo, sobrepor-se: os de raiz soph-, de onde derivam sophos e sophistês (sofista); os associados
ao verbo epistamai ("saber fazer", "ser capaz de fazer", mas também "compreender", mais tarde,
"saber cientificamente"; patente, por exemplo, em "epistemologia"); os de raiz tech-, que desig-
nam uma arte, mas só a partir de Platão começam a designar pessoas (technikos : "técnico",
"perito"); a que se acrescentam os tradicionais tanto os de raiz *oid-1 *eid-1 *id-, 'eidenai', em que
'saber' se acha associado ao ver; e ainda os de raiz gn-, por exemplo, gignôskein, que cobrem as
acepções sapiencial e epistêmica mais forte: "aprender a saber", "discernir", "conhecer" (que en-
contramos em "gnose", "gnóstico")- família extensa com muitos derivados.
37
"Um é o saber: [que] recusa e aceita ser chamado pelo nome de Zeus": frg. 32; "Um é o saber:
compreender a intenção que tudo governa através de todas as coisas": 41; "O saber é concordar,
ouvindo não a mim, mas o lagos, que todas as coisas são uma": 50; "De quantas mensagens (logôn)
ouvi, nenhuma chega a conhecer que o saber é de todas as coisas separadas": 108).

70
gem" (lagos) que o pensador divulga aos mortais, sustenta, entre outras
teses, que "os contrários" sempre se referem, ou supõem, a subjacente
unidade. E o Efésio38 raro perde a oportunidade de insisitir em que este é
"o saber" que corrige todos os outros, que antes eram tidos por saber.
Não tem um alvo preferido. Alguns são visados: Homero e
Hesíodo, em particular. A razão invocada é " ... saberem muitas coi-
sas" (frg.40). Mas o frag. 57 é mais claro: Hesíodo distinguia os opos-
tos, quando " ... são um e o mesmo". É essa a nota a que o lagos volta
sempre: à defesa da unidade, subjacente á aparente separação dos
contrários.

1.2.1 A defesa do saber: cosmologia e ontologia

Também Parmênides toca neste ponto, como veremos. O Eleata,


contudo, vai mais longe. Sustenta uma tese nova, que para sempre passará
distinguir e caracterizar uma área do saber: a Filosofia. Reside ela na
constatação de o saber, antes de estar no conhecimento das coisas, se achar
naquilo que o constitui como "saber": no critério que o deve distinguir de
todos os autoproclamados "saberes". Por outras palavras, não basta que
alguém afirme saber, ou o atribua a outrem. É preciso que forneça garanti-
as, que mostre em que é que o seu saber se distingue dos outros e pode
como tal ser considerado. Parmênides faz assentar este critério de valida-
ção na capacidade para a definição: 1) do objeto do saber; e 2) da exposi-
ção do método que considera adequado e lhe é próprio.
Esta inovação formal implica como conseqüência material a "su-
peração", ou mera subsunção (integração), da problemática própria
da cosmologia pela da ontologia (ciência do 'ser')39 • É uma revolucio-
nária inflexão, que deixará marcas profundas e persistentes no saber
grego. Como ela ocorre?
38 Natural de Éfeso, na Ásia Menor, depois dos meados do séc. VI.
39
É o que Aristóteles implica na Física (A 184 biS sqq.; vide Metafísica A 3, 983 b6 sqq.), ao
distinguir os "físicos" dos "não-físicos", incluindo os Eleatas neste último grupo.

71
Tradicionalmente, a cosmologia é a disciplina que se dedica ao
estudo do cosmo (da origem do universo e da ordem que o caracteri-
za40). A inovação de Parmênides reside no modo como a reflexão vai
separar estas duas questões uma da outra. Aceitando a ordem como
um fato, desinteressa-se da sua origem para se concentrar no próprio
saber.
Ou seja, em vez de perguntar- qual é a origem do cosmo? -e de
responder - "é a água", ou "o ar", ou "os contrários" - opta por se
concentrar na natureza própria do s@ey, que demonstra ser indissociável

-
da do ser. É assim que a ontologia se sobrepõe à cosmologia.
H á, contudo, que estabelecer uma distinção. A abordagem de
uma e outra é radicalmente distinta, e não pode ser confundida. A
cosmologia começa pela pergunta, e foi assim que se manifestou "nos
que primeiro filosofaram": pela pergunta que questiona a ordem e se
interroga sobre ela- "por que a ordem e não a desordem?", "por que
esta ordem?"41
Ora, ao sustentar- "a origem do cosmo é a água", ou "o ar", a
cosmologia apresenta uma diversidade de respostas à pergunta. E a
indefinição criada pela pluralidade é que justifica a crítica): "por que esta
ordem?" - não haverá outra ordem mais funda, subjacente a ela? Estas são
as perguntas implícitas na crítica de Heráclito à cosmologia tradicional.
Esta é também a pergunta implícita na crítica apresentada pela
deslocação da reflexão para a ontologia. É, contudo, claro que, ao
contrário da cosmologia, a ontologia não nasce do espanto, nem come-
ça explicitamente como pergunta. Ao voltar as costas à interrogação
sobre a origem do cosmo, o pensador ultrapassa o estágio do espanto
em brenha-se na senda da reflexão. À cosmologia, Parmênides limita-se
a opor a postulação do ser.

40
O termo grego kosmos começa, com Heráclito (frgs. 30, 124) e Parmênides (frg. 4. 3; 8. 60),
a designar ao mesmo tempo o mundo e a ordem que lhe confere sentido.
41
O "filósofo" dá-se conta da ordem do cosmo e espanta-se com ela. Os sinais mais evidentes dessa
órdem acham-se nos movimentos dos astros, na sucessão das estações, no ritmo dos dias e noites,
etc. Essa é a razão pela qual o saber mais antigo e venerável, que os Gregos receberam do Oriente,
versa sobre a astronomia

72
I
I
I
I
Significa isto que a resposta à pergunta sobre a ordem deixa de I
I
ser dada pela descrição desta, ou daquela ordem. Mas pela resposta
I
"é": a ordem "é". Neste sentido, "é" é uma resposta. A resposta. Não é
I
pergunta, nem admite a pergunta: "por que o ser? Por que é que "é"? I
(vide frag. 8. 15-21). I
I
I
1.2.2 Á REALIDADE/VERDADE CONTRA A APARÊNCIA ENGANADORA I
I
I
Agora que a intenção epistêmica que a anima se manifestou ex-
I
plicitamente, com o início do discurso da deusa surgem as primeiras
I
dificuldades de interpretação da mensagem que, através de Parmênides,
aquela dirige aos homens. As suas palavras de acolhimento indiciavam
já o tratamento de exceção que reservava ao jovem. A motivação do
l
"tudo" foi já aclarada. Falta enunciar as suas conseqüências. "Tudo"
abarca não apenas a realidade/verdade, como ainda "as crenças dos
mortais". A obrigação de recolher ambos os ensinamentos é indicadora
de uma intenção programática, adiante explicitada (vide frag. 7. 5).
Mas confirma ainda a indistinção, para nós dificilmente compreensível
(presente já na associação da verdade à realidade), entre os fatos, as
coisas, e os discursos, os dizeres, que os fixam 42 •
Na tradição poética, Parmênides começa por recorrer aos deuses para
garantir a autenticidade da sua mensagem. Todavia, inova, em relação aos
poetas, por apresentar um argumento reflexivo, autenticamente filosófico,
que explora uma evidência, característica de todas as mensagens que, a um
tempo, instituem (dizem que há) e constituem (dizendo como é) o saber.

42
Significa isto que na tradição recuperada, constituída e comentada por Aristóteles e pela sua
Escola, a partir do séc. IV, é através do estudo das opiniões dos pensadores mais antigos que a
realidade pode ser estudada.
Por exemplo, uma pergunta como- "por que é que a Lua tem fases?"-, feita e refeita ao longo
dos séculos, constitui a evidência de um problema (uma "aporia", diz Aristóteles na Metafisica B;
ver a nota 12: 3. 1. 1) que interessou os pensadores, e para o qual estes apresentaram as suas
respostas. O filósofo deve partir da evidência destes "problemas" , que por um lado, apontam o
caminho a seguir pelas suas investigações; por outro, desvendam a estrutura problemática da
própria realidade.

73

~
Não se limita a afirmar: este é o saber! Vai mais longe, explican-
do como e porque é saber. É saber porque é apresentado na forma de
um argumento, como veremos a seguir (frags. 2, 3). Mas, como "é"
acerca daquilo que refere, não pode distinguir-se disso.
A idéia, que talvez nos pareça ingênua, é a de que a verdade
sobre qualquer coisa é antes de mais a própria coisa (noutros termos,
que a coisa institui o critério de verdade sobre si própria). Não é um
processo muito diferente do que adotam os que jogam às moedas, ao
exibirem, depois das apostas, as que escondem dentro das mãos. Afi-
nal, se a verdade e a realidade fossem duas, não poderiam ser nem
uma, nem outra coisa.
'Verdade' e 'realidade' são, portanto, uma e a mesma. É por
isso que são saberes. Mas então, se assim é, também o saber será isso
mesmo: realidade e verdade - duas coisas iguais a uma terceira são
iguais entre si. Nem poderia ser de outro modo. O argumento começa
pôr explorar uma identidade, que se expande até definir um domínio
fechado, circular: a verdade é o que "é verdade"- o saber é verdade
porque é a Verdade. Esta circularidade determinará posteriormente a
oposição àquilo que, por um lado, exclui, mas, por outro, a
complementa (frags. 2+3, 6, 7) .
Por agora, o que ressalta é a complementaridade entre a verdade
e as crenças dos mortais, que a conclusão do frag. 1 caracterizará.

1. 2. 3 A APARÊNCIA: UM ENIGMA ADIADO

Mas também isso aprenderás: como as aparências


32 têm de aparentemente ser, passando todas através de tudo.

Por que tem o jovem de aprender a realidade e as crenças dos


mortais (ou a verdade e as aparências)? Uma primeira razão já foi
adiantada: porque a realidade e o discurso sobre ela se identificam. O
final do frag. 1 acrescenta outra razão. É que as aparências têm o seu
modo próprio de ser, o de "serem aparentemente".

74
A expressão não é minimamente esclarecedora. Será preciso es-
perar pelos frags . 6 e 7 para lhe compreender o sentido. Há, contudo,
nestes dois últimos versos um jogo de relações paralelas, que delimita a
complementaridade entre a realidade e a aparência, embora esta só se
torne evidente nos termos gregos.
A realidade/ verdade (Alêtheia) é fidedigna (eupeitheos 43 ). Nas
crenças (doxas) dos mortais não há "confiança verdadeira" (ou pistis
alêthês). As aparências são "aparentemente" (ta dokounta ... dokimôs
einai : a aparência é o seu modo próprio de serem). Deste modo a
concessão ou negação da confiança estabelece a complementaridade,
como primeiro grau da oposição, entre a verdade e as crenças: de um
lado, a confiança (peith-/pist-), do outro a aparência (dok-).
Em suspenso fica o 2° hemistíquio (meio verso) de 1.32. Que
pode querer a deusa dizer com "passando todas através de tudo"? A
aparência fica envolvida no seu argumento a partir do frag. 6. Mas a
questão só receberá tratamento adequado nos frags.'7 e 16 (embora os:
frags. 8.38-41, 9.1 e 19 se lhe possam referir através da inclusão dos
"nomes"). O recorte poético da frase não nos permite por ora avançar
mais, para além de um envolvimento entre a verdade e as crença~ dos
mortais, a realidade e a aparência. O modo que comanda este
envolvimento terá de ser aprofundado mais adiante (frag. 6).
Mas o fragmento 1 interrompe-se aqui, após a explanação da
complementariedade dos conteúdos sobre que versará o ensinamento
da deusa. A eles passaremos em seguida.

43Pist- (vocalismo zero) e peith- (vocalismo e) são formas antigas da mesma raiz. Os significados
são: 'confiança', 'fé', garantia'. Peithô é a deusa da persuasão; e o verbo peithomai significa 'ser
persuadido', 'obedecer'.

75
2. A via da Verdade

2.1 OS DOIS CAMINHOS

Fragmento2

Vamos, vou dizer-te - e tu escuta e fixa o meu relato -


2 quais os únicos caminhos de investigação que há para pensar:

Sem que possamos ter uma idéia precisa da extensão suprimida


de poema- na verdade, praticamente sem transição44 -,a deusa come-
ça o seu discurso. A razão da escolha do jovem para seu destinatário
torna-se agora evidente. Reconhecida a sua qualidade de homem sabe-
dor, aceita a sua presença num lugar a que os comuns mortais são
estranhos, ele deverá fixar o relato, a substância do discurso da deusa,
muito provavelmente para a transmitir a outros.
E o argumento é iniciado quase sem que demos por isso, com a
declaração "dos únicos caminhos que há para pensar". A importância
da declaração está longe de ser notável.- A continuação, porém, corrigi-
rá esta primeira impressão.

um que é, que não é para não ser,


é caminho de confiança (pois acompanha a realidade);
5 o outro que não é, que tem de não ser,
esse te indico ser caminho em tudo ignoto,
pois não poderás conhecer o não ser, não é possível,
nem indicá-lo [. .. ]
44
G. Casertano, Parmenide: il metodo, la scienza, l'esperienza , Napoli, 1978, 61, toma natural a
transição ao observar: " ... O fragm. 2 constitui portanto a continuação lógica do primeiro: aprenderás
isto e aquilo (B1), e o modo como o aprenderás é seguindo este método (B2)." (sublinhado nosso).
Ora 'método' é um termo absolutamente nada casual no contexto do poema. Em Grego é um
composto de um substantivo - hodos- que signica 'caminho', com a proposição meta, que aqui
significa "com", "em companhia de". Para nós significa isso mesmo: o caminho para chegar a um
cetio objetivo. É essencial na interpretação de Casertano compreender como a finalidade de Parmênides
é essa mesma: a de apresentar aos mortais um caminho, um método, para atingirem o saber.

76
UN!\JERS!OAOE FG• · - -
8!PUOTF'.". S -- •·

E, de repente, as questões assaltam-nos de todos os lados. Todas


de transcendente importância, praticamente uma por cada palavra do
poema. Antes de mais, "um" e "o outro". Trata-se de dois caminhos, e
de dois apenas (como afirmara 2.2, com "os únicos"). Mas por que
dois? As suas designações- "que é", "que não é"- deveriam proclamá-
lo. Mas são as caracterizações que lhes estão apostas que mostram a
razão. "É" "não é para não ser", "não é" "tem de não ser".
A relação entre o primeiro e o segundo caminho é evidente: o
que um afirma o outro nega. Que sucede, porém, se a cada um deles
aplicarmos a indicação do outro (negando o primeiro e afirmando o
segundo)? A resposta não pode ser mais simples: caímos no segundo e
voltamos ao primeiro (a negação nega a afirmação e a dupla negação é
a esta equivalente). Ora é isso mesmo que os segundos hemistíquios de
2.3 e 2.5 provam. Ficamos, portanto, a saber que os caminhos são doís
e porque é que não podem ser mais do que dois.
Dito de outro modo. Se pensar é afirmar ou negar, a afirmação
ou negação destas será ainda pensamento. Resultam entãq seis possibi-
lidades:

1. afirmação;
2. negação;
3. afirmação da afirmação;
4. afirmação da negação;
5. negação da afirmação;
6. negação da negação.

A afirmação da afirmação reduz-se à afirmação simples, tal como


a afirmação da negação à simples negação. A negação da afirmação
reduz-se à negação, do mesmo modo que a negação da negação se
reduz à afirmação. A conseqüência desta série de equivalências é
inescapável: se só é possível afirmar e negar, então é necessário afirmar
ou negar. As conseqüências deste argumento sobre aquilo a que se cha-
ma pensar são capitais. Podemos condensá-las nos três princípios lógi-

77
cos que a tradição instituiu como tutelares do pensamento: 1. identida-
de (A=A); 2. contradição (Al_A); 3. terceiro excluído (AV_A). Por ou-
tras palavras: 1. a afirmação é igual à afirmação e a negação à negação;
2. a afirmação é diferente da negação; 3. entre a afirmação e a negação
não há meio termo.

2. 1. 1 A EXCLUSÃO DA VIA NEGATIVA

Mas há mais. Em B2. 4 a deusa acrescenta a esta disjunção entre


termos mutuamente exclusivos a preferência pelo caminho "que é",
reiterando a associação da realidade/verdade à confiança (expressa em
B 1.29-30). Tal preferência será logo a seguir confirmada pela rejeição
definitiva do segundo caminho, em B2.6-8. E as razões apresentadas
são três. "Não é" é "ignoto", por não ser cognoscível (não se poder
conhecer), nem "indicável" (não se poder apontar).
À primeira vista o raciocínio parece misterioso, reduzindo-se a um
mero jogo de palavras. Não é o mesmo dizer que uma coisa é desconhe-
cida por não ser conhecida e não poder ser apontada? Acaba por ser.
. Mas há muito sentido em compreender exatamente como e porque.
Imaginemos uma entidade qualquer. Um cavalo, por exemplo. É
possível saber o que é um cavalo, pelo menos se formos capazes de apon-
tar um e afirmar: "Olha! É um cavalo". Mas não é possível saber o que é
um não-cavalo, nem sequer olhar, ver, apontar um. Pela simples razão de
poder ser tudo aquilo que "não é" um cavalo: a saber, um burro, uma
boa ação, "Os Lusíadas", e assim por diante, indefinidamente.
Ora é precisamente esta indefinição que nos impede de conhecer-
mos um "não-cavalo". Porque, se um cavalo é uma coisa definida, um
"não-cavalo" (qualquer "não x") pode ser tantas que, por isso mesmo,
não é coisa nenhuma.

Ora este raciocínio não é trivial e tem imensas conseqüências.


1. [Se] não é possível conhecer uma entidade negativa;
2. [porque] não é possível apontá-la;

78
2.1 [por ela poder ser uma infinidade de coisas];
2.2 [portanto, nenhuma delas, ou seja "nada"];
3. [então] não é possível negar;
3.1. [e] não é possível dizer falsidades (coisas que não existem e/
ou não são verdade)

Esta conclusão tem muito que se lhe diga, sobre que não é opor-
tuno adiantar nada agora.

2. 1. 2 A IDENTIDADE ENTRE SER E PENSAR

Daqui resulta, como inescapável conclusão, que só se pode pen-


sar o "que é" e que só o pensamento "é". E é isso mesmo que o frag. 3
sustenta:

Fragmento3

[...] pois o mesmo é pensar e ser.

Reconstituamos o argumento, tentando simplificá-lo. Podemos


pensar: "que é" e "que não é". Mas, como não podemos conhecer "o"
que não é, esse pensamento não conduz a nada. Resta então o outro:
"que é". Portanto ser e pensar são mesmo.
Não se pode dizer que o raciocínio seja difícil. Exceto talvez
por ser excessivamente simples. E ainda - o que não é pouco - por
ter de seguir uma ordem rigorosa. No fim vamos chegar a uma con-
clusão cujas conseqüências são aparentemente evidentes. Mas é exa-
tamente o contrário disso que sucede. As conseqüências estão muito
longe de ser evidentes. Ou mesmo aceitáveis. Para compreender por-
que teremos de voltar a examinar o fragmento, esclarecendo algu-
mas questões camufladas pela sucessão de alternativas que nos é
imposta.

79
Fragmento 2+3

Vamos, vou dizer-te - e tu escuta e fixa o meu relato -


quais os únicos caminhos de investigação que há para pensar:
um que é, que não é para não ser,
é caminho de confiança (pois acompanha a realidade);
5 o outro que não é, que tem de não ser,
esse te indico ser caminho em tudo ignoto,
pois não poderás conhecer o não ser, não é possível,
nem indicá-lo [. .. ] pois o mesmo é pensar e ser.

2. 1. 3 Üs CAMINHOS PARA PENSAR

Falar de "caminhos" (ou de vias) a propósito de pensar é avançar


sobre metáforas45 • Não há aqui grande novidade, pois o contexto do
frag. 1 é marcadamente' poético. O poema começa com a descrição
alegórica de uma viagem cósmica, que descreve a investigação
çonducente à aquisição do saber.
Este é comunicado por uma deusa, o que tradicionalmente po-
demos entender como uma forma de garantir a veracidade da mensa-
gem dirigida aos homens. Mas então acontece o inesperado. A men-
sagem é apresentada na forma de um argumento lógico, necessitante,
de conseqüências inescapáveis. Ora é nos argumentos que as metáfo-
ras se tornam tão despropositadas quão difíceis de entender.
45
Metáfora é uma figura em que uma palavra é substituída por outra, por se pretender utilizar a
semelhança entre ambas para acentuar o efeito expressivo. Por exemplo: "O homem é o lobo do
Homem". Poderia dizer-se qualquer coisa como: "o homem persegue o seu semelhante, como os
lobos o fazem". Mas perdia-se em elegância, concisão e insinuação (os homens são piores que os
lobos, pois estes não atacam os da sua espécie).
Todavia, o que a metáfora ganha em expressividade perde em rigor e clareza (um homem não é um
lobo; precisamente em que é que se assemelham?). O termo 'caminho' é vago em relação ao
pensamento. Seria mais correto falar de um suj eito que pensa, de um objeto pensado, de uma
forma de pensar, etc. Note-se, contudo, que as metáforas podem ser assimiladas pela linguagem
científica. Veja-se, por exemplo, a nota anterior: em 'método', o termo grego que significa "cami-
nho" está presente de forma irreconhecível.

80
A que título se fala de "caminhos"? Seria mais próprio falar
em "quem" pensa e "naquilo" em que se pode pensar. Mas essa
atitude, tão natural para nós, decerto não o seria para Parmênides.
Referir o pensamento a um sujeito e a um objeto iria contrariar a
tese do Eleata, para quem "pensar" e "ser" se identificam. Mas
afinal que é o ser?

2. 1. 4 "QUE É", "QUE NÃO É"

Até aqui tomamos cada um dos caminhos como a mera indica-


ção formal de algo que se afirma ou nega, explorando as conseqüências
do regime de oposição descrito no frag. 2. Mas ainda não investigamos
"o" que é afirmado, ou negado. Nem sequer ainda sabemos o que·é.
Mas isso será compreensível, pois por detrás de "que é" e "que não é"
escondem-se mistérios que ainda estudioso algum conseguiu resolver
satisfatoriamente.
São três as dificuldades que se prendem com cada um dos cami-
nhos: a primeira tem a ver com "o", que é ou não é; a segunda com "é"
e "não é", a terceira com "que é" e "que não é".

2. 1. 5 Os SUJEITOS DE "o QUE É" E DE "o QUE NÃO É"

Vamos à primeira. A deusa não nos quer dizer "o" que é e que
não é, obrigando-nos a fazer conjecturas. Mas também pode ser que
não o diga pel9 fato de não poder. Em que nos apoiamos para susten-
tar esta eventualidade? Não é difícil responder à pergunta. Como vi-
mos, todo o argumento explora o regime de oposições, puramente for-
mal, entre os dois caminhos. De início não interessa o que é afirmado,
ou negado, mas apenas o fato de: 1. tanto a afirmação quanto a nega-
ção serem idênticas a si mesmas; 2. diferentes uma da outra; 3. nada
haver para além de uma ou outra.

81
Mas depois o argumento surte efeito. Da indefinição 46 da via
negativa resulta a sua exclusão. Nessa altura, porém, a deusa já pode, e
até deve, dizer "o" que é excluído. E o diz claramente em 2. 7: é o "não-
ser". Pelo contrário, a via que resta e se identifica com "o pensar" é a de
"o ser" (frag. 3). Temos, portanto, razões para crer que "o" que é é "o
ser", tal como "o" que não é será o "não-ser". Enunciados completa-
mente, então, os dois caminhos são: "[o ser] é" e "[o não-ser] não é".
Este problema já está resolvido.

2. 1. 6 ÁS TRÊS LEITURAS DE EINAI.

Passemos ao segundo. Com "é", estamos a apresentar uma tra-


dução do verbo grego einai. Neste verbo acham-se fundidas, e confun-
didas, três, ou quatro, acepções de "ser": a predicativa (como em "A
Sofia é bonita"); a identitativa (como em "a beleza é bela"); e a existen-
cial (como em "os deuses são: eisin =existem)", além de outra, que
afeta apenas o discurso, a veritativa47 •
Os dois primeiros não põem dificuldades (um é um caso particular
·do outro) e acham-se cobertos pela tradução proposta48 • Mas o terceiro é
completamente diferentes desses: o seu sentido não se reduz a nenhum

46
Podemos tecnicamente dizer "irreferencialidade". O termo negativo não "indica" nada, não
refere nenhuma entidade que se possa designar. Daí resulta a sua incognoscibilidade. E desta a sua
exclusão como "pensamento". Desta, por sua vez, decorre a identificação do "ser" e do "pensar".
47
Quanto a este último sentido, vide a nota seguinte. Quanto à exemplificação dos diversos exemplos em
linguagem atual, manifesta-se um pequeno problema. As dificuldades levantadas pela ambiguidade de
einai obrigaram, noutras línguas, à invenção de verbos e expressões verbais para sentidos distintos do
predicativo. É o caso de 'existir', o de "ser igual a" e o de 'é verdade (que)'. Por essa razão é-nos difícil
encontrar exemplos que, em linguagem de todos os dias, exprimam esses sentidos com o verbo 'ser'.
Mas é simples compreender as quatro consequências fundidas na afirmação da ordem (vide
atrás 1. 2. I). "A ordem (o cosmo) é" significa: I: o mundo é ordem; 2) a ordem é a ordem; 3) a
ordem existe; 4. a 'afirmação da ordem' é verdade.
48
C. Kahn The Verb 'be' and its synonyms. Philosophical and grammatical studies edited by fohn
W M. Verhaar. The verb 'be' in ancient Greek, Dordrecht/Boston, 1971, 335, 342 encontra ainda
um quarto sentido: o veritativo - que" ... expressa a verdade de declarações e o reconhecimento de
serem assim os fatos e os estados das coisas". Assentindo com Kahn na relevância deste quarto
sentido de einai (que aprofunoa à indistinção entre "fatos" e "ditos"), parece-nos que podemos
entendê-lo como um alargamento ao discurso do sentido identitativo.

82
I

I
deles. É costume ditingui-los, referindo-os como utilizaçoes completa (que
I
dispensa complemento: o terceiro) e incompletas do verbo 'ser'.
I
Ora, no frag. 2, o verbo apresenta um uso completo: I

I
3 um que é, que não é para não ser,
5 o outro que não é, que tem de não ser, I

I
Não implicará esse fato que deva ser traduzido pela forma com-
I
pleta: "existe"? À primeira vista, sim. A tradução "existe" assenta perfei-
tamente no texto. Todavia, o motivo acima manifesto (a impossibilidade j
de dizer "o" que é e "que coisa é") continua a valer: a deusa tem de
manter ocultos o sujeito e o nome predicativo de o "que é". Isto significa
que as três acepções do verbo são possíveis.
Por esta ordem de idéias, apesar de um número considerável de
ilustres tradutores e comentadores do poema o terem vindo a fazer, não
parece legítimo isolar uma das leituras do verbo, quando isso é feito em
detrimento das outras. A ambiguidade de einai deve ser respeitada49 • De
resto, a interpretação acima apreseotada (que se apoia na irreferencialidade)
dispensa perfeitamente a tradução existencial50, sem lesar o argumento,
nem distorcer o seu contexto cultural. A melhor tradução será então aque-
la que respeita a ambiguidade de einai, possibilitando as três leituras do
verbo: é. Este problema pode também dar-se por resolvido.

49 Havendo pelo menos dois motivos de ordem histórica para a manter. Um é o modo como o
sofista Górgias a explora no seu Da natureza, ou do não-ser, texto composto com a intenção de
subverter o argumento da deusa (DK82B3). O outro é o diálogo O sofista, de Platão, onde as três
leituras de einai são pela primeira vez, e definitivamente, desambiguadas (ver adiante 4. 3. 2).
Significa isto que cada uma das leituras é identificada e posteriormente explicada pelas estruturas
ontológica da realidade (os "cinco gêneros supremos") e lógica do discurso (as relações de inclu-
são e exclusão entre cada um dos gêneros).
50
Dois famosos comentadores, por vias diferentes, defendem esta interpretação. Charles Kahn,
Op. cit. 321-370; além de numa série de opúsculos dirigidos contra a leitura existencial de einai.
A mesma tese é sustentada num dos mais estimulantes comentários do Poema de Parmênides: A. P.
D. Moure1atos, The Route ofParmênides. A Study ofWord, Image andArgument in the Fragments
, New Haven & London, 1974.

83
2. 1. 7 UMA AMBIGUIDADE NO SENTIDO DE TO EON

Finalmente, chegamos à terceira € mais complexa dificuldade. A


que formas do verbo einai recorre a deusa ao longo do poema para se
referir ao ser? A três: ao particípio substantivado to eon (2. 7, 6. 1, 8. 3, 8.
35 passim51 ); a formas verbais, do indicativo presente estin (2. 3, 2. 5
passim), e do futuro (estai: 8. 36); e ao infinito einai52 (2. 3, 3. passim). A
segunda não põe problemas: traduz-se simplesmente por "é" e por "será".
A terceira põe poucos: é simplesmente traduzida por "ser". Mas a primeira
tem, nas diversas línguas em que o poema foi traduzido, sido vertida por
diferentes formas, equivalentes, em português, a: "o ser", "o que é", "o
ente", "o essente", no plural, "as coisas que são" (ta eonta: 7. 1).
Todas estas versões são aceitáveis, mediante as justificações apre-
sentadas pelos que as preferem. A pergunta a fazer é se há alguma
característica que as distinga. Tanto "é" como "ser" evidenciam a atri-
buição de um predicado a um sujeito 53 : a identidade consigo próprio,
um predicado potencial, ou real - a existência: "x é x", "x é y", "x
existe". Pelo seu lado, "o ser" (to eon) desempenha preferentemente a
função de sujeito, presente ou ausente, de "é", decorrendo daí a for-
ma perifrástica: "aquilo que é".
Daqui resulta uma particular ambiguidade do Grego clássico.
"O ser", "aquilo que é", etc., tanto pode designar propriamente o norrie
daquilo que é (realizando uma função denominativa), como manifes-
tar o atributo específico pelo qual "aquilo que é" é (função descritiva).
51
Latim: "Aqui e ali". Termo usado habitualmente para indicar que a citação ocorre noutros locais
do texto.
A língua grega permite, e no séc. V essa prática (a que não será estranha a difusão da escrita)
tomou-se corrente na comunicação cultural, a substantivação de qualquer palavra pela anteposição
artigo definido neutro (to). Assim foram introduzidos na fala do quotidiano novos termos, que
forneceram as bases do vocabulário epistêmico da Cultura Ocidental. Por exemplo, "agora" (nyn):
to nyn - "o agora", "o instante"; "qual" (poion): to poion -"qualidade", etc.
52
Recorre ainda a equivalentes poéticos de einai, como emmenai (6. 1), pelein (6.8) e à forma
passiva pelenai (8.11 ), que habitualmente vêm traduzidos por "ser", ou "existir", em nada pesan-
do no argumento. Note-se, contudo, que to einai nunca aparece no poema, ao contrário do seu
equivalente to pelein (6. 8).
53
Se interpretarmos a identidade como um caso de predicação e admitirmos que a existência é um
predicado, o que é controverso, embora não errado.

84
Esta ambiguidade, que originalmente pesaria sobre os nomes pró-
prios54 , vai afetar toda a compreensão do poema e manifestar-se em
todos os pensadores que não conseguiram escapar à força do argumento
da deusa: e não houve nenhum capaz de a ele se subtrair. É ela que nos
vai conduzir à maior dificuldade que nos é posta pela interpretação do
poema: afinal o que é o ser?

2. 1. 8 Ü SER.

Como tanto insistiu Aristóteles (Física I 3, 186 a24-b3; Categorias 1


a28-30; Metafisica X 1O, 1059 a 10 até ao fmal; vide Alexandre de Afrodísias
In Metaphysicam 84, 29), 'o ser' eleático constitui uma monstruosidade
lógica, ao poder ser encarado quer como o nome individual da classe das
"coisas que são", quer como o predicado universal pela posse do qual·se
diz que todas e cada uma das coisas "são" (no sentido existencial, ou
predicativo: "ser isto ou aquilo ... "). Para o Estagirita55, o problema resol-
ve-se impedindo o ser de ser dito de uma só maneira, por outro, ou seja
tanto como um indivíduo, quanto como um universal. "O ser" deve, por-
tanto, dizer-se de muitas maneiras. Antes de tudo, cada ente "é", é um ser.
Complementando esta leitura, a expressão "ser enquanto ser" designa a
substância de todo e cada ente, aquilo que ele é, a sua natureza56 •
54 O nome não só nomeia a realidade a que se refere, como pode referir a natureza que lhe é
própria. Esta característica dos nomes antigos (no caso dos gregos, por exemplo, 'Filipe' significa
"amador de cavalos", 'Édipo' "pés inchados", etc.). vem a perder-se com o tempo (quem é que
sabe que 'Helena' significa "habitante da Lua"? e 'Teresa' "habitante de Tera: hoje a ilha de Santorini?)
Ora esta ambiguidade, que terá grande importância na reflexão posterior, nomeadamente em Platão, é
patente em todos as qualidades, susceptíveis de serem tomadas como nomes próprios de um coletivo (o
filósofo chama-lhes "Formas": República X 596 a). Por exemplo, 'Branco' será tanto o nome comum a
todas as coisas brancas, como a propriedade ("o branco", a brancura) pela qual elas são chamadas brancas.
Aristóteles denunciará com veemência esta ambiguidade, que dá origem a um tremendo erro lógico:
o de o mesmo termo poder desempenhar numa frase tanto a função de sujeito, como a de predicado,
sendo tomado ora como um indivíduo- "o Branco"-, ora como um universal- é "branco".
55
Aristóteles é assim chamado por ter nascido em Estágira, na Macedônia (em 384 ).
56 Avaliável de uma pluralidade de pontos de vista: como quididade ("forma", no sentido

aristotélico), materialidade, finalidade, ou ainda do do seu autor, criador. Cada uma destas é um
modo de dizer a causa. Vejamos, por exemplo, o que é um sapato? Enquanto sapato, cada um pode
ser encarado como "uma peça de calçado" (forma), um objeto de couro, ou plástico, ou madeira,
etc, (matéria), que serve para calçar, proteger o pé (finalidade), ou ainda "peça criada pelo sapatei-
ro" (causa eficiente, o criador).

85
Com esta emenda de Parmênides, Aristóteles resolve algumas di-
ficuldades - lógicas e metafísicas -, criadas pelo ser eleático. Por um
lado, dissolve o mistério de "o ser" através de uma série de distinções;
mas, por outro, recusa, ou adia, o confronto com ele.
Ora esse mistério, podemos expressá-lo em diversas perguntas. Como
terá Parmênides chegado ao ser? Quais sao as conseqüências da aceitação
do argumento da deusa? A segunda pergunta tem resposta na continua-
ção do estudo do poema. Mas a primeira deve ser respondida agora.
O ponto de partida de Parmênides é o pensar. Vê o pensamento
como realizando duas funções: afirmação e negação. Cada uma destas
é idêntica a si mesma e diferente da outra; não havendo outra alternati-
va além delas. Até aqui o raciocínio nada tem de problemático. Mas
agora a deusa vai como que tirar um coelho de dentro do chapéu.
A afirmação afirma: diz "é". E "o" que é é aquilo "que é". Tudo
bem. Pelo contrário, a negação nega. Mas "o" que é que nega? Não
pode ser "aquilo que é", porque então de "o que é" diz "não é" (o que é
impossível, porque a afirmação e a negação se opõem). Mas, por outro
lado, também não pode negar "aquilo que não é", porque "não é" ou
não existe, ou não se sabe do que se está a falar (seja como for não se
está a falar de nada). O simples fato da negação implica, portanto,
conseqüências inaceitáveis, visto ser ou contraditóris consigo própria,
ou absurda (como é que se pode negar aquilo que se desconhece?)
Definem-se assim dois continentes incomunicáveis. De um lado,
o pensamento, a afirmação, a realidade, a verdade. Do outro, ainda o
pensamento, a negação, a irreferencialidade/inexistência, a falsidade.
Todavia, como as conseqüências da negação são todas impossíveis, esta
é eliminada como pensamento. Donde resulta a identidade entre pen-
samento e ser.
O que é então "o ser"? É o único domínio em que a afirmação, a
realidade e a verdade coincidem. "O ser" é tudo aquilo a que se pode
chegar a partir do pensar. Logo se percebe que é o único pensamento
possível: todo o pensamento, o único lugar onde o discurso e a realida-

86
de se encontram: a verdade (tal como na afirmação "é" coincidem a
predicação, a existência e a verdade). É quase o que está dito em 6.1:

É necessário que o ser, o dizer e o pensar sejam ...

Para lá iremos agora. Mas só depois de resolvermos duas questões.

NoTA soBRE ALP.THEIA

Ao contrário da nossa 'verdade' - simultaneamente afirmação de


uma qualidade e qualidade de uma afirmação 57 - a palavra alêtheia
acha-se associada a um complexo percurso mental, individual e cultu-
ral. É um substantivo, formada a partir da raiz lanth-/lêth-, cujo senti-
do é negado (pelo alfa privativo: a-). A sua maior dificuldade de com-
preensão reside, porém, na, para nós, irrelacionável diversidade de sig-
nificados do verbo lanthanô, entre os quais se destacam dois: "estar
oculto; ser ignorado, passar despercebido", "esquecer", na voz média58 •
Daqui resulta que 'alêtheia' contém uma dupla negação. A pri-
meira acha-se expressa no sentido próprio da raiz: ocultação, esqueci-
mento; a segunda decorre do prefixo privativo. Implica isto que, para
um Grego, pelo menos de Homero em diante, a declaração da presença
autêntica de algo só possa fazer-se através da negação da sua ausência.
Portanto, como Heidegger bem viu 59 , o sentido original de
alêtheia será "desocultação", que a um nível profundo associa os signi-
ficados ativo e médio do verbo. Essa tese, porém, honra sobretudo o
futuro filosófico e epistêmico do termo, incidindo principalmente na
associação da verdade e do saber à reminiscência, necessária depois do
57
Dizer de algo que "é yerdade" pode ser lido como "esta proposição está incluída na classe das
proposições verdadçiras"é (leitura extensiva), ou como "a verdade é a propriedade pela qual esta
proposição se diz verdadeira" (leitura intensiva).
58
Os verbos gregos conjugam-se em três vozes: a ativa, a passiva e a média, cujas formas coinci-
dem parcialmente com a passiva. A voz média é usada quando a acção recai de alguma maneira
sobre o agente, tipicamente quando este tem interesse nela.
59
Vom Wesen der Wahrheit, Frankfurt am Mein, 1954.

87
esquecimento a que a alma é forçada ao entrar no corpo, como nota
Platão no Pedro (246 b-250 c; vide República X 621 a; Fédon 75 d).
Todavia, a fecundidade filológica da tese não faz jus ao argumento
de Parmênides. Como o próprio Heidegger nota60 , a verdade institui uma
dupla concordância: entre a coisa e o discurso sobre ela, entre a coisa e ela
mesma (poderia fala-se de essência, mas não é preciso). Um exemplo: uma
moeda de cinco escudos. A afirmação "Esta é uma moeda de cinco escu-
dos" é verdadeira se o objeto indicado por "esta" for de fato uma moeda
de cinco escudos (e não de dez, vinte, etc.): este é o registo da verdade,
como adequação da nossa compreensão à própria coisa. Mas pode acon-
tecer que a moeda seja falsa. Nesse caso "esta" é uma moeda de cinco
escudos, mas não "é" o que parece: este é o registo da autenticidade, como
adequação da coisa à nossa compreensão.
Ora o argu111ento de Parmênides caracteriza-se pela integral fu-
são destes dois registos. "O ser é" é o pensamento em que a realidade
(autêntica) e a verdade coincidem. Todavia, como a continuação do
argumento vai mostrar, uma vez que só "o ser" é, porque só o ser é real,
esta única afirmação acarreta não a falsidade (de resto, 'falsidade, ou
'falso', são termos de todo ausentes do poema), mas a impossibilidade
de qualquer outra.
Por esta razão, preferimos acentuar o registo da autenticidade,
traduzindo alêtheia por 'realidade' (mais do que o outro ele é revelador
do argumento). Por outro lado, o registo da verdade sugere a competi-
ção entre proposições, pertinente no nosso mundo, porém, deslocado
num contexto em que uma única proposição é possível ("é").

Á LOCALIZAÇÃO DOS FRAGS. 4 E 5

Os intérpretes mais sensíveis à lógica da argumentação de


Parmênides gostam de acentuar a continuidade entre os frags. 1. 2, 3 e

60
Tradução francesa da Op. cit.: "De l'essence de la verité", Questions I, Paris, 1968, 159-192
(vide 163-8).

88
~I

I
6. A apresentação seqüencial levanta, porém, um problema: o da loca-
lização dos frags. 4 e S. Sem outras razões que não as que o bom-senso I
lhe ditou, Diels incluiu-os entre B3. e B6. Se os tirarmos daí, onde
poderemos pô-los? Não há muitas opções. Vejamo-las. I

fragmento 4 I

Vê também como o que está longe pela mente se torna I


[firmemente presente:
pois não separarás o ser da sua continuidade com o ser, I
nem dispersando-o por toda a parte segundo a ordem do mundo,
nem reunindo-o. J

fragmento 5

[. .. ] para mim é o mesmo

~
por onde hei-de começar: pois aí tornarei de novo.

1. Entre Bl e B2.
É uma possibilidade. O frag. 5, pe!a sua referência ao começo e
ao retorno a ele, poderia ser colocado em qualquer local. Mesmo antes
do início do argumento do frag 2. Já, pelo contrário, o frag. 4, pela I
inclusão da referência a to eon, estaria aí desajustado.
2. Entre B2 e B3. · I
Ninguém advoga esta inserção. Mesmo aqueles que não encaram
B3 como a conclusão natural de B2 não vêem sentido na proposta. j
3. Entre B3 e B6.
É a leitura tradicional, cujo único inconveniente reside em cortar J

a seqüência entre B3 e B6, perfeitamente natural, uma vez que B6 não


passa de uma expansão de B3.
j
4. Entre B6 e B7.
É outra possibilidade. Particularmente se encararmos B4 como
uma introdução a B7. Nesse caso, como os dois fragmentos não têm de
I
89

J
ficar juntos, poderia explorar-se a possibilidade de o separar de B5,
que, como vimos, não ficaria mal antes de B2.
A ordem proposta será então Bl, B5, B2, B3, B6, B4, B7. Aí
entroncao frag. 8, que conduz à Via da Opinião, na qual B4 e B5 não
parecem ter lugar.
Quanto ao sentido destes fragmentos, não parece pôr qualquer
dificuldade. B5 prefigura, ou comenta, a circularidade do argumento
da deusa, à qual já fizemos referência. B4 contempla a unidade do ser,
confrontando-a com a separação, produzida e justificada pela experi~
ência da sensibilidade, como o frag. 7 proclamará. Como é que "o ser"
pode aparecer separado na diversidade sensível? Como é que pode to-
lerar, na diversidade, a unidade parcelar de cada uma das coisas? São
perguntas para que não é oferecida resposta. Contudo, a advertência
insere-se perfeitamente após a condenação expressa no frag. 6, desen-
volvida num sentido metodológico no frag. 7.

2. 2 DESENVOLVIMENTO DO ARGUMENTO: A NOVA VIA

O frag. 3 traz o argumento da deusa até a uma primeira conclu-


são. A exploração dos dois caminhos do pensar tinha-os mostrado úni-
cos, idênticos a si mesmos e opostos um ao outro. Da eliminação de
um resultara então a identificação do outro com o próprio pensamen-
to. O frag. 6 começa por alargar esta identidade ao discurso. Introduz,
porém, uma nova ordem de razões.

fragmento 6

É necessário que o ser, o dizer e o pensar sejam; pois podem ser,


enquanto o nada não é:{. ..]

Em B2 o ser fora deduzido do pensar. Em B6.1, é o pensar (identi-


ficado com o dizer e o ser) que vai ser forçado a ser. Os dois raciocínios
são complementares. O ser opõe-se ao não-ser. O não-ser reduz-se ao

90
lÊ~:g[\!EF:!S'U'J;tJt-\:. r-~~~~~· ,: .
F:~~~ .{C!~~-;~~c ~\ c~-.. --.i.
I

I
nada. Resta o ser como possível. Sendo, porém, o único, é forçoso que
I
seja. A única possibilidade converte-se em necessidade. Em B3 a elimina-
ção do não-ser conduz à identificação do ser com o pensar. Em B6.1 é o
I
fato de nada poder resultar do nada que eleva a possibilidade à necessi-
dade. Mas o argumento vai prosseguir num sentido inesperado. I
I
2. 2. 1 UMA TERCEIRA VIA
I
[. .. ] isto te ordeno que medites.
Desta primeira via de investigação eu te <afasto>61 , J
e logo também daquela em que os mortais, que nada sabem, j
vagueiam, com duas cabeças: pois a incapacidade
lhes guia no peito a mente errante; e são levados,
surdos e cegos, a um tempo, estupefatos, multidão indecisa,
que acredita que o ser e o não-ser são o mesmo
e o não-mesmo, para quem é regressivo o caminho de todas as coisas.

E eis que subitamente uma terceira via se ab're, para logo se fe-
char. Aquela em que "vagueiam os mortais", que ainda não aprende-
ram a respeitar a oposição do ser ao não-ser e por isso os confundem.
O argumento da deusa regressa à eliminação da via negativa e às con-
seqüências dela decorrentes.
Os insultos de que os homens são alvo operam em dois registos.
De um lado, os que denunciam a sua dupla natureza (que o frag. 16 irá
aprofundar): "duas cabeças", "mente errante", "multidão indecisa", que
confunde o ser com o não-ser ora sustentando que é, ora que não é. Do
outro os que evidenciam as causas da sua incapacidade: surdos, quan-
do julgam ouvir, cegos, quando crêem ver, estupefatos, quando imagi-
nam que, falando, dizem alguma coisa.

61
Se aceitarmos a reconstituição proposta por Diels, não é muito clara a referência à "primeira via
de investigação". Qual é ela? Suponhamos que se trata da via negativa, aceitando a conjectura
consensualmente aceite. Um modo mais claro de dizer seria: "esta é a primeira via de investigação
de que te afasto, mas logo também daquela ... "

91
De início tanta veemência é surpreendente. Depois, com a continua-
ção da leitura do poema percebemos que desde sempre foi aqui que a
deusa quis chegar. A eliminação da segunda via, do não-ser, não é mais do
que o instrumento que lhe vai permitir chegar às crenças dos mortais, à
explicação de por que é que "passam todas através de tudo" e finalmente à
lição que lhes possibilitará a correção do erro em que laboram. De resto, a
radical alternativa entre os dois caminhos esboçados no frag. 2 seria bas-
tante para excluir um meio termo: a aparência, "que é e não é".

fragmento 7-8

Pois nunca isto será demonstrado: que são as coisas que não são;
mas afasta desta via de investigação o pensamento,
não te force a este caminho o costume muito experimentado,
deixando vaguear olhos que não vêem, ouvidos soantes
e a língua, mas decide pela razão a prova muito disputada
de que falei. [. .. ]

De novo volta a deusa à proibição de toda a mistura entre as


duas primeiras vias, agora claramente apontada à terceira, na qual va-
gueiam os mortais. B7. 2 é importante por manifestar na proibição a
forma "afasta", da qual Diels colheu a sugestão para preencher a lacu-
na de B6. 3. Mas os três últimos versos de B7 acrescentam duas impor-
tantes novidades à mensagem da deusa.

2.2 2 SENSIBILIDADE E RAZÃO

A primeira reside na perfeita caracterização da "via da opinião",


como é tradicionalmente conhecida. Trata-se de uma prática induzida
pelo "costume muito experimentado" do exercício da sensibilidade: a
visão, o ouvido e a comunicação verbal. Neste contexto, os versos re-
plicam, ponto por ponto e pela mesma ordem, as admoestações expres-
sas em 6. 7, de forma a impedir qualquer confusão.

92
Mas B7. 5 confere à injunção divina um contorno inteiramente
novo, também ele inesperado. Contra a entrega ao costume da prática
sensível advoga a deusa o exercício da razão, através da "prova muito
disputada" (é evidente - e pretendemos mantê-lo na tradução- o para-
lelo da expressão com o "costume muito experimentado" de 7. 3).
A lição é de enorme alcance. Levanta, porém, nada menos de três
questões de tradução, que convém esclarecer previamente.
A primeira tem a ver com "decide" (krinai) . A 'decisão' desempe-
nha uma função capital na economia da mensagem divina. Em B6. 7 a
"multidão indecisa" (akrita phyla) é a que hesita entre o ser e o não-
ser, confundindo um com o outro. Em B8. 15-16, a "decisão" (krisis)
consiste precisamente na oposição do ser ao não-ser, com que é mister
contrariar a '"mistura' (krasis) dos membros errantes" de B16. 1. I
A segunda é a 'razão'. O termo usado é lagos. A oposição· à I
sensibilidade sugere encontrarmo-nos perante o apelo à faculdade J

raciocinativa, à qual caberia a correção dos costumes dos homens. Esta I


interpretação enquadra-se perfeitamente no rigor da estratégia I
argumentativa atrás desenvolvida, completamente violentadora das I
I
experiências sensíveis (como o frag. 4 em síntese comenta, através da
oposição "do que está longe" àquilo que pela mente se toma presente).
I
Mas o termo grego evoca outras conotações, que cumpre manter vivas,
I
pelo menos pelo seu poder sugestivo. Lagos é também 'argumento', l
'argumentação', sempre raciocinada. Pelo que só ganhamos potenciando
cada um dos sentidos através do outro62 •

2. 2. 3 A FUNÇÃO DO DEBATE NA REFLEXÃO E NA BUSCA DO SABER

A terceira reporta-se à "prova muito disputada", que também pode


ser entendida como "originando muitas disputas" (uma vez mais, a ca-
racterística poética adequa-se bem à manutenção de ambas as leituras).
62
De resto o uso do dativo instrumental consente ambas as leituras. O dativo é, em Grego, o caso
(aspecto da flexão nominal) que inclui os diversos complementos circunstanciais: o "instrumento"
é um deles.

93
Levando inteiramente a sério a exortação divina, o que, na com-
plexidade dos sentidos que permite, o verso sugere é que o jovem se
deve entregar à defesa do argumento (que argumento? Aquele "de que
falei" - B7. 6a) através do debate. Não é possível exagerar a importân-
cia e as conseqüências deste conselho. O que a deusa está a aconselhar
o jovem a fazer é a confrontar-se pelo debate com todos aqueles que
contrariem a força do argumento expendido. E a entrada direta no
assunto, ao longo de todo o frag.8, enuncia as principais teses às quais
há que opor a força da razão/argumentação.

2. 2. 4 Os SINAIS DO SER

Terminado o argumento que dirigiu aos mortais, a deusa proce-


de de seguida à caracterização do tipo de debates a que acabou de
exortar o jovem. Partindo da premissa inicial "é:', desenvolve quatro
argumentos, tendentes ao estabelecimento de outras tantas teses sobre
o ser. O seu objetivo último é definir as linhas de refutação de algumas
posições comummente defendidas nas discussões entre "homens sabe-
dores" (sophoi). Nesse sentido, é natural supor que os seus destinatári-
·os serão, como o jovem virá a ser, figuras ilustres da tradição reflexiva
grega (nomeadamente os Pitagóricos a quem Parmênides poderia estar
associado) 63 •

2. 2. 4. 1. 0 SER É INGÊNITO E INDESTRUTÍVEL

[. ..] . Só falta agora falar do caminho


que é. Sobre esse sãp muitos os sinais
de que o ser é ingénito e indestrutível,
pois é compacto, inabalável e sem fim;
5 não foi nem será, pois é agora um todo homogéneo,
uno, contínuo. Com efeito, que origem lhe invest-igarias?
Como e onde se acrescentaria? Nem do não-ser te deixarei
63
Vide Kirk & Raven, The Presocratic Philosophers, Cambridge, 1966, 264-5.

94
falar, nem pensar: pois não é dizível, nem pensável,
visto que não é. E que necessidade o impeliria
1O a nascer, depois ou antes, começando do nada?
E assim, é necessário que seja de todo, ou não.
Nem a força da confiança consentirá que do não ser
nasça algo ao pé do ser. Por isso nem nascer,
nem perecer, permite a Justiça, afrouxando as cadeias,
15 mas sustem-nas: esta é a decisão acerca disso -
é ou não é - ; decidido está então, como necessidade,
deixar uma das vias como impensável e inexprimível (pois não é
via verdadeira), enquanto a outra é e é autêntica.
Como poderia o ser perecer? Como poderia gerar-se?
20 Pois, se era, não é, nem poderia vir a ser.
E assim a génese se extingue e da destruição se não fala.

A argumentação da deusa sobre a impossibilidade de gera-


ção e destruição do ser, embora assente na estrutura atrás desen-
volvida, apresenta algumas novidades momentosas. B8. 4 enuncia
três características do ser, que só poderemos interpretar fisicamen-
te: é "compacto, inabalável e sem fim" 64 • Estes três "sinais", atri-
butos, indicam que o ser não tem soluções de continuidade (não
admite o vazio), não pode ser movido, ou deslocado, e não come-
ça, nem acaba, no espaço e no tempo 65 • Esta última idéia é desen-
volvida pela continuação do argumento: o ser é um eterno presen-

64
Alguns intérpretes interpretam "sem fim" (ateleston) como "infinito", com o sentido que habitu-
almente atribuímos hoje a esta noção (por exemplo, R. Mondolfo, El Infinito en el pensamiento de
la Antiguedad Clásica, 1942 trad. port. : O Infinito no Pensamento da Antiguidade Clássica, S.
Paulo, 1968, 101, 344-8). Não podemos estar de acordo, por razões textuais e culturais. Em
primeiro lugar, por entrar em contradição (apesar do que sustenta Mondolfo) com outros atributos
do ser, expressos mais adiante: ouk ateleutêton : "não incompleto" (B8. 32; tetelesmenon pantothen,
"completo por todos os lados": B8. 42-3. Finalmente, por, com excepção de Melisso (por isso
criticado por Aristóteles, que, na Física A, recorre a ele para refutar o ele~tismo : vide Sobre a
geração e a corrupção, A 8, 325 a3 segs.), a generalidade dos pensadores gregos encararem o
infinito negativamente, como uma carência de forma, de fim.
65
Se não acaba, não tem fim. Logo é infinito. A contradição com o que sustentámos na nota
anterior é aparente e será resolvida mais adiante (vide B8. 43 segs).

95
te, uno, homogêneo e contínuo. Sem admitir outro além dele, e,
no seu seio, pregas, ou partes.
A novidade surge agora, com a interrogação sobre as razões que
justificariam uma qualquer origem, ou fonte de alterações de que o ser seria
produto. Não pode haver nenhuma. Porque a única que se imaginaria só
podia ser o não-ser. Todavia, a indizibilidade e impensabilidade deste,
justificada pela sua impossibilidade, impedem-no. O questionamento das
razões para que algo seja, ou melhor, a idéia de que para tudo tem de haver
uma razão de ser, manifesta a primeira aparição de um "princípio da razão
suficiente". A falta de uma razão suficiente, na duração (8. 10) e no lugar (8.
13), proíbem a origem e a destruição do ser. Ou seja, carecendo de razão
para nascer, ou morrer, num qualquer momento, ou determinado lugar,
impedem-nos de pensar que foi gerado, ou será destruído. Ficará, pois, con-
tido num eterno presente, sem passado nem futuro, de onde não pode sair.

2. 2. 4. 2 É INDIVISÍVEL.

Nem é divisível, visto ser todo homogéneo,


nem num lado é mais, que o impeça de ser contínuo,
nem noutro menos, mas é todo cheio de ser
25 e por isso todo contínuo, pois o ser é com o ser.

A mesma razão que não consente o vazio é válida para a afirma-


ção da indivisibilidade do ser. Dividi-lo implicaria torná-lo discreto
(uma sucessão de partes, ou pontos insusceptíveis de divisão). Mas o
ser é contínuo. E cheio, pleno66 •
66
A idéia de qt1e o ser é pleno recorre na tradição pós-eleática, com a única excepção dos Atomistas
(para quem a realidade era composta de átomos e vazio) . Pelo contrário, a tese aristotélica de que
"a natureza tem horror ao vazio"- que em nada se afasta do aproveitamento que, no Timeu 57 c,
Platão faz do pleno para explicar a perpetuidade do movimento - invade toda a Física medieval,
passando daí para a filosofia moderna.
A tenacidade com que o vazio foi negado deve-se à argumentação eleática, bem como à identifica-
ção, operada por Aristóteles na sua crítica aos Atomistas, do vazio com o não-ser. É ainda com base
numa argumentação análoga que Descartes vai identificar extensão e corpo, negando
consequentemente o vazio. Leibniz e Kant sustentarão essa mesma tese, porém, com argumentos
sintéticos, derivados da experiência.

96
vNíVEHStD:-\L!:: t;: ~.
P;:Ri f:~)Tt::Cl~ C: ..~(.j·~ t.

2. 2. 4. 3. É IMÓVEL.

Além disso, é imóvel nas cadeias dos potentes laços,


sem princípio nem fim, pois génese e destruição
foram afastadas para longe, a convicção verdadeira as repeliu.
O mesmo em si mesmo permanece e por si mesmo repousa,
30 e assim firme em si fica. Pois a potente Necessidade
o tem nos limites dos laços, que de todo o lado o cercam.

A imobilidade deve ser entendida em duas dimensões: no


espaço e no tempo. E conseqüentemente em dois aspectos: o do
movimento e o da mudança. Tal como se deu em relação à impos-
sibilidade de um momento, ou de um lugar (como já vimos), em
que comece ou acabe, ao ser é impossível qualquer alteração. E
porquê? De novo tornamos ao primeiro argumento, com a men-
ção da ingenitura e indestrutibilidade do ser. E, no entanto- veja-
se o que dissemos acima-, a ausência de um fim não o impede de
estar "cercado".
O alcance da tese é enorme. O ser não pode de alguma maneira
"sair de si" (é isso mesmo que atesta 8. 29). Pois como poderá continu-
ar a ser, se minimamente não é o mesmo, "como", ou "o que" antés era,
ou depois será? E por que "antes", ou "depois" etc.?

2.2.4.3.1 IMOBILIDADE E IMUTABILIDADE NOS SEGUIDORES DE


PARMÊNIDES

Pela violência que exerce sobre a sensibilidade, a tese da imobili-


dade e imutabilidade do ser é aquela em torno da qual os pensadores
pós-eleáticos mais se dividirão. É também aquela que exigirá mais da
imaginação filosófica.
Os Eleatas - Zenão e Melisso - sustentam-na até ás últimas con-
seqüências. O segundo contrapondo-lhe o ser, que "nada tem mais for-

97
te" que ele (DK30B8) 67 • O primeiro com uma série de argumentos que
atestam as impensáveis conseqüências da adf!lissão do movimento e da
mudança68 •
Todavia, a experiência do movimento e da mudança é demasia-
damente frequente para poder ser erradicada da mente. Na tradição
reflexiva, três pensadores vão tentar acomodá-la à veemência do inter-
dito eleático: Empédocles, Anaxágoras e Demócrito.
Reinterpretando poeticamente o ser na forma de quatro ele-
mentos divinos e eternos, Empédocles explica movimento e mudança
como a "dupla história" da mistura e separação destes. O àrtifício
reside na preservação da identidade de cada um dos elementos de
cuja combinação deriva a ordem do mundo em que vivem os homens.
Enquanto estes se mantiverem unos e imutáveis, as conseqüências da
violação do argumento da deusa não se tornarão efetivas. Torna-se
assim possível conceber toda uma teoria do devir. Embora a difícil
coabitação da razão e da sensibilidade se faça com o sacrifício da
visão ingênua do mundo 69 •
Análoga reinterpetação do ser eleático é levada a cabo por .
Anaxágoras e pelos Atomistas: para o primeiro, o ser é constituído por
partículas infinitamente divisíveis, nas quais se acham todas as coisas;
para os segundos, por mínimos indivisíveis: os átomos. Postulando a
infinita divisibilidade das suas partículas, Anaxágoras adia indefinida-
mente o problema da sua identificação: resolve assim a mudança na
suspensão da identidade (se uma coisa não é isto, ou aquilo, também
não deixa de o ser).
Mais fecunda é a solução atomista, que explica a diversidade
pelo número infinito e pela não menos infinita variedade de átomos,
cujas propriedades resultam exclusivamente da sua forma, e da posição
e disposição com que se combinam uns com os outros. Ao moverem-se

67
Ver a análise deste argumento em Kirk & Raven, Op. cit. 315; ou em José Trindade Santos, Op.
cit. 193-5.
68
Vide Kirk & Raven, Op. cit., 299-305; J. T. Santos, Op. cit., 188-92.
69
Vide J. T. Santos, Op. cit., 214-8.

98
no vazio, os átomos chocam e emaranham-se, dando origem aos mun-
dos e a tudo o que neles há. Como se vê, a proibição eleática não é
violada, uma vez que a contrariedade qualitativa fica subsumida na
unidade física (os átomos são compostos sempre pela mesma "maté-
ria"), e a mudança ocorre sem que a identidade do ser seja beliscada.

2. 2. 4. 4. É COMPLETO.

Portanto não é justo que o ser seja incompleto:


pois não é carente; ao [não-] ser, contudo, tudo lhe falta.

Sem origem, nem fim, indivisível, imóvel, ao ser nada falta (ao
contrário do que acontece ao não-ser) . Está, portanto, completo. O
- I
que significa que se não acha em processo, à espera do que quer q~e
seja que se lhe acrescente, ou seja retirado.
A tese da completude do ser complementa a da sua imobilidade e
imutabilidade. A influência que exerce na tradição é, como se viu, deci-
siva. Todavia, as mais ambiciosas teorias sobre o movimento e a mu-
dança no pensamento grego são as de Platão e Aristóteles, cada uma
das quais exigiria não menos de um livro para poder ser apresentada.

2. 2. 5 SUMÁRIO

Concluída a exposição das quatro teses, o argumento sobre os sinais


do ser é interrompido para a apresentação de duas sínteses. A primeira
constitui um sumário. de toda a "Via da Verdade". A segunda funciona,
por assim dizer, como uma ilustração, uma representação visível, do ser.

O mesmo é o que há para pensar e aquilo por causa de que há


pensamento.
Pois, sem o ser- ao qual está prometido70 -,

° Como uma noiva a um noivo, é a idéia expressa pela utilização do verbo phatizô.
7

99
não acharás o pensar. Pois não é e não será
outra coisa além do ser, visto o Destino o ter amarrado
para ser inteiro e imóvel. Acerca dele são todos os nomes
que os mortais instituíram, confiantes de que eram reais:
"gerar-se" e "destruir-se", "ser e não ser",
"mudar de lugar" e "mudar a cor brilhante".

É imensa a importância desta passagem do poema e diversos os


problemas que contém. Começa com uma reavaliação do argumento
explanado nos frags . 2, 3 e 6, que pode ser lida como uma expansão
das identidades de B3 e B6.1. A medida da identidade entre o ser e o
seu correlato, o pensamento, alargou-se até não ser possível um sem o
outro. Tornando à solenidade do pronunciamento adotado no proêmio,
a deusa legitima todo o argumento tanto pela força do raciocínio (que
o discurso divino converte em norma), quanto pelo Destino cósmico -
a ordem inabalável do todo- que enlaçou um no outro.

2. 2. 5. 1 0 PENSAMENTO E OS NOMES

Que dizer então daquilo a que os mortais chamam 'pensar'? An-


tes da explicação do frag. 16, uma única observação é oportuna. Todos
os nomes inventados pelos homens são sobre o ser. E, entre estes, o
punhado respigado como exemplo atesta múltiplas violações: da
ingenitura e indestrutibilidade (vide 8. 3-21), da irreversibilidade (6. 8-
9) e imobilidade (8. 26-31) do ser.
O tópico é de uma importância a que a passageira referência não
faz justiça. Se todos os nomes são sobre o ser (é o que afirma 8. 38),
todos eles não poderão senão referi-lo (função denominativa), ou
descrevê-lo (função descritiva): ou seja, de "o ser" afirmar "é". Ora
estes nomes começam por não ser do ser (por dizerem coisas que o ser
não é), sendo, portanto, de nada. Além disso, afirmam impossibilida-
des (entre aquelas que os argumentos do frag. 8 sucessivamente refuta-
ram). E a denúncia não vai por ora mais longe.

100
2. 2. 6 A ESFERA

Visto que tem um limite extremo, é completo


por todos os lados, semelhante à massa de uma esfera bem rotunda,
em equilíbrio do centro a toda a parte; pois, nem maior,
45 nem menor, aqui ou ali, é forçoso que seja.
Pois nem o não-ser é, que o impeça de chegar
até ao mesmo, nem é possível qlfe o ser seja
maior aqui, menor ali, visto ser todo inviolável:
pois é igual por todo o lado, e fica igualmente nos limites.

Todos os atributos do ser, deduzidos da sua afirmação, e da sua


irredutível oposição ao não-ser, são agora condensados numa imagem
visível. Ora aquela que mais adequadamente reflete a dupla identidade-
formal e material- do ser é a de uma esfera: pela regularidade, perfeição
e plena coincidência consigo mesma. Percebemos agora o possível senti-
do do "sem fim", e "sem princípio nem fim" (8. 4, 27). A perfeita regula-
ridade da esfera permite que cada um dos pontos da sua circunferência
seja simultaneamente princípio e fim. (É isso mesmo que o frag. 5 sus-
tenta). Fica desta maneira resolvida a aparente contradição entre a afir-
mação da infinidade do ser e a declaração dos seus limites.

3. A Via da Opinião

Com esta imagem do ser conclui a deusa a sua síntese da cadeia


de argumentos em que ficaram expostos os sinais do ser. Num certo
sentido, a mensagem da deusa chegou ao fim. E, no entanto, não
tinha ela no início advertido o jovem de que teria de "tudo aprender"
(1. 28)? Tendo então cessado o seu "discurso fiável", "digno de confi-
ança" (piston logon), o que é que a leva a abordar o estudo das "cren-
ças dos mortais"?

101
3. 1 Ü ALCANCE DA VIA DA VERDADE

Onde quis a deusa chegar com a enumeração dos sinais do


ser? Será que alguém poderia seriamente acreditar que no mundo
em que vivia não havia nascimento e morte? Ou que toda a divisão
era impossível? Ou pluralidade? Que era completamente destituída
de qualquer forma de movimento e mudança? Ou de crescimento?
Não é obviamente possível responder com certeza a qualquer
destas perguntas. E, contudo, a oposição do "caminho muito experi-
mentado" (B7. 3) à "prova muito disputada" (B7. 5) não pode ser mais
funda. Como ultrapassá-la?

3. 1. 1 A RELAÇÃO ENTRE A REALIDADE/VERDADE E A APARÊNCIA

Se aceitarmos que a afirmação do ser conduz à rejeição das cren-


ças dos mortais, temos todas as razões para questionar a veracidade da
experiência sensível. Daí à introdução de significativas alterações no quo-
tidiano dos homens vai uma enorme distância. A autenticidade da iden-
ti~icação do ser com o pensar não pode ser posta em causa. Mas não será
por isso que os homens terão de passar a ignorar os fatos do movimento
e da mudança, do nascimento e da morte, e assim por diante.
O que o argumento introduz é um insanável conflito entre a
experiência sensível e a realidade pensável. Conflito que deverá ser
resolvido através da reflexão, e que não poderá deixar de ocupar
uma posição fulcral nas tentativas feitas para alcançar o saber.
Não será, portanto, caso para considerar falsas e destituí-
das de sentido todas as formas de experiência sensível (apesar
de, durante quase um século, alguns dos mais ilustres
comentadores do poema o terem sustentado 71 ). Nem para nos
71
Mesmo depois da aparição da, atrás refetida, obra de Giovanni Casertano- a primeira a defender
o valor positivo da doutrina parmenídea sobe a doxa -,os estudiosos preferem não se pronunciar
sobre esta questão de vital importância para a compreensão do poema: afinal quais são as
consequências da refutação das crenças dos mortais, ou que sentido atribuir ao tratamento que lhes
é conferido, após a sua tão completa rejeição?

102
tiF.J~\/~T<.StG.6; --~.J.=:. {=-~;;_·· ---. --~ ..
r:·- _ ~,.-~ ·~_"}1.-F< -!·_ ~ • • i.:

entregarmos à defesa integral de uma concepção de saber que


ignore a sensibilidade.
O sentido da crítica eleática- não só o do poema de Parmênides,
mas o dos argumentos de Zenão, de Eleia, e do poema de Melisso, de
Samos -,reside na dupla chamada de atenção para a autenticidade do
pensamento e para a correlativa impensabilidade da experiência sen-
sível. Cada um destes fatos tem de ser compreendido e a
compatibilização de um com o outro terá de constituir a finalidade
última de toda a concepção que se pretenda constituir como "saber".
Explicar a aparência, integrá-la num quadro concetual pensável, defme
então uma exigência mínima de rigor e coerência do pensar. De outro modo, o
saber dos mortais não mais deixará de oscilar entre a hesitação acrítica e a
estática aridez da defmitiva constatação de que"o ser é". Ou seja, é tão insentata
a tentativa de encontrar no sensível um saber autêntico, que pretenda atin~ o
ser, quão inútil ficar pela encantatória repetição do único saldo positivo do
argumento da deusa: "é". Não pode ser mais clara a exortação dirigida ao
jovem, na conclusão do argumento contra a doxa : "decide pela razão a prova
muito disputada de que falei", ou" ... pelo argumento a refutação que dá
origem a muitas disputas" (qualquer das traduções é correta).
Foi assim que Parmênides foi entendido por quantos se lhe segui-
ram na tradição reflexiva grega 72 • Passarão séculos até que o
neoplatonismo e o neopitagorismo ensaiem uma aproximação do sa-
ber que ignore de todo a via da opinião.

3. 1. 1. 1 ÜS DESTINATÁRIOS DA MENSAGEM DA DEUSA

Mas então é impossível pensar que o poema não visa nenhum


dos que, antes de Parmênides, se entregaram à busca do saber. Durante
muitos anos, explorando uma coincidência superficial com Heráclito,

72
Como vimos, Zenão e Melisso aprofundaram as conseqüências da sua mensagem. Empédocles,
Anaxágoras e os Atomistas reinterpretaram-no (conferindo novos sentidos ao ser). Platão e Alistóteles
construíram amplas sínteses do saber grego, a partir da aceitação da identidade do ser e do saber. Os
sofistas entragaram-se à desvalorização do saber (Górgias), ou à reabilitação da aparência (Protágoras).

103
além de uma oposição de fundo nas obras dos dois pensadores 73 , tor-
nou-se habitual afirmar que o poema visava, na realidade, as doutrinas
do Efésio. Mas já muito poucos sustentam hoje essa tese.
Não é, porém, forçoso personalizar a questão. Mesmo sem ter de
pensar nesta ou naquela figura da tradição, não há dúvida de que o poema .
critica todos aqueles que- e quantos o não fizeram?- antes de Parmênides
apontaram uma origem para o cosmo. Ou os que consentiram uma emer-
gência dos contrários (Anaximandro: DK12A9; vide Aristóteles Física A
4, 187 a20 segs.; Pseudo-Plutarco Strômateis 2). Mas decerto a denegação
de alcance epistêmico às conjecturas dos mortais não podia deixar de visar
as discussões entre intelectuais, que terão constituído o verdadeiro suporte
para a transmissão oral das opiniões "dos que primeiro filosofaram".
Para todos esses, e ainda naqueles em quem, como em Parmênides
e Aristóteles, é notável a indistinção entre "fatos" e "ditos'~ (para o
Eleata vide atrás 1. 2. 2; para Aristóteles Metafísica B 174 ), a investiga-
73
A contradição de fundo reside na radical oposição entre uma defesa da identificação da realidade com
o movimento- "tudo flui" (Platão Crátilo 440 c)- e com o repouso (Parménides frag. 8. 26 segs); a
coincidência superficial é entre a palintonos [ou palintropos] harmoniê de Heraclito ("Não compreen-
dem como o que difere consigo mesmo concorda: como a harmonia de tensões opostas [ou reversível]
entre o arco e a lira": BSl) e o palintropos keleuthos (o "caminho reversível") de Parménides B6. 9.
74
"Em relação à ciência que estamos a investigar [a Metafísica], é necessátio examinar primeiro as
apórias (aporêsai) que começam por se nos apresentar, as que acerca dessa questão outros conside-
raram, bem como o que fora delas terá sido omitido.
Os que querem ultrapassar as a porias (euporêsai) hão-de começar por explorá-las bem (diaporêsai
kalôs), pois a posterior ultrapassagem das a porias (euporia) resulta de se desenvencilharem das
aporias anteriores (lysis tôn proteron aporoumenôn), e não se desenvencilha quem desconhece o
nó, além de que a aporia da reflexão aponta para a da coisa, visto que quem está na aporia (aparei )
fica imobilizado, como quem está amarrado: um e outro são incapazes de avançar em frente.
Por isso se torna necessário contemplar primeiro todas as dificuldades, não só pelo que foi dito,
mas porque os que investigam sem terem explorado antes as apotias (diaporêsai prôton) são semelhan-
tes aos que ignoram onde devem it; por nem sequer saberem se encontraram o que buscavam; pois a
finalidade [da investigação] só é manifesta a quem previamente considerou as a porias (proêporêkoti) .
E ainda é necessário que se ache em melhor situação para decidir aquele que- como se de litigantes se
tratasse - deu ouvidos a todos os argumentos opostos". (Aristóteles, Metafísica B 1, 995 a23-b3).
Para além de outros aspectos não menos importantes, o texto evidencia a importância das "apotias"
(note-se a repetida referência ao tetmo, através dos compostos do verbo aporein) no método de inves-
tigação de Aristóteles, justamente designado de "diaporemático". Ora o que é uma apotia? Uma difi-
culdade, um problema que deixa o investigador embaraçado, e para o qual ele apresenta uma solução,
pelos outros considerada insatisfatótia (por isso, apresentam, também eles, as suas soluções). É surpre-
endente que Aristóteles se proponha a investigar a realidade, considerando-a partir do estudo das apatias,
ou seja, das dificuldades que persistem nas opiniões daqueles que o antecederam.
Deverá começar por considerar as aporias (aporêsai) com que os outros se confrontaram,
isolá-las, explorá-las bem (diaporêsai kalôs: estudando-as noutros que sobre elas se debruçaram)
e finalmente resolvê-las (euporein) . Uma vez mais, saber e ser coincidem.

104
ção do ser- o saber- não pode separar-se da recuperação crítica, polê-
mica mesmo, das opiniões dos que os antecederam. Neste sentido ain-
da, a intenção controvesa de 7. 5 constitui não só o único meio de
advogar a entrega à busca do saber, como também a forma de, por
excelência, promover a sua manutenção e divulgação, assegurando ainda
a educação das novas gerações: sempre, como hoje, atraídas por todas
as formas de exibição pública de capacidades, como forma de afirma-
ção pessoal e social.
Todas estas intenções se acumulam então na dedicatória crítica às
opiniões dos mortais. Convergem deste modo duas finalidades: por um
lado, são expostas as opiniões dos que o antecederam na tradição; por
outro, é denunciado o erro em que caíram e apontado o remédio para
ele. Mas há ainda algo de muito importante a acrescentar, a que já fize-
mos referência e a que tomaremos quando chegarmos aos frags. 9, 16·e
19. A estes conferiremos, portanto, redobrada atenção. Mas voltemos
pela última vez ao frag. 8.

3. 2 As DUAS FORMAS

50 Nisto cesso o discurso fiável e o pensamento


em torno da verdade; depois disso as humanas opiniões
aprende, escutando a ordem enganadora das minhas palavras.
E estabeleceram duas formas, que nomearam,
das quais uma não deviam nomear - e nisso erraram -,
55 e separaram os contrários como corpos e postaram sinais,
separados uns dos outros: aqui a chama do fogo etéreo,
branda, muito leve, em tudo a mesma consigo,
mas não a mesma com a outra; e a outra também em si
contrária, a noite sem luz, espessa e pesada.
60 Esta ordem cósmica eu te declaro toda plausível,
de modo a que nenhum saber dos mortais te venha transviar.

105
Os versos 50-2 declaram o fim do discurso verdadeiro e anunciam o
início da chamada "via da opinião". A caracterização das "crenças dos mor-
tais", feita através da indicação das "duas formas" ... "que nomearam", co-
meça com uma nota crítica: "... e nisso erraram". Erraram porque nomea-
ram "duas", quando já ficou sobejamente demonstrado que só deviam ter
nomeado uma, visto que só "o ser é" e" ... a ele se referem todos os nomes
que os mortais instituíram, convencidos de que eram reais ..." (8. 39).
Depois disso separaram os contrários: um identificado com o fogo
(ou o sol), outro com a noite (as trevas). A crítica visa aqui implicita-
mente a tese, tipicamente jônica75 , da constituição das coisas através da
mistura (krasis) das qualidades opostas que suportavam. Assim, de um
lado estava o fogo, sumamente quente e raro, do outro a terra, fria e
densa. No meio, achavam-se o ar - quente e rarefeito - e a água - fria e
pouco densa. A mistura destas qualidades era produzida, e explicada,
pela mistura física, das substâncias materiais que as suportavam.
É isso mesmo que a deusa afirma em 8. 56-9. Os dois últimos versos
criticam este ensinamento e indicam a sua justificação. A plausibilidade,
verosimilhança, desta ordem cósmica foi transmitida ao jovem para que este
~o se deixe enganar por nenhuma outra tentativa empreendida pelos mortais.
Talvez este dado, prestado de forma aparente casual, constitua um
indício precioso sobre a finalidade da via da opinião. Neste sentido, ela
conteria menos um ensinamento positivo do que uma súmula crítica do
saber dos físicos, que o jovem deverá desaprender. No entanto, como
veremos, o tom de muito do que se segue excede esta visão limitada.

3. 2. 1 DIALÉTICA E ERÍSTICA

fragmento9
Mas, uma vez que tudo é chamado luz ou noite
e o conforme a estas potências é dado a isto e àquilo,
75
Os pensadores jônicos, a que Aristóteles chamará "físicos", ou "fisiólogos", por se dedicarem ao
estudo da natureza e do movimento, são Tales, Anaximandro e Anaximenes, de Mileto. Tradicio-
nalmente, o seu "florescimento" estende-se ao longo do séc. VI.

106
tudo é igualmente cheio de luz e de noite obscura,
4 ambas iguais, visto cada uma delas ser como nada.

A veia dialética do frag. 8 continua no 9 . Estes quatro versos


prestam-se a diversas leituras: todas elas jogando sobre a ambiguidade
e o carácter vago e equívoco com que certas expressões são usadas.
Por exemplo, qual é o referente do "tudo" de 9. 1? É "todas as coi-
sas", real ou aparentemente? Se é realmente, então a atribuição é
errada, porque só um nome lhe conviria, não dois. Mas, se é aparen-
temente, então o erro manifesta-se mais adiante. Porque "tudo é igual-
mente cheio de luz e de noite obscura, ambas iguais". Aqui de novo
como deve ser lido o "tudo"? Se realmente, é errado como acima.
Mas, se aparentemente, então não "é"; ou, se" ... é igualmente cheio
de luz e de noite escura, ambas iguais", como é que podem ser iguais,
se são diferentes (têm nomes diferentes)? Ou ainda, são duas e dife-
rentes, mas também iguais, porque cada uma delas é nada. Mas então
não podem ser nem sequer uma.
Este tipo de refutação mostra como a dialética (e a erística: I
arte da disputa verbal) é uma criação eleática. A tese é demonstrada
pela exibição das contradições, do absurdo, a que conduz a defesa
da antítese (a doutrina que se lhe opõe). É esta dimensão da influên-
cia eleática que os sofistas mais nitidamente explorarão. Voltare-
mos a este tópico.

3. 3 A POSITIVIDADE DA OPINIÃO

Fragmento 1O

E conhecerás a natureza do éter e no éter de todos os


sinais e dos raios da pura lâmpada do sol
as obras destruidoras, e de onde nascem,
e conhecerás as obras que rodam em torno da lua de olho redondo
e a sua natureza, e saberás do céu que os tem à volta,

107
e de onde nasce, e como guiando-o a Necessidade o obriga
a conter os limites dos astros.

O fragmento 1O parece exteriorizar uma atitude bem diferente


da expressa nos dois fragmentos anteriores, transmitindo a sensação de
haver um ensinamento real acerca da aparência. Mas aqui é a natureza
fragmentária em que nos chegou o poema que impede uma decisão
nítida. E será assim para todos os fragmentos que estudarmos a seguir,
como dissemos, com a exceção de B 16 e B 19.
É chamada a atenção para o espaço cósmico em que se acham
localizados o Sol e a Lua. E para os efeitos destes astros sobre a vida
na Terra. Alude-se finalmente a uma ordem que explica a regularida-
de dos movimentos dos astros. Sabemos da importância que a astro-
nomia caldaica, e depois a grega, vão conferir ao estudo destes movi-
mentos irregulares, conspícuos (bem visíveis), salientes, na regulari-
dade das estrelas do céu. Mas será preciso esperar pelo Timeu pla-
tônico para chegar a um discurso coerente e informativo sobre a as-
tronomia grega clássica.

3. 4 ASTRONOMIA E FISIOLOGIA

fragmento 11

... como a terra e o sol e a lua


e o éter que a tudo é comum e a via láctea e o Olimpo
extremo e o calor ardente dos astros forçados a
nascer.

Nada de interessante parece dever ser acrescentado a esta sumá-


ria descrição dos céus. O "calor ardente dos astros forçados a nascer"
só parece poder conter uma referência ao Sol.

108
fragmento 12
1

Pois as coroas mais estreitas enchem-se de fogo sem mistura


e as que vêm à noite depois destas, mas com elas lança-se uma
parte de chama.
No meio delas está o espírito que governa tudo;
pois em tudo comanda o parto doloroso e a mistura,
impelindo a fêmea a unir-se ao macho, e ao contrário
o macho à fêmea.

Aqui, contudo, achamo-nos diante de um ensinamento positivo,


claramente identificado com a transmissão de um saber humano. Pare-
ce estarmos perante uma doutrina que explica o ordenamento cósmico
e a união sexual dos humanos. Há "um espírito que governa tudo", que
"comanda ... a mistura", tanto dos seres humanos, quanto a dos astros,
cujas coroas se enchem de fogo, umas "de fogo sem mistura", outras
com " ... uma parte de chama".
Talvez a imperceptível doutrina vise a caracterização das circuns-
tâncias em que se pode falar de mistura, ou das suas conseqüência físicas
e fisiológicas. Particularmente da mistura dos sangues, responsável pela
geração dos seres. A este ponto, o frag. 18 tem algo a acrescentar.

fragmento 18

Quando a mulher e o homem juntos misturam as sementes de Vênus,


a força que se forma nas veias a partir de sangues diversos,
mantendo o equilíbrio, gera corpos bem formados.
Se, contudo, misturados os sémens, as forças se opõem,
e não fazem unidade, misturados no corpo, cruéis,
atormentam o sexo da criança com o duplo sémen.

O fragmento parece imputar às "forças que se opõem" a responsabili-


dade pelas malformações das crianças e os sofrimentos de que são vítimas.

109
r

fragmento 13

Primeiro que todos os deuses Eros foi concebido.

Nada de novo também aqui. A referência a Eros traduz habitual-


mente a emergência de uma força atrativa entre os seres, que os leva à
reprodução.

fragmento 14

Facho noturno, em torno à terra, alumiado a uma luz alheia

O que constitui "um dos mais belos versos da literatura grega76 " de-
signa evidentemente a Lua e pode bem acoplar-se ao fragmento seguinte.

fragmento 15

Sempre à espreita dos raios do sol.

fragmento 15a

Parmênides no poema diz que "a terra tem raízes na água".

Uma afirmação, respigada de um escólio de Basílio. É interessan-


te na medida em que evidencia um sinal da carreira de Parmênides
como "físico" (investigador da natureza).

fragmento 17

À direita os machos, à esquerda as fêmeas

76
Jean Beaufret, Parménide. Le poeme, Paris, 1955, 8.

110 I
\ !J ftFlt~f~~S-COt~r~r ·F·f.:~ ·-.· I
r~ :.-~! .i(_: ,r~r~4\ ~- ·~

Provavelmente uma teoria sobre a formação dós sexos no útero I

materno. Veja-se o paralelo com as tábuas dos pitagóricos: de um lado I


o Limite, ímpar, uno, direito, macho, em repouso, retilíneo, luz, bom,
I
quadrado; do outro, o Ilimitado, par, múltiplo, esquerdo, fêmea, em
movimento, curvo, obscuridade, mau, oblongo (vide Aristóteles I

Metafísica A 5, 986 b23-6). I

3. 5 Ü PENSAMENTO E A MISTURA I
I
fragmento 16
I

Pois, tal como cada um tem mistura nos membros errantes, I

~
assim aos homens chega o pensamento; pois o mesmo
é o que nos homens pensa, a natureza dos membros,
em cada um e em todos; pois o mais [o pleno] é o pensamento.

Pode ser que não tenha qualquer significado especial. Todavia,


depois de não ter usado uma única vez, nos fragmentos que possuímos
do poema, o termo 'homem' (anthrôpos ; para se referir ao gênero
humano recorre sempre a brotos : "mortal"), Parmênides usa-o duas
vezes neste fragmento (e de novo em B 19. 3).
De resto, a importância deste fragmento é enorme, lançando uma
nova luz sobre a origem e o sentido da sensibilidade e das crenças dos
mortais. Os frags. 8 e 9 tinham-nos já despertado para as "duas for-
mas" contrárias, da mistura das quais, presume-se (com alguma base
em B12 e B18), nascerão os homens e provavelmente todos os seres,
animados e inanimados.·
Ficamos agora a saber que - tal como permeavam a natureza do
cosmos (poderá ser esta a chave para a compreensão de B 1. 32: "pas-
sando todas através de tudo") - as duas formas se combinam no ho-
mem ('membros' é um termo poético para designar o inexistente "cor-
po", ou até os sentidos).

111
Ora, tal como são constituídos pela mistura, assim os homens
perct:bem a mistura77 • E, no entanto- e aqui o jogo entre os sentidos
contrauitórios quase atinge o paroxismo-, nos homens é o mesmo que
pensa (o paralelismo com B3 não pode ser fortuito): "a natureza dos
membros".
Mas então está a justificar com a mistura a percepção da mistu-
ra? E/ou a celebrar a natureza do mesmo? "Pois o mais é o pensamen-
to" coroa tanto equívoco: não se percebe se está apenas a exaltar o
pensamento, ou a acenar ao pleno (recordando a necessidade de uma
natureza única e de um único pensamento: "é"). Pode até suceder que a
equivocidade se manifeste como uma forma de comentar a ambivalência
da mistura e das conseqüências que engendra: a regressividade, a hesi-
tação. etc.

3. 6 A OPINIÃO E OS NOMES

fragmento 19

Assim, segundo a opinião, as coisas nasceram e agora são


e depois crescerão e hão-de ter fim .
A essas os homens puseram um nome que a cada uma distingue.

O fragmento 19 encerra provavelmente o percurso pela via da


opinião. As coisas, diferentemente nomeadas pelos homens, nascem, vi-
vem e hão-de morrer. Esses são os nomes com que os homens (de novo
anthrôpoi) as designam e lhes descrevem as aparências. Subjacente acha-
se a idéia de que tudo isto é enganador, pois, como provou a via da
verdade, só o ser é. Note-s~, porém, a nota, que só Górgias dignamente
acentuará (DK82B3; Sexto Empírico, Adv. math., 83-6 - ver adiante 4.

77A semelhança com Empédocles Bl 09 (ou possível influência neste) é notória:


"Pois com a terra vemos a terra, com água a água,
com ar o ar brilhante, com fogo o fogo ardente,
com amor vemos o amor, e com ódio o ódio terrível".

112
2. 2): são os nomes postos pelos homens que as distinguem. A diferença
não está "nelas" (que razão poderá haver para falar de uma pluralidade?),
mas apenas nos nomes (B8. 38; B9. 1 seg.) que os homens (sem proprie-
dade/autenticidade?: Bl. 30-2) lhes atribuem, e com os quais as distin-
guem, "confiantes de que eram [são] reais": (B8. 39).

4. Parmênides e a herança eleática

Tivemos 'a trás a oportunidade de chamar a atenção para a in-


fluência do Poema de Parmênides no pensamento grego anterior a
Sócrates. Aludimos então ao papel de transmissores e críticos da men-
sagem eleática desempenhado pelos dois maiores filósofos gregos da
Antiguidade: Platão e Aristóteles. Só agora, porém, podemos com-
pletar o quadro geral que evidencia a importância de Parmênides na
tradição filosófica, elucidando as leituras divergentes que a Filosofia
e a sofística78 fizeram do Poema.
A análise já feita permite-nos avaliar o alcance do interdito em
que a tradição condensou todo o impacto da dialética eleática: "não é
possível conhecer, ou dizer, o que não é" (B2. 7-8). Será a diversa
reinterpretação desta tese que irá dividir os maiores representan.tes do
pensamento grego. É com essa sumária consideração que concluiremos
a nossa viagem ao longo do poema.

78
Falar de 'sofística' não implica que a acção dos sofistas se possa, ou deva, entender como um
movimento concertado, mais do que como o fenómeno da convergência para Atenas das figuras mais
representativas da cultura grega da época. A primeira alternativa levanta problemas difíceis de resol-
ver: da datação dessa convergência (estende-se ao longo de mais de um século), da diversa origem,
estatura intelectual e posição ideológica de cada um dos sofistas e da significativa degradação do
ambiente que a sua presença foi provocando. Levanta ainda uma dificuldade que se reflecte sobre a
dependência em que nos achamos das fontes pelas quais nos chegaram informações sobre os sofistas:
para além da evidente parcialidade, gira sempre em torno de personalidades concretas.
Embora nos concentremos sobre a presença da mensagem eleática nas obras dos dois maiores sofistas
- Protágoras e Górgias -,não poderemos deixar de considerar as informações prestadas por Platão no
Eutidemo (condensada em torno de Eutidemo e Dionisodoro, personalidades cuja importância real
se desconhece). Outros sofistas- Trasímaco, Hípias, Pródico e até, mais tarde, Isócrates- poderiam
ser referidos, mas neles o efeito da dialética eleática não é notável.

113
4. 1. Ü FRAG. 2 REVISITADO

A proposição "não é possível conhecer, ou dizer, o que não é"


consente uma constelação de divergentes leituras, motivadas pelas mui-
tas ambiguidades, de diversa natureza, que contém. Comecemos pelas
ambiguidades sintáticas79 •
"Não é possível conhecer, ou dizer... " pode ser interpretada
como uma proibição (no sentido de "não dirás, ou conhecerás ... "),
ou como uma advertência ("se disseres, então ... "). Mas não só uma
tem conseqüências muito diferentes da outra, como interagem de
maneira diversa sobre cada uma das ações: "dizer", ou "conhecer".
E, se não, vejamos. Enquanto "não digas" remete para uma inter-
dição imediata, "não conhecerás" pode ser lida tanto como uma
ordem - "não tentes conhecer" -, quanto como uma advertência -
"mesmo que tentes, não conseguirás" -, ou ainda "o que julgas
conhecer não é um conhecimento (saber) autêntico". Esta última
acepção há-de inevitavelmente reflectir-se sobre o dizer, no senti-
do de "o que disseres, não estás ria realidade a dizer" (são palavras
.ocas, ou meros sons). E, na verdade, a contaminação entre estas
duas interpretações manifesta-se pela retroacção da segunda sobre
a primeira: a interdição acaba por ser lida como a declaração de
uma impossibilidade efetiva.
Passemos agora às ambiguidades semânticas, que são já nossas
conhecidas, residindo na pluralidade de leituras de einai. "O que não
é" pode ser interpretado nos sentidos predicativo, identitativo e exis-
tencial. O problema, note-se, tal como vimos atrás, não tem tantas
conseqüências na interpretação do poema, quanto nos diferentes con-
textos em que vai emergir. "O que não é" pode ser lido como o que
não é "isto ou aquilo", o que não é "igual a si próprio", ou ainda "o
que não existe".

79
O nível sintático refere as relações formais entre os termos; o semântico remete para as relações
materiais entre os sentidos dos termos, ou das expressões.

114
4. 1. 1 DA AMBIGÜIDADE AO SOFISMA

Mas as dificuldades não ficam por aqui, uma vez que de novo se
verifica a contaminação entre os dois tipos de ambiguidade, a qual é
forçoso encarar numa perspectiva histórica. É natural pensar que o
primeiro sentido das palavras da deusa constituam uma interdição:
"não dirás",;não conhecerás". Todavia, se assim fosse, a própria deusa
não poderia com legitimidade proferir a expressão "o que não é", ou
mesmo qualquer declaração na forma negativa. Esta primeira leitura -
a proibição da negativa - pode, portanto, considerar-se violada pela
própria proposição que a declara. Mesmo assim, a interdição poderá
ser invocada para justificar a rejeição de qualquer declaração negati-
va80, ou dar origem a uma cadeia de aporias que afundam o discurso
no infinito regresso81 ·82 . Há, portanto, razões para privilegiar a adv:er-
tência contra a interdição.
Esta possibilidade vai, contudo, dar origem a novos e inespera-
dos problemas. Cruzando de novo o sintáctico com o semântico, a
advertência sobre a impossibilidade de declarações negativas equivale
a sustentar que nenhuma delas terá sentido, como se dizer - "x não
é ... ", ou "não-x .. ."- fosse o mesmo que não dizer nada, ou nem sequer
falar, produzir sons sem nexo- gargarejos, assobios, fungadelas, ata-
ques de tosse, etc.-, ou até gestos obscenos.
80
E não só declarações, como também termos negativos, por exemplo: "não-cavalo", ou, como
veremos adiante, a propósito da interpretação existencial, termos que referem entidades inexistentes,
como 'Pégaso', ou 'Quimera'.
81
Com esta expressão caracteriza-se uma situação indecidível, porque susceptível de se prolongar
indefinidamente, como no exemplo do ovo e da galinha.
82
Por exemplo no seguinte diálogo:
- "Não chovendo"
-"Não podes dizê-lo! "
-"Porque?"
- "Porque não é possível dizer o que não é"
-"Mas posso!!"
-"Porque?"
- "Porque então também tu não poderias proibir-me!!"
- "Nem tu impedir-me dê o fazer!!!" . E a dificuldade torna-se ainda mais complexa se fizermos
retroagir o nível semântico sobre o sintático, sustentando que negar "não está a chover" equivale
a afirmar "está chovendo").

115
Já ultrapassamos o limiar da gargalhada. Mas é só o começo. A
entrada em cena da ambiguidade semântica de einai vai engrossar muitÇ> a
lista de aporias resultantes da interdição divina. Por exemplo, nas interpre-
tações predicativa e identitativa, equivale a proibir, ou desclassificar, qual-
quer forma de movimento ou mudança (como B8. 26-31 demonstra), e
também de geração e de corrupção (B8. 6-21). Como é que "isto" poderá
alguma vez tomar-se "aquilo" (vide B8. 40-1)? Portanto, de o que quer
que seja só poderá afirmar-se que é isso mesmo: "o que quer que seja" (o
que é o mesmo que limitar toda a predicação à identidade83 ).
A interdição da negação da existência vem acrescentar um toque
de paradoxo a esta inextrincável cadeia de aporias. Não se pode falar
de seres inexistentes, como vimos, tal como negar a existência do que
quer que seja. Esta nova impossibilidade vais dar origem a duas inespe-
radas complicações. Primeira, a que resulta do cruzamento das leitu-
ras. Por exemplo, a negação de um predicado pode ser interpretada
como a negação da existência do sujeito ("Sócrates não é meu pai", é o
mesmo que afirmar "Sócrates não existe"). Por conversão, do que não
existe nada poderá ser afirmado, nem sequer que não existe (visto nada
se poder dizer de "o que não é").
· Mas também, pelo seu lado, a segunda complicação vem bara-
lhar toda a confusão já criada. Resulta ela de se encarar o discurso
como um fato, talvez uma outra, espécie de ser. O que acontece então,
se pensarmos que, ao violar cada um dos interditos acima explicitados,
estaremos não a negá-los, mas a cair numa incontornável aporia? Veja-
mos. Não é possível dizer o que não é. Portanto, se o posso dizer (bas-
ta-me dizer: "o não ser... "), então é porque é. Uma vez mais a retroação
do semântico sobre o sintático produziu inéditas dificuldades. Isso sig-
nifica que o fato linguístico da negação a torna tão possível e legítima
quanto a correspondente afirmação.
83Naturalmente que esta dificuldade não terá qualquer conseqüência para quem se limitar a falar
do ser, afirmando "é". Afeta, contudo, qualquer referência a alguma entidade, fato, ou qualidade
do mundo em que vive. Por exemplo, a proposição "o homem é bom" torna-se impossível, ou
destituída de sentido, uma vez que do homem só poderá afirmar-se que "é homem" e do do bom
que "é bom".

116
E assim chegamos à aporia final. A impossibilidade de dizer o
que não é pode ser também lida como a concessão da garantia da
verdade a toda a declaração afirmativa (em todos os sentidos acima
enunciados), a qual acarretará a da correspondente falsidade de todas
as declarações negativas. De resto, a leitura veriditiva de "é" (ver atrás
2. 1. 6) atesta isso mesmo, ao interpretar "é" como "é verdade". Toda-
via, uma vez mais a inegável evidência do discurso recairá sobre esta
interdição, implicando que, na medida em que se declara o que quer
que seja, essa declaração, pelo simples fato de poder ser feita, é verda-
de. E é-o apenas pelo fato de ter sido proferida. Duas conseqüências
decorrem daqui: a impossibilidade da falsidade, bem como a da con-
tradição. Se eu digo "é verde", então é verdade que é verde, pelo sim-
ples fato de o estar a dizer. Mas, se digo "não é verde" também é verda-
de, porque acabei de o dizer. Portanto, se faço uma afirmação e a ·se-
guir a nego, nem por isso me contradigo, visto que tanto uma como
outra são verdades (ou seja "verdade").

4. 2 A CRÍTICA À SOFÍSTICA

As interpretações acima sumariadas, além de muitas outras indi-


retamente relacionadas com a eleática interdição de dizer "o que não
é", não são fruto da desenfreada imaginação de nenhum estudioso da
cultura grega. Acham-se, todas elas, apontadas por Platão e Aristóteles,
no diálogo Eutidemo, e no tratado intitulado As refutações sofísticas,
respectivamente. Mais do que isso, é possível encontrar as mais interes-
santes no fragmento que conhecemos do tratado de Górgias Da natu-
reza ou do não-ser.
Não é difícil calcular o efeito paralisante que tiveram, e ainda
hoje podem ter, sobre o pensamento. Não será então difícil entender a
mistura de ironia·e desprezo com um fundo sentimento de impotência
com que a Filosofia as encara (nenhum texto documenta este sentimen-
to dúbio melhor de que o Eutidemo). Mas há também que atender a
razões habitualmente pouco consideradas. É que os sofistas são talvez

117
os últimos e mais brilhantes representantes de um mundo que Platão e
Aristóteles ajudaram a sepultar: o da oralidade.
Para o amante do saber, como para aquele que se dedica à exaus-
tiva tarefa de o registar, criticar e sintetizar em textos escritos, destina-
dos a serem usados criticamente pelas gerações futuras, o calor das
disputas erísticas (combates verbais em que o que interessava era ven-
cer o opositor), a mera valorização do sucesso, a expensas da investiga-
ção da verdade, não só são destituídas de sentido, como constituem o
maior obstáculo aos seus propósitos. Assim se·explica a atitude que o
levará a excluir os sofistas da autêntica tradição filosófica.
É compreensível. Todavia, uma tão severa crítica não passaria de
parcialidade, se não fosse compensada por um esforço efetivo, no sen-
tido de emancipar o saber filosófico do atoleiro de sofismas em que os
erísticos tinham deixado a tradição reflexiva grega.
Mas os sofismas, como vimos, limitam-se a explorar as
ambiguidades consentidas pelo grego corrente. Para além dos rigorismos
éticos e da sobranceria política, a tarefa prioritária residirá em conse-
guir despistá-las e resolvê-las cabalmente. Essa será, antes de todos, a
missão de Platão.

4. 2. 1 PLATÃO

Pela associação expressa do interdito eleático (B2. 7-8; vide Repú-


blica V 4 76 e-77) à conclusão retirada da exclusão da via negativa- "o
mesmo é ser e pensar" (B3; vide República 4 77 a sqq.) -,Platão concebe
uma filosofia que explora a cisão entre a realidade (o ser e o saber) e a
aparência (a experiência sensível e a opinião). Esboça então um duplo
movimento. Por um lado a profunda a cisão, argumentando que enquan-
to o saber é matéria de ensino e aprendizagem, a opinião não pode ser
transmitida senão pela persuasão (Timeu 51 e). Por outro comp-=11sa-a,
promovendo o acesso ao saber através de um método que ensina, atra-
vés de uma prática dialética assente sobre princípios rigorosos, a questi-
onar os dados colhidos pelo exercício da sensibilidade.

118
', .' }. ·~ ~

Esta estratégia terá efeitos revolucionários, condicionando a for-


mação da atitude e modo de vida designado pelo nome 'Filosofia', que a
captação da tradição pela escrita (vide atrás:) converterá em disciplina.
A constituição do saber passa primeiro pelo estabelecimento da
distinção entre matéria e forma: de um lado, acha-se "aquilo" que se
sabe e aquilo "de que se sabe", do outro as regras que condicionam
formalmente o saber, enquanto saber (irrefutabilidade, infalibilidade,
unicidade, imutabilidade etc. 84 ) . Depois é esboçada a estratégia de defi-
nição de urna síntese de ambas, que aproveita a informação material
proporcionada pela aparência, submetendo-a ao rigor introduzido pe-
las exigências racionais do saber. Só assim o saber consegue atingir a
estabilidade que o elevará acima dos processos do ensino tradicional,
pelos quais o mestre se limitava a instilar as suas convicções na mente
dos discípulos, forçados a recebê-la passivamente (é isto que o filósofo
designa de "persuasão").
É contra esta situação - toda ela herança da tradição oral - que
Platão se revolta. O seu programa está concebido a partir da mensa-
gem eleática. Todavia, para que este possa ser levado a cabo com êxito
será necessário nela introduzir significativas modificações. É isso que
Platão fará no Sofista. Mas para as compreendermos há que enveredar
pela Filosofia da Linguagem, pensando nos fatos linguísticos responsá-
veis pelas interpretações do frag. 2 do poema, acima inventariadas.

4. 2. 1. 1 NEGAÇÃO

Para Parrnênides, "é" é o contrário de "não-é", portanto, a afir-


mação e a negação são contrários. Platão vai mostrar que embora pos-
sa ser esse o caso, não tem de ser, e na maior parte das situações nem
sequer é assim.

84
Se houvesse mais do que um saber, se estivesse sujeito a alterações, se pudesse ser refutado, não
se poderia legitimamente considerá-lo saber. As duas primeiras exigências derivam da natureza do
ser (unicidade, imutabilidade, eternidade etc.). As duas outras são específicas do saber e condicionarão
o seu modo de fixação e transmissão.

119

O "bom" é o contrário do "mau", o "justo" do "injusto", e assim


por diante. Todavia, entre um e outro extremos podemos pensar em
muitas outras possibilidqdes: o "indiferente", o "aceitável", o "suficien-
te", etc. Mas, se em vez de valores, ou de adjetivos, pensarmos em
substantivos, a objecção toma-se ainda mais pertinente. Qual é o con-
trário do "vermelho"? Nalguns sentidos poderemos falar do "verde".
É, contudo, evidente que este tipo de contrariedade en nada se asseme-
lha à dos adjetivos citados acima. Portanto, o que é o "não-vermelho"?
Alguma cor especial? Já vimos que não. É a gama infinita das cores e
tonalidades distintas do vermelho. Por essa razão, devemos encarar o
'não' não como significando contrariedade, mas alteridaêle. A negação
de algo não é um não-algo no sentido absoluto, mas outra coisa, que
apenas sabemos não ser "algo".

4. 2. 1. 2 NÃO-SER

Daí resulta que o não-ser não é o contrário do ser. É apenas


outra coisa diferente do ser. No sentido predicativo - por exemplo,
"Carlos é amável"-, "Carlos não é amável", ou "Carlos é não-amável",
significa que no sujeito em causa não se manifesta a amabilidade. Mas
não implica que ele seja grosseiro, rude, ou mal-criado. Não implica
um defeito real, mas tão-só a ausência de uma qualidade.
No sentido existencial (o identitativo não acrescenta aqui nada
ao já dito), a questão é ainda mais momentosa. Vejamos a mais
extensa de todas as proposições: "o ser é". Significará a sua negação
a inexistência do não-ser? De modo nenhum. Se 'não' significa "ou-
tra coisa", no sentido existencial o não-ser existe, porém, com uma
existência diferente da do ser. E o sentido predicativo esclarece pre-
cisamente de que tipo de existência se está a falar: da do bom, do
vermelho, etc.
Quer isso dizer que não se pode falar do não-ser como inexistente?
Claro que pode. Mas aí teremos de conceder toda a razão a Parmênides:
pode-se falar, mas dele nada se poderá dizer.

120
4. 2. 1. 3 fALSIDADE
'
Se é assim, também uma falsidade não é o contrário de uma
verdade, mas apenas uma outra coisa, diferente dela. Nessa medida,
não só é possível dizer falsidades (violando o interdito "dizer o que não
é"), como é o que acontece sempre que uma descrição de um estado de
coisas não coincide com esse estado de coisas: por exemplo, afirmar
"esta é uma moeda de cinco escudos", quando se trata de uma de dez
escudos, ou uma de cinco escudos falsa. É outra coisa, mas não coisa
nenhuma.

4. 2. 1. 4 VERDADE

Nesse sentido, 'verdade' não é mais do que a qualidade de uma


proposição que descreve um estado de coisas tal como ele é: se é, afir-
mando que é, se não é, negando-o.

4. 2. 1. 5 APARÊNCIA

E a aparência? Essa será a situação proposta por uma proposi-


ção que descreve um estado de coisas que parece, mas não é de fato, o
estado de coisas descrito. É o que se passa quando alguém se assusta ao
avistar um animal que avança na sua direção e foge gritando: "Lobo!"
Para parar daí a pouco, ao perceber que o animal que corre ao seu lado
é o cão de um vizinho.

4. 2. 1. 6 OPINIÃO

E opinião será então a designação conferida a uma proposição, efeti-


vamente enunciada por um sujeito, o qual, de acordo com a informação
colhida por via sensorial, faz uma afirmação ou uma negação. Sujeito que
pode estar certo ou enganar-se, pois essa é a natureza da opinião, e que diz a
verdade quando acerta, e uma falsidade quando erra, mente, ou se engana.

121
A opinião tem uma natureza escorregadia, variável, passível
de ser avaliada de muitos pontos de vista diferentes. E é por isso
mesmo que não se pode confundir com o saber. Mas não será por
isso que o saber pode de todo dispensar a opinião. Pelo contrário,
serve-se dela como matéria sobre a quallabora. Mas terá de a sub-
meter a uma consideração refinada para poder apurar o que da opi-
nião se poderá converter em saber e o que não passa de confusão,
erro, ou ilusão.

4. 2. 2 ÀS CONSEQÜÊNCIAS DA CRÍTICA DE PLATÃO

Através destas precisões e especificações, Platão conseguiu reti-


rar da mensagem de Parmênides o que lhe interessava, libertando-se
das conseqüências indesejáveis que acarretava. Mais ainda. Esclarecen-
do as circunstâncias em que o verbo ser pode ser interpretado nos seus
sentidos predicativo, identitativo e existencial, fixa definitivamente as
modalidades que determinam a realidade e o discurso acerca dela: os
cinco gêneros supremos - o ser, o mesmo e o outro, o movimento e o
repouso. O ser diz-se das coisas que existem; o mesmo daquilo que
elàs são identitativamente; o outro das que existem e se dizem diferen-
temente das ditas 85 ; o movimento das coisas que se movem e mudam;
o repouso das que permanecem.

4. 3 0 SABER DOS SOFISTAS

Em que consistia então o saber dos sofistas e de que modo inter-


pretavam eles o interdito eleático?
Comum a todos eles era a dedicação ao estudo das questões da
linguagem. As finalidades deste trabalho, contudo, pouco teriam a ver
com o interesse pela investigação e pelo aprofundamento do saber. Es-
85
Como, por exemplo, em "o movimento participa do ser" (ou "o movimento existe"); ou na
afirmação de que qualquer gênero participa do mesmo em relação a si próprio; ou ainda "o movi-
mento participa do outro em relação ao repouso" ("o movimento é diferente do repouso").

122
tavam primariamente voltadas para a prática e para a preparação e
apetrechamento intelectual de todos os envolvidas na vida política. e,
numa cidade como Atenas, nos anos que se seguiram ao triunfo sobre
os Persas, esses eram potencialmente todos os cidadãos. Como inter-
pretaram os sofistas a mensagem eleática?

4. 3. 1 PROTÁGORAS

O decano de todos os sofistas (nascido por volta de 490) com-


portava-se de modo prudente e moderado. Por aquilo que Platão nos
deixa perceber dele, o Abderita (originário de Abdera, no Norte da
Grécia) era um homem de saber com muito prestígio. Dele não conhe-
cemos qualquer virtuosística exploração das ambiguidades consentidas
pelo eleatismo.
Pelo contrário, a essência da sua doutrina reside no respeito pelo
saber, que nele passa pela dignificação da opinião, conseguida através
do refinamento dos produtos da sensibilidade e pelo apuramento da
capacidade de ajuizar as contradições e conflitos com que a vida cor-
rente nos confronta. É a atitude de um relativista, para quem "o ho-
mem é a medida de todas as coisas". Pode este princípio querer dizer
que o que quer qualquer homem afirme o afirma pelo fato de, para ele,
ser verdade. Mas isso não implica que de fato assim seja. Este nível de
identificação da verdade com o ser e o saber é exatamente aquele que o
sofista rejeita, ou que prefere não considerar.
Sobre se é, ou não, de fato, verdade, nada arrisca, mas apenas
que "sobre todas as coisas são possíveis raciocínios contraditórios" -
"um forte, outro fraco" (DK80B6a, 6b86 ). Aqui se manifesta o relativismo
de Protágoras, com um pendor nitidamente agnóstico. O sofista não
86 O sentido desta contradição, bem como a diferença entre os raciocínios "forte" e "fraco" acha-se
elucidado nos Argumentos Duplos (DK90). Por exemplo, a chuva é boa para os agricultores e má
para os comerciantes; pois aos primeiros aumenta a colheita e aos segundos diminui os lucros, tal
como com a seca acontece o inverso.
É oportuno notar não só que o número de casos semelhantes a estes é potencialmente infinito,
como ainda que consubstanciam o tipo de conflitos emergentes da vida em sociedade. Esta nota
atesta ainda o sentido eminentemente político do ensino dos sofistas,

123
nega diretamente valor ao saber, pelo contrário. Limita-se a não se
pronunciar sobre ele, desconfiando das capacidades humanas para o
atingir (posição susceptível de conduzir a um ceticismo moderado).

4. 3. 2 GóRGIAS

Mas o mais brilhante, prestigiado e influente de todos os sofistas


foi Górgias, de Leontinos (na Sicília, que chegou a Atenas em 427, no
ano em que nascia Platão). O seu ataque a Parmênides foi devastaddr.
Com o já citado tratado Da natureza ou do não-ser combateu cada
uma das teses eleáticas, sustentando esta cadeia de teses paradoxais:
'~Nada é; [mas] ainda que alguma coisa seja, não é compreensível ao
homem; [e] se ainda assim for compreensível, é por certo incomunicá-
vel e inexplicável a outros".
O modo como chega à demonstração destas teses não pode ser
outro que o da sistemática e repetida exploração das ambigüidades
contidas no frag, 2. 7-8 de Parmênides, tal como acima as enunciamos.
Jogando as ambiguidades umas contra as outras, consegue desenvolver
sofismas em virtude dos quais atinge sempre conclusões simultanea-
mente absurdas e contraditórias. O saldo poderá ser para muitos intei-
ramente negativo: o da afirmação da impossibilidade do ser e da inuti-
lidade do saber. Para o próprio Górgias, porém, não era assim.
Mesmo que o ser seja impossível e o saber inatingível, a vida
neste mundo é indiferente a esse fato. E é melhor vivê-la bem do que
mal. A marca do sucesso de um homem reside então no seu poder, e
este depende da sua capacidade de influenciar os outros. Essa capaci-
dade, por fim, assenta toda, ou em boa parte, no domínio do discurso.
E é essa a receita de Górgias para o sucesso. Se não é possível ser sábio,
então a única sabedoria consiste na capacidade de cada um se fazer
respeitar, obedecer, temer até.
Só o poder confere a um homem essa condição. E o poder, antes de
mais, político, pode ser atingido através do correto exercício do discurso.
Não basta falar bem. É preciso ser eficaz sobre as audiências, persuadi-las

124
a agirem no sentido dos nossos interesses. Para o conseguir, porém, são
necessárias qualidades naturais e conhecimento técnico das regras da ora-
tória. Os seus dois mais famosos discursos que chegaram até nós: os elogi-
os de Helena e de Palamedes (duas figuras que qualquer Grego considera-
ria indefensáveis) demonstram isso mesmo: como através do discurso se
constrói a realidade, realidade que, sem ele, de todo nos escapa.
A funda relevância desta consideração final é inegável. Todavia,
o desprezo manifestado em relação ao saber, obriga o filósofo, para
quem estas considerações levantam questões pertinentes, a ignorá-lo. É
aqui que Platão e Aristóteles pecam por parcialidade87 •

4.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE OS SOFISTAS

É fácil compreender as razões do desprezo e dos insultos que os


filósofos lançaram sobre os sofistas: levá-los a sério implicaria invali-

87
Para o compreender bastará ler o final do Da natureza ou do não ser. Vale a pena a longa citação.
"Uma vez que as coisas que são são visíveis e audíveis, e, em gênero, sensíveis, na medida em
que são externas a nós, e, de essas, as visíveis são perceptíveis por meio da vista, e as audíveis pelo
ouvido, e não simultaneamente, como poderemos exprimir um [sentido] pelo outro? Pois o meio
com que nos expressamos é a palavra (lagos); e a palavra não é a coisa, o que .realmente é;
portanto, não é a realidade existente... " (ta hypokeimena kai anta; note-se a recusa em aproveitar
aqui a ambiguidade de einai) " ... , mas outra coisa. Do mesmo modo então, o visível não pode
tornar-se audível, e viceversa; de tal modo que assim o ser, na medida em que é coisa exterior a
nós, não pode tornar-se na nossa palavra. Porque a palavra, diz Górgias, é expressão da ação que
exercemos sobre os fatos externos, isto é, as coisas sensíveis. Por exemplo, do contato com o sabor,
tem origem em nós a palavra conforme a esta qualidade; e do encontro com a cor, a palavra
conforme à cor. Posto isto, resulta ser a palavra que explica o dado externo, mas é o dado externo
que confere significado à palavra. E, contudo, também é possível dizer que, do modo que existem
(hypokeitai) as coisas visíveis e as audíveis, assim também a palavra; contanto que, existindo ela
também como coisa, tenha a propriedade de significar as coisas existentes. Pois, admitindo-se que
a palavra seja coisa, ela diz, embora difira das outras coisas; e sobretudo diferem das palavras os
corpos visíveis; visto ser um o órgão com que percebe o visível, e outro aquele com que se aprende
a palavra. Portanto, a palavra não pode expressar a máxima parte das coisas, tal como nenhum
destes pode revelar a natureza do outro." (Sexto Empírico Adv. Math. VII 83-6).
A instituição de uma tão funda cisão entre as palavras e as coisas, a par da correspondente confe-
rência de um estatuto ontológico ao discurso, não agrada decerto a Platão e a Aristóteles, que
consagraram o trabalho das suas vidas a anulá-la. Mas não será por isso que este texto deixará de
exibir uma qualidade genuinamente filosófica. É que a lição de Górgias é tão clara quão problemá-
tica: as palavras não "são" as coisas que referem; só que isso não as faz menos "coisas" (terem uma
menor dignidade) que elas. por outro lado, sem as palavras não teríamos qualquer forma de acesso
às coisas.

125
dar o próprio propósito que anima o amor ao saber. Esta justificação
torna-se ainda mais forte se pensarmos que, além dos mais ilustres
sofistas, de que acabamos de falar, outros haviam, uma chusma deles,
que vivia alimentada pela ignorância e inveja da multidão. Tanto te-
ria bastado para que o sentido aristocratizante de Platão e o genial
bom-senso de Aristóteles lançassem sobre eles um anátema que ainda
hoje perdura.
Mas isso não significa que os ensinamentos dos sofistas não ti-
vessem tido uma importância transcendente E ainda menos que alguns,
pelo menos Protágoras e Górgias, não tivessem razão. E ela está aí aos
olhos de todos. Na verdade, quem triunfa nos dias de hoje são os sofis-
tas e não os filósofos, se de todo há alguns.
Seja como for, o nosso papel não será tanto julgar uns e outros,
quanto tentar compreendê-los. De todos somos descendentes: de sofis-
tas e de filósofos, e de pessoas ignorante, bem como de quantos apro-
veitaram para o bem, ou para o mal, as lições que deixaram.
Mas uma verdade há que repetir. Acima de todos eles -e também
de nós- paira ainda o vulto tutelar de Parmênides. Nunca poderemos
cc,mceder-lhe atenção demasiada, nem respeito que seja imerecido.

4.5 CONCLUSÃO: NÓS E p ARMÊNIDES

Que ressonâncias têm ainda hoje a mensagem eleática? Muitas. Tão


profundas, porém, que dificilmente as poderemos captar. Ao contrário do
sucedia na Antiguidade, o saber é hoje um imenso edifício, compartimentado
em disciplinas aparentemente estanques, embora isso resulte do modo como
são ensinadas, por ora ainda indiferente ao estágio de desenvolvimento
que atingiram. Se interrogássemos qualquer cientista anônimo sobre a
relevância do eleatismo para a sua área de estudos, muito provavelmente
responder-nos-ia com uma vaga generalidade, pouco esclarecedora, senão
com o desinteresse que a genuína ignorância motiva.
E, no entanto, a estrutura do saber atual respeita ainda a funda
cisão no saber que o argumento da deusa instituiu. Notamo-lo na dis-

126
tinção entre "ciências puras, exatas" e "ciências aplicadas": enquanto
as primeiras privilegiam o método dedutivo, a priori, as segundas op-
tam por proceder indutivamente, a posteriori (respeitando a oposição
da unidade pensável do ser à diversidade da aparência) .
Por outro lado, a evidência do progresso tecnológico, proporcio-
nada pelas ciências experimentais, quando confrontada com a incerte-
za da reflexão, bem como com os novos campos de aplicação, forneci-
dos pela atividade humana, sugeriu a oposição, introduzida no séc.
XIX por Dilthey (hoje já ultrapassada), entre "ciências do espírito" e
"ciências da natureza".
Mas há mais. A constelação de problemas filosóficos expressa
pelas múltiplas contraposições históricas -do Idealismo ao Racionalismo
e ao Empirismo, do Realismo ao Nominalismo - reflete ainda o modo
eleático de colocar o problema do saber.
O fato de a maior parte destas distinções - outrora tidas por
definitivas - se acharem hoje ultrapassada, ou pelo menos sujeita a
incessante revisão, obscurece a sua derivação da problemática
introduzida pelo eleatismo. Bastará, porém, um estudo superficial do
poema para mostrar a influência que produziu nas mais brilhantes men-
tes da Grécia clássica, quase incompreensível, perante a indiferença a
que é votado hoje. Como explicar esta divergência de posições? Natu-
ralmente, pela diferença dos contextos culturais e também pelo con-
traste evidente nas concepções de saber em presença.

4. 5. 1 A EVOLUÇÃO DO SABER

O saber é um fato com que cada um de nós foi confrontado, feito


e pronto a aprender. Um imenso reportório de informação, acumulada
ao longo de milênios, exposta na evidência cósmica, e conservada em
dispositivos naturais, ou divisados para essa finalida~e: enciclopédias,
museus, monumentos, memórias humanas e artificiais, etc.
Para os Gregos, o saber era, por um lado, parte da sua própria
natureza, para alguns constituía mesmo a sua natureza autêntica. Por

127
outro, copw problema, seria uma novidade, um jogo, uma charada ...
Como é que a um mortal era concedido esse dom da infalibilidade que
era a marca distintiva do saber? Como é que ela havia de se manifestar
a não ser pela exigência de irrefutabilidade que afetava todos os pro-
nunciamentos epistêmicos, tudo o que aspirava a valer como saber?
Todo o saber atual se diz por escrito, ou em relação à escrita.
Pelo contrário, na Atenas clássica, como vimos, a escrita é uma recém-
chegada. E a sua relação com o saber é altamente ambivalente. Tendo
começado a carreira como mero instrumento de fixação da informa-
ção, cedo manifesta as suas potencialidades como meio de reprodução
de mensagens, para acabar por se converter na tecnologia vocacionada,
por excelência, para a produção, seleção, fixação e circulação das men-
sagens culturalmente significativas.
É por essa razão que, antes de chegar à escrita, o saber realizou uma
muito longa caminhada no mundo da oralidade88 • Ora é sobre os momen-
tos finais desta marcha que as disputas sofísticas, as peças da oratória
grega, os escritos deXenofonte, os diálogos de Platão, nos documentam89 •
E o espanto que a todos percorre e permeia deixa-se condensar em três
versões, ou fases, de uma única interrogação. Como é que a perfeição
imutável do saber, infalível e irrefutável, consente caber: primeiro, num
único homem?; segundo, nas suas efémeras palavras?; terceiro, no sistema
de sinais convencionais que mecanicamente as perpetua (as letras)?
Toda a filosofia grega, até Platão, se deixa enquadrar neste apa-
rentemente simples percurso. A primeira versão da pergunta está volta-

88
Aqui residindo a natureza paradoxal de todas as tentativas de compreensão da questão da oralidade;
pois é bem claro que nunca teríamos chegado a ter notícia das declarações orais se a escrita não
tivesse delas guardado qualquer espécie de memória. Nessa medida, é possível imaginar como
aquilo que é memória escrita de um tempo e de um mundo passados, marcados pela oralidade, nos
aparece como criação original de um autor que escreve sobre o seu tempo.
Esta tendência é sobremaneira evidente em Platão. Só com esforço somos capazes de distin-
guir nos diálogos o que é memória de outro tempo - seja recordação de debates orais, seja
mensagem conservada por antiquíssima tradição- do que é reflexão própria, que o autor conver-
te em texto.
89
O mesmo sucederá com toda a produção em prosa deste período, nomeadamente as obras dos
historiadores: Heródoto (que viveu entre as duas guerras) e Tucídides (que escreveu sobre a segun-
da). Mas aí é a própria natureza histórica dos fatos narrados que impede a confusão temporal.

128
---------------------------------------~-

da para, e inclui, a própria tradição, gradualmente desembocando na


segunda, que é aquela com que aparece em Sócrates, nos sofistas e no
mundo oral que os suportava. A terceira contém o percurso realizado
nos diálogos platônicos. Este sutil deslizar pode até notar-se pelo jogo
entre dois termos aparentados, à medida que o sophos (sábio), de
figura terrível do passado, se volve em polêmico herói do dia, para vir ·
a ser capturado pelo philosophos (filósofo), perseguidor incessante de
um saber que sabe nunca poder atingir, ou ignorado pelo sophi~tês
(sofista), que tudo sacrifica ao sucesso imediato.
Por esta razão, para um Grego, até Aristóteles, digamos, o saber
é essencialmente uma questão em aberto, matéria e terreno para mui-
tas disputas (Parmênides B7. 5). Mas essa dimensão reflexiva,
questionante, enigmática até, que inaugura o saber, começará logo a
contrair-se assim a escrita o captar, fixar e exprimir.
A escrita vai, portanto, provocar uma profunda cisão no mundo
até aí unificado do saber90 • Dominadora de todas as questões, ficará a
Filosofia - identificada com a vocação espontânea e original para o saber
-,que muitos séculos depois se irá fragmentando no edifício mutável das
disciplinas científicas. Esse é o domínio do conhecimento, que a Escola
passageiramente conquistou para si. A mais prestigiante de todas as suas
frentes, captora da antiga dimensão reflexiva, é a da fronteira do saber:
de um lado a investigação científica, do outro a Cultura91 •
90 Como já provocara na língua corrente, falada no quotidiano, ao fixar o vocabulário em termino-
logias. As disputas sofísticas, ao interessarem-se pela correção da linguagem, começam por levan-
tar o problema do significado dos termos, para o qual só a definição de um vocabulário dos termos
relevantes constituirá adequada resposta.
O que distingue os Gregos, e a sua Cultura, da de todos os outros povos é o fato de terem sido
os criadores originais do vocabulário do saber, construído- para usar a expressão de E. A. Havelock
- "como um enclave de discurso forjado na fala do quotidiano". É desse vocabulário, que o Latim
traduzirá e que a partir daí passará para todas as línguas novilatinas, que hão-de derivar as
linguagens da Ciência e da Cultura.
91 Fronteira em que a qualidade e a quantidade duplamente se confrontam e potenciam. Saber mais

é também saber melhor. Quantos mais homens souberem, mais capaz a Humanidade será de
superar os desafios que se lhe deparam.
A crise de todas as crises que ameaçam a vida no planeta poderá residir apenas no aprofundar
da diferença que separa as curvas do crescimento quantitativo e qualitativo da Humanidade (agra-
vada pelo abaixamento da taxa de natalidade e envelhecimento da população nos países desenvol-
vidos). O saber é o único fator que verdadeiramente as poderá afastar.

129
Por baixo ficam os cacos do espelho quebrado do saber, de que
sobraram muitos e dispersos reflexos. Primeiro virá a dimensão pesso-
al, a "experiência", o autoconhecimento, o pronunciamento sapiencial,
oracular, refugiado na criação artística, na literatura - ficção, poesia,
prosa reflexiva, epistolografia (literatura de cartas) -, que volta à vida
no diálogo íntimo, na análise clínica, na conversa entre amigos. Depois
vem o universo da crença e da sabedoria tradicional: a fé, superstição,
as práticas de vida, o folclore, a relação de cada um com os grupos em
que se integra. E a última degradação do saber é a "cultura geral",
reaparecida em vestes lúdicas em concursos e jogos, em que se busca e
preserva a informação trivial (é isso que significa Trivial Pursuit).
Todo esse repositório da memória humana é essencialmente co-
mum. E, no entanto, aparece ao estudante como o produto de uma
penosa conquista pessoal. Poucas noções parecerão tão estranhas ao
escolar recém-formado quanto a idéia platônica de anamnese. A pere-
grinação da alma de corpo em corpo, o contato anterior (e interior)
com as verdades eternas, a caracterização da aprendizagem como re-
cordação, nada lhe parecerá mais fantasioso e destituído de sentido. E,
no entanto, se a estas concepções retirarmos os ecos religiosos, se con-
segUirmos enquadrá-las no contexto cultural atual, conseguiremos com-
preender muitos fatos dificilmente explicáveis da prática epistêmica.
Como se estabelece o acordo entre mentes essencialmente
incomunicantes? Sobretudo, como se passa do que se sabe ao que se
não sabe, como se pode descobrir novas verdades a partir das antigas?

4. 5. 2 A HERANÇA DE PARMÊNIDES

E assim as mais recentes interrogações das ciências cognitivas


retornam à fonte a que, ao longo dos séculos, não cessam de ir beber. O
saber eleático desempenha nesta evolução o papel de inaugurador. "O
jovem" é o primeiro a advertir os mortais da dupla dificuldade da de-
manda a que se lançaram. Considerando as perguntas e as respostas,
há que atender à natureza material das questões, mas também à exi-

130
gência de rigor formal das declarações que as substanciam. O que faz a
verdade das respostas que a Humanidade encontra para as interroga-
ções que a perseguem não é a dignidade da voz que fala, nem a inspira-
ção a que obedece (a divindade atestará sobretudo a presença da tra-
dição), nem sequer a especificidade das perguntas e das respostas. É,
antes de mais, a natureza do produto concebido: o saber! É como
saber que perguntas e respostas começam por ser apreciadas. Mas não
basta. A forma das respostas, o método que as estrutura e lhes define
os contornos, também é relevante: o fato de estas se manifestarem como
um argumento. Finalmente, a dignidade epistêmica reflete-se na exi-
gência crítica que alimenta e suscita a atitude polêmica.
Ou seja, não há apenas que encontrar uma resposta e afirmar
que está certa. É preciso mostrar como, porquê e com que conseqüências.
A História da Filosofia ilustra o modo como os Gregos honraram esta
' .
obrigação e depois todos os outros a respeitaram, embora
reconfigurando-lhe os termos.

4. 5. 2. 1 "NÃO DIRÁS O QUE NÃO É"

A ordem cósmica é a um tempo o alvo das perguntas e a subs-


tância das respostas, o fato que há a explicar. Ora o argumento da
deusa começa por mostrar que a ordem, enquanto fato, se exprime na
evidência de si própria, pela via do pensar, como ser. Da inquestionável
realidade do ser resultará então a sua posição como saber, como sim-
ples conseqüência da identificação de um com o outro. A seguir se
mostra como esta é a única possível posição correta do problema, à
qual o pretenso saber dos homens, mesmo aquele que a tradição regista,
tem de se subordinar.
Daqui resultarão depois: 1) o exame do argumento paradigmático
(exemplar), de que dependem todas as polêmicas; 2) o percurso crítico
pelo saber tradicional. E é tudo.
Quem não perceber este raciocínio (susceptível de ser interpreta-
do de muitos outros modos), quem não compreender o que são o ser e

131
o saber e de que modo se enlaçam um no outro, nada compreenderá da
Filosofia. Porque a Filosofia começa e acaba aqui. Pode preferir uma
ou outra via, escolher a finalidade que melhor lhe aprouver. Mas não
pode deixar de partir daqui, para de novo aqui tomar (frag. 5). Esta é a
a crise (krisis) que comanda todas as decisões (kriseis).
Depois a Filosofia voltar-se-á para muitos outros objetos e defi-
nirá muitos outros programas. Todos eles, porém, partem de Parmênides
e a ele tomam: ao ser e ao saber. Quem não o compreender prefere a
companhia da "multidão acéfala, acrítica, sem discernimento ... ". To-
dos os insultos merecem os mortais para quem tanto vale fazer uma
afirmação como o seu contrário.
Muitas serão depois as vozes dissonantes, os seus protestos ainda
hoje se ouvem. Mas o eco da terrível advertência divina continua a
ressoar nos nossos ouvidos: "Não dirás o que não é".

132
0 POEMA DE PARMÊNIDES,
A OBRA FUNDADORA DA
TRADIÇÃO FILOSÓF I CA
OCIDENTAL, É COMENTADO
E INTERPRETADO PARA O
BRASIL POR .JosÉ
TRINDADE SANTOS ,
PROFESSOR DE FILOSOFIA
ANTIGA DA FACULDADE DE
LETRAS DE LISBOA .

.(

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