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Celso Leopoldo Pagnan

Doutor em literaturas de língua portuguesa

Resenhas dos livros de


leitura obrigatória da
UEL 2017/2018

Londrina, 2016
1a edição

1
Direção-Geral
Virgílio Tomasetti Jr.

Direção administrativo-financeira
Ubiracy D'Andrea

Coordenação de novos produtos


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Supevisão de Editoração
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Organização e Revisão
Celso Leopoldo Pagnan

Capa
João Paulo Fidellis da Silva

Diagramação
Glauber Damasceno

808.8 Pagnan, Celso Leopoldo.


P156r
Resenhas dos livros de leitura obrigatória da UEL 2017-2018. Celso Leopoldo
Pagnan. – Londrina : Colégio Maxi, 2016. – 85p.

1. Resenhas – vestibular. 2. Literatura. 3. UEL – vestibular. I. Colégio Maxi.

Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário


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2
Apresentação
Vestibulando(a)!
Estas são as resenhas de leituras obrigatórias destinadas
especificamente, e com antecedência, aos candidatos a cursos de
graduação da UEL – Universidade Estadual de Londrina (PR), nos
concursos vestibulares de 2017 e 2018.
Uma lista com 10 obras literárias é sugerida pela Universidade a
cada dois anos. A atual compõe-se de 3 obras remanescentes da lista
anterior e 7 novas:
Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano
O pagador de promessas, de Dias Gomes
Toda poesia, de Paulo Leminski
Vozes anoitecidas, de Mia Couto
Uma menina está perdida no seu século à procura do seu pai, de Gonçalo Tavares
O Ateneu, de Raul Pompéia
Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade
A hora da estrela, de Clarice Lispector
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
Topless, de Martha Medeiros
As resenhas foram feitas pelo prof. Celso Leopoldo Pagnan, com a intenção
de oferecer a você informações e análises indispensáveis ao seu preparo
imediato para o vestibular, sem a pretensão de substituir a leitura do texto
literário integral.
Ora, detalhes importantes como ambientação da obra, estilo do
autor, caracterização dos personagens, ritmo da narrativa e a própria
“mensagem” são objetos da tratativa desta resenha, mas podem ficar
incompletos para o leitor apenas de uma resenha, por mais fiel que ela
tente ser. Daí, nossa recomendação de que estas resenhas sirvam de
preparação ou de complementação à leitura do texto integral das
respectivas obras, pois nossa intenção é tanto abrir caminhos a
quem vai lê-las quanto preencher eventuais lacunas a quem as
leu.
Seja a leitura destas resenhas uma introdução e, ao
mesmo tempo, um complemento ao seu estudo da
literatura luso-brasileira no que tange às exigências
do vestibular de 2017 e 2018 na UEL.
Bom estudo!

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Sumário

Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano .................. 5

O pagador de promessas, de Dias Gomes ......................... 13

Toda poesia, de Paulo Leminski ............................................. 19

Vozes anoitecidas, de Mia Couto ........................................... 27

Uma menina está perdida no seu século à procura


do seu pai, de Gonçalo Tavares ............................................... 35

O Ateneu, de Raul Pompéia .................................................... 41

Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade .................. 49

A hora da estrela, de Clarice Lispector ................................ 57

Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon ....... 65

Topless, de Martha Medeiros ........................................ 77

Referências bibliográficas ................................. 85

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Eurico, o presbítero
de Alexandre Herculano

Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano, é um A raça dos visigodos, conquistadora das Espanhas,
romance histórico, bem ao gosto romântico. Isto porque subjugara toda a Península havia mais de um
o conceito de história, tal e qual conhecemos hoje, o século. Nenhuma das tribos germânicas que,
de uma progressão seja teleológica (com a perspectiva dividindo entre si as províncias do império dos
de um fim da história), seja a evolucionista (a que césares, tinham tentado vestir sua bárbara nudez
considera um contínuo processo de melhoramento com os trajos despedaçados, mas esplêndidos, da
em vários aspectos da vida), seja ainda a dialética civilização romana soubera como os godos ajuntar
(a que revela um processo entre idas e vindas, sem esses fragmentos de púrpura e ouro, para se
que se chegue a um determinado fim sintético). No compor a exemplo de povo civilizado. Leovigildo
caso específico, a visão romântica era a que buscava expulsara da Espanha quase que os derradeiros
explicar as origens de algo para compreender o soldados dos imperadores gregos, reprimira
momento presente e projetar a vida futura. Neste a audácia dos francos, que em suas correrias
sentido, Alexandre Herculano (1810-1877) situa o assolavam as províncias visigóticas d’além dos
enredo de seu romance no século VIII, quando houve Pireneus, acabara com a espécie de monarquia
a invasão muçulmana à Península Ibérica, chamada que os suevos tinham instituído na Galécia e
pelo autor toda ela de Espanha (ou Hispânia), afinal expirara em Toletum depois de ter estabelecido
Portugal ainda não existia. leis políticas e civis e a paz e ordem públicas nos
seus vastos domínios, que se estendiam de mar
Para poder se entender esse momento é preciso
a mar e, ainda, transpondo as montanhas da
retornar ainda mais no tempo e dizer que os romanos,
Vascônia, abrangiam grande porção da antiga
no seu intento expansionista, chegaram à Península no
Gália narbonense. (2014, p. 21)
século II a.C., subjugando os lusos ao seu domínio. Os
romanos não apenas conquistavam um território como Leovigildo (572-586), no caso, é uma referência
também impunham sua cultura, seu modo de vida, sua a um dos reis godos, governantes da região de Toledo,
língua (o latim). Permaneceram dominando a região que conseguiu impor-se como rei no século VI.
até o século V, quando o Império Romano do Ocidente No século VIII, porém, mais precisamente no ano
começou a ruir, ante as invasões dos chamados povos de 711 d. C., houve a invasão muçulmana. Em maior
bárbaros (os povos do norte da Europa, os suevos, os número, e com um exército mais bem preparado para a
vândalos e os godos), que conquistaram boa parte dos guerra, os árabes conquistaram palmo a palmo toda a
territórios dominados pelos romanos. península, deixando aos godos apenas a região norte,
Esse povos, porém, tinham outra mentalidade. O isto é, parte da Galícia e das Astúrias, conforme se pode
objetivo maior era o de conquistar, sem necessariamente observar no mapa abaixo, que mostra a dominação
impor sua cultura ao povo conquistado. Por isso mesmo, muçulmana na região.
a cultura romana permaneceu bastante influente na
região, fosse a língua latina, fosse a religião cristã.
Durante os cerca de duzentos anos que esses povos
ficaram na região foram se alternando no domínio,
até que os godos, especialmente os visigodos, se
estabeleceram no poder. Desse modo, foram aos poucos
criando o que viria a ser a aristocracia da Espanha,
a nobreza, que, ao lado da Igreja cristã, sobretudo a
católica se constituiu na liderança de todos os povos
que habitavam a Península.
Os godos, a princípio eram arianos, isto é,
pertencentes a uma seita que pregava a separação
entre a figura de Jesus e de Deus. Para os arianos, não
formariam, com o Espírito Santo, uma trindade. Jesus http://raffaelbarbosa.blogspot.com.br/2009/07/sobre-presenca-arabe-
seria uma pessoa comum, embora o predileto de Deus, na-iberia-medieval.html

mas não seria deus. Aos poucos, porém, aderiram É exatamente desse processo de conquista que
ao culto romano e se converteram ao catolicismo, ao trata Eurico, o presbítero. É verdade que o autor situa
menos parte dos godos. a ação no ano 748. Seu objetivo, mais que a precisão
histórica, é revelar esse momento que se tornou, mais
No romance, o narrador faz essa contextualização,
tarde, crucial para a formação dos estados modernos
ainda que sempre com alguma liberdade poética,
de Portugal e da Espanha.
alguma liberdade de criação:

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Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
Outro dado importante a relatar é que os árabes religiosa diferente, o que era proibido pelas leis
também não procuraram impor totalmente sua cultura visigodas. No caso, o casamento entre os godos arianos
aos povos conquistados. Eram mais tolerantes em e os cristãos católicos era proibido. Hemengarda
relação a isso. Queriam mesmo era a conquista dos prefere a obediência ao pai a ter de enfrentar tudo por
territórios e a dominação política. Graças a isso, a amor. Por isso, Eurico se afasta de todos e se ordena
cultura romana continuou bastante presente e base das padre, sendo elevado a pároco do presbitério da Carteia
relações sociais do ibéricos. Não por acaso, a região no sul da Espanha, no estreito de Gibraltar, parte do
manteve-se firme na fé cristã e o latim, em contato com mar mediterrâneo que separa os continentes africano
outros idiomas, foi aos poucos se modificando até se e europeu, e que acabou sendo porta de entrada para a
transformar no galego-português (língua das cantigas, invasão muçulmana.
dos primeiros textos em língua local) e depois no Uma destas revoluções morais que as grandes
português e no espanhol (galego, castelhano, catalão, crises produzem no espírito humano se operou
conforme a região). então no moço Eurico. Educado na crença viva
Alexandre Herculano era também historiador, daqueles tempos; naturalmente religioso porque
tendo escrito alguns livros sobre a história de Portugal. poeta, foi procurar abrigo e consolações aos pés
Como romancista, interessou-se por momentos d’Aquele cujos braços estão sempre abertos para
simbólicos da formação de Portugal, e seguiu um receber o desgraçado que neles vai buscar o
determinado estilo legado por romancistas como derradeiro refúgio. Ao cabo das grandezas cortesãs
Victor Hugo e Walter Scott. Por isso mesmo, este o pobre gardingo encontrara a morte do espírito, o
romance sobre qual estamos tratando, apresenta, além desengano do mundo. A cabo da estreita senda da
da narração do enredo, notas de rodapé, como meio cruz acharia ele, porventura, a vida e o repouso
de explicar alguma decisão narrativa, explicar algum íntimos? Era este problema, no qual se resumia
termo histórico. No prefácio, faz considerações sobre todo o seu futuro, que tentava resolver o pastor
o momento histórico de que trata. Nesse prefácio, do pobre presbitério da velha cidade do Calpe.
ele próprio ficou em dúvida sobre como classificar o (2014, p. 27-28)
gênero literário escolhido e também revela de modo Em tempo, gardingo seria um antigo nobre dos
mais explícito seu intento que é o de determinar o visigodos. Eurico ali permaneceria até a morte caso
início da formação portucalense. não houvesse sido conclamado pelo Duque Teodomiro,
A Espanha romano-germânica transformou-se governador do condado de Córdoba, uma das
na Espanha rigorosamente moderna no terrível primeiras regiões a serem conquistadas pelos árabes.
caminho da conquista árabe. A obra literária A princípio, Eurico, por meio de cartas trocadas com o
(novela ou poema – verso ou prosa – que importa?) Duque, afirma não se importar com mais nada, a não
relativa a essa transição deve combinar as duas ser o cuidado com seus fiéis. Sabe, porém, que o fim
fórmulas – indicar as duas extremidades a que é próximo, sabe que a opressão tolherá a liberdade.
se prende; fazer sentir que o descendente de A bem da verdade, por seu presbitério ser no sul da
Teodorico ou de Leovigildo será o ascendente do Espanha, próximo do estreito de Gibraltar, já tinha visto
Cid ou do Lidador, que entre o homem e coisa, a chegada dos árabes e antevisto o que se passaria.
começa a converter-se em altivo e irrequieto Contam-se coisas incríveis desses povos que
burguês. (2014, p. 17) assolam a África, chamados os árabes, e que, em
Essa Espanha romano-germânica são exatamente nome de uma crença nova, pretendem apagar na
os godos, romanizados e cristianizados e que, unida, terra os vestígios da cruz. Quem sabe se aos árabes
em prol de um ideal comum, a expulsão dos invasores, foi confiado o castigo desta nação corrupta?
vai aos poucos se recuperando até a construção dos Já as nossas praias foram visitadas por eles, e para
estados modernos. os repelir cumpriu que desembainhasse a espada
É bem verdade que o exército árabe acabou o ilustre Teodomiro, o último guerreiro, talvez, que
sendo formado não apenas pelos próprios árabes ou mereça o nome de neto dos godos.
muçulmanos, mas também se constituiu de traidores, Terra em que nasci, se o teu dia de morrer é
fossem os próprios cristãos de outras igrejas ou seitas chegado, eu morrerei contigo. Na procela que
(denominados de moçárabes), fossem os berberes. No se alevanta de África deixarei submergir o meu
caso dos cristãos, isso de fato aconteceu. No romance, débil esquife, sem que a esses gemidos que ouvi
essa traição é representada por Juliano, conde de se vão ajuntar os meus. Que me importa a vida ou
Septum, e Opas, bispo de Hispalis. Ou seja, ao invés a morte, se o padecer é eterno? (2014, p. 56)
de lutarem unidos pela Espanha e pelo cristianismo,
Essa fuga de Eurico para um local ermo, bem
deixaram-se levar por vantagens que obteriam com a
como a ideia mesmo de se ordenar padre é uma
subserviência aos novos conquistadores.
solução tipicamente romântica, de busca da expiação
O romance tem como foco também o frustrado da dor em contato com a natureza ou mesmo em
relacionamento amoroso entre Eurico e Hemengarda. aproximação com as dores de Cristo. Ou por outra, o
Esta era filha de Fávila e irmã de Pelágio, que irá herói romântico percebe o mundo corrompido, que lhe
desempenhar grande papel no romance. Embora veda a felicidade, no caso casar-se com Hemengarda,
se amassem, os dois jovens são impedidos de se aí tem de isolar-se e buscar a expiação de sua dor em
relacionarem, pois cada um pertencia a uma crença meio àqueles que sofrem por outros motivos.

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Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
De sua parte, Teodomiro reúne todo o exército A verdade, porém, é que nem o Cavaleiro Negro,
que consegue. Porém, sabe que teria pouca chance nem outro combatente poderia vencer em definitivo
de resistir. Vai até Crissus pedir apoio ao bispo Opas, os invasores, isto porque muitos godos se aliaram aos
mas, depois de certo tempo, percebe que isso não seria árabes. Dessa feita, os que permaneciam fieis ao reino
possível. A verdade é que Opas tenta dissuadi-lo a lutar foram, pouco a pouco, perdendo espaço e batalhas
com Tárique, uma vez que tinha se unido, juntamente sucessivas até que sucedeu o esperado: a morte do
com Juliano, ao invasor. último rei godo, a morte de Roderico (ou Rodrigo).
Poucos dias haviam passado depois que o Roderico, porém, estava aí! mas retalhado de
duque de Córduba recebera a última carta do golpes; mas sem vida! Já não seria debaixo de
infeliz Eurico. A frente das suas tiufadias ele se seus pés que o trono da Espanha se desfaria aos
encaminhara para Híspalís, seguindo as margens golpes do machado dos árabes. Um cetro sem
do Bétis. Ao chegar à antiga Rômula, o bispo Opas dono em Toletum e mais um cadáver junto às
recebeu-o com demonstrações de alegria tais, que margens do Críssus, eis o que restava do último
as suspeitas de Teodomiro, suscitadas, malgrado rei dos godos! Com a sua morte fenecera ao redor
seu, pelas revelações do presbítero, quase se dele a esperança, e com a esperança dera em terra
desvaneceram. Na linguagem do sacerdote o esforço dos ânimos mais robustos. (2014, p. 92)
parecia reverberar-se indignação profunda contra Apesar dos esforços de alguns combatentes e
o conde de Septum e contra os demais godos que do próprio Cavaleiro Negro o fim estava próximo.
tentavam unidos com os bárbaros, assolar a terra Com efeito, a narrativa de Herculano leva o leitor a
natal. (2014, p. 71) experimentar o desalento do período que marca o fim
de um reino, mas, ao mesmo tempo, a preparação do
Na primeira batalha, fica clara a traição de
que viria a ser os reinos modernos tanto de Portugal
Juliano; e ele e Teodomiro têm um encontro nada
quanto da Espanha, quando os últimos, sob a liderança
amistoso, como se poderia esperar:
de Pelágio, entre outros de família nobre, conseguiram
Os dois cavaleiros godos acometeram-se com estabelecer-se nas Astúrias, no norte da Espanha. E daí,
toda a fúria de rancor entranhável: as espadas, durante os séculos seguintes (até o XII), ir expulsando
encontrando-se no ar, faiscaram como o ferro os árabes da Península.
abrasado na incude: mas a de Teodomiro fora Mesmo Teodomiro teve de render-se ao invasor.
vibrada por braço mais robusto, e, posto que Não que tenha se aliado aos invasores, mas, como
o golpe descesse amortecido, ainda entrou meio de salvar o pouco que lhe restara, fez um pacto
profundamente no escudo que o seu adversário de não mais agressão, restando a Pelágio o comando
levava erguido sobre a cabeça. Entretanto Juliano, do último foco da resistência. Antes disso houve um
revolvendo ligeiro a espada, rompeu a couraça do Importante acontecimento para o desenrolar do enredo.
duque de Córduba e feriu-o levemente no lado. Inspirado em fato histórico é o suicídio das freiras do
(2014, p. 84) mosteiro da Virgem Dolorosa, localizada na região da
Da batalha particular entre ambos, Teodomiro a Galícia, norte da Lusitânia, onde hoje fica Santiago
princípio se sai melhor, mas não demora muito para que de Compostela. Esse suicídio se deu como meio de as
os aliados de Juliano interfiram no combate e avancem freiras protegerem sua honra ante a iminente invasão
sobre o comandante godo. É aí que surge um salvador, dos árabes ao mosteiro. Dispersos, alguns cavaleiros,
um cavaleiro todo vestido de negro. Após as últimas que levavam consigo Hemengarda, até o norte,
cartas trocadas com o conde de Córduba, Eurico já pararam no mosteiro para descansarem. Outros tantos
nobres também viram no mosteiro um local para se
tinha traçado seu destino. Sabia que estava morto
protegerem do ataque dos inimigos. Porém, o intento
para o mundo, quis apenas buscar a morte efetiva do
de um e de outro foi malogrado.
corpo, por isso traveste-se de um Cavaleiro com vestes
negras, despertando em batalha as mais diversas Naquela noite muitos nobres senhores de terras
suspeitas de quem seria ou do que de fato seria. Se tinham chegado ao mosteiro, vindos da banda de
homem, se fantasma, se anjo ou se demônio. O fato é Légio. Um numeroso exército de árabes aparecera
que consegue se destacar nas diversas batalhas. Nesta subitamente na véspera junto aos muros da
primeira, salva o amigo e desperta a imaginação de cidade, que logo fora acometida pelos pagãos. Era
todos. o que sabiam. Fugitivos desde o aparecimento dos
inimigos, ao anoitecer haviam enxergado para
Os godos, espantados, perguntavam uns aos aquela parte um clarão grande e duradouro. Se
outros quem seria aquele temeroso guerreiro; mas eram as fogueiras dos arraiais árabes, se o incêndio
entre eles ninguém havia que pudesse dizê-lo. de Légio, não o podiam resolver: só, sim, que seria
Se combatesse pelos muçulmanos, crê-lo-iam o impossível resistir por largo tempo cidade tão mal
demônio da assolação; mas, pelejando pela cruz, defendida a tamanha cópia de infiéis, que não
dir-se-ia que era o arcanjo das batalhas mandado tardariam a derramar-se para o lado do mosteiro,
por Deus para salvar Teodomiro e, com ele, os prosseguindo nas suas devastadoras conquistas
esquadrões da Bética. (2014, p. 86) pela Galécia e pela Tarraconense. (2014, p. 104)
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Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
E, com efeito, após um pequeno período dado Depois de subirem a encosta, o cavaleiro negro
pelos árabes para que todos se entregassem, iniciaram e os que o seguiam viram alongar-se diante
a invasão. A monja, porém, para evitar que as freiras deles uma chapada plana, em cujo topo a serra
pudessem servir de escravas sexuais aos árabes, se se alteava de novo, com os seus mil acidentes de
entregam ao sacrifício. cordilheiras cortadas, de algares profundos, de
gargantas selvosas, ao lado das quais os picos
Em nota de rodapé, Herculano faz uma explicação agudos se atiravam para o ar ou pendiam sobre
para o episódio. Tal explicação, como de resto outras os abismos e torrentes. A natureza, mais rude
tantas, serve como meio de conferir veracidade ao naquelas paragens, tinha um aspecto soturno,
relato, como meio de tornar a narrativa, ainda que vista assim, ao perto e à luz da lua: era como um
idealizada, próxima da realidade. oceano tempestuoso, onde todas as gradações da
Diz o autor: morte-cor se confundiam e misturavam, desde
a brancura desbotada e pálida do rochedo até
O fato narrado neste capítulo é histórico. O lugar a pretidão fechada dos pinheiros retintos nas
da cena e a época é que são inventados. Foram sombras da noite. (2014, p. 157)
as monjas de Nossa Senhora do Vale, junto de Com efeito, há diversos momentos no romance
Ecija, que, em tempos posteriores, praticaram este em que se pode observar essa simbologia entre claro e
feito heróico, para se esquivarem à sensualidade escuro, entre esperança de vida e iminência da morte,
brutal dos árabes. Parece que o procedimento representado pela descrição da natureza e também por
das freiras de Ecija foi imitado em muitas outras objetos em geral.
partes. Consulte-se Berganza, Antiguidades de A hora de amanhecer aproximava-se: o crepúsculo
España, t. I, p. 139, e Morales, Cron. Gener., t. III, matutino alumiava frouxamente as margens de
p. 105. (2014, p. 118) rio mal-assombrado, que corria turvo e caudal
Quando chegava o momento do sacrifício de com as torrentes do inverno. Apertado entre ribas
Hemengarda, esta acabou capturada pelos soldados fragosas e escarpadas, sentia-se mugir ao longe
de Abdulaziz, um dos líderes árabes. Ele a toma como com incessante ruído. (2014, p. 161)
sua possível “esposa” e a leva para sua tenda. Ordena Com o apoio dos outros cavaleiros, que seguem
a ela que se curve para que isso possa poupar outros em galope levando Hemengarda, Eurico vai armando
de sua ira, inclusive o irmão de Hemengarda, Pelágio. emboscadas contra os que o perseguiam. Sabe, porém,
Ela, porém, permanece irresoluta ante as ameaças e que só conseguirá a salvação nas terras dominadas
diz preferir a morte a ter de servir a um invasor de sua por Pelágio. E o capítulo que marca a chegada dos
pátria: cavaleiros a Covadonga é intitulado de “A aurora da
redenção”, como complemento a essa simbologia entre
Mas Hermengarda só vira afronta e opróbrio claro e escuro.
nas palavras do amir, e o ódio a este homem, Já nos domínios de Pelágio, Eurico e Hemengarda
cuja natural fereza e orgulho o amor convertera têm uma conversa reveladora sobre a possibilidade do
em brandura e, talvez, em submissão, tornou-se relacionamento entre os dois. A moça, com a morte
ainda maior ao ouvi-lo. (2014, p. 140) do pai e com a demonstração de bravura e lealdade a
Em paralelo a esses acontecimentos, o próprio Pelágio por parte Eurico, acredita que não haveria mais
Pelágio e demais cavaleiros, bem como Eurico estão impedimentos para que ambos pudessem se casar.
próximos de Cavadonga, nas Astúrias, onde poderiam Ela ainda não sabia que Eurico tinha feito votos de
se reorganizar. Porém, Pelágio sabe, por intermédio de castidade por conta do sacerdócio. Diante desse novo
impedimento, não há escapatória para a felicidade
alguns cavaleiros, que sua irmã estava sob os domínios
do casal. E cada um se entrega a seu próprio destino,
de Abdulaziz. Pensa ele próprio em partir para salvar
individualizado, e que, simbolicamente também,
Hemengarda, mas é impedido por Eurico, que estava indica as divisões da Espanha nesse momento, e que
com eles. Oferece-se no lugar para, com poucos ainda dependia de ações pessoais para se fortalecer.
cavaleiros, resgatar a mulher que ele ainda amava. Trata-se de uma conversa carregada de sofrimento
Fingindo-se de serviçal, Eurico consegue entrar mútuo, de tentativa de entender o que se passara e o
no acampamento do inimigo e, mais, aproximar- que se passava. Um momento dramático, tipicamente
se da tenda de Abdulaziz. Com rapidez e agilidade, romântico.
consegue ferir o inimigo e tomar Hemengarda em – Que tens tu com o presbítero de Carteia; com esse
seus braços e iniciar uma fuga por entre as florestas ilustre sacerdote, cujos hinos sacros reboavam
até retornar a Covadonga na região das Astúrias. É ainda há pouco pelos templos da Espanha, e
um dos momentos mais empolgantes e simbólicos do a quem, decerto, o ferro ímpio dos árabes não
livro, uma vez que alterna a esperança da liberdade respeitou? A tua glória é outra e mais bela; a
e a certeza da morte iminente, representado ora pelo glória de seres o vencedor dos vencedores da cruz.
clarão da paisagem, ora pela paisagem mais soturna, A sua era santa e pacífica. Deus chamou-o para
fechada: si, e tu vives para ser meu. Ninguém existe hoje
no mundo que possa embaraçá-lo. Esquece o
passado; esquece-o por amor de mim!
8
Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
O cavaleiro sorriu de novo dolorosamente e disse- Nas mil tradições diversas, quer antigas, quer
lhe: inventadas em tempos mais modernos, sobre
– Que tenho eu com o presbítero de Carteia?!... o modo como se constituiu a monarquia das
Astúrias procurei cingir-me, ao menos no desenho
Hermengarda, lembras-te do seu nome?
geral, ao que passa por mais proximamente
Os lábios da donzela fizeram-se brancos ao ouvir histórico. Todavia, cumpre advertir que Pelágio
esta pergunta: um pensamento monstruoso e viveu, segundo todas as probabilidades em
incrível lhe passara pelo espírito. Com voz afogada tempos um pouco posteriores à conquista árabe,
e quase imperceptível replicou: e que a morte de Opas e de Juliano na batalha
– Era... era o teu, Eurico!... Mas que pode haver de Cangas de Onis, sucesso narrado por alguns
comum entre o guerreiro e o sacerdote? Que escritores, tem sobrado caracteres de fabulosa. A
importa um nome... uma palavra?... que... minha intenção, porém, foi, como já notei, pintar
os homens da época de transição, digamos assim,
O cavaleiro pôs-se em pé e, deixando descair os dos tempos heróicos da história moderna para o
braços e pender o rosto sobre o peito, murmurou: período da cavalaria, brilhante ainda, mas já de
– Há comum, que o guerreiro e presbítero são um dimensões ordinárias. O meu herói do Críssus é
desgraçado só!... Importa, que esse desgraçado é como o último semideus que combate na terra;
neste momento um sacerdote sacrílego. O pastor os foragidos de Covadonga são os primeiros
de Cartéia... – Oh, não acabes! – interrompeu cavaleiros da longa, patriótica e tenaz cruzada
Hermengarda, com indizível aflição. – Era Eurico, da Península contra os sarracenos. Deste modo,
o gardingo! (2014, p. 195) sendo hoje dificultoso separar, em relação àquelas
eras, o histórico do fabuloso, aproveitei de um e de
O romance finaliza com a loucura de Hemengarda, outro o que me pareceu mais apropriado ao meu
com a morte de Eurico, que se atira de modo suicida na fim. (2014, p. 200-201)
batalha final contra os árabes, com a conquista quase
Para finalizar, digamos um pouco mais sobre o
plena de toda a Península e com a semente plantada
autor. Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo nasceu
nos que permaneceram fiéis à fé cristã e à defesa de
em Lisboa no ano de 1810. Sua vida foi marcada por
sua pátria. E foi essa fé que possibilitou o início da
lutas políticas e pela reconstrução literária da história
expulsão dos árabes, levando a formação dos primeiros
de Portugal. Um dos mais importantes romancistas
reinos que, desmembrados, viriam a se constituir
do século XIX, suas obras são de cunho romântico e
em Portugal e na Espanha. Eram os reinos de Leão,
vão desde a poesia ao drama e ao romance. É um dos
Castela, Navarra e Aragão, conforme se pode observar grandes escritores de sua geração, desenvolvendo o
no mapa a seguir. tema romântico por excelência: a incompatibilidade
do indivíduo com o meio social.
Devido ao seu envolvimento na Revolta do 4
de Infantaria, emigrou para Inglaterra em 1831. No
ano seguinte, tendo retornado a Portugal, Herculano
começa a trabalhar na Biblioteca Pública do Porto,
como segundo bibliotecário. Em 1839, é nomeado
diretor das bibliotecas reais das Necessidades e da
Ajuda. No ano de 1853, o romancista funda o Partido
Progressista Histórico. Quatro anos depois, manifesta
sua discordância em relação à Concordata de Roma,
que restringia os direitos do padroado português na
Índia.
Em 1859, adquire a quinta de Vale de Lobos,
Fonte: http://raffaelbarbosa.blogspot.com.br/2009/07/sobre-presenca- perto de Santarém, onde, embora retirado, continua
arabe-na-iberia-medieval.html a receber correspondência e muitas personalidades
ligadas à cultura e ao poder. No ano seguinte, participa
O romance não aborda isso, apenas sugere,
na redação do primeiro Código Civil português.
posto que termina com Pelágio mantendo-se firme na
liderança do castelo nas Astúrias. Assim, apenas a título Em 1866, casa-se com uma senhora por quem
de curiosidade, a reconquista se inicia no século IX e era apaixonado desde a juventude. Morre em 1877,
passa por diversos momentos até a expulsão completa rodeado de enorme prestígio, traduzido numa
dos muçulmanos da península, ou particularmente de manifestação nacional de luto organizada pelo escritor
Portugal, no século XII, quando finalmente é instituído João de Deus.
o reinado portucalense e se inicia a dinastia afonsina, Além de Eurico, o presbítero escreveu:
com o rei D. Afonso Henriques.  A Voz do Profeta (prosa poética) – 1836
A última nota de rodapé do livro é indicativo  Harpa do Crente – 1837
desses acontecimentos futuros:  O Bobo – 1843

9
Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
 Lendas e Narrativas I e II –1839 e 1844 ante os altares para orar ao Senhor. Qual era o
 O Pároco da Aldeia – 1844 melhor dos dois templos? Foi depois que o teu
desabou, que eu me acolhi ao outro para sempre.
 O Monge de Cister – 1848
Por que vens, pois, pedir-me adorações quando
 História da Origem e Estabelecimento da entre mim e ti está a Cruz ensanguentada do
Inquisição em Portugal – 1850 Calvário; quando a mão inexorável do sacerdócio
 História de Portugal I, II, III e IV – 1846 e 1853 soldou a cadeia da minha vida às lájeas frias da
igreja; quando o primeiro passo além do limiar
desta será a perdição eterna? Mas, ai de mim!
Herculano fez parte da primeira fase do
essa imagem que parece sorrir-me nas solidões
Romantismo português, oficialmente iniciado com
do espaço está estampada unicamente na minha
o poema Camões (1825), de Almeida Garrett. Essa
alma e reflete-se no céu do oriente através destes
primeira geração está ligada à ideologia liberal, à visão
olhos perturbados pela febre da loucura, que lhes
burguesa, bem como à ideia de regenerar a pátria, os
queimou as lágrimas.
valores patrióticos. Por isso, o autor passou a escrever
HERCULANO, Alexandre. Eurico, o presbítero. Edição crítica,
romances históricos. dirigida e prefaciada por Vitorino Nemésio. 41ª ed. Lisboa:
Do ponto de vista estético, Herculano, em sua Livraria Bertrand, [s.d.], p. 42-43.
tentativa de resgate histórico, se perde um pouco, O Missionário
posto que seu romance não apresenta a mesma força Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda
dramática que os de outros autores, como Camilo rapariga que lhe ocupara o coração. A sua
Castelo Branco. Em outros termos, a leitura pode não natureza ardente e apaixonada, extremamente
fluir como seria de esperar de um livro com tantos sensual, mal contida até então pela disciplina
componentes épicos, pelas batalhas, pelo suspense do Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a
ou pela história de amor. Claro que há momentos crença na sua predestinação, quisera saciar-
sublimes, como a fuga de Hemengarda das mãos de se do gozo por muito tempo desejado, e sempre
Abdulaziz, ou mesmo o momento de revelação mútua impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de
entre Hemengarda e Eurico. Porém, no geral, trata-se Morais, o devasso fazendeiro do Igarapé-mirim,
de uma leitura pesada e pouco fluente. se o seu cérebro não fosse dominado por instintos
egoísticos, que a privação de prazeres açulava
e que uma educação superficial não soubera
EXERCÍCIOS subjugar. E como os senhores padres do Seminário
haviam pretendido destruir ou, ao menos, regular
1. (Vunesp) e conter a ação determinante da hereditariedade
Eurico, o Presbítero psicofisiológica sobre o cérebro do seminarista?
Os raios derradeiros do sol desapareceram: o Dando-lhe uma grande cultura de espírito, mas
clarão avermelhado da tarde vai quase vencido sob um ponto de vista acanhado e restrito, que
pelo grande vulto da noite, que se alevanta do lhe excitara o instinto da própria conservação, o
lado de Septum. Nesse chão tenebroso do oriente interesse individual, pondo-lhe diante dos olhos,
a tua imagem serena e luminosa surge a meus como supremo bem, a salvação da alma, e como
olhos, ó Hermengarda, semelhante à aparição meio único, o cuidado dessa mesma salvação.
do anjo da esperança nas trevas do condenado. Que acontecera? No momento dado, impotente o
E essa imagem é pura e sorri; orna-lhe a fronte a freio moral para conter a rebelião dos apetites, o
coroa das virgens; sobe-lhe ao rosto a vermelhidão instinto mais forte, o menos nobre, assenhoreara-
do pudor; o amículo alvíssimo da inocência, se daquele temperamento de matuto, disfarçado
flutuando-lhe em volta dos membros, esconde- em padre de S. Sulpício. Em outras circunstâncias,
lhe as formas divinas, fazendo-as, porventura, colocado em meio diverso, talvez que padre
suspeitar menos belas que a realidade. É assim Antônio de Morais viesse a ser um santo, no
que eu te vejo em meus sonhos de noites de sentido puramente católico da palavra, talvez que
atroz saudade: mas, em sonhos ou desenhada no viesse a realizar a aspiração da sua mocidade,
vapor do crepúsculo, tu não és para mim mais deslumbrando o mundo com o fulgor das suas
do que uma imagem celestial; uma recordação virtudes ascéticas e dos seus sacrifícios inauditos.
indecifrável; um consolo e ao mesmo tempo Mas nos sertões do Amazonas, numa sociedade
um martírio. Não eras tu emanação e reflexo do quase rudimentar, sem moral, sem educação...
céu? Por que não ousaste, pois, volver os olhos vivendo no meio da mais completa liberdade de
para o fundo abismo do meu amor? Verias que costumes, sem a coação da opinião pública, sem a
esse amor do poeta é maior que o de nenhum disciplina duma autoridade espiritual fortemente
homem; porque é imenso, como o ideal, que constituída... sem estímulos e sem apoio... devia
ele compreende; eterno, como o seu nome, que cair na regra geral dos seus colegas de sacerdócio,
nunca perece. Hermengarda, Hermengarda, eu sob a influência enervante e corruptora do
amava-te muito! Adorava-te só no santuário do isolamento, e entregara-se ao vício e à depravação,
meu coração, enquanto precisava de ajoelhar perdendo o senso moral e rebaixando-se ao

10
Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
nível dos indivíduos que fora chamado a dirigir. 4. (UEL) Leia o trecho a seguir.
Esquecera o seu caráter sacerdotal, a sua missão e Como um rochedo pendurado sobre as ribanceiras
a reputação do seu nome, para mergulhar-se nas do mar, que, estalando, rola pelos despenhadeiros
ardentes sensualidades dum amor físico, porque e abrindo um abismo se atufa nas águas, assim
a formosa Clarinha não podia oferecer-lhe outros o cavaleiro desconhecido, rompendo por entre os
atrativos além dos seus frescos lábios vermelhos,
godos, precipitou-se para onde mais cerrado em
tentação demoníaca, das suas formas esculturais,
redor de Teodomiro e Muguite fervia o pelejar.
assombro dos sertões de Guaranatuba.
SOUSA, Inglês de. O missionário. São Paulo: Ática, 1987, p. 198. (HERCULANO, A. Eurico, o presbítero. 2.ed. São Paulo:
Martin Claret, 2014. p.85.)
A visão que o amante tem de sua amada constitui
um dos temas eternos da Literatura. Uma leitura No romance Eurico, o presbítero, há um diálogo
comparativa dos dois fragmentos apresentados, com a história da formação territorial da Península
que exploram tal tema, nos revela dois perfis Ibérica.
bastante distintos de mulher. Considerando esta
informação, Nesse sentido, alguns episódios retomam
batalhas reais com o intuito de afirmar o heroísmo
(A) aponte a diferença que há entre Hermengarda português frente aos árabes. Associado a certo
e Clarinha, no que diz respeito ao predomínio “realismo” histórico, no entanto, encontra-se a
dos traços físicos sobre os espirituais, ou vice- figura do herói, representada por Eurico. Como
versa, segundo as visões de seus respectivos
a imagem do herói está construída nesse cenário
amantes;
real de batalhas?





(B) justifique as diferenças com base nos
fundamentos do estilo de época em que se
enquadra cada romance.

2. (FGV - modificada) Assinale a alternativa em


que aparecem duas obras que vtratam do conflito
entre vocação sacerdotal e a busca da realização
amorosa.
(A) O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, e
O mulato, de Aluízio de Azevedo.
(B) Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco,
e Quincas Borba, de Machado de Assis.
(C) Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade,
e São Bernardo, de Graciliano Ramos.
(D) Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
e O seminarista, de Bernardo Guimarães.
(E) Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo, e
Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett.

3. (URCA) Marque a alternativa INCORRETA


acerca de Alexandre Herculano e/ou sua obra:
(A) Viagens na minha Terra é uma obra de
Alexandre Herculano que se classifica entre a
prosa de ficção e as memórias de viagens.
(B) Eurico, o Presbítero é considerado o melhor
romance de Alexandre Herculano.
(C) O Monge de Cister aborda aspectos históricos
e culturais de Portugal.
(D) Sua obra insere­se no contexto do Romantismo
português.
(E) Temas religiosos, históricos e medievais estão
presentes na prosa de Alexandre Herculano.
11
Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
(UEL) Leia o trecho a seguir e responda às Assinale a alternativa correta.
questões 5 e 6. (A) Somente as afirmativas I e II são corretas.
O presbítero Eurico era o pastor da pobre paróquia (B) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
de Carteia. Descendente de uma antiga família (C) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
bárbara, gardingo na corte de Vítiza, depois de (D) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
ter sido tiufado ou milenário do exército visigótico
vivera os ligeiros dias da mocidade no meio dos (E) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.
deleites da opulenta Toletum. Rico, poderoso,
gentil, o amor viera, apesar disso, quebrar a 6. Com base na leitura do romance Eurico,
cadeia brilhante da sua felicidade. Namorado o presbítero e, especificamente, do trecho
de Hermengarda, filha de Favila, Duque de apresentado, é correto afirmar que este é o
Cantábria, e irmã do valoroso e depois tão célebre momento em que o narrador conta
Pelágio, o seu amor fora infeliz. O orgulhoso (A) a saga de Eurico perante sua família e a de
Favila não consentira que o menos nobre Hermengarda, que eram as responsáveis pelo
gardingo pusesse tão alto a mira dos seus desejos. seu sofrimento.
Depois de mil provas de um afeto imenso, de uma (B) o desencanto de Eurico diante de um amor
paixão ardente, o moço guerreiro vira submergir impossível, o que o levaria a dedicar sua vida
todas as suas esperanças. Eurico era uma destas a professar a fé.
almas ricas de sublime poesia a que o mundo deu (C) como Eurico abandona a batina para lutar por
o nome de imaginações desregradas, porque não seu grande amor, a nobre Hermengarda.
é para o mundo entendê-las. Desventurado, o seu
(D) como Eurico se torna um guerreiro contra a
coração de fogo queimou-lhe o viço da existência
Igreja Católica, a quem responsabiliza pelo
ao despertar dos sonhos do amor que o tinham
fim de seu noivado.
embalado. A ingratidão de Hermengarda, que
parecera ceder sem resistência à vontade de seu (E) como Hermengarda abandona Eurico diante
pai, e o orgulho insultuoso do velho prócer deram do altar, apenas porque ele não é de família
nobre como a dela.
em terra com aquele ânimo, que o aspecto da
morte não seria capaz de abater. A melancolia que
o devorava, consumindo-lhe as forças, fê-lo cair gABARITO
em longa e perigosa enfermidade, e, quando a 1.a) 
Hermengarda: há a predominância de traços
espirituais sobre os físicos Clarinha: os atributos
energia de uma constituição vigorosa o arrancou físicos dominam nessa personagem. b) O primeiro
das bordas do túmulo, semelhante ao anjo rebelde, romântico, idealizado; o segundo naturalista,
os toques belos e puros do seu gesto formoso e mais preso a uma visão materialista e cienfiticista.
varonil transpareciam-lhe a custo através do véu 2.D 3.A 4.O romance Eurico, o presbítero pertence
de muda tristeza que lhe entenebrecia a fronte. O à primeira fase do Romantismo português e
cedro pendia fulminado pelo fogo do céu. apresenta feição histórica e nacionalista, na
(HERCULANO, A. Eurico, o presbítero. 2.ed. São Paulo:
medida em que retoma a formação territorial da
Martin Claret, 2014. p.26-27.) Península Ibérica, atribuindo aos portugueses uma
imagem de heroísmo. O autor se utiliza de uma
série de eventos verídicos, como, por exemplo, a
invasão ao convento pelos árabes, além de várias
5. Sobre o romance Eurico, o presbítero, considere batalhas enfrentadas pelos povos ibéricos. A
as afirmativas a seguir. organização social da época, com suas “leis, usos
I. A
 história das personagens se passa em meio e costumes”, é base da representação histórica
do romance, que prima pela valorização dos
às lutas pela defesa do território da Península heróis nacionais. Nesse sentido, Eurico encarna
Ibérica diante da tentativa de dominação o herói que representa todo o povo português e
pelos muçulmanos. sua coragem diante dos “invasores bárbaros”,
capazes de atos desumanos, como estuprar freiras
II. 
A guerra santa, que é pano de fundo do indefesas. O jovem presbítero não luta apenas pela
romance, diz respeito ao contexto da reforma manutenção do território com os povos ibéricos,
protestante, em que católicos e reformistas se mas também para difundir a religião católica,
enfrentam em batalhas sangrentas. representada como a única capaz de levar ao
reino dos céus. Nesse sentido, a sua religiosidade
III. Hermengarda escapa do clichê romântico e é surge como um dado essencial para a formação de
a única personagem da obra cujo final é feliz, seu caráter de herói sobre-humano, um indivíduo
visto que consegue se casar com um soldado com força e coragem acima do homem comum
e dar à luz três filhos. e que vence batalhas que já haviam sido dadas
como perdidas por um exército inteiro. Eurico, o
IV. 
Romance da primeira geração romântica, presbítero traz, portanto, o diálogo com a História,
coloca a história de amor em segundo plano, ao mesmo tempo em que apresenta um indivíduo
na medida em que evidencia a questão legendário, que mistura características humanas
à fantasia do super-herói.
histórica.
5.B 6.B
12
O pagador de promessas
de Dias Gomes

Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em 1922 missa e para onde foram levados os primeiros escravos
e faleceu em 1999. Autor de diversas peças de teatro com suas crenças e deuses. Como é de conhecimento
e novelas de sucesso, entre as quais Bandeira 2, 1971; comum, o sincretismo religioso entre o cristianismo,
O Bem Amado, 1973; Saramandaia, 1976; Roque a Igreja Católica, e o candomblé se deu à época da
Santeiro, 1985. Sua marca, tanto como teatrólogo como colonização, e mesmo no Brasil Império por conta da
autor de novelas, é a observação da realidade brasileira, proibição de os negros manifestarem sua fé de origem.
revelada em meio a muito fantasia, formando assim Assim, os orixás dos candomblés foram relacionados
um realismo-fantástico. Outra característica de sua aos santos católicos. No caso, toda a peça gira em
produção é a presença constante de cultura popular, torno de Santa Bárbara, conhecida por ser uma santa
com todos os seus componentes, como crendices, guerreira e ter como armas o relâmpago e o raio. O
danças e comidas típicas de determinadas regiões, em orixá equivalente é Oyá ou Iansã, também senhora dos
especial o Nordeste. raios e das tempestades. Outra atribuição de Yansã é
ser deusa dos cemitérios, dos mortos. A propriedade
Em O pagador de promessas, escrito em 1960,
de Santa Bárbara e Yansã fica mais clara no final da
há isso tudo. A história se passa em Salvador, na
peça. Mas não adiantemo-lo. Analisemos antes outros
parte mais velha da cidade, onde permanecem traços
aspectos presentes em O pagador de promessas.
colonialistas. O objetivo é marcar o cenário pelo
contraste, elemento que dá sustentação à peça. O drama da peça se dá exatamente por conta do
sincretismo. Zé-do-Burro tinha essa alcunha por ter
No caso, há um Brasil antigo, religioso e rural,
como principal companheiro um equus asinus, ou seja,
personificado em Zé-do-Burro, em contraste com
um burro. O espectador fica sabendo qual promessa
outro, moderno e dinâmico. Na peça, o drama é
fizera e por que apenas no segundo quadro do primeiro
estabelecido pelo fosso que separa as duas realidades,
ato. O burro se chama Nicolau, que, pela tradição
os dois Brasis, por assim dizer. Não se compreendem
cristã, significa o que ajuda os outros. O nome também
as razões da existência do outro. Confrontados, erige-
pode ser uma referência a são Nicolau, que acabou
se um labirinto, cuja saída só pode ser trágica.
dando origem ao Papai Noel. Dessa feita, Nicolau é
A peça, que ganhou diversos prêmios, entre eles para o personagem Zé-do-burro praticamente um ser
o Prêmio Nacional de Teatro, de 1960, bem como a humano, a quem trata como a um igual. Em um dia de
Palma de Ouro, no Festival de Cannes de 1962 em sua grande tempestade, Nicolau se protegia sob uma árvore
versão cinematográfica, é dividida em três atos. No quando um raio a atingiu e derrubou-a na cabeça do
primeiro, acompanhamos a chegada de Zé-do-burro e burro. Devido à clara crendice, Zé fez uma promessa
sua esposa Rosa à praça da Igreja de Santa Bárbara à santa Bárbara que se o burro se curasse, levaria uma
em Salvador. Ainda é madrugada, por isto encontram cruz tão pesada quanto a de Cristo até a igreja mais
a igreja com as portas fechadas. Sua promessa era perto dedicada à santa. E assim o faz. No entanto,
trazer do sítio onde morava, há sete léguas, ou cerca fizera promessa em um terreiro de Candomblé. Em
de 40 km, uma cruz de madeira e depositá-la no altar. sua simplicidade, Zé-do-burro não cometera qualquer
Conforme a promessa feita, Zé deveria cumpri-la no falha grave. Fizera a promessa e vinha agora pagá-la,
dia em que se homenageia a santa guerreira, no caso porém impedido pelo padre local, chamado Pe. Olavo.
dia 04/12. Zé – Padre, é preciso explicar que Nicolau não é
O espectador percebe já o primeiro contraste: um burro comum... o senhor não conhece Nicolau,
enquanto Zé é um homem contemplativo, desligado das por isso... é um burro com alma de gente...
coisas terrenas, cuja fé é mais importante que qualquer Padre – Pois nem que tenha alma de anjo, nesta
coisa, Rosa tem outros desejos. Quer uma vida melhor igreja você não entrará com essa cruz! (p. 38)
e sua fé não é tão forte quanto a do marido. Segue-o
mais por obrigação que por convicção. Além disso, Em favor dessa deliberação, padre Olavo busca
procura esconder uma sensualidade latente. Neste argumentos teológicos para impedir a entrada do
primeiro ato, conhecemos outros dois personagens: pagador de promessa no interior da igreja. Entre
Bonitão e Marli. Um cafetão e sua prostituta preferida, os quais, parte do princípio de que a caminhada do
ao menos a que lhe dá mais dinheiro. O papel de sitiante teria uma intenção oculta: a de imitar Cristo
bonitão é o de, sutilmente, plantar a discórdia entre e de a ele igualar-se, não do modo pelo qual todo fiel
Zé e Rosa. Como era de madrugada, Bonitão propôs ao deveria fazer, e sim para ombrear o ato salvifíco de
casal que fosse dormir num hotel à espera da abertura Cristo.
da igreja. Zé não quis deixar a cruz, como medo de a Padre – Isso prova que você está sendo submetido
roubarem, mas permite que Rosa vá ao hotel dormir a uma tentação ainda maior.
um pouco. Bonitão deixa Marli ir embora e leva Rosa Zé – Qual, padre?
Padre – A de igualar-se ao Filho de Deus.
ao hotel, onde a seduz.
Zé – Não, padre.
Há na peça quase naturalmente o sincretismo Padre – Por que então repete a Divina Paixão?
religioso. Quase naturalmente porque a história se Para salvar a humanidade? Não, para salvar um
passa em Salvador; na Bahia onde foi rezada a primeira burro! (p. 37)
13
O pagador de promessas, de Dias Gomes
Assim, a promessa do Zé-do-Burro é interpretada presença quando o repórter pensa ser o Zé-do-Burro
pelo padre como uma afronta a Deus e à autoridade um político se autopromovendo. Assim, a sociedade
da Igreja. Não consegue compreender em sua como um todo tem seu representante na peça. E essa é
simplicidade a promessa do sitiante, que por sua a ideia do teatro de Dias Gomes, marcado por explícita
vez também não compreende o porquê o impendem preocupação político-social.
de entrar na igreja e cumprir a promessa. Com isso,
O terceiro e último ato da peça inicia-se com uma
Zé-do-Burro tem um caminho trilhado em direção
roda de capoeira. Era já o final da tarde do dia 04 de
à sua martirização, a despeito de seu real propósito.
dezembro. Zé-do-Burro estava na praça havia mais
Zé é um mártir sem querer ser. Apoiado por uma
de 12 horas. A roda de capoeira é marcada por canto
fé incondicional, que beira ao fanatismo, trilha o
e dança; na peça, a cantoria ganha uma dimensão
caminho da sua crença em meio às forças e instituições
extra, o coro da cantoria faz mais uma vez o espectador
da civilização contemporânea. Como D. Quixote, não
evocar aspectos do teatro clássico, a presença de
consegue se fazer entender, nem é capaz de entender as
um coro, ou seja, grupo de pessoas representando a
ideologias. Assim, a peça se constitui numa espécie de
consciência social; o coro era responsável pela análise
tragédia moderna com um herói sem a consciência do
moral, pelo comentário que fazia o espectador da
papel que acaba exercendo; sua simplicidade é densa
tragédia compreender ao que estava assistindo. O
e responsável pela tragédia que Rosa antevê. Embora
coro em O pagador não comenta, antes brinca e serve
sem o mesmo significado que nas tragédias gregas, em
para compor o cenário, a roda da capoeira, no entanto,
que o destino é força catalizadora dos personagens,
implicitante, anuncia o que virá, demonstra que não
em que os deuses cumprem papel determinante
há mais como o caminho escolhido pelo sitiante levá-lo
para o cumprimento desse destino, em O pagador de
a cumprir seu intento. Diz o mestre do coro:
promessa o destino é fruto das ações humanas, mesmo
assim Zé-do-Burro é um Édipo que não consegue e Vou pidi a Santa Bárbara.
não quer fugir a seu destino, traçado por ele mesmo, Pra ela me ajudá
mas, segundo sua leitura, com a anuência de Santa Coro – Santa Bárbara que relampuê/ Santa
Bárbara/Yansã, que salvara seu burro da morte. Bárbara que relampuá. (p. 78)
Zé – Sarou em dois tempos. Milagre mesmo. No O refrão é repetido em ritmo acelerado vários
outro dia já estava de orelha em pé, relinchando. vezes, acompanhado pela dança, pelo jogo da capoeira.
E uma semana depois todo o mundo me apontava Embora no texto escrito isso não seja explícito, a
na rua: - “Lá vai Zé-do-Burro com o burro de novo encenação leva o espectador a perceber que a senhora
atrás!” E eu nem dava confiança. E Nicolau muito dos raios e relâmpagos logo se manifestará e o choque
menos. Só eu e ele sabíamos do milagre. Eu, ele e terá um fim não feliz. Não se deve entender, porém,
Santa Bárbara. (p. 36) que a peça encerre uma defesa do candomblé em
Como não pode se liberar da promessa até que detrimento do catolicismo, do cristianismo. O objetivo
esteja cumprida, seu destino é, neste sentido, traçado maior é mostrar como o Brasil é um país de contraste e
por forças externas a ele, qualquer coisa que faça o que o mito propalado da cordialidade, da democracia
levará a cumprir seu destino, que só pode ser trágico. cultural e racial, em que todos teriam seu espaço, em
Zé – O senhor me liberta... mas não foi ao senhor que todos poderiam manifestar-se livremente, revela-
que eu fiz a promessa, foi a Santa Bárbara. E se uma falácia. Essa democracia existe até o ponto em
quem me garante que como castigo, quando eu que não altera a ordem estabelecida.
voltar pra minha roça não vou encontrar meu A intransigência do padre em negar ao sitiante o
burro morto. (p. 72) cumprimento de sua promessa é a mesma que tem a
Uma outra característica do teatro clássico autoridade policial, que vê na atitude do personagem
presente na peça de maneira modificada é a um desrespeito à autoridade e uma ameaça à ordem.
personificação de arquétipos, de tipos representativos Por outro lado, embora consiga a simpatia de Minha
da sociedade. Isso pode ser verificado na Farsa tia, dona de um tabuleiro, do poeta malandro Dedé e
Atelana ou nas peças de Gil Vicente, em que não do Galego, dono de um bar em frente à igreja, nenhum
há aprofundamento psicológico dos personagens, é capaz de compreender por inteiro o porquê da
mas apenas conhecemo-los pelas ações e por nomes insistência de Zé-do-Burro em cumprir sua promessa.
genéricos: o padre, o fidalgo etc. No caso do teatro Mesmo assim, acabam apoiando-o porque vêem nele
de Dias Gomes, cada personagem tem seu nome, ou a possibilidade de ganhar algo, sobretudo o Galego,
ao menos uma alcunha, como o gigolô Bonitão, mas que as vendas aumentarem significativamente nesse
particularmente em O pagador de promessas, as dia a ponto de oferecer ao sitiante e à sua esposa Rosa
individualidades são arquetípicas, lembrando, pois, comida de graça. Mesmo Rosa não compreende o
o teatro clássico. Há o padre, representando a Igreja, porquê do radicalismo do marido, e vê na situação a
há o guarda, representando a força pública; há o possibilidade de ter uma vida melhor. Não é por acaso
repórter, obviamente fazendo o papel da imprensa; há que, a despeito de algum pudor e remorso, entrega-se
as pessoas comuns, que representam o povo; embora ao prazer com Bonitão. Ele promete a ela dar-lhe uma
não apareça nenhum político, fica sugerida sua vida melhor, mais digna:

14
O pagador de promessas, de Dias Gomes
Bonitão – Se você viesse pra cidade, eu podia lhe espanto de Zé-do-Burro e Rosa, eles colocam a
garantir um bonito futuro... barraca no meio da praça e o colchão dentro da
Rosa – Fazendo o quê? barraca.
Bonitão – Isso depois se via. Repórter – Fomos aos nossos clientes e eles se
Rosa – eu não sei fazer nada. dispuseram prontamente a colaborar conosco.
Bonitão – Mulheres como você não precisam (p. 86)
saber coisa alguma, a não ser o que a natureza
Isto ocorre porque o repórter a todo instante
ensinou... (p. 24)
faz uma interpretação à luz do que ele conhecia, do
No entanto, percebe a real intenção de Bonitão. contexto com o qual estava acostumado. Num país
Ainda assim Rosa libera-se sexualmente e tem seu que, impulsionado pelo Plano de Metas do governo
drama particular, que se resume em voltar a ser fiel de Juscelino Kubitschek (1955-1961), cujo objetivo era
ao marido e manter-se presa a uma realidade arcaica, levar modernidade a todas as regiões brasileiras, soava
asfixiante para ela ou conquistar a liberdade definitiva estranho a alguns a permanência de uma crendice tão
e realizar-se por inteiro como mulher, como participante piegas, no caso acreditar que uma santa ou uma orixá
de um mundo em transformação. pudesse intervir para salvar um burro. Assim, para o
Depois, quando o repórter aparece para fazer repórter tudo não passaria de um golpe publicitário,
uma matéria sobre o que estava ocorrendo, Rosa fica com objetivo claramente político, visando às próximas
feliz ao ser fotografada e sonha com a possibilidade eleições.
de ser conhecida por meio de um jornal. Seria talvez o Repórter – Hum... bem me pareceu que por trás
caminho para escapar às forças do destino. dessa história do burro, da promessa, havia
Rosa – (Ela vislumbrou nas palavras do repórter qualquer coisa... uma intenção oculta e um
uma possibilidade confusa de libertação, ouviu- objetivo político. A polícia, naturalmente, percebeu
as num entusiasmo crescente) Oxente! Não seja também. (p. 87)
estúpido, homem! O moço está querendo a gente. Em resumo, o padre interpreta o ato como uma
(p. 53) afronta à autoridade eclesiástica e à História Sagrada,
Ela diz isso ao ouvir que o repórter estava o repórter o vê como um golpe político, a polícia como
organizando entrevistas, apresentações para que Zé um ato de desordem, o povo em geral trata Zé-do-Burro
contasse sua história a mais gente. Seria assim meio de como um louco, ainda que possa ser visto também
libertar-se por completo de um estilo de vida arcaico, como herói, Rosa o considera seu atraso, mas a quem
que impedia uma experiência mais ampla da própria deve respeito como esposa, a despeito de tê-lo traído
vida. com Bonitão; no fim, o próprio Zé-do-Burro chega a
pensar que teria sido traído pela santa de sua devoção.
Mulher do sitiante, Rosa cumpre também o papel
Apenas não abandona o cumprimento da promessa por
de antagonista, posto que o trai e não se deixa absorver
um fanatismo no compromisso assumido.
inteiramente pela crença do marido. Porém, antevendo
a tragédia para qual se encaminha Zé-do-Burro, tenta Outro aspecto a se considerar na peça diz respeito
dissuadi-lo da promessa, sobretudo no final da peça. O à reforma agrária. Se nos últimos vinte anos passou
máximo que obtêm dele é a certeza de que irá embora a ser plano efetivo de governo, com assentamento
ao final do dia dedicado à santa Bárbara. de milhares de famílias, no final da década de
1950 e início dos anos 60, eram antes um projeto,
Zé – Esta noite a gente vai embora. praticamente interrompido com o governo militar
Rosa – E por que não agora? em 1964. Não que a peça aprofunde o debate ou ao
Zé – Vamos deixar passar o dia de santa Bárbara. menos faça uma discussão rasa sobre o assunto, há tão
Rosa – De noite, talvez seja tarde... somente uma alusão ao tema, quando, de passagem,
Zé – Tarde pra quê? Rosa diz a Bonitão no primeiro ato que dividir parte de
Rosa – Pra voltar! (p. 85) sua propriedade, que era pouca, entre os agricultores
O contraste no qual se assenta a peça também sem terra como complemento da promessa. Bonitão
passa pela presença da sociedade de consumo, interpreta o ato de maneira debochada, o repórter,
capitalista, cujo processo de formação se ampliava na porém, ao saber disso, escreve na reportagem que Zé-
década de 1960, momento da redação e encenação do-Burro era a favor da Reforma Agrária no país.
do texto. Este papel está representado pelo vendeiro, Repórter – Repartir o sítio... diga-me, o senhor é a
o Galego, mas especialmente pelo repórter, que, para favor da reforma agrária?
ajudar a promover o jornal pelo evento do pagador de
Zé – (não entende) Reforma agrária? Que é isso?
promessa, consegue patrocínio de empresas, as quais
cedem algum produto que poderia servir de uso pelo Repórter – É o que senhor acaba de fazer em seu
sitiante. sítio. Redistribuição das terras entre aqueles que
não as possuem. (p. 51)
Neste instante, entram os capoeiristas conduzindo
primeiro uma tenda de pano já armada e em Temos na figura do repórter, cujo trabalho
seguida um colchão de molas. Na tenda, há um principal é com a linguagem, apontamentos sobre o
letreiro: Oferta da Casa da Lona. No colchão há processo criativo, sobre a ficcionalização da realidade.
outro: Gentileza da Loja Sonho Azul. Com enorme Ora, ao repórter, isto é, à imprensa interessa mais a

15
O pagador de promessas, de Dias Gomes
construção verossímil de fatos, por meio do texto Por fim, vale a pena chamar a atenção para o
jornalístico que propriamente a verdade factual. tipo de rubrica que é usado no texto de Dias Gomes.
Claro, Dias Gomes escreve num período em que a Além das tradicionais indicações feitas para o ator e o
preocupação ética da imprensa parecia menor em diretor da peça, o autor do texto faz algumas rubricas
comparação com o momento atual. De qualquer modo, que quase se assemelham, em função, a um narrador
é visível o poder da mídia em geral de criar factóides, (e isso não existe em peças de teatro, a não ser quando
de criar heróis efêmeros, seja com objetivo político, se trata de personagem-narrador). Elas são altamente
descritivas e dão detalhes extremamente minuciosos
meramente comercial ou ambos. O próprio Dias
sobre os personagens, o que delimita muito bem
Gomes exploraria mais tarde o processo de criação de as possibilidades de improvisação dos atores, pois
falsos heróis ou santificações de pessoas comuns na indicam mais do que as ações daqueles, descrevendo
novela Roque Santeiro, escrita em 1975, mas que, por características psicológicas que poderiam estar
conta da censura militar, só pôde ir ao ar em entre 1985 presentes nas falas.
e 1986.
Esse processo é largamente explorado nas
diversas referências bíblicas. A mais forte está na
associação feita pelo padre e pelos populares entre
Zé-do-Burro e Jesus Cristo. O primeiro de modo
negativo, os segundos como um santo popular,
incompreendido pelo discurso oficial eclesiástico e
laico. No entanto, essa relação é estabelecida antes pelo
próprio narrador da peça, quando, na apresentação do
“Primeiro Quadro”, diz tratar-se de “um homem ainda
moço, de 30 anos presumíveis, magro, de estatura
média. (...) Tem barba de dois ou três dias e traja-se
decentemente, embora sua roupa seja mal talhada
e esteja amarrotada e suja de poeira.” (p. 13) Uma
descrição que faz o leitor/espectador lembrar-se de
Jesus de Nazaré, sobretudo porque, como se sabe,
iniciou sua pregação pública aos 30 anos. Ao final,
após a morte de Zé-do-Burro, os populares pegam-
no e o colocam sobre a cruz; em procissão, levam-no
finalmente para dentro da igreja, ante a impassibilidade
das autoridades religiosa e policial.
Dias Gomes, de certa forma, recupera, com
esta peça, a origem do teatro pela temática religiosa.
Obviamente que aqui o tratamento é crítico e
irônico. Mesmo assim, erige-se um personagem com
características religiosas para além da sua consciência.
Toda a história tem uma sequência linear, com
progressão contínua, sem flash back ou tergiversações,
que costumam romper a linearidade. Isto também
colabora para a tipificação dos personagens, ou seja,
são indivíduos que representam uma coletividade.
Já nos referimos a alguns personagens neste sentido,
lembremos apenas de mais um, no caso a beata,
que carrega em si todos os estereótipos desse tipo
de personagem. Temente a Deus, à autoridade do
padre, suas roupas sóbrias indicam claramente tal
característica, é incapaz de pensar por si mesma,
tudo o que diz ou suas ações denotam a subserviência
temerária a que está sujeita.
Beata – É o cúmulo! Ainda está aí!
Minha tia – Não vai abrir a igreja hoje, Iaiá? Dia
de Santa Bárbara...
Beata – Não enquanto esse indivíduo não for
embora.
Minha tia – Que foi que ele fez?
Beata – Quer entrar com essa cruz na igreja. (...)
promessa de candomblé. (...) Herege! (p. 44-45)

16
O pagador de promessas, de Dias Gomes
(C) bate na prostituta, até matá-la, pela traição em
EXERCÍCIOS roubar-lhe o amante, Bonitão.
(D) cansada do descaso de Zé-do-Burro, quebra
1. (CEFET-PR) Leia atentamente as afirmações a cruz, impossibilitando-o de cumprir sua
abaixo sobre O Pagador de Promessas e assinale a
promessa.
verdadeira:
(E) delata o marido para o Secreta a fim de vingar-
(A) Zé-do-Burro e sua esposa, Rosa, mantêm um
relacionamento amoroso conflituoso devido a se da traição de Zé-do- Burro com Iansan.
ele ser um revolucionário do campo e ela, uma
beata devota. 4. (UTFPR) Leia atentamente os excertos de rubricas
(B) O Secreta, o Delegado e o Guarda demonstram retirados da peça O Pagador de Promessas, de
a nova face da polícia, após a ditadura de Dias Gomes.
Vargas, preocupada com os direitos humanos. I. “É uma bela mulher, embora seus traços sejam
(C) Minha Tia e Mestre Coca são representantes um tanto grosseiros, tal como suas maneiras.
do povo, católicos ardorosos, que se revoltam (...) É agressiva em seu “sexy”, revelando,
com as heresias cometidas por Marli e Zé-do- logo à primeira vista, uma insatisfação sexual
Burro. e uma ânsia recalcada de romper com o
(D) Bonitão e Marli são o exemplo de um ambiente em que se sente sufocar. Veste-se
relacionamento moderno, em que homem e como uma provinciana que vem à cidade, mas
mulher usufruem dos mesmos direitos. também como uma mulher que não deseja
(E) O Monsenhor e Padre Olavo representam ocultar os encantos que possui”.
a rigidez de princípios teóricos da doutrina II. “Ela tem, na realidade, vinte e oito anos, mas
católica diante de situações práticas inusitadas. aparenta mais dez. Pinta-se com exagero, mas
mesmo assim não consegue esconder a tez
2. (UTFPR) Em O Pagador de Promessas, de Dias amarelo-esverdeada. Possui alguns traços de
Gomes, “ABC da Mulata Esmeralda” de Dedé uma beleza doentia, uma beleza triste e suicida.
Cospe-Rima que conta a história dessa mulher, Usa um vestido muito curto e decotado, já um
“desde o nascimento, no Beco das Inocências, até
tanto gasto e fora de moda, mas ainda de bom
a morte, por trinta facadas, na Rua da Perdição”,
efeito visual. Seus gestos e atitudes refletem o
é de certa forma um prenúncio da própria história
narrada na peça, pois: conflito da mulher que quer libertar-se de uma
tirania que, no entanto, é necessária ao seu
Encontre a faculdade certa pra você equilíbrio psíquico...”.
I. a mulher de Zé-do-Burro é morta com trinta
Em relação às assertivas I e II é correto afirmar
facadas quando se aproxima da roda de
que:
capoeiristas.
II. 
a trajetória dos personagens Zé-do-Burro e (A) em I e II tem-se a descrição da mesma mulher,
Rosa segue o mesmo caminho, da inocência à Rosa, amante de Bonitão, o malandro cafetão.
perdição. (B) em I tem-se a descrição de Rosa, mulher
III. Zé-do-Burro, trinta anos presumíveis, acaba do personagem principal de O pagador de
morto na “rua da perdição” de sua mulher, promessas.
que o traiu. (C) em II tem-se a descrição de Rosa, amante de
Está(ão) correta(s) somente: Bonitão, o malandro cafetão.
(A) I. (D) em II tem-se a descrição de Marli, mulher
(B) II. do personagem principal de O pagador de
(C) III. promessas.
(D) II e III. (E) em I e II tem-se a descrição da mesma mulher,
Marli, mulher do personagem principal,
(E) I e II.
Zé-do-Burro.
5. (UTFPR) Na obra O Pagador de Promessas,
3. (UTFPR) Em O Pagador de Promessas, de Dias
Gomes, o personagem central, Zé-do-Burro, é circulam pela praça, onde se passa a história,
casado com uma mulher que, segundo a rubrica diversos personagens que retratam diferentes
da peça, “parece pouco ter de comum com ele. questões. Estabelecendo uma correlação entre
(...) Ao contrário do marido, tem “sangue quente”. personagens e temas, teremos:
“Demonstração do “sangue quente” da esposa se I. Zé-do-Burro e a fé; Padre Olavo e a
dá quando ela: intransigência
(A) sem resistir, seduzida por Bonitão, entrega-se II. Bonitão e o amor; Rosa e a traição
ao sensual cafetão traindo o marido.
III. Galego e a ambição; Mestre Coca e o
(B) enfrenta a vendedora de Beiju devido aos sentimento de coletividade
ciúmes que sente do relacionamento desta
com o marido. IV. Repórter e a vaidade; Marli e a pureza

17
O pagador de promessas, de Dias Gomes
Estão corretas somente as assertivas: 9. (UEL) Sobre o intertexto bíblico presente em
(A) I e II. O Pagador de Promessas, considere as frases a
seguir.
(B) III e IV.
I.  “Mas eu conheço seus adeptos! Mesmo
(C) II e III.
quando se disfarçam sob a pele do cordeiro!”
(D) II e IV.
II. “Por que então repete a Divina Paixão? Para
(E) I e III. salvar a humanidade?”
III. “Uma epopeia. Uma nova Ilíada, onde Troia
6. (UEL) Sobre o motivo da jornada da personagem é a Lua e o cavalo de Troia é o cavalo de São
Zé-do-Burro até Salvador, no livro O Pagador de Jorge!”
Promessas, de Dias Gomes, assinale a alternativa IV. “É até bom demais. Nunca fez mal a ninguém,
correta. nem mesmo a um passarinho.”
(A) Pagamento de promessa pela conquista de Assinale a alternativa que apresenta,
suas terras. corretamente, frases com intertexto bíblico.
(B) Pagamento de promessa pela recuperação de (A) Somente as frases I e II.
Rosa. (B) Somente as frases I e IV.
(C) Pagamento de promessa pelo restabelecimento (C) Somente as frases III e IV.
do burro.
(D) Somente as frases I, II e III.
(D) Pretexto para fazer campanha a favor da
reforma agrária. (E) Somente as frases II, III e IV.
(E) Pretexto para protestar contra a ditadura.

7. (UEL) Sobre as personagens de O Pagador de


Promessas, assinale a alternativa correta.
(A) Galego e Bonitão são artistas populares
nordestinos.
(B) Minha Tia e os capoeiristas são católicos
praticantes do candomblé.
(C) O repórter e o fotógrafo são policiais disfarçados
que manipulam Zé-do-Burro.
(D) O padre e a beata ilustram a intolerância
religiosa.
(E) Rosa e Marli representam o movimento de
liberação feminina dos anos 1990.

8. (UEL) Com base em O Pagador de Promessas,


assinale a alternativa que apresenta, corretamente,
o parecer crítico que analisa a obra.
(A) “A mola propulsora da peça – o autor deixou
bem claro – é a espinafração.”
(B) “Nunca um escritor nacional se preocupou
tanto em investigar sem lentes embelezadoras
a realidade, mostrando-a ao público na crueza
de matéria bruta.”
(C) “Sério exercício de introspecção, o texto se
passa em uma viagem de volta ao interior, ao
encontro do pai distante.”
(D) “O espectador que desejar a diversão
desabrida da farsa encontrará na peça um
motivo inesgotável de comicidade.”
(E) “Essa intolerância erige-se, na peça, em
símbolo da tirania de qualquer sistema
gABARITO
organizado contra o indivíduo desprotegido e
só.” 1.E 2.D 3.A 4.B 5.E 6.C 7.D 8.E 9.A

18
Toda poesia
de Paulo Leminski

Paulo Leminski nasceu em 1944 em Curitiba, O planejado está na própria ideia de retomar toda
mas morou um bom tempo em São Paulo, onde atuou uma tradição de poetas. Há um eu que fala, e um eu
como publicitário, compositor, professor, além de ter que dialoga com a tradição, seja a imediata, seja a que
se aproximado da poesia concreta paulista. Faleceu busca a universalidade. Em rigor, Leminski é um poeta
prematuramente em 1989, deixando uma vasta obra inovador, mas que não despreza o que se fez antes
poética, que foi publicada postumamente. dele, até porque reconhece toda uma tradição que vem
Leminski estreou na poesia publicando livros dos gregos até os modernos, passando pelos clássicos
à maneira marginal, isto é, à margem das grandes e que ajudaram, de um modo ou de outro, a construir
editoras. Participou da chamada geração do a poética. Sabe também na literatura, ou em qualquer
mimeógrafo, porque muitas vezes era usando essa processo criativo, a despeito da ideia de posse ou de
técnica meio caseira que se publicavam livros. O propriedade intelectual, não existe algo exclusivo,
primeiro foi Quarenta clics em Curitiba, de 1976, a que tudo pertence a todos.
se seguiram Polonaises, de 1980, Não fosse isso e era
nada tão comum
menos/ não fosse tanto e era quase, também de 1980.
que não possa chamá-lo
Logo em seguida, publicou Caprichos e relaxos, em
meu
1983, pela Brasiliense, uma das principais editoras do
país, entrando assim, de vez, no mercado regular das nada tão meu
edições no Brasil. O segundo e o terceiro livro foram que não possa dizê-lo
integrados a essa mesma edição da Brasiliense. nosso
[...]
Depois, vieram Distraídos Venceremos, também
(2013, p. 41)
pela Brasiliense em 1987; pela mesma editora La vie
en close, já publicação póstuma de 1991, Winterverno, Essa comunhão tem um objetivo maior, que é o
pela Fundação Cultural de Curitiba, em 1994 e da universalidade da poesia. Embora haja autores que
O ex-estranho, pela Iluminuras, em 1996. tenham uma preocupação com as questões nacionais,
Todos esses livros, além de alguns outros poemas, como Luis de Camões ou Fernando Pessoa, a poesia de
sob o título de Poemas esparsos, integram o volume ora ambos ultrapassa o próprio conceito de nacionalismo
editado pela Companhia das Letras em 2013 e que já português, em busca de uma integração mais ampla,
chegou a treze reimpressões, atestando, desse modo, a posto que são obras que também se comunicam com a
importância da poesia de Leminski no cenário literário tradição helênica, por exemplo. Nesse sentido, a poesia
nacional e mesmo internacional. de Leminski, que tem com berço uma Curitiba, capital
Escrever uma resenha sobre um livro de poesia de um estado, mas provinciana em termos nacionais,
é tarefa um tanto complexa, pois cada texto teria quer a comunicação mais ampla, quer estabelecer
uma explicação específica. Que dirá então de uma pontos de contato com outros autores, e toda uma
coletânea com toda ou a maior parte da produção tradição inventiva, consoante até com o projeto da
poética de um autor? Não há como, pois, darmos conta Poesia Concreta, de que fez parte quando morou em
dessa tarefa. Queremos, de qualquer modo, destacar São Paulo.
as principais linhas da poesia de Leminski, para que um dia
assim o leitor possa ter um fio condutor, como o fio a gente ia ser Homero
de Ariadne, para poder entrar no labirinto e sair dele a obra nada menos que uma ilíada
(caso queira) de uma poesia muito rica de significados
depois
e capaz de dialogar com a tradição e com o mundo
a barra pesando
contemporâneo, tão fluído e com pouco tempo para a
própria poesia. dava pra ser aí um Rimbaud
[...]
Há, pois, dois aspectos que temos de considerar
na poesia de Leminski: sua preocupação com o fazer por fim
poético, o que inclui um cuidado na escolha dos acabamos o pequeno poeta de província
termos, o modo de construir o texto, e, ao mesmo que sempre fomos
tempo, um certo relaxamento com esses aspectos, de [...]
modo a deixar fluir o texto naturalmente. (2013, p. 71)
Trata-se de uma figura bifronte, que toma o texto
Há diversos outros poemas nessa linha, que
poético ao modo romântico, do gênio criador, inspirado,
buscam esse diálogo com a tradição, como “aviso
e também ao modo racionalista, pelo qual procura
trabalhar o texto, extraindo dele todas as possibilidades aos náufragos”, em que há de novo uma retomada
estéticas. Em outros termos, sua poesia fica entre o do poema de Homero, atualizando o princípio da
capricho, o cuidado e o relaxo, o descuido, o deixar busca, da conquista, da descoberta ou “limites ao léu”
fluir, bem no estilo entre o erudito e o marginal. Esse (p. 246), em que toma definições sobre linguagem e
jogo criativo está presente nos títulos de alguns de seus criação de diversos artistas, e conclui com uma frase
livros: Caprichos & relaxos, Distraídos venceremos e O sua mesmo: “a liberdade da minha linguagem”. Isto
ex-estranho, por exemplo. é, trata-se de um liberdade criativa, ao mesmo tempo

19
Toda poesia, de Paulo Leminski
que uma relação constante que estabelece com outros Leminski nem sempre obedece ao rigor do
criadores. Como exemplo, em “Papajoyceatwork”, Haikai, embora a ideia (geral, particular, conclusão)
temos um poema escrito à maneira do autor irlandês, seja respeitada. Em outros termos, nem sempre segue
James Joyce, com termos criados ou recriados, em a quantidade de sílabas poéticas, nem mesmo a
português e em inglês quantidade de versos, que deveriam ser sempre três,
Mustmakesomething! Reverythming! (2013, p. 157) há alguns com quatro versos. Claro, alguém mais
rigoroso poderia dizer: então não se trata de Haicai.
Ou outros poemas, em que revela suas Mas vivemos em tempos de renovação, reescrita,
preferências, suas leituras e sua filiação literária, como redescobertas e reinvenções. Pois bem, há um Haicai
“Rosa rilke raimundo correia” (p. 213). Outro é “m, de particular importância, inclusive intitulado:
de memória”, em que exalta o poder de determinados Mallarmé Bashô, que faz clara referência ao de Bashô
autores que continuam a ser lidos, relidos, lembrados, já especificado.
posto que no jogo entre ficção e realidade, entre vida
literária e vida real, o que importa é o constructo que Um salto de sapo
fazemos de tudo isso. O que é real vira ficção e vice- jamais abolirá
versa. Eis o papel fundador da literatura, de erigir o velho poço
mundos e reconstruir a realidade. (2013, p. 306)

Os livros sabem de cor Trata-se de uma dupla referência, primeiro ao


milhares de poemas. famoso Haicai, de Bashô, depois ao título de um livro
[...] do poeta simbolista francês Stéphane Mallarmé (1842-
Ulisses voltou de Troia, 1898), Un coup de dès jamais n’abolira le hasard (um
Assim como Dante disse. jogo de dados jamais abolirá o acaso).
[...] Observe-se como Leminski estabelece uma
Byron era verdadeiro. relação entre os dois poetas para dizer que as coisas
Fernando, pessoa, era falso. existem para além do que possamos querer, ou
Os livros sabem de tudo.
possamos controlar. Mesmo que se queira controlar
Já sabem desse dilema.
o resultado do jogo ou se queira controlar a natureza,
Só não sabem que, no fundo,
os acontecimentos estão repletos de acaso, de
Ler não passa de uma lenda.
possibilidades.
(2013, p. 226)
O Haicai acaba servindo como mote para uma
Seguindo dessa busca pela universalidade
reflexão sobre questões comuns, situações exemplares,
poética e comunicação com uma tradição, um tipo de
que podem servir como expressão do universal.
poesia predominante na obra de Leminski é o Haicai,
forma poética criada e desenvolvida por Bashô (1644- viver é superficial
1694), samurai, que após a morte de seu mestre, o mais fundo
transformou-se em Rônin, um samurai sem mestre. Há está sempre na superfície
uma série de Haicais em La vie en close, no caso da (2013, p. 246)
edição de que estamos nos servindo entre as páginas São diversos haicais, uma de suas formas poéticas
306 e 322. Há outros tantos em Ideolágrimas. Além dos
preferidas, e trata de diferentes temas. Considerando
espalhados nos demais livros do autor e reunidos neste
um dos pontos deste texto, podemos nos referir a mais
Toda Poesia.
um, em que se refere a um dos princípios criativos que
Um Haicai é um poema de 17 sílabas, distribuídos norteiam sua produção poética, o diálogo.
em três versos (na tradução nem sempre se obedece lá vamos nós
a essa quantidade de sílabas), sendo o primeiro e o lendo sempre
terceiro com cinco sílabas, e o do meio com sete. Este a mesma voz
tipo de poema é baseado em certo silogismo. Um dos
(2013, p. 363)
Haicais mais famosos de Bashô é o seguinte:
A velha lagoa No livro La vie en close, por referência a uma
o sapo salta música interpretada pela cantora francesa Edith Piaf,
o som da água La vie en rose, Leminski revela a vida ao saber do
acaso, mas também do controle, como um coup de dès,
  O primeiro verso expressa uma visão geral, o
o jogo de dados de Mallarmé já referido acima, cujo
cosmos
A velha lagoa resultado pode-se tentar, mas é de difícil previsão. Na
música, Piaf canta a felicidade da descoberta do amor,
 No segundo verso, exprime-se o particular, um do encontro feliz, canta a perfeita comunhão dos que
determinado evento
se amam. Leminski, ao contrário, fala a respeito da
O sapo salta
necessidade de se submeter a alguns caminhos, por
 No terceiro, tem-se o resultado, a conclusão isso a vida fechada, sem escolhas (la vie en close).
lógica entre o geral e o específico Em rigor, até fazemos escolhas, mas essas escolhas já
O som da água estariam definidas previamente.
20
Toda poesia, de Paulo Leminski
[...] Ou mais adiante:
c’est la vie des choses Ambígua volta
qui n’ont pas em torno da ambígua ida,
un autre choix1 quantas ambiguidades
se pode cometer na vida?
(2013, p. 243)
[...]
Tal possibilidade de escolha está relacionado, (2013, p. 194)
mais uma vez, a esse princípio criativo que revela o
Nessa linha de reflexão sobre a linguagem
jogo entre o acaso e o planejado. Ora, se as coisas não poética, uma das questões levantadas por Leminski
podem escolher, elas devem ser guiadas pelo acaso. e por tantos outros escritores é o que significa ser
Isso inclui a poesia, o objeto por excelência do poeta, poeta. Qual o papel da poesia no mundo moderno?
que, como ser, quer fazer escolhas, quer planejar, Ora, talvez a condição do poeta e da própria poesia
direcionar. Nesse sentido, é preciso às vezes deixar- seja a de exercer um papel de estranheza, de desleixo,
se levar, é preciso mesmo ir contra si mesmo, conta a mas ao mesmo tempo é conhecida, é algo comum,
lógica criativa, como propõe em “motim de mim”: posto que seu material de trabalho é a palavra, é a
xx anos de xis, língua, sem a qual a comunicação se realizaria com
xx anos de xerox, a maior dificuldade. Além de que a linguagem cria e
xx anos de xadrez, recria o mundo. Explicando melhor, o mundo moderno
não busquei o sucesso, (entenda-se desde o século XIX), é marcado pela
não busquei o fracasso, busca frenética por dinheiro, por mercados, é o mundo
busquei o acaso, baseado na economia, nas relações comerciais. Assim,
esse deus que eu desfaço. quanto dinheiro dá a poesia? Que tipo de produto é
a poesia? O que fazer com ela e como negociá-la?
(2013, p. 257) Ora, essas perguntas não têm respostas certas. Em
Entenda-se xerox como a cópia ou diálogo com a rigor, claro, poesia é transformada em livro e livros são
tradição, e xadrez como a lógica, o planejado. Nessa vendidos. Porém, há dois pontos: excluindo um autor
linha, pode-se ler “ímpar ou ímpar”, “quem sai aos ou outro, poesia vende muito pouco, não compensa
seus” ou “andar e pensar um pouco”. Todos publicados financeiramente às editoras; segundo, para além
e em La vie en close. dessa questão econômica, poesia é um trabalho com
a palavra e vai muito além de aspectos econômicos.
Leminski é um desses poetas, como os escritores Então, volta-se à pergunta: qual o papel do poeta e da
que lhe serviram de base (Rimbaud, Mallarmé, Joyce, poesia no mundo moderno? Observe como o poeta, em
Rosa, entre outros) que procura fazer uma revolução uma autorreferência, buscar compreender esse papel
com a palavra, com o jogo poético, ao constantemente e como ele pode ser visto pela sociedade, aquele que
buscar novas formas de expressão. É bem verdade, chama a atenção e atrapalha a vida dos que seguem o
porém, que, uma vez estabelecida sua linguagem, padrão:
procurou manter-se naquela linha, qual seja: a do
o pauloleminski
culto ao Haicai, à da poesia concreta, a da poesia é um cachorro louco
fragmentada, a jogo entre o coloquialismo e a poesia que deve ser morto
erudita. Em todos esses casos, procurou tratar sobre a pau e pedra
questões comezinhas da vidas, isto é, sobre o cotidiano, a fogo a pique
mas também procurou explicações para a existência, senão é bem capaz
explicações para as contradições da vida e para muitas o filhodaputa
vezes o sentimento de mal estar que acontece a de fazer chover
qualquer um. A poesia seria, pois, um caminho entre o em nosso piquenique.
sentido da vida, se é que existe, e a própria vida. Esse (2013, p. 102)
papel mediador da arte e da linguagem não é nenhuma
Matar significa aqui eliminar a poesia, eliminar
novidade. Remonta especialmente aos simbolistas,
os que olham para o mundo de modo diverso do
como Cruz e Souza, mas também a diversos outros padrão. Eis o papel do poeta e mesmo da poesia, o que
artistas. De qualquer modo, Leminski procurou dar quase nunca é vista de modo aceitável.
sua visão sobre esse ponto. E o fez de modo inventivo
e provocador. Nesse sentido, a poesia seria algo marginal, algo
não central na vida das pessoas. Apesar disso, cabe ao
Mandei a palavra rimar, poeta buscar sentido para sua atividade, mesmo em
ela não me obedeceu. um mundo onde mais vale a prosa (entenda-se, a vida
[...] prática, pragmática, que a poesia):
Mandei a frase sonhar, Não há verso,
e ela se foi num labirinto. tudo é prosa,
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso. passos de luz
Dar ordens a um exército, num espelho,
para conquistar um império extinto. verso, ilusão
(2013, p. 190) de ótica,
verde,
o sinal vermelho.
[...]
1 “É a vida das coisas que não têm outra escolha” (2013, p. 189)

21
Toda poesia, de Paulo Leminski
Há diversos outros poemas nessa linha de intertextuais para se chegar a um determinando
confronto entre a resistência da poesia e o ter de buscar sentido. Outro aspecto presente no poema acima
a segurança econômica, ou entre a vida poética e a é o cinema, assim como as artes em geral, é capaz
vida pragmática, entre o sonho e o mundo real. Bem de criar outro mundo, outra realidade, bem melhor
significativo nesse sentido é o que segue: que a própria realidade, uma vez que no cinema os
quando eu tiver setenta anos problemas são resolvidos, os desencontros têm um
então vai acabar esta adolescência final feliz e tudo se resolve até que o filme termine; ao
vou largar da vida louca passo que no mundo real, na vida, muitos problemas
e terminar minha livre-docência ficam pendentes e não se tem certeza se até o fim (a
[...] morte) tudo estará resolvido.
vou fazer o que minha deseja Entre os diversos poemas cartaz, destaquemos um:
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
[...]
(2013, p. 55)
E outro, talvez até mais claro sobre o que
significa ser poeta ao tratar a escrita em âmbito da
marginalidade, do fora do centro ou do ex-cêntrico.
Ora, marginal é usado aqui no sentido de não ocupar
papel central na sociedade, não no sentido de um
bandido, ou fora da lei.
Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.
[...]
(2013, p. 213)
(2013, p. 146)
Talvez por isso (e também como meio de
sobrevivência da pessoa Paulo Leminski), o autor tenha A mensagem não é muito diferente daquilo que
ido trabalhar como publicitário, o que o fez estabelecer está presente em sua poesia como um todo. Ora, mais
relações mais próximas entre a linguagem literária e a uma vez vem a pergunta: o que significa escrever?
publicitária. Embora os objetivos sejam outros, o fato Deixar-se levar pela inspiração, pelo desleixo, ou antes
é que essa aproximação fez de Leminski um poeta ao significa um trabalho com a palavra, ser caprichoso?
mesmo tempo de formação erudita e prática mais pop A frase “ao que tudo indica” sugere uma certeza, um
(não por acaso, é um poeta que está entre os primeiros cuidado, um caminho certo (tudo indica...). Porém,
em termos de vendagem de livros...) essa certeza é embaralhada, é desfeita pelas letras,
dispostas de maneira aleatória, uma sobre as outras.
Essa relação se dá também pela uso de técnicas
da poesia concretista, que explora muito a imagem, a A certeza assim se desfaz, e é preciso esperar “como
escrita outdoor por assim dizer (poemas que parecem tudo fica”.
cartazes) e, claro, pela referência ao mundo pop, ao Em outros momentos, diz escrever pela simples
mundo da música (Leminski era compositor e teve atividade de escrever, como se fosse uma atividade
vários parceiros, entre os quais Caetano Veloso) e do natural, mesmo sabendo que não é.
cinema. Escrevo. E pronto.
podem ficar com a realidade Escrevo porque preciso,
esse baixo astral Preciso porque estou tonbto.
em que tudo entra pelo cano [...]
eu quero viver de verdade Eu escrevo apenas.
eu fico com o cinema americano Tem que ter por quê?
(2013, p. 218)
(2013, p. 200)
Há um tom de ironia aí, mas que também serve
para dizer, entre as artes, o cinema é aquela mais bem Em Quarenta clics de Curitiba, uma constante é
preparada para atender às necessidades do mercado, o tempo, a passagem do tempo, em relação ao com a
é o que dá mais dinheiro, é a que cria mundos nos literatura, com a arte da escrita, posto que esta, como
quais qualquer pessoa, mesmo a sem maior preparo, um clic, isto é, um foto, eterniza um momento. De
pode entrar. Ora, ler poesia pressupõe primeiro ser qualquer modo, mesmo eternizado, o tempo é uma
alfabetizado, depois significa ter alguma sensibilidade, constante. De todos, o poema mais caraterístico dessa
por fim saber estabelecer relações contextuais e visão é o seguinte:

22
Toda poesia, de Paulo Leminski
O tempo fica Foi infeliz.
cada vez Era possessivo como um pronome.
mais lento E ela era bitransitiva.
e eu Tentou ir para os EUA.
lendo Não deu.
lendo Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
lendo A interjeição do bigode declinava partículas
vou acabar expletivas,
virando lenda conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
(21013, p. 23) Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
Neste caso, há um trocadilho entre lento, lendo (2013, p. 158)
e lenda. O tempo é, em rigor, inexorável, isto é "o Observe que o poema faz uma mescla de gêneros
tempo passa", mas pode ficar lento pela leitura, pode textuais (o próprio poema, o gênero descritivo, o
se eternizar pela escrita, pela lenda, pela literatura. narrativo) e observe também como o autor brinca
Leminski também é conhecido por sua grande com a função metalinguística, para caracterizar seu
capacidade de síntese. Dizer muito em poucas palavras. personagem (o tal professor). No caso, esse professor
Isso é próprio também da estética concretista, cujo preso a regras de condutas morais, mas que, após um
fundamento era o de explorar ao máximo o significante, casamento infeliz, uma desilusão amorosa, se perde na
a palavra. Esse caso pode ser exemplificado por vida, e enfrenta uma série de situações impensáveis
diversos poemas do livro, mas destaquemos um em para alguém tão correto quanto ele.
especial. Trata-se de “Rimas de moda”: em latim
1930 1960 1980 “porta” se diz “janua”
Amor homem ama e “janela” se diz “fenestra”
Dor come cama [...]
fome já em inglês
“janela” se diz “window”
Três momentos do século XX que podem significar,
porque por ela entra
em poucas palavras, contextos diferentes, perspectivas
o vento (“wind”) frio do norte
diferentes. Se na primeira metade do século há uma
a menos que a fechemos
pretensa ideia de que o amor está diretamente ligado
como quem abre
ao sofrimento (uma visão romântica); na metade há
o grande dicionário etimológico
uma visão de caráter mais social; por fim, na segunda
dos espaços interiores
metade do século, uma visão de liberação sexual.
(2013, p. 248)
Claro que o segundo grupo também pode indicar uma
conotação sexual, de expressão do desejo, talvez como Neste caso, o poeta busca compreender o sentido
referência à revolução sexual. De qualquer modo, das palavras de acordo com suas raízes. Trata-se de um
o poema expressa, sinteticamente, a perspectivas princípio poético disseminado ao longo do livro, afinal
diferentes sobre um mesmo tema. resgatar uma tradição poética é também estabelecer
os parâmetros de compreensão da própria poesia, é
A preocupação metalinguística, já referida, é
expressar possibilidades de leitura.
uma constante em Leminski, mas também é uma
constante a preocupação com a reflexão em torno da EU
língua e em torno de estudiosos da língua, vista como O mundo desabava em tua volta,
meio de comunicação e como material de trabalho e tu buscavas a alma que se esconde
do poeta. Há, por isso, poemas que refletem sobre no coração da sílaba SIM.
o uso da língua de um ponto de vista pragmático [...]
(comunicativo), linguístico, filológico (a história da RO
língua) e/ou gramatical. Entre os quais, destaquemos Um mundo, o velho mundo, árvore no outono,
três poemas: “Ouverture la vie en close” e “EU RO Hitler entra em Praga, Rússia, revolútzia,
PA”, de La vie en close, “O assassino era o escriba”, de [...]
Caprichos & relaxos. Destaquemos versos de cada um PA
desses poemas, a começar por este último. Roma, Rôman, romântico romã,
Jak, Jákob, Jákobson, filho de Jacó,
Meu professor de análise sintática era o tipo do
preservar as palavras dos homens.
sujeito
Enquanto houver um fonema,
Inexistente.
Eu nunca vou estar só.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
(2013, p. 272)
regular com um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto Por fim, neste poema, tem-se uma alusão a
adverbial, momentos da vida do linguista Roman Jakobson (1896-
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito 1982), responsável por estudos na área de comunicação
assindético de nos torturar com um aposto. e da linguística na linha estruturalista. Foi ele quem
Casou com uma regência. pensou os elementos da comunicação e suas respectivas

23
Toda poesia, de Paulo Leminski
funções, entre as quais a metalinguística, tão comum
na poesia de Leminski. Os estudos do linguista foram EXERCÍCIOS
também responsáveis pela base teórica da Poesia
Concreta, formulada pelo poeta Haroldo de Campos, 1. (PUC-PR) Leia o poema:
de quem Leminski foi seguidor e amigo pessoal. “podem ficar com a realidade
Leminski tem uma variedade grande de poemas, esse baixo astral
mas aqui procuramos detalhar as principais linhas em que tudo entra pelo cano
poéticas de sua produção literária. Com base nesses eu quero viver de verdade
elementos, é possível ler os demais poemas do livro. eu fico com o cinema americano”
Para finalizar, destaquemos um último poema extraído O poeta Paulo Leminski neste poema usa de
de Caprichos & relaxos e que acaba sintetizando as procedimento redundante em sua obra. Assinale
aspirações nem sempre realizadas, o choque entre a a alternativa que identifica esse procedimento:
poesia, isto é, a vida simbólica, de busca de significados, (A) Intertextualidade.
de elevação espiritual, de comunicação sensorial, e a
(B) Ironia.
vida prosaica, representada na última estrofe:
(C) Crítica à sociedade de massa.
Manchete
(D) Fuga à realidade.
CHUTES DE POETA
NÃO LEVAM PERIGO À META (E) Desejo de viver intensamente.
eu queria tanto
ser um poeta maldito 2. (PUC-PR) Identifique as alternativas verdadeiras
a massa sofrendo a respeito do poema transcrito, de autoria de
enquanto eu profundo medito Paulo Leminski:
eu queria tanto
ser um poeta social RIMAS DA MODA
rosto queimado 1930 1960 1980
pelo hálito das multidões amor homem ama
em vez dor come cama
olha eu aqui
pondo sal fome
nesta sopa rala I. O título do poema, metalinguístico, indica a
que mal vai dar para dois importância das semelhanças sonoras na sua
(2013, p. 90)
composição.
Sempre importante lembrar, na esteira de II. O poema traça um breve histórico da sucessão
Fernando Pessoa, que “o poeta é um fingidor”, isto de temas privilegiados pela poesia brasileira
é, o poeta é um construtor de mitos, de mundos. A ao longo do século 20.
expressão do eu não é necessariamente a expressão III. Segundo o texto, em 1960 a poesia voltou-se
da subjetividade pessoal. Trata-se de um eu particular, mais para a problemática social do que para
simbólico, expressão, pois, de um sujeito universal em os relacionamentos amorosos.
busca da compreensão mais ampla do estar no mundo, IV. A distribuição espacial das palavras e a presença
tendo a linguagem poética como mediadora entre de números exemplificam a aproximação de
nossa percepção e a realidade objetiva. Paulo Leminski à Geração de 45.
Escrevia no espaço. Estão corretas apenas:
Hoje, grafo no tempo, (A) II, III e IV
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento. (B) I e II
Soo na dúvida que separa (C) II e III
o silêncio de quem grita (D) II e IV
do escândalo que cala, (E) I, II e III
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo. 3. (ESPM) Leia:
Eis a voz, eis o deus, eis a fala, noite sem sono
eis que a luz se acendeu na casa o cachorro late
e não cabe mais na sala. um sonho sem dono
(Paulo Leminski)
A forma poética acima é um haicai, de origem
japonesa, que valoriza a concisão e a objetividade.
Das características abaixo, também do haicai,
assinale a que não foi utilizada pelo autor:

24
Toda poesia, de Paulo Leminski
(A) não revelar um “eu” poético subjetivo; 5. Sobre o texto de Paulo Leminski todas as
(B) apresentar três versos metrificados; alternativas estão corretas, EXCETO
(A) a terminologia sintática e morfológica,
(C) referenciar a solidão e uma estação do ano;
que em um primeiro momento é motivo de
(D) oferecer um momento de reflexão para causar estranhamento, concede o efeito de humor ao
uma descoberta; poema.
(E) conter poucas palavras, com predominância (B) o eu lírico demonstra por meio da composição
de substantivos. de texto pessoal e confessional o seu
desconhecimento gramatical.
(C) nos primeiros sete versos o eu-lírico apresenta
4. Leia o poema a seguir: seu professor, que, por meio de suas ações e
o bicho alfabeto funções, é caracterizado como um torturador.
tem vinte e três patas (D) entre os versos 8 e 16 o leitor toma consciência
ou quase de todos os fracassos que compuseram a vida
por onde ele passa do professor.
nascem palavras (E) o texto é estruturado em forma de narrativa
e frases policial, mas em função de sua organização
com frases gráfica, métrica e rítmica é considerado um
se fazem asas poema.
palavras
o vento leve 6. Pelos versos, percebe-se que a poesia de Leminski
o bicho alfabeto
(A) mantém relação com a geometrização das
passa formas e volumes cubista.
fica o que não se escreve.
(B) tem como base os dilemas financeiros do ser
(LEMINSKI, Paulo. Melhores poemas de Paulo Leminski.
São Paulo: Global Editora, 2001.)
humano.
(C) valoriza a concisão e é transgressora.
O tema do texto de Paulo Leminski é o processo
e o sentido da escrita associados aos atos de (D) é composta por uma observação rigorosa do
semear e de soltar a imaginação. Transcreva do mundo material.
texto os versos que comprovam cada uma dessas (E) é composta por personagens positivamente
associações. idealizados.
semear imaginação =
por onde ele passa 7. (Unisinos) Dos trechos abaixo, qual aquele que
nascem palavras melhor representa a literatura contemporânea
(atual):
soltar a imaginação =
(A) Alma minha gentil, que te partiste
o vento leve
Tão cedo desta vida descontente,
o bicho alfabeto
passa Repousa lá no Céu eternamente,
fica o que não se escreve. E viva eu cá na terra sempre triste. (Camões)
(Mackenzie) Leia o poema a seguir e responda às questões 5 e 6: (B) Minha terra tem palmeiras,
Meu professor de análise sintática era o tipo do Onde canta o Sabiá;
sujeito inexistente. As aves, que aqui gorjeiam,
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida, Não gorjeiam como lá. (Gonçalves Dias)
regular como um paradigma da 1.ª conjugação. (C) não fosse isso
Entre uma oração subordinada e um adjunto
e era menos
adverbial, ele não tinha dúvidas: sempre achava um
jeito assindético de nos torturar com um aposto. não fosse tanto
Casou com uma regência. e era quase (Paulo Leminski)
Foi infeliz. (D) Última flor do Lácio, inculta e bela,
Era possessivo como um pronome. És, a um tempo, esplendor e sepultura:
E ela era bitransitiva. Ouro nativo, que na ganga impura
Tentou ir para os EUA. A bruta mina entre os cascalhos vela...(Olavo
Não deu. Bilac)
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
(E) Vês! Ninguém assistiu ao formidável
A interjeição do bigode declinava partículas

expletivas, Enterro de tua última quimera.
conectivos e agentes da passiva, o tempo todo. Somente a Ingratidão – esta pantera –
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça. Foi tua companheira inseparável (Augusto dos
Anjos)
25
Toda poesia, de Paulo Leminski
(UEL) Leia o poema, a seguir, e responda às No que diz respeito aos procedimentos formais
questões 8 e 9: verificados (rimas, sonoridade e jogos de palavras) e
estupor aos sentidos construídos, relacione os dois primeiros
esse súbito não ter versos ao restante do poema.
esse estúpido querer Resposta oficial: Os dois primeiros versos
que me leva a duvidar do poema “Mandei a palavra rimar, / Ela não me
quando eu devia crer obedeceu” mostram o eu lírico em seu processo de
esse sentir-se cair criação. Ali, há a expectativa de que a palavra rime,
quando não existe lugar seguida da constatação de que ela desobedece a essa
aonde se possa ir ordem. Ao longo do poema, quanto à forma, encontram-
esse pegar ou largar se rimas externas rosa/prosa e internas sinto/extinto,
essa poesia vulgar sonoridade “sílaba silenciosa” e jogos de palavras,
que não me deixa mentir embora o eu lírico afirme que ela não obedeceu a ele.
(LEMINSKI, P. Toda Poesia. São Paulo: No que diz respeito aos sentidos, o poema mantém
Companhia das Letras, 2013. p.249.) o tom conflituoso e até paradoxal, que descreve esse
embate entre poeta e palavra. A ideia de liberdade e
8. O título do poema refere-se desobediência, exposta nos versos iniciais, confirma-
se ao longo do poema em versos como “parecia fora de
(A) ao efeito da poesia vulgar sobre o leitor si” ou “se foi num labirinto”.
estúpido.
(B) ao estado do eu lírico, dividido entre o crer e
o duvidar.
(C) ao fazer poético, atividade vulgar que engana
o receptor.
(D) ao poeta, estupefato com a carência de
sensações.
(E) à poesia, que inspira o súbito desejo de fuga
de um lugar inóspito.

9. Considerando o poema no conjunto da obra Toda


Poesia, de Paulo Leminski, é correto afirmar que
(A) exemplifica a metalinguagem praticada pelo
autor.
(B) a poesia de Leminski é vulgar porque utiliza gABARITO
formas poéticas livres.
1.D 2.E 3.C
(C) a adjetivação intensa no poema é um traço
recorrente em sua obra. 4.  semear imaginação = por onde ele passa
nascem palavras
(D) o heptassílabo é o verso mais cultivado na
produção leminskiana. soltar a imaginação = o vento leve
o bicho alfabeto
(E) o esquema de rimas encontra equivalência na passa
obra Ideolágrimas. fica o que não se escreve.
5.B 6.C 7.C 8.B 9.A
10. (UEL) Leia o poema a seguir. 10. Os dois primeiros versos do poema “Mandei a
desencontrários palavra rimar, / Ela não me obedeceu” mostram o eu
ela Mandei a palavra rimar, lírico em seu processo de criação. Ali, há a expectativa
ela não me obedeceu. de que a palavra rime, seguida da constatação de que
ela Falou em mar, em céu, em rosa, ela desobedece a essa ordem. Ao longo do poema,
em grego, em silêncio, em prosa. quanto à forma, encontram-se rimas externas rosa/
ela Parecia fora de si, prosa e internas sinto/extinto, sonoridade “sílaba
a sílaba silenciosa. silenciosa” e jogos de palavras, embora o eu lírico
ela Mandei a frase sonhar, afirme que ela não obedeceu a ele. No que diz respeito
e ela se foi num labirinto. aos sentidos, o poema mantém o tom conflituoso e até
ela Fazer poesia, eu sinto, apenas isso. paradoxal, que descreve esse embate entre poeta e
Dar ordens a um exército, palavra. A ideia de liberdade e desobediência, exposta
ela para conquistar um império extinto. nos versos iniciais, confirma-se ao longo do poema
(LEMINSKI, P. Toda poesia. São Paulo: em versos como “parecia fora de si” ou “se foi num
Companhia das Letras, 2013. p.190.) labirinto”.

26
Vozes anoitecidas
de Mia Couto

Vozes anoitecidas é o primeiro livro de contos de Durante duas semanas o velho dedicou-se
Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto. ao buraco. Quanto mais perto do fim mais se
O escritor moçambicano, nascido em 1955, publicou demorava. (p. 23)
esse livro em 1987. São doze contos que levam o leitor Porém, durante a execução desse trabalho, que
a ter experiências ora um tanto absurdas, ora um tanto não foi fácil, e devido à chuva que tomou, o velho
fantásticas, mas cujo objetivo é sempre o de chamar a ficou doente. Acamado, volta a ter a preocupação pela
atenção para os conflitos da vida, as situações em que mulher, afinal quem a colocaria na cova se ele viesse
o drama e a angústia se fazem presentes pelos mais a morrer. Por isso mesmo, decide que a cova não pode
variados motivos. ficar sem serventia e que o melhor a se fazer é matar
O título do livro apresenta um tanto de metafórico. a mulher antes que ele próprio morra. Ainda que seja
O termo vozes remete à construção discursiva, à estranho, não se trata de uma decisão com ódio ou
possibilidade de se expressar, oralmente em especial, outro sentimento ruim. Acredita, segundo sua visão
o que é bastante pertinente, considerando que a de mundo, que esse é o correto a se fazer. A mulher,
ancestralidade africana se faz presente. E o termo comunicada pelo marido sobre tal decisão, aceita
anoitecidas nos remete igualmente a uma tradição passivamente, sem admoestá-lo, sem se revoltar ou
moçambicana, pois segundo Henri Junod, que falar qualquer coisa em contrário.
fez um profundo estudo sob re a cultura no sul de – É verdade, marido. Você teve tanto trabalho para
Moçambique, a narração dos contos africanos obedece fazer aquele buraco. É uma pena ficar assim.
a determinados rituais: (p. 25)
Há que tomar uma bizarra precaução quando se No dia seguinte, o marido não resiste e é
contam contos: é um tabu fazê-lo durante o dia; encontrado morto pela mulher. Durante a noite, a
trata-se de um entretenimento da noite; o que velha sonhara com os antepassados, sonhara com as
transgredir essa regra torna-se calvo! (...) Penso histórias contadas e o sentido que faziam para manter
que essa proibição provém de que, como esse jogo a integridade do grupo. O que se deve, portanto,
é tão popular, os indígenas receiam consagrar- destacar no conto é, além da extrema pobreza em que
lhe tempo demasiado: perderiam toda vontade de vivem, a singeleza e a harmonia do casal, é. Se falta
trabalhar, se começassem a jogá-lo logo a meio riqueza material, sobram a eles exatamente elementos
dia. Por isso se interditaram, instintivamente, a da cultura local, o respeito à sabedoria dos mais velhos,
narração de contos durante o dia (JUNOD, apud o respeito às decisões. Esse primeiro conto revela já o
LOPES, 2004, p. 185). contraste entre o mundo moderno, egoísta, de busca
por novidades e a harmonia de uma sociedade que,
Apesar desse componente mais local, o leitor como os velhos, morrem e eles próprios têm de cavar
brasileiro ou de outros países pode bem se deparar a própria cova.
com situações similares, pois Couto consegue abordar
No segundo conto, “O último aviso do corvo
temáticas abrangentes, especialmente as relações
falador”, temos uma história que se aproxima do
mais diversas.
maravilhoso, embora tenha um tanto de enganação
O próprio Mia Couto em prefácio revela que também. Isso porque, como o título indica, um corvo
anoitecer as vozes significa impedir o desenvolvimento seria capaz de falar com os mortos e prever o futuro.
da imaginação, da fantasia. Quer dizer, um discurso Seu nascimento foi um tanto esdrúxulo, se é que tenha
que é impedido de se manifestar por estar nas trevas, ocorrido como narrado de fato. Zuzé Peraza, um pintor,
no esquecimento. Contra isso, contra o esquecimento, teria “vomitado” o corvo e de imediato mostrara sua
manifesta-se a literatura, que tira do limbo, da habilidade em falar. Porém, o único a compreender sua
escuridão as histórias ou esquecidas ou não contadas. fala era o próprio Zuzé.
Esse é, pois, o papel do escritor, o de inventar ou Verdade ou não, o pintor de parede passou a
o de resgatar histórias orais. O que chama a atenção ser visto pela comunidade como alguém detentor de
inicialmente na literatura de Couto é a semelhança com poderes mágicos e era sempre consultado por essa
a obra de Guimarães Rosa, especialmente por conta pretensa habilidade que teria o corvo.
dessa oralidade, do trabalho estético da oralidade. Os pedidos logo acorreram numerosos. Zuzé já não
Sem dúvida, o leitor experiente conseguirá perceber tinha quarto, era gabinete. Não dava conversa,
as semelhanças entre os dois autores. eram consultas. [...] E assim entra na história
No primeiro conto do livro, “A fogueira”, tem-se Dona Cândida, mulata de volumosa bondade,
a história de um casal de idosos. Como estão velhos e mulher sem inimigos. (p. 30)
sozinhos, o marido tem uma preocupação: saber quem Dona Cândida fora casada com Evaristo, um
enterraria a mulher se ele morresse antes dela. Por este negro da região. Porém, com a morte dele, e sem
motivo, resolve, com a anuência da esposa, cavar uma esperar muito, casou-se com um comerciante de
cova para a esposa. E faz isso todos os dias, devagar origem indiana, chamado Sulemane, um comerciante
devido à idade e à pouca força. da região.
27
Vozes anoitecidas, de Bia Couto
Segundo o que foi relatado no conto, a morte de Obrigava-o a trabalhar o dia todo e ainda o ameaçava
um marido deveria suceder um ritual de modo dar-lhe caso perdesse algum boi. Por isso, o jovem pastor
sossego espiritual na outra vida. Mudando aqui ou ali, ficou preocupado em retornar sem o principal boi do
as culturas em geral têm grande respeito pelos mortos. rebanho.
Lembrando-se que no Brasil, o dia 02 de novembro A ameaça do tio soprava-lhe os ouvidos. Aquela
é dedicado a eles. Tais crenças despertam também angústia comia-lhe o ar todo. Que podia fazer? Os
crendices. No caso, Sulemane parecia não conseguir pensamentos corriam-lhe como sombras, mas não
ter relações com Dona Cândida, e ela acreditava que encontrava saída. (p. 42)
poderia ser devido a algum feitiço do marido morto.
Azarias gostaria muito de estudar, ter perspectivas
Zuzé Paraza cruzou as mãos, acariciou corvo.
de uma vida melhor, assim como, inclusive, ter tempo
Tinha suas suspeitas: Evaristo era da raça negra,
para se divertir, brincar, o que o tio impedia de ele fazer
natural da região. Dona Cândida, com certeza não
porque tinha sempre de trabalhar.
cumprira as cerimónias da tradição para afastar a
morte do primeiro marido. (p. 32) O conto explora, pois, o estado de pobreza de
muitos moçambicanos, bem como reproduz a tirania
Apesar da suspeita, ela confirma que fizera tudo
de determinados grupos sobre os demais. No conto
quanto mandaram. Zuzé pede ao corvo que investigue
isso ocorre mesmo entre parentes. Além disso, a
o caso. Mesmo com algum temor da mulher, ele pousa
presença de minas é indicativa das guerras travadas
em seu ombro. O conto tem um tanto de cômico
em Moçambique após o processo de independência do
também, pelo inusitado da cena. O leitor é capaz de
país, ocorrido nas décadas de 60 e 70 do século XX.
perceber as intenções de Zuzé. Após ouvir o corvo,
ele conclui que Everisto deveria estar passando frio Já era noite e Raul estava preocupado com o
e que precisaria das suas roupas. Como ela, no ritual sumiço do sobrinho. Não tanto com o bem-estar dele,
de encomendação, já se desfizera das roupas, Zuzé e sim porque achava que o menino estaria vadiando.
propõe que dê roupas do atual noivo, que o Evaristo Ameaçava-o e rogava pragas contra o menino. Nesse
certamente não se importaria. momento, soube por soldados locais o que ocorrera.
– O Sulemane não pode saber disto. Meu Deus! Se Raul, mesmo alertado para a possibilidade de pisarem
ele desconfia! outras minas, decide ir atrás do menino, que, mesmo
não tendo culpa, ainda assim pensava em castigá-lo.
– Fica descansada, dona Candida. Ninguém vai
saber. Só eu e o corvo. (p. 34) Carolina vai atrás dos dois. A senhora, mais
compreensível, localiza o neto e tenta convencê-lo a se
De fato, Zuzé vestir as roupas entregues por Dona
apresentar, dizendo que Raul não bateria nele.
Cândida. Mais tarde, Sulemane toma conhecimento
que as suas roupas estavam com Zuzé e, procura-o Diante da situação, Azarias faz uma exigência:
para ajustar as contas. O encontro resulta em agressão que pudesse começar a estudar no ano seguinte.
física e na morte do pássaro por um acidente. Na Aparentemente o tio Raul concorda com o pedido.
discussão, Sulemane cai sobre a ave. Porém, ao sair para ir ao encontro do tio e a da avó,
Azarias aciona uma mina e morre. A descrição é um
Zuzé, aproveitando-se da atitude intempestiva
tanto poética e sugere uma espécie de libertação da
de Sulemane que acaba mantando por acidente a
ave, faz profecias malignas contra. Sulemane, logo opressão a que era submetido o menino.
em seguida, começa a passar mal. O fato serviu para O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal
reforçar a crença nos poderes de Zuzé. onde o rio dava passagem. De súbito, deflagrou
A notícia, como um relâmpago, correu a povoação. um clarão, parecia o meio-dia da noite. [...] Azaria
Afinal, esse Zuzé! Era mesmo, o gajo. Dono de correu e abraçou-a [ndlati] na viagem da sua
bruxezas, realmente. (p. 38) chama. (p. 47)

Após esses acontecimentos, Zuzé tem de Em “De como vazou a vida de Ascolino do
abandonar o local, porque também previra dificuldades Perpétuo Socorro”, conforme indica o título, o conto
para todos na região. Crendo nisso e na atitude do tem como personagem principal Ascolino do Perpétuo
pintor elevado à condição de bruxo, um a um, os Socorro, casado com a dona Epifania e, tinha Vasco João
moradores abandonaram suas casas e partiram para Joãoquinho como seu empregado e que manobrava a
outras terras. bicicleta que carregava Ascolino pela cidade. Trata-
se de um conto em que a comédia prevalece. Outra
O conto explora, portanto, as crendices populares. característica é a semelhança com a narrativa de
“O dia em que explodiu Mabata-bata” também o Guimarães Rosa. Ascolino é um personagem um tanto
início marcado por crendice. No caso, um boi chamado caricato, seu modo de falar é bem marcado, revelando
Mabata-bata explode quando pastava em um campo uma pretensa nobreza.
minado. O pastor, o jovem Azarias, acredita que tenha Originário de Goa, morava em Moçambique
sido obra de ndlati, a ave do relâmpago, que teria e se intitulava “indo-português [...], católico de fé
enviado um raio, mesmo em um dia claro, sem nuvens. e costume” (p. 59). Apenas como referência, Goa é
Azarias era órfão e morava com um tio, Raul, e atualmente um dos estados da Índia, mas foi território
a avó, Carolina. O tio, no entanto, não o tratava bem. português na Ásia entre 1510 e 1961.
28
Vozes anoitecidas, de Bia Couto
Vestia sempre de rigor, fato de linho branco, sapatos louco do local. Tentaram tirá-lo da margem, mas,
de igual branco, chapéu de idem cor. Cerimonioso, estranhamente, parecia colado à terra. Mesmo os
emendado, Ascolino costurava no discurso os homens mais fortes da aldeia não conseguiram tirar o
rendilhados lusitanos da sua admiração. [...] cadáver de onde estava.
Qui tém, homem? Essetragô sapúe de nosso. Não Começou, nesse momento, uma tempestade, o
obstante, qui vai pagar?” (p. 59 e 61) que muito assustou os moradores, imaginando que
O drama de Ascolino é que ele era infeliz no poderia ser o castigo anunciado por Timba. E esta
casamento, pois Dona Epifânia não lhe dava atenção chuva que consegue mover seu corpo rio abaixo.
e o carinho que ele desejava. Era uma mulher muito Plácido, o rio foi ficando longe, a rir-se da
devota a Deus. Com isso, a diversão de Ascolino ignorância dos homens. E num embalo terno
era beber no bar do Meneses, na companhia do seu foi lavando Ernesto Timba, corrente abaixo, a
empregado João. Porém, para não se misturarem, mostrar-lhe os caminhos que ele apenas tinha
Ascolino ficava na parte de frente com outros brancos; aflorado em sonhos. (p. 56)
João, por sua vez, ficava na parte traseira com outros
Com esse término, o narrador faz uma oposição
homens negros.
entre a racionalidade que contraria a fantasia, o sonho.
Já a diversão de João era narrar aos amigos Esse contraste é tipificado entre o pescador e demais
as peripécias de Ascolino, o que ele fazia para ter a moradores, que o viam como um desequilibrado.
atenção da esposa. Certa feita, destruiu móveis da
Já em “Afinal, Carlota Gentina não chegou de
casa, quis destruir as imagens dos santos e símbolos
voar”, também remete o leitor a Guimarães Rosa, pois
religiosos, para ver se a esposa olhava para ele.
o narrador se dirige a um interlocutor ausente, no
Porém, o efeito foi o contrário. Dona Epifânia resolve
caso um advogado. Na esteira de Riobaldo (de Grande
abandonar o marido.
sertão: veredas), o narrador quer confessar seu crime.
Alertado por Vasco, Ascolino diz que eles têm de
A história, dividida em quatro partes, trata como o
perseguir o caminhão que estava levando a mudança narrador matou sua esposa, os motivos que o levaram a
da esposa. Manda Vasco pegar a bicicleta e irem atrás cometer o crime, bem como sobre seu arrependimento
dela. Evidente que jamais alcançariam a esposa assim. e necessidade de pagar pelo crime. Seu objetivo é
Apesar disso, Vasco prepara a bicicleta em partem em explicar ao advogado como ocorreu tudo.
busca dela. Não, sem antes Ascolino dizer:
O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever
– Pedal, pedal depresse. Não obstante, temos que a minha história. Aos poucos, um pedaço cada
chegar cedo. Hora de cinco hora temos que volta dia. Isto que eu vou contar o senhor vai usar no
na cantina de Meneses. (p. 71) tribunal para me defender. [...] Afinal, estou aqui
Em “Os pássaros de Deus”, conta-se a história de na prisão porque me destinei prisioneiro. Nada,
Ernesto Timba, pescador, que também acaba por ser não foi ninguém que queixou. Farto de mim me
adotado por um pássaro. Ernesto passou a acreditar denunciei. (p. 75-76)
que o pássaro seria um mensageiro de Deus. Isso O caso tem início quando Bartolomeu, cunhado
porque, enquanto pescava, um pássaro pousou em sua do narrador, deixa cair, acidentalmente, em sua esposa
canoa. Tentou afugentá-lo, mas ele não ia embora. uma lenha em brasa. A mulher emite um grito estranho,
Nada, o pássaro não se mexia. Foi então que o como se fosse de um animal. Na cultura moçambicana
pescador suspeitou: aquilo não era um pássaro, tradicional, o fato indica que ela seria uma nóii, isto é,
era um sinal de Deus. Esse aviso do céu havia de uma feiticeira. Alertado por Bartolomeu, o narrador fica
matar, para sempre o seu sossego. (p. 53) preocupado e imagina ser casado com uma também,
Resolveu levá-lo para sua casa. Não demorou afinal eram irmãs. Por isso, resolve tirar a prova. Joga
muito para que surgisse outro pássaro. Era um casal, em Carlota água fervendo. Porém, para sua surpresa,
que gerou filhotes. Como chegava a desviar comida ela não gritou, apenas chorou sem muito barulho. Ele,
destinada à família para alimentar o pássaro, a então, ficou em dúvida, imaginava que ela poderia se
comunidade passou a vê-lo como. transformar em um animal. Por isso o título do conto.
Ela não virou um pássaro ou coisa parecida. Apenas
Na aldeia, espalhou-se a suspeita: Ernesto Timba sofreu até a morte. Ainda assim, o narrador continuou
estava era maluco. A própria mulher, depois de a acreditar que ela seria uma nóii.
muito ameçar, abandonou o lar, levando com ela
Conclusão que tirei dos pensamentos: Carlota
todos os filhos. (p. 55)
Gentina era um pássaro, desses que perdem voz
Em certo momento, após voltar do trabalho, nos contraventos. (p. 79)
Timba encontra o pássaro morto, havia sido queimado
Por isso, ele sabe que cometeu um crime, mas
na gaiola. O fato o leva a acreditar que os assassinos
não contra os homens, e sim contra a cultura local.
do pássaro seriam amaldiçoados por serem pássaros
Ele se divide entre o mundo português, com suas leis,
divinos.
cultura e a cultura moçambicana. Chega a dizer que
Em certo momento, Timba, que tinha muita “mesmo brancos somos pretos”, ou seja, não porque
tristeza, é encontrado morto às margens do rio onde houve a colonização que o ser moçambicano está
costumava pescar. Logo anunciaram a morte do totalmente morto. Trata-se, portanto, de um conto

29
Vozes anoitecidas, de Bia Couto
que revela a preocupação localista de Mia Couto. Em efeitos, a história de que ele teria tido contado com
resumo, o narrador acredita que deva ser julgado pela esses animais marinhos seria verdadeira. Na verdade,
justiça tradicional, pois seria julgado considerando a eram submarinos. João acaba morrendo em uma
tradição. Partindo do princípio de que o seu crime foi tempestade sem avistar as tais baleias.
por uma justa causa, a desconfiança que teve. Outra narrativa em que a água é importante é “De
“Saíde, o Lata de Água” é um interessante conto como o velho Jossias foi salvo das águas”. No caso, há
por dois motivos: primeiro por jogar com o binômio uma enchente, mas Jossias, antigo morador da região,
fantasia e verdade, invenção e realidade; depois, não queria abandonar o local. Imaginava que morrer
porque aborda o machismo sob ótica pós-moderna. ali seria uma honra. Mas os salva-vidas procuravam
No caso, Saíde se casa com uma mulher, Júlia, que já por sobreviventes em uma das enchentes e, mesmo a
havia se relacionado com outros homens. A despeito contragosto, Jossias acaba sendo salvo.
de muitos criticarem Saíde, que acreditavam que ele Desejou que a viagem não tivesse fim como se o
deveria se casar com uma virgem, insiste no casamento. salvassem do tempo e não das águas, como se o
Quando souberam que andava com ela, tivessem liberto não da morte mas da sua terrível
condenaram-no. Ela estava muito usada. Devia e solitária espera. Com olhos de menino, fixou
escolher uma intacta, para ser estreada com seu o escuro engolindo a terra, a tarde anoitecendo
corpo. (p. 88) tudo. (p. 113-114)
Trata-se de um discurso machista recorrente, Em “A menina de futuro torcido”, tem-se uma
a ideia segundo a qual a mulher para se casar deve história comum a pessoas de países subdesenvolvidos,
permanecer virgem. em que a pobreza prevalece. A perspectiva de um
Casados, precisavam de filhos, “é um documento futuro fica tolhida pela falta de oportunidade. Com
exigido pelos respeitos”. No entanto, Saíde é estéril. isso, quando surge uma, por absurda que seja, agarra-
Por isso, pede à mulher que se deite com outro homem se com toda a gana. É o que fez Joseldo Bastante. Pai
para poder engravidar. Apesar do absurdo da situação, de doze filhos, em certa feita em que apareceu uma
ela aceita, e passa a dormir com homens diferentes, trupe de contorcionistas na aldeia, decidiu que uma
até que consegue engravidar. Em um acesso de raiva de suas filhas, por ser magrinha, a Filomeninha, seria
e ciúmes, exija saber que seria o verdadeiro pai. Júlia, uma artista, seria uma contorcionista.
porém, se recusa a falar, afirmando apenas que ele era – A partir desse momento, vais treinas curvar-te,
o pai verdadeiro. levar a cabeça até no chão e vice-versa. (p. 128)
Em princípio, o casamento se assenta, ainda mais E assim fez. Com base na própria intuição, Joseldo
com o nascimento do filho. Assim, para encobrir uma iniciou treinamentos com a filha, os mais disparatados,
mentira, teve de inventar outra. Ninguém poderia como amarrar a filha para esticá-la ou jogar água
saber que ele era incapaz de fazer filhos em uma quente de modo a deixá-la mole... Também quase
mulher. Também não podiam saber que ele havia sido não alimentava a filha, que começou a ficar doente.
traído com seu consentimento. Joseldo, de sua parte, acreditava estava fazendo de
maneira correta o treinamento e não dava ouvidos às
De qualquer modo, passa a ameaçar a esposa,
reclamações da filha.
que decide ir embora às escondidas da cidade.
Para completar o mundo de mentiras, fantasioso, Até que resolve partir com Filomena para a
passa a bater na mulher quase todas as noites. A cidade e mostrá-la ao empresário de circo, que a vê,
vizinhança quer saber o que estava acontecendo e um adverte o pai de que a menina parecia doente e ainda
representante, Severino, inquire de Saíde o porquê diz que contorcionismo já era. Nem queria mais ver
de tanta violência contra a esposa. Conta então uma esse número.
das verdades, que ela havia partido, mas para manter – A única coisa que me interessa agora esses tipos
a aparência de que o casamento ainda continuava, com dentes de aço. Umas dessas dentaduras que
inventava que estaria batendo nela. vocês às vezes têm, capazes de roer madeira e
– Eu faço isto não sei porquê. É para vocês mastigar pregos. (p. 131)
pensarem que ela ainda está. Ninguém pode De volta à aldeia, Joseldo imaginou que a filha
saber que fui abandonado. Sempre que bato não parecia ter esses tais dentes fortes... Porém, no mesmo
é ninguém que está por baixo desse barulho. instante em que olhou para ela, esperando uma
Vocês todos pensam que ela não si porque sofre resposta para a nova empreitada, a menina tombou
da vergonha dos vizinhos. Enquanto não... (p. 92) desfalecida nos braços do pai.
Em respeito ao amigo, Severino decide manter o “A história dos aparecidos” é o conto mais
segredo. denso do livro. Retrata o desaparecimento de alguns
Nessa mesma linha de jogo entre fantasia e cidadãos, cuja morte foi operada pelo Estado, mas
realidade, está “As baleias de Quissico”, me que o oficialmente teriam se afogado ou morrido de alguma
mágico parece mais plausível que a própria realidade. doença. Moçambique viveu sob o regime português
É a história de Bento João Mussavele, que acreditava até 1975. Depois disso houve guerra civil em busca
que um dia encontraria baleias na praia. Isso não da consolidação do poder por grupos ideológicos
acontece de verdade, mesmo assim para todos os diferentes, ou sob inspiração marxista ou sob inspiração

30
Vozes anoitecidas, de Bia Couto
mais liberalista. Em momentos assim, é comum que A história tem como ponto central o assassinato
haja uma perseguição aos direitos civis, e os cidadãos de uma chinesa, chamada Mississe. Em princípio,
fiquem sem a devida liberdade de expressão. No o autor do crime seria Panhoca, referido no título do
caso do conto, a ideia é falar sobre a morte civil. Se conto.
o indivíduo está vivo, oficialmente está morto. E é
A narrativa vai sendo construída aos poucos.
contra isso que devem lutar alguns personagens, Luís
Primeiros sabemos quem é Mississe, uma viúva
e Aníbal.
chinesa, que morava em Muchatazina, Moçambique
– Como não estamos? Vocês riscam a pessoa assim e que, pelo exotismo, era assediada por muitos
qualquer maneira? portugueses e também moçambicanos. Mas ela não
– Mas vocês morreram, nem sei como que estão demonstrava interesse por ninguém.
aqui. A viúva embrulhava-se nos azedos, enviuvando
– Morremos como? Não acredita que estamos sempre mais. Os portugueses, ricos até, saíam de
vivos? ombros cabisbaixos. (p. 138)
– Talvez, estou confuso. Mas este assunto de Patanhoca, que significa na língua local aquele
vivo não-vivo é melhor falarmos com os outros que pega cobra, era um domador de serpentes. Embora
camaradas. (p. 118-119) tivesse essa habilidade, era, segundo o narrador, um
Toda a aldeia ficou surpresa. Não sabiam o que coitado, alguém sem posses materiais ou possuidor
fazer, como agir. Depreende-se daí a importância maior de vasta cultura. O narrador não sabe muito sobre sua
que se dá à burocracia que a aspectos reais e efetivos vida pregressa. Sabe apenas que ele lida com cobras,
do ser humano, como estar vivo de fato e necessitar de que as doma e que tira o couro delas. Conhecendo
suprimentos básicos para a sobrevivência. a história da viúva, decidiu que a protegeria dos
A resolução vem de uma comissão governamental, assediadores, dos que porventura quisessem lhe fazer
que conclui estarem de fatos os dois vivos, mas que mal. Por isso, soltava suas cobras no entorno da casa
deveriam estar mais atentos para que isso não viesse da chinesa, impedindo que ela saísse ou que alguém
a se repetir. se aproximasse durante a noite. “Tudo isso, todo esse
serviço de guarda, o Patanhoca fazia sem pedir a
– Mas os dois aparecidos é bom serem avisados
troca”. (p. 140)
que não devem repetir essa saída da aldeia ou
da vida ou seja lá de onde. Aplicamos a política Após esse acontecimento, quatro noites se
da clemência, mas não iremos permitir a próxima passaram. Na primeira, a chinesa convidou o domador
vez. (p. 123) de cobras para que entrasse em sua casa. Ele não
entendeu o motivo ou se fez de inocente. Ela o chamou
Apesar de algum non sense, a decisão tem um
de João, o que causou mais descontentamento ainda,
tanto de irônico, e para isso que o narrador chama
pois preferia ser chamado por seu apelido. É provável
a atenção, para o absurdo da sociedade totalmente
controlada por um poder estatal, que retira dos que quisesse esquecer o passado.
indivíduos a autonomia até mesmo para ser, para – Sou Patanhoca, eu mesmo. Não é só nome que
existir. fui dado. Tenho focinho, não é cara de pessoa. (p.
142)
Mia Couto escreve sobre diversas temáticas,
desde aquelas mais cômicas, até essas mais trágicas, Na segunda noite, ela o espera ainda mais
sempre com o intuito de retratar Moçambique em toda bonita e ele chega mais cedo. Apesar de ela mostrar
a sua riqueza cultural. Como país colonizado, caso do verdadeiro interesse por ele, Patanhoca quer manter-
Brasil também, há sempre um choque cultural, entre a se distante. Parece que são mundos que colidem e
tradição local e a trazida pelos colonizadores. Às vezes, ele quer preservar o que é, sem misturar-se com uma
dessa mistura, surge uma cultura mestiça; às vezes, mulher de outro país, outra cultura. Mesmo assim,
surge também o conflito, o embate entre perspectivas. aproximam-se sem ter algo efetivo. Por isso mesmo,
“Patanhoca, o cobreiro apaixonado” é o último nessa segunda noite, têm uma primeira briga, motivado
conto do livro. Dividido em seis partes, tematiza por um pretenso ciúmes. “A china Mississe roubara-lhe
assuntos diversos: da eutanásia à xenofobia. o fogo que a gente acende nos outros”. (p. 145)
No início, há uma pequena reflexão sobre o A terceira noite é marcada pelo conflito dele,
narrado. Se aquilo que se narra é a verdade, ou apenas quer esquecê-la, não quer ser envolver com essa
um modo de olhar para a verdade. Se é possível mulher, isso significaria mudar sua vida, seu estilo de
apreender o todo ou apenas parte dele. Em rigor, a vida que havia adotado, inclusive com outro nome, não
literatura tem como um de seus objetivos explicar o mais o nome de batismo, um nome cristão. Tem dúvida
real com base na fantasia, na imaginação. E o todo também se ela ainda o iria querer por conta da briga da
depende de várias partes: do olhar de quem escreve, segunda noite. Teve então um sonho.
de quem conta, ao olhar de quem lê. Ouviu as visões com atenção. Diziam o seguinte:
Não quero mostrar verdade, disse nunca soube. Se ela estava arrependida, perdoara. Ele seria aceite,
invento é culpa da vida. A verdade, afinal, é filha outra vez João, outra vez nome e cara. Outra vez
mulata de uma pergunta mentirosa. (p. 135) gostado. (p. 147)
31
Vozes anoitecidas, de Bia Couto
E, de acordo com que sonhara, ela o esperava na 3. (UEL) Algumas expressões idiomáticas da língua
outra noite, ainda mais bonita. Ele se sentiu confiante, portuguesa são recriadas em O outro pé da
sentiu-se não mais o Patanhoca, e sim o João, como sereia, de Mia Couto, como ocorre no seguinte
ela preferia chamá-lo. Ela o chamou para beberem, fragmento:
deixarem-se levar pelo desejo, pelas sensações. Ele
fica confuso com isso. “Agora, sou João ou Patanhoca?” (F) “O navio é uma ilha habitada por homens e
Ela então lhe pede um favor, queria que buscasse um seus fantasmas”.
remédio, um mitombo. Não fica claro o que seria isso. (G) “Quem tem insônia é o peixe que só adormece
Ele próprio fica em dúvida qual seria a razão do pedido: na frigideira”.
“talvez era uma armadilha, aldrabice de esperanças”.
Seria um remédio devido a uma picada de cobras? (H) “É que isto, em Vila Longe, vai de animal a
Na verdade, o final, um tanto ambíguo, revela pior”.
a real intenção da chinesa: ela queria se matar, queria (I) “A melhor maneira de mentir é ficar calado”.
o tal remédio, que na verdade seria o veneno da cobra
para poder se matar. Por esse motivo, João passou (J) “As mãos eram um incêndio”.
como o assassino da viúva, mas isso fica no plano da
ambiguidade, conforme anunciara desde o início o 4. Leia o seguinte fragmento do conto “Afinal,
narrador.
Carlota Gentina não chegou de voar” e analise as
Com esse Vozes anoitecidas, Mia Couto revela afirmativas a seguir:
um mundo que ficaria esquecido sem o discurso
literário, quer, pois, revelar a cultura moçambicana, O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever
os contrastes dessa cultura que tenta libertar-se das a minha história. Aos poucos, um pedaço cada
amarras coloniais, mas reconhece a importância dessa dia. Isto que eu vou contar o senhor vai usar no
mistura para ser o que é. tribunal para me defender. [...] Afinal, estou aqui
na prisão porque me destinei prisioneiro. Nada,
não foi ninguém que queixou. Farto de mim me
denunciei. (p. 75-76)
EXERCÍCIOS
I. O marido, nesse conto, afirma ter matado sua
Obs.: Como não há questões de vestibulares sobre Vo- esposa por acreditar que ela era uma bruxa.
zes anoitecidas, colocamos algumas outras sobre livros II. Ele prontamente se entrega à polícia após o
diversos de Mia Couto. acontecido.
III. Supôs que a mulher fosse uma bruxa porque
1. Conto em que se tem a história de um casal de
o cunhado narrador havia lhe dito que desconfiava da
idosos, e o marido decide fazer uma cova para
esposa, que era irmã de Carlota.
enterrar sua esposa.
(A) Patanhoca, o cobreiro apaixonado Está correto o que se afirma em:
(B) A menina de futuro torcido (A) Apenas I e III
(C) A história dos aparecidos (B) Apenas I e II
(D) Saíde, o Lata de Água (C) Apenas II
(E) A fogueira (D) Apenas III
(E) Em I, II e III
2. (UEL) A crítica literária tem aproximado
o moçambicano Mia Couto do brasileiro 5. Vozes anoitecidas, de Mia Couto, é um:
Guimarães Rosa, em particular pelo fato de
ambos empregarem neologismos em suas obras. (A) romance que trata da vida dos imigrantes
No trecho “as mãos calosas, de enxadachim”, africanos que decidem ir até Portugal.
extraído do conto “Fatalidade”, de autoria do (B) livro de contos, que tematizam diversos
autor brasileiro, o neologismo “enxadachim” é aspectos da cultura moçambicana.
construído pelo mesmo processo de formação de
palavras utilizado pelo autor moçambicano para a (C) livro de crônicas, que falam sobre a vide em
criação de Portugal e também em Moçambique.
(A) vitupérios. (D) romance em que se verifica a preocupação
(B) bebericava. do autor em resgatar a cultura oral de
(C) tamanhoso. Moçambique.
(D) mudançarinos. (E) livro de contos, que fazem uma inter-relação
entre Brasil, Portugal e Moçambique.
(E) malfadado.

32
Vozes anoitecidas, de Bia Couto
6. ((PUC_MG) Fragmento do ensaio “Língua que 7. (PUC-RS) Leia o trecho extraído do romance Terra
não sabíamos que sabíamos”, de Mia Couto. Sonâmbula, de Mia Couto, e responda à questão.
Num conto que nunca cheguei a publicar acontece De imediato, centenas de pessoas se lançaram em
o seguinte: uma mulher, em fase terminal de todo tipo de embarcações, das pequenas às mais
doença, pede ao marido que lhe conte uma mínimas, para assaltarem o navio malfragado,
história para apaziguar as insuportáveis dores. afim de se servirem das ditas xicalamidades. [...]
Mal ele inicia a narração, ela o faz parar: Desde então, a situação só piorou pois, consoante
— Não, assim não. Eu quero que me fale numa o secretário do administrador, a população não
língua desconhecida. se comporta civilmente na presença da fome.
Muita gente insistia agora em voltar ao tal navio
— Desconhecida? — pergunta ele.
pois lá sobrava comida que daria para salvar
— Uma língua que não exista. Que eu preciso filhos, mães e uma africanidade de parentes. [...]
tanto de não compreender nada! Assame foi preso, sujado por mil bocas. Na prisão
O marido se interroga: como se pode saber falar lhe bateram, chambocado nas costas até que as
uma língua que não existe? Começa por balbuciar pernas se exilaram daquele sofrimento que lhe
umas palavras estranhas e sente-se ridículo como era infligido. Perdeu o sentimento da cintura para
se a si mesmo desse provas da incapacidade de baixo. Assane passou as palmas das mãos pelas
ser humano. desempregadas coxas. Tinha sido apenas há dias
Aos poucos, porém, vai ganhando mais à-vontade que lhe abriram a porta da prisão. Ainda nem
nesse idioma sem regra. E ele já não sabe se sabia bem se arrastar de mão pelo chão. Por isso
fala, se canta, se reza. Quando se detém, repara as sacudia, limpando essas mãos que ele sempre
que a mulher está adormecida, e mora em seu aplicara nos documentos.
rosto o mais tranquilo sorriso. Mais tarde, ela Com base no trecho e em seu contexto, leia as
lhe confessa: aqueles murmúrios lhe trouxeram seguintes afirmativas.
lembranças de antes de ter memória. E lhe deram
I.  As obras de Mia Couto exploram, de modo
o conforto desse mesmo sono que nos liga ao que
geral, o mundo simbólico moçambicano, a
havia antes de estarmos vivos. [...]
guerra e as tensas relações entre o africano e o
Moçambique é um extenso país, tão extenso quanto europeu.
recente. Existem mais de 25 línguas distintas.
II. O trabalho com a linguagem literária torna-se
Desde o ano da Independência, alcançada em
evidente a partir da criação de novos vocábulos
1975, o português é a língua oficial. Há trinta
e da utilização de outros com diferentes
anos apenas, uma minoria absoluta falava essa
sentidos.
língua ironicamente tomada de empréstimo do
colonizador para negar o passado colonial. Há III. Para narrar a violência sofrida pelo
trinta anos, quase nenhum moçambicano tinha o personagem, o autor vale-se de eufemismos
português como língua materna. Agora, mais de como “sujado por mil bocas”, “as pernas se
12% dos moçambicanos têm o português como exilaram daquele sofrimento”, “perdeu o
seu primeiro idioma. E a grande maioria entende sentimento da cintura”.
e fala português inculcando na norma portuguesa A(s) afirmativa(s) correta(s) é/são
as marcas das culturas de raiz africana.
In: COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? e outras
(A) I, apenas.
interinvenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 11-18. (B) II, apenas.
A colonização portuguesa na África perdurou (C) I e III, apenas.
até o fim do século XX, com as guerras de (D) II e III, apenas.
independência. As tensões políticas e sociais (E) I, II e III.
repercutiram e ainda repercutem fortemente na
produção literária desses países, especialmente
nas literaturas angolana e moçambicana.
Levando-se em consideração o contexto histórico
do período pós-colonial, é possível verificar que
para Mia Couto, em seu ensaio, a colonização
portuguesa é vista como:
(F) autoritária e impositiva, oposta à autonomia
das nações dominadas.
(G) vantajosa para a economia e para a
comunicação entre os povos.
(H) importante para as tradições locais e para a
língua das colônias.
gABARITO
(I) repressora dos direitos à liberdade de
pensamento e expressão. 1.E 2.D 3.C 4.A 5.B 6.C 7.E
33
Anotações

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Uma menina está perdida no seu século à procura do pai
de Gonçalo M. Tavares

Gonçalo M. Tavares (1970) nasceu em Luanda, personagem em particular. Não há grande interseção
Angola; apesar disso, Tavares pode ser considerado entre os personagens salvo em momentos raros. São
um escritor português uma vez que vive em Portugal episódios em torno de personagens secundárias que
desde os dois anos de idade. elevam a um patamar superior uma trama um tanto
Publicou seu primeiro livro em 2001, Livro da banal, comum. Os encontros que Marius e Hanna têm
dança. Em quinze anos de carreira, publicou 25 livros com essas personagens (Hanna como espectadora)
dos mais diversos gêneros literários: poesia, contos, se constituem no verdadeiro enredo do livro, já que a
romances e crônicas. busca pelo pai da menina é apenas a desculpa que os
faz viajar de Portugal até Berlim.
Uma menina está perdida no seu século à
procura do pai foi publicado originalmente em 2014. As poucas referências indicariam que o pai da
O enredo se passa algumas décadas após a Segunda menina estaria em Berlim. Empreendem então uma
Guerra Mundial, em uma Europa ainda devastada viagem de trem até a Alemanha. Berlim, cidade que
psicologicamente, sobretudo em Berlim, para onde ainda tinha vários resquícios oriundos da Guerra,
viajam Marius e Hanna, personagens principais do além dos traumas que certamente os indivíduos
livro. ainda carregavam. Conhecemos, pois, vários nuances
desses traumas pelo contato que têm os dois com os
O livro é dividido em quinze partes, em que se mais diversos personagens. Essa viagem, mais do
verifica uma progressão narrativa tradicional, ou seja, que servir para encontrar o possível pai de Hanna,
o livro é narrado ab initio. Mas o que significaria se presta a outros dois pontos: uma compreensão
estar perdida no século, conforme indica o título? mais ampla da trissomia 21 (síndrome de Down) e
A resposta não é dada prontamente pelo enredo. uma compreensão sobre como pessoas afetadas pela
Uma das explicações é que o livro tem um tanto de Guerra, especialmente judeus, procuraram reconstruir
esquizofrênico, no sentido de que o todo não se a vida e dar novo sentido a ela.
completa, embora ele esteja presente. Assim, estar
De início, ainda em Lisboa, conhecem um
perdida no século é sugestivo da condição de Hanna,
fotógrafo de animais, que ao final da narrativa
uma jovem de 14 anos com síndrome de Down.
retornará. Trata-se de Josef Berman. Seu projeto era
A esquizofrenia está presente na construção fotografar animais como se fossem pessoas. Sempre
da narrativa, pois ora o livro é narrado em terceira tirava três fotos: de frente, do perfil direito e do perfil
pessoa, ora, em primeira pessoa, tendo como narrador esquerdo. “Sabe quantos animais fotografei? Não vai
o próprio Marius. Não se trata de uma novidade, mas acreditar... mais de sete mil”. Berman conta então que
sem dúvida que causa uma estranheza no leitor; ao que os animais tinham uma sensibilidade diferente, eram
parece, porém, o objetivo é fazer o leitor construir uma capazes de prever situações de perigo mais rápido que
outra visão daquilo que parecia solidificado. Trata-se o ser humano e cita uma série de episódios que servem
de uma estratégia, o de quebrar expectativas, presente de exemplo dessa maior sensibilidade que teriam
nas atitudes de diversos personagens do livro. os animais para os perigos, como os ratos que, em
A história tem início quando Marius identifica na Londres, sentiram antes que haveria um bombardeio
rua essa jovem com expressão diferenciada e atitudes na capital da Inglaterra. Evidente, não que os ratos
incomuns também. Percebe logo de início que é uma pudessem nomear algo assim, mas perceberam que
menina com alguma deficiência. Conversando com algo ameaçava a vida deles.
ela, observa as atitudes incomuns, mas, mesmo assim, O segundo maior interesse do fotógrafo era
fica sabendo que ela está sozinha e em busca do pai, fotografar pessoas com trissomia 21. Por isso,
sem que tenha maiores informações. Marius decide demonstrou interesse por Hanna. Marius, por sua vez,
então ajudá-la. Não fica claro o porquê dessa decisão imaginou que o fotógrafo poderia lhe fazer mal e não
de Marius; supõe-se que seja pelo fato de ele ser um permitiu que a fotografasse. O fato serviu para Marius,
perdido também, no sentido de não ter uma vida bem observando as fotos que Josef lhe mostrou, comparar os
definida, não ter objetivos específicos. Apenas vive o dia rostos de diversas pessoas com essa condição genética.
a dia. Ao que parece, ajudando-a, ela o ajuda também Rostos e mais rostos sorridentes, aceitando o
a se encontrar. Ao que parece não tinha uma forte que a vida lhes havia dado, aceitando tudo,
razão para viver, não tinha pessoas que dependessem aceitando certamente o que aquele fotógrafo
dele. Desse modo, sua vida também não tinha grande lhes havia pedido, aceitando, sem perceber [...],
significado e viu em Hanna a possibilidade de fazer manifestando-se incapazes de distinguir os dois
algo, de preencher o vazio, o que lhe permitiu também lados do mundo. (p. 25)
entrar em contato com diferentes pessoas em situação
No trem para Berlim, conhecem Fried Stamm,
semelhante à da dele.
que decidira, em conjunto com outros quatro irmãos,
Hanna carregava uma série de fichas para poder espalhar cartazes por toda a Europa, com mensagens
se comunicar com maior facilidade. Tais fichas, de variadas. Era sua contribuição para ajudar aos outros
certa forma, mimetiza a divisão do livro, em que cada a se reconstruir. Era seu meio de dar sentido à própria
uma das quinze partes ou capítulos conta sobre um vida.
35
Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares
Não se trata de provocar uma revolução, não Era, pois, uma forma de resistência. Não pelo
gostamos dessa palavra, trata-se em primeiro lugar esquecimento de práticas, e sim pela confirmação de
de um projecto de acumulação: transmitir uma que aconteceu para que não ocorra mais. Um meio de
inquietação progressiva, mês a mês crescendo, afirmar um fato e evitar que ocorra novamente pela
quase sem se dar por isso. Pela repetição, por não ocultamento da verdade.
deixar que se instale qualquer tipo de trégua ou
suspensão, por, enfim, não desistimos... provocar No outro dia ao episódio da música, Marius e
uma circulação de mensagens insatisfeitas, Hanna conhecem o músico do quarto. Era Terezin, um
de informação indignada, repetir pequenas senhor nomeado assim pelo próprio Marius, por morar
pancadas para, no fim, demolir, eis em parte a no quarto que tinha esse nome em referência a um
nossa estratégia. (p. 33) campo de concentração na antiga Tchecoslováquia.
Em Berlim, hospedam-se em um hotel de um casal Era um dos hóspedes mais antigos do hotel. Estava ali
de judeus, Moebius e Raffaela. O sentido dado à vida havia doze anos, e virara morador efetivo.
por esse casal tem suas estranhezas também. No caso, Além de tocar música, tinha uma estranha
o hotel fora construído de modo a lembrar a disposição estratégia para poder sobreviver às adversidades e à
dos principais campos de concentração nazistas, como condição de judeu perseguido. Dizia que um indivíduo
Dachau, Auschwitz, entre outros. Ficaram hospedados não poderia ter objetos e utensílios que pesassem mais
exatamente no quarto nomeado como Auschwitz, por do que ele próprio. No caso, Terezin tinha 63 kg e seus
estranho que fosse. objetos pessoais pesavam apenas 26kg.
Em dado momento, em que retornam de uma Terezin revela então a Marius algo que serve
busca pela cidade, já noite, os corredores estavam igualmente para explicar o título do livro. A menina
escuros. Começaram a ouvir uma música, remetendo estar perdida no seu século é indicativo de que ela
o leitor ao fato de que nos campos de concentração, os
também estaria construindo a sua história, uma
que eram enviados para as câmaras de gás ou outro
meio de extermínio eram acalmados por músicas. história com os componentes de quem tem síndrome de
Marius também sente certo alívio ouvindo a música, Down, e, por isso mesmo, viveria em mundo paralelo.
depois passa a ter certo medo devido à escuridão, o Evidente que existe uma ligação com os referentes de
que o levou a demorar a encontrar o próprio quarto. Há todos, mas também é evidente que o modo de olhar, o
certa similitude com os campos nazistas nesse sentido. modo de interpretar os fatos tende a ser diferente das
Uma mistura de sentimentos contraditórios, entre a pessoas sem essa deficiência.
calma e o desespero pela morte iminente. Para se compreender melhor essa relação entre
Outra referência aos campos de concentração é a o título e a história de Hanna, ficamos sabendo
avareza de comida que havia no hotel. Marius assim pelo discurso de Terezin que existiam sete judeus
descreve a situação: responsáveis por manter a história do século XX
Raffaela só trazia mais alimentos quando já não memorizada, isso porque, segundo Terezin:
havia nada: só trazia pão – três, quatro, de cada [...] os judeus não confiavam em documentos,
vez, para uns sete hóspedes presentes na sala de em papéis, em fotografias, em suma, em nenhum
refeições – quando o cesto estava completamente registro concreto, material, palpável. (p. 185)
vazio. (p. 126)
A explicação é que a História, entenda-se o
Alguns hóspedes simplesmente saiam do registro histórico, poderia ser modificada de acordo
local antes de comerem o suficiente. Mesmo assim,
com determinados interesses. Por isso, cada um desses
habituaram-se a esse regime. Certamente, nos campos
sete judeus memorizara todo o século XX e depois
isso era até mais comum, posto que objetivo era
economizar comida e fazer os prisioneiros passarem passaria a técnica a outros de modo a manter viva
fome. No caso do hotel, a prática passava pela memória judaica.
economia, mas, talvez, poderia também sugerir um Havia, espalhados pelo mundo, sete homens,
simulacro do que teria sido a vida no passado recente. sete judeus, que tinham memorizado, sem
Na Alemanha nazista, os judeus tinham que qualquer falha, toda a História do século XX.
andar com uma estrela costurada em suas roupas de Com factos, disse Terezin, com datas concretas,
modo a serem facilmente identificados. Nos campos, tentando eliminar qualquer interpretação ou
além disso, ainda era tatuada em seu braço uma julgamento. Esses sete homens – explicou Terezin
numeração. Moebius revela a Marius um segredo. – memorizaram o mesmo texto; são homens-
Levanta a camisa, vira-se de costas, onde se podia memória cuja única função – além de tentarem
ler, em letras bem pequenas e em diversas línguas, continuar vivos – é a de não esquecer um único
a palavra judeu tatuada. Passou a tatuar a palavra dado, uma única linha. Como é evidente, o que
quando judeus começaram a ser mortos. memorizaram tem a ver, directa ou indirectamente,
A princípio começara por uma espécie de orgulho com a nossa história particular, a dos Judeus.
de raça, como o próprio Moebius disse. Nas (p. 186)
semanas em que muitos tentavam ao máximo
Narra então alguns acontecimentos históricos
disfarçar a sua origem judia, Moebius, pelo
significativos, como o pacto de não agressão entre
contrário, exibia-a em todos os momentos e sítios
possíveis, e foi ele próprio que, por esses dias, Alemanha e URSS ou a invasão alemã a Polônia. Não
pediu à mulher que lhe tatuasse pela primeira vez fica claro se ele seria ou não um dos Séculos, fato é que
a palavra JUDEU. (p. 137) ele explica bem os motivos.

36
Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares
Em seguida, pergunta se Marius gostaria de E o sentido estava exatamente no fato de
conhecer um desses homens, chamado Século XX, por prosseguir a tradição familiar, mas também de colaborar
alusão a sua atividade. A ideia era ser um arquivo vivo, para fazer sentido à própria vida, já que a vida ao
mas não se expor publicamente. Terezin cita o caso de redor estava em ruínas, ele trabalhava com objetos do
um que moraria em Moscou. Como parece ter ficado passado, mas a vida presente não tinha lugar. Assim,
louco, passou a proclamar os acontecimentos do século seguir aquela tradição era manter-se ocupado, manter
a todos em praça pública. Isso seria ruim para os planos algo que o ligaria a outros seres, com a finalidade de
do projeto, por isso certamente seria eliminado. registrar o passado, a história humana.
Um dia após chegar a Berlim, Marius e Hanna A estranha numeração remetia a acontecimentos
foram até o centro da cidade, que ainda apresentava importantes, como a data do assassinato do herdeiro
diversas ruínas, levar, em um antiquário, uma peça do Império Austro-Húngaro, o arquiduque Franz
que Hanna trazia consigo e que poderia indicar sua Ferdinand, em 28 de junho de 1914, dando origem
origem e, em consequência, ajudar na localização de à Primeira Guerra Mundial, ou a chamada noite dos
seu pai. cristais, quando sinagogas foram incendiadas na
Marius fica preocupado com Hanna, que poderia Alemanha, em 9 de novembro de 1938.
se impressionar com o local, mas, a rigor é ele quem – Vê, meu caro? Tudo em ordem. Não se trata de
se sente mal, pois para chegar ao Antiquário Vitrius, fugir, de não querer saber. Trata-se de manter uma
tinham que subir uma alta escada, o que acabou direção. Uma direção individual. E só por isso
lhe causando vertigem. Simbolicamente, a subida resistimos. E por isso estou aqui. (p. 110)
e a vertigem indicam um caminho sem volta para No dia em que os dois tiveram essa conversa,
ele. Agora, não poderia mais “descer”, não poderia Hanna ficara no hotel, sob os cuidados de Raffaela.
simplesmente abandonar Hanna à própria sorte em Para surpresa de Marius, a senhora disse-lhe que um
Berlim. Outro ponto interessante é que Vitrius, o dono fotógrafo estivera ali para fotografar a menina, mas
do local, tem um porte físico, alto e com uma pequena não permitiram. Marius percebeu logo tratar-se de
barba, que faz Marius lembrar-se imediatamente da Josef Berman. Não gostou nada da ideia novamente e
figura de Dom Quixote de la Mancha, o personagem agradeceu pela iniciativa de Raffaela.
de Miguel de Cervantes, conhecido por viver em um
Outro personagem que surge nesse momento é
mundo à parte da realidade. Esse jogo entre ficção
um artista chamado Agam Josh. Ele tinha um defeito
e realidade é uma condição sine qua non para a
nos olhos. No caso eram vermelhos, o que o impedia
sobrevivência dos personagens do livro. Embora não
de ver bem. Porém, com o olho esquerdo era capaz de
se isolem do mundo real, todos apresentam um escape
enxergar com grande nitidez detalhes minúsculos. A
para algo que tem um tanto de fantasioso ou estranho.
característica lhe possibilitava produzir sua arte que
É o que se pode perceber em todos os personagens.
consistia exatamente em escrever frases minúsculas,
Hanna é claramente a que vive em um mundo
que, à distância, pareciam manchas ou algum desenho
particular, os demais têm de construir algo sólido para
qualquer.
que possam sobreviver ao tempo.
Passa a mostrar a Marius e Hanna uma de suas
Vitrius, por exemplo, além de trabalhar
obras. À primeira vista, era apenas um traço contínuo
normalmente como antiquarista, na empresa que fora
___________. Mas, depois, com o auxílio de um
do avô e passara para o pai, também tem um meio de
microscópio, Marius conseguiu ler a seguinte frase:
conferir sentido à própria vida.
“Não dirigir a palavra a nosso pó” (p. 152)
Nem sempre abre a loja, e nem tem preocupações
Em seguida, viram um ponto .
com o sucesso do empreendimento. Também não tem
horário muito definido para abrir ou fechar a loja. Novamente, com o auxílio do microscópio,
Porém, mantém uma prática por tradição familiar. percebeu tratar-se de um jardim japonês desenhado
Desde o seu bisavô, passando pelo avô e depois pelo naquele pequeno ponto.
pai, era levado a montar dossiês, tomando por base Agam trabalhara para Josef Berman uma vez e
números, relacionados a determinados momentos passa a contar uma história sobre ele, nada simpática.
históricos. Agam não tem provas sobre o que afirma e ainda faz
Folheei um maço enorme de folhas. Ali estava: um alerta, dizendo que “talvez parte disto sejam já
157668, 157670, 157672, 157674, 157676, 157678, histórias que as pessoas contam, que inventam. Não
157680 [...] sei”. Para Agam, Berman manteria uma espécie de
campo de concentração para animais, especialmente
– O que é isto? – perguntei.
cachorros, onde faria experiências as mais variadas
– Em parte é a minha salvação – disse Vitrius para poder tirar fotos variadas dos cães, expressando
a rir-se -, mas se quiser pode considerá-lo um emoções diversas.
passatempo.
A narrativa, fantasiosa ou verdadeira, leva Marius
[...] a uma reação inesperada. Já pensavam em ir embora,
O meu pai retomou a série no mesmo dia em que em deixar Berlim. A procura pelo pai de Hanna era
o meu avô morreu, explicou. infrutífera, e, a rigor, nem ocorrera efetivamente.
Depois houve um silêncio e Vitrius continuou: eu E ambos estavam no café da estação, quando viram
só retomei oito dias depois da morte do meu pai. entrar Josef Berman. Marius não pensa duas vezes.
[...] Foi mesmo a tentativa de encontrar um sentido Vai de encontro a ele, puxa-o no canto e, sem maiores
para isso. (p. 103-105) explicações, soca-o repetidas vezes, até cansar-se.

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Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares
É um desabafo violento às investidas contra Hanna, concreta. É o fim das buscas pelo pai de Hanna,
bem como a possibilidade de o fotógrafo ter de fato algo que efetivamente nem ocorreu. Ao saírem do
um campo para fazer experiências com animais, e tirar antiquário, deparam-se com uma multidão que parecia
fotos. fazer um protesto, algo assim.
O jogo entre realidade e ficção se estabelece A princípio, Marius sente medo, especialmente
novamente. Adiante o próprio Agam dirá que inventara por Hanna. Mas conforme caminham ao encontro da
as histórias nefastas sobre o fotógrafo, que a única parte passeata, Marius se sente parte integrante daquele
real era o projeto de Berman em fotografar animais, todo, sente-se bem, sente-se partícipe de algo, não
mas isso o próprio Marius já sabia desde a viagem até de um projeto individual ou particular, e sim de uma
Berlim. coletividade que luta por algo maior, luta pela melhoria
O movimento se presta a revelar de que modo a das condições sociais, ainda que não fique claro quais
ficção pode vir a ser mais forte que os fatos ao ponto de seriam.
levar Marius a agir. [...] ele sentiu pela primeira vez que podia fazer
A História também é marcada por momentos o que quisesse com as mãos, levantar uma ou
assim, em que ocorre certo histerismo coletivo por as duas, gritar, fechar o punho com raiva como
suposições; em outros, a verdade existe, mas é negada faziam muitos ao seu lado, podia fazer tudo, a
em favor de uma ideologia, caso típico foi o dos alemães partir dali, mas agora o que era preciso era gritar,
comuns que acreditavam que os judeus recebiam e não parar, em situação, não parar. (p. 235)
tratamento digno nas prisões e não acreditavam na Por fim, em momentos diferentes da narrativa,
política de extermínio proposta por Hitler. E por isso, o Marius relata dois pesadelos que teve. No primeiro,
ato de escrever a palavra judeu realizado por Moebius, ele observa, como testemunha ocular, a movimentação
ou os judeus que mantinham na memória o século de um grupo de pessoas com síndrome de Down,
XX ou ainda Vitrius que seguia a tradição familiar cavando um buraco, de onde surge uma igreja e onde,
de registar a história por uma sequência lógica de depois, são todos enterrados, até que Marius acorde.
números. No segundo pesadelo, o mesmo grupo de adolescentes
Após esse episódio, Marius e Hanna fogem com trissomia 21 estão no poço novamente, mas agora
para a casa de um historiador, que seria amigo de cercados de muitos livros, escritos em diversos idiomas.
Marius, chamado Grube. Também tinha um hábito, Conforme o pesadelo avança, ele se vê em meio aquele
um passatempo. No caso, revia corridas de 100 metros, grupo e percebe que todos são iguais, todos têm a
tanto por sua velocidade quanto por indicar uma vitória mesma condição genética. Ele mesmo passa a ter o
em um momento crucial, às vezes por uma passada a rosto arredondado: “mas eu não era como eles porque
mais, pelo tronco à frente. Eram indicativas, pois, do poderia pensar nestas coisas todas em que agora estou
curso da História, ao mesmo tempo do seu registro a pensar” (p. 182)
pelas filmagens. Os pesadelos, ao que parece, são indicativos de
Havia em sua casa muitos livros e fotografias, um dos projetos do livro, o fazer pensar diferente, o fazer
especialmente referindo-se a três acontecimentos ver a vida com outros olhos, de outro modo e aceitar
importantes: Moscou (1917), quando houve a o diferente como a um igual, sem discriminações.
revolução comunista; Jerusalém (1948), quando houve O pesadelo se transforma então em sonho, em algo
a criação do Estado de Israel e o cerco a Jerusalém projetável. Num mundo de iguais, não há porque
pelos povos muçulmanos, que não queriam os judeus haver discriminação, ou a submissão pela força.
na região; Berlim (1961), quando houve um conflito Gonçalo Tavares procura, portanto, reconstruir
envolve a parte oriental (comunista) de Berlim e a o passado imediato, cujas feridas ainda estão abertas,
parte ocidental. Moscou que Berlim Ocidental se de modo a rememorar o horror vivido, para manter
desarmasse para evitar uma guerra. a consciencialização sobre esse período nefasto da
Para Grube, esses pontos identificavam os humanidade. Não por acaso, estão os campos de
sucessivos centros de gravidade da História. concentração representados no hotel, ou as datas
Nessas datas e naquelas cidades estava o ponto significativas mantidas em código pelo antiquarista,
que concentrava todo o peso do mundo. Se alguém ou ainda a tatuagem no corpo de Moebius, ou ainda os
quisesse derrubar, pôr a História de cabeça sete judeus responsáveis pela memorização de fatos,
para baixo, era ali que teria de aplicar o golpe, ou o trabalho de Stamm e seus irmãos, sempre com o
naquele ponto preciso, no centro da gravidade. objetivo último de manter a consciência alerta contra
[...] Os poucos que se apercebiam disso no próprio situações semelhantes. São gestos que, em separado,
momento eram os que conseguiam, por isso formam um rito de dignificação da comunidade judia,
mesmo manipular a História (p. 220-221) um registro de modo a perpetuar pela linguagem a
Em outros termos, a História é um texto que se dor, o sofrimento, a perseguição, a guerra. O objetivo
escreve e o discurso história depende muito de quem último é a negação do esquecimento, um trauma que
escreve esse texto. No caso, o objetivo é reescrever precisa ser revivido na memória para não ser vivido
a história judaica, bem como entender o outro, o novamente no plano físico.
diferente, o que nem sempre é fácil. A passeata no final é indicativa da luta, do
Antes de irem embora de Berlim, Marius procura caminhar juntos, da integração entre projetos em
Vitrius para saber se descobrira algo a respeito do comum. Quanto ao pai de Hanna revelou-se antes uma
objeto de Hanna. Mas ele não tinha qualquer notícia desculpa que um projeto real.

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Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares
(C) inscrever o livro na estética surrealista, afinal
EXERCÍCIOS o livro está ligado a esse movimento artístico.
(D) mostrar que o sonho de Marius seria realizado
1. Leia o trecho do livro em seguida as afirmativas:
na realidade, no caso construir uma casa para
[...] ele sentiu pela primeira vez que podia fazer pessoas com alguma deficiência.
o que quisesse com as mãos, levantar uma ou
as duas, gritar, fechar o punho com raiva como
faziam muitos ao seu lado, podia fazer tudo, a 5. Leia as seguintes afirmações:
partir dali, mas agora o que era preciso era gritar, I.  O livro alterna o tipo de narração, ora em
e não parar, em situação, não parar. (p. 235) primeira pessoa ora em terceira.
I. O trecho é uma referência ao momento em que II. O livro tem sequência tradicional, com meio,
Marius encontra o pai de Hanna e fica feliz. meio e fim e narrativa expressa claramente.
II. O trecho se refere ao final do livro, quando III. Os principais personagens lidam com algum
Marius segue uma multidão e percebe que se tipo de perda.
encontrara. IV. No final do livro, Hanna consegue encontrar
III. O trecho se refere a um momento em que seu pai, graças à ajuda de Marius.
primeiro Marius sentiu certo temor, e depois Está correto o que se afirma em:
percebeu que era um movimento de que
(A) apenas I e III
queria fazer parte.
(B) apenas II e III
Está correto o que se afirma apenas em:
(C) apenas II
(A) I e II
(D) apenas I e IV
(B) II
(C) III
(D) II e III
(E) I

2. O livro tem como objetivo principal:


(A) revelar o sucesso de Marius em ter localizado
o pai de Hanna em Berlim.
(B) mostrar como os judeus ficaram perdidos
devido à Segunda Guerra Mundial.
(C) revelar como as pessoas buscam, por meio de
algumas atitudes, dar sentido à própria vida.
(D) buscar a cura para a Síndrome de Down.
(E) fazer um retrato no modo de agir dos nazistas.

3. Por que Marius decide ajudar Hanna?


(A) a razão não fica muito clara no livro, mas
parece que sua vida era sem muito sentido.
(B) porque ele participava de uma ONG que
procurava ajudar crianças desaparecidas.
(C) porque ele também tinha de ir até a Alemanha
e resolveu acompanhá-la.
(D) ele queria colaborar com todas as pessoas
inocentes que tiveram prejuízo devido à
guerra.

4. Qual o significado dos sonhos relatados por


Marius?
(A) nenhum, apenas o de mostrar na narrativa um
pouco de non sense.
(B) é um modo de expressar um dos objetivos do
livro, a necessidade de integrar pessoas com gABARITO
deficiência à sociedade. 1.D 2.C 3.A 4.B 5.A

39
Anotações

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O Ateneu
de Raul Pompeia

O Ateneu, de Raul Pompeia, é um dos livros mais Segundo a frase de abertura de O Ateneu e
singulares da literatura brasileira. Singular porque seguindo o programa do realismo a ideia era revelar
está inserido em um período literário bem delimitado, a realidade, era compreender o mundo para além do
o realismo-naturalista, mas, apesar disso, não se idealismo doméstico:
enquadra totalmente nessa escola, embora também “Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à
seja possível verificar vários aspectos dessa escola no porta do Ateneu. Coragem para a luta.” Bastante
romance, conforme iremos demonstrar. experimentei depois a verdade deste aviso, que
O livro foi publicado em 1888 e tem como objetivo me despia, num gesto, das ilusões de criança
educada exoticamente na estufa de carinho que é
resgatar a trajetória do narrador especificamente no
o regime do amor doméstico [...]
período em que estudou no colégio interno homônimo
do título do livro. Encontrar o mundo significa aqui compreender
a luta entre os seres, discutindo, na esteira darwinista,
A intenção do narrador parece ter sido a de a proeminência dos mais fortes sobre os mais fracos, a
purgar uma culpa que não poderia ser atribuída de influência do meio social sobre as ações individuais,
fato a ele, mas que carregou ao longo do tempo. O o que o também colocaria no rol dos romances
narrador já é adulto e precisa passar a limpo o processo naturalistas.
de formação intecto-afetiva, bem como os traumas que Outros aspectos que podem ser percebidos no
sofreu o menino Sérgio. É o retorno à infância, não livro é a exploração das chamadas belas letras, das
como no caso do poeta romântico Casimiro de Abreu belas artes. Isso porque o livro não tem uma única
(famoso por seu poema “Meus oito anos”), e sim como classificação. No período, ainda predominava a
aquele período que forja o adulto, que o capacita ou o estética parnasiana, cujo foco era propriamente o da
traumatiza. No caso do narrador de Ateneu, podemos defesa do ideal de beleza. Com isso, há no livro uma
dizer que as duas possibilidades se fazem presentes. mistura de estilos literárias, com leve predominância
Por ironia, o livro tem o subtítulo de Crônica para o impressionismo, tendo em vista que o
da saudade. O termo saudade, em princípio, parece narrador expressa suas impressões sobre os diversos
referir-se a um sentimento positivo. No entanto, personagens, sobre o colégio e, particularmente, sobre
excluindo alguns momentos bons no colégio, algumas o diretor, Aristarco Argolo de Ramos, que exercia o
poder supremo sobre os demais.
amizades, ainda que superficiais, não há na narrativa
elementos que efetivamente indicariam uma saudade A frase de abertura do romance revela ainda a
salutar. Em rigor, são antes certos traumas e algumas estrutura de poder que o Brasil ainda conhecia em
experiências não sempre positivas que tiveram o 1888, a monarquia, cujo chefe maior era o Imperador.
menino no início de sua adolescência. Observe que é o Apesar de certos laivos de democracia, devido à
possibilidade de se elegerem deputados e senadores,
narrador que procura deixar a ambiguidade do termo
quem detinha o poder era o imperador D. Pedro II.
saudade explícita: No caso do colégio, quem exercia esse poder era o
Saudades verdadeiramente? Puras recordações, diretor, o “Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida
saudades talvez se ponderarmos que o tempo é a família do Visconde de Ramos, do Norte, [que] enchia
ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo – o o império com o seu renome de pedagogo”.
funeral para sempre das horas. Com efeito, no primeiro capítulo, o narrador
O livro, que fora publicado inicialmente no expressa suas primeiras impressões a respeito do
formato folhetim no início de 1888, se inicia com uma colégio, notadamente de Aristarco. As impressões do
frase sintética: “Vais encontrar o mundo, disse-me meu menino Sérgio começam pelo próprio colégio, visto
pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.” Esse como um personagem, não apenas como o local onde
encontro com o mundo, ainda que tenha um sentido se passa a história:
metafórico, também é indicativo de que o universo Ateneu era o grande colégio da época. Afamado
narrativo do livro se restringe à vida no colégio. Além por um sistema de nutrido reclame, mantido por
disso, o narrador procura captar os diversos dramas um diretor que de tempos a tempos reformava
vividos por estudantes, mas que podem ocorrer na o estabelecimento, pintando-o jeitosamente de
vida extramuros, como a busca pelo poder, a luta pela novidade, como os negociantes que liquidam
sobrevivência, os conflitos amorosos, os sentimentos para recomeçar com artigos de última remessa;
o Ateneu desde muito tinha consolidado crédito
baixos, os encontros e desencontros entre indivíduos
na preferência dos pais, sem levar em conta a
diversos, a loucura manifestada etc. simpatia da meninada, a cercar de aclamações o
O Ateneu é, praticamente, o único que escreveu bombo vistoso dos anúncios.
Raul Pompeia. Ao menos o que é lido ainda hoje. De Ser aluno do Ateneu representava um status.
qualquer modo, a título de curiosidade, citemos outros Assim como pode ocorrer em qualquer cidade, sempre
livros do autor: há um colégio que se torna referência à sociedade de
 Uma Tragédia no Amazonas, 1880 modo geral. No caso de o Ateneu, tal fama parecia
 A Queda do Governo, 1880 ocorrer por dois motivos: pelo método e pelos
 Canções sem Metro, 1881 professores afamados.
41
O Ateneu, de Raul Pompeia
Sérgio, de início, analisa o ambiente em que Sérgio, ao longo da narrativa, aponta, porém, as
vai estudar, para depois se concentrar nas aulas, espe- contradições das atitudes do diretor, que é implacável
cialmente as de artes ou de literatura que certamente com alguns alunos, e menos com outros, sobretudo
tornaria qualquer estudante médio um grande conhe- quando filhos de famílias mais ricas ou influentes.
cedor do universo literário, para em seguida descrever Reforçando essa visão monarquista com que
os professores e demais colegas. Aristarco é descrito, no aludido evento de encerramento
Os companheiros de classe eram cerca de vinte; do ano letivo, houve o beija-mão na princesa, porém,
uma variedade de tipos que me divertia. O para a tristeza de Aristarco, seu filho se revelou
Gualtério, miúdo, redondo de costas, cabelos republicano:
revoltos, motilidade brusca e caretas de símio Uma coisa o entristeceu, um pequenino
– palhaço dos outros, como dizia o professor; o
escândalo. Seu filho Jorge, na distribuição dos
Nascimento, o bicanca, alongado por um modelo
prêmios, recusara-se a beijar a mão da princesa,
geral de pelicano, nariz esbelto, curvo e largo como
como faziam todos ao receber a medalha. Era
uma foice; o Álvares, moreno, cenho carregado,
republicano o pirralho! Tinha já aos quinze anos
cabeleira espessa e intonsa de vate de taverna,
as convicções ossificadas na espinha inflexível
violento e estúpido, que Mânlio atormentava,
do caráter! Ninguém mostrou perceber a bravura.
designando-o para o mister das plataformas de
Aristarco, porém, chamou o menino à parte.
bonde, com a chapa numerada dos recebedores,
mais leve de carregar que a responsabilidade Encarou-o silenciosamente e – nada mais. E
dos estudos; o Almeidinha, claro, translúcido, ninguém mais viu o republicano! Consumira-se
rosto de menina, faces de um rosa doentio, que se naturalmente o infeliz, cremado ao fogo daquele
levantava para ir à pedra com um vagar lânguido olhar! Nesse momento as bandas tocavam o hino
de convalescente; o Maurílio, nervoso, insofrido, da monarquia jurada, última verba do programa.
fortíssimo em tabuada: cinco vezes três, vezes Feitas as considerações iniciais, Sérgio passa a
dois, noves fora, vezes sete?... tratar sobre a vida que levaria no colégio. Essa vida
Como se pode observar, alguns comentários são deveria ser nova e diferente da que tivera até então,
um tanto irônicos, bem como revelam um olhar não longe do convívio familiar, longe da segurança do lar,
muito simpático aos colegas, destacando o que teriam para que assim, conforme seu pai adiantou, entrasse
de negativo. na luta que era a vida. Essa passagem é marcada por
um acontecimento que fica entre a ordem com tom
Quanto ao diretor, Sérgio destaca que era tido
militar e uma lembrança do carinho materno.
como incorruptível, justo e grande educador. Segundo
as palavras de Venâncio, professor do colégio, por – Pois, meu caro Sr. Sérgio, o amigo há de ter a
ocasião de festa de encerramento do ano letivo, a bondade de ir ao cabeleireiro deitar fora estes
que Sérgio, antes de ser efetivamente matriculado, cachinhos... Eu tinha ainda os cabelos compridos,
e compareceu ao lado de seu pai, Aristarco estaria por um capricho amoroso de minha mãe. O
apenas abaixo de Deus na terra, por seu papel de conselho era visivelmente salgado de censura. O
mestre, cujo papel seria o de preparar a todos “para a diretor, explicando a meu pai, acrescentou com
segurança íntima inapreciável da vontade”, por alusão o risinho nasal que sabia fazer: “Sim, senhor,
à filosofia de Friedrich W. Nietzsche. os meninos bonitos não provam bem no meu
Tal discurso alude ao fato de que Aristarco, por colégio...”
estar abaixo tão somente de Deus, no colégio estaria – Peço licença para defender os meninos bonitos...
acima do próprio Imperador, ao menos de acordo com a objetou alguém entrando.
metáfora do professor Venâncio. Com efeito, no colégio Surpreendendo-nos com esta frase, untuosamente
era Aristarco quem ditava as ordens, as regras. Exercia escoada por um sorriso, chegou a senhora
ao mesmo tempo os poderes legislativo, judiciário do diretor, D. Ema. Bela mulher em plena
e executivo. Era quem fazia as leis e as aplicava. prosperidade dos trinta anos de Balzac, [...]. Esta
Ora, importante lembrar que o sistema educacional aparição maravilhou-me. Houve as apresentações
brasileiro do Império não era como o de hoje, em que de cerimônia, e a senhora com um nadinha de
se verifica uma progressão, um estágio de educação excessivo desembaraço sentou-se no divã perto de
básica ao nível superior. O próprio Sérgio relata que mim.
até os onze anos estudara com educadores que iam até
sua casa. Antes era preciso aprender o conteúdo e não – Quantos anos tem? perguntou-me.
tanto estar nessa ou naquela série ou ano, além disso a – Onze anos...
regulação não era ainda tão detalhada, como veio a se Em outros temos, Sérgio tem de abandonar a vida
verificar a partir da década de 30. doméstica, a inocência da vida infantil para assumir
Tal poder conferido a Aristarco, apesar de novo papel naquela sociedade escolar, que, por sua
admiração, também despertava ódio, por nem sempre vez, seria espelho da sociedade como um todo, ainda
atender a uma pedagogia mais voltada para a formação que com suas pertinentes particularidades. Era, pois,
integral do ser. O que lhe importava era repassar o um microcosmo social, cujo papel Sérgio ainda não
conteúdo e manter os alunos sob uma rígida disciplina. sabia qual assumir, ainda não sabia como deveria agir.

42
O Ateneu, de Raul Pompeia
Quando meu pai saiu, vieram-me lágrimas, que Esse acontecimento aproximou os dois, que
eu tolhi a tempo de ser forte. Subi ao salão azul, passaram a estudar juntos e também a ficar mais
dormitório dos médios, onde estava a minha cama; tempo juntos. Apesar disso, Sérgio sempre via Sanches
mudei de roupa, levei a farda ao número 54 do com certa repugnância, porque percebia nele não uma
depósito geral, meu número. Não tive coragem de amizade sincera.
afrontar o recreio. Via de longe os colegas, poucos Uma característica naturalista presente no
àquela hora, passeando em grupos, conversando livro é explorar desvios de conduta moral ou estados
amigavelmente, sem animação, impressionados
doentios. Embora hoje tenhamos uma percepção
ainda pelas recordações de casa; hesitava em ir
diferente, à época a homossexualidade era vista como
ter com eles, embaraçado da estreia das calças
uma patologia, como algo anormal. Diversos outros
longas, como um exagero cômico, e da sensação
romances naturalistas vão explorar tal “anormalidade”,
de nudez à nuca, que o corte recente dos cabelos
como O cortiço, de Aluísio Azevedo, ou O Bom-crioulo,
desabrigara em escândalo.
de Adolfo Caminha. Sérgio parece ceder por interesse
Se o colégio é meio para se “encontrar o mundo”, a um carinho mais sutil do amigo, porém, quando
Sérgio entende logo a necessidade de aliados, de outros percebe nele uma intenção mais explícita, afasta-se.
alunos que possam ajudá-lo nessa empreitada. O olhar Apesar disso, o caso não se deu por uma repugnância
é sempre parcial, ainda que com distanciamento do
ao ato em si, e sim por não considerar Sanches um
tempo, afinal é então o adulto Sérgio quem filtra a
“amigo” efetivo. Essa perspectiva vai ser repetida
percepção do menino, ainda incapaz de entender muito
diversas vezes, sempre em tom comparativo com
do que se passava com ele, e interpreta o modo de
outros rapazes com quem Sérgio teve uma amizade
olhar, interpreta aquilo que ainda era incompreensível
mais efusiva. A homossexualidade dos meninos, em
à época.
O Ateneu, parece ser mais como meio de escapar de
O Professor Mânlio, a quem eu fora recomendado, uma carência afetiva ou meio de se autoprotegerem
recomendou-me por sua vez ao mais sério dos que propriamente uma pendência deliberada. Nesse
seus discípulos, o honrado Rebelo. Rebelo era o sentido, a “anormalidade” como diriam os naturalistas
mais velho e tinha óculos escuros como
teria uma razão de ser nesse ambiente de constante
João Numa. Fui também recomendado ao luta pela “sobrevivência”.
Sanches.
Sempre desconfiado e receoso dos outros, o meu
Sérgio destaca três amizades em especial que companheiro era quase exclusivamente Sanches.
fez no colégio durante os dois anos em que estudou Sempre juntos eu e ele. Sabia-se no Ateneu que
no Ateneu. A primeira dessas amizades começou de ele era meu explicador, supunham até que pago.
modo um tanto estranho. Foi logo nos primeiros dias Não causavam estranheza as nossas relações.
do ano letivo. Era o dia da natação, Sérgio relata Contudo Sanches, como os mal-intencionados,
que, por essa ocasião, os meninos menores ficavam fugia dos lugares concorridos. Gostava de vaguear
apartados dos maiores exatamente para evitar comigo, à noite, antes da ceia, cruzando cem vezes
acidentes e brincadeiras não condizentes com a idade
o pátio de pouca luz, cingindo-me nervosamente,
de cada um. Estava temeroso, pois era a primeira vez
estreitamente até levantar-me do chão.
que teria essa aula ou recreação. Em certo momento,
sentiu que o puxavam para baixo d’água, ao mesmo Sérgio é um típico exemplo de que a
tempo que percebeu uma mão salvadora. Era a mão homossexualidade não seria inerente ao seu desejo,
de Sanches, que prontamente ofereceu amizade e ao seu modo de ser. Embora ela vá se manifestar
proteção a Sérgio, dizendo-lhe que o colégio tinha implicitamente nas outras duas próximas amizades
uma série de “perversos”. Sérgio desde a primeira vez mais íntimas, com Sanches restou uma ambiguidade,
que viu Sanches o achou estranho, antipático. Porém, interrompida com um gesto mais ousado do outro. Com
percebeu a necessidade mesmo de uma aproximação efeito, a amizade entre os dois durou até o momento
com alguém maior. Mais adiante, teve fortes razões em que Sanches tentou uma aproximação mais íntima
para crer que fora ele próprio que o havia puxado para com Sérgio, que a repeliu imediatamente. Sanches
baixo da água e depois se apresentar como o salvador. praticamente desaparece da narrativa, sendo lembrado
Levei algum tempo para me inteirar do que vez ou outra sempre com desprezo e repugnância.
ocorrera. Esfreguei por fim os olhos e verifiquei Estimulado pelo abandono, que lhe parecia
que o Sanches me tinha salvo. “Ia afogar-se!” assentimento tácito, Sanches precipitou um
disse ele, amparando-me a cabeça enquanto me desenlace. Por uma tarde de aguaceiro errávamos
desempastava os cabelos de cima dos olhos. Meio pelo saguão das bacias, escuro, úmido, recendendo
aturdido ainda, contei-lhe efusivamente o que me ao cheiro das toalhas mofadas e dos ingredientes
haviam feito. [...] Mas a consequência imediata dentifrícios, solidão favorável, multiplicada
do fato foi que forcei a repugnância que o Sanches pelos obstáculos à vista que ofereciam enormes
me causava e me fiz todo gratidão para com ele pilares quadrados em ordem a sustentar o
e intima amizade. Curiosa e acidentada tinha de edifício, — quando, sem transição, o companheiro
ser essa minha aventura de apego e confiança. chegou-me a boca ao rosto e falou baixinho.
43
O Ateneu, de Raul Pompeia
Só a voz, o simples som covarde da voz, rastejante, E mais adiante:
colante, como se fosse cada sílaba uma lesma, Li a Nova floresta, de Bernardes. O reverendíssimo
horripilou-me, feito o contato de um suplício autor veio retocar a obra do Barreto, com as suas
imundo. Fingi não ter ouvido; mas houve narrativas de iluminado terrifico. Comecei a achar
intimamente a explosão de todo o meu asco por a religião de insuportável melancolia. Morte certa,
semelhante indivíduo e muito calmo, desviando hora incerta, inferno para sempre, juízo rigoroso;
apenas a vista, pretextei a falta de um lenço, que nada mais negro!
me endefluxara a friagem e... fui buscá-lo. A Nova Floresta (1706) é um livro do padre
Após a experiência, Sérgio passa a frequentar Manuel Bernardes, do período barroco (século XVIII),
algumas aulas de Aristarco, que tratavam a respeito em que discorre sobre preceitos morais diversos, com
da astronomia. Sérgio destaca, a despeito do ar de base em histórias variadas.
superioridade, a inteligência e a habilidade didática De tudo o que Barreto e Sérgio conversaram, um
do diretor, que realmente entendia sobre o que estava assunto se sobrepunha, a influência negativa que pode
falando. Talvez pela proximidade temática, por ambas exercer uma mulher sobre as vontades masculinas.
falarem sobre além do planeta, além do visível, Sérgio Tais elucubrações se confirmam em um episódio
passa a viver um momento mais espiritualizado, importante do Ateneu, confirmando que o colégio
buscando uma comunicação com o sagrado, talvez de interno é espaço para se ter uma compreensão ampla
modo a purgar qualquer culpa que possa ter tido no da vida, da realidade.
episódio envolvendo Sanches.
Havia pouquíssimas mulheres no colégio. Em
A astronomia, como os céus do salmo, levou- particular duas. Ema, esposa de Aristarco, e Ângela,
me à contemplação. O mal na terra, descrito uma empregada espanhola do colégio. Apesar do
pelo Sanches com uma perícia de conhecedor nome, por referência a anjo, ela tinha uma sensualidade
e praticante, tomou vulto no seio das minhas lasciva e despertava desejo em muitos.
cogitações. A incredulidade primeira acabou Ângela tinha cerca de vinte anos; parecia mais
em meu espírito, reconhecendo o descalabro velha pelo desenvolvimento das proporções.
deste vale de lágrimas em que vivemos. Ao Grande, carnuda, sanguínea e fogosa, era
tempo que devia consagrar à minha reabilitação um desses exemplares excessivos do sexo que
nos estudos, pus-me a estudar, como Inácio de parecem conformados expressamente para
Loiola, talvez na mesma idade, a reabilitação do esposas da multidão — protestos revolucionários
mundo. Encarnei o pecado na figura de Sanches contra o monopólio do tálamo.
[...] No recreio, andava só e calado como um
Aqui, poderíamos citar um conhecido poema
monge. Depois do Sanches não me aproximava
de Gregório de Matos em que ele fala exatamente o
de nenhum colega, senão incidentemente, por
seguinte:
palavras indispensáveis. Rebelo tentou atrair-me;
eu desviava. Sanches, rancoroso, perseguia-me Mas vejo, que tão bela e tão galharda,
como um demônio. Dizia coisas imundas. Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Saliente-se que não era propriamente uma Sois Anjo, Que me tenta, e não me guarda.
devoção fervorosa, algo que levaria Sérgio a uma No caso da Ângela do colégio, no episódio em
religiosidade que ele jamais tivera. Quando muito, um questão, ocorre um crime. Um jardineiro ataca um
surto contemplativo e de recolhimento para entender- criado da casa de Aristarco com uma faca e o mata. E
se melhor e entender o que se passara. isso se dá exatamente porque havia uma disputa entre
Em rigor, o fim do século XIX foi marcado por os dois para saber quem ficaria com a moça.
uma crise religiosa, devido às ideias positivistas, que O homem da faca era um dos jardineiros do Ateneu.
pregavam, entre outras coisas, a proeminência da Durante o jantar enfrentara-se de razões com um
matéria sobre a metafísica. O ser humano deveria criado da casa de Aristarco e o matara. Havia
antes se ocupar da matéria que do espírito, que seria algum tempo que disputavam os dois a primazia
uma fantasia, não realidade perene. no coração de Ângela uma terrível pendência. O
Talvez por isso mesmo, Sérgio, por um breve criado de Aristarco julgava-se na legítima posse
período, acabou por se dedicar à prédica religiosa, desse escrínio de afetos, pela convivência ao lado
que, em rigor, considerava muito mais traumática pelo da bela, consorciados maritalmente na intimidade
que exigia de penitências, de abnegação, além do dos alguidares, onde as mãos se confundiam como
discurso de culpa que carregava, que algo que poderia as louças ou na sociedade afetuosa do serviço dos
devolver-lhe o equilíbrio, o sentimento de harmonia aposentos do diretor e da senhora, permutando
em relação aos próprios desejos e aspirações. entre si dichotes açucarados, à flagelação dos
tapetes.
Iniciara-me Sanches no Mal; Barreto instruiu-
Na fuga, porém, o jardineiro é pego por Bento
me na Punição. Abria a boca e mostrava uma
Alves, bibliotecário do grêmio do colégio. Bento será a
caldeira do inferno; as palavras eram chamas; ao
segunda amizade íntima de Sérgio. Como da primeira
calor daquelas práticas, as culpas ardiam como
vez, trata-se de um relacionamento de amizade um
sardinhas em frege.

44
O Ateneu, de Raul Pompeia
tanto ambíguo, pois há uma sexualidade latente de energia é nulo, e o sentimento vive de descanso
entre os rapazes que, mesmo não sendo efetivamente e de sono. Do Egbert, fui amigo. Sem mais razões,
homossexuais conforme já explicado, acabam por ter que a simpatia não se argumenta.
uma intimidade para além da simples amizade. Sérgio Trata-se de outra amizade que, como as outras
repelira Sanches por esse motivo, mas a proximidade duas, beira à ambiguidade, reforçada pelas leituras
com Bento Alves sugere algo mais profundo. em comum, especialmente pelo livro intitulado Paul
Na biblioteca, Bento Alves escolhia-me as obras: et Virginie, de Bernadin de Saint-Pierre, um romance
imaginava as que me podiam interessar; e publicado em 1788 e que relata a história de amizade e
propunha a compra, ou as comprava e oferecia de amor entre o casal de adolescentes.
ao Grêmio, para dispensar-se de mas dar A pastoral de Bernardin de Saint-Pierre foi
diretamente. No recreio não andávamos juntos; principalmente o nosso enlevo. Parecia-nos ter o
mas eu via de longe o amigo, atento, seguindo- poema no coração. A baia do Túmulo, de águas
me o seu olhar como um cão de guarda. Soube profundas e sombrias, festejada apenas algumas
depois que ameaçava torcer o pescoço a quem horas pelo sol a prumo, em suave tristeza sempre;
pensasse apenas em me ofender; seu irmão ao longe, por uma bocaina, a fachada, à vista,
adotivo! Confirmava. branca, da igreja rústica de Pamplemousses.
Essa amizade intensa no início, aos poucos esfria Porém, como as duas amizades anteriores, essa
após certo tempo. Bento Alves, sentindo-se traído por também se esvai ante o prosaísmo da rotina. Não por
Sérgio, não por se envolver com outro aluno, e sim acaso, o adolescente Sérgio passa a nutrir por Ema
porque este se cansara de sua amizade e abandona aos um amor platônico, vendo nela tanto o apelo sexual,
poucos as visitas à biblioteca e, consequentemente, ao
bem como a proteção e o carinho maternos. O próprio
próprio Bento Alves, briga com Sérgio com quem acaba
nome Ema é um anagrama de mãe, sugerindo, pois,
por se envolver em uma luta corporal. Como resultado,
essa leitura. Com efeito, tem-se nova ambiguidade nos
Bento é forçado pelo diretor a sair do colégio. Sérgio,
sentimentos do menino pela mulher.
imaginando que sofreria uma punição semelhante,
percebe que Aristarco, como de resto já acontecera em Quando no dia do jantar subi para o dormitório
outros episódios, nem sempre é tão exemplar assim. Ao com o Egbert, dançava-me no espírito, reduzida
que parece, seria custoso ao Ateneu perder dois ou três a miniatura, a imagem de Ema (era agradável
alunos de uma vez. suprimir o D.), pequenina como uma abelha de
ouro, vibrante e incerta. Sonhei: ela sentada na
Esperei um dia, dois dias, três: o castigo não veio.
cama, eu no verniz do chão, de joelhos. Mostrava-
Soube que Bento Alves despedira-se do Ateneu na
me a mão, recortada em paro jaspe, unhas de
mesma tarde do extraordinário desvario. Acreditei
rosa, como pétalas incrustadas. Eu fazia esforços
algum tempo que a minha impunidade era um
para colher a mão e beijar, a mão fugia; chegava-
caso especial do afamado sistema das punições
se um pouco, escapava para mais alto; baixava de
morais e que Aristarco delegara ao abutre da
novo, fugia mais longe ainda, para o teto, para o
minha consciência o encargo da sua justiça e
céu, e eu a via inatingível na altura, clara, aberta
desafronta. Hoje penso diversamente: não valia a
pena perder de uma vez dois pagadores prontos, só como um astro.
pela futilidade de uma ocorrência, desagradável, Ápice dessa paixão platônica ocorreu quando
não se duvida, mas sem testemunhas. Sérgio, doente, passou a ser tratado na casa de
A terceira amizade mais íntima de Sérgio ocorre Aristarco, especialmente sob os cuidados de Ema.
no segundo ano de estudo. De início, parece ser uma Quando então sentiu e imaginou toda a docilidade de
amizade totalmente desinteressada, a qual começara Ema, bem como uma sensualidade inocente.
porque passou a se sentar, na sala de aula, ao lado de Outro aspecto a se destacar do livro são as
um novo aluno, no caso Egbert. considerações em torno das diversas referências a
Nesse sentido, podemos dizer que a narrativa se livros da época, aos conceitos que eram efetivamente
apresenta como uma espécie de educação sentimental tratados pela Academia, pelos professores em sala de
do Sérgio, algo a que qualquer um de nós pode passar, aula. Alguns desses conceitos já foram revistos, ainda
no sentido de que, aos poucos, vamos formando nosso assim sempre é digno de nota compreender como eram
círculo de amizades, estabelecemos nossas afinidades pensados diversos assuntos: a biologia, a cultura como
eletivas e nos constituímos como ser. um todo, a literatura, a ciência etc.
A convivência do Sanches fora apenas como o O Dr. Cláudio encetou uma série de preleções
aperfeiçoamento aglutinante de um sinapismo, aos sábados, à imitação das que fazia às quintas
intolerável e colado, espécie de escravidão Aristarco sobre lugares-comuns de moralidade.
preguiçosa da inexperiência e do temor; a amizade Filosofia, ciência, literatura, economia política,
de Bento Alves fora verdadeira, mas do meu lado pedagogia, biografia, até mesmo política e
havia apenas gratidão, preito à força, comodidade higiene, tudo era assunto; interessantíssimas, sem
da sujeição voluntária, vaidade feminina de pesadas minuciosidades. Depois da astronomia
dominar pela fraqueza, todos os elementos de do diretor, nenhuma curiosidade me valera tão
uma forma passiva de afeto, em que o dispêndio bons minutos de atenção.

45
O Ateneu, de Raul Pompeia
Conforme já se afirmou, O Ateneu é um livro
de difícil classificação. Já foi visto como realista, EXERCÍCIOS
expressionista, impressionista, simbolista e também
como naturalista. Seguindo essa última acepção, com 1. (PUC-RS) Leia o trecho a seguir, no contexto da
efeito podemos vislumbrar várias características dessa obra O Ateneu, de Raul Pompéia, e as afirmativas.
escola no livro, especialmente os sentidos sexuais “Mal tinha eu entrado, senti que duas mãos, no
aflorados, o ambiente coletivo, algumas patologias. fundo, prendiam-me o tornozelo, o joelho. A um
E como bom romance naturalista, ao menos em uma impulso violento caí de costas; a água abafou-me
das classificações possíveis, há que se punir o vilão os gritos, cobriu-me a vista. Senti-me arrastado.
da história, no caso o próprio colégio. Por esse motivo, Num desespero de asfixia, pensei morrer. Sem
em período de férias, o colégio sofre um incêndio saber nadar, vi-me abandonado em ponto perigoso;
criminoso. Américo, um novo estudante, filho de um e bracejava, à toa, imerso a desfalecer, quando
fazendeiro e que não queria estudar ali, para evitar alguém me amparou. Um grande tomou-me ao
que continuasse internado, resolve pôr fogo na escola. ombro e me depôs à borda, estendido, vomitando
Informaram-me de coisas extraordinárias. O água. Levei algum tempo para me inteirar do que
incêndio fora propositalmente lançado pelo ocorrera. Esfreguei por fim os olhos e verifiquei
Américo, que para isso rompera o encanamento que o Sanches me tinha salvo. “Ia afogar-se!”
do gás no saguão das bacias. Desaparecera disse ele, amparando-me a cabeça enquanto me
depois do atentado. desempastava os cabelos de cima dos olhos. Meio
Por fim, lembremos que o livro fora publicado aturdido ainda, contei-lhe efusivamente o que me
originalmente no formato folhetim, antes de ser haviam feito. “Perversos!” observou-me o colega
publicado em livro. Por isso mesmo, o livro se com pena, e atribuiu a brutalidade a qualquer
apresenta como uma coletânea de episódios. Embora peste que fugira no atropelo dos nadadores,
conectados, têm certa independência, pois isso era desvelando-se em solicitudes por tranquilizar-me.
uma característica do folhetim, publicado capítulo Tive depois motivo para crer que o perverso e a
a capítulo uma ou duas vezes por semana, o que peste fora-o ele próprio, na intenção de fazer valer
demandava do autor certo cuidado para manter o um bom serviço”.
interesse dos leitores. Algo semelhante na atualidade I. A violência recorrente num ambiente de
são as séries televisivas, produzidas respeitando-se a confinamento mostra ao personagem principal
ideia de que cada episódio encerra um acontecimento a lógica da dominação dos mais fracos pelos
completo. Ou seja, Raul Pompeia poderia ter escrito mais fortes.
mais episódios conforme lhe fosse conveniente, mas
parece ter se cansado e encerra o livro com o incêndio, II. 
A expressão “fazer valer um bom serviço”
provocado por, Américo. Não avança mais no assunto, explicita o trabalho duplo de Sanches:
mas certamente o colégio deve ter continuado suas apresentar um suposto perigo e ao mesmo
atividades após o episódio. Fato é que são relatados tempo oferecer proteção ao aluno novato.
apenas dois anos de estudo de Sérgio. III. O incêndio que devastaria o colégio Ateneu,
A narrativa da saudade se encerra, pois, com provocado pelo personagem principal do
ironia e sem saudade efetiva, e ainda fazendo uma romance, é um último ato de violência, que
descrição final de Aristarco, que expressava um sentido dá fim à obra de Raul Pompéia.
de frustração ddo diretor, pelas perdas financeiras e de IV. Com teor memorialista, a obra O Ateneu, uma
sua obra. crônica de saudades, traz um narrador em
Ele, como um deus caipora, triste, sobre o desastre primeira pessoa do singular, chamado Franco.
universal de sua obra. As afirmativas corretas são, apenas,
Apesar do vocabulário um tanto complexo para (A) I e II.
o jovem leitor do século XXI, O Ateneu é um livro (B) I e III.
importante. Lido sob olhar criterioso certamente
colabora para o desenvolvimento da percepção. (C) III e IV.
Mais do que leitura obrigatória para vestibulares, o (D) I, II e IV.
livro, inscrito entre os principais de toda a literatura (E) II, III e IV.
brasileira, deve ser obrigatório para ajudar qualquer
indivíduo a compreender melhor o que significa o
processo de construção do ser. 2. (FEI) O foco narrativo de O Ateneu está:
(A) na terceira pessoa do singular.
(B) na terceira pessoa do plural.
(C) na primeira pessoa do singular.
(D) na primeira pessoa do plural.
(E) na segunda pessoa do singular.

46
O Ateneu, de Raul Pompeia
3. (FEI) É possível afirmar que o protagonista: (C) Lendo esta descrição você considera que o
(A) rememora os bons tempos da vida. narrador compartilha dos mesmos sentimentos
de Aristarco? Justifique.
(B) despreza a razão dos outros companheiros de
classe.
(C) é irônico ao contar a história de seus colegas
de classe.
(D) conclui que é impossível compreender sua
vida a partir da narração da mesma.
7. (PUC-Camp) [...] não havia família de dinheiro,
(E) debruça-se sobre o passado com olhar crítico. enriquecida pela setentrional borracha ou
pela charqueada do sul, que não reputasse
4. (FEI) Depreende-se do livro que o narrador, no um compromisso de honra com a posteridade
colégio, teve uma infância: doméstica mandar dentre seus jovens um, dois,
três representantes abeberar-se à fonte espiritual
(A) distante do convívio familiar.
do Ateneu. (Raul Pompéia. O Ateneu)
(B) feliz pela ausência da mãe.
Sugere-se, nesse trecho, que o colégio Ateneu
(C) sufocada pelo ritmo de trabalho dos pais.
(A) servia diligentemente à comunidade local
(D) superprotegida pela atenção dispensada pelos
e cultivava nos alunos valores de alta
pais.
espiritualidade.
(E) ameaçada pelo amor doméstico em regime
autoritário. (B) era bastante prestigiado e correspondia aos
planos que uma elite econômica traçava para
seus filhos.
5. (FUVEST) Assinalar a afirmação correta a respeito
(C) tinha fama de disciplinador, e a ele recorriam
de O Ateneu, romance de Raul Pompéia.
as famílias abastadas para que se punisse a
(A) Romance de formação que avalia a experiência rebeldia dos jovens.
colegial, por meio de Sérgio, alter ego do autor.
(D) primava pela firme orientação religiosa, razão
(B) Romance romântico que explora as relações
pela qual pais modestos se sacrificavam para a
pessoais de adolescentes no colégio, acenando
ele enviar os filhos.
para o homossexualismo latente.
(C) Romance naturalista que retrata a tirania do (E) adotava uma revolucionária pedagogia
diretor do colégio e o maternalismo de sua moderna, afastando-se dos princípios de uma
mulher para com os alunos. educação mais tradicional.
(D) Romance realista que apresenta um padrão
de excelência da escola brasileira do final do 8. (ITA) Dos comentários que se fazem de “O
império. ATENEU” assinale o falso:
(E) Romance da escola do Brasil no final do (A) misto de ficção e memória, pendente
império, cuja falência vem assinalada pelo entre diário e romance, gira em torno das
incêndio do prédio, no final da narrativa. experiências sofridas por um menino ingênuo
no internato de Aristarco Argolo de Ramos.
6. (Unicamp) No capítulo VII de O ATENEU, ao (B) sem haver propriamente um enredo, mas
descrever a exposição de quadros dos alunos do justaposição de quadros, vão desfilando
colégio, o narrador assim se refere aos sentimentos diante de nós as personagens e situações de
de Aristarco: um colégio em que a hipocrisia esconde toda
“Não obstante, Aristarco se sentia lisonjeado pela gama de baixeza.
intenção. Parecia-lhe ter na face a cocegazinha (C) Diretor e senhora (Dª Ema), professores e
sutil do creion passando, brincando na ruga mole estudantes, todos vivem numa atmosfera
da pálpebra, dos pés-de-galinha, cortando a saturada e postiça forjada pela vaidade de
concha da orelha, calcando a comissura dos lábios, Aristarco.
entrevista na franja pelas dobras oblíquas da pele
do nariz, varejando a pituitária, extorquindo um (D) a sucessão de flagrantes impressionistas
espirro agradável e desopilante.” termina com o incêndio do colégio, ateado
pelo estudante Américo.
(A) A que intenção se refere o narrador?
(E) O Ateneu distingue-se na história de nossa
ficção por uma série de aspectos originais,
(B) Quais características de Aristarco estão
entre eles, o realismo exterior tal qual o de
sugeridas neste comentário do narrador?
Aluísio Azevedo em “O CORTIÇO”.

47
O Ateneu, de Raul Pompeia
9. (UEPB)
I. O Ateneu é uma crítica ao romantismo, na
medida em que estabelece uma crítica à
ingenuidade da infância enquanto espaço
idílico e importante para a construção
imaginária dos românticos, o que o transforma
num precursor do romance psicológico.
II. O
 Ateneu é ao mesmo tempo uma crítica ao
modelo de educação posto em prática no
internato e uma crítica ao autoritarismo das
elites brasileiras sustentadas pelo modelo
político monárquico. Em certo sentido, o
internato é uma metonímia da monarquia
brasileira.
III. 
Raul Pompéia utiliza-se das avaliações
apaixonadas de Sérgio na infância para fazer
um romance com fortes traços impressionistas
e simbolistas, romance que também antecipa
certos aspectos da vanguarda expressionista,
sobretudo nas descrições de Aristarco e dos
personagens alinhados com ele.
(A) Apenas III é correta
(B) Apenas I é correta
(C) Apenas II é correta
(D) Todas são corretas
(E) Nenhuma é correta

10. (UFRS) Leia as afirmações abaixo sobre o romance


O Ateneu, de Raul Pompéia.
I.  Sérgio, em seu relato memorialista, revela
a outra face da fachada moralista e virtuosa
que circundava o Ateneu, a face em que se
incluem a corrupção, o interesse econômico,
a bajulação, as intrigas e a homossexualidade
entre os adolescentes.
II. A narrativa, ainda que feita na primeira pessoa,
evita o comentário subjetivo e as impressões
individuais, uma vez que o narrador adota
uma postura rigorosa, condizente com o
cientificismo da época.
III. Através da figura do Dr. Aristarco, diretor do
colégio, com sua retórica pomposa e vazia,
Raul Pompéia critica o sistema educacional
da época e a hipocrisia da sociedade.
Quais estão corretas?
(A) Apenas I.
(B) Apenas II e III. gABARITO
(C) Apenas II. 1.A 2.C 3.E 4.A 5.A
(D) I, II e III. 6.a) A vaidade lisonjeira de ver grafado seu próprio
(E) Apenas I e III rosto.
b) A vaidade, o engodo, o orgulho e a felicidade de ser
o diretor do Ateneu.
c) Não, Sérgio, o narrador, ironiza os sentimentos de
Aristarco, pois através do diretor satiriza seu próprio
pai e a sociedade em que vive.
7.B 8.E 9.D 10.E

48
Alguma Poesia
de Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) é um isso nem sempre se preste atenção ao que tem a dizer
dos poetas mais conhecidos da literatura brasileira e um poeta. No poema em questão, ele é equiparado a
mesmo da de língua portuguesa. Pode-se dizer que, uma cigarra solitária, que canta sem que ninguém a
mesmo entre aqueles que dizem não gostar de poesia, possa ouvi-la. Por isso, constata o eu lírico que “o poeta
Carlos Drummond é bem conhecido. está melancólico”.
Drummond estreou com o livro que ora vamos Numa árvore do passeio público
analisar, Alguma poesia. Publicado em 1930, há, (melhoramento da atual administração)
nesse livro, poemas cujos versos se tornaram célebres [...]
e mesmo ganharam a popularidade em expressões Canta uma cigarra que ninguém ouve
recorrentes pela citação literal ou pela paráfrase, como Um hino que ninguém aplaude.
“Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Como a cigarra, o poeta canta e não é ouvido,
Raimundo” ou “No meio do caminho tinha uma pedra” por seu trabalho se contrapõe ao imediatismo da vida
ou ainda “João amava Tereza que amava Raimundo”, moderna. Já o poeta necessita do tempo, necessita da
entre outras. meticulosidade para buscar a melhor palavra, buscar
O livro se insere no período modernista e é a forma mais adequada. Ele é repleto de ideias, de
considerado o iniciador da Poesia de 30, o que seria sentimentos, porém “a pena não quer escrever”. Isso
a segunda fase do modernismo brasileiro. Os poemas não deve ser confundido com o conceito de inspiração,
foram escritos nos anos 20 do século passado, quando e sim, exatamente o contrário: escrever é uma
se promoveu uma revolução literária e, por isso, os atividade que requer cuidado, requer reflexão. Porém,
radicalismos de parte a parte impediam, muita vez, a vida moderna exige o aqui e o agora, exige de todos
uma voz mais ponderada. uma produtividade que nem sempre combina com a
A poesia de Drummond conseguiu, em meio à atividade poética.
agitação cultural do período, que buscava novas formas O poema pernambucano Manuel Bandeira,
de expressão, imprimir uma marca, conseguiu construir referência do modernismo, escreveu diferentes poemas
algo sólido, de tal modo que sua produção tem valor nessa mesma linha temática, como, por exemplo, “O
ainda hoje. O poeta deve tentar uma explicação para Cacto”. Bandeira parece uma importante fonte para
as dúvidas recorrentes do ser humano. Por exemplo: o Drummond de Alguma poesia. “Festa no brejo”,
o que é o amor? Qual o sentido da vida? O que é a por exemplo, certamente alude ao famoso poema de
política? Entre outras tantas. Embora as respostas Bandeira, “Os sapos”, em que o poeta pernambucano
tendem a cair na carga da subjetividade; ainda assim, contrapõe o academicismo da poesia parnasiana à
o olhar crítico do poeta e sua capacidade de expressão maior liberdade, à iconoclastia da poesia moderna. A
podem levar o leitor a compreender melhor aquilo que “festa no brejo” do título ilustra a humildade da poesia,
o cerca. Para tanto, cabe ao poeta comunicar-se bem, ao papel não lucrativo que desempenha o trabalho do
mas cabe ao leitor ter um domínio básico da linguagem poeta.
poética. Drummond possibilita exatamente isso tudo. A saparia toda de Minas
A todo instante busca comunicar-se com o leitor, ainda Coaxa no brejo humilde.
que não diretamente, e, a todo instante, busca uma Hoje tem festa no brejo!
compreensão do próprio trabalho como artista, como
Linha temática semelhante pode ser encontrada
poeta.
em “O sobrevivente”. O título é indicativo de que muitos
Em Alguma Poesia, por exemplo, há uma série de pereceram, mas é preciso resistir, é preciso continuar
poemas metalinguísticos, cujo objetivo maior é refletir a escrever, mesmo sob os horrores das guerras,
sobre o ato de escrever, refletir a respeito do trabalho mesmo ante ao culto da máquina que caracterizou o
poético usando para isso o próprio poema. processo de construção da sociedade capitalista. Ante
São 49 poemas publicados no livro, os quais à constatação de que, apesar da evolução técnica,
tratam sobre o trabalho do poeta, exploram questões o ser humano não evoluiu, não melhorou, nem no
sócio-políticas, refletem sobre a vida cotidiana, plano individual, nem no plano coletivo: “Inabitável,
moderna, sobre o Brasil e o sentimento nacionalista. o mundo é cada vez mais habitado”. A partir desse
Aqui, vamos abordar a maior parte dos poemas, para paradoxo, o poeta faz a constatação de que o que pode
destacarmos essas temáticas e o tratamento poético garantir um quê de humanidade ao ser, um quê de
dado a elas. Não vamos seguir a ordem dos poemas e cultura mais pura, por assim dizer, é o ato de escrever:
sim a análise por temas. “(Desconfio que escrevi um poema.)” Tal conceito, o
Um desses temas é a reflexão em torno do papel do papel consolador da escrita, fica mais claro ainda
do poeta no mundo das máquinas, da pressa urbana, em “Explicação”, em que o eu lírico declara ser seu
da correria cotidiana. Em “Nota social”, por exemplo, verso a sua consolação, a sua cachaça. Porém, sabe
tem-se algo que se tornou comum na modernidade: que a poesia não pode, de fato, exercer esse papel na
a poesia perdeu espaço para outras linguagens, mais vida de todos, pois o que se busca na vida moderna
imediatistas, talvez que exijam menos reflexão, por são antes as comodidades, a estabilidade. A poesia, ao

49
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
contrário, tende a levar o leitor à constante reflexão, A reflexão em torno da vida moderna é temática
levá-lo a ter uma visão não conformista em relação à própria de Alguma poesia, bem como nos livros
vida moderna. Nesse sentido, o eu lírico faz a seguinte seguintes de Drummond. Destaquemos três poemas,
advertência em tom conclusivo: “Se meu verso não em particular, que abordam o assunto: “A rua diferente”,
deu certo, foi seu ouvido que entortou”. Tal afirmação “Sinal de apito” e “Cota zero”. O mais significativo
se explica também porque Drummond reconhece que é o último. O primeiro fala sobre as mudanças por
o leitor de poesia é aquele ainda da poesia tradicional, que pode passar uma cidade pequena e como isso
parnasiana, com rima, com métrica perfeita e padrão tende a alterar a sociabilidade; o segundo refere-se à
definido. Apenas para lembrar, em 1924, o parnasiano linguagem nova que a vida urbana obriga o indivíduo
Alberto de Oliveira foi eleito o “Príncipe dos poetas” a conhecer. Já “Cota zero”, conhecido haicai do autor,
brasileiro. Isso já durante a efervescência modernista. que reflete a respeito da desumanização que a vida
Ao contrário dessa visão tradicional, deve o poeta urbana pode impor ao homem. Inicia com um verbo
moderno estar apto a aceitar os ritmos mais variados, em inglês, “stop”, para em seguida questionar se a
os temas mais disparatados, usar termos em geral, constatação seria para indicar que um automóvel parou
mesmo os não poéticos. Esse foi, inclusive, o legado a um sinal de trânsito ou se teria sido a própria vida
deixado pelo modernismo, conforme constatação do que teria parado, se o ser humano teria abandonado
escritor Mário de Andrade. uma pretensa evolução humanística em favor de uma
“Política literária” é dedicado a Manuel Bandeira evolução técnica e tecnológica. Em tempo, haicai é um
e expressa certo hermetismo, pelo que apresenta típico poema de origem japonesa, escrito em três versos
da dificuldade de compreensão mais nítida. O leitor e que segue uma estrutura silogística, em que de uma
atual pode, eventualmente, não conseguir chegar ao premissa maior e outra menor decorre uma conclusão
real significado do texto. Se considerarmos, porém, o lógica. A essa agitação e desenvolvimento da vida
contexto do modernismo, isto é, os anos 20 e 30, ainda urbana, o poeta opõe outro poema para tratar sobre
mais no caso de Bandeira, que entrou em debates o cotidiano em uma cidade pequena. “Cidadezinha
literários contra aqueles que detinham o patamar do qualquer” evoca a rotina lenta e corriqueira das
que seria a poesia de alto valor literário, é possível cidades menores, de modo a concluir-se que esse tipo
então compreender melhor a ironia de Drummond de vida pode também indicar a bestialidade humana,
ao dizer que, enquanto poetas menores discutem “Eta vida besta, meu Deus” é o último verso do poema.
quem seria capaz de tirar a primazia do que chama O próprio título revela certo desprezo pelo uso do
“poeta federal”, este segue sentindo-se superior. diminutivo bem como pelo uso do pronome indefinido,
Nesse sentido, a falsa polêmica de quem seria menor indicando que é algo bastante comum no país. Tal
ou maior sugere uma atmosfera provinciana e pouco contraste, cidade grande x cidade pequena, bem como
afeita ao que seria, de fato, poesia com valor literário. outros, é constante em Drummond, que, por meio da
Na mesma linha temática, há o poema “Política”, ironia, aproxima as contradições da vida e do país.
cujo objetivo é tratar sobre assunto que domina Outra constante na poesia do autor mineiro é a
as discussões acadêmicas e também as literárias:
religiosidade, não a confessional, a que expressa uma
a escolarização dos literatos. É preciso lembrar
crença absoluta na divindade, e sim a que caracteriza
que um valor burguês, advindo do século XIX é a
a chamada mineiridade, isto é, o modo de ser mineiro.
individualidade criativa. Por outro lado, não existe
O rompimento com crenças, qualquer que seja ela, é
criação pura, no sentido de que um escritor vai sempre
tomar por referência suas leituras, o estilo de outros sempre doloroso, uma vez que se perdem as certezas
escritores. Essa ligação entre os pares pode chamar construídas ao longo do tempo. Em dois poemas: “O que
a atenção dos leitores, o reconhecimento crítico. No fizeram do Natal” e “Casamento do céu e do inferno”,
poema em questão, Drummond revela a angústia de verificamos o contraste entre a religiosidade dos mais
um poeta pelo reconhecimento, pela subserviência velhos e a iconoclastia do mais jovens. Enquanto o céu
às práticas, bem como a necessidade de seguir esse dorme, segue uma rotina comum, o inferno, o mundo
ou aquele modelo de criação. Na última estrofe, busca novos ritmos, novos valores:
entretanto, o poeta, depois de ver-se no limite desse [...]
estado de coisas, liberta-se das amarras, das correntes, As beatas ajoelharam
isto é, sente-se livre para ser ele próprio, não seguir e adoraram o deus nuzinho
correntes literárias específicas: “livre livre livre que mas as filhas das beatas
nem uma besta/ que nem uma coisa.”. e os namorados das filhas,
Um dos objetivos do poeta moderna é dizer que mas as filhas das beatas
a poesia pode ocorrer mesmo em situações pouco foram dançar black-bottom
poéticas, em situações banais. Essa é a lição de nos clubes sem presépio.
“Poema que aconteceu”, em que o eu lírico expressa a (O que fizeram do Natal)
necessidade de se escrever mesmo sobre o nada, sobre Como referência, Black-bottom era uma dança
um dia modorrento, em que nada aparentemente tenha comum à época, caracterizada pela sensualidade e
acontecido, afinal cabe ao poeta antes saber trabalhar pelos movimentos bastante rápidos do corpo.
a palavra. Trata-se do mesmo conceito defendido A
rosa do povo (1945), onde está publicado o famoso “À Em outro poema, “Igreja”, o contraste fica por
procura da poesia”. conta dos dois significados possíveis para o termo.

50
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
Igreja tanto se refere ao prédio onde ocorrem orações, O diálogo irônico com o Romantismo se estabelece
como a instituição em si. O eu lírico se aprofunda em outros poemas do livro. Especialmente os que
mais no segundo significado, para poder destacar o tratam sobre o amor, como, por exemplo, “Toada do
lado externo das prédicas religiosas, como uma mera amor”, “Cantiga de viúvo”, “Esperteza”, “Quadrilha”,
obrigação, e não a expressão de um sentimento real: “Iniciação amorosa” e “Balada do amor através das
“Um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e idades”. Neste último, tem-se uma síntese do modo
já esquecida.” O mesmo se dá em “Romaria”, em que a de relacionar-se a dois ao longo dos tempos, com
ironia se revela mais no final. Após expressar motivos destaque para os tempos modernos, que reconstrói,
diversos pelos quais um indivíduo vem a se tornar pelo cinema, o mito do amor romântico e seu pretenso
romeiro e pagar uma promessa, o eu lírico constata que, final feliz. A ideia de que o amor supera todas as
em rigor, Cristo, após atender tantos pedidos, também dificuldades e vence no final. Há em todos dois pontos
teria um pedido: o de trocar toda a humanidade... essenciais: a necessidade humana de se relacionar e
Retomando a discussão em torno da poesia a constatação de que o amor romântico, idealizado, é
modernista, uma das pautas foi a questão nacionalista um grande mito. E qual a solução? No caso, a ironia, o
não de modo tão específico como foi durante o jogo, a brincadeira com o tema. Em “Toada do amor”,
Romantismo, e sim procurando-se abordar o Brasil a ideia é mostrar que os relacionamentos, por perfeitos
como um todo, a questão cultural, racial. É bem e necessários que sejam, são marcados por constantes
verdade que houve grupos com uma visão mais brigas, discussões, imposição das vontades individuais.
nacionalista, de defesa dos valores patrióticos, como E o amor sempre nessa toada:
é o caso do chamado Grupo verde-amarelista, de que Briga perdoa perdoa briga.
fizeram parte os escritores Plínio Salgado e Guilherme [...]
de Almeida. Também houve grupos que defendiam Mas, se não fosse ele, também
uma visão mais pluralista, como o Grupo da Poesia Que graça que a vida tinha?
Pau-Brasil, liderado por Oswald de Andrade. No O mesmo conceito se faz presente em
caso específico de Drummond, não se pode dizer “Esperteza”, em que se lê:
que tenha se filiado a algum grupo. Não se absteve, Certo me tornaria
porém, de pensar a questão nacionalista, ainda mais Brinquedo nas suas mãos.
em época de radicalismos na Europa, que levariam
Já em “Iniciação amorosa”, o que se destaca é
à eclosão da 2ª. Grande Guerra, ou no Brasil, onde
a descoberta sexual, não tanto do amor e como essa
instaurou-se a Ditadura de Getúlio Vargas, entre 1937
descoberta e o consequente desejo mexem com
e 1945, que, entre outras coisas, prometia a defesa dos
a quietude humana, tiram a paz de espírito, pela
valores nacionais. Drummond, como poeta, está mais
depois necessidade de voltar a satisfazer tais desejos.
interessado no diálogo cultural entre os povos. Sabe
“Sentimental”, por sua vez, revela o contraste entre
que o país não figura entre os principais modelos
sentimentos. Enquanto o eu lírico prepara uma cena
culturais, tendo antes se servido de outras culturas
para formar seus referenciais: romântica, imagina uma situação cinematográfica em
que escreve o nome da amada com macarrão de uma
O poeta vai enchendo a mala, sopa, ela parece ser mais prática. Percebendo que ele
Põe camisas, punhos, loções, não está comendo, e sim divagando, chama-o para a
Um exemplar da imitação realidade imediata: “- Está sonhando? Olhe que a sopa
E parte para outros rumos. [...] (“Fuga”) esfria!” Seria algo como dizer a alguém “Eu te amo” e
Em “Também já fui brasileiro”, tal reflexão ouvir apenas uma palavra de agradecimento.
fica ainda mais explícita. No poema, lê-se que o De certo modo, “Quadrilha” resume o que se lê
nacionalismo, embora possa ser uma virtude, algo nos demais poemas aludidos, pois trata dos encontros
positivo, também é um meio de romper com o restante, e desencontros amorosos, bem como do fato de que
com outros universos culturais: “há uma hora em que na vida não dá para se controlar o final, o tal final
os bares se fecham/ e todas as virtudes se negam”. feliz, como tende a ocorrer em um texto literário, cujo
Nessa mesma linha, destaca-se “Europa, França enredo é dirigido por um escritor: “João amava Teresa
e Bahia”, que estabelece explicitamente um diálogo que amava Raimundo/ [...] Lili casou com J. Pinto
intertextual com a famosa “Canção do exílio”, de Fernandes/que não tinha entrado na história.”
Gonçalves Dias. No texto romântico, temos a exaltação
Em contraposição a isso (Drummond sempre
das qualidades do país, com especial destaque para
opõe pares como campo/cidade, vida/morte etc., não
a natureza, até porque o Brasil era um país pouco
no sentido barroco, e sim de modo a revelar as ironias
desenvolvido em meados do século XIX. Já no texto
da vida, as contradições da vida), em “Sweet home”, o
de Drummond, o eu lírico, em visita à Europa, vai
eu lírico percebe que o mundo pode se equiparar a um
da euforia à disforia, pelo que apreende da cultura
grande romance, do qual seríamos todos personagens
dos diversos países. Ironicamente, em um ímpeto de
a desempenhar papeis diversos. O lar doce lar seria,
patriotismo diz que basta daquele mundo que não
pois, qualquer lugar onde podemos viver a realidade
é o dele, e quer resgatar os valores nacionalistas,
ou a fantasia, “afinal a vida é um bruto romance”, no
lembrando-se da “Canção do exílio”, porém não tem
sentido que é preciso aos poucos lapidá-lo, tentar torná-
certeza dos conhecidos versos: “Como era mesmo a
lo melhor. Trata-se de conceito presente igualmente em
‘Canção do exílio’?”

51
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
“Infância”, onde o eu lírico diz gostar de ler a história de matar animais... Ao que parece, consoante a psicologia,
Robinson Crusoé, livro publicado em 1719 e escrito por uma compensação moral para atos corriqueiramente
Daniel Defoe (1660-1731). Crusoé ficou conhecido por imorais praticados por certos líderes.
ser um aventureiro dos mares e que acabou preso em Em “Música” e “Cabaré mineiro”, tem-se poemas
uma ilha. Em contraposição à vida de Crusoé, a do eu menores, que revelam, de qualquer modo, o papel que
lírico, quando criança, é rotineira, basicamente observa a música pode desempenhar, tanto para a expressão
os pais trabalhando e cria mundos novos. Conclui que dos sentimentos quanto para a expressão sensual
sua vida “era mais bonita que a de Robinson Crusoé”, do corpo. Ainda no caso de “Cabaré mineiro”, tem-
afinal a aventura de viver é particular e o que importa, se a mistura cultural tão tipicamente exaltada pelos
em contraposição à fantasia, é ter a vida real. Desse modernistas.
modo, consegue ver, como de resto em vários outros A dançarina espanhola de Montes Claros
poemas, algum sublime na banalidade, algo poético no Dança e redança na sala mestiça.
mundo prosaico, comum.
Emílio Moura (1902-1971) foi um poeta menor
Ao longo de sua carreira, Drummond revelou do chamado grupo mineiro que procurou levar o
preocupação com os assuntos midiáticos. Em rigor, modernismo a Minas, do qual fizeram parte ainda Pedro
viveu o advento do cinema, do rádio e da TV, por isso Nava e Cyro dos Anjos, a quem Drummond dedica
acompanhou de perto o desenvolvimento da mídia no poemas no livro. Moura foi um dos grandes amigos de
país. Em Alguma poesia, já demonstrava certo cuidado Drummond, que lhe escreveu “Epigrama para Emílio
em tratar a respeito do tema, conforme se verifica em Moura”. Importante lembrar que epigrama é um tipo
“Poema do jornal”, no qual revela a necessidade de o de poesia que se presta a expressar um sentimento
jornalismo dar rapidamente uma notícia, mesmo sem único, festivo, satírico ou comovente. No caso, o poema
apuração detalhada, posto que o objetivo maior seria destaca a tristeza que se pode sentir em três situações:
tomar por um referência um fato, e criar dele uma causada por algo externo, como o tempo e o clima; pela
reportagem espetacular, ainda não seja totalmente necessidade de se comprar “amor”; e por não poder
verdadeira: “O fato ainda não acabou de acontecer/ revelar um segredo que é de conhecimento comum,
e já a mão nervosa do repórter/ o transforma em isto é, não poder comentar algo que todos sabem. No
notícia.” Isso em 1930, quando o jornalismo impresso caso, após tantas tristezas, só se pode concluir pelo
dominava a mídia. Agora, com outros recursos de lado negativo da vida. Certamente, há no poema um
transmissão, especialmente a internet e a televisão, a sentido específico mais direcionado à compreensão do
espetacularização da vida, dos fatos banais, ganham poeta a quem é dedicado o texto.
ainda mais amplitude. Um típico exemplo são as redes Outra constante na poesia de Drummond é a
sociais, que podem transformar um fato banal em recorrência à sua cidade natal, Itabira-MG, e também
acontecimento grandioso. por locais onde morou, como Belo Horizonte e Rio de
“Outubro 1930” mistura versos e prosa poética Janeiro. Com efeito, em “Lanterna mágica” e “Sesta”,
e revela, ao modo jornalístico, os acontecimentos por exemplo, o eu lírico retoma sua mitologia pessoal,
em torno do Golpe de 1930, que derrubou o então revelando os conflitos entre o eu e o mundo, entre a
presidente da república Washington Luís, impedindo cidade pequena e a grande, entre a vida modorrenta no
a posse do presidente eleito Júlio Prestes, o que deu interior de Minas e urbanidade do Rio de Janeiro, com
início ao chamado Estado Novo, por oposição ao seus altos prédios e a malandragem, entre o passado
período conhecido como República Velha. preso a uma época colonial e um presente e suas
inovações tecnológicas. Muitos poemas de Drummond
Um novo, claro Brasil
têm um caráter epifânico, isto é, revelador de verdades
Surge, indeciso, da pólvora.
escondidas. Esses em que faz a retomada de tempos
Meu Deus, tomai conta de nós.
antigos tendem a expressar descobertas, como o da
“Coração numeroso” e “Lagoa” retomam o comparação entre a vida do eu lírico e a de Robinson
contraste entre localismo e cosmopolitismo. A lagoa Crusoé. “Ai tempo!/ Nem é bom pensar nessas coisas
representa algo menor, mais tangível, ao passo que o mortas, muito mortas./ Os séculos cheiram a mofo
mar, pela sua amplidão, pela impossibilidade de vê-lo [...] O presente vem de mansinho/ de repente dá um
por completo representa o “mundo, vasto mundo”. Para salto:/ cartaz de cinema com fita americana”. Em
o poeta absorver essa amplidão, esse cosmopolitismo “Sesta” trata da família mineira, com destaque para
precisa ter um “coração numeroso”, que apreenda tudo, uma cena comum, em que nada demais acontece, a
que lhe possibilite apreender até o que não é tangível: não ser pequenos gestos dos pais e dos filhos, que
“O mar batia em meu peito, já não batia no cais./ A rua descansam sob o sol. Outro poema nessa linha temática
acabou, quede as árvores? A cidade sou eu”. é “Família”, em que, por meio de quadros, sintetiza
Em outras ocasiões, o contraste pode vir diversas situações, boas ou ruins, por que passa uma
de algo inesperado. Em “Anedota búlgara”, por família, sob a égide da felicidade: “O agiota, o leiteiro,
exemplo, um czar, para demonstrar seu poder, sua o turco,/ o médico uma vez por mês [...] A mulher que
influência, perseguia os contrários a ele, mas julgava trata de tudo/ e a felicidade”.
desumano quem caçava pequenos animais ou insetos. Finalizemos essa resenha com dois dos poemas
Interessante que Adolf Hitler, que ainda não tinha se mais significativos, o da abertura, “Poema de sete
revelado por inteiro ao mundo, também julgava imoral faces”, e “No meio do caminho”.
52
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
Sobre o poema “No meio do caminho”, já se avermelham com o sangue e leva, de certo modo, o
escreveu até uma bibliografia, pela importância anjo mau por todos os lados, com o curso do rio. E as
do conceito expresso nele. Trata-se de um poema sombras dão lugar à luz, que parece ser do próprio
repetitivo, enfadonho até, mas que, de modo sintético, poema, isto é, da capacidade que a linguagem poética
expressa as adversidades da vida, metaforizadas no tem de revelar o mundo, para além de uma simples
termo pedra. Para um poeta, as adversidades são a rima com a palavra Raimundo.
indiferença, a objetividade técnica, o capitalismo, a Em resumo, é preciso ler os poemas de Drummond
vida sem sensibilidade, sem fantasia etc. E para piorar não com um olhar romântico, passivo e conformado, e
é “no meio do caminho”, não no início, não no fim, sim seguir o voo do anjo torto, seguir não o caminho
ou seja, nos extremos, e sim no meio, cujo avançar ou fácil, e sim os descaminhos da vida moderna, cujo
retornar pode significar a mesma frustração, o mesmo centro é não ter um centro, cuja verdade é não ter
dissabor. Eis o paradoxo ou aporia do poeta, que ainda uma verdade. Alguma poesia é, pois, o mapa desse
assim tem de escrever, tem de buscar a revelação descaminho. Cabe ao leitor saber ler esse mapa.
daquilo que está oculto.
Quanto ao “Poema de sete faces”, o número
indicativo do título é significativo, indica totalidade. EXERCÍCIOS
No caso ainda, as sete faces estão representadas em
sete estrofes cada uma abordando um aspecto, de 1. (PUC-RS)
modo a fragmentar o texto em sete quadros, o que “Quando nasci, um anjo torto
leva o leitor a pensar no estilo cubista. Todo o texto é desses que vivem na sombra
construído com base em imagens díspares, mas que disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
podemos resumir em pares antitéticos: As casas espiam os homens
 eu x mundo; que correm atrás de mulheres.
 moral x desejo; A tarde talvez fosse azul,
 expressão pessoal x objetividade. não houvesse tantos desejos.”
Na estrofe inicial, já encontramos aspectos Um dos traços da poesia de Carlos Drummond de
significativos para se compreender a poesia de Andrade, como demonstram os versos acima, é a
Drummond, mas também a poesia nos tempos ____________ entre as estrofes, o que nos oferece
modernos. Ao nascer, “um anjo torto/ desses que uma ideia de fragmentação da realidade.
vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! Ser gauche na
(A) disponibilidade
vida.” Ora, esse anjo é uma metáfora para indicar
o contraditório, indicar o conflito; reforçada pelo (B) carência.
conselho dado ao eu lírico, para que seja gauche, isto (C) descontinuidade.
é, seja de esquerda, não no sentido político, mas por (D) indagação.
oposição ao que é direito, certo, moralmente falando.
Ser gauche também é não se prender ao satus quo, ao (E) dissolução.
que é estabelecido como correto. Em um contexto mais
amplo, devemos considerar que o poeta moderno não 2. (FUVEST) Refere-se corretamente a Alguma
está aí para corroborar o que a sociedade afirma, ser Poesia, de Drummond, a seguinte afirmação:
uma espécie de sorriso da sociedade, como queria a (A) A imagem do poeta como gauche revela a sua
poesia parnasiana, e sim para contestar, chocar, ser a militância na poesia engajada e participante,
voz dissidente. de esquerda.
Podemos ainda pensar ainda sob outros aspectos. (B) As oposições sujeito-mundo e província-
O poeta não deve ser mais visto como um arauto, o metrópole são fundamentais em vários poemas.
mantenedor dos valores sociais, e sim o contrário; ele
é um cacto (para nos referirmos ao famoso poema de (C) A filiação modernista do livro liberou o poeta
Manuel Bandeira), que, arrancado de sua raiz, de das preocupações com a elaboração formal dos
sua origem, tende a incomodar a todos, a atrapalhar poemas.
a rotina, quebrar os paradigmas. Por este motivo, (D) O livro não contém textos metalinguísticos, o
o coração do poeta, isto é, sua percepção do mundo que caracteriza a primeira fase do autor.
tende a ser maior que o próprio universo que o cerca, (E) A ironia e o humor evitam que o eu-lírico se
pois vai além do óbvio. distancie ou se isole, proporcionado-lhe a
Nesse caminho, porém, há muitas pedras, há a comunhão com o mundo exterior.
retina que atrapalha a visão, há o desejo que embota
o cérebro: “Meus Deus, porque me abandonastes/ 3. (Fuvest) QUERO ME CASAR
[...] se sabias que eu era fraco.” A metáfora do anjo
é retomada no último poema do livro: “Poema da Quero me casar
purificação”. Nele, o paradoxo, que parece se resolver, na noite na rua
cria outro paradoxo, pois o anjo bom mata o anjo torto, no mar ou no céu
o anjo mau. Joga então o corpo no rio, cujas águas se quero me casar.
Procuro uma noiva
53
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
loura morena 5. (FUVEST) Leia os poemas a seguir:
preta ou azul I.
uma noiva verde (...)
uma noiva no ar Há máquinas terrivelmente complicadas para as
como um passarinho. necessidades mais simples.
Depressa, que o amor Se quer fumar um charuto aperte um botão.
não pode esperar! Paletós abotoam-se por eletricidade.
(A) Caracterize brevemente a concepção de amor Amor se faz pelo sem-fio.
presente neste poema. Não precisa estômago para digestão.
(...)
(O sobrevivente)
II.
Cota zero
Stop.
A vida parou.
Ou foi o automóvel?
(B) Compare essa concepção de amor com a que
predominava na literatura do Romantismo. Sobre esses versos, extraídos de Alguma Poesia,
pode-se dizer que:
(A) Os dois textos podem ser aproximados
quanto ao tema (mecanização do cotidiano);
entretanto, enquanto o primeiro apresenta
uma visão crítica sobre o tema, o segundo faz
uma apologia bem-humorada do progresso
urbano.
(B) Os textos assemelham-se não apenas quanto
ao tema (automatização da vida humana),
4. (UEL) O poema que segue faz parte do primeiro mas também quanto à linguagem: ambos
livro de Carlos Drummond de Andrade, Alguma apresentam a brevidade e a descontinuidade
poesia, publicado em 1930, e tem como título sintática características de Alguma Poesia.
“Cidadezinha qualquer”. Leia o poema e assinale (C) A crítica à mecanização excessiva que
a alternativa correta: caracteriza a vida moderna evidencia-se, no
Casas entre bananeiras texto I, especialmente no emprego da antítese
Mulheres entre laranjeiras no primeiro verso, e, no texto II, no emprego
Pomar amor cantar. do estrangeirismo, ou barbarismo (stop).
Um homem vai devagar. (D) O texto II apresenta, através de uma linguagem
Um cachorro vai devagar. marcada pela concisão telegráfica, a crítica
Um burro vai devagar. presente no texto I, uma vez que os termos
zero, stop e parou indicam a total dependência
Devagar... as janelas olham. da vida moderna em relação às máquinas.
Eta vida besta, meu Deus.
(E) A máquina como assunto poético pode ser
(A) O poema denuncia de forma irônica e com uma verificada nos dois textos, o que torna evidente
linguagem sintética a monotonia e o tédio que a influência exercida, sobre o autor, da
predominam em pequenas cidades do interior. vanguarda artística conhecida como futurismo.
(B) O poema mostra com sentimento piedoso o
desajuste existencial do homem diante da 6. (Fuvest)
vida.
Chega!
(C) O poema retrata de modo triste e melancólico Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
a desventura amorosa do poeta na cidade de Minha boca procura a “Canção do Exílio”.
Itabira, onde nasceu. Como era mesmo a “Canção do Exílio”?
(D) Predomina no poema um sentimento de Eu tão esquecido de minha terra...
nostalgia do passado, por meio de uma Ai terra que tem palmeiras
linguagem muito simples e pouco elaborada onde canta o sabiá!
esteticamente. (Carlos Drummond de Andrade,
“Europa, França e Bahia”, ALGUMA POESIA)
(E) Há no poema uma preocupação de ordem
social e política que sintetiza o “sentimento do Neste excerto, a citação e a presença de
mundo” do eu lírico. trechos.............. constituem um caso de..............
Os espaços pontilhados da frase acima deverão
ser preenchidos, respectivamente, com o que está
em:
54
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
(A) do famoso poema de Álvares de Azevedo / Costuma-se reconhecer que estes poemas,
discurso indireto. pertencentes ao Modernismo, apresentam
(B) da conhecida canção de Noel Rosa / paródia. aspectos característicos do “poema-piada”,
modalidade bastante praticada nesse período
(C) do célebre poema de Gonçalves Dias/ literário.
intertextualidade.
(A) Identifique um recurso de estilo tipicamente
(D) da célebre composição de Villa-Lobos/ ironia. modernista que esteja presente em ambos os
(E) do famoso poema de Mário de Andrade / poemas. Explique-o sucintamente.
metalinguagem.

SENTIMENTAL
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
E debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra, 9. (UFJF) Leia, com atenção, o poema Quadrilha, de
uma letra somente Carlos Drummond de Andrade, publicado no livro
para acabar teu nome! Alguma poesia.
– Está sonhando? Olhe que a sopa esfria! Com base na leitura do poema, discuta a
concepção de amor em Drummond.
Eu estava sonhando…
E há em todas as consciências um cartaz amarelo: QUADRILHA
Neste país é proibido sonhar. João amava Teresa que amava Raimundo que
amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém. João foi para os Estados
7. (PUCCAMP) Este poema é caracteristicamente Unidos, Teresa para o convento Raimundo morreu
modernista, porque nele: de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim
(A) A uniformidade dos versos reforça a suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
simplicidade dos sentimentos experimentados que não tinha entrado na história.
pelo poeta.
(B) Tematiza-se o ato de sonhar, valorizando-se o
modo de composição da linguagem surrealista.
(C) Satiriza-se o estilo da poesia romântica,
defendendo os padrões da poesia clássica.
(D) A linguagem coloquial dos versos livres
apresenta com humor o lirismo encarnado na
cena cotidiana. 10. (UEM) Assinale o que for correto sobre o poema
abaixo e sobre seu autor, Carlos Drummond de
(E) O dia-a-dia surge como novo palco das Andrade.
sensações poéticas, sem imprimir a alteração
Cidadezinha qualquer
profunda na linguagem lírica.
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
8. (Fuvest) Leia os poemas a seguir: pomar amor cantar.
POLÍTICA LITERÁRIA Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
O poeta municipal Um burro vai devagar.
discute com o poeta estadual Devagar... as janelas olham.
qual deles é capaz de bater o poeta Eta vida besta, meu Deus.
[federal. (01) Apesar de Drummond ser considerado um dos
Enquanto isso o poeta federal expoentes da segunda geração modernista
tira ouro do nariz. no Brasil, na qual o ímpeto de novidade da
ANEDOTA BÚLGARA geração anterior diminui, ainda podemos
Era uma vez um czar naturalista encontrar exemplos de uma dicção poética
que caçava homens. inovadora em relação a modelos como o dos
Quando lhe disseram que também se caçam parnasianos. O verso “pomar amor cantar.”,
borboletas e andorinhas, sem pontuação entre as palavras e sem outros
vocábulos, é um exemplo dessa proposição
ficou muito espantado
libertária da linguagem poética que havia
e achou uma barbaridade.
sido iniciada com a geração de 1922.

55
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
(02) O último verso do poema, “Eta vida besta,
meu Deus.”, a despeito de seu tom informal
e aparentemente despretensioso, encerra
uma reflexão de cunho existencial que tem
no tempo um de seus elementos principais.
Presente em “Cidadezinha qualquer”, essa
reflexão é um elemento marcante na obra de
Drummond e pode ser encontrada em outros gABARITO
poemas do autor. 1.E 2.B
(04) Fruto da consolidação da linguagem poética 3.a) O amor é caracterizado como algo não
em Drummond, a regularidade métrica propriamente idealizado, afinal ele aceita qualquer
marca os primeiros livros do autor, sobretudo mulher.b) A concepção de amor era idealizada pelo
Alguma poesia, seu livro de estreia. Nesse "eu-lírico" da poesia romântica. Para ele, o amor era
sentido, é exemplar o uso de redondilhas único e eterno. No caso do poema de Drummond, o
maiores no poema reproduzido, ilustrando amor não parece ser único.
um procedimento rigoroso do autor que só
4.A 5.B 6.C 7.D
veio a ser modificado com a publicação de
Lição de coisas. 8.a) Ambos os poemas são compostos em versos
chamados "livres", pois não obedecem às convenções
(08) Em termos de utilização de vocábulos e
da métrica tradicional. O registro de linguagem
de escolhas nos campos da rima, do ritmo,
é coloquial e há a presença do humor, da ironia,
da métrica e da estrofação, “Cidadezinha
tipicamente modernista.
qualquer” aproxima-se de outro poema de
Drummond, “No meio do caminho”, embora 9.Trata-se de uma visão irônica do amor, contrariando
esses poemas tenham sido publicados pela a concepção romântica, aquela que prega o amor
primeira vez em livros diferentes (Alguma único e verdadeiro, para todo o sempre.
poesia e Libertinagem, respectivamente). 10.(01) Apesar de Drummond ser considerado um dos
No caso de “No meio do caminho”, o poema, expoentes da segunda geração modernista no Brasil,
inclusive, foi alvo de críticas de outros na qual o ímpeto de novidade da geração anterior
autores modernistas por sua falta de ousadia diminui, ainda podemos encontrar exemplos de uma
formal. dicção poética inovadora em relação a modelos como
(16) A referência ao ambiente urbano, presente o dos parnasianos. O verso “pomar amor cantar.”, sem
desde o título do poema reproduzido, é pontuação entre as palavras e sem outros vocábulos, é
ilustrativa em relação a uma das marcas um exemplo dessa proposição libertária da linguagem
da lírica de Drummond: o elogio da cidade poética que havia sido iniciada com a geração de 1922.
em detrimento do universo do campo. A
(02) O último verso do poema, “Eta vida besta,
natureza, sinal de falta de civilização para o meu Deus.”, a despeito de seu tom informal e
autor, reproduzida em seus poemas como um aparentemente despretensioso, encerra uma reflexão
elemento capaz de atravancar o progresso, de cunho existencial que tem no tempo um de seus
marcou uma das divergências entre elementos principais. Presente em “Cidadezinha
Drummond e um de seus colegas de geração qualquer”, essa reflexão é um elemento marcante na
modernista, seu irmão Oswald de Andrade, obra de Drummond e pode ser encontrada em outros
poeta da natureza e contrário à urbanização. poemas do autor.

56
A hora da estrela
de Clarice Lispector

Clarice Lispector (1925-1977) era romancista, Tudo no mundo começou com um sim. Uma
cronista e contista. Publicou o primeiro livro, Perto do molécula disse sim a outra molécula e nasceu
coração selvagem, com menos de vinte anos, em 1944. a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-
Esse período ficou conhecido na literatura como a 3ª história da pré-história e havia o nunca e havia o
geração do modernismo, ou Geração de 45, da qual sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o
fizeram parte escritores como Guimarães Rosa e João universo jamais começou. [...] Enquanto eu tiver
Cabral de Melo Neto. A obra literária de Lispector perguntas e não houver resposta continuarei a
é carregada de simbologia, como meio de tentar escrever. Como começar pelo início, se as coisas
compreender o ser humano, compreender aquilo que acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-
definiria sua existência e sua essência, por assim dizer. pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se
A hora da estrela foi o último publicado em vida, esta história não existe passará a existir. (p. 25)
em 1977, ano também em que Clarice veio a falecer. Como se pode observar, o narrador alude ao
O título, estrela, sugere que o romance irá tratar de momento da criação, quando tudo era disforme. Essa
alguém conhecido. De modo geral, classificamos como alusão acaba por estabelecer uma comparação com o
estrelas pessoas que exercem determinado fascínio ato de criar. Um escritor antes de produzir algo vive um
sobre uma coletividade. Assim são chamados, por mundo disforme, há em sua mente ma espécie de caos,
exemplo, artistas do cinema ou da música, ou também que depois vai tomando forma. Ora, se “tudo no mundo
pessoas que se destacam em alguma área: fulano é começou com um sim”, também o escritor deve dizer
uma estrela, as estrelas da literatura, como a própria para o mundo sem forma; do caos fazer surgir a ordem
Clarice Lispector, etc. Porém, a estrela de que o livro por meio de um processo afirmativo. Clarice parece
fala é uma pessoa apagada, não é conhecida do grande indicar com seu livro que a criação literária passa a
público e nem reconhecida por ninguém. existir por ela própria, sem dependência com o criador.
A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes Ora, esse é o princípio do livre arbítrio, i.e., se a criação
sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde existe, ela agora precisa ser, precisa da liberdade para
ao sorriso porque nem ao menos a olham. (p. 30) constituir-se plenamente. É o que se dá com A hora da
O livro parece, portanto, ter esse título por dois estrela. Macabéa, uma vez criada, parece ter um ritmo
motivos: primeiro, ao se selecionar determinada próprio, de modo que nem o narrador-criador é capaz
personagem para um livro, para um filme, enfim de interferir. Por isso, em algumas vezes, Rodrigo se
para uma história, há certa tendência de ela tornar-se desespera com algumas atitudes de Macabéa, mas
conhecida e, eventualmente, adquirir “vida própria” nada pode fazer, a não ser narrar o que ela mesma vive.
por assim dizer. Como exemplos, podemos lembrar Com isso, vamos também conhecendo o narrador,
de Sherlock Holmes, Moby Dick, Mogli entre outros que, enquanto registra as ações da personagem
tantos dos mais diferentes autores. A segunda razão é principal, faz autoconsiderações, como meio de
que Macabéa, a protagonista do livro, tem seu momento entender seu papel de escritor, sua essência: “ao
de estrelato quando morre e é notícia no jornal. Além escrever me surpreendo um pouco pois descobri que
disso, adiantando o final, sua morte ocorre quando é tenho um destino” [...] “Com esta história, eu vou me
atropelada por um veículo da marca Mercedes, cuja sensibilizar” (p. 29-30)
logomarca é uma estrela.
O narrador, ao fazer diversas considerações sobre
O livro, em seu início, não deixa claro ao leitor
o ato de escrever, sobre o processo criativo, bem como
quem seria Macabéa. Ao contrário, nas dez primeiras
sobre o poder criativo da palavra - “Disse Deus: Haja
páginas, o leitor toma contato com quem seria o escritor
luz; e houve luz.” Gênesis 1:3 -, reconhece que a
do livro sobre ela e sobre o que ele pensa a respeito
palavra é seu objeto, que a língua é seu instrumento de
dela, que seria sua personagem. Desse modo, tem-
trabalho: “Mas que ao escrever – que o nome real seja
se uma estranheza, pois a autora é Clarice Lispector,
dado às coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando
que cria um escritor, que será o criador de Macabéa,
não se a tem, inventa-se-a” (p. 32)
que parece ter existência própria. Isso tudo se explica
aos poucos. Escritores da chamada Geração de 45 Por todos esses aspectos, é possível afirmar
ficaram caracterizados por não apenas produzirem que narrador busca aquilo que seria o grau zero da
textos literários, mas também por discutirem todo o escritura, i.e., o momento em que o que se escreve
processo criativo. A esse jogo discursivo, que mescla a não estaria carregado de valores culturais, de valores
criação ao processo, dá-se o nome de metalinguagem. ideológicos, de nada. A palavra bastaria por ela mesma.
É exatamente nesse tipo de linguagem que A hora da Apesar do intento, também podemos pensar que se
estrela se encontra. O narrador, chamado de Rodrigo trata de um processo um tanto impossível, uma vez
S. M., é também o pretenso escritor do livro sobre que teria de chegar ao que seria a “pré-pré-história”
uma moça que teria visto nas ruas do Rio de Janeiro. de que falou no início. Para falarmos de outro modo,
Destaca-a da multidão para narrar a história dela. E, quando se escreve qualquer coisa, há sempre a visão
ao mesmo tempo em que narra essa história, reflete de mundo de quem escreve, há os valores ideológicos,
sobre o processo criativo. as crenças e tudo o mais que nos torna seres humanos.

57
A hora da estrela, de Clarice Lispector
O grau zero seria a negação disso tudo, seria isentar- O jeito é começar de repente assim como eu me
se da História para o retorno ao caos. Chegar a esse lanço de repente na água gélida do mar [...]. Vou
grau zero significaria a capacidade de escrever a partir agora começar pelo meio dizendo que –
do nada, como um deus criando o mundo pela força – que ela era incompetente. Incompetente para a
da palavra. Se digo “faça-se a luz” e a luz é feita, ora vida. (p. 39)
quem criou a luz se não a palavra, o ato de dizer? Mas
Em seguida, o narrador passa a intercalar a
o que era a luz antes dela existir? O que é um livro, um
narrativa propriamente dita com comentários sobre
personagem antes de existir? Nada, apenas o caos. E
o ato de narrar e sobre sua percepção a respeito de
para que tudo existe, há que se dizer sim: “A palavra Macabéa. Em certo momento, o narrador afirma estar
tem que se parecer com a palavra”. (p. 34) incomodado com ela: “(Ela me incomoda tanto que
Isso só pode ser entendido considerando o fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela tanto mais me
conceito de que escrita é um processo criativo e, como incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva.
tal, significa dar vida a uma personagem. Essa vida, [...])” (p. 41) ou “Eu não inventei essa moça. Ela forçou
porém, deve ser, segundo a concepção do livro, livre da dentro de mim a sua existência.” (p. 45)
visão de mundo de quem escreve, e sim expressão do Macabéa pouco se importa com o mundo a sua
que seria a pessoa. volta. E isso desperta em Rodrigo certa revolta. Ainda
Rodrigo não quer, portanto, macular Macabéa assim, ele não quer interferir sobre o narrado. Ela
com seu modo de pensar, sua visão de mundo, parece viver um mundo apenas dela, num circuito
seus valores. Quer que ela exista por ela mesma, fechado – talvez mimetizando a própria literatura
personagem nascida do caos que vai tomando forma, que, embora expressa o mundo circundante, isola
formando corpo. Em conclusão, escrever possibilitaria esse mundo em um universo significativo, de modo
ao narrador ser, possibilitaria a ele quebrar a rotina da a compor um enredo com começo, meio e fim bem
vida vazia, sem significados, afinal ele está no grau definidos: “Ninguém olhava para ela na rua, ela era
zero, está pronto para o processo criativo, pronto para café frio.” (p. 42) Ao ser ler uma história, pressupõe-
falar da personagem de modo mais livre, ou julga estar. se que haverá acontecimentos importantes na vida
[...] não sei se minha história vai ser – ser o de determinada personagem. No caso de Macabéa,
quê? Não sei de nada, ainda não me animei a o próprio narrador sabe que ela não tem nada
escrevê-la. Terá acontecimentos? Terá. Mas quais? extraordinário para oferecer; sua vida é comum,
Também não sei. (p. 36) medíocre, sem contar outros aspectos que não tornam
a história dela invejável ou exatamente edificante, não
E quem é Macabéa? Uma nordestina, datilógrafa
como sugere o título, a história de uma estrela.
(hoje o equivalente a uma digitadora). Mas observe-
se: ela usa da palavra, não como a que cria, e sim Conta que a nordestina sofrera muito na infância
como a que tão somente preenche documentos, em Alagoas, que a tia, que a criara, lhe batia, que era
escreve cartas prontas previamente. Nesse sentido, xingada e privada das coisas mais simples da vida,
essa personagem seria o avesso do escritor. Outras como eventualmente tomar sol na praça ou comer
características: é uma moça tímida, com vergonha doce ou mesmo ter um animal de estimação. Não sabia
da própria nudez, sem grandes expectativas da vida, bem o que era felicidade, mas, por outro lado, também
vive com poucos pertences, em uma casa simples, sem desconhecia a tristeza. Apenas o sentimento de existir.
luxo ou ostentação. Seu nome é uma homenagem a Já crescida, vem com a tia ao Rio de Janeiro. Depois de
Nossa Senhora da Boa Morte, isso porque não se arrumar-lhe o emprego, a tia falece e ela fica sozinha
tinha certeza se ela vingaria, sobreviveria à pobreza. na cidade. Para diminuir despesas, passa a dividir
Mesmo assim, o nome foi dado apenas um ano após um apartamento com quatro moças, com quem não
seu nascimento. O mesmo conceito aparece em Vidas tem nenhuma amizade. O apartamento ficava num
Secas, de Graciliano Ramos. Os filhos dos personagens bairro frequentado por marinheiros, que vão atrás de
Fabiano e Vitória não têm nome. São chamados prostitutas.
apenas de menino mais novo e menino mais velho. Morava na rua do Acre, trabalhava na rua do
Se sobrevivessem mais tempo, talvez passassem a ser Lavradio e, para se distrair, frequentava o cais do porto,
nomeados. Macabéa conseguiu o feito com um ano. na região da Ilha Fiscal. Era uma vida sem perspectiva.
Apenas disso, seu nome parece uma referência ao que Esse é o motivo que leva o narrador-autor a ficar
é macabro, sinistro, diferente. confuso quanto ao que sentiria por ela: talvez pena,
talvez ódio ou mesmo amor. Parece querer escapar
Rodrigo afirma não querer utilizar termos
dela, porém fica imaginando que talvez ela possa
complexos em seu texto. Prefere o simples. Fica claro,
ainda reagir na vida, e, com isso, buscar algo além
pois, a integração plena entre o que se diz e como se
de apenas seguir uma rotina de trabalho, descanso e
diz. Em termos críticos, seria fundir forma e conteúdo.
passeio sem emoção. Tal modo de narrar revela uma
A criatura teria de ser uma Eva sem Paraíso, sem nada
característica da obra de Lispector, que mais do que
antes, apenas o ser construindo-se aos poucos. Para ser
contar uma história, reflete sobre o papel da literatura e
a estrela na hora certa. Nesse sentido, a narrativa em
como ela pode ou não expressar a vida real. Literatura,
si começa do nada, começa com uma oração principal,
em rigor, é um constructo e, como tal, pode direcionar
cuja subordinada se inicia duas vezes com a conjunção
a vida de uma personagem para onde melhor convier
que:
58
A hora da estrela, de Clarice Lispector
ao contexto da obra. Nesse caso, estamos diante de um com humildade que contarei agora a história da
laissez-faire por assim dizer. A personagem fica livre história. Portanto se me perguntarem como foi
para viver como quer, como é. Com efeito, nem sempre direi: não sei, perdi o encontro. (p. 59)
nossa vida apresenta momentos dignos de uma novela, Macabéa conhece então seu par amoroso na
de um romance, no sentido de serem diferentes ou narrativa. Se ela tem apenas um nome, sem sobrenome,
significativos. Mas, muitas vezes, a narrativa moderna, o par apresenta-se como Olímpico de Jesus Moreira
contemporânea, a dos últimos cinquenta anos, quer Chaves. O narrador alerta tratar-se de uma mentira, pois
narrar exatamente o nada. teria “como sobrenome apenas o de Jesus, sobrenome
Acabo de descobrir que para ela, fora Deus, dos que não têm pai”. Também é nordestino, mas da
também a realidade era muito pouco. Dava-se Paraíba. Teve uma vida tão dura e difícil quanto a dela,
melhor com um irreal cotidiano, vivia em câmera o que o levou a cometer alguns crimes, como roubar e
leeeenta, lebre puuuuuulando no aaaar sobre os mesmo matar quando era adolescente.
ooooooouteiros, o vago era o seu mundo terrestre, Seu nome mescla a mitologia grega à religião
o vago era o de dentro da natureza. (p. 50) cristã. O sobrenome de mentira parece ser meio de se
Além de gostar de ir até o cais, Rodrigo descobre dar maior importância e não ser alguém tão comum.
e comunica aos poucos outros interesses de Macabéa, Trabalhava como metalúrgico. O livro não chega a
entre eles ouvir rádio de madrugada. Maria da Penha, explorar de modo tão explícito as diferenças sociais,
uma das moças com quem dividia o apartamento, talvez porque tenha sido publicado em uma época
emprestava a ela um rádio de pilha e ela ouvia músicas quando a censura militar era bem ativa contra o que
e as mais variadas histórias, além de informações cujo se considerava subversivo, como, por exemplo, apontar
conteúdo ela não sabia quando ou como utilizar. Outra problemas sociais. Mesmo assim, vez ou outra, a
distração era ler anúncios de jornais que ela recortava narrativa leva o leitor a refletir sobre o que significa
para ler à noite sozinha. Era o mundo de fantasia que ser um trabalhador braçal e ao estilo de vida comum,
ela se permitia. Vivia os anúncios e a histórias ouvidas cujo foco é sempre o hoje, não o amanhã, não a criação
no rádio como se fora realidade. Era imaginação, que, de perspectivas. A despeito de algumas ironias: “Mas
me sua mente, virava real. ela e Olímpico era alguém no mundo. ‘Metalúrgico
A narrativa segue, em certo sentido, uma e datilógrafa’ formavam um casal de classe.” (p. 61)
vertente existencialista, para a qual antes de sermos Se Macabéa é pessoa sem grandes projetos, Olímpico
algo, existimos. Que antes de nos construirmos pretende ser deputado, não tanto por querer mudar o
culturalmente, existimos. Eis o ponto do livro. A mundo ou coisa que o valha, e sim por achar pomposa
essência do livro se constrói aos poucos, ao passo que a possibilidade de fazer discursos.
Macabéa está ali em presença desde o início, vamos Passaram a se ver com maior frequência. Macabéa
conhecendo-a passo a passo. “Era apenas fina matéria já o considerava seu namorado, embora por não
orgânica. Existia. Só isto. E eu? De mim só se sabe que acontecer nada além de conversa nesses encontros,
respiro.” (p. 55) Olímpico não a visse do mesmo modo.
Entre alguns fatos de Macabéa, sabemos que Olímpico na verdade não mostrava satisfação
tinha enjoo para comer e que gostava de certos termos nenhuma em namorar Macabéa — é o que
diferentes, mesmo sem saber o significado, como eu descubro agora. Olímpico talvez visse que
efeméride, e que tinha pouca consciência social, no Macabéa não tinha força de raça, era subproduto.
sentido de não entender que a sociedade tem um Mas quando ele viu a colega da Macabéa, sentiu
dinamismo e a organização social não é um dado logo que ela tinha classe. (p. 76)
natural, mas sim cultural e histórico. Como não tem O relacionamento não ocorre de fato porque
consciência do porquê da própria vida, também não Macabéa não se vê como um indivíduo, não consegue
teria essa consciência da realidade circundante. Em se definir por completo, ao contrário de Olímpico, que
um episódio, porém, Macabéa conta ao patrão que percebe sua própria individualidade. “É, você não tem
precisaria arrancar um dente e que teria de ficar à solução. Quanto a mim, de tanto me chamarem, eu
tarde descansando por isso. “E a mentira pegou”. Fato virei eu”, diz Olímpico.
é que teve um dia todo sozinha no apartamento e pôde
As conversas giram em torno daquilo que ela
ver-se como alguém que pode ter prazer em dançar,
ouve no rádio: referência a livros, a peças de teatro,
em ouvir música, em imaginar um possível casamento.
música, cinema, curiosidades inúteis. Embora não
Com frequência, o referido conceito de escritura entenda muito sobre o que fala, acha bonito esse tipo
zero é retomado pelo narrador, que deixa claro ser de assunto. Olímpico, de sua parte, não consegue
ele apenas um condutor da vida da personagem, que entendê-la por completo, talvez ser ela incapaz de
é a própria quem vive como acha melhor. Em outros expressar sua própria individualidade.
termos, o narrador não quer que a personagem seja
Pensar era tão difícil, ela não sabia de que jeito
construída com base em sua visão de mundo e sim com
se pensava. Mas olímpico não só pensava como
base naquilo que ela quer, almeja.
usava palavreado fino. Nunca esqueceria que no
Nem de longe consegui igualar a tentativa de primeiro encontro ele a chamara de “senhorinha”,
repetição artificial do que originalmente eu escrevi ele fizera dela um alguém. Como era um alguém,
sobre o encontro com o seu futuro namorado. É comprou um batom cor-de-rosa. O seu diálogo
59
A hora da estrela, de Clarice Lispector
era sempre oco. Dava-se conta longinquamente Macabéa, que nunca se irritava com ninguém,
de que nunca dissera uma palavra verdadeira. E arrepiava-se com o hábito que Glória tinha de
“amor” ela não chamava de amor, chamava de deixar a frase inacabada. Glória usava uma forte
não-sei-o-quê. água-de-colônia de sândalo e Macabéa, que tinha
– Olhe, Macabéa... estômago delicado, quase vomitava ao sentir o
– Olhe o quê? cheiro. Nada dizia porque Glória era agora a sua
– Não, meu Deus, não é “olhe” de ver, é “olhe” conexão com o mundo. Este mundo fora composto
como quando se quer que uma pessoa escute! pela tia, Glória, o Seu Raimundo e Olímpico — e
Está me escutando? de muito longe as moças com as quais repartia o
– Tudinho, tudinho! quarto. (p. 81)
– Tudinho o quê, meu Deus, pois se eu ainda não Glória, um tanto chateada com a situação, mas
falei! (p. 71) não arrependida, decide tratar melhor Macabéa, chega
Por isso, Olímpico passa a prestar mais atenção mesmo a convidá-la para um lanche em sua casa. A
em Glória, uma carioca, miscigenada entre portuguesa atitude causa indignação em Rodrigo, o narrador:
e um quê de africana, mas que tinha cabelos loiros “Soprar depois de morder?” É algo interessante, pois
pintados. O modo que Olímpico a vê é repleta de vai além daqueles comentários feitos em romances
clichês preconceituosos sobre o corpo da mulher e românticos ou realistas, como no caso de Machado de
outros aspectos: por ser do sul ele a via como superior Assis, em que um narrador tende a tecer comentários
à Macabéa, além disso, por ser um pouco mais gorda, moralizantes. Aqui, é como se o narrador nada pudesse
ter ancas grandes, imaginava que ela lhe daria muitos fazer, apenas seguir o narrado que ocorre por si mesmo.
filhos; por morar com família, possibilitaria a Olímpico Revolta-se, entretanto não toma qualquer atitude.
almoços ou jantares, até porque o pai era açougueiro. Deixa os acontecimentos seguirem seu curso.
Não demora muito e ele termina o namoro com Macabéa, por não ter costume de comer coisas
Macabéa e inicia outro com Glória. diferentes (pegou escondido uma pequena barra de
A verdade é que Olímpico não parece apaixonado chocolate), no dia seguinte passa mal ao ponto de ter
por uma ou por outra, quando muito via no possível de ir ao médico, que, sem muita vontade de consultar
namoro uma maneira de ocupar os momentos livres. a moça, a diagnostica com começo de tuberculose,
Glória, de qualquer modo, poderia ser sua ascensão doença típica dos românticos do século XIX.
social e também meio de se complementar como
Nesse momento, com alguma surpresa por parte
ser. Não era exatamente rica, ainda assim tinha
do leitor, Rodrigo faz uma declaração:
mais dinheiro que ele e também mais dinheiro que
Macabéa. Ela representa o diferente que também o Sim, estou apaixonado por Macabéa a minha
tornaria diferente daquele menino pobre e que fora querida Maca, apaixonado pela sua feiura e
levado a cometer crimes. Ao descrever esse momento, o anonimato total pois ela não é para ninguém.
narrador evoca famosa frase de Euclides da Cunha: “O Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela.
sertanejo é antes de um tudo um forte” transmudada (p. 86)
para “O sertanejo é antes de tudo um paciente”. A declaração se explica porque Macabéa é
Ao ser comunicada de modo nada simpático, despida daquilo que nos torna pertencentes a uma
“Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade classe social, a uma profissão, a um país, enfim
de comer”, a nordestina, ao invés de chorar, passa despida de traços culturais e ideológicos claros. Ela
a rir sem razão aparente. Como ela não tinha uma não é nada, apenas é ser humano. Por isso, Rodrigo
individualidade, também não sabia bem que reações diz ser apaixonado por ela, pelo que ela tem de nada,
deveria ter nesses momentos específicos. A única e, por isso mesmo, pode ser verdadeira, plena, sem
certeza é que gostaria de se casar, de ter um dia de se prender a estereótipos. “Quanto a mim, só sou
noiva, vestir-se com tal e festar. Por isso, resolve dar verdadeiro, quando estou sozinho.” (p. 87)
uma festa de noivado para si mesma. Sobretudo porque Em alguns momentos, o narrador reconhece
era o que via nos anúncios e também ouvia no rádio. estar fazendo literatura, i.e., construindo uma obra
A festa consistiu em comprar sem necessidade um ficcional e, como tal, ele é o condutor da história. Isso
batom novo, não cor-de-rosa como o que usava, fica claro quando, após relatar conversa entre Glória e
mas vermelho vivante. (p.79) Macabéa, em que aquela lhe recomenda consultar uma
Glória, que trabalhava com ela, se assustou com a cartomante para saber de seu futuro, Rodrigo diz estar
mudança e teve um leve despeito, dizendo que a cor era “absolutamente cansado de literatura” e interrompe
próprio de mulheres da vida. Apesar da leve discussão, o narrado por três dias. A última frase grafada fora
Macabéa continuou na sua toada, sem se importar a pergunta de Macabéa ainda sobre a cartomante:
porque o tal namorado fora “roubado’ por uma colega “- É muito caro?” Três dias depois, Rodrigo retoma
de serviço. A partir desse acontecimento, por estranho a narração e repete essa mesma pergunta como se o
que seja, passou a ver em Glória sua ligação com o tempo fora congelado, enquanto ele se restabelecia do
mundo. Era com ela que passara a conversar mais, e cansaço de escrever ainda mais sobre uma personagem
mesmo passara a se autoanalisar ou pelo menos se sem vida, sem futuro e querendo consultar uma
perceber. cartomante a ver se teria algum.

60
A hora da estrela, de Clarice Lispector
Ainda seguindo essa perspectiva, o narrador estar entender o que acontecera. É o momento, a hora em
preocupado com os fatos, contra os quais nada pode que a estrela surge no livro, para transformar Macabéa
fazer a não ser narrar. Eis seu problema, porque os em uma estrela fugaz.
fatos parecem enfadonhos e por isso ele fica cansado Quase o final do livro, o narrador faz uma série
da história. Considerando seu projeto inicial, não quer de considerações em torno do narrado, mais do que já
fazer juízos de valor ou outras considerações variadas. fizera, especialmente para, mais uma vez, se desculpar
(Como é chato lidar com fatos o cotidiano por não poder fazer nada por Macabéa, pois nem ele
me aniquila, estou com preguiça de escrever poderia prever o atropelamento, nem saberia dizer que
esta história que é um desabafo apenas. Vejo aquilo a levaria ou não à morte.
que escrevo aquém e além de mim. Não me Macabéa por acaso vai morrer? Como posso
responsabilizo pelo que agora escrevo.) (p. 90) saber? E nem as pessoas ali presentes sabiam.
Em seguida, narra a ida de Macabéa até Olaria, (p. 100)
onde Madama Carlota, a cartomante, faz suas E adiante:
consultas.
Por enquanto Macabéa não passava de um vago
Conseguiu dispensa do trabalho com outra sentimento nos paralelepípedos sujos. Eu poderia
mentira, Glória lhe emprestara dinheiro e ela foi até deixá-la na rua e simplesmente não acabar
Olaria de taxi. Macabéa ouviu inicialmente a história a história. Mas não: irei até o ar terminar [...]
de Carlota. Soube que ela fora prostituta quando (p. 102)
mais jovem, depois, já sem cliente começou a colocar
cartas, mesmo sob o olhar vigilante da polícia. Para No final, o narrador reflete outra vez sobre a
ela, sempre fora agraciada pela benevolência de Jesus existência, sobre o que pode significar a vida. Há uma
Cristo, a quem devotava toda sua fé. Em sua fase de mescla de clichês, de filosofia existencialista e visão
prostituta, diz que chegou a viver com um homem fixo, cristã, sem que isso interfira de fato na caracterização
mas ele a tratava muito mal, por isso teria se envolvido da personagem, cuja existência ocorre por ela mesma,
com mulheres, para ao menos ter um pouco de carinho sem interferência do narrador.
sem brutalidade. No chão, Macabéa, moribunda, parece
Conforme contava sobre a própria vida, finalmente perceber-se como alguém, como um ser
perguntava a Macabéa se ela já conhecera homem, se existente, devido à quantidade de pessoas que estavam
ela se pintava, se enfeitava com frequência, entre outros próximas, mais olhando-a que tentando ajudá-la.
questionamentos. Ante às negativas, Carlota, com base Eis então o momento em que Macabéa, a estrela do
nas experiências que tivera além de ter aprendido a título, é descoberta, torna-se alguém, por algum tempo
conhecer as pessoas por pouco que lhe revelavam, ao menos, torna-se alvo dos olhares. Ela que nunca
conclui que a vida de Macabéa era horrível: “Macabéa fora vista por ninguém. E essa multidão ouvem-na
empalideceu: nunca lhe ocorrera que sua vida fora dizer uma frase que aparentemente não tem sentido:
tão ruim.” (p. 94) A verdade é que Macabéa nunca “Quanto ao futuro.”
prestara atenção efetivamente em sua vida, se é que Macabéa, com essa afirmação, parece fazer uma
tinha alguma. Para ela, bastava o momento presente. piada, mas ao que parece também tem um tanto de
Por isso, não projetava futuro, nada que demandasse constatação teleológica que a morte pode ter. Ora, a
tempo para se realizar. morte dela liberta Rodrigo de sua obrigação, e o leva
E aqui vem o momento crucial da história de a perceber que ele também é mortal, que pode não
Macabéa, aproxima-se a hora da estrela. Carlota lhe ser o fim. Não se trata de uma explicação cristã, da
diz que sua vida mudará, que ela será mais feliz, possibilidade de ir para o Céu ou para o Inferno, e
em todos os sentidos, no amor, no dinheiro, pois iria sim tem-se a revelação catártica de que a “morte é um
se casar com um homem estrangeiro e rico. E eis o encontro consigo”.
problema para ela, pois como ficar esperando por algo Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos
que ela nem conhecia, não fazia parte da sua realidade assusteis, morrer é um instante, passo logo, eu
imediata. De qualquer modo, Macabéa passou a se sei porque de morrer com a moça. Desculpai-me
sentir outra imediatamente. Mais uma vez pelo poder esta morte. É que não pude evitá-la, a gente aceita
criativo da palavra. tudo porque já beijou a verdade. (p. 105)
Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se Eis o aspecto essencial desse livro em particular
atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. e da obra de Clarice Lispector em geral, o problema
E mudada por palavras – desde Moisés se sabe da existência. Por que existimos? O que somos? O que
que a palavra é divina. Até para atravessar a rua queremos de fato? O que nos torna humanos? Além
ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de disso, há ainda a problemática da mulher, do papel
futuro. (p. 98) do feminino em uma sociedade machista, construída
E, de fato, Macabéa tem um encontro com um para o homem. Sempre importante lembrar que o
homem rico, porém, ao invés de ser um encontro livro foi publicado nos anos 70, quando o discurso
amoroso, ao decidir atravessar a rua, não vê e nem é feminista procurava afirmar sua validade. Macabéa é
vista. Um carro Mercedes a atropela e ela fica jogada nordestina, sem voz, sem vida externa, que aceita a
ao chão, próximo ao meio fio, agonizando e tentando vida como ela é. Glória acredita na felicidade, ainda
61
A hora da estrela, de Clarice Lispector
que tenha de fazer algo moralmente não tão aceitável. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem
Madama Carlota é livre por vias tortas, para afirmar uma palavra era ouvida. Então dançou num ato
sua feminilidade teve de servir o corpo aos homens a de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia.
fim de poder construir uma pretensa identidade. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se
Em conclusão, o livro pode ser lido como revelador tornava: l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente
de que tudo se dá por um processo de construção: conseguida solidão, do rádio de pilha tocando
o autoconstruir-se de Macabéa, o descobrir-se por o mais alto possível, da vastidão do quarto sem
parte do narrador-autor e a construção da narrativa, as Marias. Arrumou, como pedido de favor, um
cujo elemento chave é a linguagem. A linguagem pouco de café solúvel com a dona dos quartos, e,
reprodutora dos fatos, mas também construtora do real ainda como favor, pediu-lhe água fervendo, tomou
ou de uma realidade possível, a que transforma alguém tudo se lambendo e diante do espelho para nada
desconhecido em uma estrela do momento, fugaz. perder de si mesma. Encontrar-se consigo própria
era um bem que ela até então não conhecia. Acho
EXERCÍCIOS que nunca fui tão contente na vida, pensou. Não
devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada.
Até deu-se ao luxo de ter tédio – um tédio até
1. (FUVEST) Em A Hora da Estrela, o narrador muito distinto.
apresenta a seguinte reflexão: “ Pois na hora
da morte a pessoa se torna brilhante estrela de Considerando-se o fragmento e a obra, é correto
cinema, é o instante de glória de cada um e é afirmar:
quando como no canto coral se ouvem agudos (01) 
A personagem apresenta-se como um ser
sibilantes”. dissimulado, astuto e ambicioso.
Com base nela, explique: (02) 
A liberdade proporciona a Macabéa um
(A) Por que o romance tem o título A hora da momento de autoconhecimento.
estrela?
(04) 
A felicidade, para Macabéa, reside na
superação de desafios cotidianos.

(08) A declaração “Às vezes só a mentira salva”
revela relativismo moral e ironia.

(16) 
Solidão e liberdade apresentam-se como
ingredientes necessários ao bem-estar da
personagem.
(32) 
Os motivos da felicidade vivenciada pela
(B) Por que é irônica a relação entre o título e a personagem apontam para a complexidade
história de Macabéa? de seus projetos existenciais.
(64) 
A expressão “as quatro Marias cansadas”
revela, simultaneamente, a perda da
individualidade dessas personagens e o
contraste com a situação de Macabéa,

narrada no fragmento.


3. (FUVEST) Sobre o narrador de A hora da estrela,
de Clarice Lispector, pode-se afirmar que:

(A) (é do tipo observador, pois revela não ter

conhecimento sobre o que se passa no universo
sentimental e psíquico da personagem
(Macabéa).
2. (UFBA) Pois não é que quis descansar as costas (B) (é onisciente, pois assume o papel de criador
por um dia? Sabia que se falasse isso ao chefe ele de uma vida, sobre a qual detém todas as
não acreditaria que lhe doíam as costelas. Então informações; o poder da onisciência é, para
valeu-se de uma mentira que convence mais que ele, fonte de satisfação, pois Rodrigo S. percebe
a verdade: disse ao chefe que no dia seguinte não que os fatos dependem de seu arbítrio.
poderia trabalhar porque arrancar um dente era
muito perigoso. E a mentira pegou. Às vezes só (C) é do tipo observador, pois limita-se a descrever
a mentira salva. Então, no dia seguinte, quando superficialmente as emoções de Macabéa, o
as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela que fica evidente nas ocorrências enigmáticas
teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais do termo “explosão“, apresentado sempre
preciosa: a solidão. Tinha um quarto só para ela. entre parênteses.
62
A hora da estrela, de Clarice Lispector
(D) constitui-se como um personagem, pois narra 6. (ITA) O título do livro A hora da estrela, de Clarice
em primeira pessoa; não há, entretanto, Linspector, diz respeito ao seguinte momento do
referências à sua história pessoal, visto que romance:
seu objetivo é falar sobre um personagem de (A) o desspertar amoroso de Macabéa no namoro
ficção (Macabéa). com Olímpico.
(E) é um dos personagens do livro; entretanto, (B) a descoberta de Macabéa de que Olímpico a
ao apresentar-se não só como narrador, mas traia com Glória.
também como criador da história, problematiza (C) a obtenção por Macabéa de um bom emprego
a essência da literatura de ficção, que reside como datilógrafa.
na recriação arbitrária do real. (D) a previsão do grande futuro de Macabéa, feita
pela cartomante.
4. (FUVEST) Devo registrar aqui uma alegria. é que (E) a morte de Macabéa, atropelada por um carro
a moça num aflitivo domingo sem farofa teve urna de luxo.
inesperada felicidade que era inexplicável: no cais
do porto viu um arco-íris. Experimentando o leve 7. (ENEM) Tudo no mundo começou com um sim.
êxtase, ambicionou logo outro: queria ver, como Uma molécula disse sim a outra molécula e
uma vez em Maceió, espocarem mudos fogos nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia
de artifício. Ela quis mais porque é mesmo uma a pré-história da pré-história e havia o nunca e
verdade que quando se dá a mão, essa gentinha havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas
quer todo o resto, o zé-povinho sonha com fome sei que o universo jamais começou.
de tudo. E quer mas sem direito algum, pois não [...]
é? (Clarice Lispector, A hora da estrela ) Enquanto eu tiver perguntas e não houver
Considerando-se no contexto da obra o trecho
 resposta continuarei a escrever. Como começar
sublinhado, é correto afirmar que, nele, o pelo início, se as coisas acontecem antes de
narrador: acontecer? Se antes da pré-pré- história já havia
os monstros apocalípticos? Se esta história não
(A) assume momentaneamente as convicções existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir
elitistas que, no entanto, procura ocultar no é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o
restante da narrativa. que estou escrevendo. [...] Felicidade? Nunca vi
(B) reproduz, em estilo indireto livre, os palavra mais doida, inventada pelas nordestinas
pensamentos da própria Macabéa diante dos que andam por aí aos montes.
fogos de artifício. Como eu irei dizer agora, esta história será o
(C) hesita quanto ao modo correto de interpretar a resultado de uma visão gradual – há dois anos e
reação de Macabéa frente ao espetáculo. meio venho aos poucos descobrindo os porquês.
É visão da iminência de. De quê? Quem sabe se
(D) adota uma atitude panfletária, criticando mais tarde saberei. Como que estou escrevendo
diretamente as injustiças sociais e cobrando na hora mesma em que sou lido. Só não inicio
sua superação. pelo fim que justificaria o começo – como a
(E) retoma uma frase feita, que expressa morte parece dizer sobre a vida – porque preciso
preconceito antipopular, desenvolvendo-a na registrar os fatos antecedentes.
direção da ironia. LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998 (fragmento).
A elaboração de uma voz narrativa peculiar
5. (FUVEST) “A ação desta história terá como acompanha a trajetória literária de Clarice
resultado minha transfiguração em outrem (…)”. Lispector, culminada com a obra A hora da
Neste excerto de A hora da estrela, o narrador estrela, de 1977, ano da morte da escritora. Nesse
expressa uma de suas tendências mais marcantes, fragmento, nota-se essa peculiaridade porque o
que ele irá reiterar ao longo de todo o livro. Entre narrador
os trechos abaixo, o único que NãO expressa (A) observa os acontecimentos que narra sob uma
tendência correspondente é: ótica distante, sendo indiferente aos fatos e às
(A) “Vejo a nordestina se olhando ao espelho e personagens.
(…) no espelho aparece o meu rosto cansado e (B) relata a história sem ter tido a preocupação de
barbudo. Tanto nós nos intertrocamos”. investigar os motivos que levaram aos eventos
que a compõem.
(B) “é paixão minha ser o outro. No caso a outra”.
(C) revela-se um sujeito que reflete sobre questões
(C) “Enquanto isso, Macabéa no chão parecia se existenciais e sobre a construção do discurso.
tornar cada vez mais uma Macabéa, como se
(D) admite a dificuldade de escrever uma história
chegasse a si mesma”. em razão da complexidade para escolher as
(D) “Queiram os deuses que eu nunca de escreva o palavras exatas.
lázaro porque senão eu me cobriria de lepra”. (E) propõe-se a discutir questões de natureza
(E) “Eu te conheço até o osso por intermédio de filosófica e metafísica, incomuns na narrativa
uma encantação que vem de mim para ti” de ficção.
63
A hora da estrela, de Clarice Lispector
gABARITO
1.a) A hora da estrela alude, metaforicamente, à morte,
ao instante de fulguração rápida, mas reveladora de
todo um sentido de existência. É a epifania à maneira
de Clarice Lispector, dentro da ótica existencialista da
busca do sentido da experiência humana. Além disso,
é uma referência irônica à estrela do automóvel que a
atropela.
b) A ironia, trágica no caso, dá-se pela discrepância
entre a breve aspiração de glória de Macabéa,
insuflada pela cartomante (a miragem da estrela
hollywoodiana), a sua condição social (migrante
nordestina marginalizada no Rio de Janeiro) e seu
destino: atropelada por um carro de luxo, na porta
do Copacabana Palace. A hora da estrela, banal e
reveladora, é o instante maior de Macabéa, anônima,
estatelada na rua, mas objeto da atenção fugaz de
transeuntes anônimos.
2. (08) A declaração “Às vezes só a mentira salva”
revela relativismo moral e ironia.
(16) Solidão e liberdade apresentam-se como
ingredientes necessários ao bem-estar da personagem.
(64) A expressão “as quatro Marias cansadas” revela,
simultaneamente, a perda da individualidade dessas
personagens e o contraste com a situação de Macabéa,
narrada no fragmento.
3.E 4.E 5.C 6.E 7.C

64
Melhores contos de Nélida Piñon
de Nélida Piñon

Uma das escritoras mais estudadas dos últimos são narrados em terceira pessoa e não apresentam
trinta anos tem sido Nélida Piñon (1937). Jornalista personagens com nomes específicos. São sempre
de profissão, a autora vem publicando livros desde tratados por pronomes ou por substantivos: ela, ele,
a década de 60, especialmente romances e contos. homem, mulher etc.
Tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras “Fraternidade” é o primeiro conto, que trata
em 1990 e a primeira mulher eleita para ocupar a inicialmente do relacionamento entre dois irmãos.
presidência da casa. Não é pouca coisa, pois a literatura, No caso, a personagem principal, uma moça, tem de
historicamente, foi exercida mais por homens que por cuidar do irmão doente, após a morte da mãe. O irmão
mulheres. A explicação é um tanto óbvia: a mulher foi vive recluso em seu quarto, acamado. Ela faz tudo
relegada mais aos serviços domésticos que à atividade por ele. Como meio de ter momentos apenas seus,
intelectual. O século XIX até contou com ou uma libertar-se da necessidade dos cuidados que tem para
outra mulher na literatura, mas foi no século XX que com o irmão, ela se entrega a homens viajantes que
surgiram nomes como Raquel de Queiroz, Clarice necessitam de algum pouso.
Lispector, Lygia Fagundes Telles e a própria Nélida Quando a mãe morreu, ninguém da cidade
Piñon. No caso específico da obra literária de Piñon a apareceu para as despedidas do corpo. Mas, a
discussão em torno dos papéis femininos na sociedade filha procurou tudo esquecer. Com a ajuda de
é recorrente. viajantes que ali pernoitaram, nomes obscuros e
Tal temática é bastante comum nos três livros jamais identificados, pôde enterrar a mãe. (p. 21)
de contos de onde foram extraídas as 22 narrativas Um desses homens torna-se seu companheiro
para a coletânea Os melhores contos de Nélida Piñon, fixo. No entanto, o que poderia ser meio de ela ter
publicada em 2014. Do primeiro livro, Tempo das frutas suas atividades divididas, de ter uma colaboração,
(1966), são onze contos; de Sala de armas (1973), seis; transforma-se em outro peso. Ela agora, além de servir
e, de O calor das coisas (1980), outros cinco. ao irmão, deve também estar sempre disposta a seu
A linguagem é um importante meio de homem. Ou seja, deve cumprir seu papel de “esposa”,
manipulação política. É pela linguagem que se “amante”, cuidadora da casa, provedora do lar. O
constroem os discursos e se cria um universo pela meio de tentar subverter essa ordem é pelo sexo. Sabe
literatura. Consciente desse papel, a autora quer, em que, de certo modo, acaba por prender aquele que é
seus contos, revelar os implícitos discursivos e de servido. Trata-se de um jogo entre a visão patriarcal,
que modo o machismo se perpetuou historicamente. de dominação masculina, e a construção do universo
Em contrapartida, por meio da ironia e de outros feminino. Em dado momento da narrativa, esse jogo
mecanismos linguísticos, revela o modo de olhar o volta a ser mais favorável aos homens da casa.
feminino, sem cair no discurso fácil das feministas. Percebia que o homem não dependia do seu
Seu objetivo antes é o mostrar que a opressão deve consentimento para preservar um mundo que
ser combatida pela ação e também pela reconstrução se fez seu na conquista. [...] Nem perguntaram,
discursiva. Sabe que assim terá mais chances de revelar e você, tem fome? O idiota ameaçava falar como
e desvendar a alma das personagens, espelhos do ser se a sua recente habilidade liberasse-o para as
humano. Não se trata, pois, de um texto que pretende tentativas mais ousadas. (p. 36 e 38)
tão somente falar da mulher, e sim compreender o ser
Ela tem consciência de seu papel, tem
humano. consciência de que é a serviçal, ao mesmo tempo
No caso específico de Piñon, nem sempre é possível que projeta reconquistar o terreno perdido. Em dado
separar o enredo, a história, do próprio discurso, tendo momento, cansada desse servilismo, decide matar o
em vista que um constrói o outro. Há em seus textos irmão. Interessante que o faz como se estivesse ainda
uma visão crítica da vida, com um erotismo ora velado, cuidando dele. Limpa-o, troca sua roupa, toca em seu
ora explícito, mas nunca gratuito, como meio também corpo até golpeá-lo mortalmente. Não revela qualquer
de compreender as atitudes humanas. dor ou arrependimento. Ao contrário, sente-se forte,
Para facilitar a análise, vamos tratar dos contos, sabe que é preciso também fazer o mesmo com o
respeitando o livro onde foram originalmente homem que agora dominava a casa. E o faz enquanto
publicados. Desse modo, tem-se uma visão de conjunto ele dorme.
da coletânea. Consciente da sua força, jamais sofrendo os
De Tempo das frutas, incluindo o que dá título resultados de qualquer ato que viesse a praticar,
ao volume, há onze contos. Publicado originalmente olhou as mãos, a faca no bolso da saia e
em 1966, insere-se em um contexto de busca de mais murmurou, até que será fácil se eu não tiver pena.
direitos às mulheres, no sentido de proporcionar que E caprichosa, entrou no quarto onde certamente
a mulher fale, tenha liberdade para se expressar. Um estendia-se o homem amado. (p. 41)
dos caminhos é explorar a sensualidade do corpo, “Breve Flor” relata a história do crescimento
não a do sexo pelo sexo, e sim como meio de afirmar sentimental de uma moça, que se relaciona com o
sua individualidade, de constituir-se. Os contos primeiro rapaz que lhe agrada. Seria algo como para
65
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
sair de sua rotina busca alguém que a complemente, ela de modo diferente, passa a nutrir não ainda uma
que a complete. Inexperiente, engravida desse primeiro paixão, e sim o conflito entre o que ela é, o papel que
homem, que a abandona antes mesmo do nascimento ela desempenha, bem como a diferença de idade entre
do filho. Já mãe, relaciona-se com outro homem, não eles. Ainda assim, em dado momento, sente um pouco
por amor, mas por necessidade um tanto financeira, de ciúmes ao perceber que uma menina se aproxima
outro tanto para ter suporte, proteção. Após o menino do “seu” menino. Repreende-os ao ponto de mais tarde
ter crescido, percebe que seu relacionamento não tem haver até a necessidade de uma reunião com os pais,
mais razão de ser, além disso percebe que viver em um uma suspensão do menino.
sítio era pouco para ela, para o que imaginava ser a Após o episódio, a aproximação parece inevitável,
vida que projetara, especialmente no que diz respeito e passam a conversar sobre assuntos gerais.
à construção de sua identidade como ser humano e À medida que ele falava, aquele corpo, e
como mulher, em particular. Parte com o filho para a definitivamente percebia-o um homem, embora
cidade. Acolheram-nos uma casa de freiras, mas a vida inexperiente para amar, revelou-se desajeitado,
reclusa, de oração e trabalho também não a satisfazia. perdendo a harmonia que ela sempre teimara
Despediram-se no dia seguinte, abafando certa descobrir. (p. 59)
fé que sufoca as decisões necessárias, ainda que Sozinha, começa a pensar nas possíveis
reconhecessem luta maior se iniciando. (p. 49) consequências, positivas e negativas, de uma
Nesse tempo todo, o menino virara homem. aproximação efetiva. Decide, por fim, que irá se
Sempre um cuidando do outro, trabalhando em declarar ao menino, por não suportar mais a agonia
conjunto. Trata-se de uma história de amor materno daquele sentimento, era preciso expressar-se, revelar
e filial, cujo título se explica após a morte da mulher. o que era oculto. Porém, para sua surpresa e decepção,
“Quando o filho a enterrou, enfeitou-lhe a sepultura viu, na sala de aula, que o menino era ainda apenas um
com a brevidade das flores” (p. 50) O título sugere adolescente, imaturo e incerto em seus sentimentos.
algo romântico, segundo a visão tradicional da mulher, Percebeu isso, ao ver novamente a menina próxima
ou seja, aquela que deve cuidar do lar, do marido. No a ele, conversando com mais desenvoltura, mais
entanto, a mulher desse conto não fica à espera, está cuidado, com olhares desejosos.
sempre em busca de algo, como de resto os demais A se ressaltar, portanto, que o enredo contraria
contos de Nélida Piñon que têm como personagem aquela visão tradicional da professorinha, cuja função
principal uma mulher. seria a de ensinar tão somente. No caso, essa professora
O mesmo se dá em “Aventura de saber”, que revela uma sensualidade, vai contra o senso comum,
lembra um pouco “Missa do Galo”, de Machado de de qualquer época e, particularmente, do contexto
Assis (detalhe, a autora escreveu “O ilustre Menezes”, anterior às revoluções feminista e sexual dos anos 60.
em que reescreve esse conto de Machado. Adiante Nessa mesma linha, está “Tempo das frutas”, em
iremos analisá-lo). Em ambos os contos, há um jogo que uma senhora de 70 anos revela a sua filha estar
sensual entre uma mulher adulta e um rapaz ou, no grávida. Se no século XXI a prática do sexo por uma
caso do conto de Nélida, mais especificamente um mulher idosa pode ser vista como algo normal, na
adolescente. década de 60 do século passado era quase uma afronta
O leitor da época em que foi publicado o conto à moral vigente. Não por acaso, a primeira frase do
(anos 60) pode ter se sentido mais incomodado, conto é da perspectiva da jovem, que “teve nojo do seu
cheiro como daquela velhice que era a aparência da
sobretudo porque era mais incomum uma mulher
morte” (p. 97). Aos poucos, porém, a jovem compreende
mais velha se relacionar com alguém mais jovem. Não
que uma mulher mais idosa, mais madura pode ainda
que isso não acontecesse, mas sem dúvida sugeria
amar, ser amada, pode ainda sentir prazer. Não está
um escândalo, agravado ainda mais pelo fato de essa
apenas à espera da morte.
mulher ser a professora do menino. Modernamente, o
caso tem o seu tanto de escandaloso, ainda mais por se Em “A força do poço” e “Miguel e seu destino”,
tratar de um menor de idade, mas a sociedade parece temos a temática da loucura. O que se observa em
aceitar um pouco mais relacionamentos nem sempre ambos os contos é que a perda da sanidade, motiva a
convencionais, por assim dizer. construção do sentido para a vida em outros aspectos.
No primeiro caso, o personagem principal vê em um
Como se trata de algo não aberto, não público, o poço algo que o ligaria a seu universo particular,
caso se estabelece antes na mente que propriamente uma vez que qualquer outro lugar ou objeto não lhe
na realidade. Um jogo em que misturam sensualidade devolveriam o sentido.
tímida e desejos contraditórios.
Levado para o hospital, ali ficou em repouso. A
O conto de Piñon se inicia com o retorno de uma cabeça estourava no riso e na lágrima, expulsando
professora às suas atividades após uma estranha doença. a galanteria dos momentos amáveis. Parecia o
Em seguida, o leitor, por meio de uma narrativa sutil, corpo crescer esmagado contra a parede, tais os
singela, poética e delicada, toma contato com o que recursos que o impulsionavam contra as extensões
ocorrera. No caso, a professora passa a notar entre os brancas. Logo que o rosto tornou-se severo e
alunos de uma turma (nada é nomeado explicitamente, a mancha das explosões fáceis o abandonou,
fica apenas no âmbito do indefinido). Em um primeiro os amigos suspenderam as visitas, e a família
momento, percebendo que o menino parecia olhar para também. (p. 61).
66
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
Por isso, a solução foi passar a viver em um Também fica sugerido no conto que o homem não
poço. O que era uma atitude desesperada, revelou-se desejou ter se tornado pai desse menino. A paternidade
sua escapatória. Era ali que via sentido em sua vida, ocorreu a contragosto. Não por acaso o filho desde
tentando reconstruir-se como ser, como indivíduo. sempre percebeu tal distanciamento. Agora, doente,
Ia conquistando paciente a liberdade através da percebe a intenção do pai, não a vê como algo positivo,
sujeira e da fragmentação do corpo. Restava-lhe e sim apenas como uma mera obrigação do adulto e
agora desfrutá-la. Sim, o homem se aperfeiçoava, não um desejo real. A comunicação entre eles não se
a despeito das dificuldades. (p. 66) estabelece naturalmente; fica sempre no limite de um
possível conflito. Ao mesmo tempo, parece haver um
No caso de “Miguel e seu destino”, o personagem sentimento à espera de um gesto verdadeiro de parte
principal, um dos únicos que são nomeados em todo o a parte.
primeiro livro de contos, motivado por comiseração e
O pai aproximou-se, a respiração intensa e rara,
também por desvio da racionalidade, Miguel cumpre o
pousou delicado os lábios na testa febril, a mesma
seu destino, no caso matar um indivíduo leproso (hoje,
intensidade severa com que uma boca trabalha
diríamos portador de hanseníase). Para dar sentido
uma outra ampliando-se. [...] O menino temia a
ao seu ato, estabelece uma analogia entre matar um
sobrevivência após a liberdade do carinho [...]
animal qualquer, como um porco, para que possamos
(p. 94)
nos alimentar, e matar uma pessoa doente, como meio
de aliviá-la do sofrimento. Um conto, portanto, que aborda a dificuldade de
comunicação entre pessoas que se conhecem e que
Depois de ter vivido aquela intimidade sufocada não querem a amizade mútua por tão somente uma
por feridas, apenas os olhos libertos do horror em obrigação parentesca.
que se tornar, nenhum homem podia viver em paz.
Aquele ato consumia a sua vida. (p. 73) Em outra linha encontra-se “Vestígio”, conto com
certa tendência para o fantástico, ainda que não pertença
Outro conto em que se tem a presença de algo de maneira específica a esse gênero literário. Trata-se
aparentemente sem sentido é “A vaca bojuda”. Não antes de uma alegoria. Sete monstros provocavam o
se pode afirmar categoricamente que temos outro terror em uma floresta, onde matavam, estupravam
caso de insanidade. Ainda assim, o proprietário da e mesmo comiam pessoas que ousassem passar pelo
vaca deixa de a ver como um simples animal, para local. São descritos como seres inteligentes, porém
considerá-la uma amiga, uma companheira. Mesmo sem qualquer civilidade, a não ser a de satisfazer as
sendo casado e tendo família, parece que é com a vaca necessidades básicas: alimentar-se e praticar sexo. Até
que a vida tem mais sentido para ele. O título, vaca que um desses monstros pega uma menina de 14 anos
bojuda, é por referência à descrição da vaca: gorda e a leva para os demais. Seguindo sua prática habitual,
ou arredondada. O ponto culminante ocorre quando a matam e barbarizam a menina, comendo sua carne e
vaca, doente, falece. O homem então, para se despedir bebendo do seu sangue. Porém, ao procurarem objetos
da amiga, faz o enterro do animal como se fosse um ser na bolsa da menina encontram um broche e uma foto.
humano, e exige a presença de toda a família. Como Esses dois objetos despertam nos monstros um senso
nos dois contos anteriores, o objetivo é revelar que os de humanidade. O fetiche dos objetos os fazem se ver
indivíduos buscam um sentido para a própria vida. No como destruidores da humanidade.
caso específico desse homem, mais do que cuidar da Olhou-o durante muito tempo. Depois foi passando
família, embora o fizesse, o sentido estava na amizade adiante, e todos com a mesma intensidade
com a vaca. Esse é o significado mais geral dos contos apreciavam. Arrumaram então nobremente o
de Nélida Piñon. Se a vida é um constructo, há que se broche, e seu retrato bonito, sobre os ossos da
buscar algo significativo para dar razão à ela. menina, e, de repente, os monstros choraram.
Com “Menino doente”, a autora, para além de (p. 113)
abordar a doença de uma criança, quer, antes, revelar É o último conto do primeiro livro da coletânea.
o distanciamento entre pai e filho. Segundo o que Seguindo a mensagem geral, a autora quer chamar
se depreende da leitura, o pai, por trabalhar muito e a atenção do leitor para uma necessária mudança
passar pouco tempo em casa, acaba vendo o filho mais do mundo machista, selvagem e que pouco daria
à noite, sem que entre eles houvesse maior afinidade. ouvido dá às necessidades femininas. Não podemos
Por isso mesmo, agora doente, o menino se mantém dizer, contudo, que são contos feministas no sentido
arredio às investidas do pai, que, por sua vez, queria estrito do termo, que seguiriam uma ideologia sexista,
uma aproximação ainda que tímida, nesse momento mas sim que há necessidade de se compreender
de convalescença do garoto. Com efeito, não parece melhor a humanidade da mulher. É isso que, mesmo
querer a amizade de ninguém, mas é contra o pai que tardiamente, fizeram os monstros em questão.
se volta. Em um outro conto ainda do primeiro livro,
O menino observava-o como a um estranho, retoma-se a questão do papel da mulher na sociedade.
inclinado a ridicularizar aquele hábito “Rosto universal”, por exemplo, narra a história de um
desesperado e intransigente de apelar para o seu casal, que se mantém unidos não tanto por amor, que
amor a fim de que ambos esquecessem da verdade se perdeu com o tempo, mas sim por uma necessidade
que jamais abordariam corajosos. (p. 90) mútua. Embora a separação e o divórcio fossem

67
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
possíveis na década de 60, era sempre uma vergonha por Embora se tenha uma mulher submissa, há
indicar uma falha, a falência do projeto pessoal. Razão a busca pela felicidade efetiva, que só chega após
pela qual, o casamento poderia ser visto como meio provações. Por isso o título: o paraíso só vem após a
de construção de uma identidade mútua, ao mesmo “tempestade”. Na sociedade brasileira, o homem é
tempo que meio de cerceamento das individualidades, visto como autoridade. Nesse sentido, a mulher deve
dos projetos pessoais. A reflexão parte da mulher que, seguir o exemplo de Penélope, eternamente à espera
após uma noite de sexo, fica olhando para o corpo de seu Ulisses. Cabe a ela ser prendada, boa dona de
do homem, buscando compreender o que motivava casa, boa esposa sempre marcada pelo silêncio e pela
duas pessoas se aproximarem, ficarem juntos, terem obediência. O conto se opõe a outro do mesmo livro:
relações íntimas. Reflete também sobre o conceito “Colheita”.
de um pertencer ao outro, algo como “meu marido”, Nesse conto, a personagem feminina, casada,
“minha mulher”, como se a individualidade devesse fica sozinha à espera do marido que tem de fazer
se anular completamente em favor de uma união uma longa viagem. Antes, porém, o homem, antes de
indissolúvel. deixar sua “Penélope” para conquistar outras terras,
A mulher constrangia-se em possuir um homem desempenhar seu papel de homem, por assim dizer,
constrangido em possuir uma mulher, e era uma marca o próprio território, deixando com a esposa uma
luta de afinação, à procura do som perfeito. (p. 88) foto. Algo semelhante ao que fazem os casais nas redes
sociais de modo a dizer, “ela me pertence”.
Do segundo livro presente na coletânea, Sala
de armas, publicado em 1973, há seis contos, entre Viveram juntos todas as horas disponíveis até a
os quais um dos mais famosos da autora: “Colheita”. separação. Sua última frase foi simples: com você
Os contos seguem a tendência do primeiro livro, conheci o paraíso. A delicadeza comoveu a mulher,
especialmente no que diz respeito à tematização embora os diálogos do homem a inquietassem.
da mulher, da condição feminina, sem ser, repita-se, (p. 152)
pertencente ao feminismo tacanho e radical. Além Como a Penélope da Odisseia, ela também não
disso, a autora apresenta uma maior maturidade permitiu que nenhum homem se aproximasse dela com
estética, o que significa um apuro maior no trato da a ausência do marido. Porém, não ficou simplesmente
linguagem literária e na composição dos textos. à espera do seu homem. Passou a se reconstruir como
mulher. Esse momento de espera serviu-lhe para uma
Outro aspecto é que os contos desse livro
busca da sua própria identidade. Sempre mudava o
remetem o leitor a alguns mitos fundadores, isto é,
vestido, usando cores vibrantes, também cuidou com
exploram os arquétipos humanos, que seriam, segundo
esmero da casa, do mesmo modo que passou a tomar
Jung um conjunto de imagens psíquicas presentes no posse efetiva do que lhe pertencia. Não demorou muito
inconsciente coletivo. para pegar o retrato do marido e escondê-lo da vista,
“Ave de paraíso”, por exemplo, lembra a famosa não por ódio, mas para afirmar sua identidade, marcar
história de Ulisses e Penélope na Odisseia, de Homero. ela própria o território com sua personalidade, com seu
Apenas como lembrança, Ulisses ficou dez anos longe modo de ser.
de seu reino e de sua esposa por ocasião da Guerra de [...] porque você precisou da sua rebeldia, eu vivo
Troia, depois levou mais 17 anos tentando retornar a só, não sei se a guerra tragou você, não sei sequer
Ítaca. Todo esse tempo fez que todos imaginassem que se devo comemorar sua morte com o sacrifício da
o rei havia morrido e por isso propunham a Penélope minha vida.” (p. 153).
casamento. Como ela nunca perdera as esperanças,
Desse modo, sua voz se torna altíssona em
dizia que só se casaria quando o vestido estivesse
contraste à ausência do marido, tanto física quanto
pronto. Porém, costurava durante o dia e desmanchava
espiritual, ainda que em nenhum momento tenha
à noite para evitar o casamento.
imaginado trai-lo com outro. Tempos depois, com o
No caso do conto, uma mulher casada a contragosto retorno dele à casa, o conto tem seu ápice. Inicialmente,
da família e mesmo de amigas vive o infortúnio de ficar o marido descobre que o retrato fora retirado do local e
meses sem o marido em casa. Não fica claro o porquê o descobre escondido no armário. Apesar de estranhar,
das ausências, apenas que toda vez que ele chega, ela aceita a desculpa da mulher que ele ficava livre da
o recebe com grande alegria, fazendo de tudo o que sujeira. E complementa:
pode para ele. Nas ausências seguintes, ao retornar – Tenho tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a
ele usa disfarces para causar alguma desconfiança terra, sabe, e além do mais... (p. 156)
na vizinhança (Ulisses, por exemplo, se fez de louco).
Ao que parece queria também testar a fidelidade da Ela, no entanto, interrompe o discurso do marido
esposa. No final do conto, após idas e vindas, o marido e começa a falar, a discorrer sobre o que fizera, sobre
o que acontecera na sua ausência. Uma espécie de
diz à esposa que agora irão iniciar efetivamente uma
Viagem ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre
vida a dois.
(1763-1852). Quanto mais ela falava da aventura de
– Terminou o tempo da provação. Desta vez eu vim ter ficado em sua própria casa, em torno da sua própria
para ficar. vida, ele se diminuía, percebia que sua viagem, o que
A mulher escondendo a profunda alegria olhou descobrira aqui e ali, as conquistas que tivera pouco
o homem, em seguida correu para a cozinha. importavam frente à narrativa da esposa, diante da
Ninguém a superava nas tortas de chocolate. construção e reconstrução que ela empreendera de si
(p. 122) mesma, do espaço que era comum aos dois.

68
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
E tanto ela ia relatando os longos anos de sua gado, à falência da agricultura da época. Além disso,
espera, um cotidiano que em sua boca alcançava Eleusis representa as quatro estações do ano e os
vigor, que temia ele interromper um só momento o quatro pontos cardeais. Desse modo, compreender a
que ela projetava dentro como se cuspisse pérolas, simbologia da personagem é compreender o espaço
cachorros miniaturas, e uma grama viçosa, mesmo circundante, é ter uma visão ampla, global do espaço.
a pretexto de viver junto com ela as coisas que ele Nesse conto, encontramos outra referência à
havia vivido sozinho. (p. 157) Penélope, agora mais explícita. Ao contrário desta que
Enfim percebeu que ela adquirira voz, adquirira se submetia às vontades masculinas, Eleusis não abdica
vontades que ele nunca imaginara que ela poderia ter. de sua liberdade, de sua própria vontade. Pertencia à
Qualquer aventura, conquista dele se apequenavam terra, mas não queria se prender a um único espaço,
diante da força que adquira essa “Penélope” moderna. a um único lugar. Era preciso espalhar-se, conquistar.
“Ela não cessava de se apoderar das palavras, pela Ser. Essa é a mensagem do conto.
primeira vez em tanto tempo explicava sua vida”. Em “Vida de estimação”, ainda se está no âmbito
(p. 158) da natureza, da religiosidade, mas no caso trata-se de
Desse modo, quando no momento da partida do uma simbolização da figura de Cristo. Um casal adota
homem ela ficara em silêncio e apenas o observara, um bezerro. Passa a tratá-lo como a um igual, dentro
sem qualquer admoestação, permitindo a ele ser o de casa, tratado a “leite, pão e vegetais. Em nenhum
detentor do discurso, no final da narrativa ela assume momento, sua forma se modificou, para agradar ao
esse papel. E ele tem de se calar ante aquela conquista. homem ou à mulher. Atendia ao crescimento com suas
manchas brancas na pele”. (p. 123)
Outro conto que retoma aspectos mitológicos,
bem como arquetípicos é “Os mistérios de Eleusis”, Deixam a cidade em direção ao campo. O casal,
referência tanto à cidade localizada no nordeste de porém, não tem certeza sobre o que seria aquele animal,
Atenas, bem como aos mistérios do culto a Deméter, quão igual ou quão diferente seria deles. Deixam-no
deusa chamada de A Grande Mãe por ter buscado na cidade e três dias depois vão buscá-lo, para deixá-lo
salvar a filha Perséfone do reino da morte, para onde foi em um estábulo. Sentem-se culpados por isso. Há uma
levada por Hades, deus do mundo dos mortos. O termo clara relação com o início do cristianismo. Cristo nasce
Eleusis deu origem aos chamados “Campos Elísios”, em um estábulo, seus pais, por assim dizer, tiveram de
que seria uma espécie de paraíso na mitologia grega. abandonar a cidade e se esconder para gerar o Cristo.
Seu nascimento se deu como meio de apagar uma culpa
O culto se destinava inicialmente apenas às
original da humanidade. Ao mesmo tempo, o bezerro
mulheres. Esses ritos Eleusínios foram praticados por
(a rigor, Cristo é mais associado a uma ovelha ou o
quase dois milênios sem que se revelasse, aos não
pastor das ovelhas) pode ser considerado igualmente
iniciados, nada a respeito dos rituais ou das iniciações.
uma referência ao bezerro de ouro que os hebreus
O que chegou até nós, veio com base nas referências
passaram a adorar no lugar de Deus, por ocasião da
literárias e também na visão cristã sobre as chamadas
saída do Egito em busca da Terra Prometida, conforme
práticas pagãs. se lê no livro do Êxodo, capítulo 32.
Piñon traz para sua narrativa o que seriam esses Há, no conto, desde o início uma personificação
mistérios, esse mito. A narradora tenta decifrar as do bezerro, que, por sua vez, tenta se reconstruir como
atitudes de Eleusis, transformada em personagem animal:
mítica, que, por sua vez, se metamorfoseia em animais
ou plantas, como meio de estabelecer um diálogo com E ainda que não falasse [...] seu rosto trazia ao
o cosmos, com o oculto e a linguagem simbólica. mundo expressões pungentes. [...]
Ainda tentou pastar. Pastar nutrindo-se de erva,
Eleusis tinha o hábito de morrer. Assumia para libertar-se da danação do alimento dos
diariamente novas formas. Um espetáculo a que homens. (p. 125)
eu ia me acostumando. Sem jamais saber se ela
era o gato de plumas leves, vapor de ácido, que Abandonou sua terra, tentou encontrar os seus,
me contemplava. Ou havia se transformado em porém sempre com o “perigo de ser amarrado, tangido
água de um rio em tormenta, para deste modo e crucificado” (p. 126).
viver um estado difícil. (p. 129) Com tudo isso, o casal sente-se preterido pelo
bezerro, a quem haviam criado como ser humano.
A deusa Demeter é ligada à terra e representa a
Desse modo, o que parecia uma união foi se rompendo.
natureza, a agricultura. Segundo a lenda, seu papel
O bezerro parecia pretender corrigir as falhas da
é percorrer os campos e espalhar seus ensinamentos
criação, tanto do lado humano, quanto animal. O final
oralmente. A narradora do conto tenta compreender
do conto é outra clara referência à passagem de Cristo.
esses mistérios, percorrendo o labirinto para decifrar
Cansados, o casal resolve vender o bezerro em uma
a simbologia de Eleusis, igualmente ligada aos
feira. Assim como Cristo fora delatado por dinheiro,
elementos da natureza para também expressar, sob
também acusara os vendedores de fazerem do Templo
olhar feminino, a travessia humana.
um lugar de comércio, não de oração. O conto, pois,
Exatamente por essas atribuições, quando expressa as oposições discursivas entre a construção
Demeter abandona a terra para ir em busca da filha, cristã da civilização e outra mais libertária, mais
há uma esterilidade da terra, o que leva à morte do humana, mais sujeita a falhas.
69
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
Um dos contos mais fortes do livro é “Cortejo quebrar paradigmas, de modo a buscar novas formas
do divino”. Nesse conto, um casal é julgado por se de olhar. O objetivo último é sempre a construção
amarem muito. Desde o início, cada um está preso em da identidade, daquilo que nos define em um dado
sua cela, sendo constantemente interrogados para se espaço, mas também nos define como seres humanos.
entender o que significaria o amor que teria um pelo “I love my husband”, por exemplo, é narrado da
outro. A mulher está em um convento e o homem em perspectiva feminina, com o objetivo de traçar um perfil
outro local. da família tradicional brasileira, em que cabe à mulher
A denúncia havia surgido quando se descobriu o trabalho doméstico e ao homem o sustento. Discute-
aquela veemência. O fato do homem e da mulher se, pois, essa divisão social, sobretudo pela opressão
terem adotado hábitos amorosos que contrariavam a que é submetida a mulher, que não tem domínio
tudo que se inventara até então, ao menos esta era sobre o próprio corpo, cuja função é servir o marido
a suspeita geral. (p. 137) de todos os modos. É uma revolução silenciosa, que se
O problema é que esse amor vai além do faz primeiro no espírito, em seu processo de percepção
entendimento humano, além de ser visto como um da realidade, para depois começar a realizar-se nas
sortilégio e mesmo uma heresia, pois tal amor era palavras, por fim constituir-se como novo mundo.
considerado superior a que o homem deve ter por Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando
Deus. De fato, a mulher declara amar seu homem de a louça, fazendo compras, e por cima reclamo
modo até a se esquecer de Deus. Trata-se, pois, da da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com
“volúpia de vencer a divindade pelo poder da carne”. pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros
Uma afronta ao que é conhecido, ao que é aceito; uma venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo
afronta ao amor divinal, não carnal, portanto. E contra esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e
isso, a população local se insurge. visíveis. (p. 163)
Para se ter uma comprovação desse amor, o juiz Publicado num momento em que a ditadura
decide soltá-los para que pudessem ser observados e militar perdia força - era já o governo Figueiredo
vigiados. No entanto, ao contrário do que era esperado, (1979-1985), o último presidente militar -, o medo e
o casal mantém-se distante. Durante o tempo de o silêncio ainda eram ardis para coibir manifestações
prisão, o homem ficara cego. Talvez por isso ou por um mais acentuadas. É o que subsiste em “I love my
acordo tácito, “a partir daquele dia, jamais se tocaram husband”, no qual a mulher tem consciência de sua
uma única vez, ou se disseram uma palavra. Nem ela subserviência, reclama por mais liberdade, no sentido
o ajudou, pelo fato de ele agora exigir trato especial”. de poder fazer sua voz ser ouvida, ao mesmo tempo
(p. 139) em que percebe ser melhor manter a vida dentro do
padrão que aprendeu. Somente assim poderia ser uma
Pretendia-se pegá-los em relação íntima intensa
mulher. Chega mesmo a penitenciar-se:
para que se tivesse uma justificativa para poder
matá-los. O casal até permanecia sempre bem Estes meus atos de pássaro são bem indignos,
próximo, mas sem uma relação amorosa efetiva, sem feririam a honra do meu marido. Contrita, peço-
mais manifestar o amor para decepção de todos. lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe
esquivar-me de tais tentações. Ele parece perdoar-
Ninguém mais suportava aquela altiva resistência. me à distância, aplaude minha submissão ao
Os dois rostos destilando um prazer diário, mas de cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada
fúria tão esquiva que se abrigava, e jamais se viu ano. (p. 169)
sua luxúria. (p. 141)
A questão expressa no conto não se refere
No último conto do segundo livro, “Oriente unicamente à ditadura militar (ainda que seja uma
próximo”, uma mulher, narradora do conto, trata chave de leitura), mas sim a que trata da subserviência
sobre a aproximação cultural que teve com quatro feminina, que começava a ser questionada à época.
turcos e como, entre diferenças e semelhanças, Como referência, podemos citar a série da Rede Globo,
descobriram-se ser todos humanos. Trata-se de uma Malu Mulher, em que, no início dos anos 80, Regina
temática recorrente na obra de Nélida Piñon, que vê Duarte, no papel de Malu, encarnava a imagem da
no Oriente a confluência das três maiores religiões mulher independente. Separada, tem de trabalhar
monoteístas da humanidade, seus pontos de contato e para sustentar a filha, namorava e abordava questões
suas divergências. Entender o outro é uma forma de se bastante polêmicas para a época como aborto, pílula
conhecer também. anticoncepcional e virgindade. O seriado representou
[...] eu prevenira aos amigos sobre o estranho a conquista social empreendida pela mulher. O conto
comportamento que adotariam sem aviso. Vinham contextualiza a mesma situação.
de terras longínquas, de hábitos peculiares, que Duas vozes se apresentam no conto.
devíamos respeitar, antes de julgá-los engraçados. Paradoxalmente, se complementam e se distanciam.
(p. 144) Complementam-se pela visão do marido, que acredita
Do terceiro livro da coletânea, O calor das coisas, ser dotado da tarefa de fazer o país progredir e
publicado em 1980, são destacados cinco contos. Nesse necessitar do suporte doméstico fornecido pela
livro, Piñon repete alguns temas, mas acrescenta esposa; distanciam-se pela visão da mulher que quer
outros, sempre sob olhar contestador, de modo a completar-se como ser para além de simples suporte

70
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
do marido. Tais visões estão representadas pelo O mesmo discurso está presente em “O
tempo: o passado, que indica, na mente da mulher, ilustre Menezes”, no qual a visão masculina é a
sua individualidade, o presente, em que existe como preponderante, mas para cuja compreensão há que se
entidade que complementa o homem, e o futuro que ouvir a voz feminina.
devolveria a identidade para a mulher. Escrito originalmente para uma coletânea
O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos intitulada Missa do galo: variações sobre o mesmo
e o jornal caído no chão, pedia-me, o que significa tema, o conto obedece à ideia, proposta pelo escritor
este repúdio a um ninho de amor, segurança, Osman Lins, em 1977. Autores deveriam escrever
tranquilidade, enfim a nossa maravilhosa paz narrativas tendo como mote o conto “Missa do galo”,
conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal escrito por Machado de Assis e publicado no livro
se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só Páginas recolhidas, de 1899. No conto original, o
porque mencionei esta palavra que te entristece, narrador é Nogueira, um jovem de dezessete anos
tanto que você começa a chorar discreto, porque de idade que estava no Rio de Janeiro para estudar.
o teu orgulho não lhe permite o pranto convulso, Hospeda-se na casa do escrivão Menezes, viúvo de
este sim, reservado à minha condição de mulher? uma de suas primas e casado em segundas núpcias
Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te com Conceição, uma mulher de trinta anos de idade
cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. que parece se resignar com uma relação extraconjugal
Será que apagando o futuro agora ainda há tempo do marido. Vivem na casa, ainda, D. Inácia, mãe de
de salvar-te? (p. 166) Conceição, e duas escravas.
Depois dessa conversa, a mulher volta a servir seu O título se explica porque na noite do dia 24 de
marido, dando o suporte necessário: comida, roupa, dezembro, Nogueira fica na sala lendo à espera de
conforto, carinho, sexo. Cabia a ela, manter a tradição, um amigo com quem iria à Missa do Galo. Conceição
manter a estrutura familiar intacta. Era preciso, pois, resolve fazer-lhe companhia e mantém com o rapaz
anular-se para ser. uma conversação ambígua, em que a sensualidade está
presente, mas não se manifesta de modo explícito. Pela
Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do
tradição, hoje não mais seguida por diversos motivos,
meu casamento. E porque viverás a vida do teu
a Missa do Galo era rezada à meia noite.
marido, nós te garantimos, através deste ato, que
serás jovem para sempre. [...] Ele é único a trazer- O conto de Nélida Piñon é narrado da perspectiva
me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma do escrivão. A autora não subverte o enredo do texto
semana de atraso. (p. 168) original, ou seja, Menezes é casado com Conceição,
vive com a sogra também, e, igualmente, mantém
O título do conto, em inglês, é retomado em
um caso extraconjugal, a despeito da vigilância de D.
pelo menos quatro momentos do conto. “Eu amo meu
Inácia e do silêncio incriminador da esposa.
marido”, “Sou a sombra do homem que todos dizem
eu amar”, “Não é verdade que te amo, marido?”, Conceição poupou-me de maiores explicações.
“Sou grata pelo esforço que faz em amar-me”. A Havia aprendido que entre casais baniam-se
primeira frase é categórica. É a tradução do título. exatamente as palavras que poderiam exaurir o
Mas é a partir dela que passa a questionar se seria delicado tema. Desde a primeira noite decidiu
amor ou apenas obrigação do casamento. A segunda pela obediência. Se a surpreendi alguma vez
frase indica a visão de fora. Certamente aos olhos discreto pranto, garantiu-me devê-lo às aflições
alheios, o casamento dela é perfeito. E, se é perfeito, tão próprias da natureza feminina. (p. 174)
o amor certamente existe. A terceira é questionadora, O leitor tem, pois, acesso à perspectiva e à
pois procura entender a perspectiva do marido, para explicação do Menezes para suas atitudes pouco
quem ser amado é ser respeitado em sua autoridade dignas em relação à esposa. Homem sério perante a
e ter os serviços domésticos feitos conforme deseja. sociedade, não se excedia nos gastos e era respeitado
Ora, se tudo é feito como imagina, então deve ser por todos, por isso era ilustre. Mesmo D. Inácia, que
amado... Por fim, a perspectiva é invertida. A mulher, vez ou outra, parecia querer falar-lhe algo, mantinha-
ironicamente, percebe que, embora não seja amada de se em posição de defesa, até para garantir o próprio
verdade (chega mesmo a imaginar que o amor poderia sustento e o da filha.
acontecer para ela com outro homem), ao fazer tudo o Não darei a Conceição outros motivos de queixa
que marido quer, pensa que o sentimento do marido além do que já tem. Os direitos que lhe assegurei,
poderia, ilusoriamente, ser comparado ao verdadeiro devem tranquilizá-la. Pode D. Inácia testemunha
amor. a meu favor. (p. 175)
O conto é finalizado com a mesma frase com que Para ele, a necessidade do sustento torna-se uma
é iniciado. É, porém, introduzida por uma interjeição garantia de que nada fariam para ir contra sua maneira
afirmativa que parece indicar uma constante e de viver. Sabendo que, fora do casamento, à mulher
necessária obrigação de lembrar-se do seu amor: “Ah, pouco restava como meio de sobrevivência, manipulava
sim, eu amo meu marido”. A questão toda não deve esposa, sogra e também amante, a quem dava sustento.
ser vista apenas como amar e ser amada, e sim como Sua amante era uma mulher abandonada pelo marido.
perda e reconstrução da identidade, que caracteriza os Deu-lhe o singelo nome de Pastora, o que remete o
demais contos presentes nesse terceiro livro. leitor ao arcadismo, período marcado pela tematização
71
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
de idílios amorosos entre pastores, como no caso de total domínio sobre sua esposa, não a conhece por
Marília de Dirceu, do poeta Tomás Antonio Gonzaga inteiro. Enquanto Menezes mantém uma máscara que
(1744-1810). não esconde quem é, Conceição, dentro do papel que
Uma das desculpas que Menezes costumava dar lhe cabe de mulher recatada, esconde-se para poder
em casa era que saía à noite para ir ao teatro. Certa vez, construir sua real identidade.
diz ter visto uma peça da autoria de Machado de Assis, Em “Finisterre”, uma jovem retorna as suas
O protocolo, sobre a qual tece um comentário bastante origens, ao reencontrar o padrinho em uma ilha na
corrente sobre o teatro do autor: “uma comédia muito Galícia. Nélida Piñon, com isso, recupera suas raízes
mais para ser lida e não representada. ibéricas, particularmente a Galícia, como se sabe
origem da língua e da cultura portuguesa, que viria a
Menezes afirma gostar de Conceição, com quem
construir o Brasil. Há, pois, uma reflexão em torno da
vive bem, com quem pode manter a seriedade que sua
perda ou da construção da identidade.
função na sociedade exige; ela lhe é devotada, cuida
de sua roupa e da casa. O problema talvez seja o recato Finisterre é uma ilha que fica na Galícia, região
em que se mantém, e também por nunca ter lhe dito noroeste da Espanha, onde se localiza também
que o amava. O fato serve-lhe como justificativa para Santiago de Compostela, local conhecido pelas
que mantenha a amante, com a qual busca realizar peregrinações que muitos empreendem até lá a pé.
Finisterre, até a Idade Média, era conhecida como o
fantasias, as quais não faria com a esposa, pelo recato
fim da Terra (em latim, finis significa final), isto porque
que deveria manter com ela. Pastora parece ser o
se acreditava que adiante haveria a beira do mundo.
oposto de Conceição, o que proporciona ao escrivão
Quem navegasse para além daquele local cairia no
novas “experiências”. Ela é mais bonita e tem atitudes
espaço, cairia no vazio.
mais intempestivas, “implacável a qualquer atraso”,
ao contrário das atitudes submissas da esposa. A narradora vai até Finisterre reencontrar seu
padrinho, já idoso, e é recebida por pescadores
A narrativa caminha assim até a chegada do e recepcionada com um banquete, uma orgia
Nogueira, primo de sua primeira esposa, Amélia, que gastronômica como meio de tomar parte cultural
lhe pede o favor de dar pousada por uns tempos, uma daquele local que também lhe pertence, mas que, por
vez que era de Mangaratiba e estava no Rio de Janeiro viver no Brasil, do outro lado do mundo, para além do
para estudar. Atlântico, não tinha mais acesso. Trata-se, pois, de uma
O conto termina exatamente onde se inicia o conto cidade de pescadores acostumada a receber turistas
de Machado de Assis, com Menezes, após cear com em viagem a Santiago de Compostela.
a família, despedindo-se para ir ao teatro, e Nogueira Simbolicamente, em Finisterre ia-se ao confronto
dizendo que ficaria na sala lendo à espera do amigo. do Fim, isto é, com a Morte, representada pelo pôr-
Já com o volume nas mãos, tratava Nogueira de do-sol. Por outro lado, também significava um
acomodar-se à mesa da sala de jantar, trazendo a renascimento, então representado pelo nascer do sol.
si o candeeiro de querosene. Dessa feita, o local representava o fim e o início de
– Se não há mal em perguntar-lhe, primo, que é jornadas. É o que se observa no conto. A narradora é
que vai ler até a sua Missa do Galo. levada a ter nova vida naquele ambiente. Representada
O primo levanta-se, acompanha-me à porta. Dá- pelo banquete, associado a um ato sexual, renovador e
me o beneplácito, sem esquecer de acrescentar: criador:
– Leio Os Mosqueteiros. Com o grafo, ele mergulhou diversas vezes
Ah, belo rapaz esse Nogueira! (p. 187) nas entranhas do crustáceo, e trouxe-me como
No conto original de Machado, Conceição um caçador de esponjas o coral ambicionado.
também representa o papel da mulher submissa, mas Mastiguei a delicada porção de olhos fechados,
ao ficar sozinha, à noite, ao lado de um rapaz, indica fazendo amor com um coral nascido de recantos
primevos, de uma carapaça mais antiga e sólida
um desejo escondido, que Menezes não consegue
que a minha pele. (p. 191)
perceber, ao vê-la apenas como “santa”. Desse modo,
o leitor que confronta os dois textos percebe a ironia da Esse ato devolve-lhe suas origens, e fica dividida
situação. E por este motivo, antes de sair de casa, diz entre dois mundos: o antigo, o galego, e o novo, o das
que Nogueira é um belo rapaz, isto é, alguém que não Américas, o do Brasil. É dessa simbiose antropofágica
irá fazer nada para atentar contra a ordem estabelecida que se irá construir uma nova identidade. (“Salve
em sua casa. Na ótica do escrivão, a leitura de um a terra, padrinho. A que terra queres homenagear,
livro de aventuras era indício de que era um jovem afilhada?”) O próprio nascimento da Galícia representa
sonhador, pouco afeito à prática. tal simbiose de povos diferentes, que formaram ao
longo dos séculos o povo galego:
Menezes aceita a explicação e gosta dela, porque
Abraçou-me e passou a falar dos celtas, dos
“há leituras que nos suprem com sonhos que a realidade
ibéricos, dos visigodos, que se uniram de tal modo
mesmo não comporta. E se lá fosse Conceição ao seu
que seria hoje difícil isolá-los, pois um só rosto
encalço, teria que abater-lhe as asas”.
galleto muito tem de cada um, e eles próprios
Nélida não quis, com isso, contrariar o que fora neste rosto jamais poderiam reconhecer-se ou
revelado no conto de Machado; antes, a passagem indicar que parte dele originou-se da força dos
serve para ilustrar como Menezes, que imagina ter seus sangues. (p. 192)
72
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
Com efeito, galeto deriva do topônimo Gallaecia, de tudo, pertencente a outra classe social. Por estranho
cujo termo procede dos celtas, que chegaram ao local que pareça, esse homem diferente é que lhe devolve
por volta de 2300 a.C. Mais tarde vieram os ibéricos, alegria, que contribui para a construção de si mesma,
dominados pelos romanos, destruídos, por sua vez, de sua identidade por inteiro.
pelos visigodos, conhecidos também como bárbaros. Ao seu lado, não sinto medo. A própria vida
A região ainda foi conquista no século VIII d.C. pelos fortaleceu-me desde que o vi pela primeira vez
muçulmanos. nesta manhã. (p. 214)
Outro ponto que ajuda a compreender a Começaram a conversar e ele lhe pediu para
simbologia do conto diz respeito à origem do termo que fossem sócios em seu negócio de vender sorvetes
Galiza cuja raiz indo-europeia kala significava refúgio, na praia. O estranho do pedido é o que garante a
abrigo. Em seguida, passou a ser grafada gall, e percepção de um poderia completar o outro, de se
significar mãe, terra. O conceito expresso no conto de formar um todo. A narradora revela não ter vida
um encontrar-se com as origens (a mãe terra) encontra própria, assistia a novelas como meio de projetar na
respaldo também quando a narradora conhece uma vida alheia aquilo que não era. Assim, ao ver-se diante
senhora moribunda, cujo nome é Amparo. Esse contato de uma situação estranha, com um homem com vida
corrobora o nascimento de uma nova mulher, bem alheia a sua, distante física, social e culturalmente,
como o rejuvenescer da moribunda: isso poderia completá-la, a despeito de ele ser casado.
(“Viver será transferir para o outro o que é nosso por
Ela melhorou com meu ato de heroísmo. (...)
direito.”)
Comecei a usufruir-lhe da velha como se tivesse
ela vinte anos. (...) Eu me entregava àquela orgia Deus sabe que não quero falsas aflições, mas um
disposta a mudar a minha vida. Mas, que vida, homem capaz de interpretar meus sentimentos,
afinal. A vida que herdei, a vida que fabriquei, a serei acaso a última flor do Lácio? (p. 215)
vida que me impuseram, a vida que não terei, ou a A “última flor do Lácio” é uma referência a um
vida proibida, que não está na casca da pele, mas poema de Olavo Bilac, intitulado “Língua portuguesa”,
na pele íntima do sangue? (p. 192) em que fala ser o português o último idioma surgido
Trata-se, pois, de um conto que, como os demais, do latim, falado na região do Lácio, que deu origem
ao Império Romano. Não parece haver uma relação
busca compreender o próprio ser construído a partir da
imediata. A rigor, o que a narradora quis expressar
aproximação de fontes culturais diversas.
é que ela poderia ser a última mulher a encontrar
“Tarzan e Beijinho”, narrado em primeira pessoa o homem perfeito e ideal para ela. Poderia ter dito
por uma narradora-personagem, fala sobre os amigos também que era seria “a última dos moicanos”, por
Tarzan e Beijinho. Caracterizado por realizar reflexões alusão ao famoso romance de James Fenimore.
sobre temas recorrentes: amor, paixão, religião, Um momento significativo é que ele vai até a casa
solidão, amizade, entre outros. Nesse conto, os temas dela e se senta na poltrona que pertencera ao pai e ela
da amizade e da solidão revelam complexidade das na poltrona em que ficava a mãe. Por analogia, é como
relações interpessoais. se cada qual estivesse ocupando os papéis, sonhados,
Conheci Tarzan e Beijinho em Malibu, antes de se de marido e mulher.
transferirem para o Leblon, uma praia que havia A questão a que sempre retorna é o da identidade
tragado o coração de muitos almirantes batavos e (“Serei eu mesma o tempo todo?”). Como construir
sereias litorâneas. (p. 203) algo para o qual é preciso primeiro destruir? Destruir a
Há um sentimento de amizade íntima entre antiga identidade dele, seu casamento, abandonar sua
eles, porém a narradora decide afastar-se um pouco vida no outro lado da cidade?
para que vivam o relacionamento a sós. Passado certo É comum na Europa as cidades divididas em duas,
tempo, a narradora recebe um bilhete dos amigos, uma margem pobre, uma outra próspera. (p. 216)
vai ao encontro deles, mas é recebida friamente. Em Essa ideia de construção/destruição está
conclusão, percebe que a amizade não era assim metaforizada no fato de o homem ser sorveteiro, de
tão forte. O afastamento parece ter quebrado aquela fabricar para vender um produto que se perdia com
harmonia, o que acabou se tornando difícil de consertar. facilidade, que, diante do calor, desaparecia.
Tentei sorrir e eles me corrigiram. Quietos, de mãos Eu respeitava aquele arquiteto a erguer um
dadas, agora parecíamos turistas descobrindo a mundo frágil pela força da sua vontade. A lidar
cidade, a nós mesmo. (p. 211) com formas que o calor desfazia. (p. 218)
O último conto, “O sorvete é um palácio”, é escrito Por este motivo, o sorveteiro tem sempre de
sob a forma de depoimento uma mulher, rica, narra as retornar à sua casa, à sua fábrica, entre idas e vindas e,
vicissitudes em torno de um caso que mantém com um com isto, o amor entre ele e a narradora não se totaliza
homem pobre, sorveteiro, casado e pai de três filhos. nunca.
A mulher narradora também não é nova Após ouvir a história de Colombo, Rubem volta
(“Esquecida do espelho a proclamar que a carne não é a narrar sua história com Alice, sua ex-mulher. Aos
mais um sortilégio para as mulheres de minha idade”.), poucos, percebeu que Alice representava, mais do que
e encontra o amor onde menos esperava, na figura de amor, relacionamento de um casal, apenas a aventura,
um homem simples, sem beleza física, casado e, além os passeios. Não se via completo efetivamente por ela.
73
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
Foi um amor sem ciúmes, não fazia sofrer. Os me, voltei a casa. A chave quase não coube na
outros podiam desejá-la, aplaudi-la ao seu lado. fechadura pela ferrugem. O regresso parecia
Não queria um amor solitário, ou que lhe faltassem assinalado pela marca do abandono. Debaixo da
amigos com quem dividi-la. (p. 221) porta, os bilhetes de Tarzan e Beijinho: por favor,
Esse conto lembra As cartas portuguesas, escritas por que a violência, quando há outros modos mais
por Sóror Mariana Alcoforado (1640-1723), de um delicados de matar; não podemos mais viver sem
convento localizado Beja, dirigidas a um oficial francês, você; já não somos Tarzan e Beijinho, somos você
chamado DeChamilly, que lhe prometera amor eterno quando está perto; o que quer que sejamos, para
e que a iria tirar do convento para se casarem. No lhe agradar?”
entanto, a promessa não se cumpre. “Durante horas evitamos qualquer olhar. Fora
Foram cinco curtas cartas de amor, em que se uma ausência tão difícil. (...) Ainda não sabíamos
percebe um amor incondicional e exacerbado. O tom em que nos convertêramos. (...) Saímos passeando
das cartas vai do sentimento de esperança à desilusão, pela praia, (...). Tentei sorrir e eles me corrigiram.
por não receber notícias e correspondência equivalente. Quietos, de mãos dadas, agora parecíamos turistas
A título de exemplo, eis um trecho da terceira carta: descobrindo a cidade, a nós mesmos.”
Que será de mim?....e que queres tu que eu faça?... PIÑON, Nélida. O calor das coisas. 2. ed.
Vejo-me bem longe de tudo o que tinha imaginado! Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 93-101.
Esperava que me escrevesses de todos os lugares (01) O conto é narrado em primeira pessoa por
por onde passasses; que as tuas cartas seriam mui uma narradora-personagem, empenhada em
extensas; que alimentarias a minha Paixão com contar a história que vivenciou ao lado dos
as esperanças de ainda ver-te; que uma inteira amigos, Tarzan e Beijinho. O conteúdo do
confiança na tua fidelidade me daria alguma texto remete a valores, como amizade, estilo
espécie de repouso; e que ficaria assim em um de vida, autoconhecimento.
estado suportável, sem estrema dor.
(02) O conto, assim como toda a coletânea à qual
Em conclusão, podemos dizer que Nélida Piñon ele pertence, é bem representativo da prosa
é uma autora pós-moderna, no sentido de tematizar de ficção de Nélida Piñon, caracterizada
questões hodiernas, como o feminismo, o respeito por empreender reflexões acerca dos
às diferenças, a construção de novas identidades, a grandes temas da humanidade, como amor,
reconstrução de identidades perdidas. paixão, religião, solidão, amizade, entre
outros. Nesse conto, os temas da amizade
e da solidão concorrem para a afirmação da
complexidade das relações interpessoais.
EXERCÍCIOS (04) O conto destoa do tom geral da coletânea a
que pertence, uma vez que, diferentemente
1. (UEM) Leia os fragmentos transcritos abaixo, das demais narrativas, não se enquadra
retirados do conto “Tarzan e Beijinho”, integrante no realismo fantástico, tendência literária
da coletânea O calor das coisas, de Nélida Piñon, contemporânea marcada pela distância entre
e assinale o que for correto, considerando também a lógica da realidade objetiva e a expressão
o conto como um todo. artística, por meio de uma linguagem
“Conheci Tarzan e Beijinho em Malibu, antes de simbólica.
se transferirem para o Leblon (...).” (08) 
O conto é marcado por uma linguagem
“Certa vez, eles me confessaram, no fundo do mar hermética, muitas vezes cifrada, contrariando
encontram-se nossos corações, é preciso ir bem a banalização da linguagem literária no
fundo para ouvir-lhes as pulsações. Teria sido um contexto da pós-modernidade. As tendências
convite para eu fugir deles, me censurariam o literárias contemporâneas primam pela
modo de olhá-los? (...)” simplicidade, pelo coloquialismo, evitando,
“Vestida de mim mesma, sem precisar de espelho assim, o jogo metafórico, a alegoria, a ousadia
a corrigir-me, eu destoava deles. Por onde Tarzan estrutural. Isso torna quase imperceptíveis
e Beijinho seguiam, eu procurava as marcas os limites entre a linguagem referencial e a
visíveis de sua passagem.” artística.
“Pela primeira vez pensei, por que grudo minha (16) 
O desfecho do conto remete à ideia de
vida a Tarzan e Beijinho e nos estamos tornando desconforto entre o casal, Tarzan e Beijinho,
um a sombra do outro? Sempre me faltara a e a narradora. A amizade que os unia parece
coragem de propor-lhes tal questão, insinuar comprometida após o período de separação
uma transcendência que condenavam na vida de provocado por esta última. Trata-se de uma
praia que ambos haviam adotado. Ou dizer-lhes: espécie de quebra da harmonia, difícil de
por algum tempo seguirei caminho contrário ao remediar, dadas as sutilezas da alma humana
de vocês. Precisava descobrir o mundo sem o confrontadas com certos valores e padrões de
socorro deles. (...)” “Já sem roupa com que vestir- comportamento.

74
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
2. Assinale a alternativa incorreta quanto à temática (02) Lido a partir da intertextualidade estabelecida
dos contos em O calor das coisas, de Nélida Piñon. com o conto “Missa do galo”, conforme as
(A) Em “I love my husband” uma mulher, embora informações anteriormente fornecidas, o
declare amor pelo marido, demonstra querer desconhecimento de Menezes, em “O ilustre
ser mais livre. Menezes”, sobre certos detalhes relacionados
ao comportamento de sua mulher confere ao
(B) “As quatro penas brancas” trata de um homem
texto um tom de ironia e de comicidade. A
torturado durante a ditadura militar.
ideologia patriarcal, condescendente com o
(C) Em “A sereia Ulisses” a narradora se revela adultério masculino, é ridicularizada.
livre para buscar o próprio caminho.
(04) No que se refere à construção da personagem
(D) Em “O ilustre Menezes” temos a ocorrência Conceição, o conto de Nélida Piñon prima
de intertextualidade com o conto “A missa do pela ambiguidade e pelo poder de sugestão.
galo”, de Machado de Assis. Efetivamente, nada acontece em sua
(E) “Disse um campônio à sua amada” é escrito à trajetória capaz de desabonar sua reputação
maneira de uma carta. de dona de casa exemplar e esposa fiel, mas
o marido adúltero insiste em vislumbrar
3. (UEM) Leia os fragmentos a seguir. também nela o fantasma da traição.
“E não é feia, a minha Conceição. Ocorre apenas (08) O conto “O ilustre Menezes” é narrado em
que os mesmos encantos que em outra mulher primeira pessoa pelo próprio Menezes. Esse
reluzem firmemente, nela, por mistério que não afirma que Conceição seria, de fato, capaz de
explicou, simplesmente empalidecem. Com esta cometer adultério se lhe fosse apresentada
verdade, já estou bem conformado. Se ao menos uma situação favorável. Afirma também
Conceição soubesse rir!” que o adolescente Nogueira pretendia ficar
“Tanto assim, que mal eu a tocava, Conceição acordado até tarde com o único propósito de
retraía-se toda, a tremer de frio, depressa se deparar, a sós, com Conceição.
recolhendo para dentro do corpo qualquer gesto (16) Os textos de Nélida Piñon guardam estreitas
que pudesse eu interpretar como generoso.” relações com os textos de Machado de
“Como prêmio, para certos infortúnios, tenho de Assis, no que se refere ao estilo denso e
Conceição a sua fidelidade e completa devoção ao intimista, não raro irônico, bem como no
lar. Assim, inimigo mesmo é o tempo a esgotar-se que diz respeito à habilidade de promover
sem cerimônia.” o desnudamento dos melindres da alma
“Nogueira tem o gosto da leitura. (...) Certa humana, suas grandezas e, sobretudo, suas
manhã, sugeri-lhe a deixar o livro para trás, misérias.
seguindo-me até onde encontravam-se certos
prazeres viris. Pareceu não entender-me.”
4. Uma das constantes na obra de Nélida Piñon é a
(Nélida Piñon, “O ilustre Menezes”. In: O calor das coisas)
busca pela identidade. Assinale a alternativa em
O conto “O ilustre Menezes”, de Nélida Piñon, que o conto não apresenta como conteúdo central
consiste em uma reescrita do conto “Missa do essa temática:
galo”, de Machado de Assis. Trata-se de uma
(A) Finisterre
reinvenção da história machadiana, construída a
partir da transferência do ponto de vista narrativo. (B) O calor das coisas
A história original é narrada pelo adolescente (C) O jardim das Oliveiras
Nogueira, agregado da casa, e gira em torno da (D) O sorvete é um Palácio
“conversação” que ele manteve com Conceição
na noite de Natal, enquanto a casa dormia e (E) O ilustre Menezes
ele esperava a hora da missa do galo. Nessa
oportunidade, Conceição se transfigura, aos
olhos de Nogueira, em uma mulher “lindíssima”
e muito sensual que em nada lembra a mulher
simplesmente “simpática” que todos conhecem
no dia-a-dia familiar. Tendo em vista essas
considerações, bem como os fragmentos acima, o
conto ao qual eles pertencem e a ficção de Nélida
Piñon, assinale o que for correto.
(01) 
O conto “O ilustre Menezes”, de Nélida
Piñon, pode ser lido sem se considerar o
texto “Missa do galo”, de Machado de
Assis. No entanto, conhecer previamente a
narrativa machadiana implica o alargamento
das possibilidades interpretativas do conto
da escritora.
75
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
gABARITO
1. (01) O conto é narrado em primeira pessoa por
uma narradora-personagem, empenhada em contar a
história que vivenciou ao lado dos amigos, Tarzan e
Beijinho. O conteúdo do texto remete a valores, como
amizade, estilo de vida, autoconhecimento.
(02) O conto, assim como toda a coletânea à qual ele
pertence, é bem representativo da prosa de ficção de
Nélida Piñon, caracterizada por empreender reflexões
acerca dos grandes temas da humanidade, como amor,
paixão, religião, solidão, amizade, entre outros. Nesse
conto, os temas da amizade e da solidão concorrem
para a afirmação da complexidade das relações
interpessoais.
(16) O desfecho do conto remete à ideia de desconforto
entre o casal, Tarzan e Beijinho, e a narradora. A amizade
que os unia parece comprometida após o período de
separação provocado por esta última. Trata-se de uma
espécie de quebra da harmonia, difícil de remediar,
dadas as sutilezas da alma humana confrontadas com
certos valores e padrões de comportamento.
2.B
3. (01) O conto “O ilustre Menezes”, de Nélida Piñon,
pode ser lido sem se considerar o texto “Missa do
galo”, de Machado de Assis. No entanto, conhecer
previamente a narrativa machadiana implica o
alargamento das possibilidades interpretativas do
conto da escritora.
(02) Lido a partir da intertextualidade estabelecida
com o conto “Missa do galo”, conforme as informações
anteriormente fornecidas, o desconhecimento de
Menezes, em “O ilustre Menezes”, sobre certos
detalhes relacionados ao comportamento de sua mulher
confere ao texto um tom de ironia e de comicidade. A
ideologia patriarcal, condescendente com o adultério
masculino, é ridicularizada.
(08) O conto “O ilustre Menezes” é narrado em
primeira pessoa pelo próprio Menezes. Esse afirma que
Conceição seria, de fato, capaz de cometer adultério se
lhe fosse apresentada uma situação favorável. Afirma
também que o adolescente Nogueira pretendia ficar
acordado até tarde com o único propósito de se deparar,
a sós, com Conceição.
4.E

76
Topless
de Marta Medeiros

Martha Medeiros (1961), nascida em Porto modo sem ter de escolher entre ser solteiro ou casado,
Alegre, começou a escrever crônicas na década de 80 entre ser da direita ou da esquerda, entre o certo e
e desde então tem publicado regularmente seus textos o errado moralmente falando. Observe-se que, com
em revistas e jornais do país. efeito, estamos na segunda década do terceiro milênio,
Reunidas as crônicas, publicou sua primeira que tem se caracterizado propriamente por estilos de
coletânea em 1985 com o sugestivo título de Strip- vida alternativos e igualmente aceitos socialmente
tease. Como cronista, seu objetivo é o de desnudar a falando, pela busca da afirmação das minorias, pela
vida cotidiana, apresentar ao leitor seu modo de olhar tentativa compreensão do outro, pela valorização da
para os mais diversos fatos da vida nacional e de temas multiplicidade (ainda que ainda permaneça em pauta
que possam interessar as pessoas de modo geral. Com o discurso do ódio, da radicalização político-ideológico
as redes sociais, todos se sentem um tanto cronista do e também religiosa em diversos setores da sociedade).
cotidiano, mas, sem dúvida, nem todos têm o talento Outro assunto recorrente nas crônicas de Martha
para escrever, para se expressar com correção e estilo Medeiros é a moda. Ao menos, em cinco crônicas,
por escrito. a autora trata do assunto. Por exemplo, em “Verão:
O livro em questão, Topless, apresenta 54 crônicas decadência do Império”, reflete sobre a deselegância
escritas entre 1995 e 1997. Passados vinte anos, há no modo de se vestir das pessoas no verão, justificada
crônicas cujo assunto podem ter envelhecido, tendo pela necessidade de se usar pouca roupa no dia a
em vista que a crônica é um gênero híbrido, entre o dia; com o agravante de, muitas vezes, homens, em
determinadas funções, trabalharem sem camisa.
literário e o jornalístico. E é exatamente o literário
Mesmo as mulheres ficam em situação complicada por
que faz da crônica um texto permanente, pois, ao
conta da maquiagem, que derrete com o suor.
comentar os fatos do dia a dia, o cronista busca revelar
o que ele teria de essencial, como fazia Rubem Braga, Outro exemplo da moda citado pela autora está
por exemplo. Nesse sentido, as crônicas de Topless no uso do vocabulário. Em “Grande África”, Medeiros
apresentam essa característica. Assim, passadas duas lembra que alguns termos deixam de ser utilizados com
décadas, o leitor, além de tomar contato com algum o tempo, trata-se do envelhecimento das expressões,
acontecimento dos anos 90, é levado a perceber que das gírias e mesmo de certos objetos que deixam de ser
qualquer acontecimento apresenta o seu tanto de utilizados com o tempo.
permanente, de essencial para se compreender a vida, O vocabulário da hora (lembra “da hora”?)
se compreender o ser humano. não resiste a mais de uma geração. Às vezes,
Por se tratar de diversos textos, vamos procurar nem a um único verão. Fazer o quê? Continuar
separar as crônicas não por sequência, e sim por temas, tagarelando do jeito que se sabe, com as palavras
de modo a facilitar os comentários e a análise. Com que encontrar. Só não vale fechar a matraca.
isso, esperamos destacar as características comuns, (p. 129)
incluindo tratamento estético e construção discursiva, Por referência a uma música de Cazuza, “Mentiras
de modo a facilitar a leitura. sinceras” é uma crônica sobre o ato de falar a verdade
Conforme já referido, a crônica é um gênero ou a necessidade de ocultá-la. Nem sempre falar a
que trata do cotidiano. Como tal, o objetivo é tratar verdade abertamente é algo positivo para o convívio
dos temas mais variados e prementes. Em 1996, por social. Isso porque revelar a verdade diretamente pode
exemplo, uma preocupação comum era discutir o ser deselegante; ao contrário, haveria formas brandas
fim do milênio e como seria a vida no século XXI e de ser verdadeiro ou ao menos não ser tão direto.
no 3º milênio da Era Cristã. Muitos acreditavam que Em outros termos, há verdades que não precisam ser
esse tempo marcaria o fim do mundo. Por isso, eram expressas, como dizer que uma pessoa está mal vestida
normais as reflexões existenciais do tipo: “quem ou que ela é um tanto ignorante. Isso pode gerar
sou eu, de onde vim, para onde vou?” Medeiros em conflitos desnecessários.
“Vidas passadas para trás” discute exatamente essa A violência das palavras também ocorre nas
temática. Apesar de instigar muita gente, Medeiros relações interpessoais. No caso de “Vestidos para
expressa seu desejo de viver apenas o que tem para matar”, a cronista fala sobre as fardas usadas por
ser vivido, sem se preocupar tanto “para onde iremos”. militares. Se é elegante, chamativo, por outro lado
Conforme diz no final de crônica: “A mim basta um sugere violência, ditadura, grosseria (lembre-se que a
banho quente, um pijama limpo e dormir acreditando Ditadura acabara há cerca de uma década em relação
que amanhã tem mais”. (p. 63) Retoma a temática em ao período em que ela escreve). E, de fato, em três
“O Terceiro lado da moeda”. O título, um tanto irônico, crônicas se refere a esse período nefasto da história
revela algo que se podemos verificar na atualidade: a brasileira recente. Ditaduras são sempre ruins, não
busca por uma maior compreensão do diferente, não importa se de direita ou de esquerda. São formas de
apenas o oposto, como o lado A e o lado B, e sim o governo que devem ser banidas de vez da sociedade
terceiro lado, conforme indica o título. Esse terceiro brasileira de modo a fazer a vida em comum fluir
lado pode ser a homossexualidade, o viver de outro melhor, com mais leveza.

77
Topless, de Marta Medeiros
Em “Loteria dos espertos”, a autora inicia falando Crônica interessante para compararmos o olhar
sobre algo que veio a se tornar comum, processos do passado a respeito do que vivemos agora é “Os
judiciais como meio não ético para ganhar dinheiro, livros da nova era”, escrita em 1995, em que fala sobre
como processar alguém por um xingamento ou uma o advento do livro no formato digital. Passados mais
empresa por não ter cumprido um acordo. Evidente de vinte anos, trata-se de uma realidade. Porém, como
que não se deve prejudicar o outro, mas muitas ações a autora já previa, há ainda relutância em ler livros
poderiam ser resolvidas sem a intervenção do poder no formato digital. Com efeito, a maioria dos leitores
judiciário. No caso, o uso excessivo dessa mediação ainda prefere o suporte papel para ler. A explicação,
judiciária sugere a tal indústria dos processos. Na entre outras, parece ser a mesma data pela cronista.
crônica, em questão, porém, seu objetivo principal é
Aqueles que têm com o livro uma relação íntima,
lembrar que foi nos anos 90 que os atos da Ditadura
quase religiosa, e que não deixam para abri-lo só
começaram a ser revistos e quando pessoas que
quando a tevê está estragada. Eu, por exemplo,
efetivamente sofreram no período apenas por terem
expressado ideias de modo contrário ao pensamento gosto do cheiro do livro. Gosto de interromper a
dos militares passaram a ser recompensadas leitura num trecho especialmente bonito [...].
financeiramente. Nesse caso, foi necessária a ajuda da Depois reabro e continuo a viagem. (p. 36)
justiça como meio de rever o passado recente e fazer as Há, ao menos, seis crônicas em que Medeiros
devidas correções. trata sobre a temática livro/literatura/arte. Em “Aula
Por outro lado, a liberdade excessiva ou sem de literatura”, por exemplo, defende que o ensino das
o devido cuidado pode gerar situações perigosas letras deve prevalecer sobre a de qualquer outra arte
ou, ao menos, constrangedoras. A autora relata em tendo em vista que todos fazemos uso da língua, o
“Assassinos por distração” que à época jovens na que se configura como essencial para a formação do
Flórida, EUA, teriam arrancado placas de trânsito indivíduo. Evidente que não despreza outras artes, como
para se divertirem. A falta de sinalização provocou a pintura, por exemplo. Em “Aquarelas universais”, por
um grave acidente e esses jovens foram condenados exemplo, revela a importância de se visitar um museu,
a quinze anos de detenção. O caso é todo complexo e de se conhecerem os grandes pintores, entre os quais
dividiu opiniões. Para Medeiros, no mínimo os jovens a brasileira Tarsila do Amaral. Em complemento está
agiram sem pensar e mereceriam uma punição, talvez “Gênios monoglotas”, na qual Medeiros trata sobre
não tão longa. Fato é que em sociedades democráticas, gênios brasileiros das mais diferentes artes e expressões
a liberdade tem de ser usada com cuidado, pois pode artísticas, como Millôr Fernandes, Chico Buarque, Jô
prejudicar outros. Soares ou Sônia Braga. Se eventualmente hoje são
Não somos marginais, mas somos todos homicidas nomes marcados por escolhas políticas, igualmente
em potencial. Basta uma inconsequência, uma foram ou são representantes artísticos de grande valor.
distorção de valores ou uma sandice como a dos Em “Literatura póstuma”, Medeiros se refere a
jovens americanos. (p. 166-167) obras de escritores importantes e que são publicadas
Medeiros toma uma situação qualquer do postumamente. Sua dúvida é saber se o tal artista
cotidiano para fazer considerações de ordem específica gostaria mesmo que fossem publicadas. Em geral,
ou moral ou apenas para levar o leitor à reflexão. a publicação de um livro esquecido ou guardado na
Em duas crônicas, a autora se baseia em filmes para gaveta atende mais a um interesse comercial, posto que
fazer essas considerações. “Meryl Streep, chorai por determinado nome venderia um livro com facilidade,
nós” trata de alguns filmes importantes da década de que a uma evolução estética. De fato, analisando-
90, especialmente As pontes de Madison, para dizer se apenas o valor artístico do livro é provável que
que também nós podemos exercer papéis diferentes um determinado escritor não o tenha publicado por
em nossa vida ou apenas manter algo regular, sem considerá-lo ruim. É o caso do poeta chileno Pablo
grandes mudanças. Para Medeiros, o mais importante Neruda, ganhador de diversos prêmios, reconhecido
é “nos acostumarmos com a presença de nossas mundialmente, mas que não publicou tudo o que
outras personalidades, sem tentar mascará-las [...] escreveu.
Chama-se a isso amadurecimento”. (p. 34) Já em “No Na maioria das vezes, obras póstumas são obras
divã com Woody Allen, seu objetivo é mostrar que o menores, cujo valor é mais sentimental do que
cinema pode se comparar ao cotidiano. Essa seria a artístico. Seu único benefício é mostrar aos
lição do diretor, para quem os fatos banais, cotidianos
jovens autores que ninguém nasce sabendo e
apresentam histórias divertidas e dramáticas que
que a prática é a melhor amiga do talento. Mas
podem bem ser organizadas sob forma de roteiro.
nem esse argumento me comove. Já bastam as
Martha Medeiros, portanto, vê essa característica
besteiras que fazemos em vida. (p. 123)
no diretor norte-americano como determinante para
seu modo de produzir cinema, que não precisaria de Outro caso é o da morte de artista odiado, não
efeitos especiais, tiros, explosões etc. para contar uma tanto por sua obra, e sim por suas escolhas políticas
bela história. Mas para isso, temos que aprender com o ou posições a respeito de assuntos polêmicos. Era o
diretor, “aprender a se divertir com a repetição, com a caso do jornalista e escritor Paulo Francis, que fez
banalidade, com o previsível” (p. 66) Trata-se, pois, de vários inimigos especialmente porque não tinha muito
um cinema do prosaico, da vivência que qualquer um cuidado em expressar opiniões, por mais polêmicas
de nós pode experimentar. que fossem. Há, inclusive, uma suposição de que tenha
78
Topless, de Marta Medeiros
falecido em decorrência de uma declaração sua de que Uma das crônicas é sobre pensão alimentícia. A
haveria corrupção na Petrobrás, isso nos anos 90, o autora se refere a um episódio da época em que um ex-
que motivou diretores da estatal processá-lo exigindo marido foi preso por não pagar corretamente a pensão.
o pagamento de uma indenização altíssima. O advento do novo Código Civil, em 2002, mudou essa
relação, mas como o texto é de 1996 seguia regras
Independente das opiniões fortes do jornalista,
antigas em que sempre cabia ao homem pagar a pensão.
Medeiros destaca que a morte de Francis, ocorrida
Pós-2002, o entendimento legal passou a ser outro. De
em 1997, deixou uma lacuna na arte e no jornalismo, qualquer modo, Medeiros chamava a atenção para o
pelo fato de o autor ter grande capacidade de análise, fato de que se a mulher queria independência, ela teria
além de talento para escrever. “É por isso que todos de ser plena, incluindo a financeira, sem depender
aqueles que adoravam Paulo Francis e também os que mais de ex-, de modo a não requerer a prisão pela falta
o odiavam do fundo do coração devem lamentar sua de pagamentos não a filho, mas à própria ex-esposa.
morte”. (p. 126) Pensão alimentícia, só para as crianças. Se ela
Mudando um pouco o foco, relata que as viagens tem uma formação profissional e tem saúde, é
de avião começaram a baratear, o que permitiu a um hipocrisia querer herdar o paternalismo que tanto
maior número de pessoas viajar pelo país ou para o se lutou para romper. (p. 16)
exterior. Medeiros chama a atenção para isso em “A Em outra crônica, “Mulher solteira procura”, a
classe econômica vai ao Paraíso”. Na crônica, seu cronista revela as contradições do sentimento feminino.
objetivo maior é revelar que viagens deveriam ser Apesar de uma maior independência, as mulheres
meio de aumentar o conhecimento cultural, e não ainda sonham com o casamento, ao menos com o ato em
apenas meio de comprar produtos variados, sem si, encontrar aquilo que os contos de fada já falavam, a
maior utilidade, apenas para se dizer que comprou busca pelo príncipe. Isso porque se cobrava e se cobra
determinado coisa no exterior. da mulher que cumpra com seu dever social: casar-
se. Em outras palavras, se pensarmos no todo, vemos
Mas para sacoleiros natos, [...] estar em Miami
muitas mulheres que têm um pensamento diferente;
ou Nova York dá na mesma, desde que haja um
de qualquer modo, permanece no senso comum o
camelódromo em volta do hotel. (p. 57) desejo de casar-se, até porque ser casada parece trazer
Na crônica que dá título ao volume: “Topless: algumas vantagens, entre elas a ideia de ser livre, por
atentado ao pudor”, há uma reflexão de ordem moral não ter de estar, em tese, à procura de algo:
e também comportamental do brasileiro. O termo [...] a mulher casada é infinitamente mais livre
anglicano, topless, serve para indicar um hábito muito do que a solteira, pois já cumpriu o papel que a
comum em praias europeias e em algumas localidades sociedade exigiu dela – casou! – e agora tem o
dos EUA de as mulheres ficarem sem a parte de cima resto da vista para ser ela mesma. (p. 22)
do biquíni, deixando os seios à mostra. Medeiros “Década de 70: a adolescência do feminismo”
chama a atenção para o fato de que o brasileiro é trata sobre a luta feminina por mais direitos e como
aparentemente liberal no assunto sexualidade, porém, isso colaborou para as mudanças de sociabilidade. É
por estranho que seja, reagia mal (e ainda continua uma liberdade conquistada, mesmo que não plena;
a reagir) quando uma mulher faz topless na praia, sem dúvida, porém, que as mulheres passaram a ter
por exemplo. A autora descreve que em carnaval, em direitos que antes não se imaginava ter, isso, ao mesmo
situações erotizantes, como em filmes, novelas etc. não tempo, gerou deveres também novos. Em rigor, vivemos
se vê problema uma mulher ficar seminua, porém na ainda hoje um processo de mudança de sociabilidade,
praia ou em ambientes públicos, o ato se torna uma em que nem sempre se tem certeza do que se quer,
afronta aos chamados bons costumes. Contradições certeza sobre o papel de cada um. O fato é que alguns
que, mesmo tendo passados vinte anos da publicação estereótipos, bem como rótulos têm sido revistos.
da crônica, ainda persistem. Ser mulher nunca foi uma maravilha, assim
Basta uma garota fazer topless numa praia de como nascer homem está longe de ser uma graça
dos céus. Há problemas e vantagens em ambos
Santa Catarina ou de Pernambuco para provocar
os lados e, juntos, estamos fundando uma nova
um clarão a sua volta, como se ela estivesse com
sociedade, sem tanto estereótipo e com um pouco
lepra. (p. 51)
mais de bom-senso. (p. 40-41)
O tema mais recorrente nas crônicas do livro é A mesma ideia, com outro objetivo, está em “Vovó
relacionamento, o que inclui o casamento em si, as é uma uva”, fazendo uma brincadeira com os antigos
separações, a maternidade, o feminismo e assuntos métodos de alfabetização. A crônica procura mostrar
correlatos. São ao menos dezoito crônicas sobre essas que as avós modernas, como Baby Consuelo, Danuza
temáticas. Vamos resumir e analisar as principais, Leão, entre outras, não carregam aquele conceito de
estabelecendo algumas relações entre elas. vovozinha que faz chá e bolo, sempre à espera dos
Trata dos relacionamentos antes, durante e após netinhos; ao contrário, têm vida própria, são descoladas
o casamento. Seu objetivo parece ser o de analisar e são mulheres ainda desejáveis, que despertam
os novos tempos (leia-se fim de século, mas claro sentimentos sensuais. É a mudança no modo de olhar
que muito do que ela disse continua a fazer parte do para as mulheres, bem como o papel que elas próprios
contexto atual). começaram a construir para si desde a década de 60.

79
Topless, de Marta Medeiros
Essa independência feminina, bem como o novo Outra crônica a tratar da vida doméstica é “As
homem, pode produzir consequências negativas, como musas de Odair José”, por referência às empregadas
o não desejar ter filhos. Embora não seja um crime, do lar. Com as mudanças na sociabilidade, ter uma
pode ocorrer de, ao se gerar um filho não desejado, o empregada em casa não significa mais apenas
casal simplesmente dar o filho para a adoção, de modo uma pretensa vadiagem de uma mulher burguesa,
a evitar que o filho venha a atrapalhar seu estilo de cuja vida era basicamente servir ao marido, mas
vida. É o que se observa em “Toma que o filho é teu”. sim algo necessário para uma dona de casa que é
Medeiros chama a atenção para a possibilidade de, também profissional, que tem outros afazeres, outras
após a doação, ocorrer um arrependimento, porém, a perspectivas de vida. O título é porque Odair José
justiça deveria retirar de vez qualquer direito de um se tornou um cantor paradigmático das empregadas
casal reaver um filho já doado. Até porque, depois, domésticas ou secretárias do lar.
“os pais adotivos também se sentem legítimos. [...]
Em “Crônica de um casamento anunciado”,
Crianças não são produtos que vêm com prazo de
Medeiros revela que em fins do século XX o casamento
validade”. (p. 53-54)
parecia em desuso, pelas facilidades de se buscar
Em “Verdades e mentiras sobre as mães”, apenas morar juntos, mas, em rigor, era uma prática
Medeiros segue a mesma linha de reflexão ao mais recorrente do que se poderia imaginar. Talvez
abordar alguns mitos a respeito da maternidade: hoje essa percepção também esteja presente, embora
“Mãe é mãe”; “Mãe é uma só”; “Ser mãe é padecer casar-se ainda continua algo bastante comum. O
no paraíso”; “Maternidade: missão de toda mulher”. objetivo da autora é o de mostrar que declarar-se noiva
Para a autora, são mitos, pois a mulher hoje adquiriu pode não ser impeditivo para que outra pessoa tente
outras perspectivas, apresenta outros interesses, o paquerar uma moça. Segundo Medeiros, o contrário
que pode sugerir que nem toda mulher teria tal perfil poderia até acontecer: um noivo, em princípio, seria
para a maternidade. Porém, conclui com outro clichê: respeitado pelas mulheres solteiras. Verdade ou
“Mamãe eu quero”, ou seja, que todos amariam a não, Medeiros quer dizer que as mulheres tendem a
própria mãe, o que também pode não ser exatamente respeitar mais os comprometidos em comparação aos
a verdade.
homens, que, mesmo diante de uma noiva, tentaria
Fato é que a autora quer chamar a atenção para algo com ela. Além de mostrar que noivado é apenas
as mudanças que vêm ocorrendo desde a década um rito de passagem, não uma certeza de durabilidade
de 60, quando a mulher passou a perceber que seu no relacionamento.
destino poderia não ser apenas aquele a que lhe era
Tem gente que namora duas semanas, casa e
reservado, casar-se e ter filhos. Com efeito, observamos
comemora bodas de ouro. Outras ficam noivas dez
hoje a mulher totalmente integrada às mais diversas
anos e casada apenas dez dias. Noivado é rito de
profissões, de modo a colocar em prática o princípio
democrático do Brasil atual (leia-se, os últimos trinta passagem. Uma maria-fumaça. A paixão é que é
anos). o verdadeiro trem-bala. (p. 78)
Um pouco na contramão da ideia de mãe Ainda nessa linha temática, sobre relacionamento,
moderna, Medeiros fala de Madonna, em “Madona outras duas crônicas tratam sobre a primeira vez e
like a virgin”, que encarna, a despeito de toda sobre a manutenção da paixão por anos. Em ambos os
liberalidade da cantora, a típica mãe super-protetora, casos, a cronista tenta entender os tempos modernos,
que proibiria o filho de fazer coisas básicas, como ver sem se esquecer da tradição moral, por assim dizer.
TV. “A mudança de Madonna reforça um mito antigo, o “Em a primeira noite de uma mulher”, como indica o
de que ser mãe compensa o abandono de si mesma”. (p. título, ela aborda a dificuldade natural de uma mulher
155) O mesmo se dá em “Parabéns para você”, em que se apresentar intimamente a um homem pela primeira
a autora chama a atenção para as festas de aniversário vez: “Não é tarefa fácil nem para balzaquianas
mais modernas, que, além de doces, guloseimas, calejadas, o que dirá para uma garota cheia de
devem ter brincadeiras organizadas etc., tendo como fantasias na cabeça” (p. 95) No caso de “O príncipe que
diretora a mãe, que, mesmo querendo ser moderna, virou sapo”, trata sobre as traições que podem ocorrer
nessa hora tem que ser mãe. “Por que suportamos tudo durante um relacionamento de muitos anos. Ela sugere
caladas? Porque mãe é sinônimo de sacrifício, entrega, que isso pode acontecer, sem que necessariamente
benemerência”. (p. 138) o traidor queira o fim do relacionamento sério, ou o
Já em “Homens, mulheres e abajures”, seu faz por mau caratismo, a não ser, claro, que não se
objetivo é mostrar as diferenças persistentes entre queira continuar de fato o casamento: “Admitamos:
os sexos opostos, sobretudo no que diz respeito à infidelidades casuais não justificam a separação de
decoração da casa. Interessante que no início da duas pessoas que se amam” (p. 98) Com efeito, muitas
crônica afirma que assim como lojas de decoração, era vezes a separação ocorre mais por pressão social que
possível achar locadoras de vídeo em qualquer lugar. propriamente por um desejo efetivo do traído.
As casas de decoração permanecem, mas as locadoras Na crônica “Casamento, lado A e lado B”, a
foram sendo esquecidas, pouco a pouco. Pois bem, na temática se repete. Os pontos positivos e negativos
crônica, quer mostrar que sempre haverá diferenças do casamento. A rotina que traz segurança é a mesma
entre os sexos, pois os interesses e a sensibilidade nem rotina que torna a relação monótona. Por outro lado, na
sempre são iguais. crônica “uma aventura no supermercado”, Medeiros

80
Topless, de Marta Medeiros
mostra que mesmo a vida rotineira de uma dona de deles, retratar a vida cotidiana, registrar por meio
casa pode ser aventureira em alguns momentos, no de uma linguagem jornalística aquilo que tem de
sentido de que a vida moderna, com seus desafios, permanente, ver no efêmero um padrão, um estilo de
correria, indecisões, pode levar uma pessoa a viver vida, determinar o que é comum a muitos indivíduos.
experiências intensas mesmo em um supermercado. Em “A felicidade no fim de século”, isso é
Se você optou por um supermercado popular, vai bastante explícito. Cita algumas personalidades da
querer cortar os pulsos. Você mesma terá que época, ou seja, 1995, como Arnaldo Jabor, Danuza
acomodar suas compras. Ovos com lustrador de Leão, Jô Soares, que mudaram sua vida pessoal ou
móveis, fita de vídeo com manteiga, uvas com profissional, para mostrar que as pessoas comuns, as
garrafas de refrigerante, tudo junto, como uma não celebridades também têm buscado alternativas
grande família. Dane-se a higiene. (p. 132) para serem felizes, para se realizarem, para atingirem
Medeiros aborda a dificuldade de se encontrar metas antes impensáveis. Até porque há uma urgência
a chamada “alma gêmea” e como as pessoas, para pela felicidade, como se ela não pudesse esperar. É
isso, costumavam recorrer a agências de casamento, preciso viver o agora, sempre.
exatamente na crônica “Agências de casamento”. Para nossas bisavós, ser era fácil. Bastava casar
Escrita em 1997, se atualizada, certamente a crônica e ter filhos. [...] Priscas eras. [...] Por que esta
faria menção às redes sociais ou as agências virtuais urgência de viver? Simples, porque a morte tem
que promovem todo tipo de encontro, do casual ao chagado à bala. (p. 17)
sério. Mudando os tempos, uma verdade permanece: Essa mudança de comportamento está registrada
a dificuldade de se encontrar a pessoa perfeita para em “O beijo de Maradona”. Escrita em 1996, a crônica
nosso objetivo de vida, desejos, comportamento etc. discute o novo homem, motivado por um beijo que
Em outra crônica, porém, “Sargentos e soldados”, Maradona teria dado em Cannigia por ocasião da
a autora afirma que há casais que permanecem unidos marcação de um gol. Medeiros aproveita o caso
mesmo sendo diferentes, isso porque certamente cada para refletir que, embora não seja comum homens se
um aceita a diferença do outro que o complementa ou beijarem, ao menos não em público, tem se permitido
mostra a vida de outro modo, ao menos. “As pequenas demonstração de afeto mútuo, sem serem confundidos
divergências só ganham ares de drama quando atingem como homossexuais. É bem verdade que, passados
o lado frágil do casal: o bolso”. (p. 163) Mesmo assim, vinte anos, isso é até mais comum, inclusive o beijo.
podem ainda assim se entenderem. O ponto é que, com efeito, demonstrar sentimentos
Apesar de Medeiros quase sempre escrever da em público não é mais ato exclusivo das mulheres.
perspectiva feminina, ela não despreza a visão do Homens sempre tiveram dificuldade com isso, não
homem. Busca entender a dificuldade de ser homem porque sejam incapazes de sentir, mas sim, por pressão
nos tempos modernos (leia-se fins do século XX e, social, cultural, tinham de sempre manter-se firmes
extrapolando, o século XXI), em que mulher tem voz, nas emoções, por referência ao famoso clichê, segundo
tem sonhos, desejos, projetos pessoais etc. Por isso, o qual “homem não chora”.
propõe o “Dia internacional do homem”. Por conta da Em “Falem bem, falem mal”, Medeiros
nova mulher, o homem deve se reinventar também. Isso reflete sobre a necessidade de as celebridades, em
o levou a fazer serviços domésticos e a experimentar particular, terem seu nome e trabalho constantemente
certos julgamentos sociais, a que eram submetidas comentados. Embora Medeiros não tenha antevisto,
apenas as mulheres. hoje, com a proeminência das redes sociais, esse
Por isso, além das lides do lar, os moços trabalham desejo se estendeu a todos, sobretudo os que almejam
fora. E ai deles se fracassarem. [...] No amor, popularidade mesmo que sob um enforque negativo,
a opressão é ainda maior. Os homens que não pejorativo. Vídeos são gravados com cenas torpes e
casam são marginalizados pela sociedade. São mesmo assim compartilhados para se obter uma fama
vistos como playboys, filhinhos de mamãe ou um tanto duvidosa. O mais importante é que se curta,
bichas enrustidas. (p. 133) se compartilhe qualquer prática, por mais tosca ou
néscia que seja.
Nessa linha, “Homens que têm tudo” discute
que tipo de presente um homem deveria receber. No O papel de personalidades, heróis, líderes é o
caso, é preciso esquecer os tradicionais, como meias, de inspirar atitudes transformadoras, revolucionárias,
gravatas, lenços ou camisas polo. Se a mulher mudou, positivas. Porém, nem sempre é o que acontece. Na
o homem também. Esse é o foco da maior parte das crônica, “A modéstia sobre ao pódio”, Medeiros fala da
crônicas de Martha Medeiros, discutir as mudanças ascensão do tenista Gustavo Kuerten, o Guga. Trata-se,
nas relações familiares, no modo de ver o papel de cada pois, de uma personalidade por uma ação positiva, não
sexo. Ora, para uma nova mulher há que se constituir por se expor em redes sociais de modo a se transformar
um novo homem. E, talvez, mais do que isso, excluindo em pseudocelebridade.
os estereótipos do que seja um homem, do que seja Por fim, vale a pena ainda destacar outra crônica
uma mulher, Medeiros mostra que há urgências, que de Martha Medeiros. Nascida no Rio Grande do
antes não se pensava em ter. Claro que em qualquer Sul, a autora analisa o modo de ser gaúcho em “Rio
época, sempre haverá esse discurso do “no meu tempo Grande, ame-o e deixe-o”. O título é irônico e remente
não era assim...” Mas eis o papel do cronista, ou um o leitor ao slogan politico dos anos 70, quando o

81
Topless, de Marta Medeiros
governo ditatorial militar usava a frase: Brasil, ame-o Fernando Sabino dizendo que faltava demônio em
ou deixe-o. Naquele contexto, a ideia de amar refletia Berna, onde morava na ocasião. A Suíça, de fato,
o discurso de que era precisa aceitar o status quo ou é um país de contos de fada onde tudo funciona,
abandonar o país para que não houvesse luta etc. No onde todos são belos, onde a vida parece uma
caso da cronista, seu objetivo é mostrar que o bairrismo, pintura, um rótulo de chocolate. Mas falta uma
o regionalismo que gira em torno de certos locais no ebulição que salve do marasmo. Retornando ao
país, em especial no Rio Grande, tende a produzir um assunto: pessoas habitadas são aquelas possuídas
discurso de afirmação local, porém de consequências por si mesmas, em diversas versões. Os habitados
ruins para a brasilidade, no sentido de que o gaúcho estão preenchidos de indagações, angústias,
mais típico vê sua cultura como superior a qualquer incertezas, mas não são menos felizes por causa
outra, gerando certo preconceito em relação a outras disso. Não transformam suas “inadequações” em
regiões. doença, mas em força e curiosidade. Não recuam
O Rio Grande do Sul vive para dentro. Cultiva diante de encruzilhadas, não se amedrontam
suas tradições como um pai feroz cuida da filha com transgressões, não adotam as opiniões dos
donzela. [...] Mais: o protecionismo gaudério outros para facilitar o diálogo. São pessoas que
não deixa que se critique a literatura gaúcha, surpreendem com um gesto ou uma fala fora
os músicos gaúchos, a costela gaúcha. [...] o do script, sem nenhuma disposição para serem
confinamento é terreno fértil para preconceitos. bonecos de ventríloquos. Ao contrário, encantam
(p. 115-117) pela verdade pessoal que defendem. Além disso,
mantêm com a solidão uma relação mais do que
O que pode ser visto de modo positivo sob certo
cordial. Então são as criaturas mais incríveis
ângulo é algo que se revela nefasto a todos, afinal o
do universo? Não necessariamente. Entre os
olhar para fora é sempre importante. Compreender
habitados há de tudo, gente fenomenal e também
o todo é mais vantajoso que um olhar limitado,
assassinos, pervertidos e demais malucos que
particularista. Por isso, a literatura de modo geral e
não merecem abrandamento de pena pelo fato de
em particular de Martha Medeiros, por ampliar nosso
serem, em certos aspectos, bastante interessantes.
modo de olhar, por partir de elementos comuns, leva
Interessam, mas assustam. Interessam, mas
o leitor a sair de seu mundinho, daquilo que o cerca
causam dano. (...)
para ganhar o mundo. É o desnudamento que provoca
as crônicas de Martha Medeiros, que quer fazer um Que tenhamos a sorte de esbarrar com seres
topless do que está em nossa mente, para apontar habitados e ao mesmo tempo inofensivos, cujo
as mudanças e também provocar o leitor a ver para único mal que possam fazer é nos fascinar e nos
além do próprio mundo, para refletir além do próprio manter acordados uma madrugada inteira. Ou a
umbigo. vida inteira, o que é melhor ainda.
Fonte: SANTOS, Joaquim Ferreira dos. (org.). As cem melhores
crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva. 2007. p. 324-5.
EXERCÍCIOS
1. Assinale a alternativa que NÃO corresponde às
Observação: as questões a seguir se referem a ideias defendidas no texto, com relação às pessoas
crônicas publicadas em outros livros. No entanto, habitadas:
estão aqui para servirem de referência ao (A) Os habitados são surpreendentes, uma vez
estudante. que não são alienados; são autênticos.
(B) A forma como as criaturas habitadas lidam
(IFNMG) Pessoas habitadas - Martha Medeiros com a solidão é vista de maneira positiva.
Estava conversando com uma amiga, dia (C) Nem sempre as pessoas habitadas são as
desses. Ela comentava sobre uma terceira pessoa, melhores pessoas, ainda que, em certos
que eu não conhecia. Descreveu-a como sendo aspectos, sejam interessantes.
boa gente, esforçada, ótimo caráter. “Só tem um (D) Pessoas habitadas são mais felizes porque
probleminha: não é habitada.” Rimos. É uma estão desabitadas de incertezas e angústias.
expressão coloquial na França — habité — mas
nunca tinha escutado por estas paragens e com
2. Em relação às estratégias discursivas empregadas
este sentido. Lembrei-me de uma outra amiga
na construção do texto, a autora faz uso de vários
que, de forma parecida, também costuma dizer
recursos, EXCETO de:
“aquela ali tem gente em casa” quando se refere a
pessoas que fazem diferença. Uma pessoa pode ser (A) Uso da forma interrogativa como recurso
altamente confiável, gentil, carinhosa, simpática, enfático.
mas se não é habitada, rapidinho coloca os outros (B) Inserção de discurso direto por meio da
pra dormir. Uma pessoa habitada é uma pessoa utilização das aspas.
possuída, não necessariamente pelo demo, ainda (C) Relato de acontecimentos em terceira pessoa,
que satanás esteja longe de ser má referência. exclusivamente no primeiro parágrafo.
Clarice Lispector certa vez escreveu uma carta a (D) Uso de estrangeirismos.
82
Topless, de Marta Medeiros
(Fafisa) O PERMANENTE E O PROVISÓRIO (Ulbra) As questões 4 e 5 estão baseadas na crônica
O casamento é permanente, o namoro é 35 anos para ser feliz, de Martha Medeiros,
provisório. O amor é permanente, a paixão é disponível no site: http://www.releituras.com/
provisória. Uma profissão é permanente, um mamedeiros_serfeliz.asp.
emprego é provisório.
[...] Foi realizado em Madri o Primeiro
Um endereço é permanente, uma estada é Congresso Internacional da Felicidade, e a
provisória. A arte é permanente, a tendência é
conclusão dos congressistas foi que a felicidade só
provisória. De acordo? Nem eu.
é alcançada depois dos 35 anos. Quem participou
Um casamento que dura 20 anos é provisório. desse encontro? Psicólogos, sociólogos, artistas de
Não somos repetições de nós mesmos, a cada
circo? Não sei. Mas gostei do resultado.
instante somos surpreendidos por novos
pensamentos que nos chegam através da leitura, A maioria das pessoas, quando são
do cinema, da meditação. O que eu fui ontem e questionadas sobre o assunto, dizem: “Não existe
anteontem, já é memória. Escada vencida degrau felicidade, existem apenas momentos felizes”.
por degrau, mas o que eu sou neste momento é É o que eu pensava quando habitava a caverna
o que conta, minhas decisões valem para agora, dos 17 anos, para onde não voltaria nem puxada
hoje é o meu dia, nenhum outro. pelos cabelos. Era angústia, solidão, impasses e
Amor permanente... como a gente se agarra incertezas pra tudo quanto era lado, minimizados
nessa ilusão. Pois se nem o amor por nós mesmos por um garden party de vez em quando, um
resiste tanto tempo sem umas reavaliações. Por campeonato de tênis, um feriadão em Garopaba.
isso nos transformamos, temos sede de aprender, Os tais momentos felizes.
de nos melhorar, de deixar para trás nossos
imensuráveis erros, nossos achaques, nossos Adolescente é buzinado dia e noite: tem que
preconceitos, tudo o que fizemos achando que estudar para o vestibular, aprender inglês, [...]
era certo e hoje condenamos. O amor se infiltra não beber quando dirigir, dar satisfação aos pais,
dentro de nós, mas seguem todos em movimento: ler livros que não quer e administrar dezenas de
você, o amor da sua vida e o que vocês sentem. paixões fulminantes e rompimentos.
Tudo pulsando independentemente, e passíveis Não tem grana para ter o próprio canto,
de se desgarrar um do outro.
costuma deprimir-se de segunda a sexta e só se
Um endereço não é pra sempre, uma profissão diverte aos sábados, em locais onde sempre tem
pode ser jogada pela janela, a amizade é fortíssima fila. É o apocalipse. Felicidade, onde está você?
até encontrar uma desilusão ainda mais forte, a
Aqui, na casa dos 30 e sua vizinhança.
arte passa por ciclos, e se tudo isso é soberano
e tem valor supremo, é porque hoje acreditamos Está certo que surgem umas ruguinhas, umas
nisso, hoje somos superiores ao passado e ao mechas brancas e a barriga salienta-se, mas é um
futuro, agora é que nossa crença se estabiliza, a preço justo para o que se ganha em troca. Pense
necessidade se manifesta, a vontade se impõe – bem: depois dos 30, você paga do próprio bolso
até que o tempo vire. o que come e o que veste. Vira-se no inglês, no
Faço menos planos e cultivo menos francês, no italiano e no iídiche, e ai de quem rir
recordações. Não guardo muitos papéis, nem do seu sotaque. Não tenta mais o suicídio quando
adianto muito o serviço. Movimento-me num um amor não dá certo, [...] apaixonou-se por
espaço cujo tamanho me serve, alcanço seus literatura, trocou sua mochila por uma Samsonite
limites com as mãos, é nele que me instalo e vivo [...]. Talvez não tenha se tornado o bam-bam-bam
com a integridade possível. Canso menos, me que sonhou um dia, mas reconhece o rosto que
divirto mais e não perco a fé por constatar o óbvio:
vê no espelho, sabe de quem se trata e simpatiza
tudo é provisório, inclusive nós.
com o cara.
(MEDEIROS, Martha. Coisas da vida.
Porto Alegre: L&PM, 2005. p. 39-40). Depois que cumprimos as missões impostas
3. De acordo com o texto, assinale a alternativa no berço — ter uma profissão, casar e procriar —
cujo fragmento reforça a ideia de transitoriedade passamos a ser livres, a escrever nossa própria
associada ao casamento. história, a valorizar nossas qualidades e ter um
(E) “O casamento é permanente, o namoro é certo carinho por nossos defeitos.
provisório.” Somos os titulares de nossas decisões. A
(F) “[...] mas o que eu sou neste momento é o que juventude faz bem para a pele, mas nunca
conta, minhas decisões valem para agora, hoje salvou ninguém de ser careta. A maturidade,
é o meu dia, nenhum outro.” sim, permite uma certa loucura. Depois dos 35,
(G) “[...] Pois se nem o amor por nós mesmos conforme descobriram os participantes daquele
resiste tanto tempo sem umas reavaliações.” congresso curioso, estamos mais aptos a dizer que
(H) “Faço menos planos e cultivo menos infelicidade não existe, o que existe são momentos
recordações.” infelizes. Sai bem mais em conta.
(I) “[...] tudo é provisório, inclusive nós.
83
Topless, de Marta Medeiros
4. Sobre a crônica de Martha Medeiros, é correto
afirmar.
(A) No Primeiro Congresso Internacional
da Felicidade, realizado em Madri, os
congressistas concluíram que a felicidade só é
alcançada antes dos 35 anos.
(B) A autora do texto afirma que a felicidade
é relativa e que na adolescência é possível
encontrar a felicidade nas pequenas coisas do
dia a dia.
(C) A maturidade não permite mais loucuras.
(D) A juventude faz bem para a pele e torna a
pessoa feliz.
(E) Depois que o indivíduo tem uma profissão,
casa e tem filhos, começa a escrever sua
própria história, começa a ser livre.

5. Assinale a única alternativa que expõe uma


informação encontrada na crônica de Martha
Medeiros.
(A) Junto com psicólogos, artistas de circo
participaram do encontro em Madri.
(B) Após os 35 anos, as pessoas podem afirmar
que não há infelicidade, existem momentos
infelizes.
(C) O adolescente é cobrado diuturnamente, não
tem condições de manter-se sozinho e sempre
tem momentos de felicidade.
(D) As rugas comprometem o visual e tornam o
indivíduo infeliz.
(E) A maioria das pessoas acredita na felicidade
total.

gABARITO
1.D 2.C 3.C 4.E 5.A

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Referências bibliográfricas
Referências bibliográfricas

Alexandre Herculano. Eurico, o presbítero. São Paulo: Martin Claret, 2014.

Carlos Drummond de Andrade. Alguma Poesia. In: Nova reunião. 8. ed., Rio de Janeiro:
BestBolso, 2014, vol. 1.

Clarice Lispector. A hora da estrela. 21. ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

Dias Gomes. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

Gonçalo M. Tavares. Uma menina está perdida no seu século à procura do pai. São Paulo:
Cia. das Letras, 2015.

Martha Medeiros. Topless. Porto Alegre: L&PM, 2015.

Mia Couto. Vozes anoitecidas. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.

Nélida Piñon. Melhores contos. São Paulo: Global, 2014.

Paulo Leminski. Toda Poesia. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.

Raul Pompeia. O Ateneu. Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em http://www.dominio-


publico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2020. Acesso em 01
maio 2016.

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Hino Nacional Brasileiro
Letra: Joaquim Osório Duque Estrada
Música: Francisco Manuel da Silva

Parte I Parte II

OUVIRAM DO IPIRANGA AS MARGENS PLÁCIDAS DEITADO ETERNAMENTE EM BERÇ O ESPLÊNDIDO,


DE UM POVO HEROICO O BRADO RETUMBANTE, AO SOM DO MAR E À LUZ DO CÉU PROFUNDO,
E O SOL DA LIBERDADE, EM RAIOS FÚLGIDOS , FULGURAS, Ó BR ASIL, FLORÃO DA AMÉRICA,
BRILHOU NO CÉU DA PÁTRIA NESSE INSTANTE. ILUMINADO AO SOL DO NOVO MUNDO!

S E O PENHOR DESSA IGUALDADE DO QUE A TERRA MAIS GARRIDA,


CONSEGUIMOS CONQUISTAR COM BRAÇO FORTE , TEUS RISONHOS , LINDOS CAMPOS TÊM MAIS FLORES ;
E M TEU SEIO, Ó LIBERDADE, “NOSS OS BOSQUES MAIS VIDA”,
DESAFIA O NOSS O PEITO A PRÓPRIA MORTE ! “NOSSA VIDA” NO TEU SEIO “MAIS AMORES .”

Ó PÁTRIA AMADA, Ó PÁTRIA AMADA,


IDOLATRADA, IDOLATRADA,
S ALVE! S ALVE! S ALVE! S ALVE!

BRASIL, UM SONHO INTENSO, UM RAIO VÍVIDO


DE AMOR E DE ESPERANÇA À TERRA DESCE ,
S E EM TEU FORMOSO CÉU, RISONHO E LÍMPIDO,
A IMAGEM DO CRUZEIRO RESPLANDECE .

GIGANTE PELA PRÓPRIA NATUREZA,


É S BELO, ÉS FORTE , IMPÁVIDO COLOSS O, VERÁS UM FILHO TEU NÃO FOGE À LUTA,
E O TEU FUTURO ESPELHA ESSA GRANDEZA. NEM TEME, QUEM TE ADORA, A PRÓPRIA MORTE .

TERRA ADORADA, TERRA ADORADA,


E NTRE OUTRAS MIL, E NTRE OUTRAS MIL,
É S TU, BRASIL, É S TU, BRASIL,
Ó PÁTRIA AMADA! Ó PÁTRIA AMADA!

DOS FILHOS DESTE SOLO ÉS MÃE GENTIL, DOS FILHOS DESTE SOLO ÉS MÃE GENTIL,
PÁTRIA AMADA, PÁTRIA AMADA,
BRASIL! B !

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